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O Realismo na Europa:
principais autores e influências
A França foi o país europeu que propôs, desenvolveu e alimentou o Realismo
durante todo o período de sua permanência na literatura, ou seja, ao longo de
toda a segunda metade do século XIX. Segundo Massaud Moisés, as artes plásti-
cas francesas foram a primeira manifestação contra a estética romântica:
As suas origens situam-se na França e nas artes plásticas: antes que os literatos, os pintores
reagiram violentamente contra o Romantismo, a pintura idealista e imaginativa, não raro feita de
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memória. E nessa reação se divisa a primeira característica do Realismo. Em 1850 e 1853, Gustave
Coubert (1818-1877) expõe duas obras realistas (O Enterro em Ormans e As Banhistas), nas quais
procura traduzir os costumes, o aspecto de sua época, faz arte atual. (MOISÉS, 1995, p. 427-428)
Embora não sejam os únicos, esses três nomes nos dão a dimensão da gran-
deza artística do Realismo francês: são autores que nortearam toda uma escola
de narrativa baseada nos preceitos do retrato da realidade emocional e social do
ser humano. Vejamos a partir daqui como cada um deles propôs e desenvolveu
suas principais obras de cunho realista.
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Realismo na Literatura Brasileira
entre outras obras, Memórias de um Louco (1838), Novembro (1842) e Educação Sen-
timental (escrita em duas versões, em 1845 e 1869).
Flaubert chegou a dizer em várias ocasiões: “Madame Bovary sou eu”. Isso se
confirma na profundidade da exploração psicológica da personagem, cujas ações
e decisões se tornam bastante compreensíveis do ponto de vista humano, embora
condenáveis do ponto de vista moral. A vida de Ema torna-se uma “orgia perpétua”
– e era assim que Flaubert definia sua relação com a literatura e com o amor.
Esse mote da orgia perpétua também deu assunto a um outro crítico apaixo-
nado por Madame Bovary: o romancista peruano Mario Vargas Llosa escreveu uma
obra de crítica enfocando o tratamento dado à experiência amorosa tendo como
base a relação de Ema consigo mesma e o modo como se entregava não aos seus
amantes e sim aos efeitos do amor nos seus sentidos insatisfeitos com a realidade.
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Realismo na Literatura Brasileira
Além de Thérèse Raquin, que marcou sua estreia como escritor naturalista,
Émile Zola escreveu ainda, entre outros, o ciclo de 20 romances chamado Os
Rougon-Macquart, com o subtítulo História Natural e Social de uma Família no
Segundo Império. Sua obra mais famosa é Germinal (1885), em que a preocupação
social e o ideário marxista aparecem de modo explícito quando o autor tematiza
o cotidiano de um grupo de mineiros vivendo em condições sociais abjetas em
comparação à ostentação e o conforto da burguesia média da época.
Mais ao fim da vida, Zola escreveu outros dois conjuntos de romances, As Três
Cidades (1894-1898) e Os Quatro Evangelhos (1899-1902), livros em que o estudo
dos temperamentos e a ação dos instintos sobre o comportamento humano
continuaram a dar a tônica dos enredos.
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O século XIX e o ideário realista
O Realismo em Portugal:
principais autores e influências
Em Portugal, a oposição entre Romantismo e Realismo se deu em modo de
debate crítico em dois momentos específicos.
O primeiro deles foi a chamada Questão Coimbrã, que se deu em 1865, tendo
como cenário a Universidade de Coimbra, colocando em lados contrários dois
grupos de poetas – um deles defendendo a estética romântica na poesia e o
outro defendendo a modernidade expressa pela chamada poesia realista. Esse
debate serviu para revelar uma certa insatisfação com os modos de expressão
romântica e abrir campo para as novidades vindas, sobretudo, da França.
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Realismo na Literatura Brasileira
Os seus romances de forte cunho realista são O Crime do Padre Amaro (1875),
O Primo Basílio (1878) e Os Maias (1888).
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Realismo na Literatura Brasileira
Texto complementar
O texto abaixo é um conto de um autor curitibano contemporâneo cujas
características se aproximam bastante das primeiras propostas do Realismo, ou
seja, o recorte da realidade com o máximo de objetividade. Observe como o
enfoque realista permanece como uma das estratégias narrativas mais correntes
em nosso tempo.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pu-
desse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crian-
ças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repe-
tia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo
e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou
cachimbo ao seu lado.
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O século XIX e o ideário realista
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado
do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto des-
botado pela chuva.
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Realismo na Literatura Brasileira
Estudos literários
1. Assinale a alternativa que corresponde à característica romântica mais com-
batida pelo Realismo.
a) Objetividade.
b) Liberdade formal.
c) Subjetivismo.
d) Linguagem em prosa.
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O ideário realista no Brasil
A transição do Romantismo
para o Realismo no Brasil
O período que marca a transição do Romantismo para o Realismo revela,
sobretudo, uma mudança de expressão, tanto na poesia como na prosa. O
timbre elevado do Romantismo vai sendo, gradualmente, substituído por
um tom mais contido e objetivo. O Romantismo brasileiro propôs ideais
míticos que funcionaram como mediadores entre o autor e o mundo, e
que podem ser organizados de modo a visualizarmos os elementos da
experiência pessoal, política e nacional de modo absoluto. São os mitos
da natureza-mãe;
do amor fatal;
da nação redentora.
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O ideário realista no Brasil
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Realismo na Literatura Brasileira
Romantismo e Realismo
Se aceitarmos a designação romance de costumes, feita por José Veríssimo e
ratificada por Darcy Damasceno, estaremos reconhecendo um forte vínculo do
romance Memórias de um Sargento de Milícias com o Romantismo, pois é justa-
mente nos romances românticos brasileiros que encontraremos de modo minu-
cioso o inventário dos costumes brasileiros da primeira metade do século XIX.
Isso pode ser dito com bastante ênfase se nos referirmos aos romances urbanos
de José de Alencar, como Cinco Minutos, A Viuvinha, A Pata da Gazela ou mesmo
Senhora, ou ainda ao famoso romance A Moreninha, de Joaquim Manuel de
Macedo. Os romances urbanos do nosso Romantismo apresentam o modo de
viver e o cenário da cidade de modo exemplar, quase com intenção documentá-
ria, e nesse sentido Memórias de um Sargento de Milícias manifesta uma herança
cuja matriz é, sem dúvida, o Romantismo.
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O ideário realista no Brasil
Embora acate essa declaração, Antonio Candido faz questão de verificar que a
composição das personagens atende a uma sistematização que tem como princí-
pio a criação de personagens-tipo, criando referências mais ou menos gerais que
tornam a apresentação das personagens quase um documentário da realidade. E
aqui não estamos falando do documentário científico que alguns realistas defen-
diam, mas sim um documentário bem humorado e em alguns momentos satírico,
capaz de levar o leitor à reflexão sobre as contradições da realidade representada.
Antonio Candido preocupa-se em relacionar o viés documental do romance Memó-
rias de um Sargento de Milícias a influências locais, de várias origens culturais, desde
o jornalismo até as manifestações gráficas:
De fato, para compreender um livro como as Memórias convém lembrar a sua afinidade
com a produção cômica e satírica da Regência e primeiros anos do Segundo Reinado – no
jornalismo, na poesia, no desenho, no teatro. Escritas de 1852 a 1853, elas seguem uma
tendência manifestada desde o decênio de1830, quando começam a florescer jornalzinhos
cômicos e satíricos, como O Carapuceiro, do Padre Lopes Gama (1832-1834; 1837-1843; 1847)
e O Novo Carapuceiro, de Gama e Castro (1841-1842). Ambos se ocupavam de análise política
e moral por meio da sátira dos costumes e retratos de tipos característicos, dissolvendo
a individualidade na categoria, como tende a fazer Manuel Antônio. Esta linha que vem de
La Bruyère, mas também do nosso velho poema cômico, sobretudo do exemplo de Nicolau
Tolentino, manifestava-se ainda na verdadeira mania do retrato satírico, descrevendo os tipos
da vida quotidiana, que, sob o nome de fisiologia (por psicologia), pululou na imprensa francesa
entre 1830 e 1850 e dela passou à nossa. Embora Balzac a tenha cultivado com grande talento,
não é preciso recorrer à sua influência[...] para encontrar a fonte eventual de uma moda que
era pão quotidiano dos jornais. (CANDIDO, 1970, p. 8)
A sátira presente como marca das Memórias seria, na perspectiva do crítico, ori-
ginária da prática cultural do momento em que o livro foi produzido. Nesse sentido,
seria desnecessário buscar as origens da novidade deste romance fora do Brasil ou
em antigas tradições: bastaria olhar para a produção do momento para encontrar as
influências que Manuel Antônio de Almeida recebeu para a concepção de seu livro.
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Realismo na Literatura Brasileira
Esse é inclusive um dos argumentos utilizados por Antonio Candido para não
aceitar inteiramente a classificação de romance picaresco para Memórias de um
Sargento de Milícias. Nos romances picarescos, o narrador é sempre o protago-
nista, a personagem principal, mas isso não acontece em Memórias, cujo narra-
dor é uma voz externa que comenta e analisa a ação, caracterizando-se como
narrador intruso em alguns momentos.
Além disso, o narrador nos fala dos meirinhos como figuras comuns do momen-
to em que o livro circula. Hoje, a palavra meirinho está fora de uso. O meirinho é um
oficial de justiça, encarregado de levar as intimações e correspondências judiciais.
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O ideário realista no Brasil
menta a ação narrada, em nenhum momento da narrativa ele será neutro. Vimos
no trecho citado que ele faz um pequeno comentário sobre a importância que
os meirinhos tinham na época do rei e que no momento em que a história está
sendo contada já não tem mais.
Ação, enredo
A organização do enredo de uma narrativa pode ser feita por meio da sistema-
tização em
apresentação;
desenvolvimento;
clímax; e
desfecho.
Apresentação
O capítulo inicial corresponde à apresentação da origem do protagonista. Esse
capítulo se intitula justamente “Origem, nascimento e batizado”, e nele ficamos sa-
bendo que o pai do herói, conhecido como Leonardo Pataca, é um português que
na viagem de vinda ao Brasil conhece Maria das Hortaliças e, depois de um pisão no
pé e um beliscão, os dois juntam-se e concebem o protagonista, Leonardo filho.
Desenvolvimento
Desde o nascimento, a personalidade de Leonardo filho vai se desenhando
de modo a revelar um caráter pouco firme, que vai se deixando levar sem muita
vontade, o que o caracteriza como um títere do destino, ou seja, um fantoche.
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Realismo na Literatura Brasileira
Clímax
Vemos aqui uma circularidade, da desordem à prisão e depois para o cargo
de soldado. Contrariando a expectativa, Leonardo reverte (quase sem querer) a
adversidade e acaba lucrando com a própria prisão. Já soldado, ele só confirma
seu perfil de malandro, passando boa parte do tempo preso por vadiagem.
Desfecho
Contrariando a ideia de punição e mérito para alcançar um final feliz, mesmo
sem ter feito por merecer, Leonardo acaba alcançando o perdão na Milícia e
ainda é promovido a sargento.
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O ideário realista no Brasil
Dialética da malandragem
Antonio Candido destaca a dialética da malandragem no romance, com o
protagonista sempre oscilando entre a ordem e a desordem, sem nunca aderir
à caracterização do herói convencional que cumpre com todas as exigências
morais da tradição, mas também sem cair na vilania, o que iria lhe tirar toda a
simpatia do leitor.
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Realismo na Literatura Brasileira
Texto complementar
Indicamos a seguir a leitura do primeiro capítulo do romance Memórias de
um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Com certeza a leitura do
texto integral do romance vai ser muito importante para a sua compreensão da
importância desse livro no contexto da literatura brasileira.
Daí sua influência moral. Mas tinham ainda outra influência, que é justa-
mente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições
físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm
de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com
qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição.
Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram
originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade
forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda
casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo
aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja
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O ideário realista no Brasil
Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa
abençoada época veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro,
e que se denominavam — cadeiras de campanha — um grupo mais ou
menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo
sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e
nas astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equa-
ção meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante, era o
Leonardo Pataca.
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Realismo na Literatura Brasileira
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O ideário realista no Brasil
A festa acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção
ao afilhado e pondo-lhe no cinteiro um raminho de arruda.
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Realismo na Literatura Brasileira
Estudos literários
1. Assinale a alternativa que corresponde à modalidade de publicação da pri-
meira versão do romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel
Antônio de Almeida.
a) Revista.
b) Livro.
c) Folhetim.
d) Edição do autor.
a) do Romantismo e do Parnasianismo.
b) do Romantismo e do Arcadismo.
c) do Realismo e do Modernismo.
d) do Romantismo e do Realismo.
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O ideário realista no Brasil
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Realismo na Literatura Brasileira
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O Realismo e o Naturalismo no Brasil
O Realismo e o Naturalismo:
relações possíveis
Nos estudos literários, é consenso que o Naturalismo promove certa
deformação da identidade na medida em que força o traço determinista
na caracterização das personagens e de seu comportamento. Vale dizer
que, em casos assim, a abordagem da realidade acaba prejudicada por
uma exagerada ênfase em tudo aquilo que seria anormal e desviante no
comportamento humano.
Podemos dizer que, nos romances com alguma marca do Naturalismo, o com-
portamento das personagens já está predeterminado, seja pela carga hereditária
– ou seja, pela etnia a que pertence a personagem – ou pelas condições em que a
pessoa foi criada e vive. Como se vê, não há imprevistos: tudo é previsível porque
há uma linearidade simplificada na relação de causa e efeito nas ações das perso-
nagens. De modo particular, a determinação hereditária nos parece, atualmente,
muito problemática, pois em alguns casos comportamentos viciados ou crimi-
nosos são justificados pela influência desta ou daquela raça ou etnia.
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O Realismo e o Naturalismo no Brasil
mundo não conseguirá jamais superar essa condição inicial, que é ao mesmo
tempo hereditária e social.
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Realismo na Literatura Brasileira
as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga” (MAGALHÃES, 1896, p. 52). Daí
a vasta produção do autor, da qual vale destacar os títulos abaixo.
O Mulato (1881).
O Cortiço (1890).
O romance-ícone de Aluísio Azevedo, aquele em que ele revela toda a sua força
na figuração de espaços coletivos é, sem dúvida, O Cortiço, que veremos a seguir.
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O Realismo e o Naturalismo no Brasil
O Cortiço
Romance publicado em 1890, O Cortiço apresenta forte filiação naturalista,
pois aborda a experiência humana nos moldes do determinismo hereditário e
social que definiu a radicalização que o enfoque naturalista deu ao Realismo dos
primeiros tempos.
A terra encharca-se da água das lavadeiras que usam a única bica disponibi-
lizada pelo dono do cortiço para esse fim. A venda é também, como a pedreira
onde todos trabalham, propriedade de João Romão, que é o dono de todos os
bens de que necessitam as pessoas que vivem no cortiço. João Romão explora
a pedreira ao fundo de sua venda e oferece trabalho aos desassistidos que vão
pedir-lhe emprego. Dá-lhes ainda moradia, à custa de aluguel, nos casebres que
vai construindo no cortiço e ainda lhes vende caro a comida na única venda
das redondezas, onde todos se endividam. João Romão é o deus sujo e corrup-
to desse mundo em que todos vivem como seres de inferioridade confirmada.
Observemos os termos usados pelo narrador para se referir aos moradores do
1
Cortiço é uma casa que serve de habitação coletiva para pessoas pobres, uma casa de cômodos, ou então uma aglomeração de casas muito
pobres.
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Realismo na Literatura Brasileira
Bosi nos apresenta uma breve análise do tratamento animalizado das perso-
nagens no romance:
A redução das criaturas ao nível animal cai dentro dos códigos anti-românticos de
despersonalização; mas o que uma análise mais percuciente atribuiria ao sistema desumano do
trabalho, que deforma os que vendem e ulcera os que compram, à consciência do naturalista
aparece como um fado de origem fisiológica, portanto inapelável. Como dá caráter absoluto
ao que é efeito da iniquidade social, o naturalista acaba fatalmente estendendo a amargura da
sua reflexão à própria fonte de todas as suas leis: a natureza humana afigura-se-lhe uma selva
selvaggia onde os fortes comem os fracos. (BOSI, 1994, p. 191)
O espaço
O Cortiço começa quando João Romão, usando as economias de sua amante
e escrava Bertoleza, compra alguns palmos de terreno do lado esquerdo da
sua venda e lá constrói duas casinhas de cômodo, depois mais três, e assim por
diante, até completar 95 casinhas, todas construídas com material roubado da
vizinhança.
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O Realismo e o Naturalismo no Brasil
Jerônimo e sua mulher Piedade, até estudantes pobres, contínuos, caixeiros, ar-
tistas, vendedores de bilhetes de loteria, mascates2 e muitos outros.
2
Mascate: vendedor ambulante que oferece suas mercadorias de porta em porta.
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Realismo na Literatura Brasileira
As personagens
Vejamos a seguir como se dá a apresentação das personagens de maior des-
taque ao longo do romance:
João Romão
A breve apresentação de João Romão, no início do romance, já traz a carac-
terística que marca o seu comportamento durante toda a ação do livro: o desejo
de acumular, cada vez mais e mais. Nele, a economia não é cuidado para garantir
o futuro, mas uma ânsia doentia pela posse de tudo que o cerca:
[...] foi, dos 13 aos 25 anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes
de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro de Botafogo; e tanto economizou do
pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra,3 lhe deixou,
em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda
um conto e quinhentos em dinheiro. (AZEVEDO, 2007, p. 17)
Bertoleza
Também de Bertoleza temos o principal traço em poucas linhas: o trabalho.
Mesmo acreditando-se livre, ao lado de João Romão trabalha a negra como escra-
va dia e noite, juntando dinheiro que vai direto para o bolso do patrão e amante:
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e
de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina
de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os
trabalhadores de uma pedreira que havia além de um grande capinzal aos fundos da venda.
(AZEVEDO, 2007, p. 17)
Miranda e Estela
O casamento de Miranda e Estela, pais de Zulmira e vizinhos do cortiço, é
apenas um arranjo comercial e toda a proximidade entre eles só se dá pela via
do instinto carnal que cada vez mais os rebaixa:
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Terra, neste contexto, é a terra natal, ou “a terrinha”, como os portugueses costumam chamar afetivamente o seu país.
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O Realismo e o Naturalismo no Brasil
Isto foi o que disse Miranda aos colegas, porém, a verdadeira causa da mudança (para o
sobrado vizinho do cortiço) estava na necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar D.
Estela do alcance de seus caixeiros. D. Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se
casada havia 13 anos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda
antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o marido pilhou-a em flagrante delito de
adultério; ficou furioso e o seu primeiro impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o
cúmplice, mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns 80 contos em
prédios e ações da dívida pública, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia
o regime dotal. (AZEVEDO, 2007, p. 19-20)
Rita Baiana
Rita Baiana é descrita como a personificação da sensualidade e da sedução –
toda ela atrai e conquista e justamente esse poder vai corromper os homens ao
seu redor e levar as mulheres ao desespero:
Rita havia parado no meio do pátio. Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam
novidades dela. Não vinha em trajo de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe
deixava ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeite de marroquim de diversas
cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de
manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda ela respirava o asseio
das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o
atrevido e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um
fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador.
(AZEVEDO, 2007, p. 61)
Jerônimo
Na condição de personagem que será corrompido pela sensualidade de Rita
Baiana, Jerônimo se apresenta inicialmente como homem de família, trabalha-
dor e cumpridor de suas obrigações. Entretanto, a sua entrada no cortiço quebra
essa lógica e o faz, como os outros, um ser à mercê de seus próprios instintos:
[...] viera da terra, com a mulher e uma filhinha ainda pequena tentar a vida no Brasil, na qualidade
de colono de um fazendeiro, em cuja fazenda mourejou durante dois anos, sem nunca levantar
a cabeça, e donde afinal se retirou de mãos vazias e com grande birra pela lavoura brasileira. [...]
Jerônimo, porém, era perseverante, observador e dotado de certa habilidade. Em poucos meses
se apoderava do seu novo ofício e, de quebrador de pedra, passou logo a fazer paralelepípedos;
e depois foi-se ajeitando com o prumo e a esquadria e meteu-se a fazer lajedos e, finalmente,
à força de dedicação pelo serviço, tornou-se tão bom como os melhores trabalhadores de
pedreira e a ter salário igual ao deles. (AZEVEDO, 2007, p. 56)
Espaço e personagens
A galeria de personagens do romance O Cortiço é ampla e variada, mas basta
verificar como as de maior destaque se relacionam com o espaço para se per-
ceber que o cortiço é uma força que age sobre as pessoas, confirmando a tese
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Realismo na Literatura Brasileira
Mas, de qualquer forma, é com esse romance que o Brasil realmente passa
a dialogar com as teses naturalistas vigentes na Europa. Sua publicação é um
marco da literatura brasileira na medida em que coloca em discussão o próprio
modelo de romance naturalista em nossas letras.
Texto complementar
A seguir, você vai ler um artigo sobre um outro importante romance natura-
lista do século XIX, Bom-crioulo, de Adolfo Caminha. Esse romance é, em várias
ocasiões, comparado com O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e as informações e
reflexões disponibilizadas aqui com certeza aprofundarão sua compreensão
do momento literário em que essas obras foram publicadas.
Autores “malditos” não são privilégio deste século. Há [...] cem anos (1897)
morria Adolfo Caminha, nos seus 30 anos de idade, talvez o nosso maior
“maldito”, que ousou tratar de tema proibido – o homossexualismo na Mari-
nha – dentro de uma escola literária considerada menor. Daí a conspiração
de silêncio que o cerca e à sua obra. O autor de A Normalista (1893), No País
dos Ianques (1894), Bom-crioulo (1895, e agora reeditado), Tentação (1896)
pode ser colocado, por importância, ao lado de Aluísio Azevedo, nosso band
leader do movimento naturalista.
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O Realismo e o Naturalismo no Brasil
Raul Pompéia e Caminha são exemplos únicos, entre nós, de autores que
souberam fazer a crítica do romantismo e aproveitar sua lição; Lúcia Miguel-
Pereira enxerga em Bom-crioulo um livro que, “ousado na concepção e na
execução, forte e dramático, humano e verdadeiro, é, com O Cortiço, o ponto
alto do naturalismo”, fato que torna seu autor “uma das primeiras figuras de
seu tempo”. Sem dúvida o esquecimento editorial em que caiu Adolfo Cami-
nha não é inocente.
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Realismo na Literatura Brasileira
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O Realismo e o Naturalismo no Brasil
Estudos literários
1. Considere as afirmações abaixo, sobre o romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo.
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O Realismo e o Naturalismo no Brasil
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Realismo na Literatura Brasileira
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Machado de Assis e o Realismo brasileiro
Machado de Assis
e os seus romances românticos
Os romances de Machado de Assis, escritos antes de 1880 são conside-
rados de uma fase ainda associada ao Romantismo:
Ressureição (1872);
Helena (1876);
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Machado de Assis e o Realismo brasileiro
Desconfiada das relações entre Jorge e Estela, Iaiá Garcia decide conquistar o
moço Jorge para livrar o pai de uma possível traição da esposa. Percebemos que
as motivações para o envolvimento amoroso não são simples: temos a um só
tempo, de modo subliminar, a disputa de Iaiá Garcia com a madrasta e o desejo
de proteger o pai. No desfecho do romance, Iaiá Garcia está apaixonada por
Jorge, Luís Garcia morre e Estela acaba por auxiliar a união do jovem casal.
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Realismo na Literatura Brasileira
cavaleiro que esfalfou seu próprio corcel “a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde
o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para seus
livros”. As imitações absurdas do período das independências pautavam-se em uma civilização
Nescafé: podíamos ser instantaneamente modernos abolindo o passado, negando a tradição.
O gênio de Machado reside no contrário: não há criação sem tradição que a nutra, assim como
não há tradição sem criação que a renove. (FUENTES, 2000, p. 6)
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Machado de Assis e o Realismo brasileiro
Eram autores de uma mesma geração, mas separados pelo mar e também
por uma postura muito diferente em relação à literatura. Eça abraçou o Realismo
durante muitos anos de sua produção literária, só abandonando os preceitos da
Escola nas suas últimas obras.
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Realismo na Literatura Brasileira
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Machado de Assis e o Realismo brasileiro
Vejamos como Machado analisa o enredo que leva Luísa a trair seu marido:
Casada com Jorge, faz este uma viagem ao Alentejo, ficando ela sozinha em Lisboa; aparece-
lhe o primo Basílio, que a amou em solteira. Ela já o não ama; quando leu a notícia da chegada
dele, 12 dias antes, ficou muito “admirada”; depois foi cuidar dos coletes do marido. Agora,
que o vê, começa por ficar nervosa; ele lhe fala das viagens, do patriarca de Jerusalém, do
papa, das luvas de oito botões, de um rosário e dos namoros de outro tempo; diz-lhe que
estimara ter vindo justamente na ocasião de estar o marido ausente. Era uma injúria: Luísa
fez-se escarlate; mas à despedida dá-lhe a mão a beijar, dá-lhe até a entender que o espera
no dia seguinte. Ele sai; Luísa sente-se “afogueada, cansada”, vai despir-se diante de um
espelho, “olhando-se muito, gostando de se ver branca”. A tarde e a noite gasta-as a pensar
ora no primo, ora no marido. Tal é o introito, de uma queda, que nenhuma razão moral
explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum despeito, nenhuma
perversão sequer. Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência; Basílio
não faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que é. Uma vez rolada ao erro, como
nenhuma flama espiritual a alenta, não acha ali a saciedade das grandes paixões criminosas:
rebolca-se1 simplesmente. Assim, essa ligação de algumas semanas, que é o fato inicial e
essencial da ação, não passa de um incidente erótico, sem relevo, repugnante, vulgar. Que
tem o leitor do livro com essas duas criaturas sem ocupação nem sentimentos? Positivamente
nada. (MACHADO DE ASSIS, 1999, p. 25)
No “tom” realista da obra, Machado encontra certa falta de pudor que é para
ele um grande problema. Podemos até apontar a avaliação de Machado como
um moralismo, mas é justificável que ele se ressinta criticamente do processo de
espetacularização da natureza que o Realismo, e talvez mais marcadamente o
Naturalismo, fez na literatura.
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Rebolcar-se: revolver-se na lama; chafurdar.
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Realismo na Literatura Brasileira
Texto complementar
Disponibilizamos aqui uma resenha de uma obra de estudo crítico sobre Ma-
chado de Assis. A leitura dessa resenha vai ajudá-lo a conhecer um pouco mais
da temática de Machado de Assis e de seu estilo.
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Machado de Assis e o Realismo brasileiro
A mensagem na garrafa
Em Por um Novo Machado de Assis, o crítico inglês John Gledson busca deci-
frar o sentido último das ficções do autor de Dom Casmurro
(SCHWARTZ, 2006)
Poucos críticos literários praticam seu ofício com tanta retidão quanto
John Gledson, que está lançando Por Um Novo Machado de Assis, uma
coletânea de ensaios sobre o autor de Dom Casmurro, tema principal de seus
estudos há muitos anos.
Isso fica claro quando se constata como ele valoriza e defende outros crí-
ticos de sua própria linhagem, sem, no entanto, deixar de fazer restrições ou
apresentar discordâncias – e o exemplo maior aqui é Roberto Schwarz.
Mas, principalmente, isso fica ainda mais claro pelo modo como discute
os autores com os quais não se alinha. Ele os nomeia e aceita com prazer
e abertura o debate, sem em nenhum momento tentar desqualificar qual-
quer “oponente”. Gledson não vê, inclusive, nenhum problema em afirmar
que mesmo posições e pressupostos teóricos bastante incompatíveis com
os dele podem até levar a conclusões próximas – e o exemplo evidente aqui
é Abel Barros Baptista.
Intenção do autor
Nos 14 textos reunidos no volume, o autor analisa contos, crônicas, a per-
sonagem Capitu, as relações entre literatura e história, leituras femininas e
até faz “especulações sobre sexo e sexualidade” em Machado de Assis e Gra-
ciliano Ramos: cada abordagem reforça a percepção de que se trata de um
pesquisador com profundo domínio de seu assunto.
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Realismo na Literatura Brasileira
Corajosa e contestável, tal posição, ainda que na prática seja assumida por
muitas pessoas, raramente nos dias de hoje é defendida de modo público,
uma vez que se aproxima da ideia do senso comum a respeito do texto artísti-
co (qualquer professor se lembrará com facilidade das inúmeras vezes em que,
depois de analisar em sala de aula um conto ou poema, ouviu, com variações,
a pergunta: “Mas o autor quis realmente dizer isso?”). Questão rica e polêmica
na história dos estudos literários, atualmente ela é pouco debatida.
Isso não seria mais ou menos o mesmo que diagnosticar uma doença
grave, potencialmente fatal, escrever um relatório sobre ela e guardá-lo em
uma gaveta trancada para ser lido décadas depois, quando o doente já há
muito morreu e virou pó?
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Machado de Assis e o Realismo brasileiro
Estudos literários
1. A fase romântica de Machado de Assis é composta pelos romances
a) realismo crítico.
b) realismo mágico.
c) realismo psicológico.
d) realismo-naturalismo.
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