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O século XIX e o ideário realista

Podemos dizer que, a partir do Romantismo, o século XIX trouxe uma


mudança radical na percepção que o ser humano tem do mundo. O
Romantismo expandiu o horizonte da arte, trazendo para dentro dela a
representação do mundo comum, das identidades humanas distante
dos heróis aristocráticos e elitizados do mundo clássico. O Realismo, em
conformidade com os avanços das ciências e do pensamento filosófico,
buscou tornar essa percepção do mundo mais precisa, mais objetiva.
Pode-se dizer que o Realismo quis, por algum tempo, ombrear a arte e
a ciência, dando à literatura, principalmente, um papel de investigação e
diagnóstico sobre a realidade e a experiência humana.

Embora em muitos aspectos essa intenção reduza o alcance da expres-


são artística, o Realismo demonstrou que a realidade e suas preocupações
poderiam ser o foco central da arte. A busca de objetividade alinhou o
Realismo às correntes filosóficas da segunda metade do século XIX, mar-
cadamente o positivismo. Na visão positivista, na qual predomina a con-
cepção materialista do mundo, o ser humano e o mundo são interpreta-
dos segundo leis bastante rígidas, sempre dentro de uma perspectiva
evolucionista.

No Realismo, houve pouco espaço para o idealismo e para a transcen-


dência, o ser humano foi interpretado como um elemento material entre
outros elementos também materiais, investigados pela objetividade da
ciência.

O século XIX: filosofia e sociedade


Como proposta estética, o Realismo marcou a segunda metade do
século XIX e, na instância formal, reafirmou as conquistas do Romantismo.
No plano do conteúdo e da temática, novas preocupações marcaram o
movimento, sendo que a principal delas foi a necessidade de se estabe-
lecer um vínculo com as conquistas da ciência, marcadamente da Biolo-
gia, da Sociologia e também da Filosofia.
Realismo na Literatura Brasileira

O Realismo adota alguns preceitos da Biologia, principalmente no que diz res-


peito à teoria evolucionista de Charles Darwin (1809-1882), apresentada no livro A
Origem das Espécies (1859). Segundo essa teoria, as espécies permanecem e evo-
luem de acordo com sua capacidade de adaptação e superação, o que deu suporte
à crença de que marcas genéticas herdadas de antepassados definem o compor-
tamento e a capacidade de evolução do sujeito no ambiente em que vive.

Da Sociologia e da Filosofia, o Realismo extraiu valores de correntes como o


positivismo e o determinismo.

O positivismo, de Auguste Comte (1798-1857), prega a necessidade de se


pautar a interpretação da realidade em dados da experiência objetiva. Essa
escola se contrapõe ao idealismo, que busca interpretar os elementos sensíveis
e intangíveis da experiência: ao contrário disso, o positivismo prega a objetivi-
dade máxima na interpretação dos fenômenos sociais. O Realismo adotou essa
postura quando assumiu o compromisso de representar a realidade do modo
mais objetivo possível, primando pela descrição e pelo inventário dessa reali-
dade sem que houvesse intervalos para a imaginação ou para sentidos subjetivos.

Ainda seguindo as ideias do positivismo, o Realismo tornou bastante corren-


te a noção de determinismo social, segundo a qual o ser humano é produto da
experiência que acumula em determinado contexto humano e social. Ou seja,
o meio em que vive o sujeito determina suas ações, seu comportamento e seu
modo de pensar e reagir. Segundo essa ideia, não há liberdade de ação, estando
o ser humano sempre preso às determinações de sua experiência. Um exemplo
seria uma pessoa que cresce e vive em um ambiente corrupto manifestar sempre
um comportamento corrupto, pois foi determinada por esse meio.

O Realismo na Europa:
principais autores e influências
A França foi o país europeu que propôs, desenvolveu e alimentou o Realismo
durante todo o período de sua permanência na literatura, ou seja, ao longo de
toda a segunda metade do século XIX. Segundo Massaud Moisés, as artes plásti-
cas francesas foram a primeira manifestação contra a estética romântica:
As suas origens situam-se na França e nas artes plásticas: antes que os literatos, os pintores
reagiram violentamente contra o Romantismo, a pintura idealista e imaginativa, não raro feita de

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O século XIX e o ideário realista

memória. E nessa reação se divisa a primeira característica do Realismo. Em 1850 e 1853, Gustave
Coubert (1818-1877) expõe duas obras realistas (O Enterro em Ormans e As Banhistas), nas quais
procura traduzir os costumes, o aspecto de sua época, faz arte atual. (MOISÉS, 1995, p. 427-428)

A primeira característica realista divisada por Moisés na pintura daquele mo-


mento é justamente a ênfase dada ao “retrato do real”, resultado da insatisfação
com a expressão subjetiva e desfocada do inventário da realidade que os rea-
listas vão propor a partir daí.

A primeira característica realista divisada por Moisés na pintura daquele mo-


mento é justamente a ênfase dada ao “retrato do real”, resultado da insatisfação
com a expressão subjetiva e desfocada do inventário da realidade feito pelos
românticos. Assim, a partir de então os realistas propuseram uma objetividade.

É consenso da crítica historiográfica considerar o romance Madame Bovary


(1857), de Gustave Flaubert (1821-1880), como a primeira obra de literatura realista.
A temática do adultério feminino, tratada de modo inédito por Flaubert, tornou-se
uma obsessão realista em todos os países em que houve a adesão ao movimento.

Um outro escritor francês também veio dar contorno definitivo à proposta


realista: Émile Zola (1840-1902), considerado o “papa” do Realismo, uma vez que se
dedicou não só a escrever obras românticas mas também a formular os principais
postulados do movimento, a serem seguidos por todos os autores realistas.

Na transição do Romantismo para o Realismo, Honoré de Balzac (1799-1850)


marcou sua presença com obras realistas a partir de 1860, quando aderiu formal-
mente às temáticas e estratégias do movimento Realista.

Embora não sejam os únicos, esses três nomes nos dão a dimensão da gran-
deza artística do Realismo francês: são autores que nortearam toda uma escola
de narrativa baseada nos preceitos do retrato da realidade emocional e social do
ser humano. Vejamos a partir daqui como cada um deles propôs e desenvolveu
suas principais obras de cunho realista.

Gustave Flaubert e Madame Bovary


Madame Bovary, o romance de Flaubert, inaugurou o tratamento dado pelo
Realismo à temática do adultério feminino, abordada por tantos outros autores
do período, como Zola e Balzac na França, Eça de Queirós em Portugal e Machado
de Assis no Brasil. Além desse romance que lhe deu notoriedade, Flaubert publicou,

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Realismo na Literatura Brasileira

entre outras obras, Memórias de um Louco (1838), Novembro (1842) e Educação Sen-
timental (escrita em duas versões, em 1845 e 1869).

O enredo de Madame Bovary apresenta a heroína em termos muito diversos


daqueles encontrados nos romances românticos: Ema Bovary encarna a mulher
que, insatisfeita no casamento e vítima das fantasias românticas dos livros que
lê, deixa-se seduzir pela ideia de amores fora do casamento. Ela se apaixona pri-
meiro por um jovem com quem mantém uma relação inicialmente platônica e
em seguida vive um tórrido romance com um vizinho, com quem terá sua inicia-
ção no adultério propriamente dito.

O que marca o romance, no entanto, não é apenas a vivência do adultério, mas


também a ênfase interna que o narrador dá às emoções e sensações da protagonista.
Ema Bovary é uma personagem complexa, que encarna a insatisfação com a própria
existência em termos mais amplos do que simplesmente o tédio do casamento.

Outro ponto alto do romance, sendo matéria para a reflexão da crítica, é o


uso especial que Flaubert faz da linguagem. Em seu ensaio sobre o autor, Henry
James (1843-1916) destaca a atenção dada à personalidade da heroína: “Ela mer-
gulha cada vez mais fundo em duplicidade, dívidas, desespero, e encontra um
fim trágico [...]. E faz tudo isso enquanto permanece absorvida pela visão e pela
intenção românticas, e permanece absorvida pela visão e pela intenção român-
ticas enquanto rola na lama.” (JAMES, 1996, p. 37)

Flaubert chegou a dizer em várias ocasiões: “Madame Bovary sou eu”. Isso se
confirma na profundidade da exploração psicológica da personagem, cujas ações
e decisões se tornam bastante compreensíveis do ponto de vista humano, embora
condenáveis do ponto de vista moral. A vida de Ema torna-se uma “orgia perpétua”
– e era assim que Flaubert definia sua relação com a literatura e com o amor.

Esse mote da orgia perpétua também deu assunto a um outro crítico apaixo-
nado por Madame Bovary: o romancista peruano Mario Vargas Llosa escreveu uma
obra de crítica enfocando o tratamento dado à experiência amorosa tendo como
base a relação de Ema consigo mesma e o modo como se entregava não aos seus
amantes e sim aos efeitos do amor nos seus sentidos insatisfeitos com a realidade.

Porém, o tratamento dado ao adultério feminino fica muito longe da mora-


lidade esperada de um romance realista – que, pela regra, deveria denunciar as
mazelas da sociedade burguesa, sendo o adultério da mulher uma dessas ma-
zelas. Flaubert vai muito mais longe e acaba por realizar uma obra de reflexão

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O século XIX e o ideário realista

existencialista, colocando a personagem no centro da angústia existencial e da


insatisfação com os limites da experiência.

Nesse sentido, o romance Madame Bovary não marcou apenas o início do


Realismo francês, mas se insere no contexto das grandes produções que ultra-
passam as intenções estéticas e morais de um período histórico ou literário,
sendo uma obra de alcance e interesse universal por espelhar as contradições
humanas de qualquer tempo e qualquer lugar.

Émile Zola e os manifestos do Realismo/Naturalismo


O título de papa do Realismo cabe a Émile Zola pelo empenho em levar ao
limite o espetáculo da realidade. Fruto desse esforço é a designação de Natura-
lismo dada à produção do autor. A partir dele, o Realismo será acrescido de um
novo conceito, paralelo: justamente o Naturalismo, que seria uma radicalização
das características do primeiro.

O Naturalismo destaca e aprofunda a relação entre ciência e comportamento


humano, revelando as razões biológicas, fisiológicas e genéticas para determi-
nadas ações do homem no contexto de uma determinada sociedade.

Émile Zola publicou o romance Thérèse Raquin em 1867, inaugurando a nova


face do Realismo, com destaque para as determinações genéticas e sociais, bem
como para o comportamento imoral de sua protagonista.

A justificativa para a caracterização amoral das personagens do romance está


na concepção de que a compleição humana é biológica, de modo que a au-
sência da noção de alma ou moralidade religiosa libera as personagens para a
vivência de seus instintos. Essa é a máxima que norteará o Naturalismo na França
e também em outros países. Segundo André Dalpicolo,
O romance Thérèse Raquin está à frente do seu tempo, porque defende o postulado darwinista
acerca da criação do homem no Universo; porém, o mesmo fator que faz desse romance uma
obra de vanguarda também pode servir de instrumento para uma crítica em relação à corrente
literária iniciada por Émile Zola, porque atrela a tese da origem do homem com aquela que
indica o mesmo como um simples resultado do meio ambiente, tornando-o um títere das
circunstâncias. O resultado desse processo é a elaboração de uma literatura que torna o
homem amoral, uma vez que desqualifica o livre-arbítrio. (DALPICOLO, 2008)

A representação do ser humano como um mero títere (fantoche) do meio


e da genética foi uma das grandes críticas que o Naturalismo de Zola recebeu.

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Realismo na Literatura Brasileira

Entretanto, isso acaba por demonstrar a coerência do autor com os preceitos


cientificistas do momento em que ele escreveu sua obra.

Um ensaio de Zola, intitulado O Romance Experimental (1880), é consi-


derado um verdadeiro manifesto realista-naturalista na medida em que prega
que o estudo das personalidades e dos temperamentos humanos deve obede-
cer a critérios inspirados nas pesquisas científicas, de modo a não se dar vazão a
impressionismos ou subjetividades do autor: o objetivo do romance seria explo-
rar e apresentar todos os detalhes do comportamento humano sem nenhuma
restrição moral ou emocional.

Além de Thérèse Raquin, que marcou sua estreia como escritor naturalista,
Émile Zola escreveu ainda, entre outros, o ciclo de 20 romances chamado Os
Rougon-Macquart, com o subtítulo História Natural e Social de uma Família no
Segundo Império. Sua obra mais famosa é Germinal (1885), em que a preocupação
social e o ideário marxista aparecem de modo explícito quando o autor tematiza
o cotidiano de um grupo de mineiros vivendo em condições sociais abjetas em
comparação à ostentação e o conforto da burguesia média da época.

Mais ao fim da vida, Zola escreveu outros dois conjuntos de romances, As Três
Cidades (1894-1898) e Os Quatro Evangelhos (1899-1902), livros em que o estudo
dos temperamentos e a ação dos instintos sobre o comportamento humano
continuaram a dar a tônica dos enredos.

Honoré de Balzac e a transição para o Realismo


Honoré de Balzac é talvez o exemplo mais claro de que as preocupações do
Romantismo com as relações sociais, bem como a caracterização do homem
comum da experiência burguesa ganharam ênfase com o Realismo.

Balzac produziu seus primeiros romances à luz das vertentes românticas e


logo alcançou a objetividade e a análise proposta pelo romance realista, mas –
diferentemente de Émile Zola – ele não se converteu em um militante realista.
O fato é que a obra de Balzac esmiúça o comportamento das classes sociais no
momento em que a burguesia francesa se afirma, sobrepujando os hábitos aris-
tocráticos. Assim como Flaubert, Balzac estava interessado nos meandros das
personalidades femininas sem ater-se em demasia aos dogmas ou leis do deter-
minismo. Suas personagens não demonstram um comportamento tão marcado
pela influência genética, mas sim pelo meio social em que vivem.

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O século XIX e o ideário realista

A obra de ficção de Balzac foi reunida sob o título de A Comédia Humana, um


conjunto de 88 narrativas, incluindo romances, novelas e contos. A temática a
caracterizar essa coletânea de narrativas é justamente o retrato da burguesia,
sua ascensão, seu comportamento e suas contradições.

O Realismo em Portugal:
principais autores e influências
Em Portugal, a oposição entre Romantismo e Realismo se deu em modo de
debate crítico em dois momentos específicos.

O primeiro deles foi a chamada Questão Coimbrã, que se deu em 1865, tendo
como cenário a Universidade de Coimbra, colocando em lados contrários dois
grupos de poetas – um deles defendendo a estética romântica na poesia e o
outro defendendo a modernidade expressa pela chamada poesia realista. Esse
debate serviu para revelar uma certa insatisfação com os modos de expressão
romântica e abrir campo para as novidades vindas, sobretudo, da França.

O segundo momento que marcou a estética realista em Portugal foi a reali-


zação das Conferências do Cassino Lisbonense, em 1871, reunindo, ao longo de
um curto período, entre maio e junho daquele ano, vários nomes da Ideia Nova
(o Realismo) para o debate das premissas da estética realista. De certo modo,
essas conferências organizaram o pensamento realista para a prática literária dos
autores portugueses. Em maio de 1871, foram proferidas as palestras abaixo.

 “O Espírito das Conferências”, por Antero de Quental.

 “Causas das Decadências dos Povos Peninsulares”, por Antero de Quental.

 “A Literatura Portuguesa”, por Augusto Soromenho.

 “A Literatura Nova ou O Realismo como Nova Expressão da Arte”, por Eça


de Queirós.

 “A Questão do Ensino”, por Adolfo Coelho.

Como se vê, as Conferências do Cassino tematizaram a realidade portuguesa,


suas determinações históricas e sociais, bem como seu modo de expressão artís-
tica. O nome de Eça de Queirós destacou-se nesse momento e foi vinculado de
modo bastante enfático aos ideais realistas já professados na França.

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Realismo na Literatura Brasileira

Eça de Queirós e a fase realista


A vasta obra de José Maria de Eça de Queirós (1845-1900) não pode ser
simplificada sob o signo do movimento Realista. É possível dizer que em um
determinado período de sua produção houve, de fato, um forte vínculo com as
características e os postulados realistas, mas há uma boa parte de sua obra que
não atende de modo direto ao que pregava o Realismo. Embora tenha publi-
camente declarado a influência de Émile Zola em sua obra, Eça de Queirós não
praticava o Naturalismo radical que encontramos no mestre francês.

Os seus romances de forte cunho realista são O Crime do Padre Amaro (1875),
O Primo Basílio (1878) e Os Maias (1888).

Eça estava interessado em explorar e revelar os problemas da sociedade por-


tuguesa e apontar, de modo bastante direto em alguns casos, quais as soluções
possíveis para tais problemas. Em O Crime do Padre Amaro, o primeiro romance
mais marcadamente associado às premissas realistas, o autor tematizou a forte
influência do clero na sociedade e na mentalidade portuguesas do século XIX.

O enredo desse romance acompanha a vida de Amaro, um menino de origem


humilde que, protegido pela madrinha, ingressa na vida religiosa sem nenhuma
vocação. Decorrem daí todos os demais desvios que tomarão a vida do protago-
nista, de modo que ele é a peça-chave de uma grave denúncia contra os desman-
dos e a desonestidade de boa parte do clero português, que caía em praticamente
todos os pecados capitais. O crime de Amaro consiste em pecar contra a castidade
e promover, mesmo que indiretamente, a morte do filho gerado em pecado.

Ao revelar os meandros da vida dos padres em uma pequena província portu-


guesa, o autor desnudou uma ordem de coisas que precisava ser alterada. O
romance ganhou ares de chamada à ordem quando buscou indignar o leitor
contra a vida que os padres levavam no contexto religioso do século XIX. Entre-
tanto, é preciso deixar claro que o romance de Eça não fala contra a Igreja como
instituição e sim contra os maus padres, que, uma vez corrigidos ou afastados da
vida religiosa, poderiam dar lugar a bons padres, cumpridores de suas obriga-
ções, como é o caso de uma personagem exemplar no romance, o abade Ferrão,
contraponto da má conduta de Amaro.

Já o romance O Primo Basílio tematiza, a exemplo de Madame Bovary, o adul-


tério feminino. Diferentemente do que acontece no romance de Flaubert, Eça
de Queirós não deu profundidade à sua heroína Luísa, usando-a apenas para

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O século XIX e o ideário realista

revelar como a traição feminina coloca em cheque um dos pilares da sociedade


de seu tempo – o casamento.

O romance Os Maias, por sua vez, aproxima-se de um tratamento mais natu-


ralista, pois coloca em curso a saga de uma família cujos componentes têm, em
vários momentos, comportamentos pervertidos pelos instintos mais primários.

De modo geral, essas obras de Eça de Queirós revelam um engajamento no


movimento Realista na medida em que há a preocupação formal de retratar a
realidade com detalhamento de inventário e ao mesmo tempo investigar as deter-
minações sociais para certos comportamentos corrompidos. No entanto, é preciso
dizer que a obra de Eça de Queirós que recebeu mais crédito e louvor da críti-
ca pertence à fase posterior ao período realista, quando foram publicadas obras
como A Cidade e as Serras (1901) e A Ilustre Casa de Ramires (1900), entre outras.

A proposta estética do Realismo europeu


Em síntese, pode-se dizer que o Realismo europeu buscou negar de modo
veemente a subjetividade expressiva conquistada pelo Romantismo. No entan-
to, essa mesma negação só encontrou espaço em um ambiente em que a liber-
dade criativa já era uma conquista.

No momento realista, a arte literária absorveu as lições da ciência e negou


claramente a Metafísica, a Teologia e a Subjetividade. A dedicação total cen-
trou-se na busca de objetividade, no retrato tanto do meio social como do
sujeito humano. Nesse período, a literatura esteve subordinada a três princí-
pios básicos:

 a herança genética, que definia o caráter e o temperamento do ser humano;

 o ambiente, que lhe determinava a conduta e as ações; e, por último,

 as circunstâncias, que – tal como o meio – levavam o sujeito a tomar este


ou aquele caminho.

Não havia liberdade subjetiva ou o livre-arbítrio, era como se as personagens


do mundo realista estivessem desde sempre determinadas a agir do modo como
agiam.

O aspecto de engajamento que o Realismo assumiu em alguns autores euro-


peus, como Émile Zola e Eça de Queirós, demonstram que havia uma crença de

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Realismo na Literatura Brasileira

que a literatura deveria servir como instrumento de conscientização e transfor-


mação social, distanciando-se bastante da proposta da arte romântica desinte-
ressada e espontânea.

Texto complementar
O texto abaixo é um conto de um autor curitibano contemporâneo cujas
características se aproximam bastante das primeiras propostas do Realismo, ou
seja, o recorte da realidade com o máximo de objetividade. Observe como o
enfoque realista permanece como uma das estratégias narrativas mais correntes
em nosso tempo.

Uma vela para Dario


(TREVISAN, 1979, p. 20)

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que


dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de
uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva,
e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem.


Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo,
de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachim-


bo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem
e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta.
Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma sur-
giram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pu-
desse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crian-
ças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repe-
tia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo
e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou
cachimbo ao seu lado.

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O século XIX e o ideário realista

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo


o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou
o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância.
Dario conduzido de volta e recostado à parede – não tinha os sapatos nem o
alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além


da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado.
Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto,
sem que fizesse um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e,


agora, comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficou torto
como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados – com vários


objetos – de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do
nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se correria de mais de 200 curiosos que, a essa hora, ocupa-


vam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão.
Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado 17 vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos


vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando
vivo – só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o
caso era com o rabecão.

A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se


dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que esti-
vesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça.


Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde
a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se
espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com
almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado
do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto des-
botado pela chuva.

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Realismo na Literatura Brasileira

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à


espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a
aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas
da chuva, que voltava a cair.

Estudos literários
1. Assinale a alternativa que corresponde à característica romântica mais com-
batida pelo Realismo.

a) Objetividade.

b) Liberdade formal.

c) Subjetivismo.

d) Linguagem em prosa.

2. Indique a alternativa que explica o determinismo social.

a) A ação humana é determinada pela carga genética.

b) A ação humana é determinada pela influência do meio.

c) A ação humana é determinada pelo livre-arbítrio.

d) A ação humana é determinada pela circunstância emocional.

3. Que aspectos do romance romântico se mantêm ativos no romance realista?

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O século XIX e o ideário realista

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Realismo na Literatura Brasileira

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O ideário realista no Brasil

No Brasil, a segunda metade do século XIX anunciou novos tempos, tanto


no plano político como no plano artístico. Alfredo Bosi (1994, p. 164) des-
taca que o tema da abolição e, em segundo plano, o da república foram o
centro das opções ideológicas do homem culto brasileiro a partir de 1870.

Como nos países europeus, a década de 1870 marcou o aparecimento


de obras que revelam um período de transição entre o Romantismo e o
Realismo. É o caso da poesia social de Castro Alves e dos romances urba-
nos de José de Alencar.

De modo mais destacado, apareceu o romance Memórias de um


Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, publicado em folhe-
tim entre os anos de 1852 e 1853. Em alguns estudos, esse romance é clas-
sificado como obra romântica, mas uma leitura mais cuidadosa o aponta
como obra de forte influência realista, principalmente pelo retrato crítico
que faz das relações sociais e dos costumes urbanos do período.

A transição do Romantismo
para o Realismo no Brasil
O período que marca a transição do Romantismo para o Realismo revela,
sobretudo, uma mudança de expressão, tanto na poesia como na prosa. O
timbre elevado do Romantismo vai sendo, gradualmente, substituído por
um tom mais contido e objetivo. O Romantismo brasileiro propôs ideais
míticos que funcionaram como mediadores entre o autor e o mundo, e
que podem ser organizados de modo a visualizarmos os elementos da
experiência pessoal, política e nacional de modo absoluto. São os mitos

 da natureza-mãe;

 do amor fatal;

 da mulher idealizada, do herói nacional incorruptível; e

 da nação redentora.
Realismo na Literatura Brasileira

Esses mitos foram desconstruídos no Realismo, uma vez que os autores


realistas buscavam uma relação mais direta com a experiência do real. Enquan-
to o romântico não teme os exageros do sentimento e da emoção, o realista
quer justamente enfrentar-se com a razão, na sua face mais objetiva.

Os mestres da objetividade foram, principalmente, os autores franceses. Na


ficção, destacaram-se Gustave Flaubert, Émile Zola, Honoré de Balzac, Guy de
Maupassant. Na filosofia e na ciência, apareceram de modo marcante Auguste
Comte, Hipolite Taine e Charles Darwin. E os autores portugueses também tive-
ram uma influência decisiva nos caminhos do Realismo brasileiro: autores como
Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Antero de Quental quebraram os paradigmas
românticos e ofereceram aos brasileiros uma referência para o contraponto ao
Romantismo.

Segundo Alfredo Bosi (1994, p. 167-168), há dois níveis de desdobramento da


estética realista no Brasil:

 nível ideológico, isto é, na esfera da explicação do real, a certeza de uma


influência poderosa de um destino irreversível, ditado pelo determinismo
(determinações do comportamento por influência da raça, do meio e das
circunstâncias);

 nível estético, em que o próprio ato de escrever é o reconhecimento im-


plícito de uma faixa de liberdade, dando ao escritor a fé na forma, a arte
pela arte, único espaço em que as determinações de raça, meio e circuns-
tâncias estariam suspensas – os realistas buscavam, pela palavra, criar uma
relação de verdade com o objeto representado, dentro de um exercício de
neutralidade e objetividade.

Memórias de um Sargento de Milícias


Tópico de estudo desta aula, o romance de Manuel Antônio de Almeida é uma
referência importantíssima na literatura do século XIX e é, ao mesmo tempo, um
marco do Romantismo e do Realismo.

 Do Romantismo por representar a obra que melhor explora o aspecto


múltiplo do romance como modalidade narrativa. O retrato do Brasil e dos
costumes sociais do momento representado no romance revela todo o
alcance dessa modalidade narrativa inventada no Romantismo.

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O ideário realista no Brasil

 Trata-se também de um marco do Realismo, uma vez que representa o


primeiro romance que tensiona os valores românticos, como o da nação
redentora e o do herói incorruptível.

Justamente por essa dupla contribuição, tanto ao Romantismo como ao


Realismo, o romance Memórias de um Sargento de Milícias desafia a classificação
segundo uma filiação estética. Muitos críticos já se debruçaram sobre esse livro
em busca de definir uma filiação ou uma influência mais direta sofrida pelo autor
e resultando na novidade do livro no circuito das letras nacionais da época.

Em um ensaio muito elucidativo, publicado em 1970 e intitulado Dialética da


Malandragem, Antonio Candido recupera e analisa as classificações que esse ro-
mance recebeu da crítica especializada. Segundo Candido, a primeira designação
mais responsável para o livro foi feita por José Veríssimo, que em 1894 o defi-
niu como “romance de costumes” pelo fato de descrever lugares e cenas do Rio
de Janeiro do tempo do rei D. João VI. Por reconhecer no romance as marcas de
um Realismo antecipado, José Veríssimo falava bem do livro, pois essa perspec-
tiva ia bem com a do próprio crítico, bastante influenciado pela estética Realista.

Candido continua suas considerações destacando que em 1941 Mario de


Andrade apontou Memórias de um Sargento de Milícias não como um precursor
do Realismo e sim como um continuador da antiga tradição dos romances pi-
carescos, a qual remonta a narrativas medievais, de origem espanhola, e cujo
enredo gira ao redor da vida de um herói marginal – o pícaro – sempre às voltas
com ações e situações pouco convencionais do ponto de vista moral. Assim,
Mario de Andrade filia o romance de Manuel Antônio de Almeida a essa tradição
tendo em vista a caracterização de Leonardo, a personagem principal, uma vez
que este não é apresentado como um herói convencional. As ações e as aven-
turas vividas por Leonardo, desde sua origem, são bastante cômicas e fazem
pensar em uma figura sem uma moral ou uma referência cultural muito estável.

Ainda segundo Antonio Candido, em 1956 Darcy Damasceno rejeitou a defi-


nição de Mario de Andrade dizendo que não se pode basear a classificação de
um romance apenas em detalhes da caracterização da personagem central. Para
Darcy Damasceno, é melhor a definição desse romance como de costumes, como
já havia feito José Veríssimo.

A partir das considerações desses críticos, Antonio Candido propôs uma


abordagem própria, que é justamente o que veremos a seguir, com o interesse
de verificar as contribuições do Romantismo e do Realismo para o êxito desse
romance.

43
Realismo na Literatura Brasileira

Romantismo e Realismo
Se aceitarmos a designação romance de costumes, feita por José Veríssimo e
ratificada por Darcy Damasceno, estaremos reconhecendo um forte vínculo do
romance Memórias de um Sargento de Milícias com o Romantismo, pois é justa-
mente nos romances românticos brasileiros que encontraremos de modo minu-
cioso o inventário dos costumes brasileiros da primeira metade do século XIX.
Isso pode ser dito com bastante ênfase se nos referirmos aos romances urbanos
de José de Alencar, como Cinco Minutos, A Viuvinha, A Pata da Gazela ou mesmo
Senhora, ou ainda ao famoso romance A Moreninha, de Joaquim Manuel de
Macedo. Os romances urbanos do nosso Romantismo apresentam o modo de
viver e o cenário da cidade de modo exemplar, quase com intenção documentá-
ria, e nesse sentido Memórias de um Sargento de Milícias manifesta uma herança
cuja matriz é, sem dúvida, o Romantismo.

No artigo “Dialética da Malandragem”, Antonio Candido estabeleceu, de


modo inédito, um vínculo desse romance com a proposta realista. Para Candido,
a definição de romance de costumes é correta, porém insuficiente. O crítico
também não acata a classificação de romance picaresco, pois ele prefere a defini-
ção de romance malandro:
Digamos então que Leonardo não é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro
grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica
e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de
seu tempo, no Brasil. Malandro que seria elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade
em Macunaíma e que Manuel Antônio com certeza plasmou espontaneamente, ao aderir com
a inteligência e a afetividade ao tom popular das histórias que, segundo a tradição, ouviu
de um companheiro de jornal, antigo sargento comandado pelo major Vidigal de verdade.
O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astucioso,
comum a todos os folclores. Já notamos, com efeito, que Leonardo pratica a astúcia pela
astúcia (mesmo quando ela tem por finalidade safá-lo de uma enrascada), manifestando um
amor pelo jogo-em-si que o afasta do pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase
sempre ao proveito ou a um problema concreto, lesando frequentemente terceiros na sua
solução. (CANDIDO, 1970, p. 5-6)

A indicação dessa nova modalidade para o romance de Manuel Antônio de


Almeida revela um caminho de análise bastante proveitoso, pois a represen-
tação do malandro brasileiro seria fruto de um olhar perspicaz do autor sobre
a realidade da personalidade do homem nacional, não mais o herói incorrup-
tível do Romantismo, mas também não o pícaro sem caráter da tradição do
romance picaresco.

44
O ideário realista no Brasil

Na análise da composição do romance, embora destaque que a criação do


texto é de autoria exclusiva de Manuel Antônio de Almeida, Antonio Candido
leva em conta a declaração do autor de que o enredo se baseou no relato de um
velho sargento de polícia, nos moldes do que acontecia com muitos romances
românticos, em que os autores declaram ter estruturado a narrativa no relato de
uma outra pessoa. É o que acontece, por exemplo, no romance Amor de Perdição,
de Camilo Castelo Branco, em que o autor diz basear o enredo no relato das aven-
turas amorosas de um primo já falecido, e também no romance O Relato de Arthur
Gordon Pyn, de Edgar Allan Poe, em que o autor nos alerta para o fato de que
tudo o que escreve é a transcrição das palavras de Pyn.

Embora acate essa declaração, Antonio Candido faz questão de verificar que a
composição das personagens atende a uma sistematização que tem como princí-
pio a criação de personagens-tipo, criando referências mais ou menos gerais que
tornam a apresentação das personagens quase um documentário da realidade. E
aqui não estamos falando do documentário científico que alguns realistas defen-
diam, mas sim um documentário bem humorado e em alguns momentos satírico,
capaz de levar o leitor à reflexão sobre as contradições da realidade representada.
Antonio Candido preocupa-se em relacionar o viés documental do romance Memó-
rias de um Sargento de Milícias a influências locais, de várias origens culturais, desde
o jornalismo até as manifestações gráficas:
De fato, para compreender um livro como as Memórias convém lembrar a sua afinidade
com a produção cômica e satírica da Regência e primeiros anos do Segundo Reinado – no
jornalismo, na poesia, no desenho, no teatro. Escritas de 1852 a 1853, elas seguem uma
tendência manifestada desde o decênio de1830, quando começam a florescer jornalzinhos
cômicos e satíricos, como O Carapuceiro, do Padre Lopes Gama (1832-1834; 1837-1843; 1847)
e O Novo Carapuceiro, de Gama e Castro (1841-1842). Ambos se ocupavam de análise política
e moral por meio da sátira dos costumes e retratos de tipos característicos, dissolvendo
a individualidade na categoria, como tende a fazer Manuel Antônio. Esta linha que vem de
La Bruyère, mas também do nosso velho poema cômico, sobretudo do exemplo de Nicolau
Tolentino, manifestava-se ainda na verdadeira mania do retrato satírico, descrevendo os tipos
da vida quotidiana, que, sob o nome de fisiologia (por psicologia), pululou na imprensa francesa
entre 1830 e 1850 e dela passou à nossa. Embora Balzac a tenha cultivado com grande talento,
não é preciso recorrer à sua influência[...] para encontrar a fonte eventual de uma moda que
era pão quotidiano dos jornais. (CANDIDO, 1970, p. 8)

A sátira presente como marca das Memórias seria, na perspectiva do crítico, ori-
ginária da prática cultural do momento em que o livro foi produzido. Nesse sentido,
seria desnecessário buscar as origens da novidade deste romance fora do Brasil ou
em antigas tradições: bastaria olhar para a produção do momento para encontrar as
influências que Manuel Antônio de Almeida recebeu para a concepção de seu livro.

45
Realismo na Literatura Brasileira

Análise dos elementos da narrativa


O narrador
Narrador em terceira pessoa, com focalização externa. Essa escolha do autor
para contar a história de Leonardo Pataca, o pai, e Leonardo, o filho, dá condições
de termos contato com várias personagens sem a restrição do olhar de um narrador
em primeira pessoa, o que acontece tradicionalmente nos romances picarescos.

Esse é inclusive um dos argumentos utilizados por Antonio Candido para não
aceitar inteiramente a classificação de romance picaresco para Memórias de um
Sargento de Milícias. Nos romances picarescos, o narrador é sempre o protago-
nista, a personagem principal, mas isso não acontece em Memórias, cujo narra-
dor é uma voz externa que comenta e analisa a ação, caracterizando-se como
narrador intruso em alguns momentos.

Vamos ver um exemplo do posicionamento do narrador para melhor compre-


ensão da focalização adotada ao longo de todo o romance:
Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se nesse tempo O Canto dos Meirinhos; e bem lhe assentava o nome,
porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava
então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra
caricata dos meirinhos do tempo do rei; estes eram gente temível e temida, respeitável e
respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio
de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto
eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo
dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e
finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo. (ALMEIDA, 2007, p. 13)

O narrador apresenta um dos cenários de maior destaque no romance nesse


trecho inicial. Observemos que as referências são dadas como a um contempo-
râneo, “o tempo do rei” refere-se aos tempos do reinado de D. João VI; um
contemporâneo da primeira publicação do romance reconheceria a expressão jus-
tamente por não estar mais “nos tempos do rei” e sim no tempo da regência, já que o
romance foi publicado originalmente em folhetins (em jornais) entre 1852 e 1853.

Além disso, o narrador nos fala dos meirinhos como figuras comuns do momen-
to em que o livro circula. Hoje, a palavra meirinho está fora de uso. O meirinho é um
oficial de justiça, encarregado de levar as intimações e correspondências judiciais.

Como vimos, o narrador assume um tom coloquial e coloca-se muito próxi-


mo do leitor, seu interlocutor direto. Trata-se também de um narrador que co-

46
O ideário realista no Brasil

menta a ação narrada, em nenhum momento da narrativa ele será neutro. Vimos
no trecho citado que ele faz um pequeno comentário sobre a importância que
os meirinhos tinham na época do rei e que no momento em que a história está
sendo contada já não tem mais.

A localização temporal do narrador também é importante: vejam que o nar-


rador não se coloca como um contemporâneo dos tempos do rei – ele deixa
claro que está em outro tempo, posterior aos acontecimentos que narra.

Ação, enredo
A organização do enredo de uma narrativa pode ser feita por meio da sistema-
tização em

 apresentação;

 desenvolvimento;

 clímax; e

 desfecho.

Em Memórias de um Sargento de Milícias, percebemos que o enredo é linear,


ou seja, segue uma estrutura cronológica, começando pela origem do protago-
nista até o momento de seu casamento e o consequente desfecho.

Apresentação
O capítulo inicial corresponde à apresentação da origem do protagonista. Esse
capítulo se intitula justamente “Origem, nascimento e batizado”, e nele ficamos sa-
bendo que o pai do herói, conhecido como Leonardo Pataca, é um português que
na viagem de vinda ao Brasil conhece Maria das Hortaliças e, depois de um pisão no
pé e um beliscão, os dois juntam-se e concebem o protagonista, Leonardo filho.

Depois de surpreender a mulher com outro homem, Leonardo pai abandona


o filho e este acaba criado pelos padrinhos, o Barbeiro e a Parteira.

Desenvolvimento
Desde o nascimento, a personalidade de Leonardo filho vai se desenhando
de modo a revelar um caráter pouco firme, que vai se deixando levar sem muita
vontade, o que o caracteriza como um títere do destino, ou seja, um fantoche.

47
Realismo na Literatura Brasileira

Ainda menino, revela uma vocação para a malandragem.

Antonio Candido identifica na trajetória de Leonardo filho dois polos anta-


gônicos – a ordem e a desordem, e é nessa simetria que o crítico coloca as duas
personagens femininas com as quais Leonardo vai se relacionar até o desfecho
com o casamento e a celebração do retorno à ordem:
Leonardo gosta de Luisinha desde menino, desde o belo episódio do “Fogo no Campo”, quando
vê o seu rostinho acanhado de roceira transfigurado pela emoção dos rojões coloridos. Mas
como as circunstâncias (ou, nos termos do livro, a “sina”) a afastam dele para o casamento
convencional com José Manuel, ele, sem capacidade de sofrer (pois ao contrário do que diz o
narrador não tem a fibra amorosa do pai), passa facilmente a outros amores e à encantadora
Vidinha. Esta lembra, pela espontaneidade dos costumes, a moreninha “amigada” com o
tropeiro, que amenizou a estadia do mercenário alemão Schlichthorst no Rio daquele tempo,
cantando modinhas sentada na esteira, junto com a mãe complacente.
Luisinha e Vidinha constituem um par admiravelmente simétrico. A primeira, no plano da
ordem, é a mocinha burguesa com quem não há relação viável fora do casamento, pois ela traz
consigo herança, parentela, posição e deveres. Vidinha, no plano da desordem, é a mulher que
se pode apenas amar, sem casamento nem deveres, porque nada conduz além da sua graça
e da sua curiosa família sem obrigação nem sanção, onde todos se arrumam mais ou menos
conforme os pendores do instinto e do prazer. É durante a fase dos amores com Vidinha, ou
logo após, que Leonardo se mete nas encrencas mais sérias e pitorescas, como que libertado
dos projetos respeitáveis que o padrinho e a madrinha tinham traçado para a sua vida.
Ora, quando o “destino” o reaproxima de Luisinha, providencialmente viúva, e ele retoma o
namoro que levará direto ao casamento, notamos que a tonalidade do relato não fica mais
aprovativa e, pelo contrário, que as sequências de Vidinha têm um encanto mais cálido. Como
Leonardo, o narrador parece aproximar-se do casamento com a devida circunspecção, mas
sem entusiasmo. (CANDIDO, 1970, p. 16-17)

Ainda na adolescência, no tempo da irresponsabilidade, Leonardo vive mari-


talmente com Vidinha. Nesse período, ele é preso e graças à sua malandragem
acaba ocupando um cargo de soldado de milícias.

Clímax
Vemos aqui uma circularidade, da desordem à prisão e depois para o cargo
de soldado. Contrariando a expectativa, Leonardo reverte (quase sem querer) a
adversidade e acaba lucrando com a própria prisão. Já soldado, ele só confirma
seu perfil de malandro, passando boa parte do tempo preso por vadiagem.

Na sequência do enredo, Leonardo abandona Vidinha e, com a ajuda de sua


madrinha, busca o perdão por seu péssimo desempenho de soldado.

Desfecho
Contrariando a ideia de punição e mérito para alcançar um final feliz, mesmo
sem ter feito por merecer, Leonardo acaba alcançando o perdão na Milícia e
ainda é promovido a sargento.

48
O ideário realista no Brasil

Encaminhando-se para um final feliz e para o restabelecimento da ordem,


Luisa, o primeiro amor de Leonardo enviúva, podendo então se casar com ele e
fechar o ciclo de amadurecimento do herói.

Vemos que o desfecho revela que o malandro Leonardo alcança a realização


sempre pela ação de um alheio ou pela intervenção de um destino indiferente
ao seu caráter.

Dialética da malandragem
Antonio Candido destaca a dialética da malandragem no romance, com o
protagonista sempre oscilando entre a ordem e a desordem, sem nunca aderir
à caracterização do herói convencional que cumpre com todas as exigências
morais da tradição, mas também sem cair na vilania, o que iria lhe tirar toda a
simpatia do leitor.

O encaminhamento do enredo de Memórias de um Sargento de Milícias coloca


em questão o modelo moral do romance romântico em que o protagonista
passa por uma avaliação de valor para só então alcançar a recompensa, seja
do amor da heroína ou algum benefício ético que quase nunca será dado em
termos materiais.

Manuel Antônio de Almeida tensiona esse modelo da tradição romântica e


de modo bastante bem-humorado revela a contradição de interesses e a mo-
tivação pouco honrosa para a maioria das ações de suas personagens. Nessa
medida, percebemos que há um retrato muito mais complexo tanto da realida-
de social como da realidade psicológica, pois não cabe um desenho meramen-
te maniqueísta para definir o caráter das personagens do livro. Leonardo tem
bons sentimentos, mas não é um herói convencional: é preguiçoso e indolente;
em alguns momentos manifesta valores éticos, mas em outros peca por pura
indiferença ou inércia.

Sem aderir ao modelo escolar do Realismo, o autor de Memórias nos deu um


livro de Realismo intenso, em que a saga de Leonardo representa a vida sem pro-
jetos definidos, como será mais tarde a vida do herói machadiano, Brás Cubas,
mas a quem sempre ajuda a interferência de pessoas de influência e o conheci-
mento do jogo de interesses da vida em sociedade. Nesse sentido o livro é de
um realismo marcante.

49
Realismo na Literatura Brasileira

Texto complementar
Indicamos a seguir a leitura do primeiro capítulo do romance Memórias de
um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Com certeza a leitura do
texto integral do romance vai ser muito importante para a sua compreensão da
importância desse livro no contexto da literatura brasileira.

Origem, nascimento e batizado


(ALMEIDA, 2007, p. 13-16)

Era no tempo do rei.

Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda,


cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo O Canto dos Meirinhos;
e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de
todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consi-
deração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos
meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e
respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que
envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós
um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os
extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual
se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e
finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.

Daí sua influência moral. Mas tinham ainda outra influência, que é justa-
mente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições
físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm
de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com
qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição.

Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram
originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade
forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda
casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo
aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja

50
O ideário realista no Brasil

significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado.


Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e
abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair
de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras,
que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom
confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias
senão deixar escapar dos lábios o terrível — Dou-me por citado. — Ninguém
sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram
uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo;
queriam dizer que se começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem
distante era a caixa da Relação, e durante a qual se tinha de pagar importe de
passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiri-
dor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida,
e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o
conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.

Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa
abençoada época veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro,
e que se denominavam — cadeiras de campanha — um grupo mais ou
menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo
sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e
nas astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equa-
ção meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante, era o
Leonardo Pataca.

Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos


brancos e carão avermelhado, que era o decano da corporação, o mais antigo
dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado moleirão
e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o pro-
curavam; e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na
sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa
bengala, que depois dos 50 era a sua infalível companhia. Do hábito que
tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação a
módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.

Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em


Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui

51
Realismo na Literatura Brasileira

chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que


o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos.
Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o quê, uma certa Maria da
Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona.

O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua moci-


dade mal-apessoado, e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando
a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava dis-
traído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente
pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se
como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um
tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração
em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro
cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com
a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte
estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo
de muitos anos.

Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram


os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos
da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidá-
vel menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo,
esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas
seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que
temos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o
herói desta história.

Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o


padrinho houve suas dúvidas: o Leonardo queria que fosse o senhor juiz;
porém teve de ceder a instâncias da Maria e da comadre, que queriam que
fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. Já se sabe que houve
nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram todos d’além-
mar, cantavam ao desafio, segundo seus costumes; os convidados da
comadre, que eram todos da terra, dançavam o fado. O compadre trouxe
a rabeca, que é, como se sabe, o instrumento favorito da gente do ofício. A
princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos, e propôs
que se dançasse o minuete da corte. Foi aceita a ideia, ainda que houvesse

52
O ideário realista no Brasil

dificuldade em se encontrarem pares. Afinal levantaram-se uma gorda e


baixa matrona, mulher de um convidado; uma companheira desta, cuja
figura era a mais completa antítese da sua; um colega do Leonardo, miu-
dinho, pequenino, e com fumaças de gaiato, e o sacristão da Sé, sujeito
alto, magro e com pretensões de elegante. O compadre foi quem tocou o
minuete na rabeca; e o afilhadinho, deitado no colo da Maria, acompanha-
va cada arcada com um guincho e um esperneio. Isto fez com que o com-
padre perdesse muitas vezes o compasso, e fosse obrigado a recomeçar
outras tantas.

Depois do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira afer-


ventou, como se dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e ma-
chete: o Leonardo, instado pelas senhoras, decidiu-se a romper a parte lírica
do divertimento. Sentou-se num tamborete, em um lugar isolado da sala,
e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo, em trajes do ofício,
de casaca, calção e espadim, acompanhando com um monótono zunzum
nas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha pátria. Foi nas
saudades da terra natal que ele achou inspiração para o seu canto, e isto era
natural a um bom português, que o era ele. A modinha era assim:
Quando estava em minha terra,
Acompanhado ou sozinho,
Cantava de noite e de dia
Ao pé dum copo de vinho!
Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo; somente quem
não pareceu dar-lhe todo o apreço foi o pequeno, que obsequiou o pai como
obsequiara ao padrinho, marcando-lhe o compasso a guinchos e esperneios.
À Maria avermelharam-se-lhe os olhos, e suspirou.

O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se


a brincadeira, foi o adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho,
que depressa passou à gritaria, e ainda mais depressa à algazarra, e não foi
ainda mais adiante porque de vez em quando viam-se passar através das ró-
tulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal
andava perto.

A festa acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção
ao afilhado e pondo-lhe no cinteiro um raminho de arruda.

53
Realismo na Literatura Brasileira

Estudos literários
1. Assinale a alternativa que corresponde à modalidade de publicação da pri-
meira versão do romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel
Antônio de Almeida.

a) Revista.

b) Livro.

c) Folhetim.

d) Edição do autor.

2. As influências apontadas pela crítica na concepção de Memórias de um


Sargento de Milícias, viriam principalmente

a) do Romantismo e do Parnasianismo.

b) do Romantismo e do Arcadismo.

c) do Realismo e do Modernismo.

d) do Romantismo e do Realismo.

3. Explique com suas próprias palavras o que significa romance de costumes.

54
O ideário realista no Brasil

55
Realismo na Literatura Brasileira

56
O Realismo e o Naturalismo no Brasil

Os termos Realismo e Naturalismo aparecem muitas vezes associados,


como sinônimos ou como ideias complementares. Em alguns casos, o
termo Naturalismo aparece como adjetivo para Realismo – e nesses casos
a intenção é sempre dar a entender que a obra a que se atribui a designa-
ção é mais marcada pelo interesse cientificista e também mais explícita no
tratamento de temas mais ousados, como a sexualidade ou a manifesta-
ção dos instintos primitivos.

A literatura da segunda metade do século XIX é marcada pelos pre-


ceitos realistas na medida em que propõe uma nova perspectiva para a
abordagem da realidade, sem as marcas da subjetividade romântica. O
Naturalismo pode ser compreendido como uma radicalização dos pre-
ceitos realistas, principalmente no que tange à concepção determinista
do comportamento humano. Se para um escritor realista o enfoque da
realidade deve ser objetivo e o mais fiel possível à observação e à expe-
rimentação, no caso do Naturalismo isso se mantém e associa-se à noção
de que o ser humano é determinado fortemente pelas influências heredi-
tárias (etnia, então chamada raça) e pelas condições do meio em que vive
(determinismo social).

O Realismo e o Naturalismo:
relações possíveis
Nos estudos literários, é consenso que o Naturalismo promove certa
deformação da identidade na medida em que força o traço determinista
na caracterização das personagens e de seu comportamento. Vale dizer
que, em casos assim, a abordagem da realidade acaba prejudicada por
uma exagerada ênfase em tudo aquilo que seria anormal e desviante no
comportamento humano.

Uma característica bastante presente na escrita realista-naturalista é a


apresentação de personagens-tipo, ou seja, a figuração de pessoas típicas
Realismo na Literatura Brasileira

de determinado lugar, profissão ou classe social. Personagens assim carecem de


profundidade psicológica, pois o interesse do texto é mais fazer com que o leitor
reconheça na realidade da experiência os tipos correspondentes às personagens
representadas no texto.

É o caso, por exemplo, do Boticário (farmacêutico) mal-humorado e crítico do


romance O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. Embora o autor não aprofun-
de a caracterização da personagem, o leitor é capaz de compor a imagem a partir
do próprio conhecimento da realidade, em que há tipos como o do farmacêutico.
O mesmo se dá com os protagonistas do romance – Amaro e Amélia: um jovem
padre sem vocação religiosa, mas interessado nas vantagens da vida eclesiástica,
e uma jovem solteira, de personalidade pouco firme e frouxa formação moral. Já
no primeiro encontro dos dois protagonistas, o leitor já sabe onde a história vai
parar, pois conhece, pela experiência, como se comportam “tipos” assim.

Podemos dizer que, nos romances com alguma marca do Naturalismo, o com-
portamento das personagens já está predeterminado, seja pela carga hereditária
– ou seja, pela etnia a que pertence a personagem – ou pelas condições em que a
pessoa foi criada e vive. Como se vê, não há imprevistos: tudo é previsível porque
há uma linearidade simplificada na relação de causa e efeito nas ações das perso-
nagens. De modo particular, a determinação hereditária nos parece, atualmente,
muito problemática, pois em alguns casos comportamentos viciados ou crimi-
nosos são justificados pela influência desta ou daquela raça ou etnia.

Na abordagem do romance O Mulato, de Aluísio Azevedo, Alfredo Bosi aponta


o Naturalismo como elemento que acaba por prejudicar um dos preceitos realis-
tas, ou seja, revelar as marcas de um temperamento, como queria Émile Zola:
A leitura de O Mulato, que passa pelo primeiro romance naturalista brasileiro, dá uma boa
visão do meio maranhense do tempo, mas não cumpre a outra exigência de Zola, a de pintar
como se comporta uma paixão. O protagonista, o mulato Raimundo, ignora a própria cor e a
condição de filho de escrava; não consegue entender as reservas que lhe faz a alta sociedade de
São Luís, a ele que voltara doutor da Europa. Aluísio cumula-o de encanto e de poder sedutor
junto às mulheres e o faz amado e amante da prima, Ana Rosa, cuja família dá exemplo do mais
virulento preconceito. (BOSI, 1994, p. 189)

Embora misturado a certa concepção romântica do amor impossível, o ro-


mance O Mulato força as tintas na apresentação do protagonista Raimundo
como um homem sensual, herança da sua etnia. Da mesma forma, a trajetória
da personagem revela a impossibilidade de se superarem as determinações do
meio de origem: uma vez filho de escrava, mesmo que estude na Europa, Rai-

58
O Realismo e o Naturalismo no Brasil

mundo não conseguirá jamais superar essa condição inicial, que é ao mesmo
tempo hereditária e social.

Bosi ainda destaca, nesse romance, a capacidade do autor em figurar perso-


nagens-tipo, em um verdadeiro elenco típico da cidade de São Luís:
Não falha, porém, na sátira dos tipos da capital maranhense: o comerciante rico e grosseiro, a
velha beata e raivosa, o cônego relaxado e conivente. Por outro lado, embora se possa entrever
a sombra de Eça [de Queirós] no meneio da frase descritiva que resvala quase sempre para o
grotesco, resta o mordente pessoal de Aluísio, então em luta aberta contra o conservantismo
e as manhas clericais que entorpeciam sua província. (BOSI, 1994. p. 190)

No comentário de Alfredo Bosi confirmamos a tradição do Naturalismo em


instituir tipos e também destacamos um outro aspecto muito presente no Rea-
lismo e, em alguma medida, no Naturalismo: os realistas acreditaram que a lite-
ratura poderia superar a noção de entretenimento e arte pela arte que marcou o
Romantismo e alguns momentos do próprio Realismo. Assim, para as gerações
mais adiantadas do Realismo a literatura precisava servir como instrumento de
transformação social. A verificação, no texto literário, de uma realidade proble-
mática deveria servir como processo de conscientização do leitor e levá-lo a agir
no sentido de buscar soluções para essa realidade problemática. Justamente por
isso o tom forte, o grotesco e a falta de pudor, característicos da literatura desse
momento, deveriam ser cultivados para provocar uma reação de leitura e, por
consequência, uma ação do leitor na realidade representada no livro.

No limite, os autores realistas expressavam em seus livros seus pontos de


vista pessoais quanto à concepção do ser humano e a realidade social e política
em que estavam inseridos. A literatura deveria expressar a experiência, a razão e
a “tese” do autor em relação aos problemas enfrentados na realidade. É compre-
ensível, portanto, que os autores do período rejeitassem tão enfaticamente as
manifestações da subjetividade e da imaginação.

A obra de Aluísio Azevedo


Aluísio Azevedo (1857-1913) foi um dos escritores que mais marcou o Rea-
lismo brasileiro, principalmente na sua fase que costumamos associar ao Natu-
ralismo. Além disso, ele teria sido o primeiro autor brasileiro que viveu, durante
algum tempo, de seus rendimentos como escritor. Valentim Magalhães anuncia,
sobre Aluísio Azevedo, que ele é “no Brasil talvez o único escritor que ganha o
pão exclusivamente à custa da sua pena, mas note-se que apenas ganha o pão:

59
Realismo na Literatura Brasileira

as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga” (MAGALHÃES, 1896, p. 52). Daí
a vasta produção do autor, da qual vale destacar os títulos abaixo.

 Uma Lágrima de Mulher (1880).

 O Mulato (1881).

 Casa de Pensão (1884).

 O Cortiço (1890).

 Mistérios da Tijuca (1882).

 A Mortalha de Alzira (1894).

Considerado um grande expoente da ficção urbana das últimas décadas do


século XIX, Aluísio Azevedo fez fama com romances fortes, mesmo ainda em sua
fase de influência romântica, em que sua temática abordava as paixões do espíri-
to de modo a revelar também os desejos do corpo: essa ambiguidade envolven-
do corpo e espírito já aparecia na obra de Aluísio Azevedo na sua fase romântica.
E é de crer que seu público leitor era bastante amplo e constantemente instiga-
do pela relação direta entre enredo e representação de tipos reconhecíveis na
rua cotidianamente.

A crítica especializada reconhece em Aluísio Azevedo uma grande capacidade


descritiva, mas cobra-lhe, quase sempre, a concepção rasa que seus romances
dão às personagens. Bosi coloca esse valor e essa falha nos seguintes termos:
O mérito do narrador que saiu de O Mulato estaria em saber aplicar a outros ambientes o
dom da observação de que fizera prova (no romance O Mulato). Aí estão o valor e o limite de
Aluísio: o poder de fixar conjuntos humanos como a casa de pensão e o cortiço dos romances
homônimos constitui o seu legado para a ficção brasileira de costumes; é pena que o peso
das teorias darwinistas o tenha impedido de manejar com a mesma destreza personagens e
enredos, deixando uns e outros na dependência de esquemas canhestros. (BOSI, 1994, p. 190)

Então o mérito de Aluísio Azevedo está, segundo a crítica, centrado na sua


capacidade de revelar espaços públicos e coletivos, o que significa dizer que
sua maestria está em mostrar as personagens em situações de convivência co-
letiva, como em Casa de Pensão ou O Cortiço. Porém, quando se trata de revelar
o indivíduo destacado da coletividade, faltam às personagens de Aluísio aquela
profundidade psicológica que só encontraremos em Machado de Assis.

O romance-ícone de Aluísio Azevedo, aquele em que ele revela toda a sua força
na figuração de espaços coletivos é, sem dúvida, O Cortiço, que veremos a seguir.

60
O Realismo e o Naturalismo no Brasil

O Cortiço
Romance publicado em 1890, O Cortiço apresenta forte filiação naturalista,
pois aborda a experiência humana nos moldes do determinismo hereditário e
social que definiu a radicalização que o enfoque naturalista deu ao Realismo dos
primeiros tempos.

Lucia Miguel-Pereira se refere ao autor de O Cortiço como um romancista de


massa (1950, p. 157). Isso pode ser verificado justamente no tratamento coletivo
dado ao enredo do livro; todos os acontecimentos relevantes de O Cortiço são
narrados de modo a mostrar a ação de uma coletividade.

A própria conformação do espaço do cortiço1 é mostrada como resultado da


ação de uma coletividade quase inconsciente. Com exceção de João Romão, o
proprietário da pedreira e das moradias que darão origem ao cortiço, todas as
demais personagens parecem pulular em uma mistura de corpos e braços na
ânsia primitiva pela sobrevivência. Dessa ânsia nasce a estrutura do cortiço e sua
realidade espacial.

É o que observamos já nas primeiras páginas do livro, quando somos apre-


sentados à personagem principal do romance, ou seja, o próprio cortiço, que
nos é dado como coisa viva e fervilhante:
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a
minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar
espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no esterco.
[...]
As corridas até à venda reproduziam-se, transformando-se num verminar constante de
formigueiro assanhado. (AZEVEDO, 2007, p. 27 e 38)

A terra encharca-se da água das lavadeiras que usam a única bica disponibi-
lizada pelo dono do cortiço para esse fim. A venda é também, como a pedreira
onde todos trabalham, propriedade de João Romão, que é o dono de todos os
bens de que necessitam as pessoas que vivem no cortiço. João Romão explora
a pedreira ao fundo de sua venda e oferece trabalho aos desassistidos que vão
pedir-lhe emprego. Dá-lhes ainda moradia, à custa de aluguel, nos casebres que
vai construindo no cortiço e ainda lhes vende caro a comida na única venda
das redondezas, onde todos se endividam. João Romão é o deus sujo e corrup-
to desse mundo em que todos vivem como seres de inferioridade confirmada.
Observemos os termos usados pelo narrador para se referir aos moradores do

1
Cortiço é uma casa que serve de habitação coletiva para pessoas pobres, uma casa de cômodos, ou então uma aglomeração de casas muito
pobres.

61
Realismo na Literatura Brasileira

cortiço: minhocar; larvas; formigueiro. Todos se referem a animais invertebrados


se movendo instintivamente para garantir a sobrevivência.

Bosi nos apresenta uma breve análise do tratamento animalizado das perso-
nagens no romance:
A redução das criaturas ao nível animal cai dentro dos códigos anti-românticos de
despersonalização; mas o que uma análise mais percuciente atribuiria ao sistema desumano do
trabalho, que deforma os que vendem e ulcera os que compram, à consciência do naturalista
aparece como um fado de origem fisiológica, portanto inapelável. Como dá caráter absoluto
ao que é efeito da iniquidade social, o naturalista acaba fatalmente estendendo a amargura da
sua reflexão à própria fonte de todas as suas leis: a natureza humana afigura-se-lhe uma selva
selvaggia onde os fortes comem os fracos. (BOSI, 1994, p. 191)

A selvageria destacada pela narrativa de Aluísio Azevedo se estende a todos os


elementos do texto, desde a experiência em grupo até as peripécias pessoais. A
lógica da força vale tanto para a exploração empreendida por João Romão como
para a ascendência da força sensual de Rita Baiana sobre Jerônimo e Piedade.

Análise dos elementos da narrativa


No romance O Cortiço, o elemento de maior relevância é, sem dúvida, o
espaço. A ele se vinculam as personagens e o narrador. É como se o espaço de-
terminasse a caracterização de todos os demais elementos do texto. Comece-
mos, portanto, pelo espaço.

O espaço
O Cortiço começa quando João Romão, usando as economias de sua amante
e escrava Bertoleza, compra alguns palmos de terreno do lado esquerdo da
sua venda e lá constrói duas casinhas de cômodo, depois mais três, e assim por
diante, até completar 95 casinhas, todas construídas com material roubado da
vizinhança.

João Romão explora a extração de pedras para construção na pedreira que


fica ao fundo da venda. Os trabalhadores dessa pedreira e as lavadeiras lhe
pagam o aluguel, tanto das casinhas como das tinas para a lavagem de roupas.

A ascensão econômica do cortiço coincide com a entrada no ambiente de


pessoas de várias origens – desde trabalhadores braçais, como o português

62
O Realismo e o Naturalismo no Brasil

Jerônimo e sua mulher Piedade, até estudantes pobres, contínuos, caixeiros, ar-
tistas, vendedores de bilhetes de loteria, mascates2 e muitos outros.

O ambiente do cortiço determina a conduta das personagens, sempre incli-


nando-as à corrupção, seja no aspecto material, seja no sensual. Algumas persona-
gens assumem o papel de agente da corrupção, como é o caso de Rita Baiana, que
corrompe o trabalhador Jerônimo, fazendo-o trair a esposa e assassinar o primeiro
amante de Rita para ocupar seu lugar. Outras personagens sofrem a corrupção
para só então tornarem-se também agentes de corrupção, como é o caso de Pom-
binha, corrompida sexualmente por Leóni e depois transformada em prostituta.

O ambiente do cortiço não mantém nada puro ou intocado: todos se cor-


rompem, todos se deixam dominar pelos instintos mais primários, sem qualquer
chance de salvação. No entanto, a corrupção não se restringe ao espaço do cor-
tiço de João Romão: também no sobrado de Miranda a corrupção impera, tanto
na relação do casal como nas relações com a filha e o protegido da casa, o ado-
lescente Felipe.

A junção entre o cortiço e o sobrado se dá pelo interesse de João Romão em


casar-se com a filha de Miranda e assim juntar nome à sua fortuna conquista-
da com a exploração de Bertoleza. Para casar-se, João Romão quer livrar-se de
Bertoleza entregando-a ao seu antigo dono, mas ela se suicida antes que isso
aconteça.

Vemos então que, graças às economias de Bertoleza e à exploração de todos


que o cercam, João Romão se estabelece e funda a Estalagem de São Romão,
tomando posse de tudo quanto pode lhe render mais e mais dinheiro, inclusive
da filha de Miranda, Zulmira, com quem acaba casando-se.

Nas palavras de Lygia Vassalo, no estudo intitulado “O Cortiço e a Cidade do


Rio de Janeiro”, o romance O Cortiço representa um momento social de muita
efervescência econômica e urbana no Rio de Janeiro:
Em suma, o uso do espaço urbano pelos personagens de O Cortiço permite configurar a obra de
Aluísio Azevedo como um romance de localização especificamente carioca. Nele, são flagradas
a cidade e a sociedade em estado de mutação, quando se adapta para o ambiente urbano
a dicotomia de casa-grande e senzala, agora traduzida pelos contrastes simbolizados pela
oposição entre cortiço e sobrado. Assim, a preocupação com a veracidade, própria do realismo-
-naturalismo, fornece um painel da cidade, em momento de profunda transformação social,
cultural, humana. Graças à minuciosa pesquisa que empreendeu, Aluísio Azevedo transformou
seu romance em um documentário não só sobre a acumulação de capital como também sobre
a cidade do Rio de Janeiro, através da vida, trabalho, moradia e lazer de seus habitantes, sejam
eles pertencentes às camadas aristocráticas ou às populares. (VASSALO, 2008)

2
Mascate: vendedor ambulante que oferece suas mercadorias de porta em porta.

63
Realismo na Literatura Brasileira

Embora possam ser tecidas críticas ao modo de representação dos caracteres


humanos no romance O Cortiço, a representação do espaço e da movimentação
urbana é digna de tornar-se referência para o estudo do tempo evocado nas
páginas do livro.

As personagens
Vejamos a seguir como se dá a apresentação das personagens de maior des-
taque ao longo do romance:

João Romão
A breve apresentação de João Romão, no início do romance, já traz a carac-
terística que marca o seu comportamento durante toda a ação do livro: o desejo
de acumular, cada vez mais e mais. Nele, a economia não é cuidado para garantir
o futuro, mas uma ânsia doentia pela posse de tudo que o cerca:
[...] foi, dos 13 aos 25 anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes
de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro de Botafogo; e tanto economizou do
pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra,3 lhe deixou,
em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda
um conto e quinhentos em dinheiro. (AZEVEDO, 2007, p. 17)

Bertoleza
Também de Bertoleza temos o principal traço em poucas linhas: o trabalho.
Mesmo acreditando-se livre, ao lado de João Romão trabalha a negra como escra-
va dia e noite, juntando dinheiro que vai direto para o bolso do patrão e amante:
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e
de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina
de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os
trabalhadores de uma pedreira que havia além de um grande capinzal aos fundos da venda.
(AZEVEDO, 2007, p. 17)

Miranda e Estela
O casamento de Miranda e Estela, pais de Zulmira e vizinhos do cortiço, é
apenas um arranjo comercial e toda a proximidade entre eles só se dá pela via
do instinto carnal que cada vez mais os rebaixa:

3
Terra, neste contexto, é a terra natal, ou “a terrinha”, como os portugueses costumam chamar afetivamente o seu país.

64
O Realismo e o Naturalismo no Brasil

Isto foi o que disse Miranda aos colegas, porém, a verdadeira causa da mudança (para o
sobrado vizinho do cortiço) estava na necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar D.
Estela do alcance de seus caixeiros. D. Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se
casada havia 13 anos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda
antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o marido pilhou-a em flagrante delito de
adultério; ficou furioso e o seu primeiro impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o
cúmplice, mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns 80 contos em
prédios e ações da dívida pública, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia
o regime dotal. (AZEVEDO, 2007, p. 19-20)

Rita Baiana
Rita Baiana é descrita como a personificação da sensualidade e da sedução –
toda ela atrai e conquista e justamente esse poder vai corromper os homens ao
seu redor e levar as mulheres ao desespero:
Rita havia parado no meio do pátio. Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam
novidades dela. Não vinha em trajo de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe
deixava ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeite de marroquim de diversas
cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de
manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda ela respirava o asseio
das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o
atrevido e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um
fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador.
(AZEVEDO, 2007, p. 61)

Jerônimo
Na condição de personagem que será corrompido pela sensualidade de Rita
Baiana, Jerônimo se apresenta inicialmente como homem de família, trabalha-
dor e cumpridor de suas obrigações. Entretanto, a sua entrada no cortiço quebra
essa lógica e o faz, como os outros, um ser à mercê de seus próprios instintos:
[...] viera da terra, com a mulher e uma filhinha ainda pequena tentar a vida no Brasil, na qualidade
de colono de um fazendeiro, em cuja fazenda mourejou durante dois anos, sem nunca levantar
a cabeça, e donde afinal se retirou de mãos vazias e com grande birra pela lavoura brasileira. [...]
Jerônimo, porém, era perseverante, observador e dotado de certa habilidade. Em poucos meses
se apoderava do seu novo ofício e, de quebrador de pedra, passou logo a fazer paralelepípedos;
e depois foi-se ajeitando com o prumo e a esquadria e meteu-se a fazer lajedos e, finalmente,
à força de dedicação pelo serviço, tornou-se tão bom como os melhores trabalhadores de
pedreira e a ter salário igual ao deles. (AZEVEDO, 2007, p. 56)

Espaço e personagens
A galeria de personagens do romance O Cortiço é ampla e variada, mas basta
verificar como as de maior destaque se relacionam com o espaço para se per-
ceber que o cortiço é uma força que age sobre as pessoas, confirmando a tese

65
Realismo na Literatura Brasileira

determinista segundo a qual o meio determina a ação do sujeito. Some-se a essa


ideia certos traços de determinismo hereditário e teremos o destino das perso-
nagens já traçado e definido desde o princípio.

Assim, o que percebemos nesse romance é uma pronunciada ênfase na pers-


pectiva determinista, o que torna o livro marcado pela época em que foi publica-
do. É impossível lê-lo hoje e não discordar da visão de ser humano apresentada
pelo autor, que faz com que os limites da raça e do meio sejam absolutos para a
ação das personagens.

Mas, de qualquer forma, é com esse romance que o Brasil realmente passa
a dialogar com as teses naturalistas vigentes na Europa. Sua publicação é um
marco da literatura brasileira na medida em que coloca em discussão o próprio
modelo de romance naturalista em nossas letras.

Texto complementar
A seguir, você vai ler um artigo sobre um outro importante romance natura-
lista do século XIX, Bom-crioulo, de Adolfo Caminha. Esse romance é, em várias
ocasiões, comparado com O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e as informações e
reflexões disponibilizadas aqui com certeza aprofundarão sua compreensão
do momento literário em que essas obras foram publicadas.

Crioulo, marinheiro e gay


O romance naturalista Bom-crioulo, de Adolfo Caminha, é reeditado no Brasil
(DÓRIA, 1997)

Autores “malditos” não são privilégio deste século. Há [...] cem anos (1897)
morria Adolfo Caminha, nos seus 30 anos de idade, talvez o nosso maior
“maldito”, que ousou tratar de tema proibido – o homossexualismo na Mari-
nha – dentro de uma escola literária considerada menor. Daí a conspiração
de silêncio que o cerca e à sua obra. O autor de A Normalista (1893), No País
dos Ianques (1894), Bom-crioulo (1895, e agora reeditado), Tentação (1896)
pode ser colocado, por importância, ao lado de Aluísio Azevedo, nosso band
leader do movimento naturalista.

66
O Realismo e o Naturalismo no Brasil

Raul Pompéia e Caminha são exemplos únicos, entre nós, de autores que
souberam fazer a crítica do romantismo e aproveitar sua lição; Lúcia Miguel-
Pereira enxerga em Bom-crioulo um livro que, “ousado na concepção e na
execução, forte e dramático, humano e verdadeiro, é, com O Cortiço, o ponto
alto do naturalismo”, fato que torna seu autor “uma das primeiras figuras de
seu tempo”. Sem dúvida o esquecimento editorial em que caiu Adolfo Cami-
nha não é inocente.

Bom-crioulo prefigura, em vários sentidos, problemas do mundo moder-


no – como o universo gay – que os cânones literários recusam, já que se
firmaram numa sociedade regida pelo favor, de forte componente cultural
escravista, que não pode admitir que a sexualidade escape a seu controle.

Bom-crioulo ocupa-se de um caso de homossexualismo na Marinha,


numa novela de paixão e morte, e a grandeza do livro está na apropriação
do mundo miserável, gestado sob o guante do mando e da disciplina des-
moralizante da Armada de então. É no negro Amaro, antes submisso e inerte,
agora apaixonado pelo grumete louro, o frágil Aleixo, que cresce o animal
brutalizado pelo trabalho no eito da fazenda onde nascera, estabelecendo-se
uma continuidade histórica entre as chibatadas do feitor e as chibatadas re-
gulamentares do regime da Armada. (“Escravo na fazenda, escravo a bordo,
escravo em toda parte... E chamava-se a isso servir à pátria!”, diz o autor, acres-
centando: “Marinheiro e negro cativo, afinal de contas, vêm a ser a mesma
cousa”). É a paixão homossexual que o transforma em brioso, arrogante,
brutal e o conduz ao crime, quando se vê traído. O branco Aleixo, desprote-
gido, se esconde atrás do crioulo homossexual; mais seguro, pensa arrumar
um amante de mais posses; inexperiente, apaixona-se por uma mulher – e
nessa “traição” encontra a morte.

Num ambiente em que “desobediência, embriaguez e pederastia são


crimes de primeira ordem”, Adolfo Caminha tece seus personagens como
instrumentos de um desejo que degrada indistintamente oficiais e mari-
nheiros, criando uma sociabilidade onde Amaro (“negro é raça do diabo, raça
maldita, que não sabe perdoar, que não sabe esquecer...”) erige-se como o
símbolo da antiordem. Afinal, que direito tinha Aleixo de abandoná-lo (“Por
quê? Por que era negro, por que fora escravo? Tão bom era ele quanto o
imperador!...”)? É esta fusão entre negritude e homossexualismo que faz de
Bom-crioulo um romance maldito, insuportável mesmo para seu tempo.

67
Realismo na Literatura Brasileira

Num mundo onde a burguesia afazendada nem sequer confiava a educa-


ção de suas filhas à escola laica, convocando a guarda pretoriana dos inter-
natos de freiras para mantê-las longe das estantes de Zola, Flaubert e Balzac,
o que dizer de um romance que é a antítese do “politicamente correto”? A
crítica, minimizando o impacto do texto, aceita de bom grado a tese de que
Adolfo Caminha, oficial da Marinha que militou contra os castigos corporais
e que teve que abandonar a Armada por força da intolerância provinciana
quando se apaixonou por uma mulher casada com um oficial do Exército,
executa, por meio do Bom-crioulo, uma vingança contra a instituição militar,
nos moldes do que Raul Pompéia teria feito em O Ateneu.

Vista a obra de Caminha da óptica do movimento geral de ideias do


período, outra é a apreciação que se pode construir. Aluísio Azevedo adver-
tia: quem não amasse “a verdade da arte” e não possuísse “ideias seguras”
sobre o naturalismo, não devia ler suas obras. Esta era sua resposta a crí-
ticos como José Veríssimo, a quem parecia descabido tomar por temas de
romances casos patológicos, confundindo romance com “tratado de medici-
na”, num nítido exemplo da má assimilação da proposta inovadora de Zola,
Flaubert ou Eça de Queirós. Parecia a José Veríssimo que mais uma vez se
adotava, canhestramente, uma escola literária decadente como “última pala-
vra” em um mundo provinciano.

O Naturalismo ou sua matriz, o Realismo, ficam melhor compreendidos


como uma reação salutar ao Romantismo, já esgotado em seu potencial cria-
dor, e também quando os tomamos engajados na negação do universalismo
da arte e na afirmação de um particularismo que fosse, ao mesmo tempo,
estético e político. O olho que vê a realidade “tal e qual ela é”, captando seus
aspectos mais torpes, é a metáfora do naturalismo. Tanto ele quanto o positi-
vismo e o evolucionismo constituíram, no Brasil, um “quase-partido político”
expressando verdadeira rebelião intelectual contra um poder monárquico
podre que carregava consigo o romantismo domesticado como estética na-
cional, o ecletismo filosófico como ideal de saber, o beletrismo afrancesado
como estilo intelectual.

Naquele ambiente, a reação iconoclasta das novas gerações, que rebentou


aqui e ali a partir de 1870, era sinal de saúde e vitalidade intelectual. O abando-
no do teísmo e da metafísica, nas ciências e na filosofia, e do subjetivismo bur-
guês, celebrado pelo romantismo, constituíam verdadeiros divisores de água
entre o mundo contemporâneo e aquele que precisava ser deixado para trás.

68
O Realismo e o Naturalismo no Brasil

Se o naturalismo hoje incomoda pelo cientificismo tosco, não se pode


esquecer que procurava salvar a razão que naufragava com a crise política
do século XIX. A natureza, erigida em princípio explicativo da vida graças ao
darwinismo, se converte em palco e espetáculo de enfrentamentos filosófi-
cos. A anomalia e a aberração surgem como obra da criação desregrada, ali
onde a “lei da seleção natural” falhou, evidenciando não só a necessidade
da eugenia como a maldição que se abate sobre o mundo do qual Deus foi
expulso. Entre nós, o naturalismo segue esta mesma tendência ao construir o
espetáculo literário, só que se fixando nas “anomalias do espírito”: o incesto,
em O Homem, de Aluísio Azevedo, e em Hortência, de Marques de Carvalho;
o homossexualismo em Bom-crioulo, de Adolfo Caminha.

Adolfo Caminha cria uma tensão moderna entre as instituições carcomi-


das e a vida privada: seja a sua vida sexual – pela qual optou, abandonando
a Marinha –, seja a de seu personagem Amaro, ambas evidenciando que a
sociedade saída da escravidão estava longe de perder a feição totalitária. É
por isso que o que ainda mantém de “maldito” é a exata expressão de sua
modernidade.

Estudos literários
1. Considere as afirmações abaixo, sobre o romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo.

Feita em uma linguagem metafórica, a descrição do cortiço indica que,


no romance, esse espaço coletivo adquire vida orgânica, revelando-se um
“ser” cuja força de crescimento assemelha-se ao poderio de raízes em de-
senvolvimento constante que ameaçam tudo abalar.

Agora, assinale a alternativa que melhor se relaciona com essas afirmações.

a) O cortiço é uma força poderosa mantida pela ação das personagens.

b) O cortiço representa o poder do Estado.

c) O cortiço representa unicamente a ganância de João Romão.

d) O cortiço representa o poder do negro na cultura brasileira.

2. Embora haja oposição entre o sobrado e o cortiço em termos de aparência


física dos ambientes, os moradores de um e outro espaço não se distinguem
69
Realismo na Literatura Brasileira

totalmente, pois seus comportamentos se assemelham em vários aspectos –


como, por exemplo, os de João Romão e Miranda. Por que isso acontece?

a) As personagens são construídas com autonomia de comportamento.

b) Todas as personagens mantêm vínculo com o ideal romântico e por isso


são parecidas.

c) Todas as personagens do romance são determinadas por um meio cor-


rupto e, em diferentes graus, todas são corrompidas e corruptoras.

d) O Naturalismo aproxima as pessoas do ideal monárquico e por isso João


Romão e Miranda tem comportamentos parecidos.

3. Relacione as situações e personagens da obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo,


a características realistas/naturalistas como determinismo, a força do sexo e
a marca hereditária.

70
O Realismo e o Naturalismo no Brasil

71
Realismo na Literatura Brasileira

72
Machado de Assis e o Realismo brasileiro

A obra de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) se destaca do


contexto do Romantismo e do Realismo brasileiros por revelar um trata-
mento muito singular para os romances, sejam da fase romântica ou da
fase realista: Machado de Assis extrapola os preceitos das duas Escolas na
medida em que propõe um olhar sobre a realidade psicológica de suas
personagens de modo inédito nas narrativas nacionais.

Alguns críticos já chamaram essa característica de realismo psicológico


(MARTINS, 1966), uma vez que a ação externa dos romances está sempre
subordinada a uma avaliação interna que ora é feita pelo personagem
narrador, ora pela voz narrativa em terceira pessoa. Essa interioridade psi-
cológica antecipa certos procedimentos narrativos que serão retomados
apenas por autores do século XX, o que torna Machado de Assis um pre-
cursor de estratégias de exploração da psicologia humana que definem a
literatura modernista.

Sem dúvida, rotular Machado de Assis como autor romântico ou realis-


ta seria reduzi-lo a um conjunto de preceitos literários em que a sua pro-
dução não cabe. A vasta produção ficcional de Machado de Assis dialoga
com a alta literatura moderna e universal, passando pelos ingleses (marca-
damente Shakespeare) e chegando aos russos (Dostoievski, por exemplo).
Vale dizer que a produção ficcional de Machado de Assis conduziu a litera-
tura brasileira para o cenário da literatura mundial já no século XIX.

Machado de Assis
e os seus romances românticos
Os romances de Machado de Assis, escritos antes de 1880 são conside-
rados de uma fase ainda associada ao Romantismo:

 Ressureição (1872);

 A Mão e a Luva (1874);


Realismo na Literatura Brasileira

 Helena (1876);

 Iaiá Garcia (1878).

Esses romances ainda podem ser associados a certo modelo de romance


romântico que encontrou terreno fértil no Brasil, sobretudo com a produção de
José de Alencar.

A visão romântica está centrada no sujeito. O eu romântico é sujeito e objeto da


linguagem e isso significa dizer que a natureza do discurso romântico está focada
no eu que fala e no eu de que se fala. Desse modo, não importa se o narrador apa-
recerá em primeira ou em terceira pessoa: o romance romântico estará centrado
em um sujeito, uma individualidade que se quer conhecer e compreender.

Apesar de isso parecer uma simplificação, no Machado de Assis da fase


romântica já se nota o tratamento psicológico e assim observamos que seu
modo de explorar a subjetividade das personagens atende ao que o Romantis-
mo francês realizou, por exemplo, com os romances de Victor Hugo (Os Miseráveis
ou Nossa Senhora de Paris). No seu romance Helena, Machado de Assis já torna
possível perceber que a personagem-título e protagonista foi elaborada com
uma personalidade complexa que é resultante, a um só tempo, de uma biogra-
fia complicada (ela é a filha bastarda, reconhecida tardiamente, quando recebe
uma herança do pai biológico e é enfim apresentada à sociedade) e também
de um mundo interior consistente. A personalidade de Helena reage de modo
peculiar ao mundo de riquezas que lhe é apresentado com a herança paterna:
seu mundo interior questiona os valores desse universo e não se rende a ele.

Em Iaiá Garcia, temos o ensaio do triângulo amoroso que marcará a obra


madura de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmur-
ro e Quincas Borba). No início de Iaiá Garcia, temos um casal diante da clássica
impossibilidade amorosa: sendo rico, Jorge não pode casar-se com Estela porque
não está autorizado pela mãe a desposar uma moça pobre. Estela relutará em
aceitar o amor de Jorge porque, ao contrário das heroínas românticas tradi-
cionais, é orgulhosa e não tolera a ascendência de classe da família de Jorge.
Enquanto Jorge se ausenta para lutar na Guerra do Paraguai, sua mãe estimula o
casamento de Estela com Luís Garcia, um antigo pretendente.

Desse preâmbulo nasce a protagonista do romance: Iaiá Garcia é filha de Luis


Garcia e aqui teremos a formação do triângulo Estela-Jorge-Iaiá Garcia, o qual é inten-
samente complicado pelos interesses e pela dinâmica familiar – temas que Macha-
do de Assis já trata com o realismo que encontramos nos romances subsequentes.

74
Machado de Assis e o Realismo brasileiro

Desconfiada das relações entre Jorge e Estela, Iaiá Garcia decide conquistar o
moço Jorge para livrar o pai de uma possível traição da esposa. Percebemos que
as motivações para o envolvimento amoroso não são simples: temos a um só
tempo, de modo subliminar, a disputa de Iaiá Garcia com a madrasta e o desejo
de proteger o pai. No desfecho do romance, Iaiá Garcia está apaixonada por
Jorge, Luís Garcia morre e Estela acaba por auxiliar a união do jovem casal.

Os romances da fase dita romântica de Machado de Assis já revelam um


escritor bastante livre em relação ao contexto criativo do momento em que escre-
ve. Comparativamente aos romances de seus contemporâneos, como Joaquim
Manuel de Macedo ou José de Alencar, percebe-se na sua obra uma complexida-
de maior no tratamento dado ao tema amoroso e também uma grande sensibili-
dade para a motivação psicológica de suas personagens. Esses fatores se tornarão
mais marcantes na fase posterior de sua produção, como veremos a seguir.

Machado de Assis: um crítico do Realismo


Machado de Assis foi um grande crítico do Realismo, e também do Romantismo.

No artigo “Instinto de Nacionalidade” (1999), Machado critica o principal


ponto de honra do Romantismo brasileiro: o tema nacionalista. Ele vai dizer, em
breves palavras, que para ser brasileiro não é necessário falar sempre de ima-
gens nacionalistas ou símbolos pátrios – como a natureza exuberante do Brasil,
ou mesmo a figura do índio como marca nacional. Essa consciência revela um
escritor maduro, capaz de reconhecer o valor de identidade nacional em uma
obra, não simplesmente nos lugares e/ou evocações nacionalistas – como acon-
tece quando há referência direta à vegetação (como as palmeiras) ou certos pás-
saros e outros animais típicos da fauna brasileira. Machado pensa em alguma
coisa mais sutil, que ele chamou de “sentimento íntimo de nacionalidade” (1999,
p. 12) e se revelaria mesmo quando o escritor falasse de algo estranho à paisa-
gem ou à realidade material de sua nação.

Em relação ao Realismo, Machado sempre se manteve alheio aos preceitos


explícitos da Escola.

Para Carlos Fuentes, a produção de Machado de Assis é um verdadeiro mila-


gre no contexto limitado do Realismo latino-americano, pois:
O romance oitocentista hispano-americano, ao contrário, não se atreve a abandonar um
preceituário que constitui o enganoso chamariz da modernidade: primeiro o romantismo,
depois o realismo, por fim o naturalismo. O romantismo, escreve Machado de Assis, é um

75
Realismo na Literatura Brasileira

cavaleiro que esfalfou seu próprio corcel “a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde
o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para seus
livros”. As imitações absurdas do período das independências pautavam-se em uma civilização
Nescafé: podíamos ser instantaneamente modernos abolindo o passado, negando a tradição.
O gênio de Machado reside no contrário: não há criação sem tradição que a nutra, assim como
não há tradição sem criação que a renove. (FUENTES, 2000, p. 6)

A consciência revelada pela obra de Machado de Assis se dá na medida em


que ele aproveita a tradição do romance universal desde Dom Quixote, de Miguel
de Cervantes, até as manifestações locais do romance brasileiro de sua época. A
ironia, o humor e a crítica que encontramos na obra de Machado a tornam única
na história da literatura brasileira, desde os seus primeiros romances românti-
cos. Veremos, então, que o seu enfoque do Realismo não passa pela aceitação
dos preceitos de objetividade e experimentação. Nenhum dos seus romances da
fase realista se baseia no princípio da objetividade.

Pensemos no romance fundamental de Machado de Assis, Memórias Póstu-


mas de Brás Cubas: temos aqui um narrador em primeira pessoa, o que é uma
primeira quebra dos preceitos realistas, pois o narrador é subjetivo, pessoal,
intimista e extremamente irônico em relação a si e à sociedade de que provém.
Só isso já bastaria para considerarmos Machado um grande crítico do Realis-
mo, mas ele foi ainda mais longe e nos deixou textos de crítica literária em que
ataca diretamente os “discípulos” do Realismo, justamente por estes se deixarem
dominar pelas regras da Escola Realista e por isso mesmo perderem a originali-
dade e a liberdade da criação literária.

O texto de crítica em que esse debate é mais explítico é o artigo intitulado “O


Primo Basílio, de Eça de Queirós” (1999), publicado na revista O Cruzeiro em 16 de
abril de 1878 e nele Machado critica duramente o romance de Eça de Queirós,
como veremos no tópico a seguir.

Machado de Assis e Eça de Queirós:


aproximação e oposição

Crítica ao Crime do Padre Amaro


O diálogo crítico entre Machado de Assis e Eça de Queirós se deu de modo
significativo, embora em momento algum Eça de Queirós tenha citado ou feito
referência ao desafeto brasileiro.

76
Machado de Assis e o Realismo brasileiro

Eram autores de uma mesma geração, mas separados pelo mar e também
por uma postura muito diferente em relação à literatura. Eça abraçou o Realismo
durante muitos anos de sua produção literária, só abandonando os preceitos da
Escola nas suas últimas obras.

A intenção de Machado de Assis ao escrever o artigo “O Primo Basílio, de Eça


de Queirós” era muito mais criticar o Realismo como proposta estética do que
diretamente a obra de Eça de Queirós.

No início do artigo, Machado comenta O Crime do Padre Amaro, um outro


romance de Eça. Os problemas apontados por Machado nesse romance estão
relacionados à preocupação de Eça de Queirós em cumprir as exigências do
romance realista e “imitar” Émile Zola, o pai do Realismo europeu. Vejamos:
Que o senhor Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir, ninguém há que o não
conheça. O próprio Crime do Padre Amaro é imitação do romance de Zola, La Faute de l’Abbé
Mouret. Situação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferença do desenlace;
idêntico estilo; algumas reminiscências, como no capítulo da missa, e outras; enfim, o
mesmo título. Quem os leu a ambos, não contestou decerto a originalidade do senhor Eça
de Queirós, porque ele a tinha, e tem, e a manifesta de modo afirmativo; creio até que
essa mesma originalidade deu motivo ao maior defeito na concepção do Crime do Padre
Amaro. O senhor Eça de Queirós alterou naturalmente as circunstâncias que rodeavam o
padre Mouret, administrador espiritual de uma paróquia rústica, flanqueado de um padre
austero e ríspido; o padre Amaro vive numa cidade de província, no meio de mulheres,
ao lado de outros que do sacerdócio só têm a batina e as propinas; vê-os concupiscentes
e maritalmente estabelecidos, sem perderem um só átomo de influência e consideração.
Sendo assim, não se compreende o terror do padre Amaro, no dia em que do seu erro lhe
nasce um filho, e muito menos se compreende que o mate. Das duas forças que lutam
na alma do padre Amaro, uma é real e efetiva – o sentimento da paternidade; a outra é
quimérica e impossível – o terror da opinião, que ele tem visto tolerante e cúmplice no
desvio dos seus confrades; e não obstante, é esta a força que triunfa. Haverá aí alguma
verdade moral? (MACHADO DE ASSIS, 1999, p. 20)

A crítica de cópia atingiu diretamente o autor de O Crime do Padre Amaro,


tanto que qualquer um que abra uma edição corrente desse romance lerá,
logo nas primeiras páginas, um prefácio de Eça de Queirós à segunda edição
da obra em que ele se defende da acusação de plágio dizendo que seu roman-
ce foi publicado antes do romance de Émile Zola, e portanto não poderia ter
sido uma cópia deste. O que sabemos, entretanto, é que o romance de Zola
realmente foi publicado em livro depois de O Crime do Padre Amaro, mas circu-
lou em folhetim (capítulos publicados em jornal antes da publicação em livro)
no ano de 1872, em Paris, quando Eça de Queirós estava lá. O romance O Crime
do Padre Amaro foi publicado em 1875, em Portugal, sendo possível que Eça já
tivesse conhecimento do enredo do romance de Émile Zola ao qual se refere
Machado de Assis.

77
Realismo na Literatura Brasileira

Crítica a O Primo Basílio


Ao se referir ao romance O Primo Basílio, Machado enfatiza o tratamento
dado ao enredo e às falhas de construção das personagens, sobretudo da pro-
tagonista Luísa:
Vejamos o que é O Primo Basílio e comecemos por uma palavra que há nele. Um dos personagens,
Sebastião, conta a outro o caso de Basílio, que, tendo namorado Luísa em solteira, estivera para
casar com ela; mas falindo o pai, veio para o Brasil, donde escreveu desfazendo o casamento.
– Mas é a Eugênia Grandet! exclama o outro. O senhor Eça de Queirós incumbiu-se de nos dar
o fio da sua concepção. Disse talvez consigo: – Balzac separa os dois primos, depois de um
beijo (aliás, o mais casto dos beijos). Carlos vai para a América; a outra fica, e fica solteira. Se
a casássemos com outro, qual seria o resultado do encontro dos dois na Europa? – se tal foi
a reflexão do autor, devo dizer, desde já, que de nenhum modo plagiou os personagens de
Balzac. A Eugênia deste, a provinciana singela e boa, cujo corpo, aliás robusto, encerra uma
alma apaixonada e sublime, nada tem com a Luísa do senhor Eça de Queirós. Na Eugênia, há
uma personalidade acentuada, uma figura moral, que por isso mesmo nos interessa e prende;
a Luísa – força é dizê-lo – a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é
antes um títere do que uma pessoa moral.
Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra
coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência. (MACHADO DE ASSIS,
1999, p. 22)

Machado compara a trama de O Primo Basílio a um livro de Balzac, citado


inclusive por um dos personagens de Eça: o romance Eugênia Grandet, no qual
Machado reconhece a personalidade da protagonista, o que já não acontece
com o romance de Eça.

Apontando a falta de profundidade da personagem Luísa, Machado coloca


em questão justamente a temática do romance, que é o adultério feminino: se
Luísa trai o marido, é de se esperar que faça isso por uma motivação interior
forte. A crítica está no fato de que o romance não esclarece nem justifica essa
motivação, deixando a sensação de que Luísa cai no adultério quase que exclu-
sivamente por falta do que fazer. Ao acusar a personagem de ser um títere, um
fantoche, Machado cobra do romance algo que para ele é muito importante: a
coerência entre a caracterização da personagem e suas ações.

Na visão de Machado, em O Primo Basílio a ação é organizada apenas para


colocar em questão a tese de que o adultério feminino é uma ameaça à socieda-
de. No entanto, como esse adultério não tem uma motivação clara, nem interior
nem exterior, ficaria difícil para o leitor saber como se prevenir deste mal. E já
que uma das funções do romance realista é apontar o mal na sociedade para dar
condições de o leitor refletir e se prevenir, esse romance estaria falhando quanto
à sua função realista.

78
Machado de Assis e o Realismo brasileiro

Vejamos como Machado analisa o enredo que leva Luísa a trair seu marido:
Casada com Jorge, faz este uma viagem ao Alentejo, ficando ela sozinha em Lisboa; aparece-
lhe o primo Basílio, que a amou em solteira. Ela já o não ama; quando leu a notícia da chegada
dele, 12 dias antes, ficou muito “admirada”; depois foi cuidar dos coletes do marido. Agora,
que o vê, começa por ficar nervosa; ele lhe fala das viagens, do patriarca de Jerusalém, do
papa, das luvas de oito botões, de um rosário e dos namoros de outro tempo; diz-lhe que
estimara ter vindo justamente na ocasião de estar o marido ausente. Era uma injúria: Luísa
fez-se escarlate; mas à despedida dá-lhe a mão a beijar, dá-lhe até a entender que o espera
no dia seguinte. Ele sai; Luísa sente-se “afogueada, cansada”, vai despir-se diante de um
espelho, “olhando-se muito, gostando de se ver branca”. A tarde e a noite gasta-as a pensar
ora no primo, ora no marido. Tal é o introito, de uma queda, que nenhuma razão moral
explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum despeito, nenhuma
perversão sequer. Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência; Basílio
não faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que é. Uma vez rolada ao erro, como
nenhuma flama espiritual a alenta, não acha ali a saciedade das grandes paixões criminosas:
rebolca-se1 simplesmente. Assim, essa ligação de algumas semanas, que é o fato inicial e
essencial da ação, não passa de um incidente erótico, sem relevo, repugnante, vulgar. Que
tem o leitor do livro com essas duas criaturas sem ocupação nem sentimentos? Positivamente
nada. (MACHADO DE ASSIS, 1999, p. 25)

Ao apontar a fidelidade de Eça de Queirós às formalidades do Realismo,


Machado de Assis é ainda mais ácido, como podemos perceber a seguir:
Parece que o senhor Eça de Queirós quis dar-nos na heroína um produto da educação frívola
e da vida ociosa; não obstante, há aí traços que fazem supor, à primeira vista, uma vocação
sensual. A razão disso é a fatalidade das obras do senhor Eça de Queirós – ou, noutros termos,
do seu realismo sem condescendência: é a sensação física. Os exemplos acumulam-se de
página a página; apontá-los, seria reuni-los e agravar o que há neles desvendado e cru. Os que
de boa-fé supõem defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas cenas, para
só ficar o pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não reparam que isso
é justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que importa
eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo dos ardores,
exigências e perversões físicas. Quando o fato lhe não parece bastante caracterizado com
o termo próprio, o autor acrescenta-lhe outro impróprio. De uma carvoeira, à porta da loja,
diz ele que apresentava a gravidez bestial. Bestial por quê? Naturalmente, porque o adjetivo
avoluma o substantivo e o autor não vê ali o sinal da maternidade humana; vê um fenômeno
animal, nada mais. (ASSIS BRASIL, 1999, p. 26)

No “tom” realista da obra, Machado encontra certa falta de pudor que é para
ele um grande problema. Podemos até apontar a avaliação de Machado como
um moralismo, mas é justificável que ele se ressinta criticamente do processo de
espetacularização da natureza que o Realismo, e talvez mais marcadamente o
Naturalismo, fez na literatura.

Os fatos da natureza – como a gravidez, o sexo e os instintos humanos – são


tratados pelo Naturalismo como o foco central da personalidade das figuras da
ação. Disso Machado se ressente muitíssimo, pois é exatamente o que jamais
encontraremos em suas obras. Para ele, valem muito mais as sutilezas de caráter,

1
Rebolcar-se: revolver-se na lama; chafurdar.

79
Realismo na Literatura Brasileira

os labirintos das relações, que simplesmente o levantamento do cotidiano fisio-


lógico das personagens.

Assim, as críticas ao descritivismo realista aparecem como um dos pontos


marcantes do artigo de Machado:
Ruim moléstia é o catarro; mas por que hão de padecer dela os personagens do senhor Eça de
Queirós? No Crime do Padre Amaro há bastantes afetados de tal achaque; no Primo Basílio fala-
se apenas de um caso: um indivíduo que morreu de catarro na bexiga. Em compensação há
infinitos “jactos escuros de saliva”. Quanto à preocupação constante do acessório, bastará citar
as confidências de Sebastião a Juliana, feitas casualmente à porta e dentro de uma confeitaria,
para termos ocasião de ver reproduzidos o mostrador e as suas pirâmides de doces, os bancos,
as mesas, um sujeito que lê um jornal e cospe a miúdo, o choque das bolas de bilhar, uma
rixa interior, e outro sujeito que sai a vociferar contra o parceiro; bastará citar o longo jantar
do conselheiro Acácio [...]; finalmente, o capítulo do Teatro de S. Carlos, quase no fim do livro.
Quando todo o interesse se concentra em casa de Luísa, onde Sebastião trata de reaver as
cartas subtraídas pela criada, descreve-nos o autor uma noite inteira de espetáculos, a plateia,
os camarotes, a cena, uma altercação de espectadores.
Que os três quadros estão acabados com muita arte, sobretudo o primeiro, é coisa que a crítica
imparcial deve reconhecer; mas, por que avolumar tais acessórios até o ponto de abafar o
principal? (MACHADO DE ASSIS, 1999, p. 28)

As críticas de Machado de Assis ao Realismo de Eça de Queirós o colocam


fora do alcance dos preceitos da Escola; uma vez que ele, Machado, revela uma
consciência profunda dos prejuízos que a estética realista traria à criatividade
do escritor. Caso se rendesse aos modos de realização literária do Realismo,
Machado de Assis jamais teria nos dado obras-primas como Memórias Pós-
tumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro, em que a intenção realista vai muito
mais além do que simplesmente retratar com objetividade as coisas ou os
comportamentos, pois o realismo de Machado é psicológico, interno, e por
isso mesmo subjetivo. Não encontraremos objetividade no discurso de Brás
Cubas ou de qualquer outro narrador machadiano justamente porque a mente
humana, em toda a sua realidade, é especulativa, reflexiva. Quando é apenas
objetiva, a mente humana fica restrita à descrição e não propõe o pensamento
como prática.

Texto complementar
Disponibilizamos aqui uma resenha de uma obra de estudo crítico sobre Ma-
chado de Assis. A leitura dessa resenha vai ajudá-lo a conhecer um pouco mais
da temática de Machado de Assis e de seu estilo.

80
Machado de Assis e o Realismo brasileiro

A mensagem na garrafa
Em Por um Novo Machado de Assis, o crítico inglês John Gledson busca deci-
frar o sentido último das ficções do autor de Dom Casmurro
(SCHWARTZ, 2006)

Poucos críticos literários praticam seu ofício com tanta retidão quanto
John Gledson, que está lançando Por Um Novo Machado de Assis, uma
coletânea de ensaios sobre o autor de Dom Casmurro, tema principal de seus
estudos há muitos anos.

Isso fica claro quando se constata como ele valoriza e defende outros crí-
ticos de sua própria linhagem, sem, no entanto, deixar de fazer restrições ou
apresentar discordâncias – e o exemplo maior aqui é Roberto Schwarz.

Mas, principalmente, isso fica ainda mais claro pelo modo como discute
os autores com os quais não se alinha. Ele os nomeia e aceita com prazer
e abertura o debate, sem em nenhum momento tentar desqualificar qual-
quer “oponente”. Gledson não vê, inclusive, nenhum problema em afirmar
que mesmo posições e pressupostos teóricos bastante incompatíveis com
os dele podem até levar a conclusões próximas – e o exemplo evidente aqui
é Abel Barros Baptista.

Intenção do autor
Nos 14 textos reunidos no volume, o autor analisa contos, crônicas, a per-
sonagem Capitu, as relações entre literatura e história, leituras femininas e
até faz “especulações sobre sexo e sexualidade” em Machado de Assis e Gra-
ciliano Ramos: cada abordagem reforça a percepção de que se trata de um
pesquisador com profundo domínio de seu assunto.

Em vez, contudo, de discutir um ou mais ensaios, o que seria difícil por


conta dos limites de espaço, gostaria de brevemente comentar uma ideia
sempre defendida por John Gledson e que é aqui mais uma vez retoma-
da – a questão da intenção do autor: “Como afirmei então (em Impostura e
Realismo), eu era (e continuo sendo) um “intencionista declarado” no sentido
(restrito) que “acredito ser uma parte essencial do papel do crítico revelar os
significados que o escritor pretendia comunicar”.

81
Realismo na Literatura Brasileira

Corajosa e contestável, tal posição, ainda que na prática seja assumida por
muitas pessoas, raramente nos dias de hoje é defendida de modo público,
uma vez que se aproxima da ideia do senso comum a respeito do texto artísti-
co (qualquer professor se lembrará com facilidade das inúmeras vezes em que,
depois de analisar em sala de aula um conto ou poema, ouviu, com variações,
a pergunta: “Mas o autor quis realmente dizer isso?”). Questão rica e polêmica
na história dos estudos literários, atualmente ela é pouco debatida.

Como amostra do problema, pode-se tomar um exemplo extraído de


“O espelho”. O protagonista da narrativa, a certa altura do enredo, recebe da
tia o “privilégio” de ter em seu quarto um espelho, assim descrito: “Obra rica e
magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples...
Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o
comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI.”

Gledson se pergunta as razões de o escritor ter inserido o pedigree da peça


no conto e conclui: “O Brasil de fato tornou-se um império independente sob
a regência de D. Pedro I, filho de D. João, em 1822, mas esta era a primeira
etapa do processo. Valendo-me da metáfora de Machado: pela primeira vez
o país se viu no espelho (...). Não consigo imaginar nenhum outro motivo
para a menção do pedigree.”

Assim como o objeto refletia um borrão quando Jacobina nele se olhava,


ele refletiria, figuradamente, o problema da “existência do Brasil como nação”.
Pode-se, é claro, argumentar assim. Será, contudo, que isso não implica forçar
um pouco a interpretação? Será que o pedigree não está ali, de modo mais
simplório, só para, por contraste, reforçar a boçalidade desse narrador (Jaco-
bina pouco antes assumira a narração) que se julga tão importante?

Ir além dos significados


Pensando em termos mais genéricos, quando se fala em intenção, é legí-
timo especular qual é ela? Ou qual o seu propósito? Para dizer de outro jeito,
incorporando a premissa: qual teria sido a intenção de Machado de Assis ao
intencionalmente cifrar sua obra, em transformar seus contos e romances
em uma espécie de mensagem na garrafa para críticos futuros?

Isso não seria mais ou menos o mesmo que diagnosticar uma doença
grave, potencialmente fatal, escrever um relatório sobre ela e guardá-lo em
uma gaveta trancada para ser lido décadas depois, quando o doente já há
muito morreu e virou pó?
82
Machado de Assis e o Realismo brasileiro

Ninguém duvida de que existe, em certa medida, uma intenção autoral;


talvez existam também “diagnósticos” e “relatórios”, mas a obra de qualquer
grande escritor necessariamente transcende a sua própria capacidade de
compreendê-la, e a tarefa do crítico é ir além “dos significados que pretendia
comunicar”, como, certamente fazem, a despeito de suas “intenções”, estes
ensaios, cheios de percepções agudas e relevantes, de John Gledson.

Estudos literários
1. A fase romântica de Machado de Assis é composta pelos romances

a) Iaiá Garcia, Dom Casmurro e Quincas Borba.

b) Helena, Iaiá Garcia e A Mão e a Luva.

c) Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.

d) Memorial de Ayres, Dom Casmurro e Helena.

2. Uma das referências críticas para a leitura da obra de Machado de Assis é o


conceito de

a) realismo crítico.

b) realismo mágico.

c) realismo psicológico.

d) realismo-naturalismo.

3. Discorra brevemente sobre a posição do narrador nos principais romances


da fase dita realista de Machado de Assis.

83

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