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Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura

REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA
POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS

Ana Lúcia M. de Oliveira1

Em vez de examinar a expressão poética da voz própria da mulher,


esta comunicação objetiva abordar a configuração do corpo feminino no
século XVII a partir da ótica plasmada pela persona satírica masculina, na
poesia atribuída a Gregório de Matos2. Para melhor contextualizar o tema
abordado, pretende-se inicialmente enfocar o lugar atribuído à mulher na
sociedade luso-brasileira seiscentista, em que a forma mentis dominante,
seguindo o ideário contra-reformista, lhe faculta primacialmente o
desempenho do papel de Eva pecadora, sempre em contraponto com a
imagem modelar e redentora de Maria.

O padrão de relações familiares e afetivas que se buscou implantar


no Brasil colônia era herdeiro de tradições consolidadas na Europa poucos
séculos antes, sobretudo por empenho da Igreja Católica. Entre os séculos
XVI e XVIII, com muita lentidão, o casamento erigiu-se na Colônia por razões
de Estado, pela necessidade de povoamento das capitanias e por questões
de segurança e controle social. Foi imposto às populações, seguindo a
ética loquaz da Reforma Católica, cujo discurso fomentava a incubação de
uma moral conjugal sóbria e vigilante. Imersa numa situação específica,
decorrente do processo de colonização da Terra de Santa Cruz, “a mulher
como mantenedora, guardiã e gestora da maioria dos lares coloniais
acabava por responsabilizar-se pela interiorização dos valores tridentinos”,
segundo nos indica Mary del Priori (1993, p. 172).

Dos sermões eclesiásticos às obras populares, pode-se perceber o


transplante do caráter androcêntrico da sociedade européia para a Colônia,
trazendo em seu bojo a mentalidade de uma desigualdade dogmática entre
os sexos, espécie de antídoto contra a possibilidade de insurreição da mulher
no interior do casamento (cf. idem, p. 176-7). Assim, o discurso sobre o amor

1  Doutora em Literatura Comparada, Professora Adjunta da UERJ e Pesquisadora do CNPq.


2  Sobre a questão da autoria desses poemas, consultar: Araújo (1990) e Oliveira (2003).
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conjugal tornou-se um dos instrumentos de ação da Igreja para normatizar


as populações femininas3.

A escala amorosa, com uma hierarquia para amores divinos e


terrenos, acabava por justificar uma vida de confinamento e recato que
atendia ao interesse de ambos: a Igreja e os maridos propriamente ditos.
Daí os encômios às mulheres recolhidas e as caricaturas daquelas que
preferiam ir às ruas. No âmbito dessa forma mentis, afetos desregrados
da alma ou do corpo mereciam ser banidos, mediante um pedagógico
treinamento, tornando o matrimônio inteiramente asséptico. Conforme
parece evidente, o esforço de adestramento dos afetos, dos amores e da
sexualidade feminina afinava-se com os objetivos do Estado moderno e da
Igreja - tornar a relação entre os sexos mais próxima do ideal da sociedade,
diminuindo as infrações que o pudessem perturbar.

Em síntese, como nos informa Luciano Figueiredo, “na América


portuguesa, a família e a vida conjugal foram regulamentadas em ampla
legislação civil e eclesiástica, sistematizando assim o longo caminho
percorrido pelas concepções cristãs rumo ao triunfo do casamento, na
Europa desde o século XII” (Figueiredo: 2004, p. 17). Apesar disso, as normas
estabelecidas para o casamento cristão não foram muito mais do que um
ideal de conduta moral. Distante dele, vingou uma pulsante cultura popular,
expressa em comportamentos que enfrentavam o poder das instituições,
desafiavam as punições previstas para os transgressores e acabavam por
introduzir precedentes que criavam uma ordem às avessas, condenada
pelas instâncias de poder, mas aceita pela maioria da população (Idem, p.
26). Não obstante os esforços empreendidos pela Igreja e pelo Estado para
difundir a prática da família ordenada pelo sacramento do matrimônio, o
Brasil colônia assistiu à multiplicação das práticas ditas extraconjugais. Na
formulação sintética de Emanuel Araújo: “Ao fim e ao cabo todo mundo
transgredia, pecava, desobedecia, violava grande número de normas. E
muito” (1997, p. 213).

3  Para um detalhado estudo do papel da mulher no Brasil Colônia, consultar Del Priore
(2009).
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No entanto, exigia-se da mulher uma atitude de recato que está


bem sintetizada no seguinte provérbio, corrente na época - há apenas três
ocasiões em que a mulher virtuosa pode sair do lar durante toda a sua vida:
para se batizar, para se casar e para ser enterrada. Tal rigor no exercício da
autoridade masculina era muito caro à Igreja, que, desde a Idade Média,
tornou regra a superioridade do homem sobre a mulher, condenada desde
Eva. A esse respeito, destaque-se o seguinte preceito de São Paulo, na
Epístola aos efésios: “As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos, como
ao Senhor, porque o homem é cabeça da mulher, como Cristo é cabeça da
Igreja... Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo
sujeitas aos seus maridos”.

Antonio Vieira, relevante orador sacro do século XVII, empregava


freqüentemente a sua eloqüência para lembrar às fiéis que o ouviam a triste
condição de sua inferioridade. Em suas palavras, do pecado original “foi
causa uma mulher, e que mulher? Não alheia, mas própria, e não criada em
pecado, mas inocente e formada pelas mãos do mesmo Deus” (Vieira: 1908,
p. 240). Nas lentes da ortodoxia católica seiscentista, portanto, para o mal
de ser mulher não há remédio: “posto que haja tantos séculos que morreu
aquela Eva, vive contudo em toda a mulher a sentença com que Deus a
condenou em todo o mesmo sexo” (idem, p. 242).

Assim, a atitude da primeira mulher, que condenou a humanidade


a ter contato com o Diabo, deixando-se seduzir por ele para comer o fruto
proibido, foi invocada por uma variada gama de teólogos e moralistas de
todos os tempos. Além disso, a perseguida prática da feitiçaria reforçava a
associação entre o sexo feminino e o mal. Devido à sua suposta natureza
inconstante, alvo preferido do demônio, as mulheres foram vistas como
fonte maior dos grandes males do mundo.

As observações anteriores apontaram a misoginia tradicional que


pesou sobre a mulher desde a expulsão do Paraíso. A partir daí, a imagem
negativa de Eva ficou indissociavelmente ligada à da mulher, e só Maria, “a
contrapartida oferecida pelo cristianismo, conseguiu contrabalançar esse
terrível peso” (Hatherly: 1997, p. 123). Segundo a crítica portuguesa Ana
Hatherly (idem, p. 124), tal imagem, manchada pela acusação de vaidade e
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inconstância, que predomina em textos de religiosos e seculares medievais,


encontra no período barroco duas nítidas contrapartidas: a que, derivando
do amor cortês e do subseqüente petrarquismo neoplatônico, destaca a
configuração eroticamente espiritualizada da mulher; e a que, derivando do
culto de Maria, exalta a que se dedica à via da espiritualidade. Se entronizar
a mulher através do platonismo é uma maneira de exorcizar, pela distância,
o fascínio erótico exercido sobre o homem, santificá-la é outro modo de
neutralizar o impacto de sua sedução, transferindo-o para o plano do que
é louvável, em termos morais. Em ambos os casos, trata-se de exaltar a
mulher inacessível (id., ibid.).

Ao longo do século XVII, esse modelo erótico-espiritualizado da mulher


sofre uma transformação gradual, podendo chegar às vezes ao extremo
do antipetrarquismo de raiz naturalista e satírico-burlesca encontrado nas
letras da época, o que indica sobretudo a saturação atingida por tal modelo
devido ao seu excessivo uso. Na passagem do conceito renascentista para
o conceito seiscentista do retrato ideal da amada, verifica-se uma mudança
na configuração da mulher retratada, em que alguns valores centrais da
sensibilidade quinhentista vão sendo substituídos por valores barrocos e se vai
infiltrando uma espécie de realismo na representação de uma nova imagem
feminina. Enquanto a dama pintada por Camões inspira amor por sua beleza,
de ordem ideal, moral, sem que esteja presente a sensualidade, a mulher na
poesia barroca aproxima-se mais do modelo medieval da Belle Dame sans
mercy, acrescentando-se uma ênfase em seus aspectos sensuais.

Antes de se manifestarem clamorosamente na poesia satírico-


burlesca barroca, os sintomas de antipetrarquismo surgem na pintura
de retratos em que os atributos físicos tradicionais da beleza da dama –
branca, loira, de olhos azuis ou verdes – vão sendo substituídos por outros,
nomeadamente na cor dos cabelos, dos olhos ou da pele. Outro aspecto que
caracteriza o retrato seiscentista, distinguindo-o do retrato renascentista,
geralmente dedicado só ao busto, é a tendência para incluir referências a
diferentes partes do corpo.

A poesia de temática amorosa de Gregório de Matos apresenta duas


facetas distintas, podendo cada uma delas ser associada preferencialmente
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a um diferente tipo de mulher: a primeira é a do amor idealizado e dos


afetos traduzidos por uma linguagem elevada na descrição feminina; a
segunda é a poesia de amor satírico-obsceno, na qual o poeta enfatiza o
amor físico, empregando uma infinidade de vocábulos para descrever o ato
e os órgãos sexuais, apresentando com freqüência expressões misóginas,
especialmente em relação às mulheres negras e mulatas.

Para um breve exame da primeira vertente do retrato feminino,


tomemos o conhecido soneto dedicado à D. Ângela, no qual se encontra
uma atitude idealizante em relação à mulher e o emprego de uma linguagem
mais erudita na configuração de sua imagem. Segue-se a primeira estrofe
desse poema:

Anjo no nome, Angélica na cara!


Isso é ser flor e Anjo juntamente:
Ser Angélica flor e Anjo florente,
Em quem, senão em vós, se uniformara?
(Matos: 1990, p. 406)

Todo o desenvolvimento do poema se concentra no jogo onomástico


que lhe serve de estrutura básica, no plano da expressão: “Ângela” se
identifica a “Angélica”, que se refere a “Anjo” e “flor”. O tema central é o caráter
contraditório dos sentimentos do poeta pela mulher, que é simultaneamente
flor, operando como metáfora da beleza e objeto do desejo, e anjo, metáfora
da pureza e símbolo da elevação espiritual. A contradição entre o amar e o
querer desemboca no paradoxo dos versos finais: “Sois Anjo que me tenta
e não me guarda”. Apesar de Ângela ser anjo e flor juntamente, ela é, na
verdade, mulher; assim, tal como Eva, ela tenta mais do que protege.

A produção lírica, de temática amorosa, de Gregório de Matos


recebe uma forte influência de Petrarca e Camões. Há tons idealizantes no
que diz respeito à concepção feminina, ressaltando o seu aspecto angelical.
O platonismo é evidenciado como predominante, destinando ao poeta um
sentimento puro, sublime. Todavia, o sofrimento amoroso se torna latente
no autor, visto uma não concretização amorosa, exacerbando os seus
sentimentos em conotações contraditórias, tipicamente barrocas, como se
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evidencia no soneto mencionado.

Passemos ao exame da segunda e mais profícua faceta do retrato


feminino, encontrada na produção satírica do autor. Como a figura do sátiro,
metade homem e metade animal, em que duas naturezas se misturam para
formam uma terceira, a sátira, nas palavras de Adolfo Hansen, “não tem a
unidade prescrita de outros gêneros: é mista, como mescla de alto e baixo,
grave e livre, trágico e cômico, sério e burlesco” (2004, p. 225). Um exemplo
patente de tal procedimento de misturas heterogêneas é o soneto dedicado
a Caterina, que citarei na íntegra para possibilitar melhor compreensão do
contraste estabelecido entre o registro de linguagem empregado ao longo do
poema – especialmente o estilo alto das maneiristas metáforas minerais da
primeira estrofe, convencionalmente empregadas como alegoria da beleza
– e a ruptura operada no último verso – justamente o espaço privilegiado
dessa forma poética:

Rubi, concha de perlas peregrina,


Animado Cristal, viva escarlata
Duas Safiras sobre lisa prata,
Ouro encrespado sobre prata fina.

Este o rostinho é de Caterina;


E porque docemente obriga, e mata,
Não livra o ser divina em ser ingrata,
E raio a raio os corações fulmina.

Viu Fábio uma tarde transportado


Bebendo admirações, e galhardias,
A quem já tanto amor levantou aras:

Disse igualmente amante, e magoado:

Ah muchacha gentil, que tal serias,


Se sendo tão formosa não cagaras!
(Matos, 1990, vol. II, pp.880-81)
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Alegoria da beleza feminina, a pedraria gongórica presente no


primeiro quarteto é extremamente convencional, remetendo a diversas
composições líricas do período, que empregam metáforas petrificadas
dispostas simetricamente nos versos. Proposta esta composição mineral,
ainda enigmática, o segundo quarteto enuncia o seu sentido próprio: “Este
o rostinho é de Caterina”, seguido da intervenção judiciosa da enunciação,
que pondera, antiteticamente, os males do amor como efeito de tanta
beleza, nos três versos posteriores O primeiro terceto introduz Fábio,
personagem de muita epístola moral do período, que, com o termo “aras”,
que significa altares, aponta para um amor cortês puramente inteligível, de
ressonâncias camonianas. Entretanto, no último terceto, o personagem se
distancia ironicamente da amada, desmobilizando o mito pela degradação
do estilo sórdido do ato enunciado, evidenciando-se a contradição entre o
estilo alto de “amor levantou aras” e o sórdido de “cagaras”. Cabe destacar
que esse verbo espelha perversamente, em rima inusitada perfeita, o termo
“aras”, incluindo-o em seu valor semântico, ao traduzi-lo violentamente
para baixo (cf. Hansen: 2004, p. 87). Tal processo de degradação temático-
lexical se evidencia pelo próprio posicionamento dos termos “rubi” -
cabeça do soneto e metáfora de “boca”, redundado por outras metáforas
minerais que apresentam valor semântico equivalente, na mesma posição
sintagmática, designando o “rosto” e significando “beleza”, por analogia
com a parte superior, nobre, do corpo – e “cagaras”, termo apresentado no
final do poema como recolha dinâmica e espelhamento irônico da “boca”
que abre o texto. Segundo Hansen, esse soneto atesta a grande eficácia
retórico-poética do emprego da paródia como inversão irônica do discurso
de estilo alto, configurando “variações baixas da lírica camoniana que
invertem o petrarquismo, substituindo a melancolia da delectatio morosa da
ausência do corpo da dama pelas misturas do corpo obsceno e seus fluidos
malcheirosos” (2004, p. 88).

Seguindo a mentalidade dominante da época, a sátira desenvolve a


partição dos sexos em masculino e feminino, consoante a teologia do mulier
corpus viri, a mulher como corpo do homem e parte dele, que a ela atribui
a inferioridade da diferença submissa e submetida ao poder do homem
como compensação da falta: só ele foi feito à imagem de Deus. Consoante
a expressão paulina, a mulher é “vaso do marido”; como “hipertrofia dessa
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hierarquia natural, a sátira autonomiza o ‘vaso’, constituindo a ‘puta’,


a mulher-vaso por excelência, paradigma do duplo impuro e duplo do
paradigma virginal” (Hansen: 2004, p. 421). Na metáfora da “puta”, a função
“vaso” está insubordinada selvagemente, contra naturam, conforme se lê no
poema a “uma negra chamada Maria Viegas”: “jamais a ninguém te negas,
tendo um vaso vaganau” (MATOS: 1990, p. 439).

Todas as ações e descrições do tipo “puta” remetem invariavelmente


ao “vaso”, metonímia sempre presente, que é obsessivamente descrito pela
persona satírica de modo hiperbólico, pejorativo: “um vaso vaganau,/ e
sobretudo tão mau/ que afirma toda pessoa,/que o fornicou já, que enjoa/
por feder a bacalhau” (MATOS: 1990, p. 439). Percebe-se aí o modo de
funcionamento do obsceno, que autonomiza um órgão ou uma função,
desloca pela hipérbole o corpo e suas funções de sua “natureza” postulada,
como se verifica no caso do vaso onipotente das putas. Em síntese, como nos
esclarece Hansen, “a obscenidade é o efeito da total exposição discursiva
de algo que, propriamente, deveria permanecer invisível: atos fisiológicos,
fluidos e resíduos” (2004, p. 429).

Fundindo os caracteres da tópica “sexo” com os de outras, como


“raça”, “religião” e “origem”, a sátira constrói, em suas variadas misturas,
tipos femininos da corrupção – por exemplo, “freira, branca e puta”
ou “negra, escrava e puta”. Embora possam ser honestas, a negra e a
mulata, por definição corrente na época, são “sujas de sangue”; logo, por
extensão semântica, os termos “mulata” e “negra” podem significar “puta”,
independentemente de outra qualificação. Como efeito disso, “a negra
e a mulata são fundamentalmente dissolutas, ao passo que as mulheres
brancas [...], marcadas como toda mulher pela falta referente ao pecado
original, só são dissolutas por atos explícitos em ruptura com as regras
hierárquicas do corpo místico” (Hansen: 2004, p. 424-5)

Importa destacar que a mulata aparece como figura central em


vários poemas de Gregório de Matos, que a descreve majoritariamente a
partir da exaltação de seus atributos físicos, como motivo de tentação para
o eu lírico, ao mesmo tempo em que se revela o preconceito racial, corrente
na época, conforme se evidencia nos seguintes versos: “que de Mulata sai
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mula/ como de mula Mulata” (Matos: 1990, p. 1146). Manifesta-se, nesses


textos, um erotismo exacerbado e a colocação da figura feminina como
objeto de desejo, como pode ser verificado na série dedicada à mulata
Custódia, sobre a qual se lê: “Que a vossa boca tão bela/ tanto a amar-vos
me provoca” (Matos: 1990, p. 534); e igualmente nos poemas dedicados a
Anica, flagrada pela persona satírica no ato de lavar roupas em uma fonte,
batendo-as sobre uma pedra:

Tanto deu, tanto bateu


co’a barriga, e co’as cadeiras,
que me deu a anca fendida
mil tentações de fodê-la
(Matos: 1990, p. 1065-6).

Como parece evidente, na poesia fescenina do poeta baiano, o amor


ganha uma conotação acentuadamente erótica, em que a persona poética
se deixa levar por impulsos carnais, o que nos possibilita estabelecer um
flagrante contraste, em diversos aspectos, desde o tom do texto até a
escolha do vocabulário, entre essa abordagem da mulher mestiça ou
negra e os poemas líricos de temática amorosa. Enquanto estes enfocam
majoritariamente a musa branca, de elevada classe social e apta ao
casamento, a poesia fescenina é primacialmente destinada às negras e
mulatas.

Reiteremos: o poeta dispensa um tratamento refinado à mulher


branca, em tom respeitoso, utilizando linguagem erudita e imagens
religiosas, enquanto o amor carnal, o deboche, a vulgaridade e a ironia com
que ele se dirige à mulher mestiça revelam que, nas palavras de Alfredo
Bosi, “o preconceito (...) desce ao subterrâneo de uma prática erótica onde
se geram, íntima e simultaneamente, a atração física, a repulsa e o sadismo”
(1992, p. 106).

Para concluir, pode-se afirmar sinteticamente que, na poesia


atribuída a Gregório de Matos, o tratamento dado à mulher apresenta-se
sob o signo da dualidade, oscilando entre a atitude contemplativa, o amor
elevado, à maneira dos sonetos camonianos, presente nos poemas líricos, e
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uma atitude mais carnal, podendo chegar à obscenidade, em sua vertente


satírica dominante, em que se verifica a presença do estereótipo misógino
da mulher predisposta naturalmente ao pecado. De todo modo, na época
em foco, o desejo sexual erigia-se como apanágio exclusivo dos homens,
atributo, aliás, confirmado pelo grande número de emissores de um discurso
sobre o corpo da mulher, ao passo que quase não havia lugar para falas
femininas sobre a sua própria sexualidade.
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Bibliografia

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