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Livro: Maria Madalena e o Santo Graal de Margaret Starbird

CAPÍTULO IX
O Deserto Florescerá
A lenda afirma que o Graal restaurado terá o poder de recuperar a terra devastada.
Quando ele for devolvido ao Rei Pescador, será capaz de curar suas feridas, as origens da
desolação, que impera em seu reino. E o Graal, como sugerimos, é o feminino perdido - a
Noiva-Irmã do cristianismo, a esposa de Jesus. Como teria sido o nosso mundo se a Noiva da
cristandade jamais tivesse sido esquecida? E como será ele quando ela for reabilitada?
O desequilíbrio de nossas instituições fundamentais, refletindo um Deus-Pai no topo de
uma trindade totalmente masculina, tem exercido uma influência devastadora no mundo
ocidental. Com o ritmo acelerado dos acontecimentos, em razão dos avanços científicos dos
últimos trezentos anos - especialmente dos últimos cinqüenta -, a fratura na sociedade ocidental
e na psique humana tornou-se cada vez mais aparente. A poluição em nosso planeta e o
flagrante abuso de seus filhos estão intimamente relacionados a essa falha essencial.
Se não tivéssemos perdido a Noiva, o feminino teria sido estabelecido desde o início
como parceiro igualitário da deidade masculina. As preferências e qualidades femininas teriam
sido honradas com a mesma intensidade no passar dos séculos e a integração resultante na
psique dos indivíduos teria se disseminado em suas famílias e comunidades. A negação do
feminino como parceiro e amigo nos roubou o êxtase e reduziu as relações entre homem e
mulher a uma sombra distorcida da alegria compartilhada pelo casal arquetípico no jardim. O
masculino ferido, em geral excessivamente mimado e profundamente frustrado, procura o seu
êxtase perdido em lugares errados - na violência, no poder, no materialismo e na busca
hedonista do prazer -, sem entender que ele só pode ser encontrado na relação com o feminino.
Uma das realidades mais tristes de nossa cultura é o fato de o predomínio do masculino
ferido ter levado ao esgotamento emocional. Nas situações em que o feminino não é valorizado,
um homem não tem verdadeira intimidade com sua contraparte, sua "outra metade". Com
freqüência, ele não consegue canalizar suas energias para uma relação amorosa, uma vez que
a sua parceira não é considerada digna e respeitável. Privado de seu oposto igual, o frustrado
macho dominante provoca uma combustão: "Onde o Sol sempre brilha há um deserto sob a
terra." As florestas morrem, os rios secam, a terra se fende. A devastação prevalece.

O Paradigma da Completude
O Santo Graal, a Noiva Perdida de Jesus, é a parte que está faltando em um antigo
paradigma da completude. Havia uma mandala reverenciada nas culturas mais antigas que há
muito tempo foi esquecida pela civilização ocidental. Ela era baseada nos símbolos arquetípicos
de macho e fêmea, na "lâmina" masculina e no "cálice", ou Graal, feminino. Essa mandala
santa é o símbolo do Casamento Sagrado. É significativo observar que esse mesmo símbolo é
encontrado nos escritos esotéricos dos mestres alquimistas medievais, que o identificavam
como a "pedra filosofal" da transformação espiritual. O modelo esquecido do Casamento
Sagrado entre homem e mulher, céu e terra, ainda é uma mandala da harmonia, da completude
e do companheirismo.
No período neolítico, segundo estudos recentes, houve uma época de ouro em que as
diferenças entre macho e fêmea não envolviam uma acirrada luta pelo controle. Em vez disso,
os relacionamentos fundavam-se em um companheirismo no qual os dons naturais masculinos
e femininos eram aceitos e apreciados. Esse período da pré-história, que já se acreditou ser um
mito, pode agora ser reconstituído por meio de artefatos encontrados em locais onde viveram
civilizações que adoravam uma graciosa e generosa Deusa-Mãe. Descobertas arqueológicas
comprovam a existência de sociedades nas quais os dons femininos - alimentação, cuidados,
carinho e educação das crianças - eram honrados; nas quais a "lâmina" servia para cultivar a
terra, e não para intimidar. Considerava-se a vida sagrada, os artistas e a sua arte floresciam e
a criatividade era motivo de celebração.
Pesquisas fascinantes realizadas em todo o mundo sobre essas antigas culturas e
sociedades de orientação maternal foram compiladas por Medin Stone, Marija Gimbutas e
Riane Eisler, para citar apenas alguns estudiosos. Descobertas recentes revelaram que em
numerosos santuários paleolíticos e neolíticos, datados de 7000 a 3500 a.C., a letra V era
associada à Deusa-Mãe. A conclusão de Marija Gimbutas, antropóloga cultural que encontrou
esse ideograma nos santuários da antiga Europa, é de que o V foi usado nos manuscritos da
região e pode ter sido uma representação da deusa manifestada como uma ave.
O estudo do simbolismo arcaico me faz questionar a conclusão de que o V
representava uma ave. Na verdade, o V é um símbolo arcaico do "recipiente" ou "útero" de
todas as formas de vida. Ele é o cálice arquetípico e simboliza a própria Terra, o único planeta
que conhecemos onde existe vida.
Gostaria de sugerir que os símbolos arquetípicos de masculino e feminino (1\ e V)
retratam um distante dualismo que pode ser recomposto e utilizado para formar um antigo
paradigma da completude. Essa imagem visual é, obviamente, o hexagrama. Na antiga doutrina
da índia, o Casamento Sagrado do deus indiano Shiva e sua contraparte, Shakti, é
representado por essa forma geométrica. De sua sagrada Dança Cósmica dos Opostos, que
simboliza a interação entre as forças positiva e negativa, a harmonia se dissemina por todos os
aspectos da vida das pessoas. Esse equilíbrio se reflete no bem-estar da comunidade e na
fertilidade de suas colheitas e de seu gado. O hexagrama parece ter se difundido na direção do
Ocidente, da Índia ao Oriente Médio e da Europa.
Embora o nome Eros tenha outras conotações, vou utilizá-lo para representar o
princípio feminino do amor e da coesão no sentido junguiano, vinculado ao poder e à luz. Esses
dois princípios são chamados yin/yang na filosofia oriental. O abandonado princípio do
Eros/coesão, representado pelo V da Grande Deusa, tem sido desvalorizado no decorrer dos
séculos, desde aquele longínquo milênio, quando ele foi reverenciado. Vez por outra, o apreço
pelo feminino surge e é reprimido. Nós já analisamos evidências do breve esplendor da rosa
vermelha, a Noiva em Provença, no século XII, antes de ela ser forçada pela Inquisição a entrar
na obscuridade.
Nossa adoração de uma imagem exclusivamente masculina de Deus é, ao mesmo
tempo, desvirtuada e perigosa. De acordo com o princípio "Assim na Terra como no Céu", as
preferências e a dominação masculinas fazem com que a sociedade forme instituições
baseadas em um modelo "masculino", com o poder concentrado no topo e as massas
exploradas aprisionadas na base. Esse é o padrão das ditaduras e da opressão. Em uma
sociedade em que o feminino recebe um quinhão igual, as crianças são alimentadas e as viúvas
são consoladas; artes, literatura, música e dança são encorajadas; a infância é feliz; o trabalho
é produtivo; e as pessoas vivem em harmonia.
É interessante observar que após o milênio das guerras - e o conseqüente flagelo de
pragas e fome que se seguiu -, as terras mediterrâneas dos impérios grego e romano, nos
séculos que antecederam o nascimento de Jesus, desenvolveram um amplo culto de Ísis,
Rainha do Céu e da Terra. Marie-Louise von Franz, estudiosa e intérprete dos trabalhos do
psiquiatra Carl Jung, atribui esse culto da deusa ao fato de o sistema de consciência masculino
desgastar-se. De fato, ele acaba atingindo a combustão total dada a excessiva ênfase que
dedica às realizações mentais - ou do logos. Depois de algum tempo, ele precisa descansar das
frenéticas atividades voltadas para o alcance de objetivos e procura sossego e abrigo no
feminino, na sombra e na noite.
Em Alquimia, Marie-Louise von Franz observa que no fim de uma civilização patriarcal
aparece a "enantiodromia" - o poder do princípio masculino "exaurido" é passado a uma
"deusa" e, mais tarde, reafirma-se na nova era, que, em seguida, institucionaliza novas idéias e
uma direção cultural diferente. As imagens desgastadas dos velhos tempos são abandonadas e
outros arquétipos são encontrados para transmitir a mensagem.
Esse fenômeno foi ilustrado na vida da Igreja cristã primitiva quando os patriarcas
tomaram o evangelho de Jesus pregado nas ruas e o institucionalizaram com normas, rituais e
tratados escritos. O princípio feminino da coesão era a prática inicial das primeiras
comunidades cristãs, nas quais a unidade do Espírito havia dissolvido classes e barreiras
sexuais, permitindo que mulheres e escravos participassem inteiramente da vida do grupo -
consentindo até que pregassem e profetizassem. Menos de um século após o seu
estabelecimento, a liberdade e a igualdade dadas as mulheres, escravos e estrangeiros por
meio da mensagem cristã já estavam sendo repensadas pelos homens no comando, e novas
regras de comportamento ético e de práticas religiosas passaram a ser formuladas. A era da
parceria teve vida curta, pois foi sobrepujada pelo retorno do papel masculino dominante e da
relativa subordinação da mulher na Igreja e na sociedade como um todo.
O modelo hierárquico de instituições patriarcais, no qual todas as decisões e todo o
poder estão nas mãos do governante autocrático ou da oligarquia, que fica no topo, está
perdendo a vitalidade no despertar da poderosa consciência feminina que começa a se
expressar no mundo moderno. Essas instituições, que pregam a obediência total como a maior
de todas as virtudes, começam a ruir sob a influência feminina da liberdade de pensamento, da
criatividade, da intuição e da coesão. Isso conferiu visibilidade gradual aos valores que a
mulher, tradicionalmente, considera mais relevantes, como a educação dos filhos e os cuidados
com eles, bem como o aprimoramento da qualidade de vida. Sob a influência do princípio
feminino ressurgente, existe a esperança de que todos os povos ainda venham a ser iluminados
e passem a tratar com carinho da singular dádiva da vida da qual esse planeta "que carrega
água" é o guardião. A "voz da noiva" (Jeremias 33: 11) está, finalmente, sendo ouvida.
O primeiro sinal que Winston Churchill utilizou como símbolo da determinação dos
aliados em vencer a Segunda Guerra Mundial foi a letra V. Por um lapso do inconsciente, esse
símbolo tornou-se, desde então, o sinal universal dos movimentos democráticos por todo o
planeta. Conscientemente ou não, esse "cálice", a letra V, é uma invocação da deusa e
representa o princípio feminino do Eros/coesão. Mas o V não pode ficar só - uma sociedade
baseada apenas no modelo \l por certo irá tombar. Ele vai sempre precisar da contrapartida do
logos/razão, que se manifesta nas leis, na ordem, na disciplina e no autodomínio, para produzir
o equilíbrio do hexagrama.
Os líderes das sociedades patriarcais, "os guardiões dos muros" (Cântico dos Cânticos
5:7), não compreendem a ferida que provocam em si mesmos quando negam a sua contraparte
feminina enquanto lutam para manter o seu poder e o status quo. Uma história muito
interessante é contada sobre São Tomás de Aquino (1225-1274), o grande articulador e
definidor da doutrina católica e um dos principais arquitetos dos muros da Igreja oficial de
nossos dias. São Tomás é o protetor contra a morte súbita. Parece que, pouco antes de morrer,
esse estudioso sacerdote não conseguiu continuar a escrever sua obra, a Suma teológica, e
declarou que todos os seus escritos eram como palha! Pouco tempo depois, ele estava viajando
no lombo de um jumento quando bateu fortemente a cabeça no galho de uma árvore e caiu do
animal. Naquela noite, sentindo-se abalado e doente, ficou em um mosteiro nos Alpes austríacos.
Os monges o persuadiram a sair da cama e dividir com eles um pouco de sua
sabedoria, e São Tomás não se negou a fazê-lo. O tópico por ele escolhido foi o Cântico dos
Cânticos; mas, quando dava sua interpretação do trecho "Venha, meu amado, saiamos ao
campo, passemos a noite nos pomares" (7:14), morreu subitamente.
A Escritura que esse santo considerava mais preciosa foi o tema de seu discurso final,
o cântico do Casamento Sagrado! É uma pena que esse episódio revelador tenha sido
esquecido, enquanto a Suma teológica continue a ser ensinada em seminários por todo o
mundo mesmo tendo sido repudiada há séculos pelo próprio autor! Os "guardiões dos muros",
obcecados por manter a ordem e o controle, conseguiram evitar que a Noiva se tornasse uma
parceira igual. A desvalorização do feminino deve ser revertida, não para ocupar o lugar do
masculino, mas para assumir o papel da contraparte há tanto tempo desejada, a Noiva-Irmã
Perdida. Juntos, eles precisam correr pelos campos para preparar a terra, semear e colher.
Existe uma antiga promessa nos salmos da Bíblia hebraica: "Os que semeiam com
lágrimas ceifarão com alegria... e voltarão com júbilo trazendo consigo os seus feixes" (Salmos
126: 5-6). Essa passagem profetiza o retorno dos remanescentes de Israel do exílio na
Babilônia. É hora de, mais uma vez, deixar a "Babilônia", símbolo do império adorador do Sol e
do poder, e retomar à Terra Prometida, "onde correm leite e mel", onde os princípios masculino
e feminino são celebrados juntos, em parceria, e onde a * é a base da completude.
Há muitos séculos, o Logos masculino tem sido entronizado à direita de Deus, adorado
e glorificado nas orações e na consciência cristãs, levando a civilização ocidental a uma
tendência "direitista". É hora de reivindicar o Eros, o aspecto nupcial da divindade. Nós já
conhecemos o Logos de Deus - a Palavra que se fez carne em Jesus. Agora, precisamos
passar um tempo com a Dama do Jardim, nos regozijando com sua bondade, ternura,
preocupação e compaixão pelos anawin. Esses pequeninos, as "uvas secas de Deus", têm sido
causticados e ressecados sob os impiedosos raios do princípio masculino dominante.

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