Você está na página 1de 5

Universidade do Estado da Bahia. 2022.

UNEB, DCH-IV, 2022.2


Docente: Cândido Domingues
Disciplina: Capitania da Bahia (Bahia Colonial)
Discente: Aislan Nascimento Alves Pedroza

RESENHA

MACHADO, Emily de Jesus. Mulheres Inquietas: Bigamia feminina no atlântico português


(séculos XVI-XIX), dissertação (mestrado em História), UFBA, 2016, p. 20-55.

Capítulo 1 – ‘’Mais propensas às lascivas da carne’’: o delito de bigamia e as imagens


sobre a mulher na Europa moderna.

O capítulo inicia-se com a autora descrevendo sobre Maria Coelha, em Lisboa no


século XVIII, onde era uma criada e considerada cristã-velha de aproximadamente 40 anos,
que conhece um marinheiro chamado Sebastião de Arruda e logo se casa com o mesmo.
Entretanto, a autora mostra que houve ‘’segundas núpcias’’ e atitudes bigâmicas por parte da
Maria. Assim, os seus levantamentos e a sua tese são muito bem pontuados nessa pequena
introdução, pois Emily Machado demonstra que, apesar do matrimônio e o sacramento, todos
impostos pelos padrões da igreja, obteve vários exemplos de que essa formação casamento
não eram muito bem viáveis durante aquele período, pois, como exemplo de Maria e
Sebastião, houve diversos processos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo do Tribunal de
Santo Ofício referente as mil denúncias de bigamia e 234 mulheres foram processadas, todas
cristãs-velhas. Logo, a autora trouxe de uma maneira bem firme e objetiva todo o contexto de
uma cultura patriarcal ocidental da Época Moderna que envolveu toda a Europa para se
justificar a essas ocorrências, pois este só viria a ter soberanias masculinas e governos apenas
para os homens.
Além disso, apesar das documentações serem limitadas, levando os fragmentos das
vidas de mulheres referente apenas aos seus ‘’delitos’’, Machado fez bem em demonstrar que,

1
Universidade do Estado da Bahia. 2022.2

apesar do contexto da época, onde detinha controles e dominações das instituições


eclesiásticas e civis, padronizando os comportamentos das mulheres e as colocando em um
lugar social inferior, haviam uma resistência de vastas vivências (e sexualidades) femininas
que se aderiram à bigamia como uma maneira de realizar os seus desejos.
Ademais, Machado desenvolve bem o seu capítulo para a compreensão dos contextos
da Igreja e Estado sob os atos de bigamia, para isso, ela faz com que os seus leitores voltem
ao passado na história para se ter um maior conhecimento sobre o assunto. A bigamia,
segundo a autora, é criminalizado desde o século XV, dentro das legislações portuguesas,
sendo pecado e crime, tendo punições dos dois lados: eclesiásticas e civis. Entretanto,
houveram existências de outros crimes, mas se diferia da bigamia, pois o adultério, a
concubinagem e a barregania eram considerados ‘’fraquezas da carne’’ e não ofendiam
diretamente a santidade do sacramento, logo os crimes seriam menos severos que o primeiro,
onde esse ofendia diretamente a santidade do sacramento como um ‘’desrespeito’’, fazendo
com que estivesse sob a jurisdição da inquisição. Contrapondo a questão que a Época
Moderna, não se tinha muitas dominâncias eclesiásticas sob as matérias matrimoniais, pois
estes estariam sob vigilância do Estado, principalmente da vida sexual das mulheres, mas,
segundo a autora, nem sempre implicou em ter um modo único de se casar. Trazendo visões
de François Lebrun e Jean Gaudemet sobre o consentimento mútuo sobre os ‘’nubentes’’ e a
normatização inserida no século XII pelo Concílio de Verona, ‘’não negava a validade de
outras formas tradicionais de casamento e nem mesmo delimitou de forma estanque o sentido
e valor do sacramento.’’, Emily Machado demarca que essas não seriam apenas características
de relacionamentos amorosos legítimos nas sociedades medievais europeias, pois ela
demonstra que, durante o período da Baixa Idade Média, houveram existências múltiplas de
casamento e todas aceitas pela sociedade, mas somente nos séculos XII-XV se tem as
intervenções mais firmes das igrejas nas formas de casar, nas tentativas em disciplinar a
sociedade e nas ‘’purificações’’ das relações afetivas, tornando apenas o molde de matrimônio
da igreja como legítimo, existindo outras formas válidas, porém ilegítimo.
Ainda assim, a autora traz as abordagens da Historiadora Isabel M. R. Mendes
Drummond Braga de maneira explicadamente sobre os tipos de ‘’casamentos clandestinos’’
(onde, segundo Lebrun, seria uma maneira corriqueira das classes populares de efetuar-se um
matrimônio, sem a presença de um pároco, apenas por contrato) que coexistiram em Portugal
com o modelo rígido estabelecido pela igreja: casamento de juras; casamento a furto e
casamento de pública fama.

2
Universidade do Estado da Bahia. 2022.2

Contudo, a autora disserta inteligentemente sobre o porquê que o Estado intervia


bastante nas formações matrimoniais, com isso, ela trouxe a explicação de João Bernardino
Gonzaga que demonstra o ‘’crime‘’ e o ‘’pecado’’ da bigamia sendo punida através de leis
civis, pois este era uma ameaça para uma estrutura de controle social e da ‘’paz coletiva’’,
pois ‘’A desordem nas formas de casar poderia levar à desordem hierárquica.’’. No entanto,
mostra-se também o interesse do Estado sob as relações matrimonias das elites, porque esses
causariam mais impacto, já que a nobreza era fundamental para a coroa e envolviam, muitas
das vezes, determinava as alianças de títulos, heranças, fortunas, ascensão social e capacidade
de formar alianças no ultramar metropolitanos de colonização e povoação, retirando o foco
das camadas populares, já que essas estavam distantes de serem importantes tanto quanto os
nobres. Além disso, apesar de todo um esforço da igreja e do Estado em padronizar de
maneira legítima as relações e das penas serem de morte para os homens e mulheres que
cometessem tais atos, não foi suficiente para inibi-las, pois, no século XVI ao início do XIX,
ainda se faziam presentes dentro das comunidades portuguesas no reino e no ultramar nas
expansões marítimas (sendo esses causadores de um grande desequilíbrio matrimoniais por
causa das separações), com diferença do marinheiro Sebastião de Arruda e Maria Coelha.
Sendo esta que quebrara as regras e foi juntamente com o seu novo marido residir em
Salvador, pois, sob tais circunstâncias, ela e mais mulheres obtiveram esses desejos de se
casarem novamente para deixar para trás toda a dor que sofreram com a separação ou até
mesmo de maus tratos físicos e situações que as reprimiam.
Sendo assim, um capítulo e uma dissertação de muita importância, pois Emily
Machado veio desconstruindo toda ideologias, práticas, fundamentos e legislações que ainda
se faz presente nos momentos atuais, de maneira que trouxe de forma coesa e objetiva,
levantando historiadores importantes para a sua pesquisa, trazendo exemplificações claras de
como as relações matrimoniais monogâmicas foram uma construção. Tem-se como exemplo
claro as relações amorosas entre os indígenas que, segundo a autora, eram relações flexíveis e
poligâmicas, onde foram muitas vezes demonizados pelas interpretações e escritas dos
portugueses que levaram até a catequese para a imposição dos moldes da metrópole a esses
povos da terra.
Para concluir, a autora traz uma figura importante de resistência que a sociedade deve
lembrar e ter conhecimento dela, a Maria Coelha. Essa que resistiu em casar-se com Antônio
Luiz Cabougueiro aos 15 anos, onde protestou, segundo Machado, veemente contra esse
matrimônio onde o rapaz era irmão do Matias, homem com quem Maria nutria afeto, e era

3
Universidade do Estado da Bahia. 2022.2

‘’mui velho e viúvo’’, porém não foi suficiente e acabou-se indo casar, forçadamente, na
Igreja de Santa Luzia. Entretanto, não foi possível realizar tal ato por Maria ter ficado aos
‘’grandes prantos’’e, logo depois, castigada, mau tratada, forçada pela terceira vez, casou-se
com Antônio. Sendo assim, Emily Machado retrata veemente as misoginias sofridas pelas
mulheres vindos da sociedade europeia e da ideologia cristã de que as mulheres sejam iguais a
Virgem Maria, ‘’aquela capaz de redimir a humanidade através da obediência, restaurando o
que foi perdido pela desobediência de Eva.’’, o que estava longe de ser, principalmente para
as mulheres de estratos médios e baixos. Tudo isso se encaixa no sentido do controle do
patriarcado sob os corpos e sexualidades femininas, onde era (e ainda é) entendida como ‘’a
faceta mais perigosa das mulheres’’, tendo o matrimônio como uma maneira de controle,
adequando aos objetivos, costumes, ideias da Igreja e do Estado, porém eram baseadas de
acordo as suas funções sociais, foco excessivo perante suas sexualidades e invisíveis perante a
lei, causa excepcionalmente relacionada as Ordenações Afonsinas, onde só eram presentes
para as suas demarcações e exclusões das suas figuras em espaços públicos (com exceção das
mulheres nobres).
Logo, apesar das perversidades e inumanidades do patriarcado, as resistências
femininas seguiram adiante, como no caso de Maria Coelha, forçada e agredida a se casar,
ainda continuou resistindo e fugiu para Lisboa, construindo uma nova vida, onde encontrou-se
com o seu novo marido, mas no interrogatório inquisitorial, em 1707, mesmo resistindo até o
fim, Maria se confessou, foi punida com açoites e degredada por sete anos para Angola, por
causa de sua vontade em viver a sua sexualidade e afetos de maneira livre. Por fim, a
dissertação é fundamental para os estudos e analises das mulheres e suas resistências perante a
Igreja e o Estado, é dolorosa para as leitoras mulheres até por ser recente, apesar das
evoluções nas jurisdições e da sociedade. Assim, para concluir, a demarcação do caso de D.
Gertrudes Margarida de Jesus, autora da obra Primeira Carta Apologética, em favor, e defensa
das Mulheres publicada em Lisboa, em 1761, foi e é uma fundamental resposta para todo o
sistema patriarcal da época, onde Emily Machado fez com que chegasse, de maneira ampla,
essa narrativa nas mãos de atuais historiadores e estudantes “[...] agora em defensa do meu
sexo, quando me vejo insultada, procuro a defensa com as mesmas armas, com que me vejo
ofendida”.

4
Universidade do Estado da Bahia. 2022.2

Você também pode gostar