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2012v2n4p144-178
INICIAÇÃO E PAIXÃO
a tensão dialética entre Eros
e Agape em dois romances
de Clarice Lispector
Arquivo recebido em
1 de outubro de 2012
Resumo
e aprovado em O presente trabalho pretende identificar,
20 de novembro de 2012 a partir de dois romances da autora – Paixão
segundo GH e Uma aprendizagem ou O Livro
dos Prazeres – a experiência do Absoluto e a
interação dinâmica entre Eros e agape repre-
V. 2 - N. 4 - 2012 sentadas por um mergulho “kenótico” no co-
ração da matéria e um processo de iniciação
*
Pós-doutora em Teologia pela corpórea em direção à interlocução radical e
Katholieke Universität Leuven (2005), totalizante com a alteridade do outro. Assim
doutora em Teologia Sistemática pela fazendo, pretendemos seguir um itinerário
Pontifícia Universidade Gregoriana que nos levará até a caracterização da expe-
(1989) e mestra em Teologia pela
Pontifícia Universidade Católica do riência de Deus presente na obra de Clarice
Rio de Janeiro (1985).Graduação em e a interface que sua obra literária pode fazer
Comunicação Social pela PUC-Rio (1975) fecundamente com a Teologia e a Mística.
Co-fundadora do grupo Apophatiké
de Mística e Filosofia, Co-fundadora Palavras-chave: Clarice Lispector,
da Associação Latino Americana Teologia e Literatura, Teologia e Mística, Eros
de Teologia e Literatura (ALALITE). e Agape
Coordenadora latinoamericana e membro
da Ecumenical Association of Third
World Theologicians (EATWOT); do Instituto Superior de Estudos de Religião (ISER) e do Centro
João XXIII de Investigação e Ação Social (CIAS/IBRADES). Fundadora e coordenadora do Centro
Loyola de fé e cultura da PUC-Rio (1994-2004). É membro desde 2007 do Conselho Editorial da
Revista Internacional de Teologia Concilium, bem como outras mais revistas acadêmicas (Atualidade
Teológica, REB, Rhema, Perspectiva Teológica, Cadernos Adenauer, Theologica Xaveriana, Teoliteraria,
etc.). Trabalhos publicados mais importantes: Dom Oscar Romero. Mártir da libertação. (Org.)
Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/Santuário, 2012; Simone Weil: una mística en los límites.
Buenos Aires: Ciudad Nueva, 2011; Simone Weil. A força e a fraqueza do amor. Rio de Janeiro:
Rocco, 2007; GABELLIERI, E. (Org.). Simone Weil: action et contemplation. Paris: L’Harmattan,
2009; (Org.) As Letras e o Espirito: Espiritualidade Inaciana e Cultura Moderna. São Paulo: Loyola,
1993; YUNES, E. (Org). Bem e Mal em Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio / Uapê,
2009; YUNES, E. (Org.) Murilo, Cecilia e Drummond. 100 anos com Deus na poesia brasileira. São
Paulo: Loyola, 2004; PINHEIRO, M. (Org). Mística e filosofia. Rio de Janeiro: PUC_Rio/Uapê, 201;
A argila e o espírito. Ensaios sobre ética, mística e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
Teoliterária V. 2 - N. 4 - 2012
Abstract
This paper aims to identify, from the author of two novels - Paixão segun-
do GH e Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres - the experience of the
Absolute and the dynamic interaction between eros and agape represented by
a dip “kenotic” in the heart of the matter and an initiation process body toward
a radical and totalizing dialogue with the otherness of the other. In doing so, we
intend to follow a route that will take us to the characterization of the experience
of God present in the work of Clarice Lispector and the possible interface with his
literary work and the Theology, specially the Mystique.
Keywords: Clarice Lispector, Theology and Literature, Theology and
Mystique, Eros and Agape
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múltiplo.1
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4. ibid
5. Gregório de Nissa fala do amor seja com respeito à dimensão erótica como à
dimensão agápica. Cf. a primeira homilia sobre O Cântico dos Cânticos, in PG
44 (1), 767-784.
6. Cf. H. DUMÈRY, op. cit.
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7. ibid
8. A. NYGREN, Eros et ágape, Paris, Cerf, 2011, 3 vols
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9. Cf Celso, Discurso verdadero contra los cristianos, Alianza Ed., Madrid, 1989, ao qual
responde Orígenes com sua obra Contra Celso. Ed. Biblioteca de Autores Cristianos.
Madrid, 2001
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15. RJ, Rocco, 1964. Optamos por examinar primeiro o livro posterior por uma razão
teológica e não literária. Parece-nos que assim o percurso teológico de Clarice fica mais
claro para o leitor.
16. Não deixa de ser significativa a origem desse nome tão pouco usual.
Lorelei (ou Loreley) é um rochedo localizado junto ao rio Reno, próximo à Sankt
Goarshausen, no estado alemão de Renânia-Palatinado, elevando-se à 120 metros
acima do nível do mar. O nome deriva de lendas germânicas sobre ninfas que
viviam nas águas. Secções cobertas de pedras, salientes, e partes com águas
pouco profundas, combinados com uma corrente, fazem deste um lugar pe-
rigoso. O Reno é um importante fluxo de água, e com o passar dos séculos,
numerosos marinheiros, especialmente os desprevenidos, perderam suas vi-
das neste local. Este rochedo está associado a diversas lendas originárias do
folclore alemão. Diz a lenda que lá vive uma bela moça com longos cabelos
loiros que quando os penteia gosta de cantar. Sua voz melodiosa hipnotiza os
capitães das embarcações que navegam pelo rio Reno. Todo o cuidado é pou-
co: o resultado é sempre trágico e os barcos, descontrolados, acabam batendo
na encosta e afundando.O mito existe há mais de dois séculos. Durante este
tempo, Loreley nunca envelheceu e continua viva na memória popular. O mito
da Loreley surgiu em 1801, quando Clemens Brentano, tido como o “pai” da
beldade loira, relatou pela primeira vez sua história durante uma viagem pelo
Reno. No livro, Ulisses mesmo explicará a Lori a origem de seu nome: “Loreley
é o nome de um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssi-
mo poema por Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus
cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar...” (cf. p. 98)
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Uma iniciação à vida verdadeira – isso será o que Lori realizará sob
a guia do amor expectante e paciente de Ulisses. A obra esmiúça as
dúvidas e anseios de Lóri, que com Ulisses experimenta pela primeira
vez o amor e o prazer, mas tem medo de perder a própria identidade
18. Assim é chamada Joana D´Arc na França: la vierge d´Orleans ou ainda La pucelle
(a donzela)
19. Uma aprendizagem...nota prévia à edição utilizada neste trabalho.
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Esta será sua travessia, sua “páscoa”, sua passagem para uma qua-
lidade maior de vida identificada como plenitude de existir e ser. “Estou
sendo”, dirá Lori em um de seus encontros com Ulisses. 20 Com paciência
infinita, Ulisses acompanha seu processo, viajando ao redor dela qual
fez seu homônimo grego, deixando Ithaca e saudoso de uma Penélope
eternamente bordando. Acompanha e espera. Entãoe um dia lhe diz
que não a procurará mais. Ela está pronta e ele vai dedicar-se a esperar
que ela um dia, sem avisar, venha. ‘Queria que você, sem uma palavra,
apenas viesse’21
20. Ibid, p. 71
21. Ibid, p. 139
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24. Ibid, p. 13
25. Ibid, p. 14
26. Idem: não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não
podia usufruir. Como não aproximar tal frase de Is 43: “Eu te chamei pelo nome,
és meu”?
27. Ibid, p. 35
28. Ibid, p. 37
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29. Idem.
30. Ibid, p. 38
31. Idem.
32. Ibid, p. 39
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em acolhida transfigurada.33
33. É o que parece dizer-lhe Ulisses quando diz: “pensei que poderia agir com
você com o método de alguns artistas: concebendo e realizando ao mesmo
tempo. É que de início pensei ter encontrado uma tela nua e branca, só faltan-
do usar os pincéis. Depois é que descobri que se a tela era nua era também
enegrecida por fumaça densa, vinda de algum fogo ruim, e que não seria fácil
limpá-la. Não, conceber e realizar é o grande privilégio de alguns. Mas mesmo
assim não tenho desistido.” Cf. p. 52
34. O itinerário da alma em direção a Deus, segundo Tomás de Aquino, se desenvolve
em duas etapas : a via ascética ou purgativa, que se dá pela purificação da alma e da
união da alma com Deus pela infusão dos dons e graças e graças na alma. É na união da
alma com Deus que se dá a contemplação pela infusão dos dons. A contemplação con-
siste, através desses dons, em obter a visão de Deus, contemplá-lo. Os mestres tomistas
da espiritualidade, muito especialmente R. Garrigou-Lagrange [Les Trois âges de la vie
intérieure, prélude de celle du Ciel. Paris: Cerf, 1938], estão de acordo em dizer que são
essas tres vias que conduzem a alma em direção a Deus : via purgativa (iniciantes), via
iluminativa (perseverantes que progridem) e via unitiva (perfeitos que contemplam, pela
infusão dos dons do Esp~irito Santo, a perfeição divina). http://www.aquinate.net/portal/
Tomismo/Teologia/tomismo-ascetica.html acessado em 20/11/2008
35. Ibid, p. 40
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Lori descobre que “a palavra de Deus era de tal mudez completa que
aquele silêncio era Ele próprio.” 37 Descobre igualmente que o caminho
do auto-conhecimento é angustiante, porém salvador. Tira o Ser do es-
tado de ruína e de esquecimento em que se encontra e o conduz à pas-
sagem para um humilde êxtase que é ao mesmo êxodo de si mesmo e
descoberta de si mesmo no “estar sendo”. É quando sentem “estar sen-
do” juntos e em comunhão que Ulisses e Lori encontram de fato o amor.
36. Ibid, p. 64
37. Idem.
38. Ibid, p. 71-72
39. Ibid, p.72
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Clarice coloca esse diálogo antes de Lori encontrar uma maçã, - que
é mais que a maçã perdida do paraíso – e dar-lhe uma mordida. E per-
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cebe que lhe foi dada não apenas a ciência do mal, que não é sabedo-
ria, mas também o conhecimento do bem. 46 Lori se percebe então em
“estado de graça”. 47 É após essa experiência que Ulisses detecta que
ela está pronta e que não a chamará, nem telefonará. Apenas esperará,
mudando a cada dia as rosas para que fiquem frescas e bonitas, até que
ela venha livremente. 48
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O livro inicia-se com uma vírgula e termina com dois pontos, dei-
xando evidente que a narração prossegue com a vida dos personagens
em andamento e finaliza também inconclusivo nos deixando a pensar
o que teria acontecido. Lori e Ulisses estão diante da porta aberta que
prenuncia as coisas que ainda virão, envoltos em esperança. Neles,
Eros e agape realizam o milagre do amor. Sua experiência iniciática,
sua aprendizagem, tem afinidades com a mística aventura da alma, ao
atravessar a noite escura, como no “Cântico Espiritual” de São João da
Cruz para enfim vislumbrar e contemplar o rosto do Amado.
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Neste livro também a autora faz uma nota prévia de alerta a seus
possíveis leitores: “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria
contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas
que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradual-
mente e penosamente - atravessando inclusive o oposto daquilo que se
vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar
que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem
G. H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se ale-
gria.” Assim também coloca uma epígrafe – não três – de uma frase de
Bernard Berenson59 : “A complete life may be one ending in so full identi-
fication with the nonself that there is no self to die.” 60
58. Ibid, p. 11
59. pseudônimo de Bernhard Valvrojenski (1865-1959) um estadunidense historiador de
arte, especializado na Renascença.
60. Uma vida completa pode ser aquela que termina em uma identificação tão plena com
o não ser que não há eu (self) para morrer.
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da, uma mulher vai fazer uma faxina no quarto de serviço. Mal começa a
limpeza, depara com uma barata. Tomada pelo nojo, ela esmaga o inseto
contra a porta de um armário. Depois, numa espécie bárbara de ascese,
decide provar da barata morta. Ao esmagar a barata, e depois degustar
seu interior branco, operou-se em G.H. uma revelação. O inseto a apa-
nhou em meio a sua rotina “civilizada”, entre os filhos, afazeres domés-
ticos e contas a pagar, e a lançou para fora do humano, deixando-a na
borda do coração selvagem da vida.” 61 Assim introduz um dos comenta-
dores de Clarice sua importante obra “A paixão segundo GH”.
Tal obra nos interessa aqui porque – segundo o mesmo José Castello
– encontra-se na narrativa de Clarice aí nesta obra uma experiência que
abre passagem para a reflexão sobre o mistério e a mística ou experiên-
cia de Deus. “Mesmo sem ser um livro de inspiração religiosa, G.H. tem,
ainda, um aspecto epifânico. Ao degustar a pasta branca que escorre da
barata morta, a protagonista comunga com o real e ali o divino - a força
impessoal que nos move - se manifesta. E só depois desse ato, que de-
sarruma toda a visão civilizada, G.H. pode enfim se reconstruir.” 62
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63. Cf. C. M. de OLIVEIRA, Por um Deus que seja noite, abismo e deserto: considera-
ções sobre a linguagem apofática, , RJ, PUC-Rio, tese doutoral apresentada ao departa-
mento de Letras, mimeo, 2010, p. 56
64. Idem.
65. Paixão segundo GH, p. 11
66. Ibid, p.18
67. Ibid, p.22
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ra viva e úmida, não mais seca ou estéril como era o resto de sua casa,
de seu mundo, de si própria.
Tudo porém não acabou ali. Não bastava entrar no quarto, con-
templar a barata, olhar em sua cara, sentir a vida que jorrava de sua
“umidade” branca. Havia agora que contemplar e sentir a proximidade
da massa branca que saía da barata e convidava... a que? Á vontade
de gritar diante daquilo que jorrava diante de seus olhos, G. H. sente
com mais força e vigor que ali está sua chance, sua oportunidade, sua
possibilidade única de entrar na vida verdadeira, no mundo tal como ele
é e ela o deseja. E ela apela à mão que a sustenta: “É que, mão que me
sustenta, é que eu, numa experiência que não quero nunca mais, numa
experiência pela qual peço perdão a mim mesma, eu estava saindo do
meu mundo e entrando no mundo.” 82
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“Como se ter dito a palavra “mãe” tivesse libertado em mim mesma uma
parte grossa e branca - a vibração intensa do oratório de súbito parou, e
o minarete emudeceu.” 94
supremo.” 95
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Porém agora, apesar do medo, não há como recuar. “Mas agora era
tarde demais. Eu teria que ser maior que meu medo, e teria que ver de
que fora feita a minha humanização anterior.” 104 G. H. percebe que teria
que dar adeus à beleza, que antes lhe fora um engodo suave.105 Terá
que aceitar que “agora meu mundo é o da coisa que eu antes chamaria
de feia ou monótona - e que já não me é feia nem monótona.” 106 É um
mundo “cru, é um mundo de uma grande dificuldade vital.” 107 G. H. vai
aceitando a consumação de seu despojamento, de sua purificação, que
a aproximam do passo final da comunhão.
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gem, da não palavra, quando falar com Deus é exercício mudo.108 Ela
percebe que enquanto estivesse estagnada no nojo – nojo da pobreza,
nojo da feiúra, nojo da caridade (beijar o leproso) – o mundo lhe esca-
paria e ela mesma se escaparia de si mesma. 109 Para G. H. chegara o
momento de não transcender mais, de encontrar a redenção na própria
coisa. “E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa
branca da barata”.110
Aí vai acontecer a páscoa de G. H. Seu processo kenótico fecha-
rá seu círculo. A descida despojante, humilhante, obediente, será con-
sumada. Sem concessões ou reduções. Pois aquilo era a graça, era o
amor, era – em suas palavras – o anti-pecado. 111 “ Ao preço de atravessar
uma sensação de morte. “ 112 É o que a faz sentir-se próxima e ao mesmo
tempo distante dos santos que beijam leprosos e tocam em feridas, em-
bora lhe faltasse a humildade destes. Em pleno nojo, náusea, vômito do
gesto feito, emerge a consciência de estar no epicentro da santidade, do
milagre. “A fé - é saber que se pode ir e comer o milagre. A fome, esta é
que é em si mesma a fé - e ter necessidade é a minha garantia de que
sempre me será dado. A necessidade é o meu guia.” 113
A G. H. foram abertas as portas não talvez da felicidade, mas da ale-
gria. “O que estou sentindo agora é uma alegria. Alegria vital. Através da
barata viva estou entendendo que também eu sou o que é vivo. Ser vivo
108. Ibid, p. 108: “Ah, falar comigo e contigo está sendo mudo. Falar com o
Deus é o que de mais mudo existe. Falar com as coisas, é mudo. Eu sei que
isso te soa triste, e a mim também, pois ainda estou viciada pelo condimento da
palavra. E é por isso que a mudez está me doendo como uma destituição. Mas
eu sei que devo me destituir: o contato com a coisa tem que ser um murmúrio,
e para falar com o Deus devo juntar sílabas desconexas. Minha carência vinha
de que eu perdera o lado inumano - fui expulsa do paraíso quando me tornei
humana. E a verdadeira prece é o mudo oratório inumano.”
109. Ibid, p. 110.
110. Ibid, p. 113.
111. Ibid, p. 111: “Mas eu sabia que não era assim que eu deveria fazer. Sabia
que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu
próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria
o antipecado: comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria a minha
pureza fácil.”
112. Idem.
113. Ibid, p. 114.
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Como diz o Papa Bento XVI, para ajudar-nos a encerrar nossa re-
flexão: “...o amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e
totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. ...o caminho para
tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto.
São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também
pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do Eros, não é o seu «enve-
nenamento », mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.
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