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RESENHA DO LIVRO: Quando a tristeza é bela. O sofrimento e a constituição


do social e da verdade entre os Ave de Jesus – Juazeiro do Norte-CE.

Article · January 2015

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Alcides José Delgado Lopes


Universidade Federal do Vale de São Francisco
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REIA- Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, ano 2, volume 2(1):2015

RESENHA: Quando a tristeza é bela. O sofrimento e a constituição do social


e da verdade entre os Ave de Jesus – Juazeiro do Norte-CE. Campos, R. B.
C. 2013. Editora Universitária UFPE, 186 p. ISBN: 978-85-415-0241-2.
Alcides J. D. Lopes1

Quando a tristeza é bela é apresentado ao leitor em um design simples e ilustrativo,


trazendo na capa a imagem de N. S. das Dores sobre uma composição de várias
tonalidades de azul esbatido sobrepostas formando assim um crucifixo e colunas de luz
assinada pela designer gráfico, Elvira de Paula.
O texto se encontra organizado em um prefácio, despretensiosa e gentilmente
escrito pela Cecília Mariz, Professora Associada do PPGCS – UERJ, que introduz ao
leitor uma obra concebida a partir da ampliação e do refinamento das ideias e discussões
em torno de várias questões, entre estas, a crítica ao fato da vertente emocional nas
pesquisas sobre penitentes ter sido deixada de lado em várias ocasiões pertinentes na
literatura nacional.
Seguem-se cinco capítulos precedidos de uma introdução nos quais são abordadas, a
origem do fenômeno, o carisma e a exemplaridade, a estética e a ação no mundo das
palavras, o sofrimento e a sacralização do espaço e o Tempo de Romaria a caráter de
conclusão. Ainda estão incluídas fotografias tiradas no campo de pesquisa, estas
pertencem ao álbum da autora.
O livro é assim fechado com as respectivas notas bibliográficas, uma breve nota
sobre a autora Roberta Bivar Carneiro Campos, professora do Departamento de
Antropologia e Museologia da UFPE e do PPGA e as orelhas assinadas pelo Professor
Emérito do PPGAS – UFRJ – MN, Otávio Velho, que sabiamente evoca o tema da
reconstrução da nação em uma direção pluralista e que para tal necessita-se de
complexificar a visão do Brasil, rompendo, segundo ele, com uma ditadura do modelo
único.
A compreensão do fenômeno da penitência a partir do ponto de vista antropológico,
através de etnografia cuidadosa e reflexão intelectual profunda em diálogo com ampla
leitura acadêmica, nos guia ao enquadramento que se dá na emergência de um
catolicismo autônomo da Igreja, com crenças, práticas e lideranças leigas locais

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Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE. Contato - e-mail:
tchida.pesquisa@gmail.com.

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próprias; como a vida baseada na penitência, a rejeição do poder institucional e a busca


da “communitas”.
A transformação das ordens religiosas em modos de vida adotados por indivíduos
enuncia uma tendência dialógica não excludente, estabelece uma relação com o conceito
turneriano da realidade social como processual e dinâmica como sendo consequência da
estrutura processual da própria ação social. Estabelece-se uma analogia entre o
Sebastianismo e a devoção à Padre Cícero para justificar estes fenômenos como
intrínsecos à origem do grupo estudado.
No Capítulo 1: Como tudo começou. Os Penitentes do Braço Sagrado de Jesus: Os
Ave de Jesus, O grupo vive em comunidade enfrentando restrições ascéticas e de
castidade, o que influi diretamente no número de integrantes. A dicotomia
sagrado/profano dá-se entre a comunidade e outsiders. Há prática de mendicância com
configurações e interdições específicas. Nas romarias, geralmente aos domingos,
durante o mês de maio realizam-se as rezas com maior intensidade e em junho, a festa
dos santos.
Na seção Dominando palavras, fabricando o mundo, Campos estabelece uma
relação entre a cultura sertaneja imagística e o conceito de “cultura bíblica”, cunhado
por Otávio Velho. A autora se refere a uma semiótica do sagrado para compreender a
dinâmica do uso de interpretações fantásticas do plano apocalíptico e a performance dos
escritos bíblicos. Assinala contrariedade entre a visão dicotômica do sagrado e do
profano em Émile Durkheim e a maneira que o grupo vê o profano, como algo fora da
comunidade. Campos estabelece uma analogia com o xamanismo, ao invocar que o
papel do xamã é tanto de ordenar, relacionando diferentes níveis de códigos, como
também de traduzir o mundo em uma síntese original. Concluindo, a autora infere a
importância da cultura e dos emblemas em um sentido já dado por Durkheim na
fundação de uma comunidade e na construção do sentimento de pertencimento a esta.
No Capítulo 2: Carisma e exemplaridade entre os Ave de Jesus: muito além da
dominação... Introduzindo deslocamentos, Campos se propõe a deslocar carisma do
lugar da dominação para o domínio da confiança e da verdade. Demonstra como se
constrói o carisma entre os integrantes do grupo, invoca a institucionalização do
communitas turneriano, a partir de onde problematiza algumas implicações teóricas
analíticas.

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A exemplaridade é construída a partir da prática corporal e afetiva do Cristo


crucificado e da mãe compadecida diante do filho, deduzindo assim, que tanto a relação
(como unidade estrutural simbólica) como a sua dimensão materializada e
emblematizada são partes inseparáveis da análise antropológica. A autora reitera que o
reforço dessa prática transborda o grupo e é adotada por outsiders que compartilham
deste sentimento.
Campos critica a forte tendência no uso acadêmico de reduzir carisma a um
relacionamento entre líderes nacionais e as massas organizadas e manipuladas e
contempla os dois aspectos da análise weberiana; a comunidade carismática e o carisma
da razão. Em seguida, a partir da ideia de uma comunidade de virtuosos, propõe ampliar
a ideia de carisma coletivo para carisma compartilhado. Campos investiga como se dá
este processo no carisma compartilhado, apresentando a ideia de dissolução individual
na coletividade e se propõe analisar a distribuição desigual do carisma. Por outro lado, a
autora foca na produção simbólica e prática do indivíduo carismático através da
mimesis e da exemplaridade, sugerindo que há uma convergência dos nativos e
antropólogos para a ideia do carisma como força criativa.
No que diz respeito à autoridade e a sua gerência dentro do grupo, a autora percebe
que o poder na comunidade significa também negociação e mutualismo. Respeito e
credibilidade variam de acordo com a obediência de cada um ao código moral. Campos
conclui afirmando que os Ave de Jesus estão organizados em um sistema social
altamente personalístico e que apesar da rigidez e disciplina, não se caracteriza como
uma forma de poder violenta.
No Capítulo 3: Dominando palavras, dominando o mundo: ou será que mestre José
está fadado ao mesmo destino de Dom Quixote? Negociando a verdade. Com relação ao
campo de pesquisa, Campos descreve um processo criativo no qual, antropólogas e
antropólogos encontram suas metáforas e outros tropos para representação das culturas,
das crenças e do modo de vida daqueles que são pesquisados. Na sequência, concilia
este processo criativo que se estrutura na interação pesquisador-pesquisado e aborda a
ação criativa do líder, entendendo-a como estruturada por uma lógica maior, no sentido
bourdieusiano de um habitus religioso e cultural local. Campos afirma que o grupo
estudado não se enquadra no “catolicismo popular”, antes se aproxima de uma religião
ascética e racional na tipologia weberiana.

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Na seção, Mas voltemos a José e sua costela, a autora narra a sua tentativa de
encontrar pistas da vida pregressa do mestre José. Ela expõe desde as informações do
Padre Murilo, às revelações feitas a ela pela a própria madrinha Regina. A autora fala
sobre as origens míticas e simbólicas da fundação da comunidade que jazem na história
de Mãe Ângela do Horto, à qual se mantêm ritos de celebração e benditos.

No Capítulo 4: Sofrimentos e sacralização do espaço: a produção de uma tradição,


Campos leva em consideração a prática religiosa da penitência, mas também inclui na
sua análise, os valores morais que fundam e sustentam esse modo de viver, tratando a
religiosidade sertaneja como manifestação cultural. Levando assim em consideração,
uma tradição que se consolidou ao longo do tempo, através de certa religiosidade e
moralidade, e se tornou reconhecida social e coletivamente como referência identitária
da região. A autora relembra o significado de Juazeiro como um santuário, ou cenário de
dramatização do sofrimento. Um tempo e um espaço onde se instaura o regime do
milagre, onde acontece certa continuidade do estado de liminaridade e do sentimento de
communitas e pode-se perceber tal força moral e cultural em ação, seja na reiteração,
seja na sua contestação.

Palavras, sentimentos, materialidade e socia(bi)lidade, é uma seção, onde a autora


demonstra a legitimidade da solidariedade como um elemento característico de
movimentos messiânicos no Sertão e descreve o seu caráter externo. Ao chamar atenção
sobre o enfoque teórico-metodológico do livro, Campos deixa claro que não está
interessada nas razões ou mecanismos de produção da socialidade. Segundo a autora, o
processo social de fabricação da realidade em termos de práticas sociais, inclui os
conceitos mágicos e religiosos como parte de um complexo de práticas.

A construção simbólica se dá por meio de imagens concretas, eventos e personagens


históricos que ligam-se diretamente a juazeiro, fazendo deste, um lugar essencial e
concretamente infundido pelo sagrado e que manifesta o extraordinário. O sofrimento
presente na fala dos penitentes é sinal da vontade divina, a tangibilidade da seca é signo
de sofrimento. No cenário são perceptíveis os processos simbólicos de enraizamento,
que põem em evidência a penetração do etos local, camponês e popular. A manifestação

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deste fenômeno perpassa outras dimensões. No discurso da identidade nacional, a autora


derrama luz sobre contrastes culturais e regionais. A conclusão do capítulo levanta uma
questão sobre o valor moral atribuído ao sofrimento, à pobreza e a fraternidade. De
acordo com Campos, entender o significado social e cultural do sofrimento para essa
gente é importante pista para chegar ao código moral que fornece a base de um modo de
vida construído na pobreza e na caridade.

No Capítulo 5: Tempo de romaria: milagre e tradição cultural, temporalidades em


coexistência, o modo como o tempo de romaria é experimentado por romeiros e
diferentes moradores de Juazeiro do Norte é objeto na análise que destaca a coexistência
de duas temporalidades; o tempo bíblico e salvífico. Na abordagem do fenômeno
secularização, a autora entende que o religioso está destinado a encontrar a sua forma
mais autêntica, não mais na transcendência vertical, mas sim, a partir de experiências
inteiramente autônomas entre indivíduos. Campos concorda com a proliferação de
autores que destacam o fenômeno da desregulação e do enfraquecimento institucional
como marca da sociedade contemporânea, alguns deles usando metáforas para a
experiência religiosa marcada pela subjetivação do religioso. O enfraquecimento das
instituições e a intensificação do processo de globalização são marcas da modernidade e
promotoras do surgimento e expansão de experiências religiosas com modos de
identificação mais autônomos do que regulados. A autora não deixa passar em branco o
fato de que o mundo contemporâneo, principalmente através dos meios de
comunicação, foi capaz de transformar em experiência vivida grandes extensões de
tempo abstrato. Segundo Campos, apesar da modernidade ter construído um tempo
universal, não se pode dizer que exista um tempo social único.

Na seção: Seguindo de perto uma provocação: Juazeiro do Norte, em um breve


histórico de Juazeiro, Campos confere uma religiosidade fabricada a partir de uma
multiplicidade de práticas e sentidos. Ressalta que a imagem do
sofrimento/Paixão/compadecimento tem sido contestada, e em alternativa tem sido
incluída a metáfora do Exodus. Na sua interpretação sobre a religiosidade do grupo, a
autora afirma que este grupo de penitentes faz uso da simbólica do sofrimento para a
produção de seu modo de vida e visão de mundo, ajudando na construção e reprodução

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de uma Juazeiro mítica. Na verdade, Campos defende que estas práticas são mais que
representação, sendo em verdade uma forma de presentificação de uma verdade. A
natureza ambígua da romaria é explorada nesta passagem, em que ela pode ser
considerada como revelação, verdade superior, heteronomia de um lado, e de outro, ser
vivida como encapesinamento, que leva à vergonha de si. A reflexão sobre a
multiplicidade da experiência em tempos de romaria aponta para um quadro complexo
de temporalidades em coexistência.

Na seção: A viagem de volta: encontro consigo mesmo, através dos relatos de três
interlocutores, naturais de Juazeiro, a autora salienta a estreita relação da romaria com
tradição em oposição ao moderno. As narrativas revelam que jovens que são
influenciados pelo urbano passam a desvalorizar os modos tradicionais. Somente no
tempo de romaria, torna-se fundamental para a construção de identidades reinventadas
por estes jovens nascidos em Juazeiro, em famílias marcadas por catolicismo tradicional
local. Isso devido ao sentimento de pertencimento reforçado por ocasião da romaria.
Segundo a autora, isto aponta que mesmo com a multivocalidade no santuário de Padre
Cícero, o tempo de romaria é marca cultural e de identidade do lugar.

Na última seção: Uma peregrinação sagrada: a viagem de um peregrino em busca


de si, em uma breve biografia do informante, as declarações da sua adolescência
confirmam a fase de negação, em seguida ele tem a experiência de experimentar o
mundo, vivenciar outros espaços de interlocução para a construção identitária, o
discurso do regresso aparece nas suas narrativas. Campos defende a importância da
busca por abordagens que deem conta da conjugação de formas diversificadas de
pertencimento e crenças que desafiam as categorias analíticas tradicionais das ciências
sociais. Segundo ela, o esforço analítico é imperativo em face ao processo de
individualização da crença, e também o é para compreender como práticas religiosas
comunitárias são produzidas a partir de novos condicionamentos sociais que se
articulam com arranjos e itinerários individualizados cada vez mais diversificados. Nas
suas conclusões finais, Campos reflete sobre a maneira como pesquisadores são
desafiados a enfrentar a situação metodológica e epistemológica na construção do outro,
de seu conhecimento e/ou de sua crença, considerando que antropólogos e nativos se

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auto constituem no processo inventivo da cultura. Finalizando, faz uma observação


contundente sobre a compreensão antropológica das experiências religiosas flutuarem
na articulação reversa e simétrica entre as categorias do nativo e as do antropólogo.

O escopo desta obra construído a partir da vivência dos Ave de Jesus é, a meu ver,
fascinante por várias razões. Primeiramente, por trazer para uma discussão mais ampla,
questões de cunho metodológico e pertinentes para o cenário diverso das religiosidades
e identidades no Brasil, em um momento que revivemos antigas tensões e novas
perspectivas se despontam em um horizonte teórico. Em segundo lugar, porque celebra
uma abordagem que dá conta de como se conjugam formas diversificadas de
pertencimento e crenças que, nas palavras da autora, desafiam as categorias analíticas
tradicionais das ciências sociais. Em terceiro lugar, o grupo estudado representa uma
herança identitária corporificada, um acervo cultural do Juazeiro do Norte, na qual se
amplia a ideia de carisma coletivo para carisma compartilhado e finalmente, a categoria
peregrinos, que por si só absorve no seu trajeto a noção simmeliana do potential
wanderer, a ideia da identidade em Bauman ser um processo em constante construção e
a eminência da invenção da tradição em uma dimensão individualística.

Bibliografia:

CAMPOS, Roberta B. C. 2013. Quando a tristeza é bela: O sofrimento e a constituição


do social e da verdade entre os Ave de Jesus – Juazeiro do Norte-CE. Recife: Editora
Universitária. UFPE.

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