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no Mundo Antigo
Volume I
Experiências Religiosas
no Mundo Antigo
Volume I
Conselho Consultivo:
Conselho Editorial:
Assessoria Executiva:
Revisão:
Boa Leitura!
Foto da autora.
Foto da autora
21 BLACK, J., GEORGE, A., POSTGATE, N. A Concise Dictionary of Akkadian. Wiesba-
den: Harrassowitz Verlag, 2000, p. 235.
22 O círculo mágico era feito no chão, com farinha e o doente deveria ficar em seu
interior.
23 Segundo a crença mesopotâmica, os rios eram tidos como divindades capazes de
expiar e julgar os pecados dos homens.
24 FOSTER, B. From Distant Days - Myths, Tales, and Poetry of Ancient Mesopota-
mia. Bethesda: CDL Press, 1995, p. 56.
Volume 1 23
Fig. 3 – Tablete cuneiforme com lista de pedras-amuletos. Período aquemênida-
-selêucida (séc. VI AEC), argila - Metropolitan Museum of New York.
Foto da autora
25 Marduk era o deus principal da cidade de Babilônia. BLACK, J. e GREEN, A. Gods,
Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia. London: British Museum Press, 1998.
26 A deusa Inanna, em sumério, Ištar em acádico, é a deusa do amor e da guerra.
Ibidem, p. 108-109.
27 Adad era a divindade relacionada com a tempestade, os raios e trovões. Idem.
24 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
A figura a seguir expõe um exemplar destes amuletos, em forma
de colar, com pedras preciosas benéficas, pertencente ao acervo do Vor-
derasiatische Museum, no complexo do Museu do Pérgamo, em Berlim.
Foto da autora
Volume 1 25
Quando tenhas realizado a limpeza com sua jarra limpa e te-
nhas recitado o conjuro sobre a água apropriada ao caso e
tenhas dado de beber a água apropriada ao caso àquele que
tenha sido mordido, sairá sozinho o veneno respectivo28.
28 LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol. I.Barcelo-
na: Editorial AUSA, 1993, p. 422-423.
29 LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol. I. Barce-
lona: Editorial AUSA, 1993, p. 421-422.
26 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
sua natureza, não é a fidelidade, o casamento ou a maternidade, mas
tão somente o prazer do sexo30.
Assim, a questão da sexualidade também aparecia como al-
gum dos males que afligiam os antigos mesopotâmicos e foram objeto
de uma série específica de conjuros denominados, em sumério, šà.zi.
ga, em acádico, nīš libbi, literalmente, elevação do coração, que pode-
mos traduzir simplesmente por orgasmo. Um exemplo é este encanta-
mento contra a impotência sexual:
30 BOTTÉRO, J; KRAMER, S. Lorsque les dieux faisaient l’homme. Paris: Éditions
Gallimard, 1993, p. 275.
31 FOSTER, B. From Distant Days - Myths, Tales, and Poetry of Ancient Mesopota-
mia. Bethesda: CDL Press, 1995, p.340.
32 LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol. I. Barce-
lona: Editorial AUSA, 1993, p. 426.
Volume 1 27
Fig. 5 – Placa votiva, Nippur. s.d., argila. Museu Arqueológico de Istambul.
Foto da autora.
Considerações Finais
4 BUENO, André. Cem textos de História Antiga. 2009. Disponível em: http://chino-
logia.blogspot.com.br/2009/08/sociedade.html
32 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
vezes, visitavam, através do sonho ou do transe, as ‘Terras Amarelas’
黄泉 [Huangquan, o mundo inferior dos mortos], para deles recebe-
rem orientações.5 Reconhecidos e adorados corretamente, eles se
transformavam nos Ancestrais, que guiavam e protegiam a família que
lhes prestava rituais de adoração corretamente, fomentando o que se-
ria conhecido como Culto aos Ancestrais 敬祖 [Jingzu].
Essas considerações datam de épocas remotas na história da
civilização chinesa. Sabemos, porém, que elas estavam vigentes duran-
te o período Shang, como veremos a seguir, pelo caráter de alguns de
seus rituais e crenças.
8 BUENO, André. Cem textos de História chinesa. 2009. Disponível em: http://chino-
logia.blogspot.com.br/2009/08/religiao.html
9 Extrato do Liji, cap. 9, disponível em http://chines-classico.blogspot.com.
br/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.html
Volume 1 35
No mesmo Liji [cap.5,31], tipos diversos de oferendas eram
feitas no altar dos espíritos, variando segundo a época e a condição
social dos ofertantes. Aparentemente, pois, os Shang entregavam-se a
um profundo contato com os seus espíritos familiares. Os Deuses prin-
cipais eram espíritos antigos, representantes das forças da natureza,
da terra e dos animais, mas em grande medida distantes do mundo
humano, sendo relativamente pouco citados. Por essa razão, os deu-
ses e espíritos familiares eram mais intensamente requeridos. Isso re-
dundou numa prática em que o espírito invocado vinha comer com os
encarnados, e tomava o corpo de um ‘vivo’ para esse fim. Essa forma
de ‘possessão’ espiritual 尸 [Shi] implicava na presença de alguém que
teria a condição de recebê-lo ou, minimamente, ‘imitá-lo’, represen-
tando-o por um rito de associação de imagem.10
Esse contato com o mundo espiritual fica evidente também
pela vasta coleção de oráculos encontrados a partir da década de 1920
na China.11 Compostos por carapaças de tartaruga e escápulas bovinas,
esses documentos revelam muito, para nós, das antigas crenças Shang
e de suas práticas. Nele estão escritos, também, os primeiros docu-
mentos da história chinesa, e marcam as origens de sua escrita. Os
oráculos eram feitos da seguinte maneira: inscrições eram realizadas
no corpo ósseo, ditando uma previsão positiva ou negativa. Um metal
aquecido era aplicado na base do osso ou carapaça, fazendo uma ra-
chadura que indicaria a previsão adequada. Para os Shang, esse era um
dos meios mais rápidos dos espíritos manifestarem sua vontade, inte-
ragindo com o consulente. Note-se que nesse período não haviam sa-
cerdotes especializados, e as funções religiosas eram designadas entre
os membros da família. Apenas os xamãs, alijados do mundo urbano,
mantinham suas práticas nas comunidades rurais, sendo chamados
em ocasiões especiais.
Os oráculos nos prestam informações importantes: nomes de
soberanos e personagens importantes, passagens da história Shang,
10 FALKENHAUSEN, Lothar von. “Reflections on the Political Role of Spirit Mediums
in Early China: The Wu Officials in the Zhouli,” Early China, Cambridge, 1995(20),
p.279-300.
11 Uma descrição completa desses documentos pode ser vista em KEIGHTLEY, Da-
vid. Sources of Shang History: The Oracle-Bone Inscriptions of Bronze Age China. Cal-
ifornia: University of California Press, 1978.
36 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
seus Deuses, e seu modo de crer numa vida após a morte, da qual
tinham absoluta convicção. Tanta certeza da continuidade ficou ma-
nifesta em seus costumes funerários. Quando um nobre morria, em
geral, servos da casa e mesmo familiares eram sacrificados junto com o
defunto, de modo a servi-lo no outro lado. As tumbas Shang são, pois,
pequenas necrópoles da vida desse contexto. O morto levava consigo
grande parte de seus objetos materiais, dos quais acreditava poder fa-
zer uso, e sacrificava também seus animais preferidos, como cavalos e
cães. A tumba de uma figura importante, portanto, nunca depositava
somente o seu corpo, mas o de várias outras pessoas de seu círculo
mais próximo. Denotava, também, que se acreditava que seus bens
eram ‘sacrificados’ junto com os servos, podendo ser manifestados es-
piritualmente no outro lado.12
É difícil saber o quanto esse procedimento era bem recebido ou
não pelo restante da sociedade. Todavia, o advento da Dinastia Zhou iria
operar significativas mudanças nesse quadro, como veremos a seguir.
12 CHANG, Kwang-Chih. Arte, mito y ritual. Madrid: Katz, 2009; THOTE, Alain ‘Shang
and Zhou funeral practices: interpretation of material vestiges’. In: LAGERWEY, John e
KALINOWSKY, Marc. [org.] Early Chinese religion. Vol 1. Leiden: Brill, 2011.
13 No Shujing, 4:1, ‘A Grande Declaração’ diz: “Shou, rei de Shang, não venera o Céu
e inflige calamidades ao povo. Entregue à embriaguez e à luxúria, atreveu-se a exer-
cer uma opressão cruel. Estendeu o castigo dos ofensores a todos os seus parentes.
Colocou os homens nos postos administrativos de acordo com o princípio heredi-
tário. Utiliza-o para possuir palácios, torres, pavilhões, diques, lagos e todas as ou-
tras extravagâncias, para mais penoso prejuízo vosso, milhares de criaturas do povo.
Queimou e chacinou os leais e os bons. Violou mulheres prenhes. O Grande Céu
indignou-se e encarregou meu falecido pai Wen de desencadear o seu terror.” Esse
trecho evidencia o papel de redenção espiritual que a derrubada de Shang implicava.
Volume 1 37
sensibilidade e sabedoria. Os reis Wen 文王 [reinado de -1099 -1056]
e Wu 武王 [reinado -1046 -1043] e o Duque Zhou 周公 construíram
uma nova dinastia, propiciando um período áureo da história chinesa.
É desse período que data a redação dos textos clássicos antigos chi-
neses: Shujing 書經, Shijing 詩經, Yijing 易經, Liji 禮記 e Yuejing 樂經,
que Confúcio iria reeditar no século -6. A instauração de uma nova
ordem social, política e intelectual imprimiu uma mudança significati-
va na estrutura da vida chinesa.
Os primeiros indícios dessas mudanças surgem nas práticas
funerárias. No sítio arqueológico de Sanxingdui,14 que teriam origina-
do a casa de Zhou, observamos que estes empreenderam uma trans-
formação importante nos métodos mortuários. Ao invés de oferecer
seres humanos em holocausto, destinados a acompanhar os defuntos
indefinidamente na vida espiritual, os Zhou sacrificavam estátuas de
bronze, que ocupavam o lugar dos vivos. A lógica é simples, e coe-
rente com o raciocínio da religião dos espíritos chinesa: se os obje-
tos pessoas do defunto podiam ser dispostos na tumba, pois seriam
‘manifestados’ do outro lado, então, estátuas representando humanos
também poderiam ser magicamente associadas aos vivos. Sacrifica-
das, elas serviriam como autômatos no mundo espiritual, dispensan-
do o sacrifício dos que ficavam. É possível, também, que algumas das
máscaras encontradas em Sanxingdui fossem usadas por pessoas que
‘representavam’ aqueles que ‘seriam mortos’ ou que ‘foram mortos’,
numa aproximação com o ritual de Shi descrito anteriormente.
Com toda crença que os chineses dispunham numa vida
após a morte do corpo, mesmo assim, a nova prática instaurada pe-
los Zhou foi muito bem recebida. Ocasionalmente, sacrifícios huma-
nos foram empreendidos entre os chineses até serem proibidos no
século -4. Mesmo assim, o costume de substituir humanos por está-
tuas difundiu-se rapidamente, sendo adotado em várias regiões do
país concomitantemente.
14 BAGLEY, Robert. Ancient Sichuan: Treasures from a Lost Civilization. Princeton:
Seattle Art Museum and Princeton University Press, 2001; SAGE, Steven. Ancient Si-
chuan and the unification of China. Albany: State University of New York Press, 1992.
38 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
4 O Céu 天
15 BUENO, André. Cem textos de História chinesa. 2009. Disponível em: http://chi-
nologia.blogspot.com.br/2009/08/religiao.html
Volume 1 39
quer forma de monogonia, seja teogônica ou cosmogônica. Nada é
dito sobre o Céu como criador. Como veremos adiante, na verdade,
os chineses foram absolutamente silenciosos sobre o problema da ori-
gem do universo, e demonstraram pouco interesse por isso.
uma leitura geral sobre a história do livro pode ser vista em: JAVARY, Cyrille. I Ching,
o livro do Yin e do Yang. São Paulo: Pensamento, 1989.
Volume 1 41
dências de uma determinada situação, o conhecimento desse movi-
mento nos possibilita alterá-lo. Esse ponto é notável. Mais uma vez,
tratar-se-á, possivelmente, do único oráculo no mundo que pode pre-
ver o que não vai acontecer, se o consulente, ao saber de um possí-
vel desfecho, resolver mudar de atitude, abrindo novas possibilidades
para si mesmo.18
6 O Ritualismo
clarecer; a adivinhação depara com problemas que não consegue alcançar; o espírito
depara com problemas que não consegue entender.
«Utiliza a tua própria cabeça. Realiza a tua própria vontade. Esta carapaça de tartaru-
ga e estas folhas não conseguem resolver os teus problemas.»
In RIBEIRO, Cláudia e ZHANG, Zheng-chun. O rosto do vento leste. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1993.
Volume 1 43
não apenas de modo superficial: ele acreditava realmente no poder
simbólico que as práticas sagradas possuíam de educar os sentidos e
a intimidade humana. O Liji 禮記, por conta disso, acabou se tornan-
do o grande e valioso arcabouço sobre a cultura Zhou, mostrando-nos
a estruturação de suas leis, hábitos, crenças e visões de mundo. As
codificações nele presentes implicam desde a arte da política até os
costumes vestuários e alimentares. Todas essas questões adquiriam
um caráter sagrado, pois manifestavam a teoria de que era necessário
manter um arranjo harmônico com Natureza, gerando o equilíbrio ne-
cessário para a preservação da vida. No Liji, cap.9, podemos ler uma
definição de Confúcio sobre o tema:
21 Ibidem.
Volume 1 45
Considerações Finais
22 KERN, Martin “Bronze inscriptions, the Shijing and the Shangshu: the evolution
of the ancestral sacrifice during the Western Zhou” in LAGERWEY, John e KALINOWS-
KY, Marc. [org.] Early Chinese religion. Vol. 1.Leiden: Brill, 2011.
23 Para uma leitura mais ampla, ver o ensaio de CHAN, Wing-tsit. História da filo-
sofia Chinesa, 2008. Disponível em: http://chinaimperial.blogspot.com.br/2008/04/
histria-da-filosofia-chinesa-01.html
46 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
um ambiente consolidado, com o qual tiveram que necessariamente
dialogar e se adaptar, sob a pena de serem excluídos. A ideia de um
intercâmbio com o mundo espiritual se manteria, pela crença inabala-
da de que seríamos espíritos encarnados, e não corpos com espírito.
Ainda hoje, passados milênios, os chineses ainda praticam seus ritos
funerais tradicionais, enterrado simulacros de objetos pessoais com os
defuntos, de modo a propiciar-lhes uma boa vida ‘material-espiritual’.
Os desafios das Eras operaram mudanças morfológicas nas caracterís-
ticas gerais de deuses e ritos, mas a essencialidade da crença mante-
ve-se inalterada: o mundo da mutação [o mundo material] é o espelho
de uma realidade espiritual, e compreender isso é alcançar o cerne do
pensamento religioso chinês.
Volume 1 47
O CONTATO COM OS DEUSES:
AS PRÁTICAS MÁGICO-RELIGIOSAS
NO EGITO ANTIGO
Cintia Alfieri Gama-Rolland1
1 O Divino
O templo era a casa do deus, onde ele vivia por meio de sua
estátua. Seu ba, principio vital e imaterial, podia vir na forma de um
pássaro e pousar sobre essa representação, animando-a. O templo
contendo essa imagem divina é um lugar sagrado, djeser em egípcio,
8 Encontrados nas Litanias de Rê presentes nas tumbas dos reis do Novo Império
(Thutmés III, Séthy I, Ramsés II, Merenptah, Séthy II, Ramsés III, Ramsés IV e Ramsés
IX) e no pequeno templo de Ramsés II em Abu Simbel.
9 POSENER, Georges (dir). Dictionnaire de la civilisation égyptienne. Paris: Fernand
Hazan, 1998, p. 156-158.
52 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
com a mesma conotação que a raiz latina sacer, separado; separado
do mundo profano, lugar onde se penetra apenas purificado, como in-
dicam frequentemente as inscrições na porta dos templos. É por isso
que o acesso ao templo era muito limitado; se a multidão podia atingir
as partes a céu aberto, os pátios, e em certas festas, as salas hiposti-
las, não era possível aventurar-se mais adiante e particularmente na
direção do naos que abrigava a estátua divina. O fiel participava exter-
namente das ações que ocorriam nos templos, sem penetrar no local
sagrado ou assistir a rituais. Na realidade, nem mesmo todos os sacer-
dotes podiam aceder a todas as zonas do templo, o único a ter acesso
irrestrito era o primeiro sacerdote de um deus e o faraó.
No decorrer de três milênios, a arquitetura e o tamanho dos
templos evoluíram bastante. Nos períodos mais recuados, os templos
divinos em contraste com os templos funerários reais tinham dimen-
sões modestas. No Antigo Império, e ainda no Médio Império, os tem-
plos não tinham nenhuma decoração, sendo apenas no Novo Impé-
rio que os edifícios tomam uma maior extensão e passam a ter cenas
ocupando suas paredes, sendo o templo de Karnak um dos melhores
exemplos. Esse fenômeno de aumento tanto do tamanho quanto da
decoração dos templos se acentuou no período ptolomaico principal-
mente em Edfu, Dendera, Philae, Kom Ombo e Esna, os quais são to-
talmente cobertos por imagens e textos, como se nessa época tardia,
em que o Egito passava por numerosas mudanças, se tivesse desejado
gravar livros de pedra para a eternidade.
O templo, ao menos a partir do Novo Império, é também con-
cebido como um microcosmo. Os pilones monumentais representam
as montanhas do Oriente e do Ocidente onde nasce e se põe o as-
tro solar como o hieróglifo, ḏw, , daí a importância da orientação
dos templos para que o hieróglifo se transforme nas montanhas do
horizonte com o sol nascendo e se pondo, 3ht, . No interior das
salas, na parte inferior das paredes, estão representados os produtos
de cada província, os quais são oferecidos ao deus em uma procissão
de personificações do Nilo e dos campos, conduzida pelo rei, represen-
tando assim o Egito como um todo que oferece toda sua produção. As
colunas têm formas vegetais, caule e umbela de papiro e de lótus, re-
presentando a vegetação. O teto dos templos representa o céu com es-
trelas. O Nun ou oceano primordial é representado por poços ou lagos
Volume 1 53
sagrados cavados dentro dos temenos, sendo nessas águas que os sa-
cerdotes se purificam voltando à pureza do início dos tempos10; o muro
externo dos templos, em sua maioria destruídos pela ação do tempo
por serem feitos de tijolos de barro cru, também representavam o Nun
e suas ondulação referem-se à escrita do nome desse oceano: .
Os templos denotam, assim, uma dupla função: casa que abri-
ga a imagem do deus11 e duplo sagrado do Egito com todos seus ele-
mentos, o mundo inferior (dȝ.t, ), a terra (tȝ, ) e o céu
(p.t, ), como uma miniaturização do cosmos.
Os templos são, de uma maneira sintética, vetores da manu-
tenção dos espaços egípcios (a Duat ou mundo inferior / câmara secre-
ta para os mortos, a terra para os vivos e o céu para os deuses). Esses
três domínios constituem todo o mundo egípcio e possuem ligações
mútuas de dependência. Divindades, reis e homens agem em comum
acordo para assegurar a perenidade desses espaços, sendo essa a con-
dição para a manutenção do universo egípcio12 e essa ação conjunta se
desenrola nos templos.
Esses locais concentram a relação humano-divino servindo
como centros aos quais se destinam oferendas, preces e rituais, mas
por serem lugares abertos a uma parte ínfima da população, não re-
presentam o todo da religiosidade dos egípcios, mas apenas a parte
mais institucionalizada. Os templos servem para manter o cosmos, a
maât e abrigar o deus, mas a relação dos egípcios com o divino ul-
trapassa largamente esses aspectos cosmológicos, fazendo com que
outros meios e lugares de expressão de piedade existam.
10 Para compreender o cosmos egípcio e a arquitetura sagrada dos templos ver
BERLANDINI-KELLER, Jocelyne. Résidences et achitectures celestes. In: ÉTIENNE,
Marc (dir.) Les portes du ciel: visions du monde dans l’Égypte ancienne. Paris : Somo-
gy éditions d’art, 2009, p. 27-43.
11 Imagem em que o deus se encarna e diante da qual são praticados todos os rituais
destinados a assegurar a vida da divindade e, assim, o bom andamento do mundo.
12 ÉTIENNE, Marc. L’univers, sanctuaire des dieux. In: ÉTIENNE, Marc (dir.) Les
portes du ciel: visions du monde dans l’Égypte ancienne. Paris : Somogy éditions d’art,
2009, p. 25.
54 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
3 O contato com o divino
13 ZIVIE-COCHE, Christiane. Des hommes et des dieux : une approche anthropolo-
gique de la religion Egyptienne. In: BRANCAGLION, Antonio, LEMOS, Rennan e
SANTOS, Raizza (orgs.) Semna– Estudos de Egiptologia II , Rio de Janeiro: Seshat/
Editora Klínē, 2015, p.13.
14 FRIEDMAN, Florence. The Root Meaning of Ax: Effectiveness or Luminosity, Sera-
Volume 1 55
eficácia do rei com relação ao deus é evidente no caso de Akhenaton,
em que a palavra akh é utilizada na constituição da titulatura do faraó.
O rei se manifesta, assim, numa relação de reciprocidade com o deus,
ele é akh – eficaz - e ele faz akhut - coisas eficazes-, como rituais e ofe-
rendas para o deus que, por sua vez, as devolve ao rei e a todo Egito,
representado na figura do faraó. Por exemplo, o rei constrói monu-
mentos para os deuses, em retorno esses lhes dão milhões de heb-sed.
O rei « trabalha » para os deuses para que esses mantenham o cosmos,
o rei oferece a maât para que a mesma seja devolvida a todo o Egito.
Nos templos, ou de acordo com a religião estatal e oficial, é
o rei ou o seu representante – sacerdote - que estabelece o contato
com o divino realizando os rituais para que a ordem seja mantida e os
deuses saciados. Entretanto, os particulares, isto é, todos aqueles que
não são o faraó ou sacerdotes, não são agentes nesse processo de ma-
nutenção da maât, mas apenas pacientes. O cosmos e a religião estatal
são mantidos por uma relação direta entre o rei ou as altas esferas sa-
cerdotais diretamente com a imagem do deus e os rituais organizados.
Entretanto, como veremos a seguir, os particulares, por mais
que não tenham acesso a esse domínio do sagrado associado à manu-
tenção do cosmos e ao ritual quotidiano dos templos, também podem
estabelecer um contato com o divino, mas de maneira mais pessoal e
em busca de respostas ou ajudas mais precisas, associadas ao dia a dia;
sem que isso constitua outra religião ou algo que por muito tempo foi
chamado de religião popular ou “dos pobres”15.
4 Piedade pessoal
16 Ver em geral BAINES, John. Practical Religion and Piety. In: Journal of Egyptian
Archaeology 73, 1987, p.79-98.
Volume 1 57
Para se compreender o desenvolvimento da piedade pessoal,
deve-se mencionar que uma evolução politica e social com efeito so-
bre a religião teve lugar entre o Antigo e Novo Império, com um perío-
do de transição, o Médio Império. Foi necessário que a forte e centrali-
zadora monarquia do Antigo Império passasse pelos questionamentos
dos dois primeiros Períodos Intermediários, sendo repensada pelos
ideólogos do Médio Império, para que as pessoas comuns tivessem
um estatuto face ao divino, não sendo mais apenas à sombra do faraó,
mas um indivíduo que por si só se dirige ao deus. Nota-se, assim, no
Novo Império, uma “mundanização” da religião17.
Recuando-nos até o Médio Império, de um ponto de vista do-
cumental, já é possível de se notar o aumento de estelas oferecidas
por um particular a um deus, o que não se vê no Antigo Império. Em
outras palavras, mesmo se o faraó é o primeiro dos humanos e o sumo
sacerdote por excelência, o indivíduo comum começa a se dirigir ao
deus a partir do Médio Império e mais claramente do Novo Império;
isto é, as pessoas comuns passam a ter um lugar ativo nessa religião,
perceptível pela documentação epigráfica e arqueológica.
A mudança do papel do indivíduo é evidente: no Antigo Im-
pério não se possui menção aos deuses em textos de particulares18; no
Médio Império, o nome de particulares aparece associado ao de deu-
ses, principalmente nas estelas de Ábidos; no Novo Império, pessoas
são representadas diante de divindades19 trazendo oferendas e lhes
dirigindo preces, o que anteriormente apenas era feito pelos faraós.
Mesmo se os indivíduos começam a se representar diante da
divindade ou dirigir preces aos deuses, o acesso ao templo sempre
se manteve restrito à primeira sala hipostila ou ao pátio. Em certos
templos, como o de Esna, onde estaria o monte sagrado que abriga
a tumba de Osíris, mulheres e os animais não podiam nem mesmo
chegar ao pátio20.
17 ASSMANN, Jan. Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne. Monaco: éd. du Rocher,
2003, p.321-356.
18 Exceção feita a homens como Hardjedef, filho de Quéops, e Heqaib, nomarca de
Elefantina, ambos pessoas do Antigo Império divinizadas e que acabam servindo de
intermediários para com os deuses.
19 TOYE, Nathalie. L’écoute du dieu dans les témoignages de piété personnelle en
Egypte ancienne au Nouvel Empire. Paris : EPHE, não publicada, 2011.
20 SAUNERON, Serge. Esna V: Les fêtes religieuse d’Esna aux derniers siècles du pa-
58 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Na parte mais sagrada do templo, as restrições sempre se
mantiveram, pois nem todos os sacerdotes tinham acesso, mas uni-
camente o primeiro sacerdote do deus. Os fiéis em geral faziam suas
preces nas vias processionais ou diante das estátuas no exterior dos
pilones. Muitas das estátuas encontradas na via processional que unia
os templos de Karnak e Luxor possuem sinais de desgaste correspon-
dente à passagem das mãos de fiéis, que tinham como hábito tocar
esses objetos na esperança de ter benefícios21. Eram os colossos ou es-
tátuas de menor porte no exterior do templo que recebiam as preces
e serviam como receptáculo da fé individual.
Além dos grandes templos com suas sólidas organizações cle-
ricais, a paisagem religiosa do Egito apresentava oratórios, capelas,
locais de peregrinação nas cidades e no campo. Infelizmente, esses
lugares eram tão numerosos que atualmente estamos longe de saber
precisamente onde e quantos existiram ao certo, pois a simplicidade
dessas construções, geralmente em argila, fez com que elas desapare-
cessem, deixando apenas, em alguns casos, alguma menção nas fontes
escritas. Sabemos apenas que os egípcios tinham uma predileção por
locais históricos ou antigos aos seus olhos e dos quais a sacralidade era
quase imemorial, como a região Menfita, Saqqarah e o Serapeum e,
mais ao norte, Abusir, dentre outros.
Diversas vezes, locais com uma superestrutura aparente eram
reinterpretados e a tumba de um faraó, por exemplo, podia se trans-
formar em local de peregrinação e culto extraoficial como a de Djoser
e Téti, em Saqqarah, ou ainda o templo funerário de Sahourê, rei da
V dinastia, que se transforma num local de culto a Sekhmet. Assim, é
possível entrever uma dimensão cultual muito maior do que aquela
vista nos templos centrais e monumentais.
O desejo de estar perto do deus ou de ver sua imagem, já que
o culto quotidiano era fechado aos fiéis, realizava-se algumas vezes du-
rante as grandes festas em que a estátua saia do santuário e um corte-
jo popular a acompanhava pela cidade. Essas procissões eram grandes
momentos do calendário litúrgico e da vida dos egípcios que, durante
a procissão, tinham o privilégio de se aproximar do objeto divino: está-
tua, barca ou emblema sagrado.
22 ČERNY, Jaroslav. Questions adressées aux oracles, Bulletin de l’Institut Français
d’Archéologie Orientale 35, 1935, p.41-42.
23 Ibid., p.43-58.
24 Ostracon do Museu do Cairo JE 59464.
25 Ostracon IFAO, 501.
26 Ostracon IFAO, 200.
27 Ostracon IFAO, 563.
28 Ostracon IFAO, 561.
60 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
No período ptolomaico e romano, era usado outro método
para responder às questões oraculares. A estátua divina possuía furos
e, por trás, um sacerdote ouvia a questão, e respondia sim ou não. É a
esse tipo de prática que pertence uma das respostas oraculares mais
famosas, que ultrapassou as fronteiras do Egito, a de Amon de Siwa que
permitiu a Alexandre, o grande, proclamar sua divindade e legitimidade.
Outra forma de estar próximo da divindade era o depósito de
ex-votos junto a certos lugares de culto, como o de Hathor, no templo
de Deir el-Bahari, deusa solicitada para assegurar uma descendência.
Fazia-se também apelo a especialistas para praticar rituais má-
gicos, destinados a recuperar a saúde, a assegurar o amor fiel de sua
mulher ou de seu marido, ou ainda para se preservar de todos os inimi-
gos potenciais. Esses mágicos eram ritualistas, assim como os sacerdo-
tes dos templos, e invocavam o poder dos deuses para triunfar sobre os
males dos homens, para os quais a medicina e a justiça não tinham cura.
Havia também os decifradores de sonhos que usavam “chaves
de sonhos”, manuais que classificavam os sonhos em categorias, e ofe-
reciam uma interpretação estereotipada.
No que se refere aos cultos que deviam ser praticados em
contexto privado, principalmente nas casas, diante de um pequeno
altar portátil e de imagens de divindades, há pouca informação, com
exceção de Amarna29 e Deir el-Medina, devido a falta de escavações
sistemáticas de habitações, que são muito mais frágeis do que os tem-
plos, pois construídas em tijolos de barro cru. Em compensação, os
amuletos representando deuses ou objetos sagrados, olho-udjat, pilar
djed, etc., são encontrados em quantidade; eles não eram reservados
aos defuntos, sendo também portados pelos vivos.
Sabe-se também que há pessoas comuns que adquiriram um
estatuto divino após a morte, tornados “santos” intercessores, assim
como Imhotep, arquiteto da pirâmide do rei Djoser, ou Amenhotep, fi-
lho de Hapu, vizir no reinado de Amenhotep III. O mesmo pode ser dito
com relação aos mortos, já que foram encontradas cartas dedicadas
aos defuntos por seus familiares pedindo que esses agissem como in-
tercessores entre os vivos, e entre os vivos e os deuses30. Assim, pode-
29 STEVENS, Anna. Private Religion at Amarna: the Material Evidence. Oxford, Brit-
ish Archeological Research International Series 1587, 2006.
30 DONNAT-BEAUQUIER, Sylvie. Écrire à ses morts : enquête sur un usage rituel de
Volume 1 61
mos ver que o contato direto com os deuses parece ser menos evidente
para os particulares, mas esses criaram diversos meios de estabelecer
essa comunicação e fazer com que os deuses agissem em seu beneficio.
Com isso, diversas possibilidades se apresentavam para aque-
les que desejavam exprimir sua piedade pessoal: se aproximar das es-
tátuas que precediam as entradas dos templos e tocá-las, fazer uma
peregrinação, participar das festas divinas e seguir o cortejo que acom-
panhava a estátua do deus, fazer perguntas oraculares, fazer uso dos
seus mortos ou pessoas divinizadas para se comunicar com os deuses,
portar amuletos e fazer um culto doméstico.
Uma vez mais, devemos admitir que o que é revelado pela
oralidade está perdido, e que ignoramos as palavras das preces e das
invocações que eram pronunciadas. Contrariamente aos etnólogos,
jamais teremos diante de nós os egípcios para responder às nossas
perguntas. Ao menos os testemunhos privados, mesmo os mais sumá-
rios, mostram que os gestos religiosos, fora do domínio dos templos,
copiam os mesmos princípios que o dos cultos oficiais e os deuses cul-
tuados são os mesmos.
5 Magia e religião
Volume 1 63
a maât. Citemos alguns exemplos de encantamentos para observar-
mos a ação dos deuses.
31 Estátua do Cairo JE 69771 In.: DRIOTON, Étienne. Une statue prophylactique de
Ramsès II. Annales du Service des Antiquités de l’Égypte 39, 1939, p.57-89 ; KRI V,
261-268.
FAULKNER, Raymond. The PapyrusBremner-Rhind (Brit. Mus. No. 10188),
64 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Além desses encantamentos, na vida cotidiana, o povo fazia
referência às forças supra-humanas. Cada momento da vida de uma
pessoa tinha uma divindade propícia. No parto, para assegurar a boa
saúde da mãe e do bebê chama-se Meskhenet, que vinha acompanha-
da de Chai, o destino. Certas vezes Isis, Néftis e Heqet também podiam
ser acionadas. Taueret garantia um parto fácil e Bés protegia contra o
mau-olhado. Algumas vezes, as sete Hathor aparecem para anunciar
o destino. Contra a esterilidade eram evocados Bès, Taueret, Hathor
e Min. Essas divindades também aparecem nas cenas de nascimentos
reais do Novo Império, teogamias que mostram o nascimento divino
de um faraó pela união da rainha consorte com Amon.
Notamos, assim, com todas essas manifestações do sagrado
que a relação do homem com o mundo divino não está limitada às
visitas ao templo, às capelas, às procissões, às questões oraculares ou
mesmo às práticas mágico-religiosas. É no mundo cotidiano que, dia
após dia, o poder benéfico ou maléfico das divindades é sentido por
meio de cheias, colheitas, doenças, curas, nascimentos, mortes, etc.
Tudo era ação do divino, e o contato com os deuses era, consequente-
mente, cotidiano. A religião não podia ser, então, balizada ou estática,
e o que hoje conhecemos dessa relação com o divino talvez seja uma
ínfima parte do que existia.
Una teodicea puede ser definida a partir del intento por re-
conciliar la creencia en la justicia divina con la existencia del mal y el
sufrimiento en el mundo2 y cuyo núcleo se basa en el contraste que la
percepción universal humana observa entre un mundo ideal, perfecto
y ordenado y un mundo imperfecto e injusto.3 Recurrente en la litera-
tura reflexiva, así como también funeraria y en ciertas descripciones
míticas del Reino Medio (2055-1650 a. C),4 la teodicea nos introduce
en la problemática de pensar el origen del mal en el mundo. Desde
tiempos inmemoriales la humanidad se ha preguntado acerca de la
causa, el origen y la razón del mal en el mundo. Junto con esta preocu-
pación que solía aflorar en las mentes humanas sobre todo en tiempos
de crisis o catástrofes naturales, políticas y sociales, habría emergido
la cuestión de cómo conciliar la existencia del mal en el mundo, sobre
todo de un mal injustificado y atroz, con la benevolencia de los dioses
5 BERNSTEIN, Richard. El mal radical. Una indagación filosófica. Buenos Aires: Lil-
mod, 2005, p. 17.
6 HOFFNER, Harry. “Theodicy in Hittite Texts”. En A. Laato y J. de Moor (eds.). Theo-
dicy in the World of the Bible. Leiden: Brill, 2003, p. 90.
7 El primer análisis literario del texto de las Admoniciones de Ipuwer, junto con
su traducción, fue realizado por Alan Gardiner (1909), en su obra The Admonitions
of an Egyptian Sage, from a Hieratic Papyrus in Leiden (Pap. Leiden 344 recto). Se
destacan a su vez las traducciones y análisis de Raymond Faulkner (FAULKNER, Ray-
mond. “Notes on the Admonitions of an Egyptian Sage”. JEA 50, 1964, pp. 24-36; Id.
“The Admonitions of an Egyptian Sage”. JEA 51, 1965, pp. 53-62), Miriam Lichtheim
(LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature: A Book of Readings. Vol. I: The Old
and Middle Kingdom. Berkeley: University of California Press, 1973, pp. 149-163);
Wolfgang Helck (HELCK, Wolfgang. Die “Admonitions”: Pap. Leiden I 344 recto. KÄT
11. Wiesbaden: Harrassowitz, 1995); Richard Parkinson (PARKINSON, Richard. The
Tale of Sinuhe and Other Ancient Egyptian Poems, 1940-1640 BC.). Oxford: Oxford
University Press, 1998, pp. 166-199; Id. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt:
a Dark side to perfection. Londres: Continuum, 2002, pp. 204-216); Vincent Tobin
(TOBIN, Vincent. “The Admonitions of an Egyptian Sage”. In SIMPSON, W. K. (org.).
The Literature of Ancient Egypt: An Anthology of Stories, Instructions and Poetry.
3ra Edición. New Heaven: Yale University Press, 2003, pp. 188-210); Stephen Quirke
(QUIRKE, Stephen. Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Londres:
Golden House Publications, 2004, 140-150) y Roland Enmarch (ENMARCH, Roland.
The Dialogue of Ipuwer and the Lord of All. Oxford: Griffith Institute, 2005; Id. A
World Upturned. Commentary on and Analysis of The Dialogue of Ipuwer and the
Lord of All. Oxford: Oxford University Press, 2008a).
68 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
tos egipcios del mismo período que presentan una teodicea, se busca
identificar las razones y los motivos que habrían llevado a la clase diri-
gente egipcia de aquél período a introducir tales temas y abordajes en
dichos textos. En otras palabras, nos interesa reflexionar sobre el Reino
Medio egipcio como contexto particular de florecimiento de esta te-
mática, en donde el recuerdo caótico del Primer Período Intermedio
(2181-2055 a. C.) habría permeado en la memoria cultural egipcia la
idea de la imperfección del mundo, la cual se habría conjugado con la
existencia del mal entre los hombres. Es en base a este contexto que
nos proponemos pensar cómo el recurso de la teodicea pudo haber
formado parte de la legitimación del Estado faraónico durante el Reino
Medio egipcio.
8 LEIBNIZ, Gottfried. Teodicea. Ensayos sobre la bondad de Dios, la libertad del hom-
bre y el origen del mal. Buenos Aires: Claridad, 1946; FAZIO, Rodolfo. “Dios ante el
mal. La teodicea leibniziana”. In: BILDERLING, B. Von (org.). Tras los pasos del mal:
una indagación en la filosofía moderna. Buenos Aires: Eudeba, 2009, p. 57.
Volume 1 69
fección del mundo y la existencia del mal. De acuerdo con su análisis,
este problema se encontraba presente no sólo en la religión judeo-cris-
tiana, sino también en la literatura del antiguo Egipto e India en donde
el orden impersonal y supradivino de un mundo lleno de sentido, se
encuentra con el problema de su imperfección y la maldad.9
Así, la conjunción entre el sufrimiento de los hombres, el pro-
blema del origen y la existencia del mal conjuntamente con la existen-
cia y la bondad de dios ha sido una problemática de carácter religioso
y filosófico presente en varias sociedades a lo largo de la historia. Y
entre las sociedades que han abordado esta problemática nos encon-
tramos pues con las sociedades del Cercano Oriente Antiguo, en donde
el motivo del reproche a lo divino ha sido un motivo religioso presente
tanto en discursos míticos como literarios10. Sin ir más lejos, uno de
los estudios comparativos sobre este motivo ha sido el realizado por
Dorothea Sitzler (1995) quien en base al análisis de una serie de textos
egipcios11 y mesopotámicos12 ha argumentado cómo el reproche divi-
no operaría en estas sociedades como un mecanismo de legitimación
política y religiosa que emergería en determinados momentos límites
de aquellas culturas.13 Asimismo, también se destaca en esta temática
la compilación editada por Antii Laato y Johannes de Moor (2003) en
donde especialistas en asiriología, egiptología y estudios bíblicos reali-
zaron aportes al estudio del problema de la teodicea en las sociedades
egipcia, acadia, hitita, hebrea y cristiana.
Ahora bien, en lo que al antiguo Egipto se refiere, la proble-
mática de la teodicea emerge en algunos discursos míticos, literarios y
14 ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WENDRICH, W. (org.), UCLA
Encyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of California, 2008b, p. 1. Dis-
ponivel em: http://escholarship.org/uc/item/7tz9v6jt.
15 PARKINSON, Richard. Voices from Ancient Egypt: An Anthology of Middle King-
dom Writings. Londres: British Museum Press, 1991a, p. 31.
16 ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WENDRICH, W. (org.), UCLA
Encyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of California, 2008b, p. 1. Dis-
ponivel em: http://escholarship.org/uc/item/7tz9v6jt.
17 PARKINSON, Richard. Voices from Ancient Egypt: An Anthology of Middle King-
dom Writings. Londres: British Museum Press, 1991a, p. 31; RICHARDS, Janet. Soci-
ety and Death in Ancient Egypt: Mortuary Landscapes of the Middle Kingdom. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2005, p. 19.
18 KEMBOLY, Mpay. The Question of Evil in Ancient Egypt. Londres: Golden House
Publications, 2010, p. 1.
Volume 1 71
cuando el dios creador Atum dejó de ser uno para convertirse en tres y
engendró a Shu y a Tefnut, iniciándose de este modo el ciclo solar.19. A
su vez, Assmann20 sostiene que la creencia egipcia sobre el origen del
mal debe buscarse en la separación del cielo de la tierra, cuando Ra de-
cide abandonar la tierra a causa de la rebelión de los hombres contra
su gobierno divino y crea el cielo para residir allí junto a los dioses. Este
suceso mítico se encuentra en el Libro de la Vaca celeste,21 en lo que se
conoce como el mito de la Destrucción de la Humanidad el cual refiere
a una época pasada en la cual los dioses habitaban en la tierra junto
con los hombres. En dicho mito se narra cómo la humanidad se ha re-
belado contra el dios creador y gobernante Ra, a quien se lo describe
como envejecido. Ante esta situación, Ra decide castigarlos y manda a
su ojo en calidad de Hathor para destruir la humanidad. Sin embargo,
se relata cómo Ra se arrepiente y decide frenar la destrucción total del
género humano y retirarse del gobierno en la tierra, creando el cielo,
desde donde ahora residirían los dioses, separados de la humanidad.22
Así Assmann23 observa en este mito la explicación de cómo se habría
originado e ingresado el mal en el mundo a causa de la rebelión de los
hombres. Similar línea interpretativa acerca de la creencia egipcia del
mal en el mundo presenta Mpay Kemboly24 para quien si el mal no se
encontraba presente en la creación, este no puede haber preexistido
Kingdom Copies of Pyramid Texts. Chicago: The Oriental Institute of the University of
Chicago, 2006) ha añadido un octavo volumen a la colección de de Buck en la cual
transcribe las copias de los Textos de Pirámides durante el Reino Medio.
29 ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WNDRICH, W. (org.), UCLA En-
cyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of Chicago s/r (http://escholarship.
org/uc/item/7tz9v6jt), 2008b, p. 1.
30 El texto se encuentra en el anverso del Papiro Leiden I 344, conservado actual-
mente en el Museo Nacional de Antigüedades de Leiden, Holanda.
74 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
(dinastía XIX), cuya redacción originaria puede remontarse a la dinas-
tía XIII31.32 El principio y el final del texto se encuentran perdidos y en
31 PARKINSON, Richard. Voices from Ancient Egypt: An Anthology of Middle King-
dom Writings. Londres: British Museum Press, 1991a, p. 60.
32 En cuanto a su datación, a partir de una lectura histórica y demasiado literal
del texto, algunos autores han considerado que las Admoniciones de Ipuwer rela-
taba una serie de sucesos acaecidos a fines del Reino Antiguo o durante el Primer
Período Intermedio y que habrían sido compuestas en este último período o a ini-
cios del Reino Medio (GARDINER, Alan. The Admonitions of an Egyptian Sage, from
a Hieratic Papyrus in Leiden (Pap. Leiden 344 recto). Leipzig: J. C. Hinrichs, 1909,
pp. 112; ERMAN, Adolf. The Literature of the Ancient Egyptians: poems, narratives
and manuals of instruction from the third and second millennia B.C. (A.M. Blackman,
trans). Londres: Methuen, 1927, pp. 93; PIRENNE, Jacques. “Le statut des hommes
libres pendant la première féodalité dans l´ancienne Égypte”. Archives d´Histoire du
Droit Oriental 3. Bruselas: Nouvelle Société d´Editions, 1948, pp. 128-133; SPIEGEL,
Joachim. Soziale und weltanschauliche Reformbewegungen im alten Ägypten. Hei-
delberg: F. H. Kerle, 1950, p. 44; BELL, Barbara. “The Dark Ages in Ancient History. I.
The First Dark Age in Egypt”. AJA Vol. 75 Nº 1. (Enero), 1971, pp. 11-14; FAULKNER,
Raymond. “The Admonitions of an Egyptian Sage”. En W. K. Simpson (ed.). The Litera-
ture of Ancient Egypt: An Anthology of Stories, Instructions and Poetry. Londres: Yale
University Press, 1973a, pp. 210; KADISH, Gerald. “British Museum Writing Board
5645: The Complaints of Kha-kheper-re-senebu”. JEA 59, 1973, pp. 88-89; REDFORD,
Donald. Pharaonic King-lists, annals and day-books. A contribution to the study of the
Egyptian sense of history. Mississauga: Benben Publications, 1986, pp. 144; HASSAN,
Fekri. “Droughts, Famine and the Collapse of the Old Kingdom: Re-Reading Ipuwer”.
In: HAWASS, Z.; RICHARDS, J. (org.). The Archaeology and Art of Ancient Egypt. Essays
in Honor of David B. O`Connor. Vol. I. El Cairo: Conseil Supréme des Antiquités de
l`Égypte, 2007, pp. 363; REYES, José Carlos Castañeda. Sociedad Antigua y respuesta
popular: Movimientos sociales en Egipto Antiguo. Iztapalapa: Plaza y Valdés Edito-
res. Universidad Autónoma Metropolitana, 2003, 200-201; _____________. Señoras
y esclavas: el papel de la mujer en la historia social del Egipto antiguo. México: El
Colegio de México, 2008, p. 346; __________. “Of Women, Mirrors and the ‘Social
Revolution’ (“Admonitions”: 8,5)”. GM 225, 2010, pp. 43-44). Una datación a media-
dos de la dinastía XII o durante la etapa final del Reino Medio, esto es entre el reinado
de Sesostris III y la primera mitad de la dinastía XIII, fue propuesta por otros autores
a partir de ciertos criterios lingüísticos presentes en el papiro, así como por las cone-
xiones y la intertextualidad que presenta el texto de las Admoniciones de Ipuwer con
otros textos afines del Reino Medio (LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Litera-
ture: A Book of Readings. Vol. I: The Old and Middle Kingdom. Berkeley: University of
California Press, 1973, p. 149; OCKINGA, Boyo. “The Burden of Khakheperresonbu”.
JEA 69, 1983, p. 93; VERNUS, Pascal. Future at Issue: Tense, Mood and Aspect in Mid-
dle Egyptian. Studies in Syntax and Semantics. Yale Egyptological Studies 4: New Hav-
en: Yale Egyptological Seminar, 1990, pp. 189-190; PARKINSON, Richard. Voices from
Ancient Egypt: An Anthology of Middle Kingdom Writings. Londres: British Museum
Press, 1991ª, p. 60; Id. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt: a Dark side to
Volume 1 75
él intervienen dos personajes principales, Ipuwer33 y el Señor de To-
do.34 La obra trata sobre una situación particular en la cual se relatan
una serie de sucesos caóticos que hacen referencia a los recuerdos
-que se habrían elaborado durante el Reino Medio- del Primer Período
Intermedio. El orden se altera producto de una revolución social, los
perfection. Londres: Continuum, 2002, p. 308; ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eter-
nidade. A literatura no Egito faraônico. San Pablo: Editora Universidade de Brasilia,
2000, p. 176; TOBIN, Vincent. “The Admonitions of an Egyptian Sage”. In: SIMPSON,
W. K. (org.). The Literature of Ancient Egypt: An Anthology of Stories, Instructions and
Poetry. 3ra Edición. New Heaven: Yale University Press, 2003, pp. 188; QUIRKE, Ste-
phen. Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Londres: Golden House
Publications, 2004, pp. 140; ENMARCH, Roland. A World Upturned. Commentary on
and Analysis of The Dialogue of Ipuwer and the Lord of All. Oxford: Oxford University
Press, 2008ª, p. 24). Una fecha diferente de datación para el relato fue planteada
por John Van Seters (SETERS, John Van. “A Date for the Admonitions in the Second
Intermediate Period”. JEA 50, 1964: 23) quien, si bien acepta el valor histórico del
texto, postula como escenario histórico del relato al Segundo Período Intermedio
(1650-1550 a. C.).
33 Literalmente Ipu-ur (Ipu el grande o Ipu el sabio). A partir del estudio realizado
por Gardiner (GARDINER, Alan. The Admonitions of an Egyptian Sage, from a Hieratic
Papyrus in Leiden (Pap. Leiden 344 recto). Leipzig: J. C. Hinrichs.) se ha generalizado
el uso del nombre Ipuwer con el cual lo identificamos en este trabajo. Según Erman
(ERMAN, Adolf. The Literature of the Ancient Egyptians: poems, narratives and man-
uals of instruction from the third and second millennia B.C. (A.M. Blackman, trans).
Londres: Methuen, 1927, p. 93), de acuerdo a las menciones que se hacen al tesoro
y a los almacenes reales, Ipuwer sería uno de los oficiales del tesoro. Por su parte,
Parkinson (PARKINSON, Richard. The Tale of Sinuhe and Other Ancient Egyptian Po-
ems, 1940-1640 BC.). Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 166; PARKINSON, R.,
2002, op. cit. p. 308) y Assmann (ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de un sentido. Mad-
rid: Abada editores, 2005, pp. 139) lo asocian con un Jefe de los Cantores, llamado
Ipuwer, que aparece en una lista junto con diversos autores literarios conocidos del
pasado, en el Fragmento Daressy procedente de una tumba ramésida en Saqqara.
34 El Señor de Todo ( nb-r-Dr lit. Señor del Límite) es un título utilizado ge-
neralmente para referirse al dios creador. Sin embargo, también puede ser aplicado
como un epíteto del faraón (PARKINSON, R., 2002, op. cit., pp. 205; QUIRKE, Stephen.
Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Londres: Golden House Publi-
cations, 2004, p. 140; ENMARCH, R., op. cit., 2008a, p. 30). Dicho título aparecerá
durante el Primer Período Intermedio y sobre todo en el Reino Medio en los denomi-
nados Textos de los Sarcófagos. La evidencia procedente de los Textos de los Sarcófa-
gos nos permite relacionar dicho título con un epíteto vinculado a ciertas divinidades
creadoras, sobre todo con las figuras omnipotentes de Atum, el dios primigenio, Ra
o el sincretismo de Atum-Ra (WESTENDORF, Wolfhart. “Allherr”. LÄ I, 1975, pp. 136-
137; HORNUNG, Erik. El uno y los múltiples. Concepciones egipcias de la divinidad.
Madrid: Trotta, 1999a, p. 157).
76 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
extranjeros invaden la tierra, los nomos son devastados, los ricos se
hacen pobres, los pobres ricos, el malestar y la inseguridad prevalecen
por todo Egipto, los documentos legales y las escrituras son destrui-
dos y la anarquía social se expande mientras los valores culturales son
quebrantados ante la mirada indiferente de la sociedad. Asimismo, en
el relato se apela al recuerdo de los buenos viejos tiempos cuando las
ofrendas eran realizadas ante los dioses, las leyes se respetaban y la
autoridad egipcia ejercía su dominio sobre el Estado, manteniendo el
orden político y social, apelando al recurso de un pasado dorado que
es necesario recuperar.
Dichas escenas son representadas literariamente por un sabio
egipcio, Ipuwer, que se presenta ante la corte de un faraón35 -asociado
bajo la figura del Señor de Todo- reprochándole por los males que ace-
chan su tiempo. Así, en el diálogo que mantiene con el Señor de Todo,
Ipuwer llega a culpar al dios creador y al faraón por la actual situación
de Egipto e insta a este último a actuar para restaurar el orden. Sin em-
bargo, el Señor de Todo parece replicarle que el mal y el caos en Egip-
to es producto de los hombres, desligando de toda responsabilidad al
dios creador, a los dioses y a sí mismo de ello. Al no poseer el final del
relato, el dilema parece quedar irresuelto. Con todo, lo interesante del
texto es que en medio de esas lamentaciones y reproches se indaga
acerca del porqué de esta situación caótica y sobre la responsabilidad
que el faraón, el dios creador y la humanidad tienen respecto de ello.
Ahora bien, decíamos que el reproche a lo divino es realizado
por Ipuwer al dios creador a través de su intermediario, el faraón, a
quien el texto identifica con el título de Señor de Todo (nb-r-Dr). En
dicho reproche que Ipuwer le trasmite al faraón, acusa al dios creador
por haber permitido la pervivencia de la maldad en la humanidad en
los tiempos primordiales cuando la misma se habría rebelado contra
su mandato divino:
35 No se menciona en el texto ninguna referencia sobre el nombre del faraón. Algu-
nos autores sugieren la posibilidad de que pudo haber estado mencionado en alguna
de las primeras líneas que se encuentran perdidas (TOBIN, Vincent. “The Admoni-
tions of an Egyptian Sage”. In: SIMPSON, W. K. (org.). The Literature of Ancient Egypt:
An Anthology of Stories, Instructions and Poetry. 3ra Edición. New Heaven: Yale Uni-
versity Press, 2003, pp. 189).
Volume 1 77
“Mira, ¿Por qué él busca modelar a los [hombres] (cuando)
no se puede distinguir un tímido de un violento? (Cuando) él
trae la frescura sobre lo caliente, uno dice: ‘El es el pastor de
todos, no hay maldad en su corazón.’ (Aunque) su rebaño es
escaso, él ha pasado el día (entero) cuidándolo. ¡Hay fuego
en sus corazones! Ojalá él hubiera percibido el carácter de la
primera generación (así) él hubiera podido reprimir los ma-
les, estirando su brazo contra ella y destruido su rebaño y su
herencia” (Adm. 11,13-12).36
36 Todas las traducciones del texto de las Admoniciones de Ipuwer que aquí se
transcriben son propias.
37 La primera generación de hombres es la seguida a la edad de la creación del
mundo por Ra. Véase A. Rosenvasser (ROSENVASSER, Abraham. “Reproches a Ra por
la Injusticia de los Hombres”. Cuadernos del Sur Nº 14. Bahía Blanca: Departamento
de Humanidades. Universidad Nacional del Sur, 1981, pp. 225)
38 OTTO, Eberhard. Der Vorwurf an Gott: Zur Entstehung der ägyptischen Auseinan-
dersetzungsliteratur. Vorträge der Orientalistischen Tagung in Marburg. Ägyptologie.
Hildesheim: Gerstenberg, 1951, pp. 6-8
39 BARTA, Winfred. “Das Gespräch des Ipuwer mit dem Schöpfergott”. SAK 1, 1974,
pp. 19-33.
78 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ter de los seres humanos, criticándole al mismo dios la pasividad que
tuvo al no haberla extinguido cuando tuvo la oportunidad. Asimismo,
Otto40 sostuvo que los reproches humanos al dios creador debieron de
enmarcarse con el colapso del Reino Antiguo (2686-2181 a. C.), en un
momento de grandes cuestionamientos políticos y religiosos. De esta
manera, a nuestro entender, la alusión a ese pasado mitológico que
aludía al origen del mal entre los hombres implicaba remarcar las im-
perfecciones de la creación y la crisis de los valores e ideas que habría
atravesado Egipto en el Primer Período Intermedio, cuando la autori-
dad de la monarquía egipcia fue vulnerada por los poderes locales de
los nomarcas, y con ello su ideología.
De este modo, en dicho pasaje del texto de las Admonicio-
nes de Ipuwer emergería la problemática sobre el origen del mal en el
mundo, adscribiendo su causa en último término al dios creador, pues-
to que él habría sido quien permitió la supervivencia de los hombres
cuando la maldad anidó en sus corazones. Así, su pasividad y su falta
de acción habrían permitido la existencia del mal.
Sin embargo, y pese a encontrarse en estado fragmentario,
hacia el final del papiro que contiene el texto de las Admoniciones de
Ipuwer puede observarse una respuesta por parte del Señor de Todo
(nb-r-Dr) -el faraón- a Ipuwer, en la cual sostiene que el mal y el caos
en Egipto es producto de los hombres, desligando de toda responsa-
bilidad al dios creador y a los dioses de ello. Así lo sostiene cuando
responde a Ipuwer por las invasiones extranjeras y proclama que dicha
situación se habría producido debido a las luchas internas entre los
propios egipcios, preguntándose asimismo el por qué de dicha violen-
cia que ha sido originada por los propios hombres:
40 OTTO, Eberhard. Der Vorwurf an Gott: Zur Entstehung der ägyptischen Auseinan-
dersetzungsliteratur. Vorträge der Orientalistischen Tagung in Marburg. Ägyptologie.
Hildesheim: Gerstenberg, 1951, pp. 4-5.
Volume 1 79
devoren, es decir que los extranjeros aprovechen su lucha interna para
penetrar las fronteras y avanzar en el territorio egipcio sin freno alguno
saqueando y expropiando a los egipcios de sus propiedades y bienes.
Misma situación se produce hacia el final cuando el Señor de
Todo (nb-r-Dr) señala la pena que presentan los dioses por tal situa-
ción, lo cual infiere que no son ellos quienes la han causado, sino que
son los hombres quienes han generado el mal, puesto que de haber
sido el dios creador o los propios dioses quienes hubieran permitido el
mal, no deberían de sentir pesar por ello:
“Los dioses lloran por sus seguidores (que) han entrado en las
capillas funerarias; las estatuas son quemadas (y) las [tum-
bas] son destruidas (así como) los cadáveres de las momias”
(Adm. 16,13-14).
48 El texto de las Instrucciones para Merikara relata las enseñanzas que el faraón
Kheti I le deja a su hijo Merikara como testamento político para que pueda ser un
buen rey. La obra se encuentra preservada en los siguientes papiros: Papiro Her-
mitage 1116A reverso; Papiro Moscú 4658 y Papiro Carlsberg 6 (QUIRKE, Stephen.
Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Londres: Golden House Publi-
cations, 2004, pp. 112). Algunas ediciones y traducciones sobre dicho texto pueden
encontrarse en: Lichtheim (LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature: A Book
of Readings. Vol. I: The Old and Middle Kingdom. Berkeley: University of California
Press, 1973: 97-109); Helck (HELCK, Wolfgang. Die Lehre für König Merikare. KAT.
Wiesbaden: Harrassowitz, 1988); Serrano Delgado (DELGADO, José Miguel Serrano
(1993). Textos para la Historia Antigua de Egipto. Madrid: Ediciones Cátedra, 1993:
90-96); Parkinson (PARKINSON, R., 2002, op. cit. pp. 248; Id. The Tale of Sinuhe and
Other Ancient Egyptian Poems, 1940-1640 BC.). Oxford: Oxford University Press,
1998, pp. 212-234;); Araújo (ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade. A literatu-
ra no Egito faraônico. San Pablo: Editora Universidade de Brasilia, 2000: 281-292) y
Quirke (QUIRKE, Stephen. Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Lon-
dres: Golden House Publications, 2004: 112-120).
49 La historia del Campesino Elocuente relata el robo que sufre un campesino (li-
teralmente sería un habitante del Oasis de la Sal), Khunanup, cuando se trasladaba
con su burro y sus mercancías, a manos de Djehutinakht. A causa de esta injusticia,
el campesino acude a la corte del gran intendente Rensi ante quien realiza nueve
súplicas en las cuales indaga sobre nociones de justicia y orden social. El campesino
se destaca por su gran elocuencia, lo que hace que se registren por escrito sus súpli-
cas para entretener el faraón hasta que finalmente el campesino es recompensado,
le son devueltos sus bienes, el delincuente es castigado y la justicia es alcanzada. El
texto se encuentra conservado en los siguientes papiros: Papiro Berlín 10499 (R);
Papiro Berlín 3023 (B1) y Papiro Berlín 3025 (B2). Véase Quirke (QUIRKE, S., 2004, op.
cit. 140-15, 2004: 151). Algunas ediciones y traducciones sobre este texto pueden
encontrarse en: Gardiner (GARDINER, Alan. “The Eloquent Peasant”. JEA 9, 1923, pp.
5-25); Lichtheim (LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature: A Book of Read-
ings. Vol. I: The Old and Middle Kingdom. Berkeley: University of California Press,
1973: 169-184); Faulkner (FAULKNER, Raymond. “The Admonitions of an Egyptian
Sage”. In: SIMPSON, W. K. (org.). The Literature of Ancient Egypt: An Anthology of
Stories, Instructions and Poetry. Londres: Yale University Press, 1973b, pp. 31-49);
Parkinson (PARKINSON, Richard. The Tale of the Eloquent Peasant. Oxford: Griffith
Institute, 1991b; Id. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt: a Dark side to per-
fection. Londres: Continuum, 2002, p. 168-182; Id. Reading Ancient Egyptian Poetry.
Among Other Histories. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009, pp. 295-315); Araújo (ARAÚ-
JO, Emanuel. Escrito para a eternidade. A literatura no Egito faraônico. San Pablo:
Volume 1 83
Admoniciones de Ipuwer en donde se explicita el mejor ejemplo de
esta temática50.
Las Instrucciones para Merikara presentan hacia el final lo
que podríamos catalogar como un himno dedicado al dios creador en
donde se manifiesta -de forma similar al conjuro 1130 de los Textos de
los Sarcófagos- la bondad divina que habría creado a la humanidad sin
mal alguno, a su imagen y semejanza, separando el cielo y la tierra para
ellos, otorgándoles el aliento de vida para sus corazones, creando las
plantas y los animales para que puedan vivir y cómo este dios creador
no habría dudado en su momento en aniquilar a sus hijos rebeldes que
estaban planeando conspirar contra él. En otras palabras, se presenta
un panegírico sobre la creación y la bondad divina en ella, frente a las
situaciones de maldad en el mundo:
Die Lehre für König Merikare. KAT. Wiesbaden: Harrassowitz, 1988, pp. 83-87); Quack
(QUACK, Joachim. Studien zur Lehre für Merikare. Wiesbaden: Harrassowitz, 1992, p.
78) y Quirke (QUIRKE, Stephen. Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings.
Londres: Golden House Publications, 2004, p. 119).
52 PARKINSON, Richard. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt: a Dark side to
perfection. Londres: Continuum, 2002, pp. 173- 174.
53 ASSMANN, Jan. The Search for God in Ancient Egypt. Londres: Cornell University
Press, 2001, p. 177.
54 PARKINGSON, R., 2002, op. cit., p. 137.
Volume 1 85
cuestionamiento de su poder, al tiempo que dar cuentas del mismo
como consecuencia de una nueva realidad política y social luego del
colapso del Reino Antiguo y los procesos acaecidos durante el Primer
Período Intermedio.
Así lo entiende Assmann55 cuando sostiene que el Reino Me-
dio hunde sus raíces y construye su sentido a partir de la experiencia
pasada del Primer Período Intermedio en donde la imperfección del
mundo y la experiencia del mal se habrían conjugado. La crisis y el fin
del Reino Antiguo habrían puesto en duda la creencia de un mundo
justo, divino y perfecto, apareciendo así la imposibilidad de la reali-
zación de maat, lo cual habría llevado a la aparición de los primeros
cuestionamientos divinos56. De esta forma, ciertos textos literarios y
funerarios del Reino Medio habrían comenzado a incluir y abordar el
problema de la teodicea como un mecanismo de legitimación política
destinado a cohesionar y reconciliar -por medio de un discurso religio-
so- las imperfecciones pasadas con la obediencia estatal frente a los
plausibles cuestionamientos del poder y la autoridad estatal.
La idea de estos textos -que suelen incluir relatos míticos en
torno a la destrucción de la humanidad como un castigo divino- no es
otra más que marcar las imperfecciones de la creación y la crisis de
los valores e ideas a las cuales habría sucumbido Egipto en el Primer
Período Intermedio57. En este sentido, como señala Brunner-Traut “la
destrucción del mundo es un castigo sufrido en un pasado mítico que
se hizo realidad por primera vez en el período de decadencia entre el
Imperio Antiguo y el Imperio Medio.” 58
De esta manera, se intentaba marcar cómo el caos pasado del
Primer Período Intermedio habría sido causado por la rebelión de la
sociedad contra la autoridad faraónica y el Estado egipcio, de igual for-
ma en que la humanidad se había rebelado contra Ra, el dios creador,
en los tiempos mitológicos. Ahora bien, así como en el mito, el dios
55 ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de un sentido. Madrid: Abada editores, 2005,
p. 242.
56 ASSMANN, J., 2001, op. cit, 170.
57 ROSELL, Pablo Martín. “Mitos escatológicos en la literatura egipcia antigua”. In:
NÁPOLI, Juan Tobías; FASANO, Cristina Zecchin de; SUÁREZ, Luz Pepe de (org.). Actas
5to Coloquio Internacional Mito y Performance. De Grecia a la Modernidad. La Plata:
Universidad Nacional de La Plata, 2010a, pp. 647.
58 BRUNNNER-TRAUT, Emma. Cuentos del Antiguo Egipto. Madrid: Edaf., 2000, p. 316.
86 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
creador Ra decide darles una segunda oportunidad a los hombres, la
elite cultural del Reino Medio habría plasmado -mediante la literatura
que incluía teodiceas, reproches y justificaciones divinos- la imagen y
los valores de un nuevo mundo reconstruido, en donde las imperfec-
ciones de la creación habían sido corregidas.59 De esta manera, en el
Reino Medio se habría recuperado esa imperfección pasada conjunta-
mente con la experiencia del mal en aras de legitimar y darle sentido
a un nuevo mundo reconstruido.60 Así creemos que el recurso de la te-
odicea pudo haber sido empleado en los textos literarios y funerarios
del Reino Medio como un mecanismo de legitimación política durante
este período destinado a prevenir futuras rebeliones mediante la posi-
ble acción represiva de los soberanos -justificada en la emulación de lo
hecho por el dios creador en el plano mitológico- ante el desorden y el
cuestionamiento del orden.
Conclusion
4 El discurso aparece como un topos apetecible del cual los sujetos quieren apro-
piarse pero su entidad política lo vuelve impermeable a cualquiera que no esté cali-
ficado para hacerlo.
5 Foucault, en Vigilar y Castigar, el autor propone el análisis de la variable espacial
o topológica para pensar en un verdadero arte de las distribuciones en el espacio a
fin de controlar aquello que transgrede el orden de lo aceptable. FOUCAULT, M. Vigi-
lar y Castigar. Buenos Aires: Siglo XXI, 1989.
Volume 1 97
abajo, golpeó el suelo y pronunció estas palabras” (Himno Homérico,
332-333). La conducta se inscribe en el horizonte del logos theokrantos,
de la palabra cargada de poder, que se opone a las epe akrata, a las
palabras vanas, sin poder de realización. Lo que sostiene el estatuto
del discurso es el valor del verbo kraino, realizar acabadamente. Las
palabras de Hera son realizadoras y en esa línea se juegan en el marco
de la acción eficaz. La palabra mágico religiosa posee, precisamente,
esa solidaridad con el gesto como modo de reforzar el esse del logos. El
gesto no es aleatorio u ornamental; es, por el contrario, instituyente del
poder mismo de la palabra. Es el campo del logos que sólo es pronun-
ciable por los dioses o por un ser excepcional. Pronunciada la palabra,
la acción se realiza; la palabra no es el elemento que vehiculiza la repre-
sentación de la cosa; es la acción misma en gesto eficaz, realizador. En
este sentido, la realidad brota de la palabra pronunciada, sin que medie
distancia entre el logos y la realidad. La palabra no recoge lo real para
dar cuenta de ello es gesto lingüístico; la palabra es fuerza realizadora
que genera en su decir mismo. Hera es portadora de este poder reali-
zador y su imprecación tiene fuerza de realidad6. El gesto es, por otra
parte, el gesto habitual para invocar a las divinidades ctónicas.
El pedido se dirige a las primera potencias, a las divinidades
primigenias, las más arcaicas, en el orden del linaje; el estilo sigue sien-
do directo e imperativo: “-¡Oídme ahora, Tierra y ancho Cielo, allá en
lo alto! ¡Y vosotros, Titanes, dioses que habitáis bajo tierra, en el gran
Tártaro, de los cuales proceden hombres y dioses! Escuchadme todos
ahora y concededme un hijo sin el concurso de Zeus, en nada inferior a
aquél en fuerza, sino tanto más poderoso que él canto lo es Zeus, cuya
voz se oye a lo lejos, más que Crono” (Himno Homérico, 334-339). Hera
se para frente a los dioses primordiales alzando su voz como marca de
poder y deseo. Deseo de un hijo que tensará al máximo las relaciones
conflictivas con su esposo, ya que implica la omisión de su presencia en
el acto amoroso. Si Hera está enfurecida a partir de un gesto de desco-
nocimiento, el pedido se inscribe en la misma lógica. Hera desconoce
a Zeus en su función gestante y sola se atreve a una empresa que pres-
cinde del elemento masculino como forma de negar su complementa-
6 A propósito del registro del logos theokrantos - COLOMBANI, M.C. Hesíodo. Una
introducción crítica. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2005.
98 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
riedad en el acto y su poder en la obra, con la consecuente imagen de
peligrosidad femenina que tal decisión acarrea.
El gesto y el deseo ubican a Hera en una posición de autono-
mía frente a la maternidad, al tiempo que representa un gesto ten-
diente a consolidar su poder frente al de su esposo. Discurso, poder
y deseo; he allí los tres tópicos que parecen estar hilvanando la triple
solidaridad a la que Michel Foucault alude en el Orden del Discurso. El
discurso no es solamente lo que da cuenta de las luchas por el poder,
sino ese dispositivo político que da cuenta de un acto de poder que ex-
presa, además, el deseo de tomar la palabra como objeto prestigioso7.
Hera alza la palabra frente a los dioses en acto de imprecación y con
ello eleva al cielo el poder de su deseo.
Un nuevo gesto eficaz acompaña el pedido. Así, “Tras pronun-
ciar estas palabras, golpeó el suelo con su poderosa y se removió la
tierra dispensadora de vida. Ella, al verlo, se regocijó en su fuero inter-
no, pues sabía que su voto se cumpliría” (Himno Homérico, 340-343).
Esa es la solidaridad del gesto y la palabra, inscrita en la realización
del acto. La palabra y el gesto vuelven a delinear un dispositivo eficaz
donde no hay una dimensión lingüística de la palabra, sino un registro
ontológico, ya que la palabra y el ser mismo de la acción cumplida son
una sola estructura.
La acción de Hera modifica el estatuto matrimonial. El poder
de su acción repercute en un nuevo diagrama de relaciones con su
esposo, que la alejan de las marcas habituales del género. Hera ya se
ha corrido de esos espacios al pedir a los dioses concebir un hijo por
fuera de las pautas canónicas de la concepción. Ahora lo hace desde
su función de esposa, ya que “Desde entonces, hasta el término de un
7 Foucault, en El orden del discurso, el autor analiza las relaciones entre discurso y
poder y discurso y deseo y advierte cómo no todos los intersticios discursivos tienen
el mismo registro de visibilidad y accesibilidad, fundamentalmente porque se hallan
altamente ritualizados, celosamente custodiados y sutilmente designados a ciertos
sujetos capacitados para entrar en ese orden del discurso. Otros, en cambio, se com-
portan como discursos abiertos, tópoi secularizados donde el tránsito es más fluido,
menos calificado. FOUCAULT, M. El orden del discurso. Barcelona: Tusquets, 1983.
Foucault, en Los Anormales Foucault analiza tres figuras de la monstruosidad, el
monstruo humano, el incorregible y el onanista, ensayando una especie de arqueo-
logía de las figuras monstruosas y su impacto en el imaginario social. FOUCAULT, M.
Los anormales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001.
Volume 1 99
año, ni fue al lecho del prudente Zeus ni nunca, sentada junto a él en el
trono ricamente decorado, meditaba, como antes, sagaces pareceres,
sino que permaneciendo en los templos plenos de súplicas, se rego-
cijaba con sus ofrendas la soberana de ojos de novilla, Hera” (Himno
Homérico, 344-348).
Hera resiste desde el lugar que le otorga su estatuto de espo-
sa. Desatiende sus deberes conyugales, ignorando el lecho marital y
con ello marca un gesto de resistencia frente a la afrenta de Zeus. Los
juegos de poder que se dan entre ambos esposos se tensan en esta
estrategia política de no acudir al lecho como espacio emblemático de
la función esposa. También quedan suspendidas las pautas vinculares
típicas que caracterizan a la pareja. Hera se corre de su perfil especula-
tivo, y se instala en otro registro, el de la súplica.
Volume 1 101
propiamente lo inasible, aquello que no se puede capturar desde las
herramientas corrientes.
La alteración de las formas rompe con la cadena regular de las
asignaciones discursivas y explicativas. Si pensamos la cultura griega
como un complejo universo de relaciones múltiples, podemos decir
que los griegos construyeron su Mismidad a partir del Otro y con el
Otro, como modo de autodefinición e instalación identitaria. Se trata
de pensar la cultura como un topos múltiple, capaz de albergar dife-
rentes habitantes, con tal que cada cual está perfectamente territo-
rializado en sus marcas específicas. El problema no es exactamente la
presencia del Otro, necesaria y esperable, sino su irrupción allí donde
no se lo espera, ni se tiene las herramientas para conjurar sus efectos.
En este horizonte se inscribe Tifón y parece que hay trans-
gresiones que el Olimpo no perdona, a riesgo de poner en jaque la
mismísima legalidad cósmica. Aquello que empezara siendo un acto
de resistencia de Hera, aparece ahora como un verdadero azote, que
marca con su presencia la estirpe toda de los hombres.
Conclusiones
Volume 1 103
O SAGRADO E A CONSTITUIÇÃO
SIMBÓLICA DA CULTURA MATERIAL:
PERSPECTIVAS TEÓRICAS E
METODOLÓGICAS
Danilo Andrade Tabone1
***
13 HODDER, Ian. Symbols in Action. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
14 LOWENTHAL, D. The past is a foreign country. Cambridge: At University Press,
1985.
15 Na filosofia a ideia parte dos existencialistas, particularmente de SARTRE, J.-P.
O Existencialismo é um Humanismo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012. Na Antropologia a
ideia vem sendo discutida notavelmente por SAHLINS, Marshall. Como pensam os
nativos. São Paulo: Edusp, 2001; Idem. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Zahar,
2003; Idem. História e Cultura: apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Zahar, 2006; e
por VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. E outros en-
saios de Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2013, entre outros.
16 SAHLINS, M. op. cit, 2001; Idem. op. cit., 2006, p. 10.
17 SHANKS, M., TILLEY, C. Social Theory and Archaeology. Albuquerque: Universi-
ty of New Mexico, Press, 1987; SHANKS, M, TILLEY, C. Re-constructing Archaeology.
108 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ológica geral, mas considerando que as práticas rituais produzem uma
categoria de evidência que o arqueólogo pode explorar18.
O próprio termo ‘ritual’ também tem sido criticado por certos
pesquisadores que entendem que este impõe uma distinção artificial
entre pensamento e ação, ganhando a conotação de simples repetição
mental, em favor de ‘performance’, um termo que reconheceria uma
natureza roteirizada do comportamento ritual, mas evitando aquelas
ideias ligadas a ‘ritual’. Esta crítica parte notavelmente de estudos in-
fluenciados pelo Protestantismo, onde o termo ‘ritual’ passou a ter
essa conotação negativa19.
Mas vale lembrar que os Antigos Gregos, assim como não ti-
nham um termo para religião – apenas para ‘sagrado’ – também não
tinham um termo para ‘ritual’, sendo que os seus equivalentes mais
próximos encontrados nos textos são ta nomizomena (= “coisas costu-
meiras”) e ta patria (= “costumes ancestrais”). Termos que assim como
os relativos a ‘sagrado’ (i.e. hierá, hágios), indicam que o sagrado – e as
práticas rituais – não eram entendidas separadamente da sociedade/
cultura, mas que estavam integradas à uma cosmologia própria. Vale
ressaltar que aqui continuo a usar o termo ‘ritual’, assim como ‘culto’,
para me referir às diversas formas de práticas dirigidas intencional-
mente ao mundo do sagrado.
As críticas pós-processuais ao Processualismo se dirigiram
em diversas frentes, a maioria delas dizendo respeito ao processo de
interpretação: o foco sobre as tecnologias adaptativas relacionada a
uma Antropologia que desconsidera o contexto histórico, a definição
‘positivista’ da disciplina derivada do método hipotético-dedutivo de
Hempel, a desconsideração do ‘sentido’ e do ‘símbolo’ em favor de ge-
neralizações inter-culturais, entre outras críticas que acabaram decor-
rendo destas20. Mas apesar dessas críticas terem influenciado certas
questões metodológicas, de modo geral, estas não foram o objeto das
contestações pós-processuais. Deste modo, as propostas metodológi-
cas de Renfrew continuam sendo a principal referência para se estudar
Volume 1 111
considerar a evidência material24 – mas lembrando que essas fontes
possuem uma metodologia e hipóteses de trabalho que são diferen-
tes. Cada documento deve ser considerado em seu próprio contexto de
produção e uso, do mesmo modo como cada categoria de artefato tam-
bém deve ser considerado em seu contexto específico25. Anthony Sno-
dgrass, em Homero e os Artistas, procura entender a produção artística
no período Arcaico Grego, aprofundando-se nas articulações entre as
representações nos vasilhames cerâmicos com os poemas homéricos.
Para tal, aborda as convenções específicas que envolviam cada tipo de
produção, assim como os públicos a que eram destinados e as funções
que exerceram na época de sua circulação, chegando a uma visão bas-
tante inovadora sobre o período estudado, e demonstra a possibilidade
– e a necessidade – do trabalho com os dois tipos de evidência.
Uma série de fontes materiais mais em contato com a reali-
dade das crenças e dos ritos são as imagens: pintadas sobre cerâmica,
relevos em diversos contextos, moedas. Uma das mais interessantes
propostas para sua análise vem da Arqueologia da Imagem26, que des-
de os anos 1980, em torno de duas escolas principais, a de Paris27 e a
Suíça28, tem renovado esses estudos apontando para a importância da
imagem na compreensão da sociedade. Trata-se de passar a se consi-
40 Sem contar os trabalhos em madeira, dos quais quase nada sobreviveu; destes,
no entanto, temos algumas referências feitos pelos autores antigos, muito notavel-
mente por Pausânias.
41 MARTIN, R., METZGER, H. op. cit., p. 10.
42 Para uma introdução à discussão sobre a ‘função’ e a localização dos templos
gregos, cf. COLDSTREAM, J.N. ‘Greek temples: why and where?’. In. E. P. Easterling
(ed.). Greek religion and society. Cambridge: At University Press, 1996; SCHACHTER,
A. ‘Policy, cult, and the placing of greek sanctuaries’. In. AA.VV. Le sanctuaire grec.
Entretiens, tome XXXVII. Fondation Hardt pour l’étude de l’Antiquité Classique, 1992.
43 HOLLOWAY, R. R. The Archaeology of Ancient Sicily. Londres/Nova Iorque: Rout-
ledge, 2000, p. 61.
44 Para uma boa introdução à arquitetura grega (especialmente para templos e tea-
tros), cf. LAWRENCE. Arquitetura Grega. Para discussões sobre a monumentalização de
templos, cf. HIRATA, E. F. V. op. cit.; e TRIGGER, B. ‘Monumental Architecture: a Ther-
modynamic Explanation of Symbolic Behavior’. World Archaeology, v. 22, n. 2, 1990.
116 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
tações artísticas que as análises tradicionais priorizaram no passado.
De modo amplo, o espaço deve ser entendido em sua interação com
a sociedade; sociedade/cultura que imprime no espaço as suas ações
e os seus significados. Neste sentido, o ambiente construído apresen-
ta-se como a concretização de um espaço existencial45. E assim, a mo-
numentalidade dos templos46 – pode ser entendida como símbolo da
dedicação da comunidade à ordem política – que aparece então fundi-
da à ordem sagrada, e ambas confundidas com a ordem cósmica.
Assim, em síntese: 1) existem teorias e métodos para se iden-
tificar e analisar os traços materiais relativos ao sagrado na cultura ma-
terial; 2) esses traços materiais relativos ao sagrados devem ser anali-
sados em seus contextos de produção, uso e achado, pois 3) o sagrado
é parte de um sistema simbólico sem o qual não é possível entendê-lo;
e 4) para o Mundo Grego Antigo, nota-se como o sistema simbólico,
como um todo, refere-se a concepções cosmológicas, e por isso seus
elementos não podem ser desmembrados. Para concluir, observemos
a análise de um caso, o de Argos.
Considerações Finais
14 Aqui citamos o caso do mangá japonês “Saint Seiya” (no Brasil intitulado de “Os
Cavaleiros do Zodíaco”), da autoria de Masami Kurumada e publicado pela Shueisha
(1986-1991). Nesse contexto, a deusa Atena reencarnaria a cada duzentos anos na
Terra para combater o mal e salvar a humanidade. Com isso, Atena enfrentou deuses
como Poseidon e Hades, os quais queriam dominar o mundo humano. O que se
torna curioso neste mangá é o fato da deusa Atena sofrer pela humanidade, em uma
lógica bastante cristianizada, cabendo aos seus “cavaleiros” lutarem em seu lugar, no
intuito de realizar as suas vontades e salvá-la de seus opositores.
15 BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora
Vozes, 2009.p.94.
16 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. In: ORTIZ, Renato (org.).
Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.p.158-159.
17 BOURDIEU, Pierre. Language and Symbolic Power. Trans.: Matthew Adamson.
Oxford: Polity Press, 1991.p.111-113.
18 BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora
Vozes, 2009.p.46.
128 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
modernidade, para que assim correspondessem aos interesses dos su-
jeitos em contextos históricos específicos. Sendo assim, Atena acabou
se destituindo das suas prerrogativas iniciais – atreladas aos elementos
culturais da Antiga Hélade – para atuar em conformidade aos valores
cristãos e do Ocidente moderno. Logo, não seria equivocado afirmar-
mos que entre as representações da Antiguidade e as imagens mo-
dernas de Atena, a única semelhança que haveria entre ambas seria o
nome da referida divindade.
19 BURKERT, Walter. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad.: M. J. Si-
mões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.p.282-285.
20 DEACEY, Susan. Athena and Ares: war, violence and warlike deities. In: VAN
WEES, Hans (Ed.). War and Violence in Ancient Greece. Swansea: The Classical Press
of Wales, 2009.p.285.
Volume 1 129
haja vista que isso simplificaria toda e qualquer abordagem para com
os deuses helênicos e as suas esferas de atuação.
Embora Atena esteja vinculada a questões militares e, por
vezes, estritamente masculinas, devemos recordar que esta também
era responsável por atividades como o fiar de tecidos, a proteção de
jovens, a saúde e a música – tendo sido a responsável pela criação do
aulós21. Para tanto, Susan Deacy classificou Atena como uma deusa
“polimétis”, isto é, uma divindade dotada de destreza para desempe-
nhar múltiplas atividades22 (DEACY, 2008, p.06). Tal epíteto pode ser
materializado pelo discurso mítico do nascimento de Atena. A referida
deusa seria o fruto do relacionamento de Zeus e Métis, sendo esta
última considerada como a mais sábia de todos os deuses e mortais.
Hesíodo enfatizou que Métis, ao engravidar, recebeu uma profecia de
Gaia e Urano onde o resultado do primeiro matrimônio de Zeus23 seria
uma filha. No entanto, como Métis estava destinada a ter herdeiros
grandiosos, o seu segundo filho seria o responsável por destronar o
“senhor dos raios” (Hesíodo, Teogonia, vv. 886-896).
Enquanto divindade, Métis era a personificação da prudência,
mas também da astúcia, tendo em vista que graças ao seu conheci-
mento Zeus pôde fazer com que Cronos expelisse os filhos que havia
devorado (Pseudo-Apolodoro, Biblioteca de História, I, 2.1). Através
de Hesíodo observamos que Atena seria igual ao seu pai em força e
sabedoria, sendo uma das responsáveis por fazer vigorar a ordem de
Zeus (Hesíodo, Teog., vv. 896-901). Convergindo com a documentação
literária, Susan Deacy expôs que, ao engolir Métis, Zeus garantiu que
nenhum filho dessa relação ameaçasse o seu poder. Como Métis seria
21 Segundo Aires Manuel dos Reis Pereira, o aulós (αὐλός) foi um dos principais
instrumentos de sopro da Antiga Hélade. Podendo variar entre as formas cilíndrica e
cônica, o aulós (pl. auloí) era empregado em cerimônias em honra a Dioniso, procis-
sões, danças, nas marchas militares, concursos e até mesmo banquetes. O mesmo po-
deria ser tocado solo, ou combinado com voz e instrumentos de corda. Nas palavras
de Pereira, o termo aulós significaria “tubo” e, enquanto instrumento, era dotado de
uma palheta dupla. PEREIRA, Aires Manuel Rodeia dos Reis. A Mousiké: das Origens
ao Drama de Eurípides. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.p.210-211.
22 DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.06.
23 Diferentemente de Hesíodo, Pseudo-Apolodoro (Biblioteca de História, I, 3.6)
não insere Métis na condição de esposa de Zeus, possivelmente, como uma tentativa
de valorizar o papel de Hera como a “mulher legítima” do “senhor dos raios”.
130 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
a deusa que a tudo conhecia, ao devorá-la, Zeus obteve esta potencia-
lidade e legitimou a sua preponderância sobre as demais divindades.
Logo, Métis detinha atributos suficientes para estar além da autori-
dade do “senhor do Olimpo”, enquanto Atena seria a prudência e a
astúcia de Métis atuando em benefício de Zeus.
Susan Deacy enfatizou que Atena assegurava o sistema patriar-
cal estabelecido por seu pai, devido ao vínculo que mantinha com ele,
desde o seu nascimento24. Convergindo com Hesíodo (Teog., v.929),
Atena nasceu da cabeça de Zeus às margens do lago Triton25, na Líbia.
Pseudo-Apolodoro complementou o discurso de Hesíodo, pois, Zeus
precisou do auxílio de Hefesto (ou Prometeu) para parir Atena, a qual
se encontrava em sua cabeça. O discurso mítico pontua que com um
machado, Hefesto abriu o crânio de Zeus e dali saiu Atena, completa-
mente armada26 (Pseudo-Apolodoro, Bibl. de História, I, 3.6). Sendo
assim, podemos sugerir que Atena seria a divindade responsável por
assegurar que Zeus realizaria os seus desígnios junto aos deuses e aos
mortais, haja vista que, além de ser detentora de força e sabedoria
semelhante ao seu pai, a mesma provinha de sua cabeça partilhando
de seus pensamentos e convicções. De forma semelhante, Atena seria
uma divindade polimétis, à medida que partilhava das prerrogativas de
sua mãe (a mais sábia dos imortais) e de seu pai (o senhor do Olimpo).
Prosseguindo em nossa caracterização de Atena, o segundo
“Hino Homérico a Atena” nos fornece alguns de seus principais atribu-
tos. Dentre estes teríamos o de deusa gloriosa de olhos brilhantes, in-
ventiva em suas ações e de coração inflexível, virgem pura e salvadora
das póleis (Hinos Homéricos, 28.1-4). Podemos discorrer sobre essas
qualidades de Atena, afinal, grande parte desses adjetivos demonstra
aspectos vinculados à justiça e às habilidades técnicas da deusa. Logo,
o fato de ser “salvadora das póleis” (Έρυσίπτολις) fazia com
27 Este trecho foi traduzido a partir da intepretação proposta por Hugh G. Evelyn-
-White, em uma edição da Teogonia de Hesíodo publicada em Cambridge em 1914.
132 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
O sábio Zeus deu à luz [a Atena] de sua esplendorosa cabeça,
trajada em uma armadura brilhante como o ouro, que todos
os deuses ficaram espantados ao contemplarem. Mas Ate-
na saltou rapidamente de sua cabeça imortal e se colocou
diante de Zeus que portava a égide, e agitando a sua pode-
rosa lança fez com que o grande Olimpo começasse a tremer
terrivelmente, devido ao poder da deusa de olhos brilhan-
tes. A terra ao redor chorou de medo, e o mar foi movido
e abatido com ondas escuras, enquanto a espuma irrompia
subitamente. O filho brilhante de Hipérion [Hélios, o sol] pa-
rou os seus velozes cavalos por um longo período, até que a
donzela Pallas Atena retirou a sua armadura celestial de seus
ombros imortais. E o sábio Zeus ficou satisfeito (Hinos Homé-
ricos, 28.1-18)28.
28 Assim como na nota anterior, estabelecemos uma tradução do inglês tendo
como fundamentação Hugh G. Evelyn-White, em obra publicada em 1914. Para
maiores informações vide a bibliografia.
29 DEACEY, Susan. Athena and Ares: war, violence and warlike deities. In: VAN
WEES, Hans (Ed.). War and Violence in Ancient Greece. Swansea: The Classical Press
of Wales, 2009.p.286.
30 A égide poderia ser compreendida como um acessório de combate, tanto para
Volume 1 133
poderia ser entendida tanto como parte de sua indumentária, quanto
também um de seus aparatos de guerra. Inicialmente, a égide seria um
atributo de Zeus, porém, este foi compartilhado por Atena em circuns-
tâncias específicas. Interagindo com Susan Deacy, esta demonstrou
que a égide de Atena poderia ser retirada quando a deusa se encon-
trasse fora de um contexto de guerra31. Tais pressupostos podem ser
materializados nos “Hinos Homéricos”, onde Atena teria retirado todo
o armamento de seus ombros, restabelecendo a ordem do “Univer-
so” (Hinos Homéricos, 28.15-17). Nas palavras de Deacy, Atena mani-
festava o terror, a desordem e a beleza deslumbrante através de seu
armamento – a armadura, o escudo, a égide e o gorgoneion32 – os
quais poderiam não ser utilizados, demonstrando as múltiplas caracte-
rísticas desta divindade. Do mesmo modo, a presença do gorgoneion
associaria a figura de Atena com a da Górgona, enfatizando o quão
terrível esta deusa poderia ser33. Entretanto, a aparente dualidade de
Atena nos permite notar que as divindades helênicas não limitavam
as suas esferas de atuação no mundo. Com isso, qualificar de manei-
Zeus quanto para Atena. A literatura clássica não converge quanto às origens da
égide, sendo por vezes atribuída à pele da cabra Amalteia – responsável por alimen-
tar Zeus em Creta, quando este era criança – e, na variante mais comum, à pele do
gigante Pallas que ao ser derrotado pela deusa Atena, passou a servir-lhe de escudo.
Quanto às potencialidades da égide, Zeus ao sacudi-la produzia tormentas e tempes-
tades. Do mesmo modo, esta foi empregada por Zeus no intuito de salvar Atena de
seu confronto com Palas, quando ambas eram jovens. Ao manifestar a presença da
égide diante de Palas, quando esta combatia Atena, o “senhor dos raios” protegeu a
sua filha, enquanto esta feriu a jovem companheira fatalmente. Esse discurso mítico
também se remete a criação do paládio, sendo esta uma imagem de proteção (Ho-
mero, Ilíada, XVII, vv.592-593; Calímaco, Hinos, 1.45-50; Pseudo-Apolodoro, Biblio-
teca de História, III, 12.3; Diodoro, Biblioteca Histórica, V, 70.2). Logo, a égide seria
uma das partes do armamento de proteção de Zeus e Atena, cuja principal finalidade
seria surpreender, levar o pânico, o terror contra os seus inimigos. Tais pressupostos
demonstram que Atena não estaria diretamente associada aos aspectos físicos da
guerra, ratificando a proposta de Susan Deacy, acerca da deusa ser a responsável
pela “magia da guerra”. Idem.
31 DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.07.
32 O gorgoneion seria um amuleto apotropaico com a imagem da medusa, a qual
visava proteger o seu usuário. No que tange a Atena, o gorgoneion teria a função de
amplificar os poderes da égide, que além de proteger a deusa faria com que os seus
inimigos ficassem acometidos em pânico. Idem.
33 DEACY, Susan. Athena and Ares: war, violence and warlike deities. In: VAN
WEES, Hans (Ed.). War and Violence in Ancient Greece. Swansea: The Classical Press
of Wales, 2009.p.289.
134 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ra polarizada as representações de Atena nos impediria de apreender
as suas potencialidades da forma mais adequada. Afinal, a “deusa de
olhos brilhantes” teria a capacidade de proteger uma pólis e os seus
habitantes, bem como promover o caos e o desespero naqueles que se
colocavam contra os seus protegidos34.
O seu caráter divino atrelado ao equilíbrio e à ordem se tor-
nam evidentes à medida que a mesma detém a potencialidade de se
abster das suas prerrogativas “caóticas” conforme as circunstâncias. Do
mesmo modo, a deusa que fez o Olimpo tremer ao nascer, deixando os
demais imortais estupefatos, também seria a responsável pela manu-
tenção da ordem políade, da tradição e da justiça, aspectos que a atre-
lavam diretamente a Zeus. Sendo assim, a métis de Atena – traduzida
como astúcia, habilidade, destreza – seria empregada nas mais variadas
circunstâncias, não estando limitada a ações e práticas de guerra.
Como verificamos, Atena seria uma divindade multifacetada
e dotada de atributos que permeavam ambientes de interação social,
mas também pressupostos de cunho militar. Ainda que tenha sido apro-
priada e re-significada pelas sociedades ocidentais modernas, seja para
legitimar a ordem social vigente ou para enfatizar a importância de se
pensar o lugar da mulher diante dos excessos masculinos; ainda que
Atena tenha sido representada de inúmeras maneiras, devemos consi-
derá-la através da sua singularidade e em conformidade aos valores da
Antiguidade helênica. Mediante o exposto, poderemos nos debruçar
sobre a importância desta divindade para a sociedade de Esparta.
35 A acrópolis seria a parte mais alta de um território políade, onde, geralmente,
estariam situados os principais templos e construções da pólis. Esta área, em particu-
lar, também detinha uma função de proteção em momentos de guerra.
36 Como nos esclareceu J. T. Hooker, o termo Polioikos seria uma antiga designa-
ção para o santuário de Atena em Esparta. Já Calcioikos foi a denominação que os
lacedemônios deram ao santuário após a construção de Gitíadas, e o uso das chapas
de bronze para revestir as paredes do mesmo. HOOKER, J.T. The Ancient Spartans.
London: J. M. Dent & Sons Ltd., 1980.p.49.
37 LARSON, Jennifer. Ancient Greek Cults – A Guide. New York; London: Routledge,
Volume 1 137
lodoro, o paládio foi uma imagem de pequenas proporções que repre-
sentava Atena e/ou a ninfa Palas, cujas propriedades divinas garantia
a proteção da pólis que a detivesse. O referido autor elucida que a his-
tória do paládio se remete à formação educacional de Atena e ao seu
treinamento militar junto à ninfa Palas. Enquanto praticavam a arte da
guerra, Palas iria ferir Atena, o que levou Zeus a interferir no embate
colocando a sua égide diante da ninfa. Esta, ao se surpreender com
a terrível visão, foi mortalmente ferida por Atena, a qual confeccio-
nou uma imagem de Palas – em madeira – no intuito de honrar a sua
companheira de treino (Pseudo-Apolodoro, Bibl. de História, III, 12.3).
Pseudo-Apolodoro afirmou que o paládio original estaria em Tróia, e
ao ser secretamente tomado pelos aqueus, levou o reino de Príamo à
ruína. Não seria incorreto afirmarmos que as póleis, entre os Períodos
Arcaico e Clássico, tenham se arrogado como detentoras do paládio de
Tróia. Portanto, verificamos que em Esparta a presença de uma ima-
gem em bronze da deusa Atena seria uma alusão ao paládio, cuja fun-
ção apotropaica seria proteger a pólis dos esparciatas.
Na perspectiva de Jennifer Larson, em Esparta, todo o interior
do templo de Atena era revestido com placas de bronze, nas quais ha-
via relevos dos feitos de alguns heróis importantes para o Peloponeso,
tais como Héracles, os Dióscuros e Perseu38. A argumentação de Lar-
son nos demonstra que as paredes deste santuário teriam um caráter
de memória. Com isso, os seus frequentadores poderiam apreciar as
ações de heróis míticos, os quais serviram como matriz para a con-
duta dos esparciatas, tendo em vista que a sua formação priorizava a
construção de um modelo ideal de cidadão, com base nas ações dos
grandes homens de outrora.
Como havíamos exposto, Atena detinha grande importância
junto aos exércitos de Esparta. Ao confluirmos com Nicolas Richer, este
afirmou que o culto de Atena em Esparta estaria diretamente associa-
do ao de Zeus39. Em certa medida, Richer não estaria equivocado ao
elaborar tais apontamentos. Como nos informou Plutarco, ao tentar
transformar a constituição e a conduta dos homens de Esparta, o míti-
2007.p.48.
38 Ibidem, p.53.
39 RICHER, Nicolas. La Religion des Spartiates – Croyances et cultes dans l’Antiqui-
tes. Paris: Les Belles Lettres, 2012.p.26.
138 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
co legislador Licurgo conseguiu que Apolo sancionasse as suas propos-
tas. Com isso, o “deus de Delfos” sugeriu que fosse construído em Es-
parta um santuário para Zeus e Atena, sob o epíteto de Silâneo/Silânea
(Plutarco, Vida de Licurgo, 6.1). Richer declarou que a matriz dessa de-
signação é incerta, porém, denotaria “o guerreiro/a guerreira”, sendo
Zeus, Apolo e Atena três das divindades mais antigas e importantes de
Esparta40. Richer prossegue em seus apontamentos e complementa
a nossa exposição, pois, enquanto Polioikos, Atena seria a “guardiã da
pólis” de Esparta, mas, na condição de Calcioikos a referida deusa atu-
aria como a defensora dos exércitos41.
A prerrogativa de Atena como protetora dos guerreiros foi
apresentada no primeiro “Hino Homérico a Atena”, onde a deusa seria
a responsável por “[...] levar os homens à guerra e trazê-los de volta,
em segurança” (Hinos Homéricos, 11.3-4). Por um viés distinto, Xeno-
fonte declarou que antes de partirem para a guerra, o basileu lacede-
mônio sacrificava em honra a Zeus Líder (Agetor) e aos Dióscuros. Ao
conseguir presságios favoráveis, o “condutor da chama”42 (pyrphoros)
tomava o fogo do altar e marchava à frente do exército até os limites da
Lacedemônia. Entre a pátria e o território estrangeiro, o basileu deveria
realizar a diabatéria (sacrifício de fronteira) em honra a Zeus e Atena, e
somente ao conseguir presságios adequados atravessavam a fronteira
com os exércitos (Xen. Cons. Lac., 13.2-3). O discurso de Xenfonte nos
permite conjeturar que a diabatéria seria um mecanismo empregado
pelos guerreiros de Esparta para conseguirem sancionar as suas inves-
tidas militares, garantindo a proteção de Zeus e Atena durante as expe-
dições. De fato, como a divindade tutelar dos guerreiros esparciatas,
Atena estaria assegurando a manutenção do contingente masculino da
pólis, necessário para a proteção e a continuidade da tradição ancestral
desta sociedade. Sendo assim, a relação que Zeus e Atena mantinham
em Esparta era justificada à medida que a deusa estaria atuando junto
ao seu pai, sendo esta uma maneira de fazer com que os valores po-
45 ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. O rito de Artemis Orthia e o processo de
formação do jovem espartano, no período Clássico. In: CANDIDO, Maria Regina
(Org.). Práticas Religiosas no Mediterrâneo Antigo – Religião, Rito e Mito. Rio de Ja-
Volume 1 141
notamos que tais características poderiam ser alinhadas às potenciali-
dades de Atena, visto que além de realizarem exaustivamente os exer-
cícios de preparo físico, os jovens também eram levados a desenvol-
verem a sua métis. Logo, a astúcia seria um diferencial no interior dos
exércitos espartanos, permitindo que um sujeito se destacasse sobre o
outro e viesse a obter cargos de maior proeminência político-militar na
sociedade. Com isso, verificamos que os guerreiros não se constituem
unicamente pelas suas atribuições físicas, mas também pelas suas ca-
pacidades mentais – associadas à métis– e ao modo como agiriam em
circunstâncias desfavoráveis, no interior da guerra.
Dialogando com Plutarco (Vida de Licurgo, 24.1), o mesmo
enfatizou que em Esparta o processo de formação se estendia à vida
adulta. Xenofonte (Cons. Lac.,4.7) afirma que os cidadãos de Esparta
deveriam se dedicar à caça, pois assim não descuidariam do vigor físico
e saberiam suportar as fadigas tanto quanto os jovens. Ampliando o dis-
curso de Xenofonte, podemos afirmar que a caça também pressupõe
o conhecimento e aprimoramento de técnicas destinadas ao sucesso
deste empreendimento. Com isso, um sujeito não deveria ter somente
o conhecimento técnico da atividade de caça, mas também deveria ser
astuto e suficientemente dotado de “métis” para que pudesse se ade-
quar às circunstâncias advindas desta prática. Sendo assim, o discurso
de Xenofonte se torna esclarecedor, afinal, os guerreiros esparciatas
seriam capazes de realizarem manobras militares demasiadamente di-
fíceis, em virtude dos anos que praticaram para desenvolverem estas
habilidades técnicas (Cons. Lac., 11.8). Desta forma, verificamos que
embora os autores clássicos não tenham mencionado de maneira evi-
dente a presença de Atena junto aos exércitos espartanos, as prerro-
gativas desta deusa se manifestavam, a todo o momento, na conduta
dos guerreiros esparciatas.
Se tomarmos os indícios dos “Hinos Homéricos a Atena”, ire-
mos notar que ao nascer a deusa Atena causou pânico nas demais
divindades devido ao brilho de seus olhos e de sua armadura. Essa
luminosidade de Atena estaria associada ao que Susan Deacy chamou
de a “magia da guerra”, a qual estava voltada a causar o pânico nos
seus adversários. Tais aspectos, em certa medida, podem ser associa-
46 Podemos sugerir que o brilho dos escudos de bronze teria uma finalidade se-
melhante a dos olhos de Atena, ou seja, causar o pânico nos adversários por ofus-
car-lhes a visão.
Volume 1 143
pelo som do aulós, responsável por cadenciar a marcha dos esparcia-
tas (Xen., Cons. Lac., 13.7-8). Plutarco pontuou que após os últimos
sacrifícios no campo de batalha, o basileu determinava que os auletas
tocassem o aulós e iniciassem a “ária de Castor” (Plut. Vida de Licurgo,
22.2). Mediante os indícios documentais devemos destacar que o au-
lós teria sido uma criação de Atena e, embora não fosse exclusivo em
Esparta, nos demonstra que a referida deusa se mantinha amplamente
associada à conduta dos guerreiros esparciatas, ainda que os indícios
documentais não sejam evidentes.
Considerações Finais
Volume 1 145
DEUSES VIVOS, PRESENTES E
HONRADOS:
A EUSÉBEIA E A CULTURA DAS IMAGENS
Renata Cardoso Belleboni-Rodrigues1
Isso não quer dizer que o grego confunde tudo, que vive
numa espécie de mentalidade primitiva onde tudo participa-
ria de tudo. Quando pensa religiosamente, o grego faz distin-
ções, mas que não são as nossas.20
18 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica
D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p.8-9.
19 VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. Trad. Jônatas Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.69.
20 Idem, Mito e sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Campello. Rio de Janei-
ro: José Olympio, 1999, p.91.
Volume 1 153
feita desde o início do século passado e mais intensamente nos finais do
mesmo e início deste, com novas fontes, novas metodologias, novas ba-
ses teóricas. Em outros termos, aceitar esta confusão nos tornaria pre-
sos a alguns estudiosos dos séculos XVIII e XIX que, pelo contexto histo-
riográfico do período, tomavam a religiosidade e mitologia gregas como
algo incongruente, bizarro, mentiroso, insano ou mesmo fantasioso.21
A certeza de que o grego não confunde tudo, embora não se-
pare os elementos da ordem do sobrenatural com o social, vem da
percepção, por meio da análise de inúmeras fontes escritas e de repre-
sentação figurada, de que ele, embora atribua muitos elementos da
natureza às ações divinas, sabem que as ocorrências naturais são dos
deuses e não eles próprios. Assim, para citar apenas dois exemplos, o
raio e o trovão são de Zeus e não ele; o maremoto é de Poseidon e não
ele; “...só se vê uma potência através de sua manifestação aos olhos
dos homens mas, ao mesmo tempo, ela transborda sempre todas as
suas manifestações; não se confunde com nenhuma delas”.22
Mas como entrar em contato (e não comunhão) com os imor-
tais? Partimos de duas formas: as preces e os hinos. Acerca das pre-
ces, apenas depois do meado do século XX surgiram estudos especí-
ficos. Até este momento, o que havia eram estudos que o abordavam
no interior de outros debates como aqueles sobre ritos ou hinos, por
exemplo. Nas preces e hinos os gregos cantavam os feitos dos deuses,
faziam conhecer, exaltar e perpetuar suas glórias.
A respeito das preces, muito próximas dos hinos, dos jura-
mentos e apelos, o vocabulário grego nos apresenta especialmente
três verbos: euchomai (reivindicação pessoal), araomai (muito utili-
zado nas imprecações) e lissomai, associado a hiknéomai (princípio/
apresentação de uma solicitação). Faz-se importante destacar, que as
preces eram feitas em voz alta, numa tentativa de se convencer os deu-
ses e não solicitar suas atuações em situações complicadas aos demais
mortais. Há que se destacar ainda, a prece como ‘palavra’. A questão
23 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica
D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p.8.
24 EURIPIDE. Hippolyte, Andromaque, Hécube. Téxte établi et traduit par Louis
MÉRIDIER. 2eme ed. Paris: Les Belles Lettres, 1956.
Volume 1 155
Quanto aos hinos25, parte importante dos rituais e mesmo
festivais, eles agiam como proêmios da ação principal. Talvez não re-
conheçamos a real eficácia sagrada deste recurso uma vez que apenas
textos chegaram até nós. A este respeito, Cabral escreve:
25 OLIVEIRA, Flávio Ribeiro de. Duas passagens de Platão afirmam que o hino é um
gênero literário estritamente ligado ao divino (República607a; Banquete 177a). A. E.
Harvey (“The classification of greek lyric poetry”, CQ 5, 1955, p. 165) crê que, nesses
trechos, o propósito de Platão tenha sido definir o hino como um canto cultual diri-
gido aos deuses (e não aos mortais). Contudo, essa definição da poesia hínica como
canto associado a uma prática cultual é problemática: o próprio Harvey (ibidem) ad-
mite que, na literatura grega, o termo “hino” é aplicado a praticamente qualquer
tipo de canto. De fato, o corpus que forma a hínica grega apresenta grande variedade
formal e funcional – ali encontramos hinos cultuais, mas também simpóticos, líricos,
rapsódicos. Muitos hinos têm de fato uma função cultual; há outros, contudo, que
são de fundo literário e não estão associados a nenhum culto. Disponível em:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2011/09/02/hinos-gregos-entre-o-divino-e-o-profano/
Para aprofundamento das questões sobre os hinos indicamos a leitura de A palavra
ofertada. Um estudo retórico de hinos gregos e indianos | José Marcos Macedo |
Editora Unicamp, 2010.
Sobre a questão da nomenclatura dos hinos homéricos e não de Homero, sugerimos
a leitura de O Hino Homérico a Apolo, de Luiz Alberto Machado Cabral, editado pela
Ateliê Editorial, 2004; e RIBEIRO JR., Wilson A. (Ed.) Hinos Homéricos: tradução, notas
e estudo. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
26 CABRAL, Luiz Alberto Machado. O hino homérico a Apolo. Cotia, SP: Ateliê Edi-
torial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004, p.21.
156 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
regozijando-se com a caça, estende seu arco de ouro,
enviando flechas gementes. Tremem os cumes
das elevadas montanhas, grita a floresta sombria,
pelos rosnados dos animais, e agitam-se a terra
e o mar piscoso. Ela, de coração valente,
bole por todo lado, aniquilando a raça dos animais.
Depois de regozijar e agradar seu espírito, a flecheira,
observadora das feras, afrouxando o arco flexível,
vai ao paço grande do caro irmão,
Febo Apolo, na terra opulenta de Delfos,
para preparar o belo coro das Musas e das Graças.
Ali, suspendendo o arco esticado e as flechas,
e trazendo no corpo gracioso adorno,
dirige os coros dando o sinal. Lançam imperecível voz e cantam,
como Leto de belos tornozelos pariu, dentre os imortais, filhos
superiormente melhores nos desígnios e nas ações.
Alegrai-vos, filhos de Zeus e Leto de belos cabelos.
Depois me lembrarei de vós e de outro canto.27
27 MASSI, Maria Lúcia Gili. Zeus e a poderosa indiferença. USP: Faculdade de Fi-
losofia, Letras e Ciências Humanas. (Tese de doutorado). Disponível em http://www.
teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-04092006-152413/pt-br.php
Volume 1 157
Fig. 1 - Ártemis caçando. Cópia romana em mármore, I-II d.C., conhecida como
Ártemis de Versalhes, 2m. Encontrada na Itália. Paris: Louvre. Original em bronze,
atribuído a Leochares, de 325 a.C.28
30 BUXTON, Richard. Religião e mito. In: CARTLEDGE, Paul (org.) História ilustrada da
Grécia Antiga. Trad. Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p.441.
31 VIDAL-NAQUET, Pierre. op. cit., p.74.
32 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sacrif%C3%ADcio_na_Gr%C3%A9cia_An-
tiga#/media/File:Sacrifice_scene_Louvre_G402.jpg - Acesso em: 12 dez 2015.
Volume 1 159
Mas há um porém. Nem sempre os sacrifícios ou ofertas eram
aceitas pelos deuses, fossem ofertas vegetais, animais, objetos votivos
e mesmo presentes. Para o praticante da eusébeia, as frustações ou
negativas sentidas no cotidiano, após os sacrifícios, poderiam ser in-
terpretadas como a recusa divina de suas oferendas. Na própria Ilíada
temos um exemplo. No canto VI, Heitor pediu à sua mãe, Hécuba, que
recorresse a Atena e lhe apresentasse uma oferenda. O item selecio-
nado foi um grande e brilhante véu com lindos bordados. Ao chegarem
ao templo troiano da deusa, a rainha e suas companheiras o entrega-
ram à sacerdotisa de linda face, Teano. Esta, por suas funções, o depo-
sitou nos joelhos da deusa e suplicou:
33 HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2005. (Il., VI, 305-310)
160 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
homem era lembrado de suas raízes, de sua cultura, de seus deveres
para com os deuses e mesmo para com os demais mortais que com-
partilhavam de sua existência, porque a religião era cívica. As imagens
não lhe deixavam esquecer de quem ele era, dos modelos a seguir, dos
cuidados a tomar em relação aos deuses. O homem não estava sozinho
na empreitada de vencer os obstáculos da vida. Os deuses estavam
com eles, visíveis e vivos em suas representações.
Mas como reconhecê-los? Como ter certeza de quem era
aquela representação? Tonio Hölscher, em sua obra La vie des images
grecques parte da constatação que, na Grécia antiga, as imagens fa-
ziam parte integrante do mundo vivo e que, falando propriamente, ‘os
homens viviam com elas’.34
Se havia uma inscrição ao lado da imagem no vaso ou na base
da estátua, para quem lia a identificação estava dada e era partilhada.
Sem este recurso e mesmo com ele, para os que hoje chamamos de
não alfabetizados, as memórias oral e visual eram requisitadas. Por
meio da tradição oral o grego já estabelecia as relações. O tempo aju-
dou a estabelecer as convenções na arte figurada. Mas o tempo não
foi o único aliado desse homem praticante da eusébeia. O teatro, já
no período clássico, foi um importante recurso para os olhos e para a
arte. A arqueóloga Haiganuch Sarian discute esta questão, da cenogra-
fia teatral servir como inspiração da arte figurada nos vasos, em um
artigo intitulado A expressão imagética do mito e da religião nos vasos
gregos e de tradição grega.35
A respeito das imagens das coisas sagradas nos vasos, em
grande parte utilizada nos rituais, nos é difícil afirmar que os gregos
as percebiam todas, em seus mínimos detalhes, principalmente o ex-
pectador que se encontra um pouco mais distante do ato ritual. No
entanto, “se não há forçosamente a necessidade de olhar as imagens
34 HÖLSCHER, Tonio. La vie des images grecques. Sociétés de statues, rôles des ar-
tistes et notions esthétiques dans l’art grec ancien. Traduction d’allemand par Laure
Bernardi. Paris: Musée du Louvre / Hazan, 2015, p.12.
35 SARIAN, Haiganuch. A. Expressão imagética do mito e da religião nos vasos
gregos e da tradição grega. In: Cultura clássica em debate: estudos de Arqueologia,
História, Filosofia, Literatura e Lingüistica Greco-Romana. Belo Horizonte: Universi-
dade Federal de Minas Gerais, 1987, p. 15-50.
Volume 1 161
com intensidade, era difícil não vê-las. Elas tinham no decorrer da exis-
tência um grande poder de interpelação”.36
Vejamos três exemplos da religiosidade em vasos do período
arcaico.
Fig. 3 – Dioniso, Hermes, Atena, Zeus, Hera, Afrodite. Assembleia dos deuses. De-
senho de Notor a partir de uma ânfora báquica arcaica de figuras negras. (Coleção
Bassegio, Roma)37.
40 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Cam-
pello. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p.95.
41 SARIAN, Haiganuch. op. cit., , p. 48.
164 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
O que dizer dos templos, moradas dos deuses? Antes mesmo
dos espaços propriamente políticos, eles foram os primeiros projetos
arquiteturais de grande escala construídos por comunidades dos cida-
dãos. Esse fato nos leva a imaginar que possa ter brotado, no corpo
cívico envolvido no longo processo coletivo de realização destes edifí-
cios dedicados aos imortais, um novo sentimento de coesão. A cons-
trução de um templo seja em uma acrópole, ou em um santuário, era
a realização de uma coletividade. Era a cidade mostrando sua religiosi-
dade e mesmo sua força.
No seu interior nenhum sangue era derramado e nem mesmo
era frequentado com tamanha intensidade como nos dias atuais. Em-
bora feito pela cidade, nele a ekklesia não se reunia. Para ali entrar era
preciso que o piedoso se purificasse. E estando dentro, o temor aos
deuses lhe sussurrava à mente: faça sua prece. “O templo é mais do
que um edifício protegendo a imagem da divindade, ele é o sinal visível
dos lugares religiosos que mantém a divindade e a comunidade”.42
Este espaço sagrado era integrado nos rituais enquanto repre-
sentantes da divindade. Sobre seus ornamentos, devemos considerar
que o que está(va) representado em suas métopes, por exemplo, não
eram objetos de veneração, e muitas vezes nem mesmo de observa-
ção. É bem possível que quase nenhum grego, em momentos de cul-
tos, tenha dado uma volta completa em torno do templo para apreciar
a figuração. No entanto, ela não é aleatória, uma vez que apresenta
elementos importantes ao deus a quem é dedicado e mesmo à cidade
que o construiu. Há uma organização de significados representados. As
imagens revelam o kosmos, a atmosfera do ambiente.
A descrição de Plutarco acerca da construção dos templos,
neste caso específico, do Partenon, nos deixa clara a participação ativa
da comunidade em uma das etapas desta religiosidade cívica:
Considerações Finais
46 Fonte: ttps://www.google.com.br/search?q=atena+crisilefantina&espv=2&-
biw=1280&bih=699&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiJybCYudXKAhU-
Jkx4KHYKBBkkQ_AUIBygC#tbm=isch&q=atena+crisilefantina+boardman&imgrc=Nr-
bk1urMbuFXTM%3A. Acessado em: 30/03/2016.
47 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Cam-
pello. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p.103.
168 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
EDIFÍCIOS DE ESPETÁCULOS E RELIGIÃO
NO NORTE DAS GÁLIAS
Filipe Carvalheiro-Ferreira48 – Marin Mauger49
que international d’Avenches 2-4 novembre 2006 ,Antiqua - Basel, 2008, p.283-286 .
58 MUTARELLI, Enzo, In : DORION-PEYRONNET, Les Gaulois face à Rome: la Nor-
mandie entre deux mondes, Rouen, 2009, p. 52.
59 NICOLLE, Jean-Marie, MAHO, Jacques, « Le théâtre gallo-romain de Canouville
(Seine-Maritime) », Gallia, 37, 2, 1979, Paris, p. 237-246.
60 HARTZ Cécile, « Le sanctuaire du Vieil-Evreux : une création urbaine originale »,
http://hicsa.univ-paris1.fr/documents/pdf/MondeRomainMedieval/Art%20CHartz.
pdf In : La Monumentalité urbaine - Journée d’étude du 4 novembre 2011, EA-4100
HiCSA, p. 1-7.
172 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
importantes pórticos laterais. Ao sudeste, foi descoberto um edifício
termal, um macellum, e alguns templos de tipo galo-romano. A nor-
te, um espaço público, tradicionalmente chamado forum e um teatro.
Podemos notar que o templo central e o teatro são separados por um
pórtico duplo que servia provavelmente para materializar uma sepa-
ração entre o temenos e o resto do santuário61. Uma via importante
também foi identificada entre os dois monumentos. Este tipo de ali-
nhamento existe em vários exemplos e permite supor a existência de
procissões entre os templos e o teatro. No caso do Vieil-Evreux, tam-
bém podemos notar que a cavea do teatro esta ligeiramente orientada
mais para Oeste que os templos. Este desalinhamento deve-se mais às
facilidades oferecidas pela topografia do local do que a qualquer rela-
ção astronómica como alguns pensaram62. Não há nenhuma “relação
solar” imaginável neste caso. De facto, os construtores aproveitaram
simplesmente o declive natural do terreno, utilizando o mesmo cri-
tério para o templo, cuja construção foi feita num dos lugares mais
elevados do planalto. Este santuário, situado a mais de 5 km da ca-
pital do povo dos Aulerci Eburovices, Mediolanum Aulercorum (atual
Evreux), constitui um centro religioso importante, onde o teatro fica
claramente separado do conjunto sagrado, mas mantém com ele uma
relação privilegiada. O edifício de espetáculo está incluído no espaço
delimitado pelo pórtico monumental e situa-se na proximidade duma
das entradas do santuário, correspondendo a uma evidente cenografia
cujo objetivo era imprecionar os diferentes visitantes que chegavam
pelo norte. Podemos supor o mesmo para outros teatros como aque-
le de Ribemont-sur-Ancre. Neste caso, a esplanada central, delimitada
também pelo um pórtico, dispõe de um teatro que mais uma vez, fica
rejeitado fora do temenos do templo63. Aqui, o alinhamento é parti-
68 MAGNAN Danielle, LE COZ, Guy, VERMEERSCH Didier, 2012, Les édifices de
spectacles en Ile-de-France. Supplément à la Revue archéologique du Centre de la
France, 39, FERACF, Tours, 2012.
69 Ibid. p. 212.
70 Ibid. p. 140 e 164.
71 Ibid. p. 127-128.
72 GOGUEY, René, « Le théâtre « du temple de Janus » à Autun : les données de
la photographie aérienne et l’environnement archéologique. In : LANDES, Christian,
Spectacula – II, Le théâtre antique et ses spectacles. Actes du colloque tenu au Musée
Volume 1 175
necessitou da construção de um monumento de espetáculos. Por en-
quanto, esta hipótese não implica que os teatros sejam diretamente
situados ao lado do santuário. O exemplo da capital dos Aulerci Dia-
blintes, Jublains, pode também ser evocado : o santuário suburbano e
o teatro são exatamente opostos na trama urbana, mas a via principal
que atravessa a cidade, define um eixo monumental onde ambos mo-
numentos constituem os dois polos principais73. É necessário recordar
que, mais uma vez, foram necessidades religiosas que orientaram o
templo, mas que a orientação do teatro (e do resto da trama urbana da
cidade) foi claramente influenciada pela topografia. Se existem teatros
em relação aos santuários suburbanos a que elementos podemos ligar
aqueles presentes na trama urbana ?
É difícil imaginar, depois dos vários conjuntos monumentais
desenvolvidos durante o período augusteo, que um edifício de
espetáculo não seja relacionado com um dos órgãos da cidade. Na
maioria dos casos, Orange, Nîmes, Lyon e outros, o edifício participa
a cenografia urbana74. No norte das Gálias, o desconhecimento da
maioria das tramas urbanas das diferentes capitais de civitates não
permite sempre de avaliar a relação entre um templo e um teatro. O
teatro de Lillebonne, por exemplo é suposto situar-se na proximidade
do forum, mas a identificação do conjunto comercial descoberto não
foi verificada75. Outras cidades deixam entrever uma relação possível
entre um templo ou o centro nevrálgico da cidade, o forum. A cidade
de Lutecia, que corresponde a atual cidade de Paris, dispõe de dois
edifícios de espetáculos. Se as celebres “Arènes de Lutèce” estão si-
tuadas nos flancos das colinas dominando o rio Bièvre, o teatro da rua
Racine, foi construído do outro lado do monte Sainte-Geneviève, e de
facto, foi incluído a trama ortogonal da cidade onde ocupa duas insu-
lae. O forum de Paris situa-se mais ao sul, no topo do mesmo monte.
Se a monumentalização do forum só começa realmente no fim do I s.
Archéologique Henri Prades de Lattes les 27, 28, 29 et 30 Avril 1989. Musée archéo-
logique Henri Prades, Lattes, 1992, p. 45-56.
73 DEBIEN, Bernard, « Le théâtre de Jublains », In : Dossier d’histoire et d’archéo-
logie, n°134, p. 82-83.
74 Supra 3, DUMASY, 2011, p. 201-202.
75 Supra11, MUTARELLI, 2011, p. 28.
176 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
d. C. 76, é possível que os dois conjuntos, situados no centro da cida-
de tenham feito parte do projeto inicial. Apesar dos dois edifícios não
apresentarem nenhuma relação visual, podemos supor que esta é feita
pelo cardo que reúne os dois edifícios distantes de 200 m 77. Atual-
mente, não existe outro templo conhecido situado na proximidade do
teatro. O monumento era provavelmente necessário durante certas
manifestações próprias dos cultos presentes na cidade, e mais especi-
ficamente no forum. Temos que admitir que hoje em dia, nenhum dos
teatros observados nas capitais de civitates pode ser relacionado dire-
tamente com o forum. No caso de Paris, esta distância é imposta pela
cenografia da cidade : o templo do forum que está diretamente ligado
ao culto das autoridades da cidade e do Imperio só podia ser disposto
no lugar mais alto da cidade. O teatro, mais uma vez, tira vantagem do
declive do terreno pela instalação da cavea. Porquê rejeitar então as
arenas de Lutecia fora da cidade ? O edifício de espetáculo da capital
dos Viducasses, Aregenua, atualmente Vieux-la-Romaine, oferece um
caso semelhante. O edifício de espetáculo, também equipado de uma
arena, situa-se nas margem da cidade78. A rejeição dos edifícios de es-
petáculos fora do centro da cidade responde a várias necessidades que
podem ser religiosas ou simplesmente praticas. É provável que a cons-
tituição de verdadeiros bairros dedicados aos edifícios de espetáculos
facilite o acesso e a gestão dos numerosos espectadores que estavam
em redor dos edifícios durantes as festas. Por enquanto, é interessan-
te notar a crescente importância que tomam os jogos de gladiadores.
Vários edifícios são conhecidos por serem teatros adaptados a este
tipo de manifestações, e estão, na maioria dos casos, presentes nas
capitais79, outros foram descobertos nas cidades secundárias e nos
santuários. O anfiteatro de Samarobiva (Amiens), capital dos Ambiani,
propõe um exemplo interessante : neste caso o edifício de espetáculo
situa-se diretamente atrás do conjunto do forum composto por uma
76 BUISSON, Didier, Paris – Carte archéologique de la Gaule 75. Académie des
Inscriptions et Belles Lettres, Paris, 1998.
77 Supra 3, DUMASY, 2011, p. 202.
78 VIPARD, Pascal, La cité d’Aregenua (Vieux, Calvados), chef-lieu des Viducasses :
état des connaissances, Exe, Paris, 2002.
79 Podemos mencionar por exemplo os teatros de Paris, Evreux, Vieux-la-Romaine
nas capitais de civitates, Beaumont-sur-Oise, o Vieil-Evreux, e Ribemont-sur-Ancre
pelas cidades secundárias e os sanctuários.
Volume 1 177
basílica, uma esplanada rodeada de comércios e por um templo80.
Existe um acesso direto entre o pórtico do forum e as escadas do anfi-
teatro, traduzindo assim uma relação evidente entre os monumentos.
O teatro descoberto recentemente na mesma cidade, foi datado do
inicio do II s. d. C. Neste caso, as representações no anfiteatro foram
privilegiadas e provavelmente ligadas às cerimonias do culto civico
presentes no centro urbano da cidade, o teatro sendo rejeitado para a
periferia da cidade81.
A situação dos edifícios de espetáculos nas diferentes tramas
urbanas observadas, fornecem preciosos indícios. Primeiramente, po-
demos notar que vários teatros são localizados nos santuários. Podem
ser integrados no bairro monumental mas em nenhum dos casos per-
manece no temenos do templo. No que se refere à posição do teatro
nos santuários, o alinhamento de certos exemplos evocados não é sis-
temático mas os outros planos urbanos não impedem qualquer rela-
ção entre os dois edifícios. No que se refere às procissões, é necessário
recordar que estamos frente a elementos pelos quais, ainda hoje, não
temos nenhum vestígio material no norte das Gálias. Nas capitais de
civitates podemos notar que temos edifícios que apresentam ligações
com os templos dos santuários suburbanos e outros com os órgãos
políticos e religiosos oficias da cidade. Podemos concluir que o teatro
quase sempre figura como um dos elementos próprios dos conjuntos
monumentais e que a sua situação pode implicar um uso religioso do
monumento.
2.1 Cavea
95 RAMALLO ASENSIO, Sebastian, Espaces, images et mobilier utilisés pour le culte
dans les théâtres romains d’Hispania. In : MORETTI Jean-Charles, Fronts de scène et
lieux de culte dans le théâtre antique. Travaux de la Maison de l’Orient et de la Médi-
terranée, Lyon, 2009, p. 127-156.
96 Ibid. p. 142.
97 Supra 3 Fincker, Tassaux, 1992, p. 68 ; Tardy 2009, p. 176 e ver tambem ROS-
SO, Emmanuelle, L’image de l’empereur en Gaule romaine: portraits et inscriptions.
Archéologie et histoire de l’art, 20, Comité des Travaux Historiques et Scientifiques,
Paris, 2006.
182 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
mos o culto imperial. Por último, sabemos que o muro que fecha o con-
junto cénico, é também conhecido nos outros teatros por apresentar
figuras dos deuses ou dos imperadores, que podiam ser acompanha-
dos por outras entidades. Estas figuras impunham uma certa forma de
respeito, mas não podem ser consideradas como estatuas de culto98.
A frons scaenae dos teatros galo-romanos são pouco conhecidas. Por
enquanto, aqueles que apresentavam uma decoração esculpida mais
fornecida proveem do norte das Gálias : Epiais-Rhus, Paris (as arenas)
e, mais uma vez, Vendeuil-Caply. Por enquanto, nenhum estudo re-
cente permite confirmar os programas iconográficos expostos nestes
monumentos, e a identificação de um fragmento de rostro por E. Belot
como sendo um retrato do imperador Trajano no teatro de Vendeuil-
-Caply é bastante abusiva99. Só um retrato do imperador Tito, desco-
berto nas arenas de Paris, nos deixa imaginar que a figura imperial po-
dia ser presente nestes teatros100. Seja como for, é difícil imaginar que
a decoração esculpida nos teatros do norte das Gálias, respondesse às
mesmas exigências que os programas requeridos nos teatros do início
do império. No fim do I s. d. C., o anfiteatro oferece uma alternativa ao
teatro e constitui, nos centros urbanos, o novo lugar de expressão da
ideologia imperial, como sugerem talvez as arenas de Paris, nas quais,
encontrava-se provavelmente a figura do imperador.
Nos diferentes exemplos apresentados e no estado atual das
investigações, podemos notar que não é possível determinar de ma-
neira definitiva o lugar do culto nos teatros galo-romanos do norte das
Gálias. Só conhecemos um sacellum e um altar dentro de um teatro na
região estudada, mas também é possível que os lugares de culto sejam
rejeitados diretamente fora do monumento, e integrados por exemplo,
num pórtico. Alguns dos teatros mencionados dispõem de esplanadas
porticadas observada no XIX s. mas poucas foram escavadas recente-
3 Os atores do rito
101 Podemos mencionar, por exemplo, o pórtico do teatro do Vieil-Evreux, cf. Supra
35
TARDY, 2009, p. 179-180 p. 129 ; ou tambem aquele do teatro de Champlieu, cf.
Supra 18 DI STEFANO, 2007, p. 153.
184 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ou um magistrado ? Em que medida a invocaçao dedicatoria de um
edifício de espetáculo define o culto dado nestes monumentos ? será
que o teatro é ligado a um deus único ou os espetáculos podiam ser
ofertos a diversas divindades conforme o calendario civico ? São tantas
perguntas que temos que guardar em mente para cada inscriçao do
nosso corpus reduzido. De facto, na zona estudada, só duas inscrições
mencionam a dedicação de um edifício de espetáculos e três outras
à edição do munus. O conjunto dos dedicantes são qualificados, com
ou sem razão, de sacerdotes do culto imperial. É essencial para nós
refletir sobre as relações estreitas entre o culto imperial e os edifícios
de espetáculos. Estudaremos, num primeiro tempo, os evérgetas dos
edifícios de espetáculos para focalizarmo-nos depois sobre os editores
do munus e, em fim, refletir sobre o papel desempenhado pelos sacer-
dotes na liturgia destes monumentos.
Volume 1 185
--- / et T]auricus fil[---]102. Todavia, a restituição proposta coloca certas
dificuldades. Em primeiro lugar, a lacuna na localização do nome do
dedicante impede a restituição de um praenomen e de um nomen im-
perial, que são meramente hipotéticos. Assim, R. Bedon103 justifica a
restituição dos tria nomina datando, segundo o cognomen de origem
indígena, a obtenção do direito de cidade durante a Guerra das Gá-
lias. A latinização do cognomen Tauricus da personagem mencionada
na ultima linha é identificado como o filho de [Orget]orix, segundo o
autor, seguindo a evolução da onomástica dos primeiros cidadãos. Por
enquanto, a organização dos nomes da primeira linha aparecem mais
na forma gaulesa da onomástica. O nome único de [Orget]orix é apre-
sentado no primeiro lugar no nominativo seguido do nome do pai no
genitivo para mencionar a filiação, como de costume nas atestações
peregrinas gaulesas. Além disso, o nome de Tauricus não faz necessa-
riamente referência ao cognomen romanizado. Um ex-voto descober-
to em Craon menciona o dedicante Tauricus Tauri f(ilius)104. De facto,
nada permite afirmar a cidadania do dedicante. Em segundo lugar, a
datação precoce ligada às origens gaulesas do cognomen é audaciosa
demais. Pois, a difusão da cidadania nas Gálias não é uniforme e os
aristocratas peregrinos são integrados na cidade e vão, até, revestir as
mais importantes cargas, como demonstram os atos de evergesia rea-
lizados por Taurus Celeris f(ilius), sacerdos Romae et Augusti, na civitas
Mediomatricorum105. Por último lugar, o exercício do flaminado e as
dádivas ob honorem flamonii não correspondem, nem a datação, nem
ao estatuto do personagem. De facto, não existe nenhuma atestação
peregrina que tenha realizado uma dádiva ob honorem flamonii. Além
151 E interessante notar que D. Fishwick (FISCHWICK, Ducan, The Imperial Cult in
the Latin West, V.III, T.2, 2002, p.104-125) nao integra a inscrição na sua lista dos
sacerdotes provinciais das Três Gálias.
152 AE 1973, 343.
153 CAG 36, p. 71.
154 FISHWICK, Ducan, “A Priest of the Three Gauls from Argentomagus”, Historia
32, 1983, p. 384.
155 CIL 13, 11042 = ILA, Pétrucores, 9.
156 CIL II²/7, 233 et 235 : [---] / III[---] / Clodia [---] / a{d}stante Ul[pio Helia]/de sa-
cerdote ar[am] / sacris suis d(ederunt) d(edicaverunt) Maximo Urbano co(n)s(ulibus).
157 BCTH 1907, 277.
196 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Os três sacerdotes evocados na parte seguinte são definidos
pelos autores como flamines, ou seja sacerdotes municipais. A primei-
ra menção proposta é uma inscrição em vários fragmentos descober-
tos em Vendeuvre-du-Poitou158 que não menciona o sacerdócio. Os
pesquisadores propuseram restituir os termos Ro[m---] et [Aug]. Esta
menção integra-se num cursus, e se a restituição de um sacerdote li-
gado au culto de Roma e d’Augusto pode ser proposta, não é possível
que seja um flamen. Alem disso, o caracter lacunário permite restituir
varias formas conhecidas incluindo Rom., como eques rom(anus), a
conjunção et pontuando o cursus.
A segunda inscrição159 é uma dedicação mencionando L. Iulius
Equester flamen de Roma e de Augusto associando os seus dois filhos,
também flamines de Roma e de Augusto. L. Julius Equester é também
flamen p[erpetuus ?]. A doação ob honorem flamonii não permite de-
finir se esta munificência serviu para financiar o seu acesso au flami-
nado imperial ou ao seu segundo sacerdócio. Aquando a dedicam, é
muito provável que Equester já não fosse flamen de Roma e de Augus-
to pelo menos desde um ano, visto que os seus filhos encargaram-se
igualmente do mesmo sacerdócio. Por enquanto, a doação sendo ele-
vada, o tempo entre a promessa ob honorem e a dedicação pode ter
sido de longa duração. E então impossível de dizer se Equester e seus
filhos realizaram a doação sendo flamines do culto imperial, porem é
inegável que tenham revestido esta carga.
O ultimo exemplo é uma inscrição descoberta em Vendoeu-
vres-en-Brenne mencionando um flamen160. O sacerdócio é indicado
sem menção do culto ao qual é ligado. Parece então difícil aceitar
qualquer referencia ao culto imperial. A restituição na quinta linha do
sacerdócio flam a]ug também é pouco provável. Todavia, a associa-
ção proposta entre o flaminado e o duunvirato favorece a identificam
da personagem como sacerdote do culto imperial161. Apesar disso ser
uma hipótese aceitável, não pode ser verificada.
Para concluir sobre este primeiro argumento avançado, é im-
portante notar a dificuldade em apoiar uma teoria sobre um corpus
162 SCHEID, John, « Comprendre le culte dit impérial. Autour de deux livres ré-
cents ». In: L’antiquité classique T.73, 2004, p. 243.
163 BEAUDOUIN, Edouard, « Le culte des empereurs dans les cités de Gaule Nar-
bonnaise », In : Annales de l’ens. Supérieur de Grenoble, III, 1891, p. 44.
164 BNC, Trajan, 737, 764, 794, 841.
198 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
conservatori patri patriae confirma a interpretação do deus guiando e
protegendo imperador para ele trazer a paz. Mesmo assim, este rito
pela salus do príncipe não entra na categoria dos cultos imperiais.
Os dois terços das outras inscrições apresentam uma asso-
ciação entre os numina imperiais e um deus tópico provavelmente
poliade. Esta ligação entre as divindades tradicionais e imperais não
deve ser entendida como uma invasão dos cultos imperiais a todas
as escalas do rito. Como o recorda W. Van Andringa, « hors du centre
urbain, le culte impérial n’existait qu’associé aux dieux de la cité »165. O
estabelecimento de relações entre os dois cultos traduz mais uma re-
presentação da ordem religiosa cívica que uma presença fundamental
do culto imperial nos santuários.
O terceiro argumento tenta demonstrar a ligação entre o te-
atro e o culto imperial. Os autores partem de um postulado : as divin-
dades associadas a dedicação de um monumento definem o culto que
ocorria lá. Pretendem então, a partir de seis dedicações de teatros,
que a vocação destes edifícios é de receber as celebrações do culto
imperial. A ausência de dedicações de edifícios teatrais em Aquitânia
levou os autores a examinar exemplos proveniente de todas as Gálias.
A ambição é louvável mas o objetivo sendo de reunir um corpus conse-
quente torna-se invalido porque impõe um modelo religioso comum a
todas as províncias gaulesas. Como já notamos, a religião cívica enten-
de-se a escala de uma civitas e é difícil aplicar a Aquitânia um modelo
concebido a partir de outras províncias sem atestações para apoia-lo.
Alem disso, o argumento supondo que é possível determinar o cul-
to num edifício a partir da dedicação encontra bastante contradições.
As seis dedicações de teatros apresentadas referem-se ao esquema já
evocado onde existe uma associação entre uma forma do culto impe-
rial (os numina imperiais ou as honras a domus divinae) e a divindade
poliade. Como entender este formulário ? Será uma formula dedicató-
ria estereotipada ou podemos admitir uma ligação evidente entre os
cultos mencionados na dedicação e aqueles que ocorriam no edifício
? A invocação dos numina augustorum na formula de consagração de
um monumento não é uma prova segura de um culto imperial166. A
165 VAN ANDRINGA, William, art. cit., 1999, p. 438.
166 F. Bérard (BERARD, François, « Mars Mullo. Un Mars des cités occidentales de
la province de Lyonnaise», In : Mars en Occident, 2006, p. 21) faz uma observação
similar sobre formulario In honorem Domus Divinae que é « un hommage conven-
Volume 1 199
presença de divindades numa dedicação é um ato ritual sistemático
que não impõe a existência de um culto no edifício. Alem disso, a de-
dicação não é necessariamente ligada com o culto futuro: o exemplo
citado nas inscrições precedentes menciona a consagração de um fa-
num Plutonis aos numina imperiais167. A dedicação de um monumento
aos numina dos imperadores é um formulário que permite definir a
ordem estabelecida. O monumento é contextualizado como o vemos
na inscrição de Eu168. O edifício é dedicado aos numina imperiais, ao
pagus divinizado, e ao deus poliade. As diferentes escalas do poder são
recordadas para integrar o edifício num contexto cívico preciso. Esta
versão tripartida do formulário de consagração encontra-se em vários
lugares diferentes das Gálias como na dedicação das estatuas de Mars
Mullo no território dos Riedones169, sem ser, obrigatoriamente em liga-
ção com o culto imperial. A relação « sans équivoque » proposta pelos
autores entre a dedicação, o dedicante, sacerdote do culto imperial
– como no exemplo de Rennes – e o edifício tem que ser colocada em
questão. De facto, como o escreveu J. Scheid, a dedicação do teatro de
Eu « n’est en aucun cas un acte central du culte impérial de la cité. Elle
ne concerne vraisemblablement même pas un empereur, mais la divi-
nité dont le nom a disparu dans la lacune (Mars ?) »170. A presença de
certas formas do culto imperial em alguns edifícios de espetáculos não
faz duvidas. Por enquanto, a argumentação apresentada pelos autores
não é convincente e traduz um problema metodológico evidente que
consista em aplicar um modelo de uma província a outra sem indícios
permitindo tal processo.
O ultimo argumento permite uma ultima nota metodológica
na compreensão do culto imperial. Desta vez os autores tentam de-
monstrar a existência de santuários com teatros recebendo cerimonias
do culto imperial.
Para apoiar assua argumentação, recordam as teorias de au-
tores que demonstram a ligação entre o culto imperial e os teatros.
Assim, lembram as pesquisas de P. Gros sobre o Augusteum de Nî-
tionnel auquel il ne faut pas attribuer trop d’importance » seguindo assim D. Fishwick
(FISCHWICK, Duncan, The imperial cult in the latin West, II. 1, 1991, p. 431-432).
167 CIL XIII, 1449.
168 AE 1978, 501 = AE 1982, 716
169 AE 1969/70, 405b-c ; CIL XIII 3148 ; CIL XIII, 3149.
170 SCHEID, John, art. cit., 2004, p. 243.
200 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
mes171, que supõe a existência ao lado de uma fonte de um santuário
do culto imperial e de um teatro. Este exemplo, geralmente aceito,
continua a ser controverso. Alem disso, P. Gros nota que o estudo do
teatro não é possível devido ao seu enterramento depois de uma es-
cavação parcial172. Segue a sua demonstração salientando a ligação
privilegiada que existe entre alguns teatros e santuários do culto im-
perial na Gallia Narbonensis173. Parece então delicado comparar um
circuito litúrgico entre um teatro e um altar ou um templo do culto
imperial num centro urbano de uma colonia (lugar privilegiado pelo
culto imperial) e os grandes santuários atribuídos a divindades polia-
des e situados na periferia do território de uma civitas. M. Fincker et
F. Tassaux dão por exemplo o argumento de D. Fishwick174 que destaca
a relação particular entre os edifícios de espetáculos e o culto imperial
nos santuários provinciais. O problema metodológico que revela este
argumento é o esquecimento das diferentes escalas de compreensão
e de representação dos cultos imperiais. Não é possível estudar o culto
dos imperadores sem contextualizar continuamente os diversos níveis
do culto. Os edifícios de espetáculo evocados por D. Fishwick são inte-
grados nos santuários provinciais do culto imperial. É difícil, aplicar o
modelo de um santuário cujo atributo ao culto imperial é claramente
atestado aos santuários cívicos sobe a tutela de um deus poliade. Alem
disso, mesmo se existisse uma ligação evidente entre o centro provin-
cial e as outras cidades, não seria inútil recordar que para o santuário
provincial do altar do Confluent, o edifício privilegiado para acolher as
cerimonias do culto imperial é o anfiteatro.
Os dois autores decidem, a partir dos três argumentos epigrá-
ficos propostos aqui, que os modelos de P. Gros e de D. Fishwick podem
176 CIL, XIII, 4132, comentada por E. Bouley. Cf. Infra 132.
177 Supra 3, FINCKER, TASSAUX, 1992, p. 56 e 68.
178 Vitruve, V, 6, 7, ver nota 3 do comentário de C. Saliou, cf. Vitruve, d l’Architec-
ture, Livre V, p. 251.
179 BOULEY, Elisabeth, Les théâtres des vici et des pagi du nord de la Gaule. In :
LANDES, Christian, Spectacula – II, Le théâtre antique et ses spectacles. Actes du
colloque tenu au Musée Archéologique Henri Prades de Lattes les 27, 28, 29 et 30
Avril 1989. Musée archéologique Henri Prades, Lattes, 1992, p. 79-87.
180 Ver por exemplo os assentos de Dalheim, cf. HENRICH, Peter, Das gallorömische
Theater von Dalheim (Grossherzogtum Luxemburg). In : FUCHS, Michel, DUBOSSON
Benoît, Theatra et spectacula – Les grands monuments des jeux dans l’antiquité. Lau-
sanne, Etudes de Lettres, 288, Université de Lausanne, 2011, p. 129-152 ; ou, por
exemplo, a provavel presença no teatro de Champlieu dum auleum : Supra 18, DI
STEFANO, 2007, p. 151.
181 CIL, XIII, 3106 em Supra 3, FINCKER, TASSAUX, 1992, p. 62.
Volume 1 203
so” atribuído pelos autores aos tribunalia seriam justificados pela sua
disposição em espaços sagrados. Todavia, mais uma vez, é necessário
distinguir uma invocação dedicatória de um contexto religioso.
O tribunal sendo o palco cénico pelos autores, o proscaenium
mencionado na mesma inscrição é interpretado como os muros retili-
neos fechando o teatro de cada lado do palco cénico182. E verdade que
a palavra scaena, por exemplo, pode ser utilizada por metonímia e que
faz referencia ao conjunto das estruturas cénicas ou até ao teatro intei-
ro. Por enquanto, em vários teatros galo-romanos, as construções cé-
nicas se compõem de dois espaços retangulares dispostos de cada lado
do muro retilineo que podem ser interpretados como o palco cénico,
avançando na orquestra na maioria dos casos e um espaço de serviços
atras deste mesmo muro. Em certos exemplos, e mais particularmen-
te aqueles evocados pelos autores na Aquitânia, só sobreviveu a sala
situada atras do muro retilineo. Se na maioria dos casos que podemos
qualificar de “completos” a sala situada atras deste muro é interpreta-
da como um tipo de postscaenium porque transforma-las em palcos
cénicos que impediriam de facto o desenrolamento de espetáculos
neste lugar ? E obvio que estas salas não eram feitas para ser vistas.
Temos então que refletir sobre a ausência de palco cénico e não tentar
vê-lo noutro espaço que, de facto, não teria uso no teatro. Mais uma
vez, o método aplicado pelos autores consista em identificar um espa-
ço que seja adequado com a exposiçao das imagines, definem um lu-
gar a partir duma hipótese pela qual ainda nao temos provas tangiveis.
Outro argumento evocado, não só pelos autores mas também
por outros pesquisadores, é a exiguidade do palco cénico183. No que
se refere a sua suposta ausência, basta recordar que uma estrutura
de madeira podia amplamente chegar para efetuar os ludi scaenici. O
que ainda se justifica mais em certos exemplos que também tiveram a
função de arenas : o elemento móvel sendo mais pratico de instalar e
retirar da arena. O teatro de Eu é mais uma vez evocado como exemplo
de cena reduzida184 ao qual se ajuntam, na demonstração de D. Tardy,
os edifícios de Drevant, Derventum et St. Albans, Verulamium185. No
186 Supra 132, BOULEY, 1992, p. 81 e as pesquisas mais recentes de L. Cholet : CHO-
LET, Laurent, Eu-le Bois l’Abbé. Bilan Scientifique Régional – Haute-Normandie, 1995,
p. 81-84.
187 FINCKER, Myriam, et alii, Le théâtre de Drevant (Cher). Analyse préliminaire du
bâtiment de scène et de ses abords. In : D’Orient et d’Occident, Mélanges offerts à
Pierre Aupert, textes réunis par Alain Bouet, Mémoires, 19, Ausonius, Brdeaux, 2008,
p. 257-268.
188 KENYON, Kathleen, The roman theatre of Verulamium, St. Albans and Her-
tfordshire Architectural and Archaelogical Society’s Transactions, St. Albans, 1934.
189 FERREIRA, Filipe, Les constructions scéniques du théâtre du Vieil-Evreux, résul-
tats des campagnes 2012 et 2013. In : Journées archéologiques de Haute-Normandie,
Alizay, - 20, 21 et 22 Juin 2014, Publication des Université de Rouen et du Havre,
publicaçao proxima (2015).
190 Pela relaçao do Misopogon com os teatros das Gálias, cf. Supra 21, MAGNAN,
Volume 1 205
notar que estes espetáculos existiam na Gallia Narbonensis durante a
época imperial e pelos quais temos varias inscrições relatando a exis-
tência de bailarinos ou mimos191. F. Dumasy recorda também a dedi-
cação do Querolus, uma das ultimas peças de teatro escritas no fim da
Antiguidade, precisando que este tipo de representações eram agora
mais provavelmente dedicadas ao contexto privado192. Se os espetá-
culos cénicos mudaram mas sobreviveram neste tipo de contexto, é
difícil confirmar que nunca foi apresentado durante a época imperial
nos teatros. Podemos supor que o espetáculo nas Gálias não foram
sempre os mesmos e que a arquitetura particular dos seus edifícios
teatrais representam um evolução original que foi influenciada não só
por razoes religiosas, que puderam determinar certos elementos como
a presença de altares ou de lugares de exposição, mas também pela
necessidade de responder ao desejo das populações em frente aos di-
ferentes tipos de representações lúdicas.
Considerações Finais
Volume 1 207
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIAL
ENTRE GRUPOS NO JUDAÍSMO DOS
SÉCULOS II A.C. A I D.C.:
UM ENFOQUE PELA PROXIMIDADE
Fernando Mattiolli Vieira 1
3 Outro fator que implica na conceituação daqueles grupos está ligado à ampli-
tude pretendida pelos pesquisadores em suas análises. Se são considerados vários
grupos, de amplitude e natureza variadas, conceitos mais abrangentes respondem
melhor às abordagens por diminuírem o peso da caracterização.
4 BAUMGARTEN, Albert L. Graeco-Roman voluntary associations and ancient
Jewish sects. In: GOODMAN, Martin. (org) Jews in a Graeco-Roman world. NY: Ox-
ford, 1998. p. 93.
5 Os greco-romanos serão utilizados para comparação.
210 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
tico e religioso no período de instauração do governo dos asmoneus
(152 a.C.). Contudo, a partir desse tempo houve uma proliferação de
grupos das mais diversas orientações, que parece manter um movi-
mento crescente até o séc. I d.C., trazendo ao cenário social grupos
como os gnósticos, batistas (cf. At6 18:25, 19:1-5), judeus-cristãos
(cf. At 24:5), herodianos (cf. Mc 3:6, 12:13) e a “quarta filosofia” (cf.
AJ7 18:3-10, 23-258).9
A natureza destes grupos é sempre heterogênea. Com cons-
tância, caímos na tentação de defini-los como entidades monolíticas,
com atuação social limitada a um campo específico. Como efeito dis-
so, por vezes, as possibilidades de experiências no meio social são re-
duzidas. Os saduceus, por exemplo, parecem formar um grupo muito
mais unido pelo poder e pela riqueza do que por qualquer doutrina
religiosa particular (não são capazes de persuadir ninguém além dos
ricos [AJ 13:298]); não podendo, por isso, serem considerados como
um grupo exclusivamente religioso. Em casos como esse, é difícil con-
cluir que o grupo possuía uma natureza fixa. É menos incerto afirmar
que determinadas ações possuíam seu direcionamento de acordo com
determinações políticas e situações sociais existentes na época.10
16 Devemos ressaltar que o passado bíblico também foi resultante de um projeto
arbitrário de reconstrução político e religioso nacional, decorrido principalmente no
período que sucedeu ao retorno dos judeus ao território da Judeia, após o Exílio
babilônico (séc. VI a.C.). As pesquisas atuais apontam que não havia unidade entre
as tradições antigas. Por isso, como projeto de presente e futuro, as gerações que se
ocuparam dessa construção eliminaram o rico sincretismo dos tempos do Primeiro
Templo de Jerusalém.
Volume 1 215
poderia ter conhecido práticas comuns das escolas pitagóricas e intro-
duzido no grupo padrões da educação grega.17 Isto seria encontrado,
por exemplo, no sistema normativo dela, que era também utilizado
por grupos helenísticos.18 Entretanto, estudos mais recentes têm dis-
cordado de que as similaridades entre aqueles grupos tivessem se ori-
ginado meramente por influências, já que na maioria dos casos não
é possível provar uma dependência direta e os caminhos percorridos
pelos elementos compartilhados.
A segunda explicação leva em consideração as mudanças his-
tóricas e o reflexo disso na sociedade. Um dos pesquisadores que mais
tem se destacado em apresentar esta relação é Albert Baumgarten.
Para ele, a formação dos reinos helenísticos propiciou o fim das per-
seguições a segmentos políticos discordantes, que viriam, a partir de
então, a se organizar em “seitas” de matriz grega. O ambiente em que
elas teriam se desenvolvido era urbano, o que teria provido “[...] mais
ou menos o mesmo tipo de pessoas, em equivalente ambiente e em
circunstâncias similares”.19 Estas condições teriam provido todo um
aparato social e ideológico que teria sido utilizado pelos grupos gre-
gos e, talvez em seguida, os de matriz judaica. É com base nessa pers-
pectiva que ele acredita que podem ser encontrados os elementos de
aproximação entre grupos greco-romanos e judaicos. Quando trata dos
essênios, por exemplo, diz o seguinte: “[...] para encontrar equivalentes
mais exatos do comportamento essênio, devemos voltar nossa atenção
para o domínio da imaginação, para as utopias gregas”.20 O trabalho
de Baumgarten é de grande colaboração a nós por enquadrar os gru-
pos greco-romanos e judaicos em um cenário social mais amplo. Não
há dúvida de que os elementos constituintes daqueles grupos estavam
17 HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism: studies in their encounter in Palestine
during the Early Hellenistic Period. Trad. John Bowden. Philadelphia: Fortress Press,
1974, p. 246.
18 HENGEL, Martin. Qumran and Hellenism. In: COLLINS, J. J. KUGLER, R. A. (eds.)
Religion in the Dead Sea Scrolls. Michigan: Grand Rapids, 2000, p. 50.
19 BAUMGARTEN, Albert L. Graeco-Roman voluntary associations and ancient
Jewish sects. In: GOODMAN, Martin. (org) Jews in a Graeco-Roman world. NY: Ox-
ford, 1998, p. 109.
20 BAUMGARTEN, Albert L. Graeco-Roman voluntary associations and ancient
Jewish sects. In: GOODMAN, Martin. (org) Jews in a Graeco-Roman world. NY: Ox-
ford, 1998, p. 101.
216 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
relacionados ao que estava disponível no meio social. Contudo, o maior
problema ao considerar as mudanças históricas como o vetor que pro-
piciou as semelhanças entre os grupos do período tem sido a falta de
elementos mais específicos que pudesse provar como isso teria se
dado. Esse parece ser o caso de Baumgarten; que, ao final, cai no mes-
ma vacuidade enfrentada pelos pesquisadores que tentam explicar as
semelhanças entre os grupos através do mecanismo das influências.21
A última forma de explicação das similaridades entre os gru-
pos do período que destaco é um apontamento mais específico feito
pelo historiador americano Yonder M. Gillihan. Seu objetivo maior é
explicar a ideologia cívica e a organização da Yahad através da com-
paração com outros grupos judaicos e greco-romanos. Para ele, o que
fazia com que eles apresentassem proximidade em suas experiências
era o fato de se basearem em padrões criados pelo Estado. Eles teriam
“[...] emprestado termos e padrões das poleis locais e dos impérios
helenístico e romano, incluindo a terminologia dos governantes, cultos
oficiais, corpos legislativos, cortes, conselhos deliberativos, unidades
militares e outros”.22 Os procedimentos internos também teriam sido
baseados nas disposições do Estado, entre os quais o sistema jurídico e
judiciário. Assim, as similaridades entre os grupos tinham como base o
que Gillihan chama de “linguagem de Estado”,23 que de acordo com o
lugar e maneira de atuação, fornecia o material necessário para a for-
mação dos grupos – mais ou menos similar no Mediterrâneo oriental a
partir da constituição de grandes unidades sociais integradas.
Não se pode dizer que as propostas colocadas pelos autores
considerados acima (e as de outros não consideradas aqui) são de todo
equivocadas. Um ou outro elemento, de acordo com sua especificida-
de, pontuais ou mais amplos, podem ter sido emprestados entre eles
Quando alguém de vós tem rixa com outro, como ousa levá-
-la aos injustos, para ser julgada, e não aos santos? 2Então
não sabeis que os santos julgarão o mundo? E se é por vós
que o mundo será julgado, seríeis indignos de proferir julga-
mentos de menor importância? 3Não sabeis que julgaremos
os anjos? Quanto mais então as coisas da vida cotidiana?
4
Quando, pois, tendes processos desta vida para ser julga-
dos, constituís como juízes aqueles que a Igreja despreza!
5
Digo isto para confusão vossa. Não se encontra entre vós
alguém suficientemente sábio para poder julgar entre os
seus irmãos? 6No entanto, acontece que um irmão entra em
litígio contra seu irmão, e isto diante de infiéis! 7De qual-
quer modo, já é para vós uma falta a existência de litígios
entre vós. Por que não preferis, antes, padecer uma injusti-
ça? Por que não vos deixais, antes, defraudar? 8Entretanto,
ao contrário, sois vós que cometeis injustiça e defraudais - e
isto contra vossos irmãos!
24 Para uma comparação entre os textos em hebraico, sugiro GILLIHAN, Yonder
M. Civic ideology, organization, and law in the rule scrolls: a comparative study of
the covenanters’ sect and contemporary voluntary associations in political context.
Leiden: Brill, 2012. pp. 192-193.
Volume 1 219
Já se procurou apontar que esta passagem era também extraída do
livro de Levítico, de partes que falam sobre não manter contato com
as nações em oposição aos israelitas, talvez o texto 20:23, que diz: não
seguireis os estatutos das nações.25 Minha posição, no entanto, é a
de que o redator tenha direcionado o texto exclusivamente para seu
grupo (considerado o “verdadeiro Israel”), marcando o trecho a inten-
cionalidade do redator.
A busca pela autonomia da Yahad está ligada ao grupo desde
seu nascimento. Ao que as pesquisas atuais apontam, esse grupo era
oriundo dos essênios, mas ainda cultivava contato com os outros gru-
pos de natureza essênia, chamados por seus escritos de acampamen-
tos ou assembleias (cf. CD 12: 22-23). Em cada um dos acampamentos
havia um corpo legislativo e judiciário responsável por aplicar as re-
gras (cf. CD 14:3-21), mas parece haver uma distância jurídica maior
da Yahad para com eles. Isso teria se delineado já em seu período de
formação. A Yahad teve suas bases institucionais criadas com um rom-
pimento político-religioso ocorrido na primeira metade do séc. II a.C.,
que fez com que um grupo legalista se dirigisse ao deserto buscando
criar um novo “caminho” na religião e salvaguardar sua própria exis-
tência, ameaçada naquele momento pelo poder soberano que se ins-
tituía na Judéia (cf. CD 1:11).
Assim como com os grupos cristãos sob a autoridade de Pau-
lo, a Yahad disputava com os tribunais externos a legitimidade no tra-
to da justiça para com seus membros. Ela desenvolveu códigos penais
para a regulação de sua estrutura interna. Estes códigos mostram a
autonomia que as lideranças do grupo possuíam em lidar com os as-
sociados. Eles descrevem algumas infrações que podiam ser motivo
para julgamento nos tribunais judaicos por serem conhecidas também
pelo texto bíblico, como a profanação do nome divino (1QS 6:27-72),
conduta sexual inapropriada dentro do casamento (4QDe, frag. 7, col.
1, vv. 12-13) e, de maneira mais geral, a transgressão contra as leis
de Moisés (1QS 8:21-23) – leis que ainda estavam presentes na socie-
dade judaica do séc. I d.C., como podemos ver nas fontes judaicas e
judaico-cristãs. Em todos estes casos, as autoridades da Yahad se co-
25 GILLIHAN, Yonder M. Civic ideology, organization, and law in the rule scrolls: a
comparative study of the covenanters’ sect and contemporary voluntary associations
in political context. Leiden: Brill, 2012. p. 193.
220 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
locavam como responsáveis pelo julgamento, sendo excluída qualquer
participação de cortes externas. Devota(r) ao anátema alguém dentre
os homens pelas leis dos gentios era o mesmo que se utilizar das cor-
tes judiciais reconhecidas pela sociedade judaica (mas não pelo grupo)
para resolver qualquer litígio dentro do grupo.
A conclusão mais objetiva que podemos extrair destas duas
fontes é a de que nenhum membro daqueles grupos poderia apelar
para as cortes “gentias”, ou seja, para as autoridades não designadas
pelos próprios grupos. Não podiam, também, reivindicar a utilização
de leis externas para solucionar conflitos ocorridos no interior deles,
entre seus membros. Qual o objetivo disso? Caso os indivíduos pudes-
sem recorrer às leis e aos tribunais externos, o poder que emanava das
autoridades daqueles grupos se romperia – destruindo as barreiras ju-
rídicas e institucionais entre o grupo e a sociedade, colocando em risco
sua própria existência. Eles reivindicavam não apenas o controle dos
bens de salvação aos filiados, mas também o poder sobre sua própria
estrutura, que se reconhecia e se dava a conhecer como uma institui-
ção autônoma e singular em meio à sociedade.
De qualquer maneira, saber que tais grupos buscavam auto-
nomia e que em favor dela e da própria existência deles, todos deve-
riam limitar suas relações com os poderes externos, é o menos impor-
tante para alcançarmos nosso objetivo aqui. O ponto essencial é saber
que havia uma tensão entre o poder que emanava dos grupos e do
poder soberano. Se formos mais a fundo na consideração destas fon-
tes, poderemos encontrar apontamentos ainda mais elucidativos. O
pequeno e importante texto CD 9:1 pode ser usado novamente. A par-
te final dele mostra que quem apelasse às leis dos gentios seria morto.
Essa conclusão foi copiada da mesma maneira como presente no texto
de Levítico 27:29. No entanto, sua utilização nos leva a questionar se,
de fato, as lideranças da Yahad podiam utilizar a pena de morte como
punição a membros infratores. Com base nos próprios textos do grupo,
principalmente seus códigos penais, é possível concluir que eles não
utilizavam a pena de morte como punição. No código penal do livro
1QRegra da Comunidade (6:24-7:25), o mais extenso entre todos os da
Yahad, a penalidade utilizada para punir os infratores que cometiam as
mais sérias transgressões era a expulsão.
Volume 1 221
A mesma medida foi tomada pelos grupos cristãos encabeça-
dos por Paulo. A carta aos coríntios pode nos ajudar a compreender o
posicionamento deles. Vejamos o trecho 5:1-5.
26 FLUSSER, David. The jewish origins of the early church’s attitude toward the
State. In. Judaism in the Second Temple Period. Trad. Azzan Yadin. Grand Rapids (Mi-
chigan): Eerdmans, 2007, pp. 300-301.
27 FLUSSER, David. The jewish origins of the early church’s attitude toward the
State. In. Judaism in the Second Temple Period. Trad. Azzan Yadin. Grand Rapids (Mi-
chigan): Eerdmans, 2007, p. 229.
Volume 1 223
Para tornar ainda mais claro que as similaridades entre os gru-
pos daquele período eram resultantes de limites impostos pelo poder
soberano, talvez seja mais útil sabermos o que eles não poderiam fazer
ao invés do que poderiam. Utilizemos as fontes josefianas como ajuda.
Josefo cita alguns movimentos de natureza político-religiosa que não
chegaram a se consolidar como grupos organizados hierarquicamente
devido ao modo com que suas representações foram apresentadas ao
meio social logo na gênese deles. Um destes casos foi o do líder mes-
siânico Teúdas (cf. AJ 20:97-98). Segundo Josefo, Teúdas, que se consi-
derava um profeta, abriria as águas do rio Jordão. Entretanto, antes de
conseguir fazer isso, ele e seus seguidores foram atacados de surpresa
por ordens do governador Cúspio Fado, da Judéia (44-46 d.C.). Muitos
deles foram mortos; e Teúdas, depois de capturado, teve sua cabeça
decepada. Este certamente fora um movimento conhecido, uma vez
que também foi citado por Lucas, em Atos (5:36).28 Outro exemplo foi
o de um judeu que voltara a Jerusalém vindo do Egito, por isso chama-
do por Josefo (e por Lucas, em At 21:38) como o “Egípcio” (cf. GJ 2:261-
263, AJ 20:169-172). Após dizer que entraria na cidade de Jerusalém
com ajuda divina, ele e seus seguidores foram atacados pelas forças
romanas. A maioria foi morta e o movimento dissipado.29
É claro que estes movimentos podem também ser conside-
rados por uma perspectiva política, que demonstra o embate entre
segmentos diversos para com o poder soberano da época. De fato, a
própria mensagem religiosa se colocava como um discurso de opo-
sição política. A atuação de líderes como Teúdas e o Egípcio foi con-
siderada como uma ameaça para a ordem estabelecida e a reação a
eles foi imediata. Contudo, a maior parte dos grupos durante aquele
tempo era também de entidades de contestação política e religiosa,
mas nem por isso entraram em choque frontal com o poder soberano
a ponto de serem dizimados. Por exemplo, tínhamos a Yahad como
grupo bem estabelecido (até a destruição de seu local físico pelas
forças romanas em 67 d.C.) e o desenvolvimento dos grupos cristãos
(por judeus e gentios). Movimentos como o de Teúdas e o Egípcio não
chegaram a passar por um processo de “sedentarização”; ou seja, não
30 Isso era o que ocorria em grupos como a Yahad e cristãos. Segundo Jacob Neus-
ner, a mesma atitude era tomada pelos grupos sob liderança de sábios rabis do séc. I
d.C. (cf. NEUSNER, Jacob. “By the testimony of two witnesses” in the Damascus Doc-
ument 9:17-22 and in Pharisaic-rabbinic law. RQ, Paris, v. 8 n. 2, pp. 197-217, 1973).
Volume 1 225
do séc. III a.C., e aumentando sua intensidade até o domínio romano.
Por isso, determinados segmentos sociais que até então disputavam os
monopólios do poder foram reduzidos à situação de grupos de oposi-
ção ou foram aniquilados. No território da Judéia, isso aconteceu com
um forte governo autóctone, o dos asmoneus, que aprendeu muito
com os antecessores helenistas do Egito e principalmente da Síria, que
dominaram a região desde o final do séc. III a.C. até a primeira metade
do séc. II a.C.
Diante de governos cada vez mais centralizados e unificados,
o regramento dos grupos nascentes passa a estar relacionado com o
que se passava nos círculos centrais de onde se emanava o poder so-
berano. Assim, é possível afirmar que a regra (e não a exceção) era
que todos os grupos estavam sujeitos às mesmas limitações impostas
por ele. Nos limitando aos grupos de matriz judaica, podemos concluir
que as similaridades entre as experiências religiosas e sociais entre
eles ocorria pelo motivo de eles não poderem ultrapassar os limites
em que havia a presença jurídica do poder soberano. O movimento de
Teúdas não tinha consciência disso. Paulo, por sua vez, lidou com isso
com destreza.
Considerações Finais
Volume 1 227
AS FRONTEIRAS NAS REPRESENTAÇÕES
DA MAGIA NO IMPÉRIO ROMANO:
APOLÔNIO DE TIANA ENTRE O
FEITICEIRO CHARLATÃO E O SÁBIO
DIVINO PITAGÓRICO
Semíramis Corsi Silva1
a acentuar o que pode se caracterizar a ficção própria das biografias do período de sua
elaboração. Além disso, consideramos que ela prenuncia elementos hagiográficos.
4 Mesmo diante dessa problemática, no entanto, algumas dessas cartas serão
usadas neste texto, pois mostram uma visão sobre Apolônio dele próprio ou de ou-
tra(s) pessoa(s) que também é importante para compreender suas representações
na Antiguidade.
5 CORNELLI, G. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na recepção
das figuras de θεῖοι ἅνδρες na literatura helenística: a magia incomoda de Apolônio
de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado apresentada na Universidade Meto-
dista de São Paulo, 2001, p.65.
6 Trata-se do material que nos é transmitido por Eusébio de Cesareia (Resposta
a Hierocles) sobre a leitura de Hierocles, governador da Bitínia, perseguidor de cris-
tãos ao lado de Dioclesiano no início do século IV, que teria valorizado os atributos
miraculosos de Apolônio contra Jesus. Hierocles, pelo que nos mostra Eusébio, uma
vez que a obra de Hierocles não chegou até a atualidade, teria criado em Apolônio
um rival para Jesus Cristo. A obra de Hierocles e o Apolônio por ele defendido, então,
são duramente criticados por Eusébio. Tivemos acesso à obra na seguinte tradução:
EUSEBIUS. Reply to Hierocles. In: PHILOSTRATUS. The Life of Apollonius of Tyana.
Editado e traduzido por Christopher P. Jones. Cambridge/Massachusetts/London:
Harvard University Press, 2006, Vol. III, p. 145-257.
7 Tais desenhos podem ser vistos no artigo: YSSELT, D.V.S. Stradanus Drawings for
the “Life of Apollonius of Tyana”, Master Drawings, n. 4, 1994, Vol. 32, p. 351-359.
230 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
a magia, ora considerada uma prática não perigosa e parte de estudos
filosóficos sistematizados, ora considerada uma prática charlatanesca
que devia ser punida por leis severas.
O objetivo deste texto é analisar as referências que temos a
Apolônio de Tiana na obra de Filóstrato e nos demais testemunhos,
buscando apresentar como havia uma fronteira muito tênue entre o
que era benéfico e o que era tido como um malefício dentro daquilo
que os antigos gregos e romanos do período do Principado pensavam
sobre as práticas mágicas.8
17 HUBERT, H. Magia. In: DAREMBERG, C. H.; SAGLIO, E. Dictionnaire des antiqui-
tés grecques et romaines. Tomo II, 1ère partie. Paris: Hachete, s/d., p. 1495.
18 As traduções de textos em língua estrangeira, como essa, são nossas. Utiliza-
mos a seguinte versão da obra de Apuleio: APULEYO. Apologia. Tradução, introdução
e notas de Santiago Segura Munguía. Madrid: Editorial Gredos, 1980.
19 APULEYO. El asno de ouro. Introdução de Carlos Gual García. Madrid: Alianza
Editorial, 1988.
234 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Um exemplo de práticas teurgicas na Antiguidade é a ligação de
muitos filósofos com os daimones. O daimon, ou gênio, eram o que os
antigos gregos e romanos acreditavam como seres superiores capazes de
intermediar a relação entre os homens e as divindades. Os filósofos da
época imperial tinham um conceito de daimones, que eram utilizados em
suas práticas de cunho mágico, claramente influenciado sobre as noções
que Platão formulou sobre este elemento em sua obra O Banquete.20
No século IV d.C., o historiador Amiano Marcelino ligou a
fama de Apolônio de Tiana com o contato com os daimones, chamado
pelo historiador de gênios.
20 ZABALA, Jesús de Miguel. Demonologia en Apuleyo. In: ALVAR, J.; BLÁNQUEZ, C.;
WAGNER, C. G. (eds.). Heroes, semidioses y daimones. Madrid: Ediciones Clásicas, p. 266.
21 As citações sobre Apolônio de Tiana deste texto, com exceção das contidas nas
obras de Luciano, Filóstrato e Dião Cássio, estão em: TESTIMONIA. In: PHILOSTRA-
TUS. The Life of Apollonius of Tyana. Edited and Translated by Christopher P. Jones.
Cambridge/Massachusetts/London: Harvard University Press, 2006, Vol. III, p. 81-
143. A saber, Christopher Jones, em Testimonia, cataloga e traduz para o inglês, no
volume III da VA publicado pela Harvard University Press (Loeb Classical Library), uma
série de menções a Apolônio de Tiana em grego e latim na documentação escrita e
na cultura material. As traduções do inglês para o português são nossas.
22 Relativo ao Tártaro. Para os romanos, o Tártaro é o lugar para onde são en-
viados os deuses que cometeram problemas. Temos descrição sobre o Tártaro em
Virgílio, Eneida (Livro VI), mostrado como um lugar gigantesco, rodeado por um rio
de fogo e cercado por uma muralha que impede a fuga dos que ali vivem.
Volume 1 235
Lede nos versos meus o retrato.
– Sorvedouro de vinho – a chama do vulgo
Nunca livre dos báquicos vapores
Viu de Memnos a mãe o róseo carro;
Entende a fundo os mágicos segredos;
Os versos canta a feroz Medéia.
E os rios para trás remete às fontes;
Sabe a virtude à grama, ao rombo em giro,
Ao vírus seminal de égua ciosa;
Quando lhe apraz, no céu se apinham nuvens;
No céu quando lhe apraz, renasce o dia.
Eu vi a sua voz, se fé mereço,
Os astros destilar sanguíneas gotas,
E em cruento rubor tingir-se a lua
Suspeito que nas trevas esvoaça,
Perdida a antiga forma, e revestido
O corpo anoso de encantadas plumas
Suspeito... e é fama. Dúplices pupilas
Vibram dos olhos seus fulmíneo lume.
Avós e bisavós extrai das campas,
E rasga o duro chão com longos carmens. (OVÍDIO, Canção
VIII, Terceira de Amores, Os amores, 1 ao 23).23
23 OVÍDIO. Os Amores. In: _______. Obras. 2ª ed. Tradução de Antônio Feliciano
de Castilho. São Paulo: Edições Cultura, 1945.
24 Esta lei encontra-se compilada no Digesto de Justiniano. A versão por nós usada
foi a seguinte: EL DIGESTO DE JUSTINIANO. Tomo II. Versão castelhana de A. D’Ors,
Tejero e outros. Madrid: Aranadi, Pamplona, 1975.
236 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
se safar das leis que puniam à magia enquanto prática maléfica.25
Voltando à discussão sobre os termos utilizados nesse contex-
to para referir-se à magia, sabemos que o termo mago tem a etimo-
logia mais discutida, podendo também ter originado do hebraico ao
referir-se ao mago Jeremias ou ainda do assírio mahhu, significando a
pessoas que realiza prodígios e feitos fantásticos.26 Heródoto, no livro
I de sua obra História, cita a expressão mago para referir-se ao nome
de uma tribo dos medos, especialista em oniromancia (interpretação
dos sonhos), astrologia e magia propriamente, arte esta que lhes ren-
dia o nome.27 Flitz Graf percebe que na sociedade greco-romana os
termos magus e magia apareceram muito tarde, sendo que em Roma
este vocabulário derivou do grego. Cícero usará a palavra pela primeira
vez se referindo aos sábios persas. Na poesia, a palavra apareceu pela
primeira vez com Catulo, se referindo à prática de haruspicina (adivi-
nhação pelas entranhas de animais).28
Tomando como base a observação do historiador Gilvan Ven-
tura da Silva sobre a variedade de termos usados para identificar os
praticantes de magia no contexto estudado (magus, goes, vates, va-
ticinium, mathematicus, maleficus, hariolous, philosophus e caldeu –
e acrescentamos o termo teurgo),29 vemos que estas práticas eram
consideradas um conhecimento também variado. E, como vimos, a
concepção sobre esse conhecimento – maléfico ou não – tinha suas
fronteiras também extremamente tênues e variáveis.
Diante de tais informações, vejamos agora tais fronteiras nas
representações de um personagem concreto, Apolônio de Tiana, nos
testemunhos documentais que chegaram até nossa atualidade.
25 A análise da acusação e defesa de Apuleio é feita por nós em: SILVA, S. C. Magia e
Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2012.
26 RIBEIRO, J. J. O que é magia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, p. 16.
27 Idem.
28 GRAF, F. La magie dans l’ Antiquité greco-romaine. Ideologie et Pratique. Paris:
Les Belles Lettres, 1994, p. 46.
29 SILVA, G. V. Prefácio. Notas para o estudo da magia no Império Romano. In:
SILVA, S.C. Magia e Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio. São Paulo:
Annablume/FAPESP, 2012, p. 20.
Volume 1 237
2 Apolônio de Tiana entre o mago charlatão e o
sábio divino pitagórico
32 LUCIANO. Alejandro o el falso profeta. In: ______. Obras. Tradução de José Luís
Navarro Gonzales. Madrid: Gredos, 1988, Vol. II, p. 396.
33 GASCÓ, F. Magia, religión o filosofia, una comparación entre el Philopseudes de
Luciano y la Vida de Apolônio de Tiana, Habis, 17, 1986, p. 271-281.
34 Sobre o cabelo comprido de Apolônio: VA, I, 8, 32; VIII, 7.2, 7.5. Sobre sua sa-
bedoria: VA, I, 2, 29, 38, 40; II, 41; III, 6, 12, 16, 17, 23, 38; IV, 10, 40; VII, 11, 14; VIII,
7.1, 7.11. Sobre seu caráter divino: VA, I, 2, 21; II, 17, 29, 41; III, 16, 25, 28; IV, 10, 20,
45; V, 12; VI, 39, 43; VII, 38, 41; VIII, 13, 15, 23, 26.
35 Utilizamos a seguinte versão da obra de Dião Cássio: CASSIUS DIO. Dio’s Roman
History. Traduzido por Earnest Cony. London/Harvard William Heinemann, Harvard
Volume 1 239
Dião Cássio também deprecia as práticas religiosas do impe-
rador Caracala (211-217) ligadas a Apolônio de Tiana.
41 Citamos aqui apenas passagens nas quais Apolônio é mencionado como ho-
mem divino, mas há diversas passagens da VA que tais características ficam eviden-
tes. Para saber mais sobre a análise de Apolônio como um homem divino sugerimos
a leitura de: CORNELLI, G. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na
recepção das figuras de θεῖοι ἅνδρες na literatura helenística: a magia incômoda
de Apolônio de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado apresentada na Uni-
versidade Metodista de São Paulo, 2001. HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Emperadores
romanos y hombres divinos. In: ______. El intelectual, la realeza y el poder político
en el Imperio Romano. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 1995, p. 187-
220 e HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Hombres divinos: de la dependencia religiosa a la
autoridad política, Arys, 2001, n. 4, p. 211-230.
242 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
particularidades de sua sabedoria pelas quais foi considera-
do sobrenatural e divino (VA, I, 2).42
Também escreveu a seu rei, para que não fosse inferior a Var-
danes a respeito de um homem grego e divino (VA, II, 17).44
[...] ainda que seja o mais divino entre os homens (VA, II,
29).45
Então dei-me conta pela primeira vez de que era divino e su-
perior à sabedoria comum e corrente [...] (VA, VIII, 13).49
42 Narrador.
43 Fala do sátrapa do reino parto.
44 Refere-se ao sátrapa indiano.
45 Fala de Fraotes, rei indiano.
46 Fala de Fraotes, rei indiano.
47 Fala de Iarcas, sábio indiano.
48 Fala de Iarcas, sábio indiano.
49 Fala de Damis, discípulo de Apolônio e seu fiel seguidor que Filóstrato conta
(VA, I, 3) ter escrito um diário sobre as viagens de Apolônio, sua principal fonte para
Volume 1 243
– Ouvi falar de ti, Apolônio, que és sábio em assuntos divinos
(VA, VIII, 23).50
escrita da VA.
50 Fala do governador da Grécia. O texto em grego trata este personagem como
governador da Grécia, porém não existia uma Província da Grécia no Império Roma-
no, acreditamos que talvez seja o governador da Província de Acaia.
244 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
gem do sentido negativo que a magia poderia ter em sua época de
maneira clara nessa passagem.
Foi então que Damis se deu conta, pela primeira vez, da na-
tureza de Apolônio, que era divina e sobre-humana, pois sem
ter celebrado nenhum sacrifício – como fazê-lo se estava na
prisão? – nem ter realizado orações, sem nada dizer, havia se
51 Ao utilizarmos o termo feiticeiro estamos nos referindo ao γόης – goes, os pra-
ticantes da magia considerada nefasta na época do Principado.
Volume 1 245
libertado das correntes e, após voltar a colocar suas pernas
nelas, voltava a se comportar como um prisioneiro.
52 Outras passagens da obra poderiam configurar Apolônio e seus poderes como
um feiticeiro, mas com essa longa crítica aos aspectos negativos da magia, além da
defesa, em todo o texto, de Apolônio como divino, percebemos que Filóstrato livra
seu biografado de ser considerado um γόης – goes. Uma passagem interessante,
nesse sentido, é quando Apolônio desaparece do tribunal ante Domiciano, após ser
absolvido da acusação de práticas mágicas (VA, VIII, 5).
246 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
autodefesa de Apolônio por Filóstrato perante a acusação como pra-
ticante de magia feita pelo imperador Domiciano. Assim Apolônio, ou
melhor, seu biógrafo, diz:
Volume 1 247
Em sua Apologia, Apuleio recorreu à filosofia para se defender
da acusação de praticar magia e trouxe à tona, em diferentes pontos
da defesa, suas especulações como filósofo místico e naturalista (reba-
tendo acusações relacionadas à magia e à sua imagem como filósofo) e
como filósofo desprendido de preocupações com bens matérias (reba-
tendo acusações relacionadas ao casamento por interesses financeiros
com a viúva Pudentila, motivo principal da acusação já que é a família
de Pudentila que o acusa de ter recorrido à magia para conquistá-la).
Apuleio procurou, assim, demonstrar a importância da sua imagem
como filósofo e convencer o juiz de sua inculpabilidade. A causa que
Apuleio chama em defesa é a da filosofia:
2 DESTRO, Adriana e PESCE, Mauro. L´huomo Gesú. Giorni, luoghi, incontri di una
vita. Milano: Mondadori, 2008.p.42-58.
3 PUENTE OJEA, Gonzalo. Ideología e historia. La formación del cristianismo como
fenómeno ideológico. Madrid: Siglo XXI, 2001.p.200-232.
254 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
El espacio doméstico con todos sus miembros no fue una pre-
ocupación central para Pablo de Tarso. Si bien en sus epístolas habla de
familias que colaboran con él (1Cor 1.11 y 16; 16.15 y 19; Rom 16.3-4;
Flm 1-2) sería complejo afirmar que les imponía una moral determi-
nante4. Hay reuniones domésticas pero no existe una familia cristiana
en sentido estricto, pues la ekklesia era una célula de la sinagoga5.
El apóstol descansa en ciertos personajes encumbrados a nivel local
que ejercen el rol de benefactores y son depositarios de algún carisma,
pero el resto del oikos de estos individuos no es creyente en muchos
casos y tampoco se pide convertirlos6.
No será hasta después de la destrucción de Jerusalén en el 70
que surja una necesidad de pensar el hogar como núcleo de reunión
codificado. Hasta este momento la sinagoga aparece como el único
centro legitimado de autoridad, ya que en muchas localidades alojaba
4 Meeks señala claramente que la “casa” paulina es solo una célula no identificable
como la iglesia. MEEKS, Wayne A. (2003) The First Urban Christians. The Social World of
the Apostle Paul., New Haven and London: Yale University Press, 2003.p.75-77.
5 En este período aún no se encuentra evidencia de un conflicto con las sinago-
gas, ya que las ekklesiai paulinas eran parte de las mismas. MONTSERRAT TORRENTS,
José. La sinagoga cristiana. Madrid: Editorial Trotta, 2005.p. 55, 93, 121, 123. Lieu
considera la multiplicidad de grupos que podían funcionar al interior de una sinago-
ga. LIEU, Judith. Christian Identity in the Jewish and Graeco-Roman World. Oxford:
Oxford University Press, 2004.p.153-155. En Hechos de los Apóstoles 13.42-43 Pablo
convierte a un jefe de sinagoga y tiene tratos cordiales con miembros relevantes de
las mismas, lo cual se ve también en 1Cor 1.14; 18.8. Sobre las sinagogas del siglo I es
muy útil el trabajo de Kee, quien plantea que la institución sinagogal era una asamblea
que se reunía en casas particulares, no en un edificio específico. KEE, Howard Clark.
Definig the First Century C. E. Synagogue: Problems and Progress. En: KEE, Howard
Clark and COHICK, Lynn H. (eds.) Evolution of the Synagogue. Problems and Progress.
Harrisburg: Trinity Press, 1999.p.7-26. En este aspecto hay un vínculo espacial muy
fuerte con las células paulinas. Zetterholm ha propuesto que los primeros cristianos
organizaron sinagogas separadas, desvinculadas de la sinagoga local. ZETTERHOLM,
Magnus The Formation of Christianity in Antioch. A Social-Scientific Approach to the
Separation between Judaism and Christianity, New York: Routledge, 2005.p.198.
6 En 1 Cor 5, Pablo critica el comportamiento de un cristiano que convive con
la mujer de su padre, presumiblemente una esclava. Más adelante, 1Cor 7.12-16,
el apóstol admite la unión matrimonial con no creyentes. En Flm 10-16 puede en-
tenderse que el esclavo Onésimo no era creyente pese a vivir bajo el techo de un
amo cristiano. Glancy supone que la conversión del amo implica la de toda la fa-
milia. GLANCY, Jennifer. Slavery in Ancient Christianity. Minneapolis: Fortress Press,
2006.p.46-49.
Volume 1 255
a los cristianos entre su población dependiente de caracter intersti-
cial.7 En este sentido, los paulinos fueron innovadores, ya que hicie-
ron de la ekklesia un conventículo con identidad propia. Si vamos a los
códigos hogareños presentados en Colosenses (Col) y Efesios (Ef), epís-
tolas deuteropaulinas de las décadas del 70-80, podremos observar
propuestas innovadoras en cuanto a la sujeción de los miembros de la
casa.8 En estas cartas es evidente que los cristianos se han separado
de la sinagoga en lo que atañe a la administración y al espacio físico
de reunión; hay una búsqueda de identidad y de liderazgo que, por el
momento, solo desemboca en algunas recomendaciones en materia
organizativa9. El conflicto en estas cartas se da no con los judíos, sino
con cristianos de tendencias carismáticas que promueven la retracción
social, recomendando una cierta ascesis como marca identificatoria.
Los preceptos restrictivos de estos personajes se asocian a comidas y
prácticas ascéticas que parecen coronarse con visiones y una inclinaci-
ón al culto angélico (Col 2.16-23; Ef 4.14). Esto nos pone en presencia,
probablemente, de itinerantes paulinos portadores del carisma pro-
fético, pues no se cuestiona su doctrina, sino su práctica. Que estos
oponentes fueran cristianos paulinos de viejo cuño puede pensarse
en base a la reivindicación que hacen de la idea de discernimiento por
la posesión del Espíritu. Sin embargo, a diferencia de los carismáticos,
el eje para los autores de Col y Ef ya no es el individuo, sino la asam-
blea como un todo agrupado y organizado en diferentes núcleos do-
10 D´Angelo propone que estos códigos domésticos son la herramienta para la
cristianización de los miembros del hogar. D´ANGELO, Mary Rose. Colossians. En:
SCHUSSLER FIORENZA, Elisabeth (ed.) Searching the Scriptures. A Feminist Commen-
tary. Vol. 2, New York: Crossroad, 1994.p.315. Cfr. CROUCH, James. E. The Origin and In-
tention of the Colossian Haustafel. Gottingen: Vandenhoeck and Ruprecht, 1972.p.120-
122; BALCH, David. Let the Wives be Submissive. The Domestic Code in 1 Peter. Society
of Biblical Literature Monograph Series. Vol. 26. Ann Arbor- Michigan: Scholars Press,
1981.p.1-10; LINCOLN, Andrew T. “The Household Code and Wisdom Mode of Colos-
sians”, Journal for the Study of the New Testament 74, 1999.p.93-94, 100-102.
11 Cfr. ARENS KUCKERLKORN, Eduardo, DÍAZ MATEOS, Manuel y KRAFT, Tomas.
Apocalipsis. En: LEVORATTI, Armando J., MCEVENUE, Sean, DUNGAN, David L. y
FARMER, William R. (dirs.). Comentario Bíblico Internacional. Estella-Navarra: Verbo
Divino, 1999.p.1682-1683; FOULKES, Ricardo. Apocalipsis. En: LEVORATTI, Armando
J., TAMEZ, Elsa y RICHARD, Pablo (dirs.). Comentario Bíblico Latinoamericano. Este-
lla-Navarra: Verbo Divino, 2003.p.1181-1182; WHITE, Michael L. De Jesús al cristia-
nismo. El Nuevo Testamento y la fe cristiana. Un proceso de cuatro generaciones.
Estella-Navarra: Verbo Divino, 2007.p.352-354.
Volume 1 257
comulga con los presupuestos organizativos jerárquicos. Ya el género
del texto, netamente milenarista, nos alerta en cuanto a su planteo
socio-político. Si seguimos la propuesta de Schussler Fiorenza12, Ap
estaría reivindicando una red profética corporizada en los ángeles de
las siete iglesias, en las cuales hay serios conflictos con algunos disi-
dentes. Ap denuncia la existencia de ciertos poderes en pugna en las
iglesias de Asia Menor (Ap 1.11)13, sobre todo en Éfeso, donde se des-
cubre el engaño de los “falsos apóstoles” (Ap 2.2)14. Sin embargo de-
bería pensarse de qué apóstoles está hablando el autor de Ap, pues su
fuerte tendencia nomista señalaría que los que “se llaman apóstoles
sin serlo” podrían ser los paulinos, aquellos que identifica como la “si-
nagoga de Satanás” término que identificaría al oikos como epicentro
de estos grupos que han desertado en pos de un nuevo liderazgo (Ap
2.9; 3.9)15. Los paulinos desde Col se habían inclinado a una postura
filoimperial (Col 4.5-6)16; la comunidad de Ap renegaba del imperio,
condenaba el poder de Roma y reivindicaba a los mártires y víctimas
de la Guerra Judía. Para esta vertiente cristiana adaptarse a los patro-
nes de la cultura romana era sinónimo de adorar a Satanás17.
12 SCHUSSLER-FIORENZA, Elisabeth “The Quest for the Johannine School: The
Apocalypse and the Fourth Gospel”, New Testament Studies 23, 1976-1977.p.425.
13 Cfr. WEISS, Armando. Los siete mensajes a las Iglesias. Análisis exegético de
Apocalipsis 2-3. Buenos Aires: Instituto Superior de Estudios Teológicos (Tesis de li-
cenciatura no publicada), 1997.p.46-73.
14 Cfr. HOYOS, Federico. “La Carta dirigida al ángel de Efeso: ensayo sobre la parte
parenética del Apocalipsis”, Revista Bíblica 19.85, 1957.p.134-142.
15 Schussler Fiorenza cree que con el término “sinagoga de Satanás” el autor de Ap
se refiere a la sinagoga rabínica. SCHUSSLER FIORENZA, Elisabeth. “The Followers of
the Lamb: Visionary Rethoric and Social Political Situation”, Semeia 36, 1986.p.137.
16 Los cristianos paulinos de Asia Menor han aminorado el conflicto entre las ver-
tientes judía y gentil del movimiento, defendiendo por encima de ellas la idea de
unidad e inserción en el mundo. Cfr. LEE, E. Kenneth. Unity in Israel and unity in
Christ. En: CROSS, Frank Leslie (ed.) Studies in Ephesians. London: A. R. Mowbray
and Co., 1956.p.36-50; BARTH, Markus. The Broken Wall: A Study of the Epistle to the
Ephesians. Chicago: Judson Press, 1959.p.39-50; MONTSERRAT TORRENTS, José. La
sinagoga cristiana. Madrid: Editorial Trotta, 2005.p.243.
17 Cfr. WHITE, Michael L. De Jesús al cristianismo. El Nuevo Testamento y la fe cris-
tiana. Un proceso de cuatro generaciones. Estella-Navarra: Verbo Divino, 2007.p.362-
363. El conflicto en Asia Menor no parece darse por la existencia de una persecución,
sino por distintas formas de prácticas sociales entre grupos cristianos. Cfr. FRIESEN,
Steven. The Cult of the Roman Emperors in Ephesos. Temple Wardens, City Titles
and the Interpretation of the Revelation of John. En: KOESTER, Helmut (ed.) Ephesos:
258 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Frente al reclamo de Ap (2.20) a varias iglesias de Asia sobre
la obligación de respetar los preceptos noáquicos (puntos básicos de
la Ley) por parte de los creyentes gentiles, Ef y Hechos de los Apóstoles
(Hch) se muestran laxos en esa cuestión, subrayando que Cristo hizo
las paces entre judíos y gentiles, y que los líderes apostólicos de Jeru-
salén reconocieron la apostolicidad de Pablo y legitimaron la forma de
su misión a los incircuncisos18. No es menor el dato de que Hch sea
la primera “historia” de las iglesias paulinas, vistas por el autor como
en clara concordia y continuidad con el prestigioso y ya desaparecido
núcleo jerosolimitano de Santiago. Podríamos aducir entonces que la
comunidad del autor de Ap también remontaba su origen a los obser-
vantes de Jerusalén y unía su martirio con el de los rebeldes judíos de
la guerra (Ap 20.4). El pasado comienza a ser objeto de debate y apro-
piación, la base de una evidente voluntad jerárquica que recurre a la
historia del movimiento para legitimar sus posturas19.
Para Ap cimentar la comunidad en base a la familia y al in-
cipiente liderazgo de sus cabezas es sinónimo de amoldarse al impe-
rio. Es por esto que el autor identifica al falso profeta (¿Pablo?) como
20 ROWLAND, Christopher C. The Book of Revelation. En: KECK, Leander E. (ed.)
The New Interpreter´s Bible. Volume XII. Nashville: Abingdon Press, 1998.p.658.
21 RIST, Martin and HOUGH, Lynn Harold. The Revelation of St. John the Divine. En:
AA. VV. The Interpreter´s Bible. Volume XII. Nashville: Abingdon Press, 1957.p.465.
22 Cfr. KRAYBILL, J. Nelson. Imperial Cult and Commerce in John´s Apocalypse.
Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996.p.15-31. Harland, sin identificarlos con los
paulinos, presenta a los opositores del autor de Ap como cristianos participantes
en asociaciones cívicas fundamentalmente a través de sus actividades comerciales
o artesanales. HARLAND, Philip. “Honouring the Emperor or Assailing the Beast:
Participations in Civic Life among Associations (Jewish, Christian and Other) in Asia
Minor and the Apocalypse of John”, Journal for the Study of the New Testament 77.
2000.p.99-121.
23 Según De Souza Nogueira, en Ap 2.20-23 el autor del texto está criticando la
ética sexual matrimonial y familiar paulina, contraponiéndola con su rigurosa ascesis
profética. DE SOUZA NOGUEIRA, Paulo Augusto. “Cristianismos en Asia Menor. Un
estudio comparativo de las comunidades en Éfeso al final del primer siglo d.C.”, Re-
vista de Interpretación Bíblica Latinoamericana 29, 1998.p.135.
24 En Ap 19.10 el autor señala que el testimonio de Jesús es el espíritu de profecía, que
él posee (Ap 10.11), pero que está ausente de los núcleos cristianos opositores, que siguen
260 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
res que se arrogan el control de la disciplina moral y comienzan a ser
reverenciados (de aquí que en Ap 19.10 y 22.9 se corrija al vidente
cuando quiere adorar a intermediarios)25. La sinagoga judeo-cristiana
de Ap es profética y milenarista, proyectada hacia la destrucción de
Babilonia-Roma y la conservación pura de los fieles hasta el cumpli-
miento del tiempo. Los cristianos refugiados en la disciplina domésti-
ca se han secularizado y se manchan continuamente con las prácticas
impuras, fruto de su interacción social y cívica (Ap 22.11).
Los cristianos opositores a la ética patriarcal doméstica des-
cansaban en un liderazgo carismático que remontaban a los apóstoles,
desconociendo cualquier legitimación jerárquica local. Sin embargo,
en muchas ekklesiai el poder del carisma no era visto como compati-
ble con el pedido de obediencia y con los presupuestos organizativos
de la familia. Si bien Ap tiene en alta estima a los itinerantes, no así
las asambleas paulinas y otras en las que su inmiscusión en los asun-
tos locales comienza a ser vista como competencia en la carrera por
la jerarquización. Esto puede verse por ejemplo en Didajé (Did), un
manual cristiano del año 110 aproximadamente, proveniente de una
comunidad del área de Antioquía de Siria26. En el mismo se refleja la
tensión inherente a la convivencia de apóstoles y profetas con obispos
y diáconos, poderes colectivos de la ekklesia local (Did 15.1-2). El au-
tor del documento pide que no se desprecie a los itinerantes aunque
autoriza a los fieles a indagar sobre sus intenciones y su discurso. Aún
es válido el precepto de sostener al ministro ambulante, pero ahora
se delimita su estancia y se prohíbe que reciba dinero; sin embargo, el
itinerante puede asentarse en la comunidad permanentemente y vivir
con los hermanos, poniendo su don al servicio de los líderes locales
(Did 11.3-13.7)27. En Did se nos da otro valioso dato para analizar el
órdenes del falso profeta al servicio de la Bestia y así se garantizan la inclusión social.
25 RIST, Martin and HOUGH, Lynn Harold. The Revelation of St. John the Divine. En:
AA. VV. The Interpreter´s Bible. Volume XII. Nashville: Abingdon Press, 1957.p.510.
26 Cfr. AUDET, Jean Paul. La Didaché. Instructions des Apotres. Paris: Gabalda,
1958.p.187-210; WHITE, Michael L. De Jesús al cristianismo. El Nuevo Testamento
y la fe cristiana. Un proceso de cuatro generaciones. Estella-Navarra: Verbo Divino,
2007.p.415-416.
27 DRAPER, Jonathan A. Social Ambiguity and the Production of Text: Prophets,
Teachers, Bishops, and Deacons and the Development of the Jesus Tradition in the
Community of the Didache. En: JEFFORD, Clayton N. (ed.) The Didache in Context.
Volume 1 261
discurso de los cristianos resistentes al espacio del oikos: el grado de
perfección y compromiso de los subordinados domésticos. Si nos de-
tenemos en Did 4.9-11 veremos que se espera que el padre-amo sea
el reflejo de Dios para sus hijos y esclavos, calificados como miembros
cuya integración y convicción cristiana tiene que ver con una correcta
asunción de los presupuestos jerárquicos del hogar28. A diferencia de
Col y Ef, Did propone ver al kyrios como reflejo de las actitudes de Dios,
la expresión de la autoridad divina en el hogar. Este punto conlleva sus
dificultades para muchos cristianos, pues el oikos cristianizado somete
la pluralidad de expresiones carismáticas a un orden y a un líder, no
a manifestaciones divinas personales, intersticiales y conflictivas. Para
comprender esto más en profundidad es necesario observar al Evan-
gelio de Juan, cuya comunidad se habría originado en el área de Siria.
El Evangelio de Juan (Jn), cuyo grupo redactor habría migra-
do de Siria-Palestina a Anatolia29, nos ofrece una cristología avanzada,
centrada en una confesión de fe salvífica que contrabalancea el fracaso
de la parusía: la salvación es un estado que se alcanza por la creencia
en Jesús y su confesión como Hijo enviado del Padre (Jn 5.24)30. Los
juaninos consideran su situación como intersticial o, al menos, semi-in-
tersticial, ya que quedan absorbidos por una tensión entre dos grandes
polos: la sinagoga y las ekklesiai jerárquicas. La sinagoga es un espacio
31 MARTYN, J. Louis. History and Theology in the Fourth Gospel. Nashville: Abing-
don Press, 1979.p.47-51; BROWN, Raymond E. La comunidad del discípulo amado.
Estudio de la eclesiología juánica. Salamanca: Sígueme, 1983.p.65-68; COLLINS, Ray-
mond F. Speaking of the Jews: “Jews” in the Discourse Material of the Fourth Gospel.
En: BIERINGER, Reimund, POLLEFEYT, Didier and VANDECASTEELE-VANNEUVILLE,
Frederique. (eds.) Anti-judaism in the Fourth Gospel. Louisville-Kentucky: Westmin-
ster John Knox Press, 2001.p.158-175; THEISSEN, Gerd. La redacción de los evange-
lios y la política eclesial. Un enfoque socio-retórico. Estella-Navarra: Verbo Divino,
2002.p.155-158; BERNABÉ UBIETA, Carmen. Las comunidades joanicas: un largo re-
corrido en dos generaciones. En: AGUIRRE, Rafael. (ed.) Así empezó el cristianismo.
Estella: Verbo Divino, 2010.p.320. Es interesante el planteo de varios autores que
postulan que la Birkat ha-minim (la exclamación condenatoria contra los herejes de
la sinagoga) jugó un rol en esta separación, pero no como elemento de expulsión,
sino de disuasión. LIEU, Judith. Neither Jew nor Greek? Constructing Early Christian-
ity. Edinburgh: TyT, 2002.p.11-29; MARCUS, Joel. “Birkat ha-Minim Revisited”, New
Testament Studies 55, 2009.p.523-551.
32 Brown señala que los juaninos dialogan con los grupos petrinos en el evan-
gelio. Allí se los cuestiona por su incomprensión cristológica. BROWN, Raymond E.
La comunidad del discípulo amado. Estudio de la eclesiología juánica. Salamanca:
Sígueme, 1983.p.79-85. Cfr. BERNABÉ UBIETA, Carmen. Las comunidades joanicas:
un largo recorrido en dos generaciones. En: AGUIRRE, Rafael. (ed.) Así empezó el
cristianismo. Estella: Verbo Divino, 2010.p.331-332.
33 THEISSEN, Gerd. La redacción de los evangelios y la política eclesial. Un enfo-
que socio-retórico. Estella-Navarra: Verbo Divino, 2002.p.169. Según Brown, el rol del
Paráclito es compensar la falla escatológica, pues el Paráclito es el Espíritu de Jesús
siempre presente. BROWN, Raymond E. La comunidad del discípulo amado. Estudio
de la eclesiología juánica. Salamanca: Sígueme, 1983.p.131-133.
34 PIPER, Ronald A. Satan, Demons and the Absence of Exorcisms in the Fourth
Gospel. En: HORRELL, David G., and TUCKETT, Christopher M. (eds.) Christology,
Controversy and Community. New Testament Essays in Honor of David R. Catchpole.
Leiden: Brill, 2000.p.271-276; WATT, Jan G. Van der. Salvation in the Gospel According
Volume 1 263
nidad, se pase a integrar un colectivo de creyentes que avanzan en la
perfección de su fe.
Jn utiliza el concepto de “amistad” (filía) para nombrar la ali-
neación de los hombres ya sea con Jesús, ya sea con el César35. La
amistad supone demandas y un comportamiento concreto que se aso-
cia inexorablemente con el sufrimiento, como en el caso del ciego de
nacimiento, insultado y finalmente expulsado de la sinagoga y de sus
mismos lazos familiares (dado que sus padres se retraen ante las pre-
siones de los interrogatorios. Jn 9.18-34)36. Es curioso que Jn adopte
el término amistad para señalar las relaciones con Dios o con el mundo
y no recurra a “esclavitud” (douleia), pero esto podría quedar aclara-
do si observamos a qué equivale la esclavitud para el evangelista en
términos simbólicos. Ser esclavo para Jn es sinónimo de conocimiento
imperfecto, ya que en 8.34-35 asocia el pecado con la esclavitud, situa-
ción de inestabilidad y de lealtad dudosa. La esclavitud es una relación
en la que media el dinero, ya sea en la compra o la venta del esclavo, y
que, además, presupone un origen oscuro (el esclavo “no sabe de don-
de viene”). Por esto, el autor de Jn ubica a la esclavitud por debajo de
los vínculos filiales y de amistad figurativos37, los cuales garantizan un
verdadero conocimiento y legitimidad: Jesús es Dios porque revela al
Padre y hace lo que él le encomendó, así como los discípulos hacen lo
que Jesús y el Paráclito les señalan; de la misma manera el funcionario
real intercede por su hijo (ya no su esclavo, como en Mt o Lc) para la
curación38. Esta procedencia del Padre que reclama Jesús es lo que lo
habilita como líder único, creando así un eje carismático continuado en
el Paráclito y en el Discípulo Amado39.
to John. En: WATT, Jan G. Van der (ed.) Salvation in the New Testament. Perspectives
on Soteriology. Leiden: Brill, 2005.p.118.
35 RINGE, Sharon H. Wisdom´s Friends. Community and Christology in the Fourth
Gospel. Louisville-Kentucky: Westminster John Knox Press, 1999.p.65-68; THEISSEN,
Gerd. La redacción de los evangelios y la política eclesial. Un enfoque socio-retórico.
Estella-Navarra: Verbo Divino, 2002.p.151-153.
36 WATT, Jan G. Van der. Salvation in the Gospel According to John. En: WATT, Jan
G. Van der (ed.) Salvation in the New Testament. Perspectives on Soteriology. Leiden:
Brill, 2005.p.121-122.
37 TENNEY, Merrill Chapin. “Topics from the Gospel of John. Part I: The Person of
the Father”. Bibliotheca Sacra 132, 1975.p.38-41.
38 BROWN, Raymond E. El Evangelio según San Juan. I-XII. Madrid: Ediciones Cris-
tiandad, 1979.p.398-404.
39 Pedro aparece como una autoridad recién en Jn 21, capítulo agregado con
264 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
La figura del Buen Pastor, que Jn aplica a Jesús (Jn 10.11-
18) , tendría que ver con una dura crítica al creciente avance de las
40
44 HOWARD, Wilbert Francis and GOSSIP, Arthur John. The Gospel According to St.
John. En: AA.VV. The Interpreter´s Bible. Volume VIII. Nashville-Tennessee: Abingdon
Press, 1952.p.689-690; BAILEY, John Amadeo. The Traditions Common to the Gospels
of Luke and John. Leiden: Brill, 1963.p.29-31; Eslinger (2000:59); PIPER, Ronald A.
Satan, Demons and the Absence of Exorcisms in the Fourth Gospel. En: HORRELL, Da-
vid G., and TUCKETT, Christopher M. (eds.) Christology, Controversy and Community.
New Testament Essays in Honor of David R. Catchpole. Leiden: Brill, 2000.p.264-265.
45 VAWTER, Bruce. Evangelio Según San Juan. En: BROWN, Raymond E., FITZMYER,
Joseph A. y MURPHY, Roland E. (dirs.) Comentario Bíblico San Jerónimo. Tomo IV. Ma-
drid: Ediciones Cristiandad, 1972.p.484; BROWN, Raymond E. El Evangelio según San
Juan. I-XII. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1979.p.707; O´DAY, Gail R. John. En: KECK,
Leander E. (ed.) The New Interpreter´s Bible. A Commentary in Twelve Volumes. Vol-
ume IX. Nashville: Abingdon Press, 1995.p.702.
266 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Obren no por el alimento perecedero, sino por el alimento que perma-
nece para la vida eterna”46, es decir que no se debe confundir a Jesús
con un proveedor y patrono garante de su clientela.
Es curioso que, a la par de Jn, Ignacio de Antioquía estaba
promoviendo este modelo comunitario en las comunidades de Asia
Menor. En su carta a Policarpo, presbítero de Esmirna, Ignacio describe
el rol del obispo ideal en un tono netamente económico, ya que debe
ser quien garantice y presida las reuniones y la beneficencia así como
la bolsa comunitaria (Pol 1.2-5.2). A esto Ignacio le suma el hecho de
que el obispo debe resumir en sí mismo los dones proféticos (Ef 6.1;
15.2; Tral 5.1-2; Fil 1.2; Pol 2.2)47, de ahora en más patrimonio exclusi-
vo de su persona y orientados a la administración de la federación de
oikoi que lo reconocen como autoridad legítima.
La propuesta monoepiscopal de Ignacio no encontró gran asi-
dero en Anatolia, donde el paulinismo se volcaba a una jerarquía toda-
vía no muy definida en cuanto a roles precisos. Sin embargo, el oikos
cristiano seguía siendo la plataforma exclusiva del poder en construc-
ción, el espacio en el que se reflejaban las características del aspirante
a un cargo. Las Pastorales nos dan una idea de los conflictos que atra-
vesaban las ekklesiai paulinas para consolidar liderazgos, intentando
apostar a una disciplina interna por grupos que no parece haber sido
tan sencilla e incontestada (Tit 2.1-10; 1Tim 2.8-3.13; 5.1-6.2). No muy
lejos, en la zona de Siria-Palestina, otras voces emprendieron una dura
crítica hacia este proceso de secularización, reivindicando el carácter
intersticial del cristianismo así como su raigambre carismática. Dos tex-
tos son los mejores representantes de estas posturas: la Ascensión de
Isaías (AscIs) y la Epístola de Judas (Jd).
La AscIs fue producida hacia el 115 por un grupo de fieles pro-
bablemente de Siria48. Este texto reivindica fuertemente el rol proféti-
46 Brown, Raymond E. The Gospel According to John (I-XII). The Anchor Bible. Vol-
ume 29. Garden City-New York: Doubleday & Company, 1966.p.264.
47 CHADWICK, Henry. “The Silence of Bishops in Ignatius”, Harvard Theological
Review 43, 1950.p.69-72.
48 KNIGHT, J. The Ascension of Isaiah. Melksham-Wiltshire: Sheffield Aca-
demic Press, 1995.p.21-23; MÜLLER, C. Detlef G. The Ascension of Isaiah. En:
SCHNEEMELCHER, Wilhem. (ed.) New Testament Apocrypha. Vol 2. Writings Relating
to the Apostles; Apocalypses and Related Subjects. Louisville- Kentucky: Westminster
John Konx Press, 2003.p.603-605.
Volume 1 267
co, cuya figura emblemática, Isaías, sufre la persecución política ante el
cambio de monarca (AscIs 2.1-10). En la primera parte de esta ficción
hallamos una descripción de la preocupación presente del autor: pas-
tores y ancianos perversos han alienado el Espíritu Santo, anteponien-
do sus propias voces y sus propios intereses en la administración de
los creyentes, acomodándose al “honor del mundo”. El descrédito de la
profecía provoca que los profetas sufran un desplazamiento y el Espíritu
del error y la fornicación se presente de forma legítima en los nuevos
líderes (AscIs 3.21-31)49. Evidentemente AscIs está dialogando con la
propuesta ignaciana, que hacía del obispo el silencioso intérprete de la
voluntad divina, e incluso con la propuesta paulina, la cual descarta las
manifestaciones exaltadas en pos de mostrar obediencia a las autorida-
des50. No deja de ser significativo que este texto use el término “pas-
tores violentos y sin ley” (3.24) para referirse a los jerarcas y que consi-
dere profetas a los doce apóstoles (3.21). Todo esto es una relectura en
clave escatológica de la historia del cristianismo en miras de la parusía,
el tiempo final que AscIs exalta como próximo así como la oposición al
poder romano, asesino de los apóstoles y los justos (AscIs 4.1-14).
Algo similar a AscIs encontramos en Jd, texto que pareciera
proceder de la zona de Palestina hacia el 125-130, un poco antes de
la revuelta del Bar-Kochba51. Esta epístola con tintes homiliéticos está
motivada por una escisión comunitaria en la que no se observa una
disensión teológica con los oponentes, sino mas bien un problema de
autoridad52. El liderazgo que plantean estos personajes se opone a lo
49 Cfr. HALL, Robert G. “The Ascension of Isaiah: Community Situation, Date,
and Place in Early Christianity”, Journal of Biblical Literature 109.2, 1990.p.296-298;
KNIGHT, J. The Ascension of Isaiah. Melksham-Wiltshire: Sheffield Academic Press,
1995.p.31-32, 56-57.
50 HALL, Robert G. “The Ascension of Isaiah: Community Situation, Date, and
Place in Early Christianity”, Journal of Biblical Literature 109.2, 1990.p.305-306.
51 Cfr. DESJARDINS, Michel. “The Portrayal of the Dissidents in 2 Peter and Jude:
Does It Tell Us More About the `Goodly´ than the `Ungodly´?”, Journal for the Study
of The New Testament 30, 1987.p.89; BAUCKHAM, Richard J. The Letter of Jude:
An Account of Research. En: TEMPORINI, Hildegard and HAASE, Wolfgang. (eds.)
Aufstieg Und Niedergang del Romischen Welt II.25.5. Berlin-New York: De Gruyter,
1988.p.3814; FUCHS, Eric et REYMOND, Pierre. La Deuxieme Épitre de Saint Pierre.
L´Épitre de Saint Jude. Genève: Labor et Fides, 1988.p.150-153.
52 GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter and the General Epistle
of Jude. An Introduction and Commentary. London-Rochester: The Tyndale Press,
268 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
que el autor llama “la fe transmitida” (Jd 3), ya que su propuesta orga-
nizativa va claramente en contra de la sucesión profético-carismática
local que, además, reivindica a Santiago, hermano de Jesús, como fi-
gura central (Jd 1)53. Dado que el problema es netamente organizativo
y no doctrinal, bien podría aducirse que lo que está amenazado es el
carácter intersticial de la comunidad, a la cual los innovadores están
tratando de convertir en ekklesia.
Los opositores en Jd son acusados de convertir en libertina-
je la gracia y rebelarse contra lo establecido, como los israelitas en el
desierto, los ángeles indignos y los habitantes de Sodoma y Gomorra
(Jd 5-7)54. En este aspecto podría verse un conflicto intracomunitario,
con la emergencia de figuras aglutinadoras que desconfían de las ca-
bezas carismáticas y prefieren negociar los espacios de poder con las
autoridades locales a fin de no ser molestados debido a los roces fruto
de una situación intersticial55. El oikos aparecería como el nuevo eje
de poder, centro aglutinador y, por ende, espacio de conflictos para el
autor de Jd. La acusación de “manchar la carne” tendría que ver enton-
ces con los tratos mundanos a que está sometido un jerarca y no a una
56 FUCHS, Eric et REYMOND, Pierre. La Deuxieme Épitre de Saint Pierre. L´Épitre de
Saint Jude. Genève: Labor et Fides, 1988.p.166-167.
57 . DESJARDINS, Michel. “The Portrayal of the Dissidents in 2 Peter and Jude: Does
It Tell Us More About the `Goodly´ than the `Ungodly´?”, Journal for the Study of The
New Testament 30, 1987.p.91. Green aclara que esto supone irreverencia hacia los
maestros-profetas y un rechazo de su recurrencia a las figuras angélicas (sentido que
se le da al término doxa). GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter and
the General Epistle of Jude. An Introduction and Commentary. London-Rochester:
The Tyndale Press, 1968.p.168-169.
58 Green asocia la expresión “banquetear desvergonzadamente” con desórdenes
en el rito de la cena del Señor. GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter
and the General Epistle of Jude. An Introduction and Commentary. London-Roches-
ter: The Tyndale Press, 1968.p.174.
59 Cfr. SIDEBOTTOM, E. M. James, Jude, 2 Peter. New Century Bible Commentary.
Grand Rapids-Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1982.p.169-172; THEISSEN, Gerd.
El Nuevo Testamento. Historia, literatura, religión. Santander: Sal Terrae, 2003.p.195.
270 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
estar identificando solapadamente como Balaam60. Visto esto, no es
extraño que en Jd se utilice el verbo poimainō (apacentar), propio de
la metáfora del pastor, para referirse a los disidentes, ya que según el
autor poco les importan los creyentes, pues “se apacientan a sí mis-
mos” (eautous poimaínontes. Jd 12)61, es decir que hacen su negocio
con una administración traicionera y que elimina lo intersticial para
acomodarse al modelo cívico imperial.
Entre el 70 y el 135 las comunidades cristianas intentaron es-
bozar una identidad a partir de postulados organizativos medianamen-
te definidos. Diversas propuestas retóricas circularon para justificar a
las nuevas autoridades locales y respaldar un funcionamiento comu-
nitario coincidente con las premisas de la polis grecorromana. Junto a
esto, las asambleas necesariamente debieron repensar su historia, lo
que las llevó a volcar por escrito sus normativas centrales.
Conclusiones
60 BAUCKHAM, Richard J. The Letter of Jude: An Account of Research. En: TEMPO-
RINI, Hildegard and HAASE, Wolfgang. (eds.) Aufstieg Und Niedergang del Romischen
Welt II.25.5. Berlin-New York: De Gruyter, 1988.p.3811. El tema de la apostolicidad
de Pablo fue discutido ya en vida de este (1Cor 8.1-7; 15.9-10; Gal 1.1), prolongándo-
se la disputa a lo largo de los siglos I y II.
61 GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter and the General Epistle
of Jude. An Introduction and Commentary. London-Rochester: The Tyndale Press,
1968.p.175; WATSON, Duane Frederick. Invention, Arrangement and Style. Rhetori-
cal Criticism of Jude and 2 Peter. Atlanta-Georgia: Scholars Press, 1986.p.62; BAUCK-
HAM, Richard J. The Letter of Jude: An Account of Research. En: TEMPORINI, Hil-
degard and HAASE, Wolfgang. (eds.) Aufstieg Und Niedergang del Romischen Welt
II.25.5. Berlin-New York: De Gruyter, 1988.p.3812.
Volume 1 271
y las visiones angélicas generan conflicto con el entorno, pues obligan
a romper lazos de solidaridad tanto domésticos como clientelares o
cívicos. El objetivo de esto es conservar un nivel de pureza que habi-
lite a los creyentes para la espera escatológica inminente. Para estos
cristianos, los fieles nucleados alrededor de patronos eclesiales han
corrompido su compromiso al someter su fe a los caprichos de un im-
provisado y astuto administrador; y no solo eso, sino que en su afán
han arrastrado a todos sus dependientes domésticos a practicar una
ética para la cual no están preparados. Pese a esto, si consideramos
a Did, los carismáticos no fueron desplazados violentamente y se les
abrieron las puertas de la iglesia para que se afinquen y aporten al
sostenimiento y gestión del grupo. La única diferencia es que ahora su
voz deberá estar en concordancia con los lineamientos de los diversos
órdenes. No desparecieron, sino que se resignificaron al interior de la
organización de la ekklesia.
Volume 1 275
suas responsabilidades episcopais. Para elas, sua eleição não assinala
tão somente a instalação no vértice da hierarquia sacerdotal, o coroar
de uma carreira profissional bem-sucedida, mas a oportunidade de le-
var a cabo uma missão divina da qual se julgam os fiéis executores: a de
corrigir o século, de superar as mazelas que afligem a sociedade de seu
tempo e, com isso, debelar a crise de valores nas quais se pretendem
imersos.10 Os bispos, estimulados pela convicção de que, como vigá-
rios de Cristo, cumpria-lhes zelar permanentemente pela santificação
da assembleia, erradicando qualquer vestígio de impureza, impiedade
e devassidão, assumiam por vezes a posição de reformadores sociais.
Para tanto, costumavam buscar inspiração no movimento monástico,
sem dúvida um dos mais espetaculares fenômenos de piedade popular
de todos os tempos. A ascese obtida pelo monge mediante uma au-
tomortificação solitária ou exercida em companhia dos iniciados, quer
se tratem de anacoretas ou de cenobitas, é transposta assim para o
conjunto da assembleia mediante a atuação pedagógica dos bispos,
que não cessam de clamar pela retidão dos costumes, não poupando
nem mesmo os membros das suas próprias fileiras. Nesse sentido, a
figura de João Crisóstomo é, sob diversos aspectos, notável, pois sua
atuação pastoral, em Constantinopla, representou um momento em-
blemático dentro do processo de centralização administrativa levado
a cabo pelos bispos e que não raro implicou um aumento correlato na
capacidade de intervenção nos ritmos da vida urbana.11
14 MAYER, W. John Chrysostom as bishop: the view from Antioch. Journal of Eccle-
siastical History, Cambridge, v. 55, n. 3, p. 455-466, 2004.
15 BAÁN, I. L’évèque Chrysostome: exigences et réalisations. In: VESCOVI E PASTORI
IN EPOCA TEODOSIANA. Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 1997, p. 424.
16 Pal. Dial., 5.
17 Soz. Hist. Eccl., VIII, 2.
278 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
entrar na carruagem de Astério, que o conduziu até a estação militar
de Pagras. Somente aí lhe foi dada ciência formal da sua nomeação.
Em 15 de dezembro de 397 ou 26 de fevereiro de 398, João é consagra-
do bispo, inaugurando um episcopado que, desde o início, se mostrou
bastante turbulento.18
A passagem de João por Constantinopla foi marcada pela ado-
ção de um amplo programa de reformas, algumas das quais polêmicas,
o que lhe angariou uma profunda antipatia, a começar pelos mem-
bros do seu próprio clero, familiarizados de longa data com contro-
vérsias e dissensões intra ecclesiam. João, ao suceder Nectário, passa
a responder por um bispado que havia, nos últimos anos, adquirido
visibilidade crescente em virtude da ascensão fulgurante de Constan-
tinopla, a Nova Roma, que, devido à partilha do Império entre os fi-
lhos de Teodósio, em 395, se converte na sede permanente da corte
no Oriente. Um bispado, assim, cuja administração se revela por de-
mais complexa devido à excessiva proximidade com a cúpula imperial.
Além disso, Constantinopla, a exemplo de outras sés da época, sofria
por anos a fio com disputas entre arianos, nicenos, novacianos e de-
mais facções do cristianismo, o que conferiu uma aguda instabilidade
ao cotidiano da congregação.19 No decorrer da segunda metade do
século IV, os cristãos da Capital vivenciaram percalços diversos, fragili-
zados por múltiplos contratempos de natureza teológica, disciplinar e
18 Com referência às duas datas para a sagração de João Crisóstomo como bis-
po de Constantinopla transmitidas pelos autores antigos, Brändle (Jean Chrysostom
(349-407): «Saint Jean Bouche d’or», christianisme et politique au IVe siècle. Paris:
Du Cerf, 2003, p. 84) propõe que João teria sido ordenado em dezembro de 397 e en-
tronizado em fevereiro de 398. Para o autor, morto Nectário, em setembro de 397,
não haveria razão para postergar a eleição do novo bispo.
19 Os novacianos constituíam uma comunidade própria, fundada em meados do
século III por Novaciano, um dos membros do clero de Roma, inconformado com o
fato de o seu bispo, Cornélio, ter readmitido à comunhão os lapsi, isto é, aqueles que
abjuraram a fé cristã por ocasião das perseguições de Décio e Valeriano. A igreja no-
vaciana se expandiu por todo o norte da África, alcançando adeptos inclusive em algu-
mas cidades do Oriente e até o século V permaneceu ativa. Os quartodecimanos, por
sua vez, eram os cristãos que, fiéis à cronologia transmitida por João, celebravam a
Páscoa no décimo-quarto dia da primeira lua da primavera, isto é, na data do Pessach
hebraico, em 14 do mês de Nisã. No concílio de Niceia, fixou-se definitivamente a ce-
lebração dominical da Páscoa, razão pela qual os quartodecimanos, restritos a alguns
grupos espalhados pelas cidades do Oriente, foram tidos como heréticos (BERARDI-
NO, A. (Org.). Dicionário patrístico e de Antigüidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002).
Volume 1 279
administrativa.20 Antes de Nectário, Gregório de Nazianzo havia, por
um lapso de tempo, tentado unir as facções dissidentes da cidade, mas
os obstáculos que teve de enfrentar se mostraram intransponíveis, o
que precipitou a sua renúncia em junho de 381, um pouco depois de
sua investidura.21 Para o seu lugar, os padres reunidos no Concílio
de Constantinopla elegeram, por determinação explícita de Teodósio,
Nectário, um integrante da ordem senatorial que à época era tão so-
mente um catecúmeno, ou seja, um aspirante ao batismo. O ato do
imperador exprimia com clareza seu desejo em manter à frente do
bispado da Capital um homem de sua inteira confiança, oriundo das
fileiras do seu próprio comitatus. Morto Nectário, reacendem-se as
disputas em torno da sucessão episcopal. Teófilo, o eminente bispo de
Alexandria, tenta patrocinar a candidatura de Isidoro, um presbítero
da sua igreja reputado como alguém de rara erudição, mas, na queda
de braço que se segue, Eutrópio sagra-se vencedor ao obter a nomea-
ção de João Crisóstomo.22 Derrotado em suas pretensões de controlar
um bispado importante como o de Constantinopla, Teófilo é convoca-
do a consagrar o novo bispo, nutrindo daí em diante um profundo res-
sentimento contra João. O ajuste de contas entre ambos seria apenas
uma questão de tempo.23
Levando-se em consideração o papel do rigorismo na forma-
ção religiosa e intelectual de João e a obstinação do seu caráter, era
de se esperar que, na condição de bispo, ou seja, de líder absoluto
dos destinos de uma congregação, ele vislumbrasse a oportunidade
de implementar as suas ideias acerca do comportamento ideal espera-
do daqueles que se autointitulavam cristãos.24 João encarava o ofício
sua cidade natal, razão pela qual em duas das suas mais antigas obras, intituladas
Confronto entre o rei e o monge e Contra os detratores da vida monástica, se dedica
a exaltar a virtude daqueles que foram corajosos o suficiente para renunciar ao con-
forto da vida urbana e enfrentar as agruras dos desertos e das montanhas, devotan-
do-se assim integralmente à ascese e à oração (MORESCHINI, C.; NORELLI, E. História
da literatura cristã antiga grega e latina. São Paulo: Loyola, 2000, p. 190. v. II, t. I).
25 GUINOT, J. N. L’apport des panégyriques de Jean Chrysostome à une definition
de l’évèque modèle. In: VESCOVI E PASTORI IN EPOCA TEODOSIANA. Roma: Institu-
tum Patristicum Augustinianum, 1997, p. 398.
26 KELLY, J. N. D. Golden Mouth: the story of John Chrysostom – ascetic, preacher,
bishop. London: Duckworth, 1995, p. 299.
27 Pal. Dial. 5.
Volume 1 281
Entre os círculos monásticos da cidade, o descontentamento
com as medidas tomadas por João era generalizado, tanto que Isaque,
um dos fundadores do monacato em Constantinopla, foi um dos prin-
cipais articuladores da sua deposição.28 Ao que tudo leva a crer, a di-
vergência que se estabeleceu entre João e os monges da cidade girava
em torno de concepções distintas da vida monástica. Segundo Sozo-
meno,29 João “[...] tinha em alta conta os monges que permaneciam
em quietude, nos mosteiros, e aí praticavam a filosofia. Ele os protegia
de toda injustiça e de modo solícito os provia de quaisquer necessida-
des. Mas os monges que transpunham as portas [do mosteiro] e se
exibiam nas cidades, ele os insultava”. A animosidade entre o bispo e
os monges repercutiu até mesmo na elite administrativa do Império,
uma vez que o general Saturnino e o prefeito do pretório Aureliano
mantinham contatos estreitos com Isaque. Desse modo, uma dispu-
ta originada no âmbito da congregação de Constantinopla logo passa
a envolver representantes da administração pública, o que ameaça a
posição de João Crisóstomo.
A situação se agrava ainda mais com o embate que se esta-
belece entre João e Teófilo de Alexandria por conta do episódio dos
“Grandes Irmãos” (Makroi Adelphoi), um grupo de monges da Nitria
conhecido pela estatura física de seus componentes. Seguidores de
Orígenes, os “Grandes Irmãos” defendiam a tese da natureza incorpó-
rea de Cristo, ao passo que Teófilo, fiel ao credo de Niceia, sustentava
o argumento de que Cristo teria sofrido o processo de encarnação por
intermédio da Virgem. No auge da polêmica, o bispo de Alexandria
lidera ataques às comunidades dos monges origenistas, forçando-os
a deixar o Egito. Acuados, os fugitivos aportam em Constantinopla na
esperança de obter o favor imperial, sendo então acolhidos por Eudó-
xia, que abraça a sua causa. Diante da recusa de Teófilo em receber
os monges em comunhão, Eudóxia solicita a Arcádio que convoque um
concílio, a ser presidido por João Crisóstomo, a fim de apurar os abu-
sos cometidos pelo bispo de Alexandria contra os monges. João, no
entanto, se recusa a atender a solicitação do imperador, evocando o
68 COLLINS, R. Los guardianes de las llaves del cielo: una historia del papado. Ma-
drid: Ariel, 2009, p. 75.
294 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
não poderia agradar Inocêncio, ele próprio empenhado em reforçar a
concepção segundo a qual os bispos de Roma, sendo sucessores dire-
tos de Pedro, detinham uma preeminência inconteste sobre as demais
igrejas, como vemos em suas epístolas, nas quais reitera a concepção
segundo a qual Roma era a líder da Igreja, tanto por delegação apostó-
lica quanto por decisão conciliar.69
Assumindo a defesa incondicional de João Crisóstomo, Ino-
cêncio tinha condições, em primeiro lugar, de resguardar o protagonis-
mo de Roma como árbitra nas disputas intra ecclesiam às expensas de
Constantinopla, forçada a reconhecer, de uma maneira ou de outra, tal
situação. Em segundo lugar, de confrontar Alexandria, desautorizando
qualquer intervenção dos seus bispos além dos limites do território
africano. É digno de nota o fato de que, mesmo diante do desapare-
cimento precoce de João Crisóstomo e de Arcádio, falecidos em 407 e
408, respectivamente, Inocêncio tenha continuado a sustentar a causa
do bispo deposto, colocando-se assim em oposição não apenas a Te-
ófilo de Alexandria, mas também a Porfírio de Antioquia e a Ático de
Constantinopla, os líderes das três principais sés do Oriente, que man-
tinham-se hostis aos joanitas e, por extensão, ao bispado de Roma.
Pouco a pouco, no entanto, Inocêncio consegue impor o seu ponto
de vista, a começar por Antioquia, onde, em 413, Alexandre é eleito
como sucessor de Porfírio. Em troca da suspensão do apoio de Roma
aos últimos partidários de Eustácio e de Paulino na cidade, Alexandre
concorda em introduzir o nome de João Crisóstomo nos dípticos da
liturgia que celebravam a memória dos santos com os quais sua igre-
ja se encontrava em comunhão. Em seguida, num hábil movimento,
Inocêncio ratifica a precedência de Antioquia sobre as igrejas integran-
tes da diocese do Oriente, declarando que nenhum bispo poderia ser
eleito sem a anuência do bispo de Antioquia, que compartilhava da
autoridade de Pedro e cuja jurisdição extraprovincial havia sido reco-
nhecida pelo Concílio de Niceia. No que se refere a Constantinopla,
Inocêncio realiza gestões com a finalidade de pressionar Ático a seguir
o exemplo de Alexandre, incluindo o nome de João nos dípticos da sua
igreja.70 Por mais que acreditemos no senso de justiça de Inocêncio e