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Experiências Religiosas

no Mundo Antigo
Volume I
Experiências Religiosas
no Mundo Antigo
Volume I

Carolina Kesser Barcellos Dias


Semíramis Corsi Silva
Carlos Eduardo da Costa Campos
(organizadores)
Experiências religiosas no mundo antigo - Volume 1
Carolina Kesser Barcellos Dias | Semíramis Corsi Silva | Carlos Eduardo da Costa Campos
(organizadores)

1ª Edição - Copyright© 2017 Editora Prismas


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Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz
Bibliotecária CRB 9-626

Experiências religiosas no mundo antigo / organização


E96 de Carolina Kesser Barcellos Dias, Semíramis Corsi Silva, Carlos Eduardo da Costa Campos -
1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, 2017.
v.1: il.; 23cm
ISBN: 978-85-5507-531-5
1. Religião – História antiga. 2. História das religiões. I. Dias, Carolina Kesser Barcellos (org.).
II. Silva, Semíramis Corsi (org.). III. Campos, Carlos Eduardo da Costa (org.).
CDD 020 (22.ed)
CDU 02

Coleção Estudos sobre o Mundo Antigo e Medieval


Direção Científica:
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Carolina Kesser Barcellos Dias - UFPel

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Apresentação
As sociedades que integram o vasto Mundo Antigo fascinam
e encantam muitas pessoas ao longo dos tempos. Como exemplo, po-
demos citar o interesse dos copistas medievais em transmitir os tex-
tos do passado, a paixão dos artistas renascentistas e iluministas pelo
período grego e romano, as aventuras expostas no cinema em filmes
com temática ambientada em cidades antigas ou tratando de histórias
da mitologia. Ademais, não podemos deixar de mencionar, o aumento
considerável de estudos historiográficos sobre as sociedades antigas,
inclusive no Brasil. Em meio a tais vivências, poucos são indiferentes às
experiências religiosas dessas Antiguidades, principalmente, ao entra-
rem em contato com as múmias egípcias, a magnificência dos templos
e das estátuas assírias, chinesas, hindus, gregas e romanas. Além disso,
em várias sociedades modernas, os jovens crescem envolvidos pelas
cosmogonias e práticas religiosas antigas através da mídia, dos livros e
por essas práticas ressignificadas.
As religiões antigas são constantemente revisitadas, relidas e
representadas pelo mundo atual. Todavia, esses mundos e suas cosmo-
visões não são importantes simplesmente porque são interessantes e
distantes: tais estudos também nos ajudam a compreender e ampliar
nossos horizontes mentais sobre os períodos posteriores da história.
Não podemos esquecer que antigas crenças e práticas muitas vezes fo-
ram absorvidas pelas culturas posteriores, assim como certas imagens
e locais de culto foram apropriados por cultos que se tornaram hege-
mônicos, como no caso do cristianismo com as religiões politeístas. Se
buscarmos compreender o espaço das religiões em nossa modernida-
de, em suas várias interfaces com a política, os monumentos e o uso
da violência, o conhecimento da historicidade religiosa em suas várias
práticas na trajetória humana é de vital importância para os pesquisa-
dores contemporâneos.
Vale ressaltar que essas experiências voltadas ao sagrado tam-
bém apresentam inquietações particulares de interpretação às quais
nos levam a problematizar os seus mitos, suas ações religiosas, cons-
truções e legitimações do poder. Dessa forma, elaboramos um livro em
dois volumes que reuniu múltiplas leituras sobre as religiões e as suas
práticas antigas. Cada capítulo é escrito por um autor especialista em
seu objeto de estudo, integrando neste livro, em nível nacional e inter-
nacional, estudiosos da Argentina, do Brasil, da França, de Portugal e
da Espanha.
O primeiro volume do livro “Experiências Religiosas no Mun-
do Antigo” é composto por treze capítulos. Optamos por organizar os
capítulos dividindo-os contextualmente, apresentando primeiramente
os textos sobre aspectos mágicos e religiosos em contextos mesopo-
tâmico, chinês e egípcio, seguidos pelos contextos grego e romano.
Embora muitas vezes haja intersecções e comunicações entre os con-
textos e as cronologias, não conformamos a ordem dos textos em uma
linha temporal propriamente delimitada e precisa.
No capítulo 1, Kátia Pozzer analisa textos e imagens que nos
remetem ao universo simbólico religioso que compôs o mosaico de
culturas que fizeram parte do que chamamos de Mesopotâmia antiga.
O capítulo 2, de André Bueno, traz uma compreensão da análise da es-
sencialidade do pensamento religioso chinês, constituída em um longo
processo de desenvolvimento histórico que continua em atividade até
os dias de hoje. Para tal, o historiador delimitou sua análise até o pe-
ríodo próximo do século -11, quando da transição da Dinastia Shang 商
朝 [-1766 -1027] para a Dinastia Zhou 周朝 [-1027 -221].
No capítulo 3, Cintia Alfieri Gama Rolland apresenta aspectos
sobre os meios de comunicação e contato com o divino no Egito Anti-
go, demonstrando que práticas de magia e da religião, tanto privadas
quanto oficiais, andavam lado a lado e que os universos divinos e hu-
manos apresentavam pontos de interseção. No capítulo 4, Pablo Mar-
tín Rosell se propõe a refletir sobre a problemática da teodiceia a partir
de um texto literário do Reino Médio egípcio conhecido, na tradução
livre, com o nome de Admoestações de Ipuwer.
O capítulo 5, de María Cecilia Colombani, consiste em uma
análise das relações entre Zeus e Hera no Hino Homérico a Apolo a
partir de uma perspectiva antropológica, visando mostrar como o par
reconhecimento-desconhecimento é tratado dentro do dispositivo
matrimonial. No capítulo 6, Danilo Andrade Tabone (in memoriam)
apresenta algumas das premissas teóricas e metodológicas mais atuais
para o estudo do sagrado no mundo grego antigo, a partir das fontes
materiais.
No capítulo 7, Luis Filipe Bantim de Assumpção realiza um
estudo de caso acerca da presença da deusa Atena na sociedade de
Esparta, cujos indícios se manifestam, sobretudo, no “não-dito” dis-
cursivo e enfatizam a importância desta deusa para a manutenção
da ordem social e militar desta pólis. Para tanto, o historiador abor-
da Atena em conformidade aos indícios literários da Antiguidade, os
quais permitem considerar esta deusa de acordo com a singularidade
espartana. O capítulo 8, de Renata Cardoso Belleboni Rodrigues, pre-
tende enfatizar a relação do homem grego arcaico com suas “imagens
vivas”. Para isso, a autora toma para análise as particularidades da eu-
sebeia ao considerar mitos, ritos, festividades, práticas sócio-culturais
e, igualmente, volta atenção para a cultura da imagem, elemento es-
sencial para a compreensão desse universo mental.
No capítulo 9, Filipe Carvalheiro-Ferreira e Marin Mauger vol-
tam suas atenções para o papel religioso desempenhado pelos teatros,
mas agora numa das regiões periféricas do Império Romano, o norte das
Gálias, refletindo sobre as relações existentes entre religião e edifícios
de espetáculos. O capítulo 10, de Fernando Mattiolli Vieira, apresenta
algumas possibilidades para se explicar as razões que fizeram com que
as entidades associativas da região da Judeia do século II a.C. tivessem
uma experiência social bastante similar em um contexto mais amplo.
No capítulo 11, Semíramis Corsi Silva analisa as referências
que temos sobre Apolônio de Tiana na obra de natureza biográfica es-
crita pelo sofista grego Flávio Filóstrato e em demais testemunhos es-
critos e da cultura material. Assim, a historiadora nos apresenta como
havia uma fronteira muito tênue entre o que era considerado benéfico
e o que era tido como um malefício dentro daquilo que os antigos gre-
gos e romanos do período do Principado Romano pensavam sobre as
práticas mágicas.
O capítulo 12, de Mariano Spléndido, objetiva identificar a re-
tórica dos grupos cristãos não aderente ao princípio da cristianização
do oikos, bem como a argumentação e os diálogos propostos com seus
oponentes. Para isso, o autor analisa alguns textos a fim de observar as
tensões e a intertextualidade com as propostas hierárquicas (especial-
mente a paulina): Apocalipse, Evangelho de João, Ascenção de Isaías
e Epístola de Judas. Finalmente, no último capítulo, o capítulo 13, de
Gilvan Ventura da Silva e Érica Cristhyane Morais da Silva, temos a re-
flexão sobre os desdobramentos da crise que conduziu à deposição de
João Crisóstomo do bispado de Constantinopla em 403, analisando o
papel desempenhado pelo bispado de Roma, continuamente solicita-
do por facções em litígio.
Gostaríamos de agradecer a todos que trilharam este árduo
e produtivo caminho conosco. Em especial, legamos uma homenagem
póstuma ao colega e autor de um dos capítulos, Danilo Andrade Tabone:

A cada chamado da vida o coração deve estar pronto para a


despedida e para novo começo, com ânimo e sem lamúrias,
aberto sempre para novos compromissos. Dentro de cada co-
meçar mora um encanto que nos dá forças e nos ajuda a viver.
Hermann Hesse

Boa Leitura!

Carolina Barcellos Kesser Dias - UFPel


Semíramis Corsi Silva -UFSM
Carlos Eduardo da Costa Campos – PPGH/UERJ
Prefácio
O estudo da História Antiga passa, necessariamente, pela
compreensão do papel da religião na vida quotidiana dos indivíduos
e de suas comunidades. A relação com o sagrado e com as práticas e
instituições religiosas impregna as relações sociais, políticas e econô-
micas desses períodos.
Buscando um significado para sua existência num cosmo per-
meado por forças naturais que procura dominar, e que reverberam em
seus mitos, ritos, cultos, festividades e em suas instituições políticas,
religiosas e jurídicas, o homem antigo expressa em sua literatura e em
sua cultura material a marca e o dinamismo de suas crenças.
Assiste-se no Mediterrâneo e no Oriente a um processo perma-
nente de mobilidade social e política que se torna responsável pela troca
não apenas de produtos e serviços, mas também de valores religiosos e
simbólicos que deixam sua geografia original para espalhar-se por outras
regiões, levando complementações e mesmo substituições na forma de
compreender o universo e de se relacionar com suas forças.
Há uma frequente imbricação entre poder religioso e poder
político, numa perspectiva polifuncional e polissêmica da religião; a
religião é usada para legitimar diferentes formas de poder, com mo-
vimentos de questionamento de hegemonias religiosas e suas con-
sequentes legitimações de poder, ainda que haja setores da religião
antiga, como o da magia, que permanecem à margem da oficialidade.
Se já encontramos desde a Antiguidade o uso de métodos
comparativos na descrição e análise das religiões, com destaque para
as obras de Heródoto, Plutarco e, a partir do século II d.C., as discussões
dos Padres da Igreja, preocupados em distinguir e relevar o cristianismo
frente a outras religiões, deve-se dizer que a religião ganha status de ci-
ência apenas em meados do século XIX, impulsionada pelo Iluminismo.
O turn point da ciência da religião se dá quando ela se dis-
tancia da teologia e do confessionalismo, para se tornar uma peça
fundamental na definição dos componentes essenciais das culturas e
das relações que elas mantêm entre si. São decisivas as contribuições
de pesquisadores como Max Müller (1823-1900), Frazer (1854-1941),
Freud (1856-1939), Durkheim (1858-1917), Mauss (1872-1950), Jung
(1875-1961), Eliade (1907-1986), Lévi-Strauss (1908-2009), Burkert
(1931-2015), dentre outros, que alargam o horizonte e o foco da pes-
quisa. Eliade, por exemplo, além do judaísmo e cristianismo, discute
aspectos do taoísmo, confucionismo, ioga, bramanismo, hinduísmo,
budismo e outros grupos religiosos, com forte inspiração para os estu-
dos atuais sobre religião na perspectiva da globalização e dos crescen-
tes movimentos migratórios.
A importância dos estudos de história das religiões manifesta-se
na fundação, em 1950, da Associação Internacional de História das Reli-
giões (IAHR), em Amsterdã, que reúne um amplo grupo de filiados que
se dedicam ao estudo científico da religião ao redor do mundo. Em 1999,
foi criada, na UNESP de Assis/SP, a Associação Brasileira de História das
Religiões (ABHR), que a cada ano congrega um número cada vez maior
de pesquisas sobre religião no Brasil em seus congressos e publicações.
Este crescente interesse pelos estudos sobre religião se mani-
festa também em relação à Antiguidade, como se verifica nesta obra
Experiências Religiosas no Mundo Antigo, a qual foi organizada por
Carolina Kesser Barcellos Dias, Semíramis Corsi Silva e Carlos Eduardo
da Costa Campos, que reúne 26 importantes pesquisas que proporcio-
nam uma discussão temática e metodológica sobre sociedade e reli-
gião no âmbito mediterrânico e oriental, com uma cronologia que vai
do III milênio a.C. a meados do I milênio d.C. e que coloca em destaque
a importância das pesquisas nessa área no âmbito nacional, ao lado de
pesquisas da França, Espanha, Portugal e Argentina. Se há nelas ele-
mentos muito característicos de um tempo e espaço muito específicos,
outros denotam presenças e influências de longa duração e expressas,
por vezes, de forma contundente e fora do âmbito privado, como nos
episódios recentes de extremismos religiosos.
As análises aqui apresentadas e que não partem de pressu-
postos religiosos dão uma forte ênfase à base documental literária,
mas não deixam de destacar que elas podem e devem ser comple-
mentadas pela cultura material, pela iconografia, pela epigrafia, pela
estatuária votiva e cultual presentes na arquitetura antiga e reveladas
principalmente pela arqueologia. Destaca-se no mundo greco-roma-
no a iconografia presente em monumentos, vasos, moedas e tábuas
execratórias. Descobertas mais, recentes como a de Nag Hammadi,
trazem novas luzes para a compreensão do mundo antigo e medieval.
Os textos indicam que nos deparamos não apenas com con-
flitos políticos, mas também religiosos e simbólicos. A força das li-
deranças religiosas deixou marcas profundas nas relações internas e
externas de uma comunidade. Temos frequentemente a presença de
facções em litígio com fortes componentes religiosos. A definição de
uma cultura grega, romana, oriental homogênea tem sido abandona-
da pelos historiadores e antropólogos. Tem sido dada uma crescente
atenção para a relação entre identidade e alteridade no âmbito das
sociedades antigas. Chega-se cada vez mais à conclusão de que não
se pode pensar em uma homogeneidade religiosa e simbólica de um
determinado grupo humano, mas sim em heterogeneidades, hibridiza-
ções e até mesmo em conflitos internos.
O leitor tem nos textos aqui apresentados uma oportunidade
ímpar de ampliar sua visão sobre religião e cultura no Período Antigo.
Auguramos que este livro organizado por Carolina, Semíramis
e Carlos Eduardo contribua para uma compreensão mais densa da reli-
gião, não apenas como uma filigrana da História Antiga, mas como um
dos componentes centrais de sua trama sociopolítica e mental e para a
fundamentação do arcabouço da forte reemergência do componente
religioso numa contemporaneidade pretensamente secularizada.

Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha


Professor de História Antiga da UNESP/Assis
Sumário
O GESTO, A PALAVRA E A PERFORMANCE: UMA EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA MESOPOTÂMICA ..........................................................15
Katia Maria Paim Pozzer
A RELIGIÃO DOS ESPÍRITOS NA CHINA ANTIGA ..............................31
André Bueno
O CONTATO COM OS DEUSES: AS PRÁTICAS MÁGICO-RELIGIOSAS NO
EGITO ANTIGO ...............................................................................49
Cintia Alfieri Gama-Rolland
“EL DISCURSO DE LA TEODICEA Y EL REPROCHE A LO DIVINO
DURANTE EL REINO MEDIO EGIPCIO. UN ANÁLISIS A PARTIR DEL
TEXTO DE LAS ADMONICIONES DE IPUWER”..................................67
Pablo Martín Rosell
TENSIONES Y CONFLICTOS EN EL MATRIMONIO OLÍMPICO: CUANDO
SE OFENDE A UNA DAMA ..............................................................89
María Cecilia Colombani
O SAGRADO E A CONSTITUIÇÃO SIMBÓLICA DA CULTURA MATERIAL:
PERSPECTIVAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS .............................. 105
Danilo Andrade Tabone
A DEUSA ATENA E ESPARTA – ANÁLISES PARA ALÉM DOS LIMITES DA
GUERRA ...................................................................................... 123
Luis Filipe Bantim de Assumpção
DEUSES VIVOS, PRESENTES E HONRADOS: A EUSÉBEIA E A CULTURA
DAS IMAGENS ............................................................................. 147
Renata Cardoso Belleboni-Rodrigues
EDIFÍCIOS DE ESPETÁCULOS E RELIGIÃO NO NORTE DAS GÁLIAS . 169
Filipe Carvalheiro-Ferreira – Marin Mauger
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIAL ENTRE GRUPOS NO JUDAÍSMO DOS
SÉCULOS II A.C. A I D.C.: UM ENFOQUE PELA PROXIMIDADE........... 209
Fernando Mattiolli Vieira
AS FRONTEIRAS NAS REPRESENTAÇÕES DA MAGIA NO IMPÉRIO
ROMANO: APOLÔNIO DE TIANA ENTRE O FEITICEIRO CHARLATÃO E
O SÁBIO DIVINO PITAGÓRICO ...................................................... 229
Semíramis Corsi Silva
RELIGIÓN SIN HOGAR: CRISTIANOS REACIOS A LA DISCIPLINA DEL
OIKOS .......................................................................................... 253
Mariano Spléndido
QUANDO TODOS OS CAMINHOS LEVAM A ROMA: A INTERVENÇÃO
DE INOCÊNCIO I NO EPISÓDIO DA DEPOSIÇÃO DE JOÃO
CRISÓSTOMO .............................................................................. 273
Gilvan Ventura da Silva - Érica Cristhyane Morais da Silva
O GESTO, A PALAVRA E A
PERFORMANCE: UMA EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA MESOPOTÂMICA
Katia Maria Paim Pozzer1

A Mesopotâmia, localizada no vale fluvial do Eufrates e do Ti-


gre, atual Iraque, foi o local de surgimento das primeiras civilizações
urbanas. Esse território foi palco de importantes culturas na antiguida-
de, como a suméria, a babilônica e a assíria, ao longo de três milênios.
Sua estrutura política básica foi marcada pela pulverização do poder,
onde cada cidade-estado disputava a hegemonia política sobre uma
região. O politeísmo foi uma das características desta sociedade, onde
cada cidade-estado possuía seu próprio panteão, criando um verda-
deiro mosaico de divindades e mitologias. Além disso, o povo da região
entre rios acreditava na capacidade de intervenção humana no mun-
do, através da realização de rituais que associavam gestos, palavras
e objetos, verdadeiras criações artísticas. Neste capítulo analisaremos
textos e imagens que nos remetem a esse universo simbólico.
Há mais de 12.000 anos, aproximadamente, o homem, no
Oriente Próximo, descobriu um novo modo de produção de alimentos:
a plantação simples seguida da domesticação de plantas e animais. O
desenvolvimento da agricultura no Oriente Próximo foi seguido por
uma rápida difusão para a Europa, a África e a Ásia2.
A prática da agricultura garantiu bases alimentares estáveis,
favorecendo a expansão demográfica rápida e permitindo o desen-
volvimento de novas atividades culturais que culminaram com a re-
volução urbana. Gradualmente novas formas de organização social se
desenvolveram, com o surgimento das cidades, das religiões institucio-
nalizadas e da escrita.

1  Doutora em História pela Université de Paris I – Panthéon-Sorbonne, docente do


Bacharelado em História da Arte e do Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: katia.pozzer@ufrgs.br
2  MARGUERON, Jean-Claude. Los Mesopotámicos. Madrid: Cátedra, 1996.
Volume 1 15
O início do III milênio AEC foi marcado por disputas militares
entre os vários centros urbanos no sul mesopotâmico, em luta pela
hegemonia política dos territórios vizinhos. O resultado dessas guerras
transformou o desenvolvimento dessas cidades: as revoltas no interior
do país levaram à uma migração significativa do campo para a cidade,
fazendo com que a maioria da população se tornasse urbana; maci-
ças fortificações foram construídas para garantir a segurança destas
cidades, definindo assim a diferença entre o espaço urbano e o rural e
restringindo o acesso às cidades a determinados pontos que eram os
portões das muralhas. As necessidades de guerra exigiram um maior
desenvolvimento da autoridade política e militar fazendo nascer a se-
gunda principal instituição urbana - o palácio. As cidades mesopotâ-
micas passaram, então, a contar com dois centros de poder: um polí-
tico e militar - o palácio-, e outro econômico e religioso - o templo. Os
templos foram responsáveis pelo desenvolvimento de vários aspectos
da sociedade, como a escrita, o Estado, o sistema jurídico, a arte e a
arquitetura, entre outros3.

Mapa. 1 – Mapa do Oriente Próximo

Fonte: Modificado a partir de http://media.escola.britannica.com.br

3  POZZER, K. M. P. Babel e a representação do sagrado na Cidade Antiga. In: COR-


NELLI, G. (Org.). Representações da Cidade Antiga: categorias históricas e discursos
filosóficos. Coimbra: Classica Digitalia, 2010.
16 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
O aspecto religioso foi fundamental na sociedade mesopotâ-
mica. A religião, cuja principal característica foi o politeísmo, possuía
uma organização onde cada cidade-estado dispunha de um panteão
próprio, com uma verdadeira miríade de divindades e mitologias. Es-
sas divindades tinham nomes, funções e atributos específicos e esta-
vam vinculadas à uma cidade onde exerceriam seu poder e proteção4.
Assim, as populações que ocuparam a Mesopotâmia acreditavam que
os deuses celestes eram responsáveis pelos acontecimentos na vida
terrena e, para poder explicar estas relações, sacerdotes e escribas
criaram mitos, ritos e diversas práticas sociais, dentre elas a magia5.
O ritual na Mesopotâmia era conhecido por um termo gené-
rico, em acádico, nêpeštu6, cuja tradução é “realizar uma performan-
ce”. Ele pode ser definido como o conjunto normatizado de gestos e
palavras utilizados em certas ocasiões solenes. A eficácia do ritual era
garantida pela estrita observação de seu desenrolar7.
Os mesopotâmicos acreditavam na capacidade de interven-
ção dos homens no meio natural que os cercava através de meios es-
senciais à sua disposição: o gesto e a palavra. Os conjuros ou ritos orais
repousavam na força da palavra. Na tradição semita, o verbo era cria-
dor. Assim, a enunciação de um bem ou de um mal era suficiente para
garantir sua gênese. Já os ritos manuais tinham sua origem no poder
do gesto, na capacidade destrutiva ou transformadora de diversos pro-
dutos naturais ou elementos primordiais como a água e o fogo8.
A figura abaixo denota uma destas práticas religiosas de gestu-
alidade, representando uma pessoa em posição de oração, com as mãos
postadas diante do corpo. Essa escultura respeita as duas regras da esta-
tuária mesopotâmica: a frontalidade e a geometrização. A frontalidade,
partindo do centro da testa e descendo até os pés, expressa a idealiza-
ção, simetria e uma certa rigidez da figura humana. O geometrismo é

4  GLASSNER, J.-J. La Mésopotamie. Paris: Les Belles Lettres, 2002, p. 86.


5  LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol.I. Barcelo-
na: Editorial AUSA, 1993.
6  BLACK, J., GEORGE, A., POSTGATE, N. A Concise Dictionary of Akkadian. Wiesba-
den: Harrassowitz Verlag, 2000., p. 250.
7  JOANNÈS, F. (org.). Dictionnaire de la Civilisation Mésopotamienne. Paris: Robert
Laffont, 2001, p. 726.
8  BOTTÉRO, Magie. Reallexikon der Assyriologie und Vorderasiatischen Archäologie.
Berlin-New York, v. 7, 1987-1990, p. 200-234, p. 206.
Volume 1 17
garantido pela forma cilíndrica ou cônica da escultura deste orante. A
cabeça recebe maior destaque e busca o naturalismo e a identificação
do personagem. Seguindo a tradição escultórica mesopotâmica, há in-
crustações nos olhos e, excepcionalmente, seus lábios esboçam um leve
sorriso, remetendo a um sentimento de leveza e alegria9.

Fig. 1 – Estátua de Lugal-Dalu, com inscrição no ombro “Rei de Adab”.


Aprox. 2600 AEC, alabastro. Museu Arqueológico de Istambul.

Foto da autora.

Para os mesopotâmicos, os males físicos e as doenças seriam


apenas algumas manifestações possíveis do sofrimento. Eles acredita-
vam que seu infortúnio era uma punição divina, causada por uma ação

9  MOSCATI, Sabatino. Como Reconhecer A Arte Mesopotâmica. São Paulo: Martins


Fontes, 1985, p. 20-22.
18 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
deliberadamente contrária aos princípios éticos da sociedade, ou por
alguma conduta inadequada, ainda que involuntária.
A literatura mágica tinha por objetivo a eliminação dos males
que acometiam o homem, fossem eles causados pela possessão de-
moníaca ou decretados por quem administrava o destino, os deuses.
O propósito do ritual mágico era revogar o sofrimento que impedia o
bem-estar e o desfrute normal da vida concedida a cada um. Jean Bot-
téro10 define magia na Mesopotâmia como sendo:

[...] um sistema de fatos sociais fundado na crença de eficácia


imediata de um certo número de comportamentos, proce-
dimentos e de elementos que se utiliza para criar efeitos es-
sencialmente benéficos, mas cujas relações com suas causas
eram, de nosso ponto de vista, perfeitamente irracionais. En-
quanto que, em virtude dos mesmos princípios, as operações
eram executadas [...] para causar o mal, falava-se em feitiçaria.

A magia estava plenamente integrada na vida cotidiana na


antiga Mesopotâmia, pois poderia ser usada para se proteger contra
os demônios, para curar doenças (dimîtu11, em acádico), para desfazer
o efeito nocivo de alguma infração, para aumentar a potência sexual,
para assegurar conquistar a paixão de alguém, para acalmar o choro
das crianças, para impedir os malefícios oriundos das atividades de fei-
ticeiros hostis, além de muitas outras funções.
Os textos que chegaram até nós são encantamentos e fór-
mulas mágicas em sumério, acádico e algumas outras línguas como o
elamita ou o hurrita, descrevendo os rituais endereçados ao mágico,
as ações que ele deveria fazer, incluindo a lista dos encantamentos a
serem usados para cada caso, o que deveria ser dito pelo mágico ou
pelo paciente, e os amuletos contendo excertos de magia.
Estes textos eram recitados por técnicos em curandeirismo e ma-
gia, os exorcistas, āšipu12, em língua acádica, encarregados também de

10  BOTTÉRO, Magie. Reallexikon der Assyriologie und Vorderasiatischen Archäolo-


gie. Berlin-New York, v. 7, 1987-1990, p. 201.
11  BLACK, J., GEORGE, A., POSTGATE, N. A Concise Dictionary of Akkadian. Wiesba-
den: Harrassowitz Verlag, 2000, p. 60.
12 CAD A/II 431, em sumério chamado de lú.maš.maš/lú.ka.pirig ou lú.mu7.mu7, e
em acádico de mašmaššu/(w)âšipu. CAD. Chicago Assyrian Dictionary. Chicago: The
Volume 1 19
levar a cabo as ações ritualísticas mágicas que poderiam ser feitas em do-
micílios privados ou no templo e receitar os ingredientes e os fármacos13.
A figura abaixo exibe um ritual de exorcismo ou de cura de
pessoa doente, que ocorre dentro de um recinto fechado. Trata-se de
uma rara representação iconográfica do tema. Neste exemplo, o cam-
po visual é quase totalmente preenchido e denota um forte caráter
simbólico. Na parte central da imagem temos uma espécie de cabana
onde o paciente se encontra deitado. Do lado externo da câmara, te-
mos duas figuras, conferindo uma grande simetria na imagem. Temos,
do lado esquerdo, um homem e do lado direito, uma mulher, ambos
com as mãos postadas em sinal de clamor. Seriam exorcistas partici-
pando ativamente do ritual ou entidades metafóricas exercendo uma
função protetora? Ainda pode-se observar na parte superior da cena
um dragão, a meia-lua representando o deus Sîn, uma forma estrelada,
provavelmente fazendo referência à deusa Ištar e uma divindade solar
alada, retratando o deus Aššur.
Na parte central, o selo-cilindro mostra uma pessoa deitada
em uma cama, provavelmente o doente, enquanto que uma figura
masculina, com barba, se inclina sobre ela, segurando um instrumento
não identificado na mão esquerda. Na cabeceira da cama há uma figu-
ra feminina ajoelhada, com um recipiente em chamas, indicando um
processo de combustão.

Oriental Institute of the University of Chicago.


13 BIGGS, R.D. Medizin. Reallexikon der Assyriologie und Vorderasiatischen Archäo-
logie. Berlin-New York, v. 7, 1987-1990, p. 623.
20 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Fig. 2 – Selo-cilindro e impressão moderna. Período neoassírio (séc. IX-VIII AEC),
serpentina mineral negra. Metropolitan Museum of New York.

Foto da autora

A documentação atesta a utilização de remédios extraídos da


natureza, sobretudo de plantas, de produtos minerais (sais e pedras)
e animais (sangue, carne, couro, ossos, excrementos) com o uso de
decocção, cataplasmas, enemas, unguentos, pomadas, etc.14
Além de remédios elaborados a partir de ervas naturais, a cerve-
ja, bebida comum na Mesopotâmia, era utilizada como medicação, como
atesta essa oração: “Šamaš15 levo à minha boca a erva tarmuš, na minha
mão esquerda a erva imhurešra16, na minha direita o deus Cerveja”17.
Os encantamentos são ritos orais complementares às opera-
ções e gestos mágico-religiosos realizados pelos habitantes da Meso-
potâmia para combater o mal que os afligia. Os mais antigos encanta-
mentos sumérios que conhecemos datam do Período Dinástico Antigo,

14 BOTTÉRO, J. Magie et médicine à Babylone, In: _____. Iniciation à l’Orient ancien.


Paris: Éditions du Seuil, 1992, p. 206.
15  Šamaš é o deus da justiça na Babilônia, é o deus-sol, aquele que ilumina. BLACK,
J. e GREEN, A. Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia. London: British
Museum Press, 1998, p. 182-184.
16  As ervas ditas tarmuš e imhurešra não possuem tradução.
17  LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol. I. Barce-
lona: Editorial AUSA, 1993, p. 443.
Volume 1 21
por volta de 2400 AEC, são provenientes das cidades de Abu Salabih,
Šuruppak e Lagaš e foram destinados a curar doenças. Alguns servi-
riam contra a picada de serpentes e escorpiões, para ajudar no parto
ou para consagrar objetos usados nos rituais mágicos18.
Os escribas mesopotâmicos compilaram duas grandes séries
de ritos corporais e encantamentos: Maqlû e Šurpu19, considerados
grandes clássicos da literatura mágica. O Maqlû, a queima, possui oito
tabletes cuneiformes com encantamentos e um tablete que descreve
um complexo ritual noturno, no qual o exorcista invoca os deuses que
conhecem a identidade da feiticeira e expulsa o mal do corpo da ví-
tima, após queimar certos objetos e pronunciar encantamentos para
conjurar e destruir o poder maléfico da feiticeira. Já o Šurpu, a crema-
ção, se propõe a purificar a vítima, ele reúne encantamentos e rituais
contra todo o tipo de má conduta familiar e/ou social que o indivíduo
possa ter. Nele, o exorcista queima os objetos sobre os quais foram
transferidos os “pecados” do paciente20.
O Šurpu era realizado quando as pessoas não conheciam as
causas de seus males, isto é, não sabiam por quais atos ou omissões
eles teriam ofendido os deuses e perturbado a ordem do mundo. O
paciente ia ao mágico num estado crítico, atormentado, com insônia,
doente. No ritual, todos as faltas possíveis eram exaustivamente enu-
meradas e ainda era feito o encantamento dos objetos de culto que
tornaria mais efetiva sua função mágica.
A combustão era a parte do ritual na qual o paciente descas-
cava uma cebola, cortava tâmaras em lâminas, desfazia nós de fios de
linho ou lã e os jogava no fogo. Todo o processo do šurpu era realiza-
do enquanto se recitava os encantamentos, e através dele os pecados
eram “desfeitos”, sendo que a “performance” do paciente no ritual
também era avaliada pelos deuses. Para finalizar, o mágico apagava o
fogo e com ele os pecados.

18  JOANNÈS, F. (org.). Dictionnaire de la Civilisation Mésopotamienne. Paris: Robert


Laffont, 2001, p. 408-410.
19  BLACK, J., GEORGE, A., POSTGATE, N. A Concise Dictionary of Akkadian. Wies-
baden: Harrassowitz Verlag, 2000, p. 196 e 388.
20  LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol.I. Barcelo-
na: Editorial AUSA, 1993, p. 414.
22 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Outro elemento da prática de magia era chamado de nambur-
bû , em acádico, que significa, literalmente, “ritual apotropaico” e era
21

realizado para “desfazer ou evitar” o efeito de um mal futuro, já detec-


tado por um mau presságio. O ritual mágico namburbû típico consistia
numa série de instruções destinadas ao exorcista como: a realização
de cerimônias fechadas para separar o lugar ritualístico do mundo ex-
terior ou pela performance dentro de uma área delimitada com um
círculo mágico22; os ritos de purificação, onde o paciente era lavado e
depilado, queimava-se incenso e soavam sinos e tambores; oferecia-se
alimentos e ervas aromáticas aos deuses e à divindade “Rio”23, pois
ele carregava todos os males para longe do paciente. Os ritos finais
envolviam atos de purificação, trazendo o paciente de volta ao mundo
exterior, com prescrições mágicas estritas, como evitar alho e usar um
colar especial por sete dias.
Os amuletos tinham a função de proteção contra as forças
maléficas e também um valor mágico para influenciar beneficamente
a vida cotidiana, como a composição de um colar-amuleto que conti-
nha 31 pedras: “7 se destinavam a conciliar seu deus com sua deusa;
6 outras visavam reconciliar um deus irritado com um homem, 9 para
obter a benevolência de altos funcionários do palácio, e 9 para obter
ganhos, opulência e riqueza”24.

21  BLACK, J., GEORGE, A., POSTGATE, N. A Concise Dictionary of Akkadian. Wiesba-
den: Harrassowitz Verlag, 2000, p. 235.
22  O círculo mágico era feito no chão, com farinha e o doente deveria ficar em seu
interior.
23  Segundo a crença mesopotâmica, os rios eram tidos como divindades capazes de
expiar e julgar os pecados dos homens.
24  FOSTER, B. From Distant Days - Myths, Tales, and Poetry of Ancient Mesopota-
mia. Bethesda: CDL Press, 1995, p. 56.
Volume 1 23
Fig. 3 – Tablete cuneiforme com lista de pedras-amuletos. Período aquemênida-
-selêucida (séc. VI AEC), argila - Metropolitan Museum of New York.

Foto da autora

O tablete cuneiforme acima contém um texto mencionando


uma lista de pedras auspiciosas, dentre elas o lápis-lazúli, a cornalina,
o jade, a hematita, a obsidiana e o alabastro, que deveriam ser usadas
para prevenir doenças, feitiçaria, maus presságios e a fúria dos deuses
Marduk25, Ištar26, Sîn, Šamaš e Adad27.

25  Marduk era o deus principal da cidade de Babilônia. BLACK, J. e GREEN, A. Gods,
Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia. London: British Museum Press, 1998.
26  A deusa Inanna, em sumério, Ištar em acádico, é a deusa do amor e da guerra.
Ibidem, p. 108-109.
27  Adad era a divindade relacionada com a tempestade, os raios e trovões. Idem.
24 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
A figura a seguir expõe um exemplar destes amuletos, em forma
de colar, com pedras preciosas benéficas, pertencente ao acervo do Vor-
derasiatische Museum, no complexo do Museu do Pérgamo, em Berlim.

Fig. 4 – Amuleto em forma de colar (s.d.), cornalina, jade, lápis-lazúli,


hematita, ágata Vorderasiatische Museum, Berlim.

Foto da autora

Um exemplo de conjuro destinado à cura é este pequeno tex-


to sumério contra mordidas de serpentes e picadas de escorpião:

Conjuro do “enuru”: a alguém que tenha sido mordido por


uma serpente, que tenha sido picado por um escorpião, que
tenha sido mordido por um cachorro raivoso, e que o tenham
envenenado [...]

Volume 1 25
Quando tenhas realizado a limpeza com sua jarra limpa e te-
nhas recitado o conjuro sobre a água apropriada ao caso e
tenhas dado de beber a água apropriada ao caso àquele que
tenha sido mordido, sairá sozinho o veneno respectivo28.

De outra ordem, mas igualmente importantes, seriam os pro-


blemas sentimentais dos mesopotâmicos. Este conjuro amoroso su-
mério era destinado para conquistas amorosas:

A jovem que presta na rua seus serviços, a jovem, a prosti-


tuta, a filha de Inanna, a jovem, a filha de Inanna que presta
seus serviços nas pousadas é toda manteiga, é toda nata, é
a vaca, a suprema mulher Inanna, o armazém de Enki. A jo-
vem, quando se senta, é um pomar de maçãs florido, quando
se encosta é a alegria do varão. Estendo à ela meu querer, o
querer do carinho, estendo à ela a mão, a mão do carinho,
dirijo até ela meu pé, o pé do carinho [...]. Quando tiveres
vertido nata de uma vaca pura, leite de uma vaca-mãe, nata
de uma vaca, nata de uma vaca branca em uma taça verde e
tiveres tocado com eles (o leite e a nata) os peitos da jovem
[...]. Que a jovem não me feche a porta aberta, nem descuide
de seu filho que chora, e que venha atrás de mim!29

O texto emprega uma linguagem figurada fazendo alusão à


alimentação (pomar de maçãs, armazém de Enki, isto é, o lugar onde
o deus criador dos Homens busca os alimentos) e à mulher como pro-
vedora de alimento e de vida, associando a pureza à cor branca com as
expressões “vaca pura/vaca branca, nata e leite brancos”.
O encantamento refere-se à divindade feminina mais impor-
tante do panteão mesopotâmico, Inanna considerada, segundo a tradi-
ção principal, como filha de Anu e irmã de Ereškigal, a poderosa rainha
dos infernos. Inanna é a deusa da guerra, mas também do amor e do
comportamento sexual. Os mitos sublinham seu caráter principal: ela é
a deusa do amor livre, e, precisamente por esta razão, ela não estabe-
lece ligações duradouras com ninguém, pois seu destino, sua vocação,

28  LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol. I.Barcelo-
na: Editorial AUSA, 1993, p. 422-423.
29  LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol. I. Barce-
lona: Editorial AUSA, 1993, p. 421-422.
26 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
sua natureza, não é a fidelidade, o casamento ou a maternidade, mas
tão somente o prazer do sexo30.
Assim, a questão da sexualidade também aparecia como al-
gum dos males que afligiam os antigos mesopotâmicos e foram objeto
de uma série específica de conjuros denominados, em sumério, šà.zi.
ga, em acádico, nīš libbi, literalmente, elevação do coração, que pode-
mos traduzir simplesmente por orgasmo. Um exemplo é este encanta-
mento contra a impotência sexual:

Que sopre o vento, que tremam os montes, que as nuvens se


amontoem, que se derrame a chuva. Erija-se o pênis do asno
e monte a burra, entre no cio o bode e monte uma cabra
atrás da outra. Tenho um bode preso a minha cabeceira e
um carneiro preso aos pés da cama. Tu, com a cabeça na mi-
nha cama, tenha uma ereção, faça amor comigo! Tu, com os
pés na minha cama, tenha uma ereção, acaricie-me! Minha
vagina é a vagina de uma cadela, seu pênis é o pênis de um
cachorro. Como a vagina de uma cadela retém ereto o pênis
do cachorro, que minha vagina retenha ereto teu pênis! Que
teu pênis cresça como um bastão. Estou sentada na teia de
aranha do prazer, que eu não perca minha presa31.

O presente encantamento deveria ser acompanhado de um


ritual específico onde o mágico prescrevia aos pacientes: “Colocas pó
de ímãs, pó de ferro em uma taça com azeite, recitas o conjuro sobre
ela sete vezes. O homem se untará o pênis com ele e a mulher a vagi-
na: assim ele poderá dormir com ela várias vezes”32.

30  BOTTÉRO, J; KRAMER, S. Lorsque les dieux faisaient l’homme. Paris: Éditions
Gallimard, 1993, p. 275.
31  FOSTER, B. From Distant Days - Myths, Tales, and Poetry of Ancient Mesopota-
mia. Bethesda: CDL Press, 1995, p.340.
32  LÓPEZ, J., SANMARTÍN, J. Mitología y Religión del Oriente Antiguo. Vol. I. Barce-
lona: Editorial AUSA, 1993, p. 426.
Volume 1 27
Fig. 5 – Placa votiva, Nippur. s.d., argila. Museu Arqueológico de Istambul.

Foto da autora.

Dentre um conjunto de placas votivas expostas no Museu Ar-


queológico de Istambul, temos o exemplar acima, que encena uma re-
lação sexual entre um homem e uma mulher. Pode-se compreendê-la
como um amuleto, representando a fertilidade e o vigor sexual bus-
cado pelos pacientes e que deveria acompanhar o ritual, juntamente
com a evocação do conjuro.

Considerações Finais

A civilização mesopotâmica era fundada na crença em vários


deuses. Estas divindades celestes seriam responsáveis pelos aconteci-

28 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


mentos na vida dos homens na terra. A fim de explicar estas relações,
escribas e sacerdotes criaram mitos e narrativas literárias que tratavam
das mais variadas questões, incluindo mitos cosmogônicos, relatos de
fundação de cidades e composições mágico-medicinais33.
Mas, para poder lidar com estas divindades, os mesopotâmi-
cos desenvolveram um complexo sistema simbólico, integrando pala-
vras, gestos e objetos. Assim, os rituais ganharam um grande destaque
nas práticas religiosas. Recitar conjuros, acompanhados de ações ritu-
alísticas, poderia amenizar os males do corpo e da alma e provocar a
cura dos doentes. Esses rituais mágico-medicinais poderiam ser reali-
zados nas residências ou nos templos e eram utilizados para casos de
etiologia, aparentemente, tão diferentes como picadas de serpentes
ou impotência sexual.
A eficácia da magia estava alicerçada na convicção que os seres
vivos estavam unidos ao mundo material por fortes relações, possibi-
litando todo o tipo de interações entre eles. Confiavam que o contato
físico entre as pessoas e entre pessoas e coisas permitiria a transferência
de certas propriedades. Isso explica a prática do uso de amuletos, a par-
tir de plantas e minerais, assim como a utilização da saliva, que cuspida
poderia espantar um demônio, ou se “trocada” entre duas pessoas, em
um beijo na boca, criaria uma ligação mágica entre elas34.
A crença de que os deuses infligiriam castigos aos homens,
como punição pelos seus erros explicava a existência do sofrimento e
da doença, pois homens e deuses estavam integrados no sistema re-
ligioso do Universo. Os habitantes da Mesopotâmia construíram uma
explicação para o infortúnio e também o seu remédio. Através dos
mais variados rituais religiosos, palavras e gestos, acompanhados de
objetos cerimoniais, evocavam a proteção divina, a cura e a felicidade.
A experiência religiosa mesopotâmica se consagrou como uma verda-
deira performance espiritual!

33  ROUX, G. La Mésopotamie. Paris: Éditions du Seuil, 1995, p. 111.


34  A capacidade mágica da saliva é expressa na linguagem, pois o ideograma da
saliva (UŠ11) está presente no termo que designa o feiticeiro (UŠ11.ZU) e que, literal-
mente, significa “aquele que conhece a saliva. JOANNÈS, F. (org.). Dictionnaire de la
Civilisation Mésopotamienne. Paris: Robert Laffont, 2001, p. 485-486.
Volume 1 29
A RELIGIÃO DOS ESPÍRITOS NA
CHINA ANTIGA
André Bueno1

Nesse breve ensaio, buscaremos compreender a essencialida-


de do pensamento religioso chinês, constituída em um longo processo
de desenvolvimento histórico que continua em atividade até os dias
de hoje. Para tal, delimitaremos nossa análise até o período próximo
do século -112, quando da transição da Dinastia Shang 商朝 [-1766
-1027]3 para Dinastia Zhou 周朝 [-1027 -221], marcante para acompa-
nharmos uma série de definições nesse pensamento. Grande parte da
documentação para compreender esse período vem da arqueologia e
da literatura clássica resgatada por Confúcio 孔子, no século -6, nos
permitindo reconstituir um quadro da civilização chinesa antiga, em
suas tradições fundamentais. A perenidade dessas crenças não é infen-
sa a mudanças morfológicas, mas conseguiu manter uma lógica inter-
na que tem atravessado os milênios. Dessa forma, pois, pretendemos
analisar os alicerces fundadores desse pensamento.

1 A religião dos espíritos

Rastrear as origens da religiosidade chinesa é um processo


relativamente complexo, embora os chineses contassem com obser-
vações próprias sobre o tema. Os discursos sobre as antigas crenças
chinesas centravam-se em algumas questões fundamentais, ligadas a
existência dos espíritos, Shen 神. Até onde podem ser rastreadas as
origens das crenças chinesas, elas defendiam a sobrevivência de uma
1  Doutor em Filosofia pela UGF, Pós-Doutorado em História pela UNIRIO, Prof. Ad-
junto de História Antiga da UERJ. Mail: orientalismo@gmail.com
2  Usaremos a notação ‘–‘ como equivalente paras as datas ‘a.C.’, conforme uso si-
nológico.
3  Na primeira aparição do termo em chinês, apresentaremos sua forma logogramática.
Volume 1 31
vida espiritual após a morte do corpo material, que deu origem a re-
ligiosidade popular chinesa, conhecida como Shenjiao 神教 [Ensina-
mentos dos Espíritos]. Desde o século -11, quando foram produzidos
os primeiros grandes textos da literatura chinesa antiga, encontramos
vestígios de observações antropológicas sobre uma sociedade em
desenvolvimento e expansão, que gradualmente entrava em contato
com vilas e aldeias cujo modo de vida era considerado mais primitivo.
Um fragmento do Liji 禮記, As Recordações Culturais, texto antigo que
narra os costumes, crenças e conceitos sociológicos chineses, descre-
ve-nos brevemente a visão de mundo além que os chineses possuíam
em seu passado:

Quando morria alguém, os parentes subiam ao telhado e


gritavam bem alto, ao espírito: “Ahoooooo! Fulano, quereis
fazer o obséquio de voltar ao vosso corpo?” Se o espírito não
voltava, e a pessoa estava realmente morta, então assavam
arroz cru e carne assada para oferendas, levantavam a cabe-
ça para o céu “a fim de ver longe” o espírito e enterravam
o cadáver. O elemento material descia então (à terra) e o
elemento espiritual subia (ao firmamento). Os mortos eram
enterrados com a cabeça na direção norte, e os vivos tinham
suas casas com o frontispício voltado para o sul. Tais eram os
costumes primitivos.4

Nesse breve trecho, vemos uma descrição importante dos


dois elementos constituintes do ser humanos: a alma individual 魂
[Hun], espiritual, que voltava ao Céu e transformava-se em Shen [o
espírito puro, propriamente dito] e uma espécie de alma material ou
perispiritual 魄 [Po], que na crença chinesa se desfaria e retornaria
para a Terra. Caso o indivíduo não recebesse os rituais adequados no
momento da morte, essa alma Po poderia voltar como uma espécie
de fantasma, 鬼 Gui, que ficaria atormentando sua família até que os
meios corretos de exorcismo fossem executados.
Por outro lado, a existência de Shen tornara-se o centro dos
cultos mais antigos. Os xamãs chineses 巫 [Wu] buscavam se comuni-
car com essas almas para poder interceder no mundo dos vivos. Por

4  BUENO, André. Cem textos de História Antiga. 2009. Disponível em: http://chino-
logia.blogspot.com.br/2009/08/sociedade.html
32 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
vezes, visitavam, através do sonho ou do transe, as ‘Terras Amarelas’
黄泉 [Huangquan, o mundo inferior dos mortos], para deles recebe-
rem orientações.5 Reconhecidos e adorados corretamente, eles se
transformavam nos Ancestrais, que guiavam e protegiam a família que
lhes prestava rituais de adoração corretamente, fomentando o que se-
ria conhecido como Culto aos Ancestrais 敬祖 [Jingzu].
Essas considerações datam de épocas remotas na história da
civilização chinesa. Sabemos, porém, que elas estavam vigentes duran-
te o período Shang, como veremos a seguir, pelo caráter de alguns de
seus rituais e crenças.

2 Oráculos e Deuses da Natureza

O mundo dos encarnados e desencarnados interagia con-


tinuamente. Até onde podemos compreender, os Shang concebiam
que o ‘mundo material’ [encarnado] era uma espécie de cópia do
mundo espiritual, plano no qual habitavam os Deuses e espíritos li-
vres.6 Ele era governado, do alto, por uma série de entidades divi-
nais comandadas por um único soberano, chamado de Taidi 太帝
[Grande soberano] ou Shangdi 上帝 [Soberano do alto]. Daí porque a
palavra ‘Rei’ 王 [Wang], em chinês, compreende o papel do soberano
espiritual: os três traços horizontais significam, respectivamente, o
Céu, o Humano e a Terra, ligados por um traço vertical, que represen-
ta aquele que conecta os três. Doravante, também, todas as formas
espirituais são denominadas Shen, e a palavra adquire a conotação
polissêmica de definir o espírito evoluído de Hun ou mesmo um Deus,
de acordo com o seu uso no contexto. Entende-se, igualmente, que
um não exclui o outro: um ancestral importante e poderoso pode se

5  BUENO, André ‘O Sonhar e a Religião na China’ in BUENO, André. Em busca do pa-


lácio celeste. 2010. Disponível em: https://www.academia.edu/11560602/Em_bus-
ca_do_Pal%C3%A1cio_Celeste
6  Uma ideia mais ampla de como a religiosidade popular desenvolveu a concepção
dos mundos similares [material e espiritual] pode ser vista no livro de FEUCHTWANG,
Stephen. Popular Religion in China: the Imperial Metaphor. Surrey: Curzon, 2001.
Volume 1 33
converter numa divindade, familiar ou mais ampla, de acordo com as
crenças que lhe são devotadas.7
O culto aos ancestrais consistia numa série de ofertas feitas
em um altar, que poderia ser instalado dentro de casa [para os mais
humildes] ou em espaços especiais dentro das casas mais ricas e palá-
cios. No livro dos Poemas 詩經 [Shijing] encontramos a seguinte des-
crição desses ritos:

Quando nossos celeiros estão cheios e nossas provisões são


contadas por dezenas de milhares, faremos apelos aos es-
píritos e preparamos grãos para as oferendas e sacrifícios.
Fazemos os representantes dos mortos sentarem e pedi-
mos-lhes para comer - assim procurando aumentar nossa
felicidade. Com conduta correta e respeitosa, os touros e os
carneiros todos puros, procedemos aos sacrifícios de inverno
e de outono. Alguns esfolam (as vítimas); outros cozinham
(sua carne); outros preparam (a carne); outros ajustam (as
diversas partes). O que oficia as preces faz sacrifícios dentro
do portão do templo. E todo o serviço sacrifical é completo
e brilhante. Majestosamente chegam nossos progenitores;
seus espíritos gozam alegremente as oferendas; seus des-
cendentes recebem a benção - eles o recompensarão com
grande felicidade, com miríades de anos, com vida sem fim.
Preparam o fogo com todo respeito; preparam os tabuleiros
que são enormes - alguns para a carne assada, outros para
o assado. As esposas que os presidem ainda fazem reverên-
cias, preparando os numerosos (menores) pratos. Os con-
vivas e os visitantes passam a taça de mão em mão. Cada
fôrma segue a regra; cada sorriso e cada palavra são como
devem ser. Os espíritos chegam calmamente e cobrem todos
com grandes bênçãos - milhares de anos como a recompen-
sa (mais apropriada). Estamos muito cansados e terminamos
cada cerimônia sem um erro. O apto encarregado das preces
anuncia (a vontade dos espíritos) e procura o descendente
para transmiti-la - “tem sido fragrante seu sacrifício filial e os
espíritos apreciaram seu espírito e as iguarias. Eles lhe confe-
rem centenas de bênçãos; todas como ele mais deseja, todas
tão seguras como a lei. Você foi exato e pronto; foi correto
e cuidadoso; eles lhe conferirão até o mais raro dos favores,

7  SMITH, Howard. A religião no período Shang. 2008. Disponível em: http://chi-


naimperial.blogspot.com.br/2008/04/religio-no-perodo-shang-por-d-h-smith.html
34 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
em milhares e dezenas de milhares”. As cerimônias tendo
assim se completado e os sinos e tambores tendo dado o si-
nal, o descendente vai ocupar seu lugar e o encarregado das
preces anuncia - Os espíritos beberam até fartar. - Os gran-
des representantes dos mortos levantam-se então e os sinos
e tambores escoltam sua retirada (com a qual) os espíritos
tranqüilamente voltam (para o lugar de onde vieram). Todos
os servos, e as esposas que presidem, removem (as bandejas
e pratos) sem demora. Os tios e primos (do sacrificante) to-
dos se dirigem para um banquete privado. Os músicos todos
vão tocar e prestam seu auxílio serenante à segunda bênção.
As suas viandas são expostas; não há ninguém que não se
sinta satisfeito e sim todos estão muito contentes. Bebem até
fartar e comem até não quererem mais; grandes e pequenos
todos curvam as cabeças (dizendo) - “Os espíritos apreciaram
seus espíritos e iguarias e lhe darão vida longa. Seus sacrifí-
cios, todas suas oportunidades são completamente dispen-
sados. Possam seus filhos e seus netos jamais deixar de per-
petuar esses serviços!”8

Segundo o Liji, o objetivo do sacrifício visava trazer a influên-


cia benévola dos mortos ao seio da comunidade:

As oferendas de carnes eram então preparadas, e o tripé


redondo e o vaso quadrangular postos em ordem, e os ins-
trumentos de música – a cítara qin, a viola e a flauta, o sino
de pedra, os guizos e tambores, tudo nos seus lugares, e
a oração do “sacrifício aos mortos” e a de “resposta dos
mortos” eram cuidadosamente elaboradas e lidas a fim de
que os espíritos do céu e os dos ancestrais pudessem baixar
ao lugar do culto. Todas essas práticas tinham o propósito
de manter a devida distinção entre governantes e gover-
nados, preservar o amor entre pais e filhos, incutir a gen-
tileza entre os irmãos, regular as relações entre superiores
e subalternos, e estabelecer de parte a parte as condições
de convívio entre marido e mulher, para que sobre todos
pairasse a benção do Céu.9

8  BUENO, André. Cem textos de História chinesa. 2009. Disponível em: http://chino-
logia.blogspot.com.br/2009/08/religiao.html
9  Extrato do Liji, cap. 9, disponível em http://chines-classico.blogspot.com.
br/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.html
Volume 1 35
No mesmo Liji [cap.5,31], tipos diversos de oferendas eram
feitas no altar dos espíritos, variando segundo a época e a condição
social dos ofertantes. Aparentemente, pois, os Shang entregavam-se a
um profundo contato com os seus espíritos familiares. Os Deuses prin-
cipais eram espíritos antigos, representantes das forças da natureza,
da terra e dos animais, mas em grande medida distantes do mundo
humano, sendo relativamente pouco citados. Por essa razão, os deu-
ses e espíritos familiares eram mais intensamente requeridos. Isso re-
dundou numa prática em que o espírito invocado vinha comer com os
encarnados, e tomava o corpo de um ‘vivo’ para esse fim. Essa forma
de ‘possessão’ espiritual 尸 [Shi] implicava na presença de alguém que
teria a condição de recebê-lo ou, minimamente, ‘imitá-lo’, represen-
tando-o por um rito de associação de imagem.10
Esse contato com o mundo espiritual fica evidente também
pela vasta coleção de oráculos encontrados a partir da década de 1920
na China.11 Compostos por carapaças de tartaruga e escápulas bovinas,
esses documentos revelam muito, para nós, das antigas crenças Shang
e de suas práticas. Nele estão escritos, também, os primeiros docu-
mentos da história chinesa, e marcam as origens de sua escrita. Os
oráculos eram feitos da seguinte maneira: inscrições eram realizadas
no corpo ósseo, ditando uma previsão positiva ou negativa. Um metal
aquecido era aplicado na base do osso ou carapaça, fazendo uma ra-
chadura que indicaria a previsão adequada. Para os Shang, esse era um
dos meios mais rápidos dos espíritos manifestarem sua vontade, inte-
ragindo com o consulente. Note-se que nesse período não haviam sa-
cerdotes especializados, e as funções religiosas eram designadas entre
os membros da família. Apenas os xamãs, alijados do mundo urbano,
mantinham suas práticas nas comunidades rurais, sendo chamados
em ocasiões especiais.
Os oráculos nos prestam informações importantes: nomes de
soberanos e personagens importantes, passagens da história Shang,

10  FALKENHAUSEN, Lothar von. “Reflections on the Political Role of Spirit Mediums
in Early China: The Wu Officials in the Zhouli,” Early China, Cambridge, 1995(20),
p.279-300.
11  Uma descrição completa desses documentos pode ser vista em KEIGHTLEY, Da-
vid. Sources of Shang History: The Oracle-Bone Inscriptions of Bronze Age China. Cal-
ifornia: University of California Press, 1978.
36 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
seus Deuses, e seu modo de crer numa vida após a morte, da qual
tinham absoluta convicção. Tanta certeza da continuidade ficou ma-
nifesta em seus costumes funerários. Quando um nobre morria, em
geral, servos da casa e mesmo familiares eram sacrificados junto com o
defunto, de modo a servi-lo no outro lado. As tumbas Shang são, pois,
pequenas necrópoles da vida desse contexto. O morto levava consigo
grande parte de seus objetos materiais, dos quais acreditava poder fa-
zer uso, e sacrificava também seus animais preferidos, como cavalos e
cães. A tumba de uma figura importante, portanto, nunca depositava
somente o seu corpo, mas o de várias outras pessoas de seu círculo
mais próximo. Denotava, também, que se acreditava que seus bens
eram ‘sacrificados’ junto com os servos, podendo ser manifestados es-
piritualmente no outro lado.12
É difícil saber o quanto esse procedimento era bem recebido ou
não pelo restante da sociedade. Todavia, o advento da Dinastia Zhou iria
operar significativas mudanças nesse quadro, como veremos a seguir.

3 Os sacrifícios de Sanxingdui 三星堆

Uma série de leis e medidas opressoras, empreendidas por


governantes cruéis, devassos e inábeis, teriam levado a ruína da Di-
nastia Shang, levando a ascensão de um grupo achinesado provenien-
te do norte, chamado Zhou.13 O início do governo Zhou é marcado
por uma série de três soberanos conhecidos por sua inteligência,

12  CHANG, Kwang-Chih. Arte, mito y ritual. Madrid: Katz, 2009; THOTE, Alain ‘Shang
and Zhou funeral practices: interpretation of material vestiges’. In: LAGERWEY, John e
KALINOWSKY, Marc. [org.] Early Chinese religion. Vol 1. Leiden: Brill, 2011.
13  No Shujing, 4:1, ‘A Grande Declaração’ diz: “Shou, rei de Shang, não venera o Céu
e inflige calamidades ao povo. Entregue à embriaguez e à luxúria, atreveu-se a exer-
cer uma opressão cruel. Estendeu o castigo dos ofensores a todos os seus parentes.
Colocou os homens nos postos administrativos de acordo com o princípio heredi-
tário. Utiliza-o para possuir palácios, torres, pavilhões, diques, lagos e todas as ou-
tras extravagâncias, para mais penoso prejuízo vosso, milhares de criaturas do povo.
Queimou e chacinou os leais e os bons. Violou mulheres prenhes. O Grande Céu
indignou-se e encarregou meu falecido pai Wen de desencadear o seu terror.” Esse
trecho evidencia o papel de redenção espiritual que a derrubada de Shang implicava.
Volume 1 37
sensibilidade e sabedoria. Os reis Wen 文王 [reinado de -1099 -1056]
e Wu 武王 [reinado -1046 -1043] e o Duque Zhou 周公 construíram
uma nova dinastia, propiciando um período áureo da história chinesa.
É desse período que data a redação dos textos clássicos antigos chi-
neses: Shujing 書經, Shijing 詩經, Yijing 易經, Liji 禮記 e Yuejing 樂經,
que Confúcio iria reeditar no século -6. A instauração de uma nova
ordem social, política e intelectual imprimiu uma mudança significati-
va na estrutura da vida chinesa.
Os primeiros indícios dessas mudanças surgem nas práticas
funerárias. No sítio arqueológico de Sanxingdui,14 que teriam origina-
do a casa de Zhou, observamos que estes empreenderam uma trans-
formação importante nos métodos mortuários. Ao invés de oferecer
seres humanos em holocausto, destinados a acompanhar os defuntos
indefinidamente na vida espiritual, os Zhou sacrificavam estátuas de
bronze, que ocupavam o lugar dos vivos. A lógica é simples, e coe-
rente com o raciocínio da religião dos espíritos chinesa: se os obje-
tos pessoas do defunto podiam ser dispostos na tumba, pois seriam
‘manifestados’ do outro lado, então, estátuas representando humanos
também poderiam ser magicamente associadas aos vivos. Sacrifica-
das, elas serviriam como autômatos no mundo espiritual, dispensan-
do o sacrifício dos que ficavam. É possível, também, que algumas das
máscaras encontradas em Sanxingdui fossem usadas por pessoas que
‘representavam’ aqueles que ‘seriam mortos’ ou que ‘foram mortos’,
numa aproximação com o ritual de Shi descrito anteriormente.
Com toda crença que os chineses dispunham numa vida
após a morte do corpo, mesmo assim, a nova prática instaurada pe-
los Zhou foi muito bem recebida. Ocasionalmente, sacrifícios huma-
nos foram empreendidos entre os chineses até serem proibidos no
século -4. Mesmo assim, o costume de substituir humanos por está-
tuas difundiu-se rapidamente, sendo adotado em várias regiões do
país concomitantemente.

14  BAGLEY, Robert. Ancient Sichuan: Treasures from a Lost Civilization. Princeton:
Seattle Art Museum and Princeton University Press, 2001; SAGE, Steven. Ancient Si-
chuan and the unification of China. Albany: State University of New York Press, 1992.
38 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
4 O Céu 天

Outro elemento importante na mudança empreendida pelos


Zhou é a valorização gradual do Céu 天 [Tian] como uma entidade eco-
lógica amorfa, que precedia a formação dos deuses. O Céu, aos pou-
cos, adquire os contornos de uma entidade inteligente, reguladora das
leis da natureza, mas sem personalidade ou forma definidas. No Shi-
jing, alguns versos nos indicam a morfologia desse caráter do Celeste:

Céu é onisciente e onipresente.


Temei a ira de Céu e não vos entregueis à dissipação.
Temei para que o Céu não mude para convosco, e não ouseis
seguir os maus caminhos.
O majestoso Céu tem visão clara e prolonga-se onde quer
que vós ides.
O majestoso Céu vê tudo, como o sol, e alcança-vos em todas
as vossas vadiagens licenciosas.
[...]
O Céu abençoa, protege e envia felicidade.
Que o Céu vos proteja e vos estabeleça, tornando-vos perfei-
tamente seguros. Se fordes verdadeiramente virtuosos, que
felicidade é que ele vos recusa? Ele faz-vos receber muitas
graças. Estas não numerosas, naturalmente.
[...]
O Céu criou as gentes e deu-lhes as suas aptidões.
Ao dar origem a todas as pessoas, o Céu ordenou que as suas
naturezas fossem independentes. Algumas começam bem,
mas poucas se conservam boas até a morte.15

É possível que estivéssemos diante de uma evolução do pen-


samento religioso chinês de um politeísmo característico do período
Shang para uma concepção henoteísta, que se estabilizaria no pensa-
mento chinês a partir dessa época. Todavia, duas questões se colocam
para que aceitemos uma disposição henoteísta plena dessas crenças:

- a primeira, é de que os chineses não se preocupam em definir qual-

15  BUENO, André. Cem textos de História chinesa. 2009. Disponível em: http://chi-
nologia.blogspot.com.br/2009/08/religiao.html
Volume 1 39
quer forma de monogonia, seja teogônica ou cosmogônica. Nada é
dito sobre o Céu como criador. Como veremos adiante, na verdade,
os chineses foram absolutamente silenciosos sobre o problema da ori-
gem do universo, e demonstraram pouco interesse por isso.

- o Céu não é adorado de forma monolátrica, embora os deuses, sub-


metidos a esse sistema, se consolidassem em hierarquias regionais e
celestes cada vez mais definidas.

Contudo, o Céu tornou-se referência da ordenação cósmica,


e a tomada de poder pelos Zhou foi entendida como uma concessão
do mesmo – o Mandato Celeste 天命 [Tianming], que doravante justi-
ficaria a ascensão dos poderes e casas imperiais na China tradicional.
Desse modo, todo o soberano, se bem sucedido, atingia a sabedoria
em seu poder por manter a harmonia do mundo com a ordem do Céu;
mas, em caso de uma conduta errônea e prejudicial à ordem do mun-
do, o Céu retirava esse mandato, e o soberano seria derrubado.16

5 O Livro das Mutações 易經

Os chineses parecem não ter se interessado pela origem


do universo; sua visão de mundo era de que o humano não estaria
presente no momento do início de tudo, se ele aconteceu em algum
momento. Assim, os intelectuais se detinham no Céu como um ciclo
perene de estações e atividades, situado em um movimento infinito
de início, duração e fim cíclicos. Simplesmente, os pensadores se de-
tiveram numa Cosmologia, elaborando um raciocínio lógico sobre o
cosmo. Isso transparece de modo claro na redação do Livro das Mu-
tações, o Yijing.17

16 SMITH, Howard. A religião no período Chou. 2008. Disponível em:


http://chinaimperial.blogspot.com.br/2008/04/religio-no-perodo-chou-por-d-h-s-
mith.html
17  Para compreender de modo mais amplo o papel do Yijing, sugerimos a versão
de WILHELM, Richard. I Ching: O livro das Mutações. São Paulo: Pensamento, 1989;
40 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
A imaginação chinesa projetou, no passado longínquo, em
imagens, um sistema para compreender a Natureza, suas leis e mo-
vimentos. A mente filosófica chinesa nasceu daquilo que podemos
chamar de um pensamento correlativo. Ela exprimiu, desde o início,
por meio de símbolos e imagens, os sinais do cosmos: astros, esta-
ções, fauna, flora, atos, gestos. Nada muito diferente do que ocorrera
na Mesopotâmia, ou na Antiga Índia; todavia, os chineses se decidi-
ram por fixar isso num sistema de escrita absolutamente imagético,
Logográfico. Cada coisa, no mundo, é representada por uma imagem
[a palavra], Pictograma; e uma idéia, o conceito em si, pelo Ideogra-
ma. Tudo, pois, é correlacionado a uma imagem; e o conjunto dessas
imagens mais primitivas, aquelas que fundamentavam a existência do
universo, encontrava-se, pois no Yijing.
Por essa razão, desde as eras mais antigas – talvez, no míni-
mo, no século -12 – o Yijing tornara-se um manual de ciências da Natu-
reza, explicando como funcionavam suas leis. Talvez se trate de um dos
poucos casos, na história humana, em que uma tentativa de explicar o
mundo ‘racionalmente’ [ao menos, era a intenção chinesa] tornou-se
num dos mais divulgados, belos e profundos livros religiosos de que se
tem conhecimento. A sociedade chinesa entendeu que, se o Yijing era
capaz de explicar as mutações da natureza, não poderíamos nós usar
esse conhecimento para prever essas mudanças? Tal como se usásse-
mos estatísticas e probabilidades, os chineses começaram a empregar
o Yijing, também, com o fim de predizer o futuro, ou de compreender,
em maior dimensão, uma situação do presente. As tendências da natu-
reza poderiam ser decodificadas, em imagens, e assim sendo, podiam
expressar um caminho, uma opção, um desfecho, um desdobramento
presumível. As inúmeras combinações das manifestações celestes [os
‘Gua’ 卦], redundavam nas milhares de possibilidades representadas
pelas linhas hexagramáticas, cada qual demonstrando a possível ten-
dência ou desfecho de uma determinada situação.
Estaríamos, pois, diante de um tratado de ecologia capaz de
nos revelar possíveis destinos. “Possíveis”, pois a mente chinesa não
aceitava o destino fatal. Do mesmo modo que o Yijing revela as ten-

uma leitura geral sobre a história do livro pode ser vista em: JAVARY, Cyrille. I Ching,
o livro do Yin e do Yang. São Paulo: Pensamento, 1989.
Volume 1 41
dências de uma determinada situação, o conhecimento desse movi-
mento nos possibilita alterá-lo. Esse ponto é notável. Mais uma vez,
tratar-se-á, possivelmente, do único oráculo no mundo que pode pre-
ver o que não vai acontecer, se o consulente, ao saber de um possí-
vel desfecho, resolver mudar de atitude, abrindo novas possibilidades
para si mesmo.18

18  O Chuci 楚辭[Canções de Chu], de Qu Yuan 屈原 [-339 -278], nos dá um precioso


testemunho sobre a questão da adivinhação. Na curta história intitulada ‘Adivinha-
ção’, ele nos mostra bem o entendimento chinês sobre oráculos e predições:
Qu Yuan foi forçado ao exílio e durante três anos não pode aparecer na corte.
Servira-se de toda a sua sabedoria para ser leal ao rei, mas as calúnias derrotaram-no.
Tendo o coração amargurado e o pensamento confuso, não sabendo como agir, fez
uma visita ao maior dos adivinhos, Zheng Zhan-yin, e pediu: «Como tenho dúvidas
gostaria que me desse a sua opinião.» Zhèng pegou numas folhas de milefólio e, sacu-
dindo o pó de uma carapaça de tartaruga, perguntou: «Que deseja o senhor saber?»
Qu Yuan disse: «É preferível ser fiel e devotado, manter-se autêntico e leal, ou ocupar-
-se em relações sociais e bajular os superiores tendo em vista ascender a altos postos?
«É preferível arrancar as ervas daninhas e aplicar todo o nosso esforço a cultivar, ou infil-
trar-se entre os grandes deste mundo para obter o seu favor e assim alcançar o sucesso?
«É preferível dizer a verdade sem ocultações, pondo em risco a própria vida, ou se-
guir a vulgaridade, a riqueza e a nobreza, gastando o tempo à procura de um confor-
to fácil e transitório?
«É preferível marginalizar-se, ao ascender a altos cumes e ao defender a sua própria
verdade, ou adular os superiores para cair nas suas boas graças e, calculadamente,
dar-se bem com todos ostentando falsos sorrisos e, ainda que a contragosto, obede-
cer sempre, só para agradar à concubina favorita do rei?
«Ambicionar a pureza, a modéstia, a retidão e a verdade ou ser untuoso e informe,
envolvendo as pessoas como a gordura e o couro curtido?
«Ser soberbo como um cavalo veloz ou ir subindo e descendo ao sabor das ondas
como um pato, que sobrevive apenas à custa do sacrifício da vontade própria?
«Conduzir carruagens lado a lado com cavalos de raça ou seguir atrás das pegadas
dos cavalos débeis?
«Voar alto com os cisnes ou disputar os grãos com as galinhas e os patos?
«Qual deles é auspicioso e qual deles é desafortunado? Qual deles seguir? Que ca-
minho escolher?
«Este mundo é turbulento e obscuro. Consideram-se pesadas as asas da cigarra en-
quanto mil toneladas são consideradas leves. Destroem-se instrumentos musicais
enquanto se fazem troar vasilhas de barro. Os caluniadores ocupam lugares destaca-
dos enquanto virtuosos permanecem desconhecidos...
«Ora! Mais vale ficar calado! Haverá alguém capaz de compreender a minha modés-
tia e a minha honestidade?»
O adivinho largou as folhas e disse, agastado: « O decímetro é, por vezes, demasiado
curto; o centímetro, por vezes, é demasiado longo. Nada existe que não tenha os
seus pontos fracos. O conhecimento depara com problemas que não consegue es-
42 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
O impacto disso, na civilização chinesa, foi incomensurável.
Por séculos, esse livro foi o seu Manual de Ciências, seu Oráculo, seu
patrimônio intelectual fundador, o sistema pelo qual se enxergava o
mundo. No século -6, quando surgiram várias escolas de pensamento
tentando resolver a crise ética que se instalara na China, a percepção
comum era a mesma: havia se perdido a conexão com esse saber, era
preciso recuperá-lo.
Eis porque, então, as linhas dos hexagramas representam mui-
tas vezes, tão poeticamente, imagens do cotidiano. Por analogia [e às
vezes, diretamente], a imagem apresentada na consulta ia de encontro
à dúvida proposta. O Yijing desdobrava-se no cotidiano humano, e por
isso, sua função fundamental na vida comum: ajudar a encontrar cami-
nhos. O Yijing encontrar-se-ia, pois, no cerne do pensamento chinês, e
tornara-se chave para qualquer um que quisesse compreendê-lo. Dos
mais ínfimos aspectos banais e cotidianos, derivados de seu uso co-
mum, até aqueles que buscavam, em sua profundidade, a compreen-
são da Natureza, estava lá o livro – traduzindo, em imagens, a história
natural da humanidade.

6 O Ritualismo

Um aspecto destacado do período Zhou é a ênfase dada aos


procedimentos rituais [que aparecem com cada vez mais intensidade
em sua literatura]. É difícil saber até onde os costumes e práticas ri-
tuais 禮 [Li] eram realmente valorizadas ou, ao contrário, se todos os
escritos produzidos sobre essa questão tinham em vista restaurá-los,
numa época em que eles gradualmente eram esquecidos. Confúcio era
um árduo defensor dos sacrifícios, das cerimônias e dos rituais, mas

clarecer; a adivinhação depara com problemas que não consegue alcançar; o espírito
depara com problemas que não consegue entender.
«Utiliza a tua própria cabeça. Realiza a tua própria vontade. Esta carapaça de tartaru-
ga e estas folhas não conseguem resolver os teus problemas.»
In RIBEIRO, Cláudia e ZHANG, Zheng-chun. O rosto do vento leste. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1993.
Volume 1 43
não apenas de modo superficial: ele acreditava realmente no poder
simbólico que as práticas sagradas possuíam de educar os sentidos e
a intimidade humana. O Liji 禮記, por conta disso, acabou se tornan-
do o grande e valioso arcabouço sobre a cultura Zhou, mostrando-nos
a estruturação de suas leis, hábitos, crenças e visões de mundo. As
codificações nele presentes implicam desde a arte da política até os
costumes vestuários e alimentares. Todas essas questões adquiriam
um caráter sagrado, pois manifestavam a teoria de que era necessário
manter um arranjo harmônico com Natureza, gerando o equilíbrio ne-
cessário para a preservação da vida. No Liji, cap.9, podemos ler uma
definição de Confúcio sobre o tema:

Li é o princípio segundo o qual os antigos reis deram forma


às leis do Céu e regularam as manifestações de natureza hu-
mana. Por isso, vive aquele que alcança Li e morre aquele
que a perde. [...] Portanto Li baseia-se no Céu, padroniza-se
na Terra, trata do culto aos espíritos e estende-se aos rituais
e cerimônias fúnebres, sacrifícios em honra aos ancestrais,
arco e flecha, condução de veículos, investidura, núpcias, e
audiências na corte ou troca de visitas diplomáticas. Por isto,
o Sábio apresenta ao povo o princípio de uma ordem social
racionalizada e através dele todas as coisas vão bem no seio
da família, na cidade e no mundo.19

O ritualismo sagrado mantém, no período Zhou, a concepção


de que a ordem celeste e terrena só poderia ser conservada se o pró-
prio Estado, na figura do soberano, interviesse na manutenção do ritmo
cósmico,20 que se manifestava por meio das leis e crenças humanas:

Li constitui, pois, para um soberano, a grande arma ou ins-


trumento de poder, com que conjura os maus hábitos e os
começos de desordem, realizar sacrifícios e oferendas aos
espíritos, estabelecer os quadros da vida social, distinguir os
procedimentos do amor e do dever. É o meio pelo qual um
país se governa e se mantém firme a posição do governante.

19  Extrato do Liji, cap. 9, disponível em http://chines-classico.blogspot.com.


br/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais-01.html
20  Sobre o tema da relação entre Estado e Religião na China, ver o trabalho de YU,
Anthony. State and Religion in China. Chicago: Open Court, 2005.
44 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Pois se o governo não é direito, a posição do soberano está
ameaçada; e quando a posição do soberano é ameaçada,
seus oficiais de maior autoridade tornam-se arrogantes e os
de menor autoridade começam a prevaricar. Vêem-se então
criminosos punidos com severas penas, mas a moralidade do
povo assim mesmo se corrompe e verifica-se uma ausência
geral de bons princípios. Com a falta de princípios generaliza-
da, subverte-se a ordem social; e com a subversão da ordem
social os mais aptos não poderão exercer devidamente seus
ofícios. E quando os criminosos são punidos com severas pe-
nas e a moralidade do povo se corrompe, então os cidadãos
já não serão fiéis ao seu soberano, ou partirão para outros
países. A isto se chama “um estado doente”. [...]

O culto ao Céu tem por fim reconhecer os supremos desígnios


celestes. O culto ao deus terrestre tem por fim demonstrar a
produtividade da terra. O culto no templo ancestral tem por
fim patentear a linhagem do homem. O culto às montanhas
e aos rios tem por fim atender aos diferentes espíritos. Os
cinco sacrifícios têm por fim celebrar as atividades humanas.
[...] Quando se observa Li no culto ao Céu, os vários deuses
atendem às respectivas atribuições. Quando se observa Li
no culto a Terra, os bens terrenos crescem e se multiplicam.
Quando se observa Li no templo ancestral, a afeição e a pie-
dade filiais prevalecem. Quando se observa Li nos cinco sa-
crifícios, as medidas padrões são estabelecidas. Portanto, o
culto ao Céu, a Terra, aos antepassados, às montanhas e aos
rios, e os cinco sacrifícios, visam preservar as condições da
existência humana e constituem a configuração de Li.21

Junto com o Yijing, portanto, o aspecto ritualista do Liji con-


tribuiu para fortalecer o caráter sagrado dos mais diversos aspectos da
vida cotidiana, instituindo a ideia de que a Cultura seria, igualmente,
um desdobramento das leis naturais. O período do século -6, porém,
mostraria que mesmo esse papel religioso das práticas sociais não
seria suficiente para que os líderes dos grandes estados chineses os
abandonassem ou os ofendessem. De fato, a crise que se encetava na
época implicava, muitas vezes, no desprezo e no abandono de muitas
dessas práticas, razão fundamental da angústia de Confúcio.

21  Ibidem.
Volume 1 45
Considerações Finais

O período Zhou manteve a importância do culto aos ances-


trais, mas eles gradualmente se afastaram do cotidiano. Houve um dis-
tanciamento em relação ao mundo dos ‘mortos’, embora a crença não
tenha se modificado substancialmente.22 As modificações tornaram
seus rituais mais formais e simbólicos, apesar de Confúcio defender sua
ênfase inspiradora. O processo lógico do Yijing fez os outros oráculos
diminuírem de importância, embora fossem ocasionalmente citados.
Ao que tudo indica, a partir do século -8, o recrudescimento
da violência, das ingerências políticas, da corrupção e de uma perda
generalizada dos valores levou a civilização chinesa dessa época a um
momento de crise íntima significativa. Foi a constatação desses proble-
mas que levou os chineses do século -6 a elaborarem uma grande re-
visão de sua própria cultura, em busca de soluções para o que parecia
ser o fim de seu mundo.
Nesse momento que surgiram pensadores como Confúcio
[-551 -479] e Laozi 老子 [séc.-6?], cuja contribuição filosófica acabou
sendo reinterpretada por nós, ocidentais, como uma revisão religiosa
da civilização chinesa. A escola chamada de Daoísmo 道教 [Daojiao]
constituiria, de fato, um sistema que poderíamos chamar de ‘religião’;
quanto aos confucionistas, no entanto, sua elaboração se tratava muito
mais de uma doutrina intelectual e política do que propriamente reli-
giosa, caracterizando um grande equivoco interpretativo dos sinólogos.
De qualquer modo, essa busca ensejava um retorno às origens, uma re-
tomada da ordem cosmológica que, na utopia desses pensadores, havia
constituído um passado de paz e ordem para o mundo chinês.23
O significativo, porém, é que os chineses mantiveram os prin-
cípios fundamentais de suas crenças religiosas. Quando Budismo, Cris-
tianismo e Islamismo chegaram à China século depois, encontraram

22  KERN, Martin “Bronze inscriptions, the Shijing and the Shangshu: the evolution
of the ancestral sacrifice during the Western Zhou” in LAGERWEY, John e KALINOWS-
KY, Marc. [org.] Early Chinese religion. Vol. 1.Leiden: Brill, 2011.
23  Para uma leitura mais ampla, ver o ensaio de CHAN, Wing-tsit. História da filo-
sofia Chinesa, 2008. Disponível em: http://chinaimperial.blogspot.com.br/2008/04/
histria-da-filosofia-chinesa-01.html
46 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
um ambiente consolidado, com o qual tiveram que necessariamente
dialogar e se adaptar, sob a pena de serem excluídos. A ideia de um
intercâmbio com o mundo espiritual se manteria, pela crença inabala-
da de que seríamos espíritos encarnados, e não corpos com espírito.
Ainda hoje, passados milênios, os chineses ainda praticam seus ritos
funerais tradicionais, enterrado simulacros de objetos pessoais com os
defuntos, de modo a propiciar-lhes uma boa vida ‘material-espiritual’.
Os desafios das Eras operaram mudanças morfológicas nas caracterís-
ticas gerais de deuses e ritos, mas a essencialidade da crença mante-
ve-se inalterada: o mundo da mutação [o mundo material] é o espelho
de uma realidade espiritual, e compreender isso é alcançar o cerne do
pensamento religioso chinês.

Volume 1 47
O CONTATO COM OS DEUSES:
AS PRÁTICAS MÁGICO-RELIGIOSAS
NO EGITO ANTIGO
Cintia Alfieri Gama-Rolland1

Discutir a questão do contato com o divino, práticas religio-


sas e, portanto, experiências religiosas no Egito Antigo é uma tarefa
árdua. Em primeiro lugar a dificuldade provém da longa duração da
história desse povo, mais de três milênios2, à qual teimamos em tratar
como algo uniforme e imutável. Apenas para compreendermos essa
longa duração, entre o Antigo Império, de 2686 a.C. a 2184 a.C.3 e a
Baixa Época, 525 a.C. a 332 a.C., temos mais de dois mil anos; isso sem
contar o período de dominação macedônica e os períodos ptolomaico
e romano, remontando ao século V d.C4. Assim, mesmo se a religião
parece de certa maneira estática, não podemos imaginar que, em ao
menos três milênios, certos aspectos cultuais e da piedade pessoal
não tenham passado por alterações.
Além dessa questão temporal devemos levar em conta as
diferenças locais, cada cidade com seus templos, cultos provinciais e
deuses regionais que muitas vezes não estão necessariamente de acor-
do com a religião estatal. Por outro lado, ao tratarmos de religião esta-
tal temos que mencionar a diferença entre a chamada religião “oficial”,
do estado e dos sacerdotes, e aquela dos particulares em suas casas,
que muitas vezes não condiz com a superestrutura religiosa do esta-

1  Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Religiões do Mundo Antigo da


École Pratique des Hautes Études, orientada pela Profa. Dra. Christiane Zivie-Coche.
Email: gamacintia@uol.com.br.
2  Se contarmos apenas o período dinástico, pois a partir do pré-dinástico (5500
a.C.-2920 a.C.) e dinástico inicial ( 3150 a.C.-2686 a.C.) teríamos mais de 5 milênios.
3  CLAYTON, Peter. Chronicle of the Pharaohs. Londres: Thames & Hudson, 1994, p. 30.
4  Para mais informações sobre a historia do Egito antigo ver em geral: TRIGGER,
Bruce; KEMP, Barry e LLOYD, Allan. Ancient Egypt: a Social History. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2001. SHAW, Ian. The Oxford History of Ancient Egypt. Ox-
ford: Oxford University Press, 2003.
Volume 1 49
do, sem deixar, ao mesmo tempo, de ser integrante da religião egípcia
como um todo.
Outra dificuldade deve ser levada em conta: o estado da do-
cumentação sobre a qual fundamos nossas análises e interpretações,
seja ela arqueológica ou histórica. O que chegou até nós, monumentos,
objetos mobiliários, textos sobre diversos suportes – templos, estelas,
estátuas, papiros, ostraca – representa apenas uma ínfima parte da
produção antiga. Os dados são, portanto, oblíquos e refletimos a partir
de documentos, monumentos ou textos, que não sabemos o quanto
são representativos da época na qual foram concebidos, já que uma
parte foi perdida. É conveniente, então, manter-se prudente sobre as
conclusões que se pode tirar do exame das fontes. Se as fontes faltam
para um dado período, é necessário sempre se perguntar se é porque
elas não existiram, ou se é porque elas desapareceram, evitando sem-
pre a comparação entre períodos muito afastados cronologicamente.
Finalmente, uma das maiores dificuldades em abordar com
imparcialidade a religião egípcia se deve ao fato de termos que aban-
donar nossa maneira moderna de pensar, a qual está ligada a siste-
mas religiosos monoteístas5, para nos consagrarmos ao estudo de uma
religião que se caracteriza pela multiplicidade de deuses ou mesmo
pela multiplicidade de representações de um só deus6, bem como pela
ausência de revelação ou verdade absoluta. Não há na religião egípcia
uma verdade única, mas múltiplos meios de percepção e verdades que
se completam e muitas vezes se confundem, sem que haja sincretis-
mo. Assim como a arte egípcia, com sua aspectiva composta por múlti-
plos pontos de vista, a religião é múltipla e ao mesmo tempo única. Na
verdade, o que chamamos de religião egípcia antiga, como veremos
no decorrer desse texto, é um conjunto de práticas religiosas das mais
diversas, mas que têm um pano de fundo divino comum, em que as
mesmas divindades podem aparecer desde os locais de culto mais so-
lenes até em menções das mais banais, como em encantamentos para
atrair a pessoa amada.

5  ZIVIE-COCHE, Christiane. Des hommes et des dieux : une approche anthropolo-


gique de la religion Egyptienne. In: BRANCAGLION, Antonio, LEMOS, Rennan e
SANTOS, Raizza (orgs.) Semna– Estudos de Egiptologia II , Rio de Janeiro: Seshat/
Editora Klínē, 2015, p. 1-26.
6  Ver em geral HORNUNG, Erik. Les dieux de l’Égypte: l’un et le multiple. Paris : éd.
Flammarion, 1992
50 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Podemos perceber, assim, em apenas algumas linhas, certo
número de variáveis que devemos levar em conta ao tratar da religiosi-
dade dos egípcios antigos. Sem desejar complexificar demasiadamen-
te a questão, mas levando em conta as ressalvas mencionadas acima,
pretendemos apresentar os aspectos gerais da religião egípcia antiga,
tentando nos ater em certas questões tais como o divino, os templos e
a relação com os deuses, o contato com o divino, a piedade pessoal e a
associação entre magia e religião. Tentando apresentar um panorama
das experiências religiosas no Egito antigo, obviamente sem esgotar
esse tema tão vasto e aberto a discussões.

1 O Divino

Atualmente não se usa classificar a religião egípcia como mo-


noteísta7 ou politeísta. Na verdade, sabe-se que há um substrato en-
contrado tanto nos rituais funerários quanto divinos, em mitos e tem-
plos de diversas localidades egípcias, em que se percebe que todos
respondem a uma mesma estrutura fundada na existência de um de-
miurgo único no principio, presente desde o Antigo Império, que pode
se manifestar de diversas formas, dependendo do local e da época. Na
verdade, essa religião é constituída por um deus único de base, o de-
miurgo, mas que possui inúmeras manifestações, todas elas agindo ao
mesmo tempo como entidades praticamente independentes.
Dentre as diversas características dos deuses egípcios ou mani-
festações de um mesmo deus, podemos sublinhar as representações ou
imagens que lhes foram atribuídas. Essas se configuram como uma forma
de conhecer ou aproximar-se deles. Pelas estátuas, amuletos ou repre-
sentações nos templos os homens podem estar próximos dos deuses.
No entanto, as representações dos deuses são plurais assim
como suas manifestações, um mesmo deus pode aparecer sob um as-
pecto antropomórfico, zoomórfico ou antropozoomórfico, como Khe-
pri - escaravelho ou escaravelho com corpo humano – ou ainda Rê e

7  Diversos autores tentaram ver a emergência de um monoteísmo no episodio


Amarniano.
Volume 1 51
seus 74 aspectos8. Da mesma maneira que o demiurgo não está apri-
sionado apenas em um ser, a representação dos deuses não abarca o
todo da divindade, essa representação não deve ser única, pois o único
seria redutor para com a imensidão divina.
O nome dos deuses e os mitos também acabam por definir e
tentar explicar a história e as características de uma divindade, mesmo
se a questão referente ao mito ainda esteja aberta para a egiptolo-
gia, pois temos apenas mitemas, já que as narrativas mais completas
datam do período grego. Muito provavelmente, deve ter havido um
substrato oral do mito, de forma que mesmo se apenas alguns eventos
da história de uma divindade fossem narrados, o todo poderia ser re-
conhecido e rememorado por todos, sem que houvesse a necessidade
de compilações escritas; o que se fez necessário apenas com a chegada
de estrangeiros que desconheciam a cultural mitológica oral. Dentre
eles, o mais famoso exemplo é Plutarco, que estabeleceu a história
mítica de Osíris em seu Iside e Osiride.
Dentre todas as narrações de caráter mitológico, foi dada
grande importância às cosmogonias. Essas se constituem de forma si-
milar: partindo de um demiurgo que se multiplica e que possui carac-
terísticas diversas de acordo com cada localidade egípcia, sem perder
o pano de fundo comum de um demiurgo associado à maât9 - ordem,
justiça- em oposição a isefet.

2 Os templos e a relação com os deuses

O templo era a casa do deus, onde ele vivia por meio de sua
estátua. Seu ba, principio vital e imaterial, podia vir na forma de um
pássaro e pousar sobre essa representação, animando-a. O templo
contendo essa imagem divina é um lugar sagrado, djeser em egípcio,

8  Encontrados nas Litanias de Rê presentes nas tumbas dos reis do Novo Império
(Thutmés III, Séthy I, Ramsés II, Merenptah, Séthy II, Ramsés III, Ramsés IV e Ramsés
IX) e no pequeno templo de Ramsés II em Abu Simbel.
9  POSENER, Georges (dir). Dictionnaire de la civilisation égyptienne. Paris: Fernand
Hazan, 1998, p. 156-158.
52 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
com a mesma conotação que a raiz latina sacer, separado; separado
do mundo profano, lugar onde se penetra apenas purificado, como in-
dicam frequentemente as inscrições na porta dos templos. É por isso
que o acesso ao templo era muito limitado; se a multidão podia atingir
as partes a céu aberto, os pátios, e em certas festas, as salas hiposti-
las, não era possível aventurar-se mais adiante e particularmente na
direção do naos que abrigava a estátua divina. O fiel participava exter-
namente das ações que ocorriam nos templos, sem penetrar no local
sagrado ou assistir a rituais. Na realidade, nem mesmo todos os sacer-
dotes podiam aceder a todas as zonas do templo, o único a ter acesso
irrestrito era o primeiro sacerdote de um deus e o faraó.
No decorrer de três milênios, a arquitetura e o tamanho dos
templos evoluíram bastante. Nos períodos mais recuados, os templos
divinos em contraste com os templos funerários reais tinham dimen-
sões modestas. No Antigo Império, e ainda no Médio Império, os tem-
plos não tinham nenhuma decoração, sendo apenas no Novo Impé-
rio que os edifícios tomam uma maior extensão e passam a ter cenas
ocupando suas paredes, sendo o templo de Karnak um dos melhores
exemplos. Esse fenômeno de aumento tanto do tamanho quanto da
decoração dos templos se acentuou no período ptolomaico principal-
mente em Edfu, Dendera, Philae, Kom Ombo e Esna, os quais são to-
talmente cobertos por imagens e textos, como se nessa época tardia,
em que o Egito passava por numerosas mudanças, se tivesse desejado
gravar livros de pedra para a eternidade.
O templo, ao menos a partir do Novo Império, é também con-
cebido como um microcosmo. Os pilones monumentais representam
as montanhas do Oriente e do Ocidente onde nasce e se põe o as-
tro solar como o hieróglifo, ḏw, , daí a importância da orientação
dos templos para que o hieróglifo se transforme nas montanhas do
horizonte com o sol nascendo e se pondo, 3ht, . No interior das
salas, na parte inferior das paredes, estão representados os produtos
de cada província, os quais são oferecidos ao deus em uma procissão
de personificações do Nilo e dos campos, conduzida pelo rei, represen-
tando assim o Egito como um todo que oferece toda sua produção. As
colunas têm formas vegetais, caule e umbela de papiro e de lótus, re-
presentando a vegetação. O teto dos templos representa o céu com es-
trelas. O Nun ou oceano primordial é representado por poços ou lagos
Volume 1 53
sagrados cavados dentro dos temenos, sendo nessas águas que os sa-
cerdotes se purificam voltando à pureza do início dos tempos10; o muro
externo dos templos, em sua maioria destruídos pela ação do tempo
por serem feitos de tijolos de barro cru, também representavam o Nun
e suas ondulação referem-se à escrita do nome desse oceano: .
Os templos denotam, assim, uma dupla função: casa que abri-
ga a imagem do deus11 e duplo sagrado do Egito com todos seus ele-
mentos, o mundo inferior (dȝ.t, ), a terra (tȝ, ) e o céu
(p.t, ), como uma miniaturização do cosmos.
Os templos são, de uma maneira sintética, vetores da manu-
tenção dos espaços egípcios (a Duat ou mundo inferior / câmara secre-
ta para os mortos, a terra para os vivos e o céu para os deuses). Esses
três domínios constituem todo o mundo egípcio e possuem ligações
mútuas de dependência. Divindades, reis e homens agem em comum
acordo para assegurar a perenidade desses espaços, sendo essa a con-
dição para a manutenção do universo egípcio12 e essa ação conjunta se
desenrola nos templos.
Esses locais concentram a relação humano-divino servindo
como centros aos quais se destinam oferendas, preces e rituais, mas
por serem lugares abertos a uma parte ínfima da população, não re-
presentam o todo da religiosidade dos egípcios, mas apenas a parte
mais institucionalizada. Os templos servem para manter o cosmos, a
maât e abrigar o deus, mas a relação dos egípcios com o divino ul-
trapassa largamente esses aspectos cosmológicos, fazendo com que
outros meios e lugares de expressão de piedade existam.

10  Para compreender o cosmos egípcio e a arquitetura sagrada dos templos ver
BERLANDINI-KELLER, Jocelyne. Résidences et achitectures celestes. In: ÉTIENNE,
Marc (dir.) Les portes du ciel: visions du monde dans l’Égypte ancienne. Paris : Somo-
gy éditions d’art, 2009, p. 27-43.
11  Imagem em que o deus se encarna e diante da qual são praticados todos os rituais
destinados a assegurar a vida da divindade e, assim, o bom andamento do mundo.
12  ÉTIENNE, Marc. L’univers, sanctuaire des dieux. In: ÉTIENNE, Marc (dir.) Les
portes du ciel: visions du monde dans l’Égypte ancienne. Paris : Somogy éditions d’art,
2009, p. 25.
54 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
3 O contato com o divino

É graças às oferendas que os alimentam, aos objetos rituais


que lhes são apresentados e às invocações que lhes são endereçadas
que os deuses são “apaziguados”, para utilizar um vocabulário egípcio,
e desenvolvem a energia necessária para manter a ordem no cosmos
e sobre a terra13. As cenas rituais dos templos ptolomaicos que repre-
sentam o faraó diante de um deus são muito claras a esse respeito.
O faraó faz uma oferenda ao deus, que a aceita e a devolve tanto ao
próprio ofertante quanto a todo o Egito.
As imagens gravadas evocam o que devia se passar nos tem-
plos. Em um ritual diário, abria-se o naos de manhã e acordava-se a
estátua; ela era vestida, perfumes eram apresentados a ela e depois
uma refeição, tudo acompanhado por hinos em honra da divindade.
Uma cerimônia que se repetia, normalmente, três vezes ao dia e, em
teoria deveria ser realizada pelo faraó, representante supremo da re-
ligião egípcia.
Unicamente durante as grandes festas, tais como a Bela Festa
do Vale ou a de Amon de Opet, a estátua do deus era retirada do tem-
plo em um pequeno naos e era transportada em uma barca portátil de
um templo a outro. O faraó sempre é representado diante dos deuses,
mas por mais que o rei fosse o responsável por todos os rituais sendo
um sumo sacerdote, ele não estaria em todos os lugares ao mesmo
tempo, e os rituais deviam ser executados por sacerdotes locais, que
tinham seus poderes delegados pelo faraó.
Entretanto, ao menos a iconografia respeitava ficticiamente e
traduzia simbolicamente a relação instaurada entre o faraó e os deu-
ses, isto é, o faraó deve ser eficaz, é aquele que serve os deuses e que
mantém uma relação direta com os mesmos graças ao seu cargo que
emana dos deuses. Em vida, o rei deve ser eficaz, um akh, para os deu-
ses, construindo templos, monumentos e realizando oferendas14. Essa

13  ZIVIE-COCHE, Christiane. Des hommes et des dieux : une approche anthropolo-
gique de la religion Egyptienne. In: BRANCAGLION, Antonio, LEMOS, Rennan e
SANTOS, Raizza (orgs.) Semna– Estudos de Egiptologia II , Rio de Janeiro: Seshat/
Editora Klínē, 2015, p.13.
14  FRIEDMAN, Florence. The Root Meaning of Ax: Effectiveness or Luminosity, Sera-
Volume 1 55
eficácia do rei com relação ao deus é evidente no caso de Akhenaton,
em que a palavra akh é utilizada na constituição da titulatura do faraó.
O rei se manifesta, assim, numa relação de reciprocidade com o deus,
ele é akh – eficaz - e ele faz akhut - coisas eficazes-, como rituais e ofe-
rendas para o deus que, por sua vez, as devolve ao rei e a todo Egito,
representado na figura do faraó. Por exemplo, o rei constrói monu-
mentos para os deuses, em retorno esses lhes dão milhões de heb-sed.
O rei « trabalha » para os deuses para que esses mantenham o cosmos,
o rei oferece a maât para que a mesma seja devolvida a todo o Egito.
Nos templos, ou de acordo com a religião estatal e oficial, é
o rei ou o seu representante – sacerdote - que estabelece o contato
com o divino realizando os rituais para que a ordem seja mantida e os
deuses saciados. Entretanto, os particulares, isto é, todos aqueles que
não são o faraó ou sacerdotes, não são agentes nesse processo de ma-
nutenção da maât, mas apenas pacientes. O cosmos e a religião estatal
são mantidos por uma relação direta entre o rei ou as altas esferas sa-
cerdotais diretamente com a imagem do deus e os rituais organizados.
Entretanto, como veremos a seguir, os particulares, por mais
que não tenham acesso a esse domínio do sagrado associado à manu-
tenção do cosmos e ao ritual quotidiano dos templos, também podem
estabelecer um contato com o divino, mas de maneira mais pessoal e
em busca de respostas ou ajudas mais precisas, associadas ao dia a dia;
sem que isso constitua outra religião ou algo que por muito tempo foi
chamado de religião popular ou “dos pobres”15.

4 Piedade pessoal

Os deuses são, então, representados por estátuas, e os egíp-


cios não consideram essas representações como sendo a divindade em
si, mas apenas uma representação física especial já que o princípio

pis 8, 1984 – 1985, p. 40.


15  DUNAND, Françoise e ZIVIE-COCHE, Christiane. Hommes et dieux en Égypte,
Paris, 2006, p. 151.

56 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


vital do deus, ba, pode vir encarná-la e animá-la. Assim, se as estátu-
as, que ficam na parte mais sagrada e inacessível do templo, são uma
forma de estar próximo do deus, seria impossível aos homens comuns
de ter uma relação direta com os deuses, fazer preces e “ver” a divin-
dade? Esses deviam sempre passar pelo faraó que os representava ou
pelos sacerdotes, seus substitutos?
Essas são questões complexas para as quais ainda não dispo-
mos dos documentos necessários para analisá-las, sobretudo para os
períodos mais antigos. No entanto, está claro que os homens sentiam
a necessidade de uma relação direta com seus deuses, da qual os tes-
temunhos se multiplicam quanto mais avançamos no tempo, principal-
mente a partir do Novo Império, o que nos leva a crer que a tentativa
de acessar o universo divino manifestava-se em diversos âmbitos so-
ciais, externos ao templo e ao sacerdócio.
Atualmente, não é mais de praxe fazer uma hierarquização
entre a prática religiosa referente ao culto oficial feita nos templos, por
sacerdotes ou pelo faraó, e àquela chamada de popular ou privada.
Mesmo se a população não possuísse um conhecimento profundo da
teologia, ela se dirigia aos mesmos deuses e muito provavelmente co-
nhecia os rituais e mitos por meio da maior forma de transmissão reli-
giosa, a oralidade. O que se chama, em egiptologia, de piedade pessoal
nada mais é do que a tentativa de todo e qualquer um de fazer parte
de um sistema religioso mais amplo e muitas vezes incompreendido; é
a busca pelo divino e por uma relação com o mesmo que se desenvol-
ve em todos os níveis da sociedade.
Se para os períodos pré-dinastico, dinástico inicial e mesmo
Antigo Império e Primeiro Período Intermediário não se tem dados re-
ferentes à piedade pessoal, esse aspecto da religião egípcia ganha con-
tornos mais claros no Novo Império, principalmente após o período
Amarniano. Na XVIII dinastia já se tem documentos escritos expressan-
do uma relação pessoal direta com os deuses, tal como as “estelas ore-
lhas”. Mas, na verdade, sabemos que a existência de uma relação com
a divindade fora do quadro oficial ou do templo devia existir ao menos
desde o Antigo Império16, mesmo se os textos faltam para essa época.

16  Ver em geral BAINES, John. Practical Religion and Piety. In: Journal of Egyptian
Archaeology 73, 1987, p.79-98.
Volume 1 57
Para se compreender o desenvolvimento da piedade pessoal,
deve-se mencionar que uma evolução politica e social com efeito so-
bre a religião teve lugar entre o Antigo e Novo Império, com um perío-
do de transição, o Médio Império. Foi necessário que a forte e centrali-
zadora monarquia do Antigo Império passasse pelos questionamentos
dos dois primeiros Períodos Intermediários, sendo repensada pelos
ideólogos do Médio Império, para que as pessoas comuns tivessem
um estatuto face ao divino, não sendo mais apenas à sombra do faraó,
mas um indivíduo que por si só se dirige ao deus. Nota-se, assim, no
Novo Império, uma “mundanização” da religião17.
Recuando-nos até o Médio Império, de um ponto de vista do-
cumental, já é possível de se notar o aumento de estelas oferecidas
por um particular a um deus, o que não se vê no Antigo Império. Em
outras palavras, mesmo se o faraó é o primeiro dos humanos e o sumo
sacerdote por excelência, o indivíduo comum começa a se dirigir ao
deus a partir do Médio Império e mais claramente do Novo Império;
isto é, as pessoas comuns passam a ter um lugar ativo nessa religião,
perceptível pela documentação epigráfica e arqueológica.
A mudança do papel do indivíduo é evidente: no Antigo Im-
pério não se possui menção aos deuses em textos de particulares18; no
Médio Império, o nome de particulares aparece associado ao de deu-
ses, principalmente nas estelas de Ábidos; no Novo Império, pessoas
são representadas diante de divindades19 trazendo oferendas e lhes
dirigindo preces, o que anteriormente apenas era feito pelos faraós.
Mesmo se os indivíduos começam a se representar diante da
divindade ou dirigir preces aos deuses, o acesso ao templo sempre
se manteve restrito à primeira sala hipostila ou ao pátio. Em certos
templos, como o de Esna, onde estaria o monte sagrado que abriga
a tumba de Osíris, mulheres e os animais não podiam nem mesmo
chegar ao pátio20.

17  ASSMANN, Jan. Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne. Monaco: éd. du Rocher,
2003, p.321-356.
18  Exceção feita a homens como Hardjedef, filho de Quéops, e Heqaib, nomarca de
Elefantina, ambos pessoas do Antigo Império divinizadas e que acabam servindo de
intermediários para com os deuses.
19  TOYE, Nathalie. L’écoute du dieu dans les témoignages de piété personnelle en
Egypte ancienne au Nouvel Empire. Paris : EPHE, não publicada, 2011.
20  SAUNERON, Serge. Esna V: Les fêtes religieuse d’Esna aux derniers siècles du pa-
58 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Na parte mais sagrada do templo, as restrições sempre se
mantiveram, pois nem todos os sacerdotes tinham acesso, mas uni-
camente o primeiro sacerdote do deus. Os fiéis em geral faziam suas
preces nas vias processionais ou diante das estátuas no exterior dos
pilones. Muitas das estátuas encontradas na via processional que unia
os templos de Karnak e Luxor possuem sinais de desgaste correspon-
dente à passagem das mãos de fiéis, que tinham como hábito tocar
esses objetos na esperança de ter benefícios21. Eram os colossos ou es-
tátuas de menor porte no exterior do templo que recebiam as preces
e serviam como receptáculo da fé individual.
Além dos grandes templos com suas sólidas organizações cle-
ricais, a paisagem religiosa do Egito apresentava oratórios, capelas,
locais de peregrinação nas cidades e no campo. Infelizmente, esses
lugares eram tão numerosos que atualmente estamos longe de saber
precisamente onde e quantos existiram ao certo, pois a simplicidade
dessas construções, geralmente em argila, fez com que elas desapare-
cessem, deixando apenas, em alguns casos, alguma menção nas fontes
escritas. Sabemos apenas que os egípcios tinham uma predileção por
locais históricos ou antigos aos seus olhos e dos quais a sacralidade era
quase imemorial, como a região Menfita, Saqqarah e o Serapeum e,
mais ao norte, Abusir, dentre outros.
Diversas vezes, locais com uma superestrutura aparente eram
reinterpretados e a tumba de um faraó, por exemplo, podia se trans-
formar em local de peregrinação e culto extraoficial como a de Djoser
e Téti, em Saqqarah, ou ainda o templo funerário de Sahourê, rei da
V dinastia, que se transforma num local de culto a Sekhmet. Assim, é
possível entrever uma dimensão cultual muito maior do que aquela
vista nos templos centrais e monumentais.
O desejo de estar perto do deus ou de ver sua imagem, já que
o culto quotidiano era fechado aos fiéis, realizava-se algumas vezes du-
rante as grandes festas em que a estátua saia do santuário e um corte-
jo popular a acompanhava pela cidade. Essas procissões eram grandes
momentos do calendário litúrgico e da vida dos egípcios que, durante
a procissão, tinham o privilégio de se aproximar do objeto divino: está-
tua, barca ou emblema sagrado.

ganisme. Cairo : Institut Français d’Archéologie Orientale, 1962, p. 319-320.


21  DUNAND, Françoise e ZIVIE-COCHE, Christiane. Hommes et dieux en Égypte,
Paris, 2006, p. 158.
Volume 1 59
Era com a saída do deus de seu templo, durante a procissão,
que as pessoas faziam perguntas ao deus, de acordo com práticas ora-
culares. A partir do Novo Império e até o período romano, as práticas
oraculares diante das barcas divinas se multiplicaram, e vinha-se pedir
junto ao deus uma resposta a uma pergunta, que às vezes se relacio-
nava aos aspectos mais ordinários da vida. Assim como também podia
ser pedido ao deus de fazer justiça, uma justiça que se esperava mais
equitativa que a dos homens.
Os oráculos funcionavam da seguinte maneira: a questão era
feita oralmente durante as procissões, já que as inscrições às quais se
referem começam com “diz” , “grita” ou “anuncia” . As
perguntas podiam ser de todos os tipos das mais complexas ou até
com relação a objetos perdidos ou, ainda, se uma pessoa devia ou não
viajar. Durante as procissões, a pessoa fazia sua pergunta ao deus e se
a barca onde o deus era transportado parasse ou avançasse seria sim
ou não. As questões eram breves e as respostas monossilábicas.
Outras vezes, no entanto, a questão era feita por escrito, colo-
cava-se duas “cartas” escritas em ostracas, uma com resposta positiva
e outra negativa e a escolha era feita pelo deus22. Esses ostraca com a
menção “sim” ou “não” foram encontrados em Deir el-Medina. Mas
não se sabe ao certo como o deus ou o seu representante escolheria
uma das respostas.
O interessante é que diversas ostraca com questões oracu-
lares também foram encontradas em Deir el-Medin23, por exemplo:
“Sety será nomeado sacerdote?”24, “Foi ele quem roubou essa estei-
ra?”25, “Será que as acusações que eu fiz o afetarão?”26. Em outros ca-
sos, são afirmações que são apresentadas para a validação dos deuses
ou em forma de pedido: “Alguém o roubou”27, “Afaste-o do cargo de
representante / comandante do grupo de (trabalhadores)”28. Sempre
questões que requerem respostas diretas: afirmativas ou negativas.

22  ČERNY, Jaroslav. Questions adressées aux oracles, Bulletin de l’Institut Français
d’Archéologie Orientale 35, 1935, p.41-42.
23  Ibid., p.43-58.
24  Ostracon do Museu do Cairo JE 59464.
25  Ostracon IFAO, 501.
26  Ostracon IFAO, 200.
27  Ostracon IFAO, 563.
28  Ostracon IFAO, 561.
60 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
No período ptolomaico e romano, era usado outro método
para responder às questões oraculares. A estátua divina possuía furos
e, por trás, um sacerdote ouvia a questão, e respondia sim ou não. É a
esse tipo de prática que pertence uma das respostas oraculares mais
famosas, que ultrapassou as fronteiras do Egito, a de Amon de Siwa que
permitiu a Alexandre, o grande, proclamar sua divindade e legitimidade.
Outra forma de estar próximo da divindade era o depósito de
ex-votos junto a certos lugares de culto, como o de Hathor, no templo
de Deir el-Bahari, deusa solicitada para assegurar uma descendência.
Fazia-se também apelo a especialistas para praticar rituais má-
gicos, destinados a recuperar a saúde, a assegurar o amor fiel de sua
mulher ou de seu marido, ou ainda para se preservar de todos os inimi-
gos potenciais. Esses mágicos eram ritualistas, assim como os sacerdo-
tes dos templos, e invocavam o poder dos deuses para triunfar sobre os
males dos homens, para os quais a medicina e a justiça não tinham cura.
Havia também os decifradores de sonhos que usavam “chaves
de sonhos”, manuais que classificavam os sonhos em categorias, e ofe-
reciam uma interpretação estereotipada.
No que se refere aos cultos que deviam ser praticados em
contexto privado, principalmente nas casas, diante de um pequeno
altar portátil e de imagens de divindades, há pouca informação, com
exceção de Amarna29 e Deir el-Medina, devido a falta de escavações
sistemáticas de habitações, que são muito mais frágeis do que os tem-
plos, pois construídas em tijolos de barro cru. Em compensação, os
amuletos representando deuses ou objetos sagrados, olho-udjat, pilar
djed, etc., são encontrados em quantidade; eles não eram reservados
aos defuntos, sendo também portados pelos vivos.
Sabe-se também que há pessoas comuns que adquiriram um
estatuto divino após a morte, tornados “santos” intercessores, assim
como Imhotep, arquiteto da pirâmide do rei Djoser, ou Amenhotep, fi-
lho de Hapu, vizir no reinado de Amenhotep III. O mesmo pode ser dito
com relação aos mortos, já que foram encontradas cartas dedicadas
aos defuntos por seus familiares pedindo que esses agissem como in-
tercessores entre os vivos, e entre os vivos e os deuses30. Assim, pode-

29  STEVENS, Anna. Private Religion at Amarna: the Material Evidence. Oxford, Brit-
ish Archeological Research International Series 1587, 2006.
30  DONNAT-BEAUQUIER, Sylvie. Écrire à ses morts : enquête sur un usage rituel de
Volume 1 61
mos ver que o contato direto com os deuses parece ser menos evidente
para os particulares, mas esses criaram diversos meios de estabelecer
essa comunicação e fazer com que os deuses agissem em seu beneficio.
Com isso, diversas possibilidades se apresentavam para aque-
les que desejavam exprimir sua piedade pessoal: se aproximar das es-
tátuas que precediam as entradas dos templos e tocá-las, fazer uma
peregrinação, participar das festas divinas e seguir o cortejo que acom-
panhava a estátua do deus, fazer perguntas oraculares, fazer uso dos
seus mortos ou pessoas divinizadas para se comunicar com os deuses,
portar amuletos e fazer um culto doméstico.
Uma vez mais, devemos admitir que o que é revelado pela
oralidade está perdido, e que ignoramos as palavras das preces e das
invocações que eram pronunciadas. Contrariamente aos etnólogos,
jamais teremos diante de nós os egípcios para responder às nossas
perguntas. Ao menos os testemunhos privados, mesmo os mais sumá-
rios, mostram que os gestos religiosos, fora do domínio dos templos,
copiam os mesmos princípios que o dos cultos oficiais e os deuses cul-
tuados são os mesmos.

5 Magia e religião

Como vimos, os indivíduos comuns estão afastados do sistema


religioso dos templos e não participam, ao menos diretamente, de seu
funcionamento. Outros meios, no entanto, ficaram à sua disposição
para entrar em contato com as divindades, dentre eles, a magia é um
dos que está mais presente nos registros arqueológicos e epigráficos.
A magia da qual tratamos aqui não está ligada, de maneira
alguma, ao que nossa mentalidade cristã associa à bruxaria, ou ainda a
ideias de algo externo a uma religião oficial ou como uma forma cultu-
al inferior, pré-existente à religião. Na verdade, magia e religião andam
juntas na visão dos egípcios antigos.
A força da magia egípcia está associada às palavras, à pronun-
cia; trata-se de pronunciar fórmulas mágicas para destruir o que se

l’écrit dans l’Égypte pharaonique, Grenoble, 2014.


62 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
teme ou obter o que se deseja. As palavras têm força, daí a impor-
tância em conhecer o nome dos deuses e das pessoas, os rituais, os
manuais e encantamentos do post mortem.
Diversas conjurações ou encantamentos colocam em ação mi-
temas, tal como aquele contra mordidas de cobras e de escorpiões em
que o suplicante refaz a ação feita por Isis para curar o seu filho Hórus.
Essa força mágica da palavra, da oralidade é fixada em objetos
que são suportes tangíveis do poder e da eficácia da magia, tais como
amuletos fabricados aos milhares e usados tanto no post mortem
quanto em vida para proteger aquele que o portava. Ou ainda estelas
como as de Hórus sobre crocodilos segurando duas serpentes com as
mãos, que protegem seu proprietário contra venenos e doenças; ou
ainda as imagens de Bés para afastar o mau-olhado.
As estátuas curandeiras que começam a aparecer no Novo
Império também têm grande sucesso. Nelas, textos estavam inscritos
por todos os lados e quando uma pessoa precisava ser curada, água
era jogada sobre a estátua, a água entrava em contato com o texto,
escorria, era recolhida e bebida pelo enfermo. Assim, a pessoa literal-
mente bebia a magia curativa, como hoje tomamos remédios.
Podemos resumir o uso da magia religiosa como algo que ti-
nha como objetivo de proteger do mal pela intimidação, ameaça ou
coerção, indo da profilaxia à contra-magia. Existiam encantamentos
defensivos para impedir o aborto ou dores de cabeça; encantamentos
profiláticos contra picadas de serpentes e escorpiões. Também havia
fórmulas contra sonhos ruins, contra os perigos imanentes do universo,
por exemplo, a serpente Apófis. Há também fórmulas da magia cha-
mada produtiva, que são mais raras, utilizadas no domínio médico, por
exemplo, para acelerar o parto, ou ainda como encantamentos de amor.
Esse tipo de ação religiosa parece muito distante da religião
oficial, mas na verdade é apenas uma faceta desse imenso panorama
religioso, já que os mesmos deuses cultuados nos templos pelos fa-
raós, sacerdotes e particulares, são invocados para a magia em que
mitemas são encontrados nessas fórmulas mágicas. Toda a ação má-
gica, oracular, de piedade pessoal e nos templos, nada mais é do que
um dos aspectos de uma mesma religião, em que todos os meios se
unem para a manutenção do cosmos e do quotidiano, em acordo com

Volume 1 63
a maât. Citemos alguns exemplos de encantamentos para observar-
mos a ação dos deuses.

Salve, Rê-Horakhty, pai dos deuses!


Salve, as sete Hathor com fitas vermelhas!
Salve vós, deuses, senhores do céu e da terra!
Venham, façam com que N, filha de N se apegue a mim, como
uma vaca se apega a sua forragem.
como uma serva se apega aos seus filhos,
como um pastor se apega ao seu rebanho,
se vós não fizeres com que ela se apegue a mim, eu colocarei
fogo em Busiris e queimarei Osíris!31

Nota-se no encantamento de amor acima citado, a invocação


de deuses com cultos oficiais e templos, assim como a ameaça pro-
ferida contra uma cidade sagrada, Busiris, seu templo e seu deus tu-
telar Osíris, reafirmando a relação da magia com a religião. Podemos
observar também que aparentemente não há nenhum problema em
associar uma questão amorosa de ordem pessoal com deuses como
Rê-Horahty e Osíris.
O próprio faraó usa da magia de execração ou destrutiva ao
colocar em suas sandálias os nove arcos e os inimigos do Egito; da mes-
ma forma, todo e qualquer indivíduo podia fazer uso de rituais de en-
cantamento de destruição e execração mencionando o faraó e o deus
Rê, como aparece no papiro do Museu Britânico do período ptolomai-
co, conhecido pelo nome de papiro Bremner-Rhind:

Tu desenharás todo adversário de Rê e todo adversário do fa-


raó, vida, saúde, força, morto ou vivo, e todo inimigo ao qual
ele pode pensar, os nomes de seu pai, de sua mãe e de seus
filhos – de cada um deles – inscritos com tinta fresca numa
folha de papiro nova – seus nomes inscritos sobre o peito de
figurinhas feitas de cera e amarradas com linhas de fio preto:
cuspir-se-á sobre eles, andar-se-á com o pé esquerdo sobre
eles, bater-se-á neles com a faca e a lança e lançá-los-á no
fogo do forno do ferreiro32.

31  Estátua do Cairo JE 69771 In.: DRIOTON, Étienne. Une statue prophylactique de
Ramsès II. Annales du Service des Antiquités de l’Égypte 39, 1939, p.57-89 ; KRI V,
261-268.
FAULKNER, Raymond. The PapyrusBremner-Rhind (Brit. Mus. No. 10188),
64 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Além desses encantamentos, na vida cotidiana, o povo fazia
referência às forças supra-humanas. Cada momento da vida de uma
pessoa tinha uma divindade propícia. No parto, para assegurar a boa
saúde da mãe e do bebê chama-se Meskhenet, que vinha acompanha-
da de Chai, o destino. Certas vezes Isis, Néftis e Heqet também podiam
ser acionadas. Taueret garantia um parto fácil e Bés protegia contra o
mau-olhado. Algumas vezes, as sete Hathor aparecem para anunciar
o destino. Contra a esterilidade eram evocados Bès, Taueret, Hathor
e Min. Essas divindades também aparecem nas cenas de nascimentos
reais do Novo Império, teogamias que mostram o nascimento divino
de um faraó pela união da rainha consorte com Amon.
Notamos, assim, com todas essas manifestações do sagrado
que a relação do homem com o mundo divino não está limitada às
visitas ao templo, às capelas, às procissões, às questões oraculares ou
mesmo às práticas mágico-religiosas. É no mundo cotidiano que, dia
após dia, o poder benéfico ou maléfico das divindades é sentido por
meio de cheias, colheitas, doenças, curas, nascimentos, mortes, etc.
Tudo era ação do divino, e o contato com os deuses era, consequente-
mente, cotidiano. A religião não podia ser, então, balizada ou estática,
e o que hoje conhecemos dessa relação com o divino talvez seja uma
ínfima parte do que existia.

Bibliotheca Aegyptiaca III, 1933, p.56.


Volume 1 65
“EL DISCURSO DE LA TEODICEA Y EL
REPROCHE A LO DIVINO DURANTE EL
REINO MEDIO EGIPCIO.
UN ANÁLISIS A PARTIR DEL TEXTO DE
LAS ADMONICIONES DE IPUWER”
Pablo Martín Rosell1

Una teodicea puede ser definida a partir del intento por re-
conciliar la creencia en la justicia divina con la existencia del mal y el
sufrimiento en el mundo2 y cuyo núcleo se basa en el contraste que la
percepción universal humana observa entre un mundo ideal, perfecto
y ordenado y un mundo imperfecto e injusto.3 Recurrente en la litera-
tura reflexiva, así como también funeraria y en ciertas descripciones
míticas del Reino Medio (2055-1650 a. C),4 la teodicea nos introduce
en la problemática de pensar el origen del mal en el mundo. Desde
tiempos inmemoriales la humanidad se ha preguntado acerca de la
causa, el origen y la razón del mal en el mundo. Junto con esta preocu-
pación que solía aflorar en las mentes humanas sobre todo en tiempos
de crisis o catástrofes naturales, políticas y sociales, habría emergido
la cuestión de cómo conciliar la existencia del mal en el mundo, sobre
todo de un mal injustificado y atroz, con la benevolencia de los dioses

1  Doctor y miembro del Centro de Historia Social Europea / Instituto de Investiga-


ciones en Humanidades y Ciencias Sociales (UNLP-CONICET). Facultad de Humani-
dades y Ciencias de la Educación (FaHCE), Universidad Nacional de La Plata. E-mail:
pablomartinrosell@gmail.com
2  ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WENDRICH, W. (org.), UCLA En-
cyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of California, 2008b, p. 1. Disponiv-
el em: http://escholarship.org/uc/item/7tz9v6jt.
3  ENMARCH, Roland. A World Upturned. Commentary on and Analysis of The Di-
alogue of Ipuwer and the Lord of All. Oxford: Oxford University Press, 2008a, pp.
56-57.
4  La cronología de este trabajo es tomada de Ian Shaw y Paul Nicholson (SHAW, Ian;
NICHOLSON, Paul (org.). The British Museum Dictionary of Ancient Egypt. El Cairo:
The American University in Cairo Press, 2002, pp. 310-312).
Volume 1 67
y su creación. Nos encontramos de este modo con el problema de la
teodicea, en otras palabras, el intento de encontrarle una justificación
al mal y al sufrimiento injusto si aceptamos la existencia y la fe divina
de un dios omnipotente, omnisciente y benévolo5; una respuesta al
problema del inocente que sufre en un mundo en el que las fuerzas
divinas deberían premiar al justo y castigar a quien comete los males.6
Así, pues, en este trabajo nos proponemos reflexionar sobre
la problemática de la teodicea y el reproche a lo divino por la existencia
del mal en el mundo a partir de un texto literario del Reino Medio egip-
cio conocido bajo el nombre de las Admoniciones de Ipuwer.7 En dicho
texto, un personaje llamado Ipuwer que se presenta ante la corte de
un faraón para relatarle el estado calamitoso en el que se encontra-
ba el territorio y la sociedad egipcia, culpa al dios creador por haber
permitido que la maldad de los hombres anidara en sus corazones y
le reprocha el no haber actuado en su momento para remediar el mal
en el mundo. De este modo, a partir de su comparación con otros tex-

5  BERNSTEIN, Richard. El mal radical. Una indagación filosófica. Buenos Aires: Lil-
mod, 2005, p. 17.
6  HOFFNER, Harry. “Theodicy in Hittite Texts”. En A. Laato y J. de Moor (eds.). Theo-
dicy in the World of the Bible. Leiden: Brill, 2003, p. 90.
7  El primer análisis literario del texto de las Admoniciones de Ipuwer, junto con
su traducción, fue realizado por Alan Gardiner (1909), en su obra The Admonitions
of an Egyptian Sage, from a Hieratic Papyrus in Leiden (Pap. Leiden 344 recto). Se
destacan a su vez las traducciones y análisis de Raymond Faulkner (FAULKNER, Ray-
mond. “Notes on the Admonitions of an Egyptian Sage”. JEA 50, 1964, pp. 24-36; Id.
“The Admonitions of an Egyptian Sage”. JEA 51, 1965, pp. 53-62), Miriam Lichtheim
(LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature: A Book of Readings. Vol. I: The Old
and Middle Kingdom. Berkeley: University of California Press, 1973, pp. 149-163);
Wolfgang Helck (HELCK, Wolfgang. Die “Admonitions”: Pap. Leiden I 344 recto. KÄT
11. Wiesbaden: Harrassowitz, 1995); Richard Parkinson (PARKINSON, Richard. The
Tale of Sinuhe and Other Ancient Egyptian Poems, 1940-1640 BC.). Oxford: Oxford
University Press, 1998, pp. 166-199; Id. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt:
a Dark side to perfection. Londres: Continuum, 2002, pp. 204-216); Vincent Tobin
(TOBIN, Vincent. “The Admonitions of an Egyptian Sage”. In SIMPSON, W. K. (org.).
The Literature of Ancient Egypt: An Anthology of Stories, Instructions and Poetry.
3ra Edición. New Heaven: Yale University Press, 2003, pp. 188-210); Stephen Quirke
(QUIRKE, Stephen. Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Londres:
Golden House Publications, 2004, 140-150) y Roland Enmarch (ENMARCH, Roland.
The Dialogue of Ipuwer and the Lord of All. Oxford: Griffith Institute, 2005; Id. A
World Upturned. Commentary on and Analysis of The Dialogue of Ipuwer and the
Lord of All. Oxford: Oxford University Press, 2008a).
68 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
tos egipcios del mismo período que presentan una teodicea, se busca
identificar las razones y los motivos que habrían llevado a la clase diri-
gente egipcia de aquél período a introducir tales temas y abordajes en
dichos textos. En otras palabras, nos interesa reflexionar sobre el Reino
Medio egipcio como contexto particular de florecimiento de esta te-
mática, en donde el recuerdo caótico del Primer Período Intermedio
(2181-2055 a. C.) habría permeado en la memoria cultural egipcia la
idea de la imperfección del mundo, la cual se habría conjugado con la
existencia del mal entre los hombres. Es en base a este contexto que
nos proponemos pensar cómo el recurso de la teodicea pudo haber
formado parte de la legitimación del Estado faraónico durante el Reino
Medio egipcio.

1 El problema de la teodicea y el origen del mal

El termino teodicea fue acuñado por el filosofo alemán Gott-


fried Leibniz en 1710 en una obra titulada “Teodicea. Ensayos sobre la
bondad de Dios, la libertad del hombre y el origen del mal” en la cual
apuntaba a demostrar que el mal en el mundo no implicaba necesaria-
mente una contradicción con la bondad de Dios. Así, de acuerdo con su
definición, una teodicea se caracterizaría por explicar la existencia del
mal en los hombres y en el mundo al tiempo que justificaba la bondad
de Dios8. Al respecto, vale la pena aclarar que la concepción de teodi-
cea como una justificación de Dios ante los males del mundo elabora-
da por Leibniz se refería sólo al mundo cultural judeo-cristiano.
Más recientemente, el problema de la teodicea ha sido ana-
lizado también desde el ámbito de la sociología de las religiones por
el sociólogo alemán Max Weber, quien en su clásica obra “Economía y
Sociedad. Esbozo de sociología comprensiva” incurrió en la problemá-
tica de cómo conjugar la existencia de un dios universal con la imper-

8  LEIBNIZ, Gottfried. Teodicea. Ensayos sobre la bondad de Dios, la libertad del hom-
bre y el origen del mal. Buenos Aires: Claridad, 1946; FAZIO, Rodolfo. “Dios ante el
mal. La teodicea leibniziana”. In: BILDERLING, B. Von (org.). Tras los pasos del mal:
una indagación en la filosofía moderna. Buenos Aires: Eudeba, 2009, p. 57.
Volume 1 69
fección del mundo y la existencia del mal. De acuerdo con su análisis,
este problema se encontraba presente no sólo en la religión judeo-cris-
tiana, sino también en la literatura del antiguo Egipto e India en donde
el orden impersonal y supradivino de un mundo lleno de sentido, se
encuentra con el problema de su imperfección y la maldad.9
Así, la conjunción entre el sufrimiento de los hombres, el pro-
blema del origen y la existencia del mal conjuntamente con la existen-
cia y la bondad de dios ha sido una problemática de carácter religioso
y filosófico presente en varias sociedades a lo largo de la historia. Y
entre las sociedades que han abordado esta problemática nos encon-
tramos pues con las sociedades del Cercano Oriente Antiguo, en donde
el motivo del reproche a lo divino ha sido un motivo religioso presente
tanto en discursos míticos como literarios10. Sin ir más lejos, uno de
los estudios comparativos sobre este motivo ha sido el realizado por
Dorothea Sitzler (1995) quien en base al análisis de una serie de textos
egipcios11 y mesopotámicos12 ha argumentado cómo el reproche divi-
no operaría en estas sociedades como un mecanismo de legitimación
política y religiosa que emergería en determinados momentos límites
de aquellas culturas.13 Asimismo, también se destaca en esta temática
la compilación editada por Antii Laato y Johannes de Moor (2003) en
donde especialistas en asiriología, egiptología y estudios bíblicos reali-
zaron aportes al estudio del problema de la teodicea en las sociedades
egipcia, acadia, hitita, hebrea y cristiana.
Ahora bien, en lo que al antiguo Egipto se refiere, la proble-
mática de la teodicea emerge en algunos discursos míticos, literarios y

9  WEBER, Max. Economía y sociedad. Esbozo de sociología comprensiva. México:


Fondo de Cultura Económica, 1984, p. 412.
10  SITZLER, Dorothea. Vorwurf gegen Gott. Ein religiöses Motiv im Alten Orient
(Ägypten und Mesopotamien). Wiesbaden: Harrassowitz, 1995.
11  Los textos egipcios que presenta son: El conjuro 1130 de los Textos de los Sar-
cófagos; las Instrucciones para Merikara, las Admoniciones de Ipuwer y las Palabras
de Heliópolis.
12  La autora toma para su estudio cuatro textos mesopotámicos: El Job Sumerio; el
texto babilonio de Un hombre y su dios (AO 4462); el texto de Ludlul bel nemequi, y
la Teodicea babilónica.
13  Esta temática podemos encontrarla también en el Antiguo Testamento en el Li-
bro de Job, el cual es considerado como un justo sufriente (Cf. ASSMANN, Jan. The
Search for God in Ancient Egypt. Londres: Cornell University Press, 2001, p. 169).
70 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
biográficos14 en donde los temas prominentes son la existencia del mal
o del caos en la sociedad. Los egipcios concebían su mundo en térmi-
nos de la dualidad orden-caos15. El orden se encontraba asociado con
la virtud de maat que expresaba los valores de la justicia, el equilibrio
y la verdad. Mientras que el caos, se asociaba a isfet, el desorden. Así,
de acuerdo con su visión del mundo, el bien y el mal se asociaban con
esos principios cósmicos del orden y el caos16, y el soberano era el úni-
co encargado de garantizar el orden, maat, sobre la tierra a imagen de
cómo el dios creador lo hacía en un nivel cósmico17. De esta forma, en
las expresiones que incluían una teodicea y se cuestionaba la justicia
divina por haber permitido tal situación, lo que emergía de fondo era
el problema del origen del mal en el mundo, es decir cómo compati-
bilizar la idea que el mundo, cuya creación era obra del dios creador
y de su bondad, sea un mundo en el que habitaba el mal. Al respecto,
desde el ámbito de la egiptología se ha presentado un debate entre
los autores que sostienen que para los antiguos egipcios el mal habría
emergido luego de la creación del mundo y entre aquellos egiptólogos
que afirman que los antiguos egipcios creían que el mal se encontraría
presente en el momento mismo de la creación, o que lo precede. Y en
relación con ello, uno podría preguntarse si el mundo fue creado per-
fecto o imperfecto desde su origen18.
Entre los autores que consideran que el origen del mal para
los antiguos egipcios habría aparecido luego de la creación del mundo
encontramos al egiptólogo alemán Jan Assmann quien sostuvo que lo
habrían situado en lo que se conoce como “la primera ocasión”, esto es

14  ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WENDRICH, W. (org.), UCLA
Encyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of California, 2008b, p. 1. Dis-
ponivel em: http://escholarship.org/uc/item/7tz9v6jt.
15  PARKINSON, Richard. Voices from Ancient Egypt: An Anthology of Middle King-
dom Writings. Londres: British Museum Press, 1991a, p. 31.
16  ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WENDRICH, W. (org.), UCLA
Encyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of California, 2008b, p. 1. Dis-
ponivel em: http://escholarship.org/uc/item/7tz9v6jt.
17  PARKINSON, Richard. Voices from Ancient Egypt: An Anthology of Middle King-
dom Writings. Londres: British Museum Press, 1991a, p. 31; RICHARDS, Janet. Soci-
ety and Death in Ancient Egypt: Mortuary Landscapes of the Middle Kingdom. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2005, p. 19.
18 KEMBOLY, Mpay. The Question of Evil in Ancient Egypt. Londres: Golden House
Publications, 2010, p. 1.
Volume 1 71
cuando el dios creador Atum dejó de ser uno para convertirse en tres y
engendró a Shu y a Tefnut, iniciándose de este modo el ciclo solar.19. A
su vez, Assmann20 sostiene que la creencia egipcia sobre el origen del
mal debe buscarse en la separación del cielo de la tierra, cuando Ra de-
cide abandonar la tierra a causa de la rebelión de los hombres contra
su gobierno divino y crea el cielo para residir allí junto a los dioses. Este
suceso mítico se encuentra en el Libro de la Vaca celeste,21 en lo que se
conoce como el mito de la Destrucción de la Humanidad el cual refiere
a una época pasada en la cual los dioses habitaban en la tierra junto
con los hombres. En dicho mito se narra cómo la humanidad se ha re-
belado contra el dios creador y gobernante Ra, a quien se lo describe
como envejecido. Ante esta situación, Ra decide castigarlos y manda a
su ojo en calidad de Hathor para destruir la humanidad. Sin embargo,
se relata cómo Ra se arrepiente y decide frenar la destrucción total del
género humano y retirarse del gobierno en la tierra, creando el cielo,
desde donde ahora residirían los dioses, separados de la humanidad.22
Así Assmann23 observa en este mito la explicación de cómo se habría
originado e ingresado el mal en el mundo a causa de la rebelión de los
hombres. Similar línea interpretativa acerca de la creencia egipcia del
mal en el mundo presenta Mpay Kemboly24 para quien si el mal no se
encontraba presente en la creación, este no puede haber preexistido

19 ASSMANN, Jan. Ma´at: Gerechtigkeit und Unsterblichkeit im Alten Ägypten. Mu-


nich: Beck., 1995; KEMBOLY, op. cit, p. 7.
20  ASSMANN, J, op. cit, p. 174-177; ASSMANN, J. “Maat und die gespaltene Welt
oder: Ägyptertum und Pessimismus”, GM 140, 1994, p. 94.
21  Dicho relato mitológico se encuentra en las tumbas reales de Tutankamon, Seti
I, Ramses II, Ramses III y Ramses IV. Si bien lo encontramos en tumbas del Reino
Nuevo (1550-1069 a. C.) se presume que su transmisión proviene del Reino Medio
(LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature: A Book of Readings. Vol. II: The
New Kingdom. Berkeley: University of California Press, 1976, pp. 197-198).
22  BRUNNER-TRAUT, Emma. Cuentos del Antiguo Egipto. Madrid: Edaf, 2000, pp.
111-116; LICHTHEIM, M., op. cit., 1976, pp. 197-199; ASSMANN, Jan. The Search for
God in Ancient Egypt. Londres: Cornell University Press, 2001, pp. 112-116; PINCH,
Geraldine. Handbook of Egyptian Mythology. California: ABC-CLIO, 2002, pp. 74-75;
WENTE, Edward. “The Book of the Heavenly Cow”. In: SIMPSON, W. K. (org.). The
Literature of Ancient Egypt: An Anthology of Stories, Instructions and Poetry. 3ra
Edición. New Heaven: Yale University Press, 2003, pp. 289-298.
23  Assmann, Jan. Ma´at: Gerechtigkeit und Unsterblichkeit im Alten Ägypten. Mu-
nich: Beck, 1995, p. 175.
24  KEMBOLY, M., op. cit, p. 188.
72 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
a tal acontecimiento y por tanto habría sido introducido en el mundo
luego de la creación.
Por otro lado, entre quienes se encuentran en una posición
diametralmente opuesta a la de Assmann contamos a Erik Hornung25,
quien sostuvo que el mal, para los antiguos egipcios, era un elemento
del no-ser, era inherente a la no-existencia y por lo tanto habría pre-
cedido a la creación del mundo y a los dioses. De este modo, ni los
dioses, ni los hombres serían responsables por el origen del mal26. Así,
de acuerdo a la opinión e interpretación de Hornung27 puesto que no
se podía culpar ni hacer responsable a los dioses por la existencia del
mal, el problema de la teodicea no ocuparía un lugar, dado que no
habría necesidad alguna de una justificación divina contra la injustica
y el mal en el mundo, al tiempo que la misma divinidad era quien solía
jactarse de luchar contra un mal que no había originado. Sin embargo,
la evidencia procedente del conjuro 1130 de los Textos de los Sarcófa-
gos28 del Reino Medio -texto que analizaremos en relación con las Ad-

25  HORNUNG, Erik. El uno y los múltiples. Concepciones egipcias de la divinidad.


Madrid: Trotta, 1999a, p. 197.
26  KEMBOLY, Mpay. The Question of Evil in Ancient Egypt. Londres: Golden House
Publications, 2010, p. 32.
27  HORNUNG, E., op. cit., loc. cit.
28  Los Textos de los Sarcófagos representan la colección más grande de textos fune-
rarios y religiosos del antiguo Egipto puesto que incluyen 1185 conjuros sin contar con
los que fueron copiados de los Textos de las Pirámides del Reino Antiguo (LESKO, Leon-
ard. The Ancient Egyptian Book of Two Ways. Berkeley: University of California Press,
1972, p. 2). Los ejemplos más antiguos conservados de estos textos proceden de la
necrópolis de Balat, en el oasis de el-Kharga y serían datados de fines del Reino Anti-
guo, mientras que la gran mayoría de los Textos de los Sarcófagos procede de los ce-
menterios de los nomarcas del Egipto Medio durante la dinastía XII ubicados en Asyut,
Beni Hasan, Deir el Bersha y el-Lisht (HORNUNG, Erik. The Ancient Egyptian Books of
the Afterlife. Ithaca: Cornell University Press., 1999b, p. 7). Estos textos contienen un
conjunto de fórmulas, conjuros o encantamientos destinados a asegurar el paso y la
vida del difunto en el Más Allá escritos en sarcófagos -de allí su denominación- desde
fines del Reino Antiguo y que serán típicos en los enterramientos del Reino Medio
(LESKO, op.cit, p. 2-3; PARKINSON, Richard. Voices from Ancient Egypt: An Anthology
of Middle Kingdom Writings. Londres: British Museum Press, 1991; Hornung, op. cit,
pp. 7-12). La colección completa de los Textos de los Sarcófagos fue transcripta, edi-
tada y publicada en siete volúmenes por Adriaan de Buck entre los años 1935 y 1961.
En dicha edición también colaboró Gardiner. Por su parte Faulkner ha publicado entre
los años 1972 y 1978 tres volúmenes con las traducciones al inglés de dichos textos.
De reciente aparición, Allen (ALLEN, James. The Egyptian Coffin Texts. Vol. 8. Middle
Volume 1 73
moniciones de Ipuwer más adelante- nos presentan una justificación
por parte del dios creador Atum ante un reproche divino, por lo cual
consideramos que es imposible que el problema de la teodicea no
ocupe un lugar en la sociedad egipcia como lo sostiene Hornung.
Con todo, en las expresiones y los discursos que habrían con-
tenido una teodicea o un reproche divino en el Reino Medio egipcio,
el patrón que emerge es siempre el mismo. La divinidad a la cual se le
reprocha y cuestiona asume generalmente el rol de un dios creador y
es vinculado con una divinidad solar a la cual se le acusa -a pesar de
su benevolencia divina- por haber permitido la maldad en el mundo29.
Generalmente dicha divinidad se encuentra personificada en las figu-
ras de Atum, Ra o en el sincretismo de Atum-Ra.
Ahora bien, de entre los discursos y expresiones del Reino
Medio cuyo contenido enmascara un reproche a la divinidad y una te-
odicea, el texto de las Admoniciones de Ipuwer es uno de los mejores
exponentes dado que contiene una crítica directa a la figura del dios
creador por los males y el desorden que acechaban a Egipto en los
tiempos de su relato.

2 Teodicea y justificación divina en las


Admoniciones de Ipuwer

Decíamos anteriormente que en el texto de las Admoniciones de


Ipuwer podíamos encontrar evidencia de un reproche a lo divino en el
marco de una teodicea, así como también una defensa a dichos reproches.
El relato egipcio conocido con el nombre de las Admoniciones
de Ipuwer se encuentra conservado en un papiro30 de época ramésida

Kingdom Copies of Pyramid Texts. Chicago: The Oriental Institute of the University of
Chicago, 2006) ha añadido un octavo volumen a la colección de de Buck en la cual
transcribe las copias de los Textos de Pirámides durante el Reino Medio.
29  ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WNDRICH, W. (org.), UCLA En-
cyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of Chicago s/r (http://escholarship.
org/uc/item/7tz9v6jt), 2008b, p. 1.
30  El texto se encuentra en el anverso del Papiro Leiden I 344, conservado actual-
mente en el Museo Nacional de Antigüedades de Leiden, Holanda.
74 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
(dinastía XIX), cuya redacción originaria puede remontarse a la dinas-
tía XIII31.32 El principio y el final del texto se encuentran perdidos y en

31  PARKINSON, Richard. Voices from Ancient Egypt: An Anthology of Middle King-
dom Writings. Londres: British Museum Press, 1991a, p. 60.
32  En cuanto a su datación, a partir de una lectura histórica y demasiado literal
del texto, algunos autores han considerado que las Admoniciones de Ipuwer rela-
taba una serie de sucesos acaecidos a fines del Reino Antiguo o durante el Primer
Período Intermedio y que habrían sido compuestas en este último período o a ini-
cios del Reino Medio (GARDINER, Alan. The Admonitions of an Egyptian Sage, from
a Hieratic Papyrus in Leiden (Pap. Leiden 344 recto). Leipzig: J. C. Hinrichs, 1909,
pp. 112; ERMAN, Adolf. The Literature of the Ancient Egyptians: poems, narratives
and manuals of instruction from the third and second millennia B.C. (A.M. Blackman,
trans). Londres: Methuen, 1927, pp. 93; PIRENNE, Jacques. “Le statut des hommes
libres pendant la première féodalité dans l´ancienne Égypte”. Archives d´Histoire du
Droit Oriental 3. Bruselas: Nouvelle Société d´Editions, 1948, pp. 128-133; SPIEGEL,
Joachim. Soziale und weltanschauliche Reformbewegungen im alten Ägypten. Hei-
delberg: F. H. Kerle, 1950, p. 44; BELL, Barbara. “The Dark Ages in Ancient History. I.
The First Dark Age in Egypt”. AJA Vol. 75 Nº 1. (Enero), 1971, pp. 11-14; FAULKNER,
Raymond. “The Admonitions of an Egyptian Sage”. En W. K. Simpson (ed.). The Litera-
ture of Ancient Egypt: An Anthology of Stories, Instructions and Poetry. Londres: Yale
University Press, 1973a, pp. 210; KADISH, Gerald. “British Museum Writing Board
5645: The Complaints of Kha-kheper-re-senebu”. JEA 59, 1973, pp. 88-89; REDFORD,
Donald. Pharaonic King-lists, annals and day-books. A contribution to the study of the
Egyptian sense of history. Mississauga: Benben Publications, 1986, pp. 144; HASSAN,
Fekri. “Droughts, Famine and the Collapse of the Old Kingdom: Re-Reading Ipuwer”.
In: HAWASS, Z.; RICHARDS, J. (org.). The Archaeology and Art of Ancient Egypt. Essays
in Honor of David B. O`Connor. Vol. I. El Cairo: Conseil Supréme des Antiquités de
l`Égypte, 2007, pp. 363; REYES, José Carlos Castañeda. Sociedad Antigua y respuesta
popular: Movimientos sociales en Egipto Antiguo. Iztapalapa: Plaza y Valdés Edito-
res. Universidad Autónoma Metropolitana, 2003, 200-201; _____________. Señoras
y esclavas: el papel de la mujer en la historia social del Egipto antiguo. México: El
Colegio de México, 2008, p. 346; __________. “Of Women, Mirrors and the ‘Social
Revolution’ (“Admonitions”: 8,5)”. GM 225, 2010, pp. 43-44). Una datación a media-
dos de la dinastía XII o durante la etapa final del Reino Medio, esto es entre el reinado
de Sesostris III y la primera mitad de la dinastía XIII, fue propuesta por otros autores
a partir de ciertos criterios lingüísticos presentes en el papiro, así como por las cone-
xiones y la intertextualidad que presenta el texto de las Admoniciones de Ipuwer con
otros textos afines del Reino Medio (LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Litera-
ture: A Book of Readings. Vol. I: The Old and Middle Kingdom. Berkeley: University of
California Press, 1973, p. 149; OCKINGA, Boyo. “The Burden of Khakheperresonbu”.
JEA 69, 1983, p. 93; VERNUS, Pascal. Future at Issue: Tense, Mood and Aspect in Mid-
dle Egyptian. Studies in Syntax and Semantics. Yale Egyptological Studies 4: New Hav-
en: Yale Egyptological Seminar, 1990, pp. 189-190; PARKINSON, Richard. Voices from
Ancient Egypt: An Anthology of Middle Kingdom Writings. Londres: British Museum
Press, 1991ª, p. 60; Id. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt: a Dark side to
Volume 1 75
él intervienen dos personajes principales, Ipuwer33 y el Señor de To-
do.34 La obra trata sobre una situación particular en la cual se relatan
una serie de sucesos caóticos que hacen referencia a los recuerdos
-que se habrían elaborado durante el Reino Medio- del Primer Período
Intermedio. El orden se altera producto de una revolución social, los

perfection. Londres: Continuum, 2002, p. 308; ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eter-
nidade. A literatura no Egito faraônico. San Pablo: Editora Universidade de Brasilia,
2000, p. 176; TOBIN, Vincent. “The Admonitions of an Egyptian Sage”. In: SIMPSON,
W. K. (org.). The Literature of Ancient Egypt: An Anthology of Stories, Instructions and
Poetry. 3ra Edición. New Heaven: Yale University Press, 2003, pp. 188; QUIRKE, Ste-
phen. Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Londres: Golden House
Publications, 2004, pp. 140; ENMARCH, Roland. A World Upturned. Commentary on
and Analysis of The Dialogue of Ipuwer and the Lord of All. Oxford: Oxford University
Press, 2008ª, p. 24). Una fecha diferente de datación para el relato fue planteada
por John Van Seters (SETERS, John Van. “A Date for the Admonitions in the Second
Intermediate Period”. JEA 50, 1964: 23) quien, si bien acepta el valor histórico del
texto, postula como escenario histórico del relato al Segundo Período Intermedio
(1650-1550 a. C.).
33  Literalmente Ipu-ur (Ipu el grande o Ipu el sabio). A partir del estudio realizado
por Gardiner (GARDINER, Alan. The Admonitions of an Egyptian Sage, from a Hieratic
Papyrus in Leiden (Pap. Leiden 344 recto). Leipzig: J. C. Hinrichs.) se ha generalizado
el uso del nombre Ipuwer con el cual lo identificamos en este trabajo. Según Erman
(ERMAN, Adolf. The Literature of the Ancient Egyptians: poems, narratives and man-
uals of instruction from the third and second millennia B.C. (A.M. Blackman, trans).
Londres: Methuen, 1927, p. 93), de acuerdo a las menciones que se hacen al tesoro
y a los almacenes reales, Ipuwer sería uno de los oficiales del tesoro. Por su parte,
Parkinson (PARKINSON, Richard. The Tale of Sinuhe and Other Ancient Egyptian Po-
ems, 1940-1640 BC.). Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 166; PARKINSON, R.,
2002, op. cit. p. 308) y Assmann (ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de un sentido. Mad-
rid: Abada editores, 2005, pp. 139) lo asocian con un Jefe de los Cantores, llamado
Ipuwer, que aparece en una lista junto con diversos autores literarios conocidos del
pasado, en el Fragmento Daressy procedente de una tumba ramésida en Saqqara.
34  El Señor de Todo ( nb-r-Dr lit. Señor del Límite) es un título utilizado ge-
neralmente para referirse al dios creador. Sin embargo, también puede ser aplicado
como un epíteto del faraón (PARKINSON, R., 2002, op. cit., pp. 205; QUIRKE, Stephen.
Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Londres: Golden House Publi-
cations, 2004, p. 140; ENMARCH, R., op. cit., 2008a, p. 30). Dicho título aparecerá
durante el Primer Período Intermedio y sobre todo en el Reino Medio en los denomi-
nados Textos de los Sarcófagos. La evidencia procedente de los Textos de los Sarcófa-
gos nos permite relacionar dicho título con un epíteto vinculado a ciertas divinidades
creadoras, sobre todo con las figuras omnipotentes de Atum, el dios primigenio, Ra
o el sincretismo de Atum-Ra (WESTENDORF, Wolfhart. “Allherr”. LÄ I, 1975, pp. 136-
137; HORNUNG, Erik. El uno y los múltiples. Concepciones egipcias de la divinidad.
Madrid: Trotta, 1999a, p. 157).
76 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
extranjeros invaden la tierra, los nomos son devastados, los ricos se
hacen pobres, los pobres ricos, el malestar y la inseguridad prevalecen
por todo Egipto, los documentos legales y las escrituras son destrui-
dos y la anarquía social se expande mientras los valores culturales son
quebrantados ante la mirada indiferente de la sociedad. Asimismo, en
el relato se apela al recuerdo de los buenos viejos tiempos cuando las
ofrendas eran realizadas ante los dioses, las leyes se respetaban y la
autoridad egipcia ejercía su dominio sobre el Estado, manteniendo el
orden político y social, apelando al recurso de un pasado dorado que
es necesario recuperar.
Dichas escenas son representadas literariamente por un sabio
egipcio, Ipuwer, que se presenta ante la corte de un faraón35 -asociado
bajo la figura del Señor de Todo- reprochándole por los males que ace-
chan su tiempo. Así, en el diálogo que mantiene con el Señor de Todo,
Ipuwer llega a culpar al dios creador y al faraón por la actual situación
de Egipto e insta a este último a actuar para restaurar el orden. Sin em-
bargo, el Señor de Todo parece replicarle que el mal y el caos en Egip-
to es producto de los hombres, desligando de toda responsabilidad al
dios creador, a los dioses y a sí mismo de ello. Al no poseer el final del
relato, el dilema parece quedar irresuelto. Con todo, lo interesante del
texto es que en medio de esas lamentaciones y reproches se indaga
acerca del porqué de esta situación caótica y sobre la responsabilidad
que el faraón, el dios creador y la humanidad tienen respecto de ello.
Ahora bien, decíamos que el reproche a lo divino es realizado
por Ipuwer al dios creador a través de su intermediario, el faraón, a
quien el texto identifica con el título de Señor de Todo (nb-r-Dr). En
dicho reproche que Ipuwer le trasmite al faraón, acusa al dios creador
por haber permitido la pervivencia de la maldad en la humanidad en
los tiempos primordiales cuando la misma se habría rebelado contra
su mandato divino:

35  No se menciona en el texto ninguna referencia sobre el nombre del faraón. Algu-
nos autores sugieren la posibilidad de que pudo haber estado mencionado en alguna
de las primeras líneas que se encuentran perdidas (TOBIN, Vincent. “The Admoni-
tions of an Egyptian Sage”. In: SIMPSON, W. K. (org.). The Literature of Ancient Egypt:
An Anthology of Stories, Instructions and Poetry. 3ra Edición. New Heaven: Yale Uni-
versity Press, 2003, pp. 189).
Volume 1 77
“Mira, ¿Por qué él busca modelar a los [hombres] (cuando)
no se puede distinguir un tímido de un violento? (Cuando) él
trae la frescura sobre lo caliente, uno dice: ‘El es el pastor de
todos, no hay maldad en su corazón.’ (Aunque) su rebaño es
escaso, él ha pasado el día (entero) cuidándolo. ¡Hay fuego
en sus corazones! Ojalá él hubiera percibido el carácter de la
primera generación (así) él hubiera podido reprimir los ma-
les, estirando su brazo contra ella y destruido su rebaño y su
herencia” (Adm. 11,13-12).36

Claramente en este pasaje se está reprochando cierta desa-


tención por parte del dios creador que no pudo percibir en su momen-
to la maldad de la humanidad y aniquilarla para siempre. En este sen-
tido, creemos que el mal al que se alude refiere a una posible rebelión,
por parte de los hombres de la primera generación,37 contra el dios
creador. Esta situación nos remite a la narrada en el mito de la Des-
trucción de la Humanidad -mito al que nos referimos previamente- en
el cual el dios creador Ra no dudó en aniquilar a los rebeldes, aunque
sin embargo luego los perdonó y permitió que su herencia continuara,
que es en efecto lo que reprocha Ipuwer en sus admoniciones.
Ahora bien, en relación con este pasaje de las Admoniciones
Eberhard Otto38 fue el primer autor en interpretar dicho texto como
una teodicea en la cual se enfrentaban la humanidad, representada
por Ipuwer, y el dios creador en torno a la cuestión de la responsabi-
lidad divina por la maldad de los hombres. Similar opinión encontra-
remos en el estudio de Winfried Barta39 para quien el reproche que le
realiza Ipuwer al dios creador giraría en torno al problema de no haber
reconocido en sus inicios las imperfecciones y deficiencias de carác-

36  Todas las traducciones del texto de las Admoniciones de Ipuwer que aquí se
transcriben son propias.
37  La primera generación de hombres es la seguida a la edad de la creación del
mundo por Ra. Véase A. Rosenvasser (ROSENVASSER, Abraham. “Reproches a Ra por
la Injusticia de los Hombres”. Cuadernos del Sur Nº 14. Bahía Blanca: Departamento
de Humanidades. Universidad Nacional del Sur, 1981, pp. 225)
38  OTTO, Eberhard. Der Vorwurf an Gott: Zur Entstehung der ägyptischen Auseinan-
dersetzungsliteratur. Vorträge der Orientalistischen Tagung in Marburg. Ägyptologie.
Hildesheim: Gerstenberg, 1951, pp. 6-8
39  BARTA, Winfred. “Das Gespräch des Ipuwer mit dem Schöpfergott”. SAK 1, 1974,
pp. 19-33.
78 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ter de los seres humanos, criticándole al mismo dios la pasividad que
tuvo al no haberla extinguido cuando tuvo la oportunidad. Asimismo,
Otto40 sostuvo que los reproches humanos al dios creador debieron de
enmarcarse con el colapso del Reino Antiguo (2686-2181 a. C.), en un
momento de grandes cuestionamientos políticos y religiosos. De esta
manera, a nuestro entender, la alusión a ese pasado mitológico que
aludía al origen del mal entre los hombres implicaba remarcar las im-
perfecciones de la creación y la crisis de los valores e ideas que habría
atravesado Egipto en el Primer Período Intermedio, cuando la autori-
dad de la monarquía egipcia fue vulnerada por los poderes locales de
los nomarcas, y con ello su ideología.
De este modo, en dicho pasaje del texto de las Admonicio-
nes de Ipuwer emergería la problemática sobre el origen del mal en el
mundo, adscribiendo su causa en último término al dios creador, pues-
to que él habría sido quien permitió la supervivencia de los hombres
cuando la maldad anidó en sus corazones. Así, su pasividad y su falta
de acción habrían permitido la existencia del mal.
Sin embargo, y pese a encontrarse en estado fragmentario,
hacia el final del papiro que contiene el texto de las Admoniciones de
Ipuwer puede observarse una respuesta por parte del Señor de Todo
(nb-r-Dr) -el faraón- a Ipuwer, en la cual sostiene que el mal y el caos
en Egipto es producto de los hombres, desligando de toda responsa-
bilidad al dios creador y a los dioses de ello. Así lo sostiene cuando
responde a Ipuwer por las invasiones extranjeras y proclama que dicha
situación se habría producido debido a las luchas internas entre los
propios egipcios, preguntándose asimismo el por qué de dicha violen-
cia que ha sido originada por los propios hombres:

“¿Cómo es posible esto (cuando) cada hombre (está) matan-


do a su hermano?” (Adm. 14, 14).

De esta forma también se deja entrever un cierto mensaje mo-


ral de que deben evitarse las luchas y discrepancias internas entre los
hermanos egipcios pues tal situación generaría que los de afuera, los

40  OTTO, Eberhard. Der Vorwurf an Gott: Zur Entstehung der ägyptischen Auseinan-
dersetzungsliteratur. Vorträge der Orientalistischen Tagung in Marburg. Ägyptologie.
Hildesheim: Gerstenberg, 1951, pp. 4-5.
Volume 1 79
devoren, es decir que los extranjeros aprovechen su lucha interna para
penetrar las fronteras y avanzar en el territorio egipcio sin freno alguno
saqueando y expropiando a los egipcios de sus propiedades y bienes.
Misma situación se produce hacia el final cuando el Señor de
Todo (nb-r-Dr) señala la pena que presentan los dioses por tal situa-
ción, lo cual infiere que no son ellos quienes la han causado, sino que
son los hombres quienes han generado el mal, puesto que de haber
sido el dios creador o los propios dioses quienes hubieran permitido el
mal, no deberían de sentir pesar por ello:

“Los dioses lloran por sus seguidores (que) han entrado en las
capillas funerarias; las estatuas son quemadas (y) las [tum-
bas] son destruidas (así como) los cadáveres de las momias”
(Adm. 16,13-14).

Así pues, el reproche realizado por Ipuwer pareciera tener


una especie de respuesta al desligar el Señor de Todo (nb-r-Dr) de
toda responsabilidad, al dios creador y a los dioses por los males que
aquejan a la sociedad egipcia. Se deja abierta así la posibilidad de un
libre albedrío por parte de la humanidad para actuar según su criterio.
Esto se relacionará sin lugar a dudas con uno de los conjuros de los
Textos de los Sarcófagos en donde se expresa y justifica la voluntad del
dios creador Atum o Ra -como el Señor de Todo (nb-r-Dr)- de haber
moldeado y creado a la humanidad sin mal alguno. Nos referimos al
conjuro 113041 en donde el dios creador justifica de haber creado a la
humanidad sin mal alguno:

“Yo hice a cada hombre como a su semejante. No ordené que


cometieran el mal. Son sus corazones los que desobedecen
lo que yo expresé.”42

Esta afirmación por parte del Señor de Todo (nb-r-Dr) es una


de las más explicitas declaraciones de la existencia de una justicia di-
vina por parte del dios creador43 y de su bondad, así como una justi-

41  CT VII 462d-464f (de Buck 1961).


42  Traducción propia. TS VII 463f-464b (de Buck 1961).
43  PARKINSON, Richard. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt: a Dark side to
perfection. Londres: Continuum, 2002, p. 131.
80 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ficación frente a los reproches de quienes afirmaban que el mal en
el mundo y entre los hombres se debía a su intención. Asimismo, la
justificación divina presente en este conjuro ha sido analizada y ob-
servada por Rosenvasser y por Assmann como una posible respuesta
a los reproches dirigidos al dios creador por Ipuwer.44 Sin embargo, de
acuerdo con nuestro punto de vista e interpretación de las Admonicio-
nes de Ipuwer, nos resulta imposible poder conjugar dicha respuesta
del Señor de Todo (nb-r-Dr) en los Textos de los Sarcófagos con los
reproches dirigidos por Ipuwer por una cuestión meramente cronoló-
gica. A saber, si sostenemos la idea que el texto de las Admoniciones de
Ipuwer habría sido elaborado y compuesto durante la dinastía XIII, es
imposible plantear la posibilidad de que un texto funerario encontrado
en los sarcófagos de dignatarios y funcionarios de la dinastía XII, o in-
cluso anteriores, pueda llegar a contener una respuesta a un reproche
que aún no había sido formulado por Ipuwer en dicho texto literario.
Ahora bien, esto no quita la posibilidad de que el conjuro 1130 de los
Textos de los Sarcófagos implique una respuesta a un cuestionamiento
y que pueda relacionarse con lo que más tarde nos narre Ipuwer. Pero
ese cuestionamiento y tamaña respuesta por parte del Señor de Todo
(nb-r-Dr) tiene, a nuestro entender, otro fin ligado con los cuestio-
namientos hacia la autoridad divina y faraónica que habría emergido
durante el Primer Período Intermedio frente a la idea de una imper-
fección del mundo creado y en donde se debían de buscar explicacio-
nes y justificaciones, tanto desde el mundo religioso como terrenal,
necesarias para reconciliar durante el Reino Medio esa imperfección y
superar el caos pasado.
Ahora bien, lo cierto es que poseemos en las Admoniciones
de Ipuwer uno de los mejores exponentes de un discurso literario que
incluye una teodicea y una justificación divina. Esta situación hace que
el texto pueda ser considerado como un modelo o ejemplo represen-
tativo sobre el problema de la teodicea, dado que si bien -como vere-
mos más adelante- otros textos literarios y religiosos del Reino Medio
apelan al discurso de la teodicea, en ninguno de ellos observaremos

44  ROSENVASSER, Abraham. “Reproches a Ra por la Injusticia de los Hombres”. Cua-


dernos del Sur Nº 14. Bahía Blanca: Departamento de Humanidades. Universidad
Nacional del Sur: pp. 227-228; ASSMANN, Jan. The Search for God in Ancient Egypt.
Londres: Cornell University Press, 2001, p. 175.
Volume 1 81
emerger al mismo tiempo el reproche a lo divino y la justificación divi-
na como sí ocurre en este texto. Al contrario, en dichos textos obser-
varemos un reproche o una justificación, pero jamás ambos argumen-
tos. Con todo, la pregunta que se nos presenta ahora es la de indagar
acerca de por qué habría aparecido dicha temática en este texto y por
qué en este período tan particular de la historia egipcia como lo fue el
Reino Medio. En nuestra opinión, la inclusión de un reproche a lo divi-
no operaría en este texto como una justificación ideológica y política
del Estado y la monarquía egipcia de la dinastía XIII, en un contexto de
circulación en el poder de varias elites ante la ausencia de una familia
dinasta real que garantice la estabilidad45, en donde por medio de tal
reproche y cuestionamiento se aludiría al único momento recordado
hasta entonces como caótico, imperfecto y en donde el mal entre los
hombre habría llevado a la disgregación del poder estatal egipcio y la
crisis de la monarquía egipcia como lo fue el Primer Período Interme-
dio. Al respecto, como señala Roland Enmarch46 el recurso de la teo-
dicea formaba parte de la legitimación del Estado faraónico, dado que
mediante ella, las acciones represivas y violentas del rey (o el dios)
eran necesarias para frenar las tendencias caóticas de la humanidad.

4 La emergencia de la teodicea durante el Reino


Medio

Sosteníamos previamente que el problema de la teodicea, el


reproche y la justificación divina habría emergido durante el Reino
Medio tanto en textos literarios como funerarios. De acuerdo con Ri-
chard Parkinson47 la teodicea era un asunto y un tema propio de la
cultura escrita del Reino Medio egipcio, dado que en los textos litera-
45  QUIRKE, Stephen. “Royal power in the 13th Dynasty”. In: QUIRKE, S. (org.). Mid-
dle Kingdom Studies. New Malden: SIA Publishing, 1991, p. 138.
46  ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WENDRICH, W. (org.), UCLA
Encyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of California, 2008b, p. 2. Dis-
ponivel em: http://escholarship.org/uc/item/7tz9v6jt.
47  PARKINSON, R. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt: a Dark side to per-
fection. Londres: Continuum, 2002, p. 131.
82 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
rios y discursos escritos conservados y procedentes de aquella época
es donde podemos encontrar los mejores ejemplos de esto. Entre los
textos literarios procedentes del Reino Medio que indagan y abordan
la problemática de la teodicea encontramos a las Instrucciones para
Merikara,48 el cuento del Campesino Elocuente49 y las ya mencionadas

48  El texto de las Instrucciones para Merikara relata las enseñanzas que el faraón
Kheti I le deja a su hijo Merikara como testamento político para que pueda ser un
buen rey. La obra se encuentra preservada en los siguientes papiros: Papiro Her-
mitage 1116A reverso; Papiro Moscú 4658 y Papiro Carlsberg 6 (QUIRKE, Stephen.
Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Londres: Golden House Publi-
cations, 2004, pp. 112). Algunas ediciones y traducciones sobre dicho texto pueden
encontrarse en: Lichtheim (LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature: A Book
of Readings. Vol. I: The Old and Middle Kingdom. Berkeley: University of California
Press, 1973: 97-109); Helck (HELCK, Wolfgang. Die Lehre für König Merikare. KAT.
Wiesbaden: Harrassowitz, 1988); Serrano Delgado (DELGADO, José Miguel Serrano
(1993). Textos para la Historia Antigua de Egipto. Madrid: Ediciones Cátedra, 1993:
90-96); Parkinson (PARKINSON, R., 2002, op. cit. pp. 248; Id. The Tale of Sinuhe and
Other Ancient Egyptian Poems, 1940-1640 BC.). Oxford: Oxford University Press,
1998, pp. 212-234;); Araújo (ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade. A literatu-
ra no Egito faraônico. San Pablo: Editora Universidade de Brasilia, 2000: 281-292) y
Quirke (QUIRKE, Stephen. Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings. Lon-
dres: Golden House Publications, 2004: 112-120).
49  La historia del Campesino Elocuente relata el robo que sufre un campesino (li-
teralmente sería un habitante del Oasis de la Sal), Khunanup, cuando se trasladaba
con su burro y sus mercancías, a manos de Djehutinakht. A causa de esta injusticia,
el campesino acude a la corte del gran intendente Rensi ante quien realiza nueve
súplicas en las cuales indaga sobre nociones de justicia y orden social. El campesino
se destaca por su gran elocuencia, lo que hace que se registren por escrito sus súpli-
cas para entretener el faraón hasta que finalmente el campesino es recompensado,
le son devueltos sus bienes, el delincuente es castigado y la justicia es alcanzada. El
texto se encuentra conservado en los siguientes papiros: Papiro Berlín 10499 (R);
Papiro Berlín 3023 (B1) y Papiro Berlín 3025 (B2). Véase Quirke (QUIRKE, S., 2004, op.
cit. 140-15, 2004: 151). Algunas ediciones y traducciones sobre este texto pueden
encontrarse en: Gardiner (GARDINER, Alan. “The Eloquent Peasant”. JEA 9, 1923, pp.
5-25); Lichtheim (LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature: A Book of Read-
ings. Vol. I: The Old and Middle Kingdom. Berkeley: University of California Press,
1973: 169-184); Faulkner (FAULKNER, Raymond. “The Admonitions of an Egyptian
Sage”. In: SIMPSON, W. K. (org.). The Literature of Ancient Egypt: An Anthology of
Stories, Instructions and Poetry. Londres: Yale University Press, 1973b, pp. 31-49);
Parkinson (PARKINSON, Richard. The Tale of the Eloquent Peasant. Oxford: Griffith
Institute, 1991b; Id. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt: a Dark side to per-
fection. Londres: Continuum, 2002, p. 168-182; Id. Reading Ancient Egyptian Poetry.
Among Other Histories. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009, pp. 295-315); Araújo (ARAÚ-
JO, Emanuel. Escrito para a eternidade. A literatura no Egito faraônico. San Pablo:
Volume 1 83
Admoniciones de Ipuwer en donde se explicita el mejor ejemplo de
esta temática50.
Las Instrucciones para Merikara presentan hacia el final lo
que podríamos catalogar como un himno dedicado al dios creador en
donde se manifiesta -de forma similar al conjuro 1130 de los Textos de
los Sarcófagos- la bondad divina que habría creado a la humanidad sin
mal alguno, a su imagen y semejanza, separando el cielo y la tierra para
ellos, otorgándoles el aliento de vida para sus corazones, creando las
plantas y los animales para que puedan vivir y cómo este dios creador
no habría dudado en su momento en aniquilar a sus hijos rebeldes que
estaban planeando conspirar contra él. En otras palabras, se presenta
un panegírico sobre la creación y la bondad divina en ella, frente a las
situaciones de maldad en el mundo:

“¡(Bien) gobernada está la humanidad, el ganado del dios! Él


ha hecho el cielo y la tierra para sus corazones; él ha expul-
sado al cocodrilo de las aguas. Él ha creado el aliento de vida
para que vivan sus narices. Ellos son imágenes suyas que han
salido de su cuerpo. Él brilla en el cielo para sus corazones.
Él ha creado para ellos las plantas, (así como) el ganado, las
aves y los peces para alimentarlos. Él mata a sus enemigos.
Él ha aniquilado a sus hijos, porque pensaban hacer una re-
belión. Él hace el amanecer para sus corazones (y) navega
para verlos. Él ha levantado un santuario alrededor de ellos,
(cuando) ellos lloran, él puede escucharlos. Él ha creado para
ellos gobernantes, desde el huevo, comandantes que se al-
zarán en el dorso del débil. Él ha creado la magia para ellos
como armas para reprimir el impacto de los acontecimientos,
vigilando sobre ellos tanto de día como de noche. Él ha mata-
do a los descontentos que había entre ellos como un hombre
golpea a su hijo a causa de su hermano. El dios conoce todos
los nombres” (Mer. 131-138).51

Editora Universidade de Brasilia, 2000, pp. 225-243); Lefebvre (LEFEBVRE, Georges.


Romans et Contes Égyptiens de l`Époque Pharaonique. París: Librairie de`Amérique
et d`Orient. Traducción de J. M. Serrano Delgado. Mitos y Cuentos egipcios de la
época faraónica. Madrid: Akal Oriente, 2003, pp. 67-89) y Quirke (QUIRKE, S., 2004,
op. cit. pp. 151-165).
50  ENMARCH, Roland. “Theodicy”. In: DIELEMAN, J.; WENDRICH, W. (org.), UCLA
Encyclopedia of Egyptology. Los Ángeles: University of California, 2008b, p. 2-3. Dis-
ponivel em: http://escholarship.org/uc/item/7tz9v6jt.
51  Traducción propia. Papiro Hermitage 1116a. Tomado de Helck (HELCK, Wolfgang.
84 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Por otro lado, en el cuento del Campesino Elocuente, el cam-
pesino indaga -en sus súplicas a Rensi- sobre nociones de justicia y ape-
la a un ideal de maat en el que se debería de conjugar la autoridad con
la responsabilidad en la toma de decisiones y en el gobierno. Así Parkin-
son52 señala que implícitamente emerge en sus súplicas la cuestión de
la teodicea al distinguir entre la realidad y el ideal de justicia a la hora de
marcar la responsabilidad en el proceso por parte de Rensi, funcionario
que debería encarnar y hacer prevalecer a maat en la tierra.
Ahora bien, el interrogante que se nos presenta es por qué la
problemática de la teodicea, los reproches y las justificaciones divinas
aparecen en este período de la historia egipcia y para qué. Los textos
literarios y funerarios del Reino Medio que hemos mencionado nos
presentan la idea y la noción de un mundo divino que ha sido cuestio-
nado por las imperfecciones presentes y la necesidad imperiosa de lo
divino de realizar una justificación u ofrecer una respuesta ante ese
reproche. Un mundo en el cual la rectitud de lo divino ha sido cues-
tionada53. Así lo expresan tanto las Admoniciones como Merikara y
el conjuro 1130 de los Textos de los Sarcófagos, en donde el creador
expresa su justificación de la bondad divina y acusa a los hombres y a
su libre albedrío de haber originado y causado los males por los cuales
son acusados los dioses.
Esta respuesta divina al problema de la teodicea en la cual la
rebeldía de los hombres y no el deseo de los dioses habrían causado
la imperfección en el mundo, habría sido conjugada con un discurso
político durante el Reino Medio -en el cual se articulaban los aspectos
sociales y religiosos presentes en estas teodiceas- para presentar al
disenso en términos de rebeldía contra el soberano54. Y esto habría
sucedido como consecuencia de la situación política propia del Reino
Medio, en donde la clase dirigente egipcia debió de hacer frente al

Die Lehre für König Merikare. KAT. Wiesbaden: Harrassowitz, 1988, pp. 83-87); Quack
(QUACK, Joachim. Studien zur Lehre für Merikare. Wiesbaden: Harrassowitz, 1992, p.
78) y Quirke (QUIRKE, Stephen. Egyptian Literature 1800BC. Questions and Readings.
Londres: Golden House Publications, 2004, p. 119).
52  PARKINSON, Richard. Poetry and culture in Middle Kingdom Egypt: a Dark side to
perfection. Londres: Continuum, 2002, pp. 173- 174.
53  ASSMANN, Jan. The Search for God in Ancient Egypt. Londres: Cornell University
Press, 2001, p. 177.
54  PARKINGSON, R., 2002, op. cit., p. 137.
Volume 1 85
cuestionamiento de su poder, al tiempo que dar cuentas del mismo
como consecuencia de una nueva realidad política y social luego del
colapso del Reino Antiguo y los procesos acaecidos durante el Primer
Período Intermedio.
Así lo entiende Assmann55 cuando sostiene que el Reino Me-
dio hunde sus raíces y construye su sentido a partir de la experiencia
pasada del Primer Período Intermedio en donde la imperfección del
mundo y la experiencia del mal se habrían conjugado. La crisis y el fin
del Reino Antiguo habrían puesto en duda la creencia de un mundo
justo, divino y perfecto, apareciendo así la imposibilidad de la reali-
zación de maat, lo cual habría llevado a la aparición de los primeros
cuestionamientos divinos56. De esta forma, ciertos textos literarios y
funerarios del Reino Medio habrían comenzado a incluir y abordar el
problema de la teodicea como un mecanismo de legitimación política
destinado a cohesionar y reconciliar -por medio de un discurso religio-
so- las imperfecciones pasadas con la obediencia estatal frente a los
plausibles cuestionamientos del poder y la autoridad estatal.
La idea de estos textos -que suelen incluir relatos míticos en
torno a la destrucción de la humanidad como un castigo divino- no es
otra más que marcar las imperfecciones de la creación y la crisis de
los valores e ideas a las cuales habría sucumbido Egipto en el Primer
Período Intermedio57. En este sentido, como señala Brunner-Traut “la
destrucción del mundo es un castigo sufrido en un pasado mítico que
se hizo realidad por primera vez en el período de decadencia entre el
Imperio Antiguo y el Imperio Medio.” 58
De esta manera, se intentaba marcar cómo el caos pasado del
Primer Período Intermedio habría sido causado por la rebelión de la
sociedad contra la autoridad faraónica y el Estado egipcio, de igual for-
ma en que la humanidad se había rebelado contra Ra, el dios creador,
en los tiempos mitológicos. Ahora bien, así como en el mito, el dios

55  ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de un sentido. Madrid: Abada editores, 2005,
p. 242.
56  ASSMANN, J., 2001, op. cit, 170.
57  ROSELL, Pablo Martín. “Mitos escatológicos en la literatura egipcia antigua”. In:
NÁPOLI, Juan Tobías; FASANO, Cristina Zecchin de; SUÁREZ, Luz Pepe de (org.). Actas
5to Coloquio Internacional Mito y Performance. De Grecia a la Modernidad. La Plata:
Universidad Nacional de La Plata, 2010a, pp. 647.
58  BRUNNNER-TRAUT, Emma. Cuentos del Antiguo Egipto. Madrid: Edaf., 2000, p. 316.
86 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
creador Ra decide darles una segunda oportunidad a los hombres, la
elite cultural del Reino Medio habría plasmado -mediante la literatura
que incluía teodiceas, reproches y justificaciones divinos- la imagen y
los valores de un nuevo mundo reconstruido, en donde las imperfec-
ciones de la creación habían sido corregidas.59 De esta manera, en el
Reino Medio se habría recuperado esa imperfección pasada conjunta-
mente con la experiencia del mal en aras de legitimar y darle sentido
a un nuevo mundo reconstruido.60 Así creemos que el recurso de la te-
odicea pudo haber sido empleado en los textos literarios y funerarios
del Reino Medio como un mecanismo de legitimación política durante
este período destinado a prevenir futuras rebeliones mediante la posi-
ble acción represiva de los soberanos -justificada en la emulación de lo
hecho por el dios creador en el plano mitológico- ante el desorden y el
cuestionamiento del orden.

Conclusion

En este trabajo hemos abordado la problemática de la teodicea


en el antiguo Egipto a partir de ciertos textos literarios y funerarios pro-
pios de un período particular como lo fue el Reino Medio egipcio. Así he-
mos partido de una definición del concepto de la teodicea considerada
como un intento por conciliar la existencia del mal y las imperfecciones
en un mundo divinamente creado y ordenado con la bondad divina.
De particular importancia para nuestro trabajo fue el análisis
de la teodicea presente en las Admoniciones de Ipuwer, texto en el
cual se expresa un claro reproche a la divinidad por la existencia del
mal y el caos en la tierra al tiempo que una justificación y exoneración
divina frente a tal acusación. El análisis comparativo de dicho texto
con otros ejemplos literarios y funerarios del período tales como las
Instrucciones para Merikara, el cuento del Campesino Elocuente y el

59  ROSENVASSER, Abraham. “Reproches a Ra por la Injusticia de los Hombres”. Cua-


dernos del Sur Nº 14. Bahía Blanca: Departamento de Humanidades. Universidad
Nacional del Sur, 1981, p. 230.
60  ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de un sentido. Madrid: Abada editores, 2005, p. 242.
Volume 1 87
conjuro 1130 de los Textos de los Sarcófagos en los que la problemá-
tica de la teodicea, el reproche a lo divino y su justificación también
aparecen, nos ha conducido a pensar en la posibilidad de una práctica
política religiosa y legitimadora de la teodicea durante el Reino Medio.
Así, hemos afirmado cómo durante este período se habría plasmado
mediante la literatura un discurso que, basado en el recuerdo caótico
que el Primer Período Intermedio había tenido para la memoria cul-
tural egipcia como un período de crisis, apelaba a las consecuencias
que podía tener una posible represión estatal por parte del soberano
contra sus desertores a imagen y semejanza de como lo había hecho
el dios creador en los tiempos primigenios cuando la humanidad se
rebeló contra su poder. De esta manera, el recurso de la teodicea in-
cluido tanto en las Admoniciones de Ipuwer como en los demás textos
del Reino Medio, habría actuado como un elemento preventivo de le-
gitimación necesario para paliar las tendencias rebeldes y destructivas
de ciertos integrantes de la sociedad, tanto en un contexto de reuni-
ficación política como lo fue la dinastía XII como en un contexto de
circulación y alternancia del poder entre las elites durante la primera
mitad de la dinastía XIII.

88 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


TENSIONES Y CONFLICTOS EN EL
MATRIMONIO OLÍMPICO:
CUANDO SE OFENDE A UNA DAMA

María Cecilia Colombani1

1 La luminosa descendencia femenina

El proyecto del presente trabajo consiste en analizar las re-


laciones vinculares entre Zeus y Hera en el Himno Homérico a Apolo,
donde un episodio propio de los conflictos y tensiones que atraviesan
a la pareja conyugal se deja ver, como en tantas otras ocasiones donde
el relato mítico releva los avatares del matrimonio. Nuestro intento es
analizar el episodio desde una perspectiva antropológica, tratando de
mostrar cómo juega el par reconocimiento-desconocimiento dentro
del dispositivo matrimonial. Creemos que el no reconocimiento entre
ambos cónyuges determina formas de violencia simbólica que consti-
tuyen una marca en el matrimonio.
El primer testimonio lo recogeremos de Hesíodo para luego,
en un trabajo de intersección textual, ir al Himno Homérico a buscar el
episodio y sobre todo, las alocuciones de Hera sobre la conducta de su
marido. El paso por Hesíodo obedece al orden progresivo de los matri-
monios de Zeus, hasta reconocer en Hera a su última esposa legítima.
Comenzaremos, entonces, con el acompañamiento del orden que el
poeta despliega para efectuar algunas reflexiones en torno al desen-
volvimiento de un linaje que es el motor mismo del orden aludido.
Pacificado el kosmos, luego de los relatos de la titanomaquia
y de la tifonomaquia, el poema cobra una dimensión decididamente
amorosa, con tintes de la particular erótica que se juega a partir del an-

1  Profesora Doctora María Cecilia Colombani. Profesora Titular Regular de Proble-


mas Filosóficos. Universidad de Morón. Profesora Titular de Historia de la Filosofía
Antigua. Universidad Nacional de Mar del Plata. Investigadora Principal SECyT, Uni-
versidad de Morón. Investigadora UBACyT, Universidad de Buenos Aires.
Volume 1 89
tropomorfismo que caracteriza a los dioses: “Zeus rey de dioses tomó
como primera esposa a Metis, la más sabia de los dioses y hombres
mortales” (Teogonía, 886-888). El primer matrimonio da cuenta de un
fenómeno significativo en el tópico que hemos recortado, ya que, por
reconocimiento del poder de Metis, de su astucia como pieza capital
de la identidad de la diosa, Zeus la engulle para neutralizar dicho po-
der. Al primer reconocimiento del don femenino, sigue el no reconoci-
miento de la posibilidad de que Metis permanezca por fuera del inte-
rior de su marido. Engullirla es invisibilizarla de algún modo, silenciarla
en su capacidad de acción, precisamente por el primer reconocimiento
de su peligrosidad, tan amenazante como todo poder femenino. Se
opera, pues, una singular paradoja: el reconocimiento inaugural es el
pasaporte al no reconocimiento ulterior, jugado, simbólicamente, en la
desaparición de la diosa en las entrañas de Zeus.
El segundo matrimonio es con Temis: “En segundo lugar, se
llevó a la brillante Temis que parió a las Horas, Eunomía, Dike y la flo-
reciente Eirene […] y a las Moiras” (Teogonía, 901-902, 904). Si Metis
era la más sabia, Temis es brillante. Jerarquizamos las marcas de las
esposas, de carácter luminoso y valoración positiva para ver cómo se
instala Hera en este concierto, de altísimo nivel de competitividad. El
matrimonio con Temis encierra además la particularidad de rozar una
cuestión cósmica. Ella misma, en tanto personificación de la Ley, y su
ilustre descendencia femenina, dan cuenta de la progresión que impri-
me coherencia al universo.
El orden presenta una tercera esposa: “Eurínome, hija de
Océano, de encantadora belleza, le dio las tres Gracias de hermosas
mejillas, Aglaya, Eufrósine y la deliciosa Talía” (Teogonía, 908-910). A
las connotaciones luminosas de las otras dos esposas, Eurínome re-
presenta la belleza, rasgo que se repite en sus hijas, al tiempo que si-
gue desplegándose una descendencia de rotunda presencia femenina,
inscrita en el marco de un linaje diurno. En cada matrimonio, la des-
cendencia femenina repite las características luminosas de las madres,
desplegando un paisaje de fuerte registro femenino. El Olimpo está
poblado de maravillosas diosas y encantadoras hijas.
La saga de hijas poblando el Olimpo continúa en la presencia
de Perséfone y la lista de cualidades positivas se refuerza con Demé-
ter: “Luego subió al lecho de Deméter nutricia de muchos. Ésta parió
90 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
a Perséfone de blancos brazos” (Teogonía, 912-913). Quizás sea pareja
madre-hija de la mayor duplicidad; ambas van a constituir un lazo ex-
tremadamente sólido, de fuerte impacto simbólico en la relación que
guarda una madre con su hija.
La descendencia femenina alcanza su punto más numeroso
con el nacimiento de las nueve Musas: “También hizo el amor con
Mnemosyne de hermosos cabellos y de ella nacieron las nueve Musas
de dorada frente a las que encantan las fiestas y el placer del canto”
(Teogonía, 915-918). No sólo el número incrementa la presencia feme-
nina en la casa del Padre, sino que los epítetos siguen respondiendo
a un linaje de carácter diurno, a partir de la belleza y del encanto que
el poeta sugiere como rasgo dominante, tanto de madres como de hi-
jas. En realidad, este nacimiento merece un párrafo aparte porque es
merced a estas nueve adorables hijas, las Bienhabladas hijas de Zeus,
que el canto es posible. Son ellas la condición de posibilidad de que
los mortales conozcamos todo lo que el poeta refiere. Conocemos los
matrimonios que estamos analizando, así como la totalidad del poe-
ma, porque ellas inauguran con su voz la posibilidad del relato. En este
caso también la línea de reproducción de las marcas se da entre madre
e hijas. Mnemosyne representa la memoria sagrada, la capacidad de
ver la totalidad de lo que fue, de lo que es y de lo que será; sus hijas
se inscriben en ese mismo horizonte y hacen que el poeta se posicione
en el mismo orden de omnisciencia, al dotarlo de una visión superior.
El próximo matrimonio rompe la dominancia de la descen-
dencia femenina ya que nace Apolo, emparentado con su hermana;
él es el Certero a partir de su destreza con el arco y ella la flechadora
o asaeteadora, según rezan las tradiciones: “Leto parió a Apolo y a la
flechadora Ártemis, prole más deseable que todos los descendientes
de Urano, en contacto amoroso con Zeus, portador de la égida” (Teo-
gonía, 919-921).
En todos los casos, la reproducción es sexuada. En algunos
casos, el poeta elige aludir a la relación amorosa entre los cónyuges; en
otros, se refiere a la dimensión maternal de las diosas, dándole las hi-
jas del caso. Tal es el caso de Eurínome, quien “le dio” las tres Gracias.
En otros casos, la alusión sexual es explícita, ya que “subió al lecho”
de Deméter, “hizo el amor” con Mnemosyne, o se unió “en contacto
amoroso” con Leto. En los otros casos la idea que aparece es que Zeus
Volume 1 91
tomó a sus esposas, tal como ocurre con Metis, Temis y la propia Hera:
“En último lugar tomó por esposa a la floreciente Hera; ésta parió a
Hebe, Ares e Ilitía en contacto amoroso con el rey de dioses y hombres”
(Teogonía, 922-924). Hera vuelve a romper la linealidad femenina, pa-
riendo a Ares, quien, junto con Apolo, discontinúan una descendencia
decididamente femenina. Este es el punto de aparición de Hera en el
relato hesiódico que, a continuación, y dándolo un brevísimo espacio,
alude al nacimiento de Atenea de la cabeza de Zeus.
Finalmente y con la misma economía narrativa, Hera aparece
pariendo a Hefesto, “sin trato amoroso”, ya que estaba furiosa y enfa-
dada con su esposo (Teogonía, 927). Hera discontinúa el modelo sexu-
al que el orden matrimonial venía desplegando. Si bien hemos hecho
referencia a cierto matiz en el uso de los verbos que aluden al modelo
de reproducción sexuada, Hera, sin contacto amoroso, quiebra el pa-
radigma para concebir aparentemente sin relación sexual. Las cartas
están echadas y el conflicto presentado. Pero Hesíodo no avanza ni
se pronuncia sobre lo que parece ser un agon vincular. Quizás sea el
kairós del trabajo intertextual y oír el Himno Homérico a Apolo que se
mete en el meollo del drama pasional.

2 Las desventuras de una dama despechada

Originariamente Hera es una divinidad prehelénica, y en esa


línea su nombre estaría asociado a la palabra prehelénica hêrõs, por
lo cual Hera significaría “la Señora”. Estamos en presencia de una di-
vinidad ctónica, vinculada a la fecundidad, a la capacidad de procrear,
y de hacer crecer las cosechas, cuyo culto se centra en la Argólida. Su
nombre aparece en las tablillas micénicas, como e-ra y habitualmente
es presentada como una deidad típica con descripción canónica. Tal
es el caso del Himno Homérico: “Canto a Hera, la del áureo trono, a la
que engendró Rea, a la reina inmortal, dotada de suprema hermosura,
de Zeus tonante hermana y esposa, la gloriosa, a la que honran reve-
rentes todos los Bienaventurados por el vasto Olimpo, por igual que a
Zeus, que se goza con el rayo”. (Himno Homérico a Hera, 1-5).

92 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


Ni una palabra de los celos de la Señora. Las debilidades no
parecen aparecer en los himnos de alabanza. Hay que rastrear otros
episodios para hallarlos y entrar en las escenas de la vida conyugal
para saber de ellos. Deberíamos remitirnos a los embarazos de Leto y
Sémele, pero antes optaremos por otra escena, donde el rival no pare-
ce ser exactamente una mujer, sino su propio marido, quien ha parido
una ilustre hija, nacida de su frente, la diosa Atenea. El mismo Hesíodo
lo refiere en estos términos: “Y él, de su cabeza, dio a luz a Atenea, de
ojos glaucos, terrible, belicosa, conductora de ejércitos, invencible y
augusta, a la que encantan los tumultos, guerras y batallas” (Teogonía,
924-926). Hera padece este desconocimiento y sufre un nacimiento
que no la ha tenido presente ni activa, ya que se ha consumado sin
su concurso y que, encima, ha arrojado la más ilustre de las hijas de
Zeus, el portador de la égida, quien, precisamente con ella y con Apolo,
constituye la tríada de dioses fundamentales del panteón helénico. En
efecto, “A ella la engendró por sí solo el prudente Zeus de su augusta
cabeza, provista de belicoso armamento de radiante oro” (Himno Ho-
mérico XXVIII a Atenea, 5-7).
Es el nacimiento de Atenea, cuyo nombre ya aparece en las
tablillas micénicas como a-ta-na-po-ti-ni-ja, Athana pótnia, Atenea, la
Soberana, lo que desencadena un episodio de rivalidad conyugal. No
es una niña más. El Himno Homérico se refiere a ella en su dimensión
de diosa guerrera: “Comienzo por cantar a Palas Atenea, protectora de
ciudadelas, diosa terrible a la que, con Ares, importan las bélicas accio-
nes, las ciudades saqueadas, el griterío y las batallas. También protege
al ejército a su partida y a su regreso”. (Himno Homérico XI a Atenea,
1-4). Los mismos rasgos que pintara Hesíodo, haciendo hincapié en la
dimensión guerrera de esta gloriosa deidad de ojos de lechuza, la muy
sagaz, dotada de corazón implacable, virgen venerable, protectora de
ciudades, la ardida Tritogenia” (Himno Homérico XXVIII a Atenea, 1-4).
El nacimiento ha sido por demás significativo y todo el Olimpo
se vio conmocionado. “Un religioso temor se apoderó de todos los in-
mortales al verla. Y ella, delante de Zeus egidífero, saltó impetuosamen-
te de la cabeza inmortal, agitando una aguda jabalina. El gran Olimpo
se estremecía terriblemente bajo el ímpetu de la de ojos de lechuza”
(Himno Homérico XXVIII a Atenea, 6-11). Nadie puede permanecer in-
diferente ante semejante nacimiento; menos aún una flamante esposa
Volume 1 93
ignorada. Ni la tierra, ni el ponto, “henchido de agitadas olas”, ni el sol
disimularon la conmoción y el universo en su totalidad tembló ante el
regocijo del prudente Zeus, que vuelve a poner en orden el cosmos.
Ahora bien, si Hera ha sido desconocida en su estatuto conyu-
gal y en su función maternal, ahora le toca el turno a Zeus, que será
ignorado por su esposa, al parir sola a Hefesto, como forma de devol-
ver gentilezas. Una mujer despechada es capaz de poner a prueba el
estatuto de quien la ofende, más allá de quien se trate. Y así fue cómo
“Hera dio a luz, sin trato amoroso –estaba furiosa y enfadada con su
esposo-, a Hefesto, que destaca entre todos los descendientes de Ura-
no por la destreza de sus manos” (Teogonía, 927-929).
No es una doncella por excelencia, sino un hijo cojo y defor-
me, lo que va a parir Hera en su gesta solitaria, tensionando, como
tantas veces, el poder del soberano. El detalle de la cojera se debe, se-
gún el mito, a la caída desde el cielo hacia la isla de Lemnos, accidente
provocado por Zeus, encolerizado porque había ayudado a Hera contra
él. Juego habitual de alianzas en este modelo de batalla perpetua que
parece marcar la convulsionada vida de los Olímpicos. Ambos hijos,
Hefesto y Atenea, simbólicos en el territorio que venimos analizando,
comparten un rasgo común: ser protectores del artesanado. Él es el
forjador mítico, capaz de realizar todo tipo de maravillas para diose4s
y héroes, más allá de su deformidad. El Himno enfatiza esta relación:
“Canta, Musa de voz clara, a Hefesto, célebre por su talento, el que, con
Atenea la de ojos de lechuza, enseñó espléndidos oficios a los hombres
sobre la tierra, hombres que antes habitaban en grutas en los montes
como fieras” (Himno Homérico XX a Hefesto, 1-5).

3 Hera toma la palabra. Discurso, poder y deseo

El Himno Homérico a Apolo le da la palabra a Hera; no sólo


amplía la información sobre el episodio en cuestión, sino que tiene la
particularidad de presentar una larga alocución de la primera dama, a
partir de la cual podemos entrar en las entrañas del conflicto y en el
escenario de su padecimiento.

94 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


La presencia de la diosa en el Himno, luego del relato de la
construcción del templo por parte de Apolo, se debe al recuerdo de
haberle entregado a la Dragona, muerta por el Certero, al terrible y
siniestro Tifón, azote de los mortales, “al que parió antaño Hera, en-
colerizada contra Zeus padre cuando el Crónida había engendrado a la
gloriosísima Atenea en su cabeza” (Himno Homérico a Apolo, 307-309).
La primera referencia ubica a Tifón como hijo de Hera y no de Gea, tal
como aparece en Hesíodo. La segunda referencia sitúa el nacimiento
en el marco de la cólera de la diosa, quien engendra un hijo que, a su
vez, se inscribe en el espacio de un linaje negativo, nocturno, tomando
las habituales características de los seres que se alejan, ya sea por su
morfología, ya por su comportamiento, de los cánones habituales de
las figuras diurnas. Frente a la gloriosísima Atenea, emblema del linaje
positivo, Tifón, recogido por la Dragona luego de ser arrojado por su
propia madre, muestra un rostro oscuro.
La primera alocución de Hera devuelve las marcas del desco-
nocimiento, tópico que venimos relevando: -¡Oídme todos los dioses
y todas las diosas, cómo Zeus, el que amontona las nubes, comienza
a deshonrarme el primero, después que me hizo su diligente esposa!
Ahora engendró sin mí a Atenea, la de ojos de lechuza” (Himno Homé-
rico, 311-314). El problema radica en el no reconocimiento del otro; el
otro es invisibilizado en su estatuto de tal y la deshonra es una forma de
mancillar el honor, esto es, el nombre como elemento identitario. Hera
se dirige a todos los dioses, sin excepción y su discurso tiene el matiz
de la denuncia. La intención de Hera se refuerza con los adjetivos con
que califica a su esposo: “¡Miserable, taimado! ¡Qué otra cosa se te va a
ocurrir aún? ¡Cómo te atreviste a engendrar tú solo a Atenea, la de ojos
de lechuza? ¿No habría podido parirla yo?” (Himno Homérico, 322-324).
El discurso plantea lagunas cuestiones de interés. Se produce,
en primer lugar, un desplazamiento en el estilo discursivo; Hera co-
mienza refiriéndose a todos los dioses para organizar luego un discurso
directo, personalizado hacia su esposo. Lo que parecía ser una denun-
cia, se convierte en un reproche muy duro a su esposo, a quien llama
miserable y taimado, adjetivos muy ásperos que permiten ver la posi-
bilidad de enfrentar a su marido desde un registro de poder semejan-
te, al menos en las posibilidades de la discusión. En segundo lugar, se
llega a la entraña misma del conflicto al quedar expuesto el verdadero
Volume 1 95
motivo del desconocimiento y del enfado en la pregunta de la dama:
Hera es desconocida en su capacidad de engendrar un vástago, esto
es, su capacidad femenina. “¿No habría podido parirla yo? Es la pre-
gunta emblemática del rechazo a su fertilidad y a su condición de “es-
posa diligente” como ella misma se reconociera. El conflicto se instala
en una cuestión topológica; hay una doble representación polémica:
el territorio y el estatuto, ambas acepciones del término topos. Hera
siente que Zeus le ha arrebatado su espacio, su territorio de esposa y
madre y, a su vez, ha transgredido su estatuto, su condición en tanto
capacidad gestante. Ambos desconocimientos constituyen la lección
antropológica más frecuente cuando se trata de no reconocer al otro
en su identidad. El otro es desterritorializado y negado en sus regis-
tros ontológicos, delineándose así el diagrama de fuerzas que tensiona
la Mismidad y la Otredad como escenario antropológico-político2. En
tercer lugar, Hera anuncia con su discurso la posibilidad de que el con-
flicto continúe con nuevos episodios, ya sea por parte de Zeus, como
de ella misma, instalando la posibilidad de la guerra pasional, al tiem-
po que tensiona su capacidad de resistencia. El poder no puede ser
concebido, según Michel Foucault, sin esta complementariedad con la
noción de resistencia, en tanto reacción a una acción que se padece.
Acción y reacción, ejercicio del poder sobre el otro, pero contra ejerci-
cio inscrito en el arte de resistir, son las claves de una mirada dinámica
de los juegos de poder3. El poder no se muestra como algo sustancial,
del orden de la posesión unívoca, sino, por el contrario, se evidencia
móvil y estratégico. Hera toma la palabra, desplegando nítidamente la
ecuación discurso-poder para denunciar a su marido y, a su vez, pro-
mete acciones que denotan ejercicio resistencial: “Ahora ten cuidado,
no sea que medite algún mal para el futuro. De hecho maquinaré cómo

2  Siguiendo a Garreta-Belleli en su obra La Trama cultural, nuestra propuesta de


lectura propone desplazar la mirada hacia el campo de la tensión Mismidad-Otredad,
para abordar ciertas figuras o espacios del pensamiento mítico que constituyen la
cara de lo Mismo y de lo Otro en el mundo arcaico, con las ulteriores resonancias
simbólicas que la tensión misma supone. GARRETA, M, BELLELI, C. La trama cultural.
Textos de Antropología. Buenos Aires: Caligraf, 1999.
3  Foucault, en Las redes del poder analiza el modelo de funcionamiento del mismo
en términos de táctica y estrategia, tema que el autor retoma y despliega en Vigilar
y Castigar, entendiendo las relaciones de poder como un dispositivo político. FOU-
CAULT, M. Las redes del poder. Buenos Aires: Almagesto, 1992.
96 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
va a nacer un hijo mío que se destaque entre los dioses inmortales, sin
deshonrar tu sagrado lecho ni el mío” (Himno Homérico, 326-330). Dos
elementos mueven la reflexión; en primer término, queremos insistir
en el valor del discurso como herramienta de poder, en este caso de
poder femenino. Tal como sostiene Foucault, el discurso está en es-
trecha relación con el poder y con el deseo; deseo de apropiarse del
discurso como forma de apropiarse del poder4. Hera desea apropiarse
del discurso y así lo demuestra en su denuncia a todos los dioses y las
diosas. En segundo término, siempre desde una lectura política de la
presencia de la dama, Hera es capaz de maquinar acciones que la ubi-
can en el lugar de una estratega, conocedora de la táctica de la guerra,
en este caso, amorosa. No debe asombrarnos el tópico; el elemento
femenino se caracteriza por la posibilidad de estrategia y, en ese or-
den, quizás sea Gea, una primerísima dama, el ejemplo emblemático
de la posibilidad.
Hera insiste en su rostro estratégico y abandona su lugar de
diligente esposa, corriéndose tácticamente de las marcas del género:
“Mas no penetraré en tu lecho, sino que manteniéndome lejos de ti,
permaneceré entre otros dioses inmortales” (Himno Homérico, 330-
331). Pura táctica en el marco de la batalla perpetua, que exige un
verdadero arte de las distribuciones en el espacio5. Hera se retira pero
se queda en el lugar que le corresponde: entre los Inmortales.

4 Las marcas del poder

Hera consolida su posición a partir de un comportamiento ges-


tual, que refuerza las marcas discursivas: “Mas luego hizo una impreca-
ción la soberana de ojos de novilla, Hera. Con las palmas vueltas hacia

4  El discurso aparece como un topos apetecible del cual los sujetos quieren apro-
piarse pero su entidad política lo vuelve impermeable a cualquiera que no esté cali-
ficado para hacerlo.
5  Foucault, en Vigilar y Castigar, el autor propone el análisis de la variable espacial
o topológica para pensar en un verdadero arte de las distribuciones en el espacio a
fin de controlar aquello que transgrede el orden de lo aceptable. FOUCAULT, M. Vigi-
lar y Castigar. Buenos Aires: Siglo XXI, 1989.
Volume 1 97
abajo, golpeó el suelo y pronunció estas palabras” (Himno Homérico,
332-333). La conducta se inscribe en el horizonte del logos theokrantos,
de la palabra cargada de poder, que se opone a las epe akrata, a las
palabras vanas, sin poder de realización. Lo que sostiene el estatuto
del discurso es el valor del verbo kraino, realizar acabadamente. Las
palabras de Hera son realizadoras y en esa línea se juegan en el marco
de la acción eficaz. La palabra mágico religiosa posee, precisamente,
esa solidaridad con el gesto como modo de reforzar el esse del logos. El
gesto no es aleatorio u ornamental; es, por el contrario, instituyente del
poder mismo de la palabra. Es el campo del logos que sólo es pronun-
ciable por los dioses o por un ser excepcional. Pronunciada la palabra,
la acción se realiza; la palabra no es el elemento que vehiculiza la repre-
sentación de la cosa; es la acción misma en gesto eficaz, realizador. En
este sentido, la realidad brota de la palabra pronunciada, sin que medie
distancia entre el logos y la realidad. La palabra no recoge lo real para
dar cuenta de ello es gesto lingüístico; la palabra es fuerza realizadora
que genera en su decir mismo. Hera es portadora de este poder reali-
zador y su imprecación tiene fuerza de realidad6. El gesto es, por otra
parte, el gesto habitual para invocar a las divinidades ctónicas.
El pedido se dirige a las primera potencias, a las divinidades
primigenias, las más arcaicas, en el orden del linaje; el estilo sigue sien-
do directo e imperativo: “-¡Oídme ahora, Tierra y ancho Cielo, allá en
lo alto! ¡Y vosotros, Titanes, dioses que habitáis bajo tierra, en el gran
Tártaro, de los cuales proceden hombres y dioses! Escuchadme todos
ahora y concededme un hijo sin el concurso de Zeus, en nada inferior a
aquél en fuerza, sino tanto más poderoso que él canto lo es Zeus, cuya
voz se oye a lo lejos, más que Crono” (Himno Homérico, 334-339). Hera
se para frente a los dioses primordiales alzando su voz como marca de
poder y deseo. Deseo de un hijo que tensará al máximo las relaciones
conflictivas con su esposo, ya que implica la omisión de su presencia en
el acto amoroso. Si Hera está enfurecida a partir de un gesto de desco-
nocimiento, el pedido se inscribe en la misma lógica. Hera desconoce
a Zeus en su función gestante y sola se atreve a una empresa que pres-
cinde del elemento masculino como forma de negar su complementa-

6  A propósito del registro del logos theokrantos - COLOMBANI, M.C. Hesíodo. Una
introducción crítica. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2005.
98 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
riedad en el acto y su poder en la obra, con la consecuente imagen de
peligrosidad femenina que tal decisión acarrea.
El gesto y el deseo ubican a Hera en una posición de autono-
mía frente a la maternidad, al tiempo que representa un gesto ten-
diente a consolidar su poder frente al de su esposo. Discurso, poder
y deseo; he allí los tres tópicos que parecen estar hilvanando la triple
solidaridad a la que Michel Foucault alude en el Orden del Discurso. El
discurso no es solamente lo que da cuenta de las luchas por el poder,
sino ese dispositivo político que da cuenta de un acto de poder que ex-
presa, además, el deseo de tomar la palabra como objeto prestigioso7.
Hera alza la palabra frente a los dioses en acto de imprecación y con
ello eleva al cielo el poder de su deseo.
Un nuevo gesto eficaz acompaña el pedido. Así, “Tras pronun-
ciar estas palabras, golpeó el suelo con su poderosa y se removió la
tierra dispensadora de vida. Ella, al verlo, se regocijó en su fuero inter-
no, pues sabía que su voto se cumpliría” (Himno Homérico, 340-343).
Esa es la solidaridad del gesto y la palabra, inscrita en la realización
del acto. La palabra y el gesto vuelven a delinear un dispositivo eficaz
donde no hay una dimensión lingüística de la palabra, sino un registro
ontológico, ya que la palabra y el ser mismo de la acción cumplida son
una sola estructura.
La acción de Hera modifica el estatuto matrimonial. El poder
de su acción repercute en un nuevo diagrama de relaciones con su
esposo, que la alejan de las marcas habituales del género. Hera ya se
ha corrido de esos espacios al pedir a los dioses concebir un hijo por
fuera de las pautas canónicas de la concepción. Ahora lo hace desde
su función de esposa, ya que “Desde entonces, hasta el término de un

7  Foucault, en El orden del discurso, el autor analiza las relaciones entre discurso y
poder y discurso y deseo y advierte cómo no todos los intersticios discursivos tienen
el mismo registro de visibilidad y accesibilidad, fundamentalmente porque se hallan
altamente ritualizados, celosamente custodiados y sutilmente designados a ciertos
sujetos capacitados para entrar en ese orden del discurso. Otros, en cambio, se com-
portan como discursos abiertos, tópoi secularizados donde el tránsito es más fluido,
menos calificado. FOUCAULT, M. El orden del discurso. Barcelona: Tusquets, 1983.
Foucault, en Los Anormales Foucault analiza tres figuras de la monstruosidad, el
monstruo humano, el incorregible y el onanista, ensayando una especie de arqueo-
logía de las figuras monstruosas y su impacto en el imaginario social. FOUCAULT, M.
Los anormales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001.
Volume 1 99
año, ni fue al lecho del prudente Zeus ni nunca, sentada junto a él en el
trono ricamente decorado, meditaba, como antes, sagaces pareceres,
sino que permaneciendo en los templos plenos de súplicas, se rego-
cijaba con sus ofrendas la soberana de ojos de novilla, Hera” (Himno
Homérico, 344-348).
Hera resiste desde el lugar que le otorga su estatuto de espo-
sa. Desatiende sus deberes conyugales, ignorando el lecho marital y
con ello marca un gesto de resistencia frente a la afrenta de Zeus. Los
juegos de poder que se dan entre ambos esposos se tensan en esta
estrategia política de no acudir al lecho como espacio emblemático de
la función esposa. También quedan suspendidas las pautas vinculares
típicas que caracterizan a la pareja. Hera se corre de su perfil especula-
tivo, y se instala en otro registro, el de la súplica.

V La vida te da sorpresas: cuando un hijo no es lo


esperado y la presencia del monstruo

El relato se viene jugando en un campo de tensiones y de


decisiones que ubican a Hera en un topos peculiar al interior de los
juegos vinculares. Su acción parece inscribirse en el triunfo del poder
femenino por sobre el desconocimiento del poder masculino. Hera
parece escribir una pieza de victoria en el marco de las relaciones de
poder entre los esposos. Incluso la realización de lo que fuera su deseo
da cuenta de ese triunfo.
Pero, la dramática mítica se juega en la lógica de lo inespe-
rado. Un hijo monstruoso es el resultado de la gesta autónoma de la
diosa. Criatura feroz que parece encarnar el castigo a una transgresión
femenina. Así, “ella tuvo una criatura, no semejante a los dioses ni a
los mortales: el terrible y siniestro Tifón, azote de los mortales” (Himno
Homérico, 349-352).
Criatura desterritorializada, Tifón no es ni mortal ni se ase-
meja a los dioses. Tifón está fuera del registro canónico que separa el
kosmos en mortales e inmortales como topoi heterogéneos. Quizás su
desterritorialización sea semejante al propio gesto de su madre que
100 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
osara concebir sin la presencia del padre de dioses y hombres, fractu-
rando el modelo hegemónico de la concepción. Pura otredad en una
figura que discontinua el mundo olímpico, pura heterogeneidad que
fractura la homogeneidad cósmica.
Indudablemente, el monstruo representa un hito en la his-
toria de la transgresión. Es esta una noción capital para abordar la
problemática de la monstruosidad, ensayando una arqueología de la
anormalidad. En los párrafos que siguen nos proponemos abordar el
extremo mismo de la noción de normalidad y medida. Nos referimos
al monstruo para ver su ubicación en el marco general de las repre-
sentaciones sociales. Antes de introducirnos de lleno en el topos de la
monstruosidad, optaremos por algunas consideraciones antropológi-
cas en torno al imaginario de los anormales, para ver en qué medida la
figura del monstruo se solidariza con esa familia1.
Nuestro interés es detenernos por un breve instante en esas
figuras monstruosas para analizar precisamente ese enclave que cabal-
ga entre lo imposible y lo prohibido, que venimos soslayando; figuras
monstruosas que evocan la idea de mezcla, de confusión de reinos y
topoi que la excepcionalidad de la monstruosidad implica. Las figu-
ras monstruosas acompañan el horizonte fantasmagórico; es más, lo
constituyen desde su extrañeza radical, desde su registro amenazante
y desde su elocuencia trágica. El monstruo es esa figura del límite, del
borde, del margen.
En el corazón de esta experiencia, la presencia de lo monstru-
oso cobra la forma límite de la alteridad más absoluta. El monstruo es
lo otro del hombre. El monstruo es la forma más rotunda de la desvia-
ción. El monstruo es lo desterritorializado por excelencia.
El monstruo es aquello que no conserva la forma, precisamen-
te porque la forma es aquello que hace ser a un determinado ser, lo
individualiza, lo territorializa y, sobre todo, permite su clasificación. En
el monstruo hay una forma en fuga, inapropiable, inasible e inclasifi-
cable. El dispositivo de clasificación permite siempre el control-fijación
de aquello clasificado. Dona un espacio definido, un lógos que recoge
la clasificación y una posibilidad de maniobra sobre lo clasificado de
carácter previsible, pautado y programado. El monstruo escapa a esta
posibilidad de control, de clasificación, de maniobra y de discurso. Es

Volume 1 101
propiamente lo inasible, aquello que no se puede capturar desde las
herramientas corrientes.
La alteración de las formas rompe con la cadena regular de las
asignaciones discursivas y explicativas. Si pensamos la cultura griega
como un complejo universo de relaciones múltiples, podemos decir
que los griegos construyeron su Mismidad a partir del Otro y con el
Otro, como modo de autodefinición e instalación identitaria. Se trata
de pensar la cultura como un topos múltiple, capaz de albergar dife-
rentes habitantes, con tal que cada cual está perfectamente territo-
rializado en sus marcas específicas. El problema no es exactamente la
presencia del Otro, necesaria y esperable, sino su irrupción allí donde
no se lo espera, ni se tiene las herramientas para conjurar sus efectos.
En este horizonte se inscribe Tifón y parece que hay trans-
gresiones que el Olimpo no perdona, a riesgo de poner en jaque la
mismísima legalidad cósmica. Aquello que empezara siendo un acto
de resistencia de Hera, aparece ahora como un verdadero azote, que
marca con su presencia la estirpe toda de los hombres.

Conclusiones

El proyecto de nuestro artículo ha consistido en analizar las


relaciones políticas que se dan en las configuraciones vinculares entre
Zeus y Hera en el Himno Homérico a Apolo, donde se relata un episo-
dio emblemático, familiar a los conflictos y tensiones que de hecho
jaquean a la pareja conyugal y que nos permite relevar los avatares
del matrimonio, en clave de tensiones políticas, como en tantas otros
episodios donde el relato mítico testimonia la celotipia que caracte-
riza a la esposa de Zeus. Nuestro intento ha sido analizar el episodio
que el Himno relata desde una mirada político-antropológica, tratan-
do de señalar cómo juega la díada reconocimiento-desconocimiento,
de marcada impronta antropológica, dentro del dispositivo matrimo-
nial olímpico. Consideramos que el no reconocimiento entre ambos
cónyuges como figura dominante del vínculo que los une y separa, de-
termina formas de violencia simbólica que instituyen el vínculo entre

102 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


ambos y constituyen una marca insoslayable en el matrimonio. Hemos
intentado mostrar los celos de Hera como forma de poner de manifies-
to la conflictividad que se da en la pareja soberana y como modo de
concebir el modelo agonístico de vinculación que es el que sostiene las
relaciones olímpicas.
Hemos intentado relevar las marcas identitarias de Hera des-
de su lejana presencia en las tablillas micénicas al plexo de relaciones
que mantiene con diferentes personajes del mundo olímpico, en par-
ticular los vínculos que mantiene con Zeus, su marido, en la economía
general de los amores extramatrimoniales del egidífero. A lo largo del
trabajo, intentamos relevar las circunstancias de alto nivel conflictivo
que los juegos de poder despliegan, tensando las relaciones entre los
esposos, como matriz dominante del dispositivo matrimonial.

Volume 1 103
O SAGRADO E A CONSTITUIÇÃO
SIMBÓLICA DA CULTURA MATERIAL:
PERSPECTIVAS TEÓRICAS E
METODOLÓGICAS
Danilo Andrade Tabone1

Aquele que se dedica ao estudo do sagrado no Mundo Grego


Antigo dispõe de uma grande variedade e diversidade de evidências
materiais, como os espaços sagrados, a estatuária votiva e cultual, as
moedas, as inscrições epigráficas, ou mesmo os restos de sacrifícios
(zooarqueologia). Como já notaram Roland Martin e Henri Metzger,
as evidências materiais são hoje a principal documentação para as
pesquisas sobre o sagrado2. O objetivo aqui, deste modo, é apresen-
tar algumas das premissas teóricas e metodológicas mais atuais para
o estudo do sagrado a partir das fontes materiais.

1 A ampliação das perspectivas: a constituição


simbólica da cultura material

Desde a década de 1960, com o advento da Nova Arqueolo-


gia norte-americana – ou escola Processualista – o foco das pesqui-
sas recaiu sobre aspectos funcionais e econômicos da cultura. De-
nunciava-se a ausência de um corpo teórico-metodológico especifico
para se estudar aspectos ‘ideológicos’, levando muitos dos processu-
alistas, como o próprio Lewis Binford, um dos propositores do novo

1  Mestre e Doutorando em Arqueologia no Programa de Pós-Graduação em Arque-


ologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, orientado
pela Profa. Dra. Elaine Farias Veloso Hirata. Bolsista CAPES.
2  MARTIN, R., METZGER, H. La religion grecque. Paris: Armand Colin, 1990, p. 10.
Volume 1 105
enfoque, a considerarem, mas evitarem, o “subsistema ideológico”
em seus trabalhos3.
É famosa a proposta da “progressão da inferência” de Chris-
topher Hawkes4, que afirmava que era mais fácil inferir da evidência
arqueológica aspectos tecnológicos (nível de dificuldade 1) do que ins-
tituições religiosas e aspectos da vida espiritual (nível 4, o mais difícil
no seu entender). O que estes autores não levavam em conta é que
também os aspectos tecnológicos e econômicos pertenceriam a um
universo que é simbólico.
Ainda no contexto do Processualismo, o arqueólogo britânico
Colin Renfrew desenvolveu uma das mais interessantes propostas para
o estudo do ‘cognitivo’, no que inclui a religião e o culto5. Para Renfrew
a Arqueologia, então ‘Cognitiva’, seria “o estudo dos modos passados
de pensar, como inferidos a partir de restos materiais”6, o que de fato
amplia as perspectivas para o entendimento de como funcionavam as
mentes das pessoas no passado. A Arqueologia Cognitiva é realizada
através da consideração de que as pessoas possuem ‘mapas cogniti-
vos’ do mundo, por meio dos quais elas dão significado ao mundo, e o
que fazem através da formulação de símbolos que estão circunscritos
a tradições culturais particulares. Os indivíduos de tal tradição, desde
o seu nascimento, são formados de modo a dar o mesmo significado
a símbolos particulares. É este sentido que o arqueólogo deve buscar.
Suas propostas teóricas e metodológicas voltadas para o es-
tudo da religião e do culto foram desenvolvidas no Prefácio e no Capí-
tulo 1 da obra The Archaeology of Cult: the sanctuary of Phylakopi, de
1985, que logo se tornou o texto teórico fundamental sobre o tema.

3  BINFORD, L. New Perspectives in Archaeology. Chicago: Aldine Publishing Com-


pany, 1968, p. 21.
4  HAWKES, C. ‘Archaeological Theory and Method: some suggestions from the Old
World’. American Anthropologist, v. 56, 1954; para uma posição crítica cf. RENFREW.
The Archaeology of Cult: the Sanctuary at Phylakopi. Londres: The British School of
Archaeology at Athens, Thames and Hudson, 1985, p. 1, e HODDER, I. ‘The “Social” in
Archaeological Theory: An Historical and Contemporary Perspective’. In. A Compan-
ion to Social Archaeology, 2004, p. 23-24.
5  RENFREW, C. Op. Cit.; e RENFREW, C., ZUBROW, E. ‘Toward a cognitive archae-
ology’. In. C. Renfrew e E. Zubrow (eds.). The Ancient Mind: elements of Cognitive
Archaeology. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
6  RENFREW, C., ZUBROW, E. op. cit., p. 3.
106 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
No texto, afirma a possibilidade de se conhecer o cognitivo a partir
da evidência material, propondo o estabelecimento de um sistema de
inferências que permitiria apreendê-lo a partir de uma análise contro-
lada das evidências materiais7.
O primeiro passo seria então reconhecer o que se entende
por religião, o que Renfrew define como “um sistema de símbolos que
agem para estabelecer poder, pervasivo e de modo duradouro, e moti-
vações nos homens pela formulação de concepções de ordem geral de
existência, concepções que são vestidas com uma aura de factualidade
onde modos e motivações sejam vistos como única realidade”8. O que
claramente reflete a visão processualista da cultura como um sistema,
onde a categoria religião, assim como todo o mundo cognitivo, são en-
tendidos como subsistemas, separados inclusive do social9.
O também britânico A. Bernard Knapp, pensando na relação
entre Arqueologia, ideologia10 e poder, também reconheceu a impor-
tância do domínio religioso na legitimação de herarquias sociais e de
poder, percebendo que objetos sagrados eram também vistos como
objetos de prestígio11. Em suma, os enfoques processuais tenderam a
focar sobre os aspectos funcionais do símbolo, antes que sobre os seus
sentidos, os quais podem abranger toda uma concepção cosmológica.
A grande limitação dessas visões funcionais sobre o símbolo é
que eles acabam sendo vistos como compartimentados e periféricos,
ou secundários, com relação às demais dimensões do social. Como
muito apropriadamente reconhece o britânico Ian Hodder, é “difícil
identificar qualquer ato ou objeto que não tenha sentido simbólico.
É também difícil argumentar que sentidos funcionais são sempre pri-
mários sobre o simbólico ou representacional”12. Deste ponto de vista,

7  RENFREW, C. op. cit., 1985, p. 11.


8  RENFREW, C. op. cit., 1985, p. 12.
9  HODDER, I.. op. cit., 2004, p. 25-26.
10  Alain Knapp entende ideologia como “não só uma reflexão epifenomênica sobre
a base político-econômica de uma sociedade, mas como mais um meio pelo qual
grupos mantêm, resistem ou mudam ativamente seu poder relativo dentro da socie-
dade” (KNAPP, A. Bernard. ‘Ideology, Archaeology and Polity’. Man, New Series, v. 23,
n. 1, 1988, p. 132). É neste sentido que também entendo.
11  KNAPP, A. B. art. cit. , p. 138.
12  HODDER, Ian. ‘Symbolic and Structuralist Archaeology’. In. Paul Bahn, Colin Ren-
frew (eds.). Archaeology: the key concepts. Londres: Routledge, 2005, p. 190.
Volume 1 107
qualquer aspecto do registro arqueológico tem uma dimensão simbó-
lica que era importante na estruturação das vidas das pessoas13.

***

“O passado é um país estrangeiro”14. Assim, é necessário afas-


tar um olhar colonial sobre o Antigo Mundo Grego, procurando nele
um reflexo de nós mesmos. “Não somos gregos, não temos a mesma
concepção de liberdade nem a mesma visão do político”, sequer ra-
cionalizamos o mundo do mesmo modo – ou concebemos o mesmo
campo semântico/simbólico. Reconhece-se então a necessidade de se
rejeitar uma visão essencialista da cultura15. Como afirmou Marshall
Sahlins: “diferentes culturas, diferentes racionalidades”. Então se o
passado é um país estrangeiro, ele também é outra cultura, “e se é
outra cultura, descobri-la requer alguma antropologia”16.
A questão que se coloca é como perceber esse sistema simbó-
lico a partir da materialidade. A princípio é possível afirmar que todo
o sistema ideológico dos Antigos Gregos era expresso por um mesmo
sistema simbólico que era constituído materialmente, e o qual pode-
mos reconhecer através de sua interpretação.
De modo geral, a Arqueologia Pós-Processual – Contextual,
Interpretativa ou Simbólica – tende a se afastar da religião enquanto
categoria de análise em favor dessas dimensões simbólicas gerais da
cultura material. Assim como se tem dado atenção aos dados relati-
vos às práticas rituais, como nos trabalhos de Michael Shanks e Chris-
topher Tilley17, que entendem a religião dentro de uma dimensão ide-

13  HODDER, Ian. Symbols in Action. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
14  LOWENTHAL, D. The past is a foreign country. Cambridge: At University Press,
1985.
15  Na filosofia a ideia parte dos existencialistas, particularmente de SARTRE, J.-P.
O Existencialismo é um Humanismo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012. Na Antropologia a
ideia vem sendo discutida notavelmente por SAHLINS, Marshall. Como pensam os
nativos. São Paulo: Edusp, 2001; Idem. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Zahar,
2003; Idem. História e Cultura: apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Zahar, 2006; e
por VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. E outros en-
saios de Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2013, entre outros.
16  SAHLINS, M. op. cit, 2001; Idem. op. cit., 2006, p. 10.
17  SHANKS, M., TILLEY, C. Social Theory and Archaeology. Albuquerque: Universi-
ty of New Mexico, Press, 1987; SHANKS, M, TILLEY, C. Re-constructing Archaeology.
108 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ológica geral, mas considerando que as práticas rituais produzem uma
categoria de evidência que o arqueólogo pode explorar18.
O próprio termo ‘ritual’ também tem sido criticado por certos
pesquisadores que entendem que este impõe uma distinção artificial
entre pensamento e ação, ganhando a conotação de simples repetição
mental, em favor de ‘performance’, um termo que reconheceria uma
natureza roteirizada do comportamento ritual, mas evitando aquelas
ideias ligadas a ‘ritual’. Esta crítica parte notavelmente de estudos in-
fluenciados pelo Protestantismo, onde o termo ‘ritual’ passou a ter
essa conotação negativa19.
Mas vale lembrar que os Antigos Gregos, assim como não ti-
nham um termo para religião – apenas para ‘sagrado’ – também não
tinham um termo para ‘ritual’, sendo que os seus equivalentes mais
próximos encontrados nos textos são ta nomizomena (= “coisas costu-
meiras”) e ta patria (= “costumes ancestrais”). Termos que assim como
os relativos a ‘sagrado’ (i.e. hierá, hágios), indicam que o sagrado – e as
práticas rituais – não eram entendidas separadamente da sociedade/
cultura, mas que estavam integradas à uma cosmologia própria. Vale
ressaltar que aqui continuo a usar o termo ‘ritual’, assim como ‘culto’,
para me referir às diversas formas de práticas dirigidas intencional-
mente ao mundo do sagrado.
As críticas pós-processuais ao Processualismo se dirigiram
em diversas frentes, a maioria delas dizendo respeito ao processo de
interpretação: o foco sobre as tecnologias adaptativas relacionada a
uma Antropologia que desconsidera o contexto histórico, a definição
‘positivista’ da disciplina derivada do método hipotético-dedutivo de
Hempel, a desconsideração do ‘sentido’ e do ‘símbolo’ em favor de ge-
neralizações inter-culturais, entre outras críticas que acabaram decor-
rendo destas20. Mas apesar dessas críticas terem influenciado certas
questões metodológicas, de modo geral, estas não foram o objeto das
contestações pós-processuais. Deste modo, as propostas metodológi-
cas de Renfrew continuam sendo a principal referência para se estudar

Theory and Practice. Londres: Routledge, 1992.


18  INSOLL, Tymothy. ‘Archaeology of Cult and Religion’. In. Paul Bahn, Colin Renfrew
(eds.). Archaeology: the key concepts. Londres: Routledge, 2005, p. 35.
19  LARSON, Jennifer. Ancient Greek Cults: a guide. Londres: Routledge, 2007, p. 4.
20  HODDER, Ian. op. cit. , 2005, p. 155-156.
Volume 1 109
as práticas de culto através do registro arqueológico. O que se deve
considerar é que essas práticas aconteciam em um contexto cultural
que deve ser considerado; e que existem outros tipos de evidência
que se referem ao sagrado que não fazem parte de contextos especi-
ficamente rituais. É neste ponto que vale considerar a relevância dada
ao contexto pelos pós-processualistas. É o contexto arqueológico – e
entendendo a cultura material como parte de um universo simbólico –
que possibilitará processos de interpretação.
Renfrew propôs a identificação de indicadores de ritual no re-
gistro arqueológico, os quais agrupou em quatro categorias: 1) o foco
da atenção, 2) as zonas de fronteira entre este mundo e o outro, 3) a
presença de divindades, 4) participação e oferendas21. Essas categorias
permitem identificar, por exemplo, áreas de culto (presença de altares,
depósitos votivos, templos, imagens de culto, inscrições dedicatórias,
etc.). Para além das evidências de culto, Renfrew ainda classificou os
dados que poderiam servir para identificar crenças religiosas:

1. Testemunho verbal, tanto oral quanto escrito22, relacionado


à atividades religiosas da comunidade, ou elucidando o senti-
do dado por ela a essas práticas religiosas.
2. Observação direta de práticas de culto, envolvendo o uso
de ação expressiva, declarações vocais a objetos e materiais
simbólicos.
3. Estudo de registros não verbais, como pinturas, que docu-
mentem (a) as crenças em si mesmas, e.g. retratando divinda-
des ou eventos míticos; ou (b) as práticas de culto que aconte-
ciam na comunidade.
4. Estudo dos vestígios materiais de práticas de culto, incluso
objetos, materiais e estruturas simbólicas23.

O problema do esquema é que ele atribui dimensões simbóli-


21  RENFREW, Colin. op. cit., 1985, p. 18.
22  Sobre o uso conjunto de evidências textuais e materiais, conferir a importante
contribuição teórica: ANDRÉN, Anders. Between Artifacts and Texts: Historical Ar-
chaeology in Global Perspective. Londres: Plenum Press, 2000; sobre esta relação
no caso da Grécia Arcaica: SNODGRASS, Anthony. Homero e os artistas. São Paulo:
Odysseus, 2004.
23  RENFREW, Colin. op. cit., 1985, p. 12.
110 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
cas apenas a evidências estritamente religiosas, o que como temos vis-
to é limitador, pois toda a cultura material tem uma dimensão simbóli-
ca. Neste sentido, numerosos estudos apontam que no Mundo Grego
Antigo, estruturas como portos, muros, portas, ágoras, áreas residen-
ciais, necrópoles, etc., desde o mais simples e cotidiano objeto até as
grandes estruturas monumentais que eram os santuários participavam
de um universo simbólico. Mas o esquema ainda é bastante útil para a
identificação de contextos de culto, assim como de elementos simbó-
licos específicos que foram constituídos materialmente pelos Antigos
Gregos para expressar o sagrado. A solução metodológica é sempre
considerar os contextos de produção, uso e descarte dessas evidên-
cias, o que possibilitará entender seus sentidos e como eles eram ex-
perimentados no interior dos complexos simbólicos mais amplos que
formam a cultura.

2 Identificando o sagrado nos sistemas simbólicos


a partir do registro arqueológico

A consideração de que a cultura é simbolicamente constituída


e de que entre os Antigos Gregos os discursos sobre o sagrado estão
por toda parte, levam ao reconhecimento de que os vestígios materiais
ultrapassam a própria dimensão do ato ritual. Temos à disposição assim
uma série de evidências: objetos, estruturas e áreas de culto, e de outras
evidências que não fazem parte do ritual, mas que se relacionam com
outras dimensões do simbólico e que, por isso, devem ser considera-
dos em seus contextos específicos. A partir deste ponto serão pensados
alguns dos procedimentos para a análise de cada um desses tipos de
materiais, não de modo exaustivo, mas sim sistemático, com a intenção
de apresentar esses tipos de evidências e seus corpora teórico-metodo-
lógicos específicos, com indicações de referências para consulta.
O primeiro tipo de testemunho referido por Renfrew foi o ver-
bal, que para a Antiguidade Grega resume-se ao textual. O arqueólogo
deve considerar esta documentação – assim como o historiador deve

Volume 1 111
considerar a evidência material24 – mas lembrando que essas fontes
possuem uma metodologia e hipóteses de trabalho que são diferen-
tes. Cada documento deve ser considerado em seu próprio contexto de
produção e uso, do mesmo modo como cada categoria de artefato tam-
bém deve ser considerado em seu contexto específico25. Anthony Sno-
dgrass, em Homero e os Artistas, procura entender a produção artística
no período Arcaico Grego, aprofundando-se nas articulações entre as
representações nos vasilhames cerâmicos com os poemas homéricos.
Para tal, aborda as convenções específicas que envolviam cada tipo de
produção, assim como os públicos a que eram destinados e as funções
que exerceram na época de sua circulação, chegando a uma visão bas-
tante inovadora sobre o período estudado, e demonstra a possibilidade
– e a necessidade – do trabalho com os dois tipos de evidência.
Uma série de fontes materiais mais em contato com a reali-
dade das crenças e dos ritos são as imagens: pintadas sobre cerâmica,
relevos em diversos contextos, moedas. Uma das mais interessantes
propostas para sua análise vem da Arqueologia da Imagem26, que des-
de os anos 1980, em torno de duas escolas principais, a de Paris27 e a
Suíça28, tem renovado esses estudos apontando para a importância da
imagem na compreensão da sociedade. Trata-se de passar a se consi-

24  A Arqueologia possibilita o tratamento de temas sobre os quais os historiadores


tem chamado a atenção: a longa duração, o quotidiano, o banal, a purificação do
evento (para uma eloquente defesa do uso das fontes materiais por historiadores,
cf. MENESES, Ulpiano T. B. de. ‘A cultura material do estudo das sociedades antigas’.
Revista de História (USP), v. 115, 1983).
25  SNODGRASS, A. op. cit.; FLORENZANO, Maria Beatriz Borba. ‘Arqueologia Clássi-
ca e Ciências Humanas’. Anos 90, n. 17, 2003.
26  Para discussões mais aprofundadas sobre a Arqueologia da Imagem, cf. ALDRO-
VANDI, Cibele. ‘A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da
Imagem’. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, v. 19, 2009; sobre o contexto
das pesquisas sobre imagética grega, cf. SARIAN, Haiganuch. Arqueologia da Imagem:
expressões figuradas do mito e da religião na Antiguidade Clássica. Trabalho apresen-
tado para o concurso de Livre Docência em Arqueologia Clássica. São Paulo, 2005.
27  A Escola de Paris, em torno do Centre Louis Gernet, se desenvolveu com pesqui-
sadores como Jean-Pierre Vernant e François Lissarrague (cf. LISSARRAGUE, François.
‘Un regard sur l’imagerie grecque’. L’Homme, t. 26, n. 97-98, 1986; LISSARRAGUE,
François. ‘Images dans la cité’. Mètis, v. 9-10, 1994).
28  A Escola Suíça surge especialmente em torno dos trabalhos de Claude Bérard e
Jean-Paul Moret (cf. LA CITÉ des images. Religion et societé en Grèce antique. Laus-
anne, Paris: Fernand Nathan, 1984)
112 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
derar o contexto – arqueológico (incluso o suporte) e de pensamento
(ou simbólico) dessas imagens; como afirma Cibele Aldrovandi, “[...]
esta disciplina volta-se essencialmente à análise dos conteúdos temá-
ticos presentes no conjunto imagético e, além disso, busca inseri-los
em seu contexto de surgimento e desenvolvimento no intuito de re-
constituir e compreender os aspectos sociais, econômicos, políticos e
religiosos que propiciaram sua criação”29.
É assim que as imagens não devem ser consideradas sepa-
radas de seus suportes e de seu contexto original de uso. Vasilhames
cerâmicos tinham diversas finalidades que iam desde usos privados,
onde as imagens podiam ou não ser vistas na casa, passando por am-
bientes públicos como salas de banquetes, até a sua dedicatória em
santuários. Essas imagens, assim, não podem ser descontextualizadas,
o que leva à conclusão de que elas não podem ser tratadas como mera
“decoração”. Pela mesma razão, a imagem não deve ser tratada em
termos de “motivo” e “preenchimento” ou “ornamento”, na medida
em que todos os elementos da imagem podem se constituir como
formas de expressar códigos de linguagem que podem ainda ser ina-
cessíveis ao pesquisador. Mas que evidentemente fazem parte de um
discurso sobre um mundo simbólico próprio. Arqueólogos como Robin
Osborne30 e Michael Shanks31, entre outros, sustentam a importância
de se considerar todo o contexto na análise de repertórios imagéticos
sobre vasilhames.
Shanks parte de uma questão já formulada: “Porque os gre-
gos precisavam de imagens?”, e afirma que esta questão não pode ser
separada do tema maior que é o conjunto de mudanças associadas
com a origem da cidade-estado, “la cité des images”, como proclamou
o título da obra seminal de Claude Bérard32. A nova representação de
imagens encontrada particularmente nos vasilhames da Corinto ‘orien-
talizante’ do séc. VII a.C. corporificam a ‘progressiva’ formação do es-

29  ALDROVANDI, Cibele. art. cit, p. 39.


30  OSBORNE, R. ‘What the beholder saw. Review of J. Boardman’. The Diffusion of
Classical Art in Antiquity. Oxford Magazine, v. 118, 1994.
31  SHANKS, Michael. ‘Art and an Archaeology of Embodiment: Some Aspects of
Archaic Greece’. Cambridge Archaeological Journal, v. 5, n. 2, 1995.
32  BÉRARD, Claude (ed.). La cité des images. Religion et societé en Grèce an-
tique. Lausanne, Paris: Fernand Nathan, 1984.
Volume 1 113
tado na Grécia Arcaica, comunicando ideologias de si e de identidades,
“a materialidade é considerada uma dimensão primária da experiência
social; as pessoas no início da cidade-estado estavam retrabalhando
seu próprio mundo”33.
Essas imagens sobre vasilhames cerâmicos são importantes
para o estudo sobre o sagrado, pois representam “os grandes temas
mitológicos, as grandes cenas da vida religiosa, os diversos aspectos
dos ritos e das festas”, que refletem “uma vida religiosa permanente-
mente sensível às transformações de suas épocas”34. Através da iden-
tificação de seus atributos iconográficos específicos é possível reco-
nhecer divindades, heróis e outros personagens míticos, que podem
ou não aparecer nas narrativas textuais. Ou que podem ainda apare-
cer com outros atributos, diferentes daqueles descritos nos textos,
evidenciando a pluralidade de concepções existentes sobre o sagrado
porto do o Mundo Grego.
Mas é importante ainda considerar que os temas que surgem
nas imagens sobre vasilhames cerâmicos estão mais relacionados com
as manifestações religiosas e com os esquemas iconográficos de Atenas
e da Ática, cuja produção influenciou os estilos de outras regiões do
Mundo Grego. Deste modo, não encontram paralelos nas pinturas cerâ-
micas os aspectos originais da área Ocidental presentes nas métopas de
Selinonte e do Heraion de Posidônia, ou nas pinakes de Locres Epizefiri.
Os tipos monetários formam outra série de documentos que
nos fornecem dados relevantes, na medida em que os seus tipos ico-
nográficos estão mais diretamente em contato com tradições locais.
A sua análise não difere daqueles pressupostos pela Arqueologia da
Imagem, sendo importante ainda a consideração do suporte (a peça
metálica: seu peso, tipo de metal35, dimensão), e o contexto de emis-
são e de circulação36.

33  SHANKS, M. Op. Cit., p. 207-208.


34  MARTIN, R., METZGER, H. op. cit., p. 10.
35  Questões a que se dedica, por exemplo, a metrologia numismática. Cf. NASTER,
P. ‘La méthode en métrologie numismatique’. In. In. DENTZER, J.-M., GAUTHIER, Ph.,
HACKENS, T. Numismatique antique: problèmes et méthodes. Actes du colloque or-
ganizé à Nancy du 27 septembre au 2 octobre 1971. Nancy-Louvain: Éditions Peeters,
B.P., 1975.
36  Sobre métodos para pensar a circulação monetária no Mundo Grego, cf. HA-
CKENS, T. ‘La circulation monétaire, questions de méthode’. In. DENTZER, J.-M.,
114 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
A Numismática tornou-se uma via fecunda para trabalhos so-
bre a religião grega após os estudos de Léon Lacroix, segundo quem
“a moeda reflete muito exatamente o particularismo que caracteriza a
organização política do mundo grego”37. Hoje podemos afirmar que a
moeda não se refere apenas ao ‘político’, mas à definição da comuni-
dade no interior da pólis como um todo, na medida em que ela é um
meio de afirmar sua existência e de manifestar seus direitos de sobe-
rania, sendo um emblema da pólis emissora38.
É interessante que praticamente todas as póleis que emiti-
ram moedas nos períodos Arcaico e Clássico tenham escolhido divin-
dades para seus tipos39 – desde as Olímpicas até divindades locais,
como as de fontes e rios, por exemplo (caso do deus-rio Gelas nas
emissões de Gela ou da ninfa Aretusa nas de Siracusa, na Sicília) – ou
que fazem referências a mitos locais (como o cavalo Árion nas moe-
das de Telpussa, na Arcádia).
Mas mesmo em tipos onde aparecem elementos aparente-
mente ‘profanos’, como as tartarugas das emissões de Egina (Grécia),
os ramos de trigo das de Metaponto (Magna Grécia), ou as folhas
de silfio das de Cirene (Norte da África), chamam por interpretações
que não podem desconsiderar concepções cosmológicas próprias da
pólis emissora.

GAUTHIER, Ph., HACKENS, T. op. cit.


37  LACROIX, Léon. ‘Les types des monnaies grecques’. In. DENTZER, J.-M., GAUTH-
IER, Ph., HACKENS, T. op. cit., p. 154.
38  Discussões sobre a legitimidade da moeda como documento arqueológico e
métodos de sistematização e análise, cf. BABELON, J. La numismatique anti-
que. PUF, 1964; FRÈRE, H. Numismática: uma introdução aos métodos e à classifica-
ção. São Paulo/Louvain-la-Neuve: São Paulo Editorial/Imp. É.Oleffe, 1984; para uma
visão histórica geral da moeda no Mundo Grego Antigo, cf. KRAAY, C. ‘Coinage’ (Part
II. The Greek States). In. CAH, vol. IV, 1988.
39  A obra de 1871-1889 de J. Overbeck, Griechischen Kunstmythologie, segue
como uma interessante referência para a consulta de moedas gregas agrupadas por
divindades. Uma boa publicação de coleções é o Sylloge Nummorum Graecorum; e
KRAAY, HIRMER. Greek Coins. Londres, 1966, traz uma bela apresentação de moedas
gregas, principalmente Arcaicas e Clássicas. As obras de K. Jenkins (JENKINS, G. K.
Ancient Greek Coins. Londres, 1990 [original de 1974]), M. Kraay (KRAAY, M. Archaic
and Classical Greek Coins. Berkeley, Londres, 1976), B.V. Head (HEAD, B.V. Historia
Numorum. Londres, 1911) e H. Nicolet-Pierre (NICOLET-PIERRE, H. Numismatique
grecque. Paris, 2002) são boas introduções gerais.
Volume 1 115
Também a plástica de bronze, mármore ou terracota40 for-
mam uma das bases essenciais da iconografia religiosa, fornecendo um
repertório bastante rico de imagens divinas. Essa plástica, no entanto,
possui o inconveniente de ter sofrido uma idealização clássica, influên-
cia dos esquemas dos ateliês41. As estatuetas destinadas à oferta vo-
tiva são bastante interessantes. Essas oferendas, muitas delas encon-
tradas em depósitos votivos, são munidas de atributos relacionados às
versões míticas que quando podem ser contextualizados, permitem a
identificação de santuários e de tipos cultuais específicos a epítetos e/
ou a locais, entre diversas outras informações.
Os próprios locais de culto também são evidências sobre a na-
tureza do culto realizado. Seja com relação à localização desses espa-
ços – próximos de elementos naturais, no alto de colinas, próximos ao
mar, etc.), seja com relação à estrutura arquitetônica do templo, que
permitem precisar certos ritos e formas de culto. Assim, é significativo
entender porque e como os santuários são instalados na paisagem42.
Um exemplo é o dos edifícios do santuário de Elêusis, onde a nature-
za dos ritos de mistério reflete-se na estrutura: a sala de iniciação (o
telesterion) é fechado e isolado; o plano é baixo, como que simulando
um acesso ao mundo inferior. É sugestivo ainda que uma análise do
témeno do santuário de Deméter Malofóros em Selinonte lembra a
estrutura daquele de Elêusis, o que sugere que em Selinonte também
pode ter havido cultos de mistério43.
É reconhecido ainda que os espaços sagrados gregos não di-
zem respeito apenas ao domínio do sagrado44 – ou ainda antes, que
não se resume às questões sobre originalidade e beleza das manifes-

40  Sem contar os trabalhos em madeira, dos quais quase nada sobreviveu; destes,
no entanto, temos algumas referências feitos pelos autores antigos, muito notavel-
mente por Pausânias.
41  MARTIN, R., METZGER, H. op. cit., p. 10.
42  Para uma introdução à discussão sobre a ‘função’ e a localização dos templos
gregos, cf. COLDSTREAM, J.N. ‘Greek temples: why and where?’. In. E. P. Easterling
(ed.). Greek religion and society. Cambridge: At University Press, 1996; SCHACHTER,
A. ‘Policy, cult, and the placing of greek sanctuaries’. In. AA.VV. Le sanctuaire grec.
Entretiens, tome XXXVII. Fondation Hardt pour l’étude de l’Antiquité Classique, 1992.
43  HOLLOWAY, R. R. The Archaeology of Ancient Sicily. Londres/Nova Iorque: Rout-
ledge, 2000, p. 61.
44  Para uma boa introdução à arquitetura grega (especialmente para templos e tea-
tros), cf. LAWRENCE. Arquitetura Grega. Para discussões sobre a monumentalização de
templos, cf. HIRATA, E. F. V. op. cit.; e TRIGGER, B. ‘Monumental Architecture: a Ther-
modynamic Explanation of Symbolic Behavior’. World Archaeology, v. 22, n. 2, 1990.
116 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
tações artísticas que as análises tradicionais priorizaram no passado.
De modo amplo, o espaço deve ser entendido em sua interação com
a sociedade; sociedade/cultura que imprime no espaço as suas ações
e os seus significados. Neste sentido, o ambiente construído apresen-
ta-se como a concretização de um espaço existencial45. E assim, a mo-
numentalidade dos templos46 – pode ser entendida como símbolo da
dedicação da comunidade à ordem política – que aparece então fundi-
da à ordem sagrada, e ambas confundidas com a ordem cósmica.
Assim, em síntese: 1) existem teorias e métodos para se iden-
tificar e analisar os traços materiais relativos ao sagrado na cultura ma-
terial; 2) esses traços materiais relativos ao sagrados devem ser anali-
sados em seus contextos de produção, uso e achado, pois 3) o sagrado
é parte de um sistema simbólico sem o qual não é possível entendê-lo;
e 4) para o Mundo Grego Antigo, nota-se como o sistema simbólico,
como um todo, refere-se a concepções cosmológicas, e por isso seus
elementos não podem ser desmembrados. Para concluir, observemos
a análise de um caso, o de Argos.

3 Uma cosmologia: mito e rito na fundação de


Argos (Argólida, Grécia)

Para Jonathan Hall, Argos, na planície da Argólida (Pelopone-


so), é a única pólis de fato na região47. Duas colinas dominam a planí-
cie, Larissa a oeste e Profites Elias, ou Aspis, a norte. Próximo da ágora
45  HIRATA, E. F. V. op. cit., p. 23.
46  Para B. TRIGGER. art. cit., p. 128, monumentalidade é definida como cons-
truções que excedem em ‘escala’ e em ‘qualidade de construção’ as necessidades
‘funcionais’ de um edifício. Mas considerando-se a discussão empreendida até este
ponto, é seguro afirmar que é problemática a identificação de tais “necessidades
funcionais” na medida em que o universo simbólico pode criar ‘necessidades’ que
não correspondem à noção em termos modernos e economicistas. Com relação aos
espaços sagrados gregos, nota-se vários níveis de monumentalidade, segundo a pre-
sença ou ausência de estruturas no espaço sagrado: templo, conjuntos de capelas,
recintos menores, grutas, altares, depósitos votivos ou ainda outras estruturas asso-
ciadas, como teatros.
47  HALL, J. M. A History of the Archaic Greek World, ca. 1200-479 BCE. Oxford:
Blackwell Publishing, 2007.
Volume 1 117
de Argos havia um centro cultural representado pelo santuário de Apo-
lo Lício (ou Likeios). Era neste espaço que as leis eram depositadas48,
marcando o caráter cívico do culto aí realizado.

Plano I. Plano de Argos49

48  CHANEUX, Pierre. ‘Inscriptions d’Argos’. BCH, v. 77, n. 1, 1953, p. 391.


49  TOMLINSON, R.A. Argos and the Argolid. Londres, 1972.
118 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
A c. 8 km da ásty, nas margens da planície de Argos, que era
aproximadamente triangular, ficava o Heraion, em um ponto visível
a partir de vários locais, particularmente da própria Argos, de onde
era possível avistar o santuário sempre que se olhasse para leste; mas
também era visto de Micenas ao se olhar para norte e de Tirinto e Náu-
plia ao se olhar para sul50.
De acordo com o relato de Pausânias (II, 17), havia um “leito
de Hera” e um escudo no pronaos do templo, o que era visto como
sendo uma oferenda do herói Menelau, e o que para François de Polig-
nac explicitava os dois principais aspectos da soberania divina da Hera
Argiva: a proteção sobre o mundo do casamento e os confrontos. Além
disto, de acordo com Heródoto (I, 31) e Pausânias (II, 17, 3) a sacerdoti-
sa de Hera ocupava o primeiro lugar na hierarquia cultural da pólis; era
ela quem tinha o privilégio “real” de conduzir a grande procissão que
levava todo o povo argivo ao santuário para render as solenes home-
nagens à deusa na festa dos Heraia.
Polignac vê em Argos a divisão do espaço cultual em dois pó-
los que estavam miticamente interrelacionados, em torno dos quais as
decisões da cidade eram tomadas51. Assim, o mito de fundação do He-
raion argivo o relaciona com aquele da fundação do santuário de Apo-
lo Lício e do estabelecimento da soberania real em Argos: no mito das
Danaides52, Hera realiza sua soberania como protetora da vida agrária
e do casamento na Argólida. E nas tradições argivas transmitidas na
forma de genealogias reais – diferente do que conta o ateniense Ésqui-
lo (Suplicantes, V, 176ss) – Danaos reclama o poder a Gelanor, último
soberano descendente de Foroneu. Antes que o povo argivo julgasse a
causa, um lobo foi visto matando e esmagando a cabeça de um touro
que liderava um rebanho. Danaos foi imediatamente eleito rei, pois
“pareceu aos argivos que Gelanor se parecia com o touro e Danaos
lembrava o lobo” (Paus. II, 19, 4). Para consagrar sua vitória, Danaos
teria fundado o santuário de Apolo Lício (Likaios = Lobo).
Assim, a criação do primeiro culto urbano à Apolo Lício se
orientou no mesmo sentido da instauração da primeira soberania real
exercida sobre a Argólida ‘civilizada’. A evocação da função cívica, de
50  POLIGNAC, F. de. ‘Argos entre centre et périphérie: l’espace cultuel de la cité
grecque’. Arch. Sc. Soc. des Rel., v. 59, n. 1, 1985, p. 56; Idem. op. cit., p. 33.
51  POLIGNAC, F. de. art. cit., p. 56.
52  Para o mito das Danaides, cf. BENVENISTE, E.. ‘La legende des Danaïdes’. BCH, v.136, n.
2-3, 1949, p.129-138.
Volume 1 119
fato, era predominante no santuário: ficava próximo da ágora e da
tumba de Danaos, o herói fundador, assim como guardava o “trono de
Danaos” e as leis da cidade53. A obra de Danaos, assim, representa a
fundação de Argos como pólis. E esta fundação acontece sob a égide
de duas divindades: Apolo e Hera, reconhecendo que Hera não foi ex-
cluída do mundo político e apolíneo. Como conta Pausânias (II, 19, 5),
no santuário de Apolo havia uma estátua de Bíton segurando um be-
zerro nas costas, em referência à lenda onde, junto de seu irmão Cleó-
bis, Bíton se substituiu aos bezerros ausentes para puxar o carro de sua
mãe, sacerdotisa de Hera, durante a procissão de Argos ao Heraion.
Hera era reconhecida como a responsável pela unidade e sal-
vaguarda da cidade. No centro, o poder só poderia ser exercido se-
gundo as regras apolíneas se a cidade estivesse aberta ao santuário
territorial e à sua divindade54. A observação das emissões monetárias
de Argos é bastante ilustrativa: na Imagem 1, o lobo em evidente re-
ferência a Apolo – iconografia que não seria bem interpretada sem o
contexto da pólis emissora; na Imagem 2, além do lobo no reverso, no
anverso vemos a efígie de Hera com estefanos no anverso55 com golfi-
nhos, que também são símbolos de Apolo.

Fig. 1. Argos. Dióbolo de prata, Fig. 2. Argos. Estátere de prata,


2.87g, 490-70 a.C. c. 421-322 a.C.

Anverso: busto de lobo à esquerda. Anverso: Cabeça de Hera com estefa-


Reverso: A com três pontos no campo nos portando ornamentos florais.
dentro de um quadrado incuso; acima Reverso: ΑΡΓΕΙΩΝ. Dois golfinhos em
incuso bipartido direções opostas; entre eles, um lobo.
(Fonte: SNG Copenhagen 5) (Fonte: BMC 33, Sear GCV 2789)

53  POLIGNAC, F. de. art. cit., p. 57-58.


54  POLIGNAC, F. de. art. cit., p. 58.
55  Sobre a efígie de Hera nas emissões de Argos, cf. GARDNER, P. Type of Greek
Coins, 1883, p. 138. Segundo Pausânias (II, 17, 4) a estátua de Hera Argiva feita por
Policletos possuía um estefanos adornado com figuras das Horas e Cárites. Para P.
Gardner, estas podem ter sido substituídas por elementos menos complicados nas
moedas.
120 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
O esquema mítico se relaciona com o processo de tomada de
possessão do território argivo, não esquecendo os conflitos que duran-
te o séc. VIII a.C. opuseram Argos à Micenas, Tirinto, Asine e Náuplia.
Mas essa construção mítica não deve ser vista de modo maniqueísta,
como se formulada com a função de justificar a tomada de posse do
território, a qual era vista na verdade como a manifestação da ordem
cósmica. Como analisou Mario Vegetti, “[...] parece não ser de pergun-
tar por que é que os gregos acreditavam nos seus deuses. Dever-se-ia
antes perguntar como seria possível que eles não acreditassem, visto
que isso implicaria a negação de uma grande parte da experiência co-
tidiana de vida”56.

Considerações Finais

Os santuários de Hera e de Apolo – assim como os demais es-


paços argivos, sagrados ou não – suas emissões monetárias, as narra-
tivas míticas transmitidas em forma de genealogias reais locais (neste
caso registradas por Pausânias), assim como diversos outros registros
de diversos tipos, inclusive as atividades que aí eram realizadas, como
as demonstrações de competição ritualizada (sacrifícios e oferendas
que competiam em prodigalidade) não podem ser entendidos uns sem
relação aos outros. E não podem ser entendidos se busca-se apenas
pela categoria ‘religião’, na medida em que todos são elementos de
um discurso ordenam a experiência de vida na Antiga Argos, assim
dando um sentido cosmológico ao status quo.

56  VEGETTI, Mario. ‘O homem e os deuses’. In. VERNANT, Jean-Pierre (org.). O


homem grego. Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 231.
Volume 1 121
A DEUSA ATENA E ESPARTA – ANÁLISES
PARA ALÉM DOS LIMITES DA GUERRA
Luis Filipe Bantim de Assumpção1

Quando crianças o primeiro contato que geralmente temos


com a cultura helênica lida com os “mitos” associados à Iliada e à
Odisseia, cujas atitudes extraordinárias de deuses e heróis se mes-
clam à incapacidade de muitos jovens de perceberem os limites entre
o “real” e o “ficcional”. Enquanto pesquisadores de Antiguidade Clás-
sica devemos notar que, atualmente, os feitos dos “antigos gregos”
nos são legados como um elemento identitário, mas também como
algo distante e de características semi-fantásticas. Com os anos de
experiência junto ao ensino fundamental e médio do sistema educa-
cional brasileiro, verificamos que os alunos se interessavam mais por
aspectos “mitológicos” – tais como os “Doze Trabalhos de Héracles”
ou a maneira como “Perseu decapitou a Górgona” – do que pelos fa-
tos de ordem política, como as “guerras Greco-pérsicas” ou a “emer-
gência do regime democrático em Atenas”.
No entanto, embora as crianças e adolescentes ainda se en-
cantem pela “Grécia Antiga” devido aos seus “mitos”, nós, pesquisa-
dores e professores, temos a possibilidade de apresentarmos – junto
à graduação e à pós-graduação – uma imagem dos deuses e heróis
helênicos que difere daquela representação magnífica oriunda de uma
tenra juventude. Logo, podemos destacar que a Hélade, enquanto es-
paço geográfico detinha práticas culturais distintas entre si e, sobretu-
do, muito diferentes das nossas. Embora as sociedades ocidentais se
considerem “herdeiras” da tradição greco-latina, devemos respeitar as
especificidades destes contextos históricos distintos. Sendo assim, ao
analisarmos as divindades, os cultos ou os rituais dos antigos helenos,
nos cabe o “bom senso” de romper com um viés de pesquisa demasia-

1  Doutorando em História pelo Programa de Pós Graduação em História Compa-


rada da UFRJ, sob orientação do Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa e com bolsa CAPES. O
mesmo integra os grupos de pesquisa ATRIVM e LHIA, ambos sediados pela Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro.
Volume 1 123
damente moderno e judaico-cristão, para que assim possamos minimi-
zar anacronismos interpretativos em nossa pesquisa e interagir com a
Hélade conforme as suas particularidades histórico-culturais.
Imersos nessa perspectiva, notamos que se tornou um “lugar
comum” associar os deuses helênicos a uma dada potencialidade e
esfera de atuação. Mediante esse procedimento, as divindades foram
inseridas em um viés generalista – talvez até mesmo cristão – passível
de uma investigação mais objetiva. Contudo, a interação das póleis
helênicas com o sagrado não ocorria de forma tão simplista como te-
mos a tendência de pensar na modernidade. Para os helenos da Anti-
guidade, os deuses eram uma realidade vivida cotidianamente e que
se fazia presente em todas as atividades que os sujeitos realizavam.
Com isso, podemos dialogar com Ken Dowden ao ressaltar que os
deuses teriam sido a obra de arte mais poderosa criada pelos helenos
e, por habitarem diferentes espaços, ambientes e dimensões interco-
nectadas, criavam a falsa impressão de se constituírem em uma exis-
tência individual, no que tange à vida dos homens2. Diferentemente
do discurso cristão, Dowden nos demonstrou que as representações
dos deuses helênicos foram uma criação consciente dos homens,
rompendo com a ideia de que os seres humanos foram “moldados à
imagem e semelhança dos deuses”.
Seguindo por essas considerações, não seria equivocado afir-
marmos que os helenos teriam representado os deuses a partir das
suas próprias experiências. Desse modo, ao retratarem as divindades
em feições e proporções humanas, estes sujeitos estariam tentando
compreender o que não eram capazes de explicar sem uma materia-
lidade. Assim, denominar Zeus como o “senhor dos raios”, Poseidon
como “aquele que faz tremer a terra” e Hades enquanto o “senhor do
mundo dos mortos” eram mecanismos capazes de fornecer sentido à
própria experiência de vida desses homens. Embora tenhamos mani-
festado um panorama superficial acerca da maneira como os helenos
teriam compreendido as suas relações com o sagrado, o mesmo nos
permite observar que a Hélade detinha práticas e culturas singulares,
ainda que sirvam de referenciais às sociedades ocidentais modernas.

2  DOWDEN, Ken. Olympian Gods, Olympian Pantheon. In: OGDEN, Daniel. A


Companion to Greek Religion. Oxford: Blackwell Publishing Ltd., 2007.p.41.
124 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Dentre as múltiplas divindades helênicas que ainda figuram
em nosso imaginário, podemos destacar a figura da deusa Atena, cujos
atributos foram associados à guerra, à estratégia e à inteligência. Essas
prerrogativas de Atena fizeram com que a sua imagem fosse apropria-
da modernamente, para as mais distintas finalidades. Como argumen-
tou Susan Deacy, a utilização e a representação de Atena na moderni-
dade se deram em virtude da relação que esta deusa mantinha com
valores civilizados (tais como a ordem social), as artes, o aprendizado,
a justiça e a inteligência3. De forma semelhante, Deacy afirmou que
Atena também foi associada à Virgem Maria, pois ambas as persona-
gens seriam virgens e defensoras de uma ordem religiosa patriarcal4.
Com isso, verificamos que essas associações facilitaram a interação
moderna e cristã com Atena, embora esta já estivesse fora do seu pró-
prio contexto histórico-cultural.
Dialogando com José Murilo de Carvalho, este pontuou que
com a proclamação da República na França, em 1792, este regime pas-
sou a ser representado na figura de uma mulher, ora conduzindo o povo
rumo à liberdade e, em outras circunstâncias, como uma mãe que pro-
tege e nutre os seus filhos5. No primeiro exemplo citado por Carvalho
podemos verificar uma apropriação, ainda que indireta, da deusa Ate-
na em suas prerrogativas militares. Complementando os apontamen-
tos de Carvalho, Susan Deacy declarou que Atena foi empregada como
o símbolo da liberdade, junto aos franceses revolucionários. Em 1797,
a mesma foi adotada como a divindade tutelar da “Classe dês Sciences
morales et politiques”, sendo esta uma representação da estabilidade
dos primeiros anos após a revolução6. A partir das considerações de
Deacy, podemos afirmar que na França a deusa Atena simbolizou a luta
contra os excessos do “Antigo Regime” representando os ideais de luta
em prol da nação francesa.
Segundo José Murilo de Carvalho, algumas das representações
da República no Brasil, no final do século XIX, a qual figurou como a deusa
Atena. Nos dizeres do autor, na capa da edição 115, de 26 de Novembro

3  DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.141.


4  Ibidem, p.144.
5  CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas – O imaginário da República no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p.75-79.
6  DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.148.
Volume 1 125
de 1904 do jornal “O Malho”, a República brasileira aparece com a arma-
dura de Atena esmagando a “Revolta da Vacina”, no Rio de Janeiro7.

Fig.1: Capa da edição 115, de 26 de Novembro de 1904, do jornal “O Malho”, onde


a República derrota a Anarquia8

Nos dizeres de Susan Deacy, as representações modernas de


Atena, por vezes, a colocaram na condição de responsável por contro-
lar as forças excessivas da vida em sociedade. Com isso, a apropriação

7  CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas – O imaginário da República no


Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p.80.
8  A República brasileira esmagando a revolta da Vacina. Notem que o dragão que
a deusa submete tem o nome “anarquia” como uma possível alusão a uma manifes-
tação contrária à ordem política republicana. Capa da edição 115, de 26 de Novem-
bro de 1904, do jornal “O Malho”. Acessado em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/
omalho/revista.asp?rev=115&ano=1904 (em 01 de Novembro de 2014).
126 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
de Atena foi motivada pela aparente facilidade com que essa deusa
poderia se enquadrar no sistema de valores cristãos da modernidade
ocidental9. Complementamos os apontamentos de Deacy com as afir-
mações de Walter Burkert, afinal, para o autor, na Antiguidade a deusa
Atena esteve associada à inteligência, ao conhecimento técnico (téch-
ne)10 para se realizar determinadas atividades manuais e a justiça11.
Sendo assim, Susan Deacy esclareceu que, mediante esses atributos, a
imagem de Atena foi adaptada aos pressupostos cristãos e modernos,
passando a figurar junto às representações antropomórficas da Justiça,
da Prudência e da Sabedoria12. Ao relacionarmos as análises de José
Murilo de Carvalho, Walter Burkert e Susan Deacy verificamos que a
apropriação moderna de Atena permitiu que a mesma representasse
ideais de luta e conflito, porém, associados à tentativa “justa” de se
alcançar um determinado fim13. Dessa maneira, tanto em momentos
de revolução, quanto na tentativa de se conter manifestações popula-
res, Atena atuava como a “justiça inerente a uma causa”, cujas prerro-
gativas estariam ao lado daqueles que manifestassem os ideais mais
adequados em uma dada circunstância.
Através do exposto, podemos afirmar que no mundo ocidental
moderno, Atena passou a agir como um vetor dos princípios republica-
nos e cristãos, estando “destinada” a lutar contra o mal e aqueles que
se colocassem diante dos ideais da República. Nesse contexto, notamos
que a deusa Atena acabou sendo representada por um viés de dualida-
de típico da mitologia cristã, em que os enfrentamentos com o “demô-
nio” e suas vicissitudes seriam constantes. Possivelmente tenham sido
esses pressupostos que materializaram a representação de Atena como

9  DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.145.


10  A téchne (τέχνη) seria a arte ou habilidade manual, a qual se mantém atrelada
à astúcia e à engenhosidade.
11  BURKERT, Walter. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad.: M. J. Si-
mões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.p.282-284.
12  DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.145-146.
13  Como nos informou Susan Deacy, Atena foi recorrentemente apropriada e re-
presentada no discurso ocidental, pós-clássico. Para tanto, a autora destaca que Ate-
na chegou a ser tomada como um ideal a se combater pelos primeiros movimentos
feministas, haja vista que conformava a ordem patriarcal de seu pai. No entanto,
outras tendências do referido movimento fizeram de Atena a representação da força
feminina frente a uma sociedade de homens. Para maiores informações acerca da
apropriação de Atena junto aos movimentos feministas Ibidem, p.153-156.
Volume 1 127
uma deusa belicosa, porém justa e sábia, cujos esforços estariam sem-
pre em oposição aos excessos “maléficos” de outros deuses14.
Tais acepções de Atena seriam anacronismos frente à maneira
como esta deusa teria sido representada e cultuada no mundo helêni-
co. Para tanto, podemos dialogar com o arcabouço teórico de Pierre
Bourdieu, acerca dos conceitos de discurso e representação. Segun-
do Bourdieu podemos conceber o discurso como o ambiente onde as
relações interpessoais são desenvolvidas pelo ato da fala15. Imersos
nessa perspectiva, Bourdieu argumenta que as condições sociais dos
agentes históricos, ao produzirem um discurso, determinam a sua pos-
sibilidade de circulação e a maneira como os conteúdos serão abor-
dados pelo mesmo16. Logo, o discurso deve ser compreendido como
um mecanismo de poder no interior de uma sociedade, pois, o mesmo
tende a transmitir práticas e modos de pensamento através das repre-
sentações que constrói de um objeto, pessoa ou fato histórico17. Já a
representação foi definida por Bourdieu como uma imagem construída
de grupos e práticas sociais, bem como de um objeto, no intuito de
interpretar/explicar as ações desempenhadas em um meio social. Con-
tudo, as representações desenvolvidas em uma sociedade objetivam
por corresponder aos interesses dos grupos que as elaboraram18.
Ao adaptarmos o arcabouço teórico de Pierre Bourdieu para a
nossa proposta no presente artigo, observamos que as representações
da deusa Atena foram apropriadas pelos mais variados discursos da

14  Aqui citamos o caso do mangá japonês “Saint Seiya” (no Brasil intitulado de “Os
Cavaleiros do Zodíaco”), da autoria de Masami Kurumada e publicado pela Shueisha
(1986-1991). Nesse contexto, a deusa Atena reencarnaria a cada duzentos anos na
Terra para combater o mal e salvar a humanidade. Com isso, Atena enfrentou deuses
como Poseidon e Hades, os quais queriam dominar o mundo humano. O que se
torna curioso neste mangá é o fato da deusa Atena sofrer pela humanidade, em uma
lógica bastante cristianizada, cabendo aos seus “cavaleiros” lutarem em seu lugar, no
intuito de realizar as suas vontades e salvá-la de seus opositores.
15  BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora
Vozes, 2009.p.94.
16  BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. In: ORTIZ, Renato (org.).
Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.p.158-159.
17  BOURDIEU, Pierre. Language and Symbolic Power. Trans.: Matthew Adamson.
Oxford: Polity Press, 1991.p.111-113.
18  BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora
Vozes, 2009.p.46.
128 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
modernidade, para que assim correspondessem aos interesses dos su-
jeitos em contextos históricos específicos. Sendo assim, Atena acabou
se destituindo das suas prerrogativas iniciais – atreladas aos elementos
culturais da Antiga Hélade – para atuar em conformidade aos valores
cristãos e do Ocidente moderno. Logo, não seria equivocado afirmar-
mos que entre as representações da Antiguidade e as imagens mo-
dernas de Atena, a única semelhança que haveria entre ambas seria o
nome da referida divindade.

1 As características da deusa Atena na


documentação literária

Mediante a perspectiva de Pierre Bourdieu, somos capazes


de lançar olhares renovados à imagem de Atena e à maneira como os
helenos a cultuavam. Para tanto, tornam-se necessárias algumas con-
siderações sobre as suas principais prerrogativas divinas. Como nos ex-
plicitou Walter Burkert, Atena seria uma deusa associada à tática, es-
tratégia, inteligência, téchne e à disciplina, as quais poderiam ser dire-
tamente vinculadas à guerra. Por vezes, Atena também foi vista como
um contraponto de seu irmão Ares, onde os pesquisadores modernos
acabaram estabelecendo polaridades entre as esferas de atuação de
ambos os deuses, ainda que no interior dos conflitos bélicos. Com isso,
Atena foi considerada a deusa responsável por regular e sistematizar
a guerra, enquanto Ares manifestava os aspectos violentos e caóticos
dos conflitos militares19. Ao citar Jean-Pierre Darmon, Susan Deacy
declarou que Atena era complementar ao deus Ares, afinal, este seria
a força característica dos embates, enquanto a sua irmã ficaria res-
ponsável pela ordem nos campos de batalha20. No entanto, Deacy nos
advertiu que não devemos limitar a nossa percepção acerca de Atena,

19  BURKERT, Walter. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad.: M. J. Si-
mões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.p.282-285.
20  DEACEY, Susan. Athena and Ares: war, violence and warlike deities. In: VAN
WEES, Hans (Ed.). War and Violence in Ancient Greece. Swansea: The Classical Press
of Wales, 2009.p.285.
Volume 1 129
haja vista que isso simplificaria toda e qualquer abordagem para com
os deuses helênicos e as suas esferas de atuação.
Embora Atena esteja vinculada a questões militares e, por
vezes, estritamente masculinas, devemos recordar que esta também
era responsável por atividades como o fiar de tecidos, a proteção de
jovens, a saúde e a música – tendo sido a responsável pela criação do
aulós21. Para tanto, Susan Deacy classificou Atena como uma deusa
“polimétis”, isto é, uma divindade dotada de destreza para desempe-
nhar múltiplas atividades22 (DEACY, 2008, p.06). Tal epíteto pode ser
materializado pelo discurso mítico do nascimento de Atena. A referida
deusa seria o fruto do relacionamento de Zeus e Métis, sendo esta
última considerada como a mais sábia de todos os deuses e mortais.
Hesíodo enfatizou que Métis, ao engravidar, recebeu uma profecia de
Gaia e Urano onde o resultado do primeiro matrimônio de Zeus23 seria
uma filha. No entanto, como Métis estava destinada a ter herdeiros
grandiosos, o seu segundo filho seria o responsável por destronar o
“senhor dos raios” (Hesíodo, Teogonia, vv. 886-896).
Enquanto divindade, Métis era a personificação da prudência,
mas também da astúcia, tendo em vista que graças ao seu conheci-
mento Zeus pôde fazer com que Cronos expelisse os filhos que havia
devorado (Pseudo-Apolodoro, Biblioteca de História, I, 2.1). Através
de Hesíodo observamos que Atena seria igual ao seu pai em força e
sabedoria, sendo uma das responsáveis por fazer vigorar a ordem de
Zeus (Hesíodo, Teog., vv. 896-901). Convergindo com a documentação
literária, Susan Deacy expôs que, ao engolir Métis, Zeus garantiu que
nenhum filho dessa relação ameaçasse o seu poder. Como Métis seria

21  Segundo Aires Manuel dos Reis Pereira, o aulós (αὐλός) foi um dos principais
instrumentos de sopro da Antiga Hélade. Podendo variar entre as formas cilíndrica e
cônica, o aulós (pl. auloí) era empregado em cerimônias em honra a Dioniso, procis-
sões, danças, nas marchas militares, concursos e até mesmo banquetes. O mesmo po-
deria ser tocado solo, ou combinado com voz e instrumentos de corda. Nas palavras
de Pereira, o termo aulós significaria “tubo” e, enquanto instrumento, era dotado de
uma palheta dupla. PEREIRA, Aires Manuel Rodeia dos Reis. A Mousiké: das Origens
ao Drama de Eurípides. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.p.210-211.
22  DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.06.
23  Diferentemente de Hesíodo, Pseudo-Apolodoro (Biblioteca de História, I, 3.6)
não insere Métis na condição de esposa de Zeus, possivelmente, como uma tentativa
de valorizar o papel de Hera como a “mulher legítima” do “senhor dos raios”.
130 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
a deusa que a tudo conhecia, ao devorá-la, Zeus obteve esta potencia-
lidade e legitimou a sua preponderância sobre as demais divindades.
Logo, Métis detinha atributos suficientes para estar além da autori-
dade do “senhor do Olimpo”, enquanto Atena seria a prudência e a
astúcia de Métis atuando em benefício de Zeus.
Susan Deacy enfatizou que Atena assegurava o sistema patriar-
cal estabelecido por seu pai, devido ao vínculo que mantinha com ele,
desde o seu nascimento24. Convergindo com Hesíodo (Teog., v.929),
Atena nasceu da cabeça de Zeus às margens do lago Triton25, na Líbia.
Pseudo-Apolodoro complementou o discurso de Hesíodo, pois, Zeus
precisou do auxílio de Hefesto (ou Prometeu) para parir Atena, a qual
se encontrava em sua cabeça. O discurso mítico pontua que com um
machado, Hefesto abriu o crânio de Zeus e dali saiu Atena, completa-
mente armada26 (Pseudo-Apolodoro, Bibl. de História, I, 3.6). Sendo
assim, podemos sugerir que Atena seria a divindade responsável por
assegurar que Zeus realizaria os seus desígnios junto aos deuses e aos
mortais, haja vista que, além de ser detentora de força e sabedoria
semelhante ao seu pai, a mesma provinha de sua cabeça partilhando
de seus pensamentos e convicções. De forma semelhante, Atena seria
uma divindade polimétis, à medida que partilhava das prerrogativas de
sua mãe (a mais sábia dos imortais) e de seu pai (o senhor do Olimpo).
Prosseguindo em nossa caracterização de Atena, o segundo
“Hino Homérico a Atena” nos fornece alguns de seus principais atribu-
tos. Dentre estes teríamos o de deusa gloriosa de olhos brilhantes, in-
ventiva em suas ações e de coração inflexível, virgem pura e salvadora
das póleis (Hinos Homéricos, 28.1-4). Podemos discorrer sobre essas
qualidades de Atena, afinal, grande parte desses adjetivos demonstra
aspectos vinculados à justiça e às habilidades técnicas da deusa. Logo,
o fato de ser “salvadora das póleis” (Έρυσίπτολις) fazia com

24  DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.30-31.


25  No segundo Hino Homérico a Atena, o autor a nomeia de Tritogeneia, cuja
transliteração aproximada seria “nascida [às margens do rio] Triton” (Hinos Homé-
ricos, 28.1-4).
26  Em sua sétima Ode Olímpica, Píndaro se utilizou de um cenário similar ao de
Hesíodo e Pseudo-Apolodoro para narrar o nascimento de Atena. No entanto, como
nesse texto, Píndaro estava elogiando um competidor da ilha de Rodes que venceu
na Olimpíada de 464 a.C.. O poeta de Tebas declarou que Atena havia nascido na
referida ilha (Píndaro, Odes Olímpicas, 7.35-39).
Volume 1 131
que Atena representasse ideais políticos e culturais atrelados à vida
em comunidade. Do mesmo modo, este epíteto estaria diretamente
associado ao fato de ser uma “deusa gloriosa” e de “coração inflexí-
vel”, haja vista a ênfase do discurso documental quanto à proteção que
Atena exercia sobre as cidades, em virtude de sua glória e de suas prer-
rogativas. Por ser considerada inflexível Atena agiria em conformidade
à justiça inerente às circunstâncias, levando-nos a sugerir que as suas
atitudes estariam longe de serem parciais. Enquanto uma deusa inven-
tiva, verificamos que as suas criações técnicas garantiam o sucesso da
vida em sociedade, tanto no que concerne aos homens quanto às mu-
lheres. Tais prerrogativas também assegurariam as esferas de atuação
de cada grupo e gênero no interior das póleis, ratificando os valores
patriarcais e a condição da mulher no oikos.
Por sua vez, a documentação literária nos demonstra que
Atena não seria uma divindade com características eminentemente
pacíficas. Ao contrário, a referida deusa poderia manifestar atributos
terríveis conforme a situação em que estivesse inserida. Imersos nesta
perspectiva, o primeiro “Hino Homérico a Atena” comenta como esta
divindade estaria associada a Ares, pois, ambos seriam amantes dos
feitos da guerra, dos saques das póleis e dos gritos de batalha. De for-
ma semelhante, Atena era a responsável por conduzir os homens aos
campos de batalha e por trazê-los em segurança para as suas casas
(Hinos Homéricos, 11.1-4). Essas prerrogativas da “deusa de olhos bri-
lhantes” também teriam sido expressas no contexto de seu nascimen-
to. Em uma ótica cronológica, notamos que em Hesíodo a representa-
ção de Atena estaria atrelada a aspectos bastante peculiares e pouco
amistosos. O autor beócio afirmou: “[...] Zeus deu à luz, de sua própria
cabeça, a Tritogeneia de olhos brilhantes, a terrível, aquela que des-
perta o barulho na guerra, a líder dos comandantes, a incansável, a se-
nhora que promove o tumulto nas guerras e batalhas” (Hesíodo, Teog.,
vv. 924-926)27. No segundo “Hino Homérico a Atena” temos uma re-
presentação mais evidente do quanto Atena poderia ser terrível. Nas
palavras do autor:

27  Este trecho foi traduzido a partir da intepretação proposta por Hugh G. Evelyn-
-White, em uma edição da Teogonia de Hesíodo publicada em Cambridge em 1914.
132 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
O sábio Zeus deu à luz [a Atena] de sua esplendorosa cabeça,
trajada em uma armadura brilhante como o ouro, que todos
os deuses ficaram espantados ao contemplarem. Mas Ate-
na saltou rapidamente de sua cabeça imortal e se colocou
diante de Zeus que portava a égide, e agitando a sua pode-
rosa lança fez com que o grande Olimpo começasse a tremer
terrivelmente, devido ao poder da deusa de olhos brilhan-
tes. A terra ao redor chorou de medo, e o mar foi movido
e abatido com ondas escuras, enquanto a espuma irrompia
subitamente. O filho brilhante de Hipérion [Hélios, o sol] pa-
rou os seus velozes cavalos por um longo período, até que a
donzela Pallas Atena retirou a sua armadura celestial de seus
ombros imortais. E o sábio Zeus ficou satisfeito (Hinos Homé-
ricos, 28.1-18)28.

Mediante os escritos dos “Hinos Homéricos”, Susan Deacy


propôs que Atena estaria associada à “magia da guerra”, a qual se ma-
nifestava pelo fato de gerar o temor com o seu olhar, pelo som pro-
duzido no ato de brandir os escudos e o pavor advindo dos gritos de
guerra29. Analisando o hino citado, observamos que o brilho do olhar
de Atena seria capaz de acometer os inimigos em pânico, ou seja, as
prerrogativas de guerra manifestadas pela “filha de Zeus” não se inse-
riam em questões eminentemente físicas. O argumento apresentado
evidencia que Atena e Zeus partilhavam de um poder semelhante, à
medida que os deuses chegaram a temê-la somente ao admirarem o
seu semblante. Um aspecto bastante curioso seria o fato desta deusa
promover um eclipse através do esplendor de sua aparência e de sua
armadura. Logo, o brilho de Atena seria capaz de suplantar o do sol,
aspecto esse que poderia estar vinculado à própria potencialidade de
Zeus, enquanto o “luminoso”.
Outro elemento que não podemos deixar de destacar, e que
se mantém vinculado às representações de Atena, seria a égide30. Esta

28  Assim como na nota anterior, estabelecemos uma tradução do inglês tendo
como fundamentação Hugh G. Evelyn-White, em obra publicada em 1914. Para
maiores informações vide a bibliografia.
29  DEACEY, Susan. Athena and Ares: war, violence and warlike deities. In: VAN
WEES, Hans (Ed.). War and Violence in Ancient Greece. Swansea: The Classical Press
of Wales, 2009.p.286.
30  A égide poderia ser compreendida como um acessório de combate, tanto para
Volume 1 133
poderia ser entendida tanto como parte de sua indumentária, quanto
também um de seus aparatos de guerra. Inicialmente, a égide seria um
atributo de Zeus, porém, este foi compartilhado por Atena em circuns-
tâncias específicas. Interagindo com Susan Deacy, esta demonstrou
que a égide de Atena poderia ser retirada quando a deusa se encon-
trasse fora de um contexto de guerra31. Tais pressupostos podem ser
materializados nos “Hinos Homéricos”, onde Atena teria retirado todo
o armamento de seus ombros, restabelecendo a ordem do “Univer-
so” (Hinos Homéricos, 28.15-17). Nas palavras de Deacy, Atena mani-
festava o terror, a desordem e a beleza deslumbrante através de seu
armamento – a armadura, o escudo, a égide e o gorgoneion32 – os
quais poderiam não ser utilizados, demonstrando as múltiplas caracte-
rísticas desta divindade. Do mesmo modo, a presença do gorgoneion
associaria a figura de Atena com a da Górgona, enfatizando o quão
terrível esta deusa poderia ser33. Entretanto, a aparente dualidade de
Atena nos permite notar que as divindades helênicas não limitavam
as suas esferas de atuação no mundo. Com isso, qualificar de manei-
Zeus quanto para Atena. A literatura clássica não converge quanto às origens da
égide, sendo por vezes atribuída à pele da cabra Amalteia – responsável por alimen-
tar Zeus em Creta, quando este era criança – e, na variante mais comum, à pele do
gigante Pallas que ao ser derrotado pela deusa Atena, passou a servir-lhe de escudo.
Quanto às potencialidades da égide, Zeus ao sacudi-la produzia tormentas e tempes-
tades. Do mesmo modo, esta foi empregada por Zeus no intuito de salvar Atena de
seu confronto com Palas, quando ambas eram jovens. Ao manifestar a presença da
égide diante de Palas, quando esta combatia Atena, o “senhor dos raios” protegeu a
sua filha, enquanto esta feriu a jovem companheira fatalmente. Esse discurso mítico
também se remete a criação do paládio, sendo esta uma imagem de proteção (Ho-
mero, Ilíada, XVII, vv.592-593; Calímaco, Hinos, 1.45-50; Pseudo-Apolodoro, Biblio-
teca de História, III, 12.3; Diodoro, Biblioteca Histórica, V, 70.2). Logo, a égide seria
uma das partes do armamento de proteção de Zeus e Atena, cuja principal finalidade
seria surpreender, levar o pânico, o terror contra os seus inimigos. Tais pressupostos
demonstram que Atena não estaria diretamente associada aos aspectos físicos da
guerra, ratificando a proposta de Susan Deacy, acerca da deusa ser a responsável
pela “magia da guerra”. Idem.
31  DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.07.
32  O gorgoneion seria um amuleto apotropaico com a imagem da medusa, a qual
visava proteger o seu usuário. No que tange a Atena, o gorgoneion teria a função de
amplificar os poderes da égide, que além de proteger a deusa faria com que os seus
inimigos ficassem acometidos em pânico. Idem.
33  DEACY, Susan. Athena and Ares: war, violence and warlike deities. In: VAN
WEES, Hans (Ed.). War and Violence in Ancient Greece. Swansea: The Classical Press
of Wales, 2009.p.289.
134 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ra polarizada as representações de Atena nos impediria de apreender
as suas potencialidades da forma mais adequada. Afinal, a “deusa de
olhos brilhantes” teria a capacidade de proteger uma pólis e os seus
habitantes, bem como promover o caos e o desespero naqueles que se
colocavam contra os seus protegidos34.
O seu caráter divino atrelado ao equilíbrio e à ordem se tor-
nam evidentes à medida que a mesma detém a potencialidade de se
abster das suas prerrogativas “caóticas” conforme as circunstâncias. Do
mesmo modo, a deusa que fez o Olimpo tremer ao nascer, deixando os
demais imortais estupefatos, também seria a responsável pela manu-
tenção da ordem políade, da tradição e da justiça, aspectos que a atre-
lavam diretamente a Zeus. Sendo assim, a métis de Atena – traduzida
como astúcia, habilidade, destreza – seria empregada nas mais variadas
circunstâncias, não estando limitada a ações e práticas de guerra.
Como verificamos, Atena seria uma divindade multifacetada
e dotada de atributos que permeavam ambientes de interação social,
mas também pressupostos de cunho militar. Ainda que tenha sido apro-
priada e re-significada pelas sociedades ocidentais modernas, seja para
legitimar a ordem social vigente ou para enfatizar a importância de se
pensar o lugar da mulher diante dos excessos masculinos; ainda que
Atena tenha sido representada de inúmeras maneiras, devemos consi-
derá-la através da sua singularidade e em conformidade aos valores da
Antiguidade helênica. Mediante o exposto, poderemos nos debruçar
sobre a importância desta divindade para a sociedade de Esparta.

34  Podemos destacar aqui os casos célebres de Héracles, Diomedes e Odisseu, os


quais foram auxiliados em inúmeras circunstâncias pela deusa. Todavia, a relação de
Héracles e Atena se torna bastante peculiar, em medida que a documentação literá-
ria atesta que a deusa “de olhos Glaucos” foi a responsável pelo sucesso do referido
herói em grande parte de suas aventuras, como também por conduzi-lo ao Olimpo
em sua apoteose divina. Nos dizeres de Diodoro da Sicília, Atena foi a responsável
por convencer Hera a amamentar Héracles ao nascer, pois havia se impressionado
com o vigor do filho de Alcmena (Diodoro, Biblioteca Histórica, IV, 9.6). Imersos nesse
viés, ao terminar os seus famosos “Doze Trabalhos”, Héracles teria fundado os “Jogos
Olímpicos”, e para honrá-lo Atena lhe presenteou com uma túnica (Diodoro, Bibl.
Hist., IV, 14.3). Pseudo-Apolodoro nos informou que ao entrar em combate com o
rei dos mínios de Orcômeno, Ergíno, Héracles recebeu armas de Atena, com as quais
derrotou os oponentes (Pseudo-Apolodoro, Bibl. de História, II, 4.11). Em seu sexto
trabalho, Héracles teria recebido de Atena guizos de bronze, com os quais afugentou
as aves do lago Estínfalo (Pseudo-Apolodoro, Bibl. de História, II, 5.6).
Volume 1 135
2 As divindades tutelares de Esparta e o culto para
a deusa Atena

De fato, se compararmos a relação de Atenas e Esparta com a


deusa “de olhos brilhantes”, os indícios literários da Ática são demasia-
damente abundantes. Entretanto, como a documentação empregada
lida com pressupostos discursivos, a presença de Atena junto à pólis
espartana se encontra no âmbito do “não-dito”. Diferentemente de
Atenas, a divindade tutelar de Esparta era o deus Apolo, cujas princi-
pais atribuições estariam associadas à formação dos jovens, ao ato de
sancionar as leis tradicionais e à legitimação das prerrogativas políticas
dos esparciatas sobre a Lacedemônia. Junto a sua irmã gêmea, Artemis,
Apolo garantiria as condições necessárias para que os jovens de Esparta
pudessem alcançar a condição de cidadãos de plenos direitos políticos.
Logo, Apolo estava diretamente atrelado às determinações políticas da
sociedade espartana, cabendo a Atena a defesa do território políade.
Embora a nossa assertiva possa gerar críticas e questionamentos, Apolo
seria o guardião da tradição e aquele que exprimia os desígnios de Zeus
junto aos basileus da Lacedemônia, enquanto Atena seria a divindade
associada à defesa do espaço da pólis – com ênfase aos seus atributos
militares e a sua métis, necessários para a realização desta tarefa.
Em linhas gerais, não podemos dissociar a “tríade” Zeus, Apo-
lo e Atena. No que concerne à Esparta, podemos afirmar que Zeus se-
ria a representação da identidade políade, dos elementos tradicionais
relacionados à organização da sociedade, bem como da autoridade
patriarcal dos basileus lacedemônios. Na sociedade de Esparta, Apolo
poderia ser identificado como o deus “fundador” e legislador, cujas de-
terminações legitimavam a preponderância dos basileus e esparciatas
sobre a Lacedemônia. No entanto, qual seria a função de Atena entre
os espartanos? Podemos qualificar Atena como a deusa responsável
pela realização da ordem e da disciplina, necessárias a uma vida social
harmoniosa. Sendo assim, Atena garantiria o equilíbrio da pólis espar-
tana, ao assegurar que os homens iriam cumprir as leis de Apolo, sen-
do estas compreendidas como uma manifestação da vontade de Zeus.
Como a responsável pela proteção do espaço políade – o qual
também era consagrado a Zeus – Atena estaria vinculada aos exércitos
136 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
esparciatas. Mediante o discurso de Políbio, em “Histórias”, podemos
ratificar tais apontamentos. Como nos informou o pensador de Mega-
lópolis, havia um costume ancestral em Esparta, no qual todos os cida-
dãos em idade militar (dos 20 aos 60 anos) deveriam se apresentar no
templo de Atena “da Casa de Bronze” (Χαλκίοικος), e nes-
sa ocasião os éforos realizavam um sacrifício. De acordo com Políbio
os jovens guerreiros tinham a responsabilidade de conduzirem uma
procissão em honra à deusa (Políbio, Histórias, IV, 35.1-3). Interagindo
com Pausânias, na obra “Descrição da Grécia”, este argumentou que
na acrópolis35 de Esparta foi construído um santuário para Atena, co-
nhecida como “Protetora da pólis” (Πολιουχος) e “Senhora
da Casa de Bronze”36. Pausânias expôs que a construção deste santu-
ário teria se iniciado com Tíndaro, sendo concluída muitos anos depois
por Gitíadas – construtor e poeta lírico espartano – que desenvolveu
uma imagem da deusa e as paredes do santuário em bronze (Pausâ-
nias, Descrição da Grécia, III, 17.2).
Convergindo os indícios documentais, podemos sugerir que
Atena atuava como a guardiã da acrópolis de Esparta, enquanto cen-
tro de poder político e religioso. Através de Políbio observamos que
os jovens espartanos se apresentariam a Atena no momento em que
tivessem concluído a primeira parte do seu processo de formação,
sendo compreendidos na categoria de hebontes. Assim, os mesmos
estariam sendo reintegrados à sociedade na condição de adultos –
passando da tutela de Apolo e Artemis para a de Atena. Com isso, os
mesmos acabavam interiorizando parte das prerrogativas da deusa
de “olhos brilhantes”, à medida que deveriam proteger a pólis de Es-
parta com as suas vidas.
Nas palavras de Jennifer Larson a imagem do templo de Atena
Polioikos/Calcioikos seria um paládio37. Dialogando com Pseudo-Apo-

35  A acrópolis seria a parte mais alta de um território políade, onde, geralmente,
estariam situados os principais templos e construções da pólis. Esta área, em particu-
lar, também detinha uma função de proteção em momentos de guerra.
36  Como nos esclareceu J. T. Hooker, o termo Polioikos seria uma antiga designa-
ção para o santuário de Atena em Esparta. Já Calcioikos foi a denominação que os
lacedemônios deram ao santuário após a construção de Gitíadas, e o uso das chapas
de bronze para revestir as paredes do mesmo. HOOKER, J.T. The Ancient Spartans.
London: J. M. Dent & Sons Ltd., 1980.p.49.
37  LARSON, Jennifer. Ancient Greek Cults – A Guide. New York; London: Routledge,
Volume 1 137
lodoro, o paládio foi uma imagem de pequenas proporções que repre-
sentava Atena e/ou a ninfa Palas, cujas propriedades divinas garantia
a proteção da pólis que a detivesse. O referido autor elucida que a his-
tória do paládio se remete à formação educacional de Atena e ao seu
treinamento militar junto à ninfa Palas. Enquanto praticavam a arte da
guerra, Palas iria ferir Atena, o que levou Zeus a interferir no embate
colocando a sua égide diante da ninfa. Esta, ao se surpreender com
a terrível visão, foi mortalmente ferida por Atena, a qual confeccio-
nou uma imagem de Palas – em madeira – no intuito de honrar a sua
companheira de treino (Pseudo-Apolodoro, Bibl. de História, III, 12.3).
Pseudo-Apolodoro afirmou que o paládio original estaria em Tróia, e
ao ser secretamente tomado pelos aqueus, levou o reino de Príamo à
ruína. Não seria incorreto afirmarmos que as póleis, entre os Períodos
Arcaico e Clássico, tenham se arrogado como detentoras do paládio de
Tróia. Portanto, verificamos que em Esparta a presença de uma ima-
gem em bronze da deusa Atena seria uma alusão ao paládio, cuja fun-
ção apotropaica seria proteger a pólis dos esparciatas.
Na perspectiva de Jennifer Larson, em Esparta, todo o interior
do templo de Atena era revestido com placas de bronze, nas quais ha-
via relevos dos feitos de alguns heróis importantes para o Peloponeso,
tais como Héracles, os Dióscuros e Perseu38. A argumentação de Lar-
son nos demonstra que as paredes deste santuário teriam um caráter
de memória. Com isso, os seus frequentadores poderiam apreciar as
ações de heróis míticos, os quais serviram como matriz para a con-
duta dos esparciatas, tendo em vista que a sua formação priorizava a
construção de um modelo ideal de cidadão, com base nas ações dos
grandes homens de outrora.
Como havíamos exposto, Atena detinha grande importância
junto aos exércitos de Esparta. Ao confluirmos com Nicolas Richer, este
afirmou que o culto de Atena em Esparta estaria diretamente associa-
do ao de Zeus39. Em certa medida, Richer não estaria equivocado ao
elaborar tais apontamentos. Como nos informou Plutarco, ao tentar
transformar a constituição e a conduta dos homens de Esparta, o míti-

2007.p.48.
38  Ibidem, p.53.
39  RICHER, Nicolas. La Religion des Spartiates – Croyances et cultes dans l’Antiqui-
tes. Paris: Les Belles Lettres, 2012.p.26.
138 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
co legislador Licurgo conseguiu que Apolo sancionasse as suas propos-
tas. Com isso, o “deus de Delfos” sugeriu que fosse construído em Es-
parta um santuário para Zeus e Atena, sob o epíteto de Silâneo/Silânea
(Plutarco, Vida de Licurgo, 6.1). Richer declarou que a matriz dessa de-
signação é incerta, porém, denotaria “o guerreiro/a guerreira”, sendo
Zeus, Apolo e Atena três das divindades mais antigas e importantes de
Esparta40. Richer prossegue em seus apontamentos e complementa
a nossa exposição, pois, enquanto Polioikos, Atena seria a “guardiã da
pólis” de Esparta, mas, na condição de Calcioikos a referida deusa atu-
aria como a defensora dos exércitos41.
A prerrogativa de Atena como protetora dos guerreiros foi
apresentada no primeiro “Hino Homérico a Atena”, onde a deusa seria
a responsável por “[...] levar os homens à guerra e trazê-los de volta,
em segurança” (Hinos Homéricos, 11.3-4). Por um viés distinto, Xeno-
fonte declarou que antes de partirem para a guerra, o basileu lacede-
mônio sacrificava em honra a Zeus Líder (Agetor) e aos Dióscuros. Ao
conseguir presságios favoráveis, o “condutor da chama”42 (pyrphoros)
tomava o fogo do altar e marchava à frente do exército até os limites da
Lacedemônia. Entre a pátria e o território estrangeiro, o basileu deveria
realizar a diabatéria (sacrifício de fronteira) em honra a Zeus e Atena, e
somente ao conseguir presságios adequados atravessavam a fronteira
com os exércitos (Xen. Cons. Lac., 13.2-3). O discurso de Xenfonte nos
permite conjeturar que a diabatéria seria um mecanismo empregado
pelos guerreiros de Esparta para conseguirem sancionar as suas inves-
tidas militares, garantindo a proteção de Zeus e Atena durante as expe-
dições. De fato, como a divindade tutelar dos guerreiros esparciatas,
Atena estaria assegurando a manutenção do contingente masculino da
pólis, necessário para a proteção e a continuidade da tradição ancestral
desta sociedade. Sendo assim, a relação que Zeus e Atena mantinham
em Esparta era justificada à medida que a deusa estaria atuando junto
ao seu pai, sendo esta uma maneira de fazer com que os valores po-

40  Ibidem, p.26-27.


41  Ibidem, p.39.
42  O “condutor da chama” era o sacerdote responsável por conduzir o fogo sagra-
do utilizado nos sacrifícios espartanos até a fronteira do território lacedemônio. Ao
se realizar a diabatéria cabia a esse magistrado oferecer as carnes da vítima sacrifical
ao fogo sagrado.
Volume 1 139
lítico-sociais espartanos fossem realizados. Podemos expandir nossas
considerações, tendo em vista que Apolo e Atena seriam as divindades
cujas prerrogativas pretendiam assegurar a tradição da pólis de Esparta,
as quais estavam atreladas à legitimação dos interesses aristocráticos
dos basileus e esparciatas, no interior da Lacedemônia.
A documentação de Heródoto nos demonstra que os epítetos
dos basileus espartanos fariam com que os seus atributos político-reli-
giosos fossem associados a Zeus. Em suas “Histórias”, Heródoto identi-
fica os basileus como os próprios Dióscuros (V, 75.2), e nos informa que
os mesmos detinham as prerrogativas sacerdotais de “Zeus Urânios”
e “Zeus Lacedémon” (VI, 56.1). Devido a essas atribuições os basileus
poderiam levar a guerra onde quisessem, além da responsabilidade
de imolarem as vítimas e obterem os presságios no campo de bata-
lha. Xenofonte amplia as considerações de Heródoto, ao pontuar que
todos os sacrifícios públicos da pólis de Esparta eram realizados pelos
basileus, pois, estes descendiam dos deuses (Xen. Cons. Lac., 15.2). O
discurso documental enfatiza a relação que os governantes de Esparta
mantinham com Zeus, tanto por meio de seus sacerdócios quanto pela
identificação com alguns de seus filhos.
Vale ressaltar que as famílias reais espartanas se representa-
vam como descendentes diretas de Héracles, sendo este um dos filhos
favoritos do “senhor dos raios” e um dos heróis mais bem protegidos
por Atena. Susan Deacy aponta que grande parte das atividades de
Héracles dependia da intervenção e auxílio de Atena43. Seguindo esse
viés, podemos afirmar que Atena seria uma divindade cuja atividade
e proteção se faziam presentes no cotidiano da realeza “heráclida”
espartana. Do mesmo modo, a referida deusa seria um dos aspectos
divinos que asseguravam a autoridade dos basileus na Lacedemônia,
afinal, os mesmos eram identificados com Zeus e com Héracles. Como
destacou Susan Deacy, Atena ratifica o sistema patriarcal de seu pai
pelo vínculo que mantinha com ele, o qual pode ser evidenciado nas
“Eumênides” de Ésquilo44. Expandindo as considerações de Deacy,
Atena atuaria na realeza espartana como a responsável por garantir as
determinações políticas desta magistratura, a qual estava relacionada
– direta ou indiretamente – com Zeus.

43  DEACY, Susan. Athena. London; New York: Routledge, 2008.p.66.


44  Ibidem, p.31, 37.
140 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Contudo, a relação de Atena com o exército espartano pode
ser verificada através de outros aspectos. No decorrer deste artigo
apresentamos algumas das principais características de Atena, as
quais podem se associar à conduta dos guerreiros esparciatas. Na
“Constituição dos Lacedemônios”, Xenofonte discorre acerca da ma-
neira como os jovens de Esparta se exercitavam de forma extenuante
para que se tornassem adultos de plenos direitos políticos (Cons. Lac.,
2.1-3). Na Antiguidade helênica, em geral, ser cidadão pressupunha
ser guerreiro, haja vista o seu dever em proteger o espaço ancestral
da pólis. No entanto, nenhum sujeito nasce guerreiro, tendo em vista
que os homens são construídos em conformidade aos valores cultu-
rais de sua sociedade, para que assim obtenham o conhecimento das
técnicas que o constituiria enquanto combatente. Com isso, podemos
supor que esta instrução estaria atrelada à Atena como uma deusa po-
limétis e dotada da téchne militar. Xenofonte esclarece que os jovens
de Esparta eram preparados de modo que pudessem realizar com
facilidade ações que, à primeira vista, seriam árduas e trabalhosas
(Cons. Lac., 2.3). Aqui podemos observar que a contínua repetição de
práticas de caráter militar faria com que jovens espartanos desenvol-
vessem habilidades específicas e peculiares, seja em suas atividades
cotidianas ou militares. Nesse contexto, a técnica seria o mecanismo
empregado pela pólis de Esparta para formar os seus jovens conforme
os padrões que almejava.
Por sua vez, Xenofonte argumentou que o mítico legislador
Licurgo incentivou que os jovens furtassem alimento no intuito de
complementarem a sua refeição diária. Todavia, aqueles que fossem
capturados nesse processo seriam punidos com chicotadas por não
terem furtado de modo adequado. Sendo assim, Xenofonte expôs
que os jovens espartanos deveriam desenvolver recursos engenhosos
para realizarem estas atividades com sucesso, os quais eram elemen-
tos necessários para a vida militar (Cons. Lac., 2.6-7). Plutarco parece
corroborar com Xenofonte, ao afirmar que essa prática pretendia de-
senvolver a astúcia e a ousadia nos jovens (Plut.,Vida de Licurgo, 17.4).
Embora este ritual tenha sido direcionado à deusa Artemis Orthia45,

45  ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. O rito de Artemis Orthia e o processo de
formação do jovem espartano, no período Clássico. In: CANDIDO, Maria Regina
(Org.). Práticas Religiosas no Mediterrâneo Antigo – Religião, Rito e Mito. Rio de Ja-
Volume 1 141
notamos que tais características poderiam ser alinhadas às potenciali-
dades de Atena, visto que além de realizarem exaustivamente os exer-
cícios de preparo físico, os jovens também eram levados a desenvol-
verem a sua métis. Logo, a astúcia seria um diferencial no interior dos
exércitos espartanos, permitindo que um sujeito se destacasse sobre o
outro e viesse a obter cargos de maior proeminência político-militar na
sociedade. Com isso, verificamos que os guerreiros não se constituem
unicamente pelas suas atribuições físicas, mas também pelas suas ca-
pacidades mentais – associadas à métis– e ao modo como agiriam em
circunstâncias desfavoráveis, no interior da guerra.
Dialogando com Plutarco (Vida de Licurgo, 24.1), o mesmo
enfatizou que em Esparta o processo de formação se estendia à vida
adulta. Xenofonte (Cons. Lac.,4.7) afirma que os cidadãos de Esparta
deveriam se dedicar à caça, pois assim não descuidariam do vigor físico
e saberiam suportar as fadigas tanto quanto os jovens. Ampliando o dis-
curso de Xenofonte, podemos afirmar que a caça também pressupõe
o conhecimento e aprimoramento de técnicas destinadas ao sucesso
deste empreendimento. Com isso, um sujeito não deveria ter somente
o conhecimento técnico da atividade de caça, mas também deveria ser
astuto e suficientemente dotado de “métis” para que pudesse se ade-
quar às circunstâncias advindas desta prática. Sendo assim, o discurso
de Xenofonte se torna esclarecedor, afinal, os guerreiros esparciatas
seriam capazes de realizarem manobras militares demasiadamente di-
fíceis, em virtude dos anos que praticaram para desenvolverem estas
habilidades técnicas (Cons. Lac., 11.8). Desta forma, verificamos que
embora os autores clássicos não tenham mencionado de maneira evi-
dente a presença de Atena junto aos exércitos espartanos, as prerro-
gativas desta deusa se manifestavam, a todo o momento, na conduta
dos guerreiros esparciatas.
Se tomarmos os indícios dos “Hinos Homéricos a Atena”, ire-
mos notar que ao nascer a deusa Atena causou pânico nas demais
divindades devido ao brilho de seus olhos e de sua armadura. Essa
luminosidade de Atena estaria associada ao que Susan Deacy chamou
de a “magia da guerra”, a qual estava voltada a causar o pânico nos
seus adversários. Tais aspectos, em certa medida, podem ser associa-

neiro: NEA/UERJ, 2012.p.66-82.


142 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
dos à conduta militar espartana. Nas palavras de Xenofonte, o legis-
lador Licurgo teria instituído que os esparciatas trajassem um manto
carmesim por baixo de sua armadura, além de portarem um escudo
de bronze, afinal, se torna brilhoso46 mais facilmente e demora mais
tempo para manchar. Em seguida, no momento em que deixavam a
juventude, os homens de Esparta poderiam ter os cabelos longos, no
intuito de parecerem mais altos, distintos e terríveis (Cons. Lac., 11.3).
O discurso de Plutarco se assemelha a Xenofonte, onde os jovens adul-
tos de Esparta relaxavam de sua disciplina cotidiana quando se encon-
travam em tempos de guerra. Com isso, poderiam ornamentar os seus
cabelos, os quais eram untados em óleo e divididos ao meio. Segundo
Plutarco, o cabelo comprido acentuava a beleza dos homens formosos
e tornava os feios ainda mais terríveis (Plut.,Vida de Licurgo, 22.1).
Ao dialogarmos com os textos originais em grego, notamos
que Xenofonte se utilizou do adjetivo “gorgoterois” para demonstrar o
quanto essa conduta tornava os esparciatas apavorantes, estando este
termo relacionado à Atena enquanto uma “deusa terrível”. Já Plutar-
co se valeu de um epíteto particular – phoberoterois – o qual estaria
associado ao medo, ou melhor, à capacidade de causarem o pânico
em seus adversários. Embora a documentação não tenha associado a
conduta militar dos esparciatas com Atena, verificamos que ambas as
representações demonstram o quanto estes guerreiros vinculavam a
sua aparência com a capacidade de se tornarem dignos de admiração,
seja pelo terror que causavam em seus oponentes ou pela sua beleza
graciosa. Dessa maneira, podemos conjeturar que as prerrogativas de
Atena enquanto “deusa gloriosa, [...] de olhos brilhantes, [...] trajada
em uma armadura brilhante” (Hinos Homéricos, 28.1-15), e com a ca-
pacidade de amedrontar os seus oponentes pela aparência, eram as-
pectos que se faziam presentes no exército espartano.
Imersos nessa perspectiva, a ordem e a disciplina seriam ele-
mentos que se manifestavam na conduta espartana, seja na guerra ou
nas atitudes cotidianas. Xenofonte (Cons. Lac., 2.2) declarou que, em
Esparta, o respeito e a disciplina sempre se faziam presentes. O au-
tor ateniense ainda ressalta que o exército espartano era conduzido

46  Podemos sugerir que o brilho dos escudos de bronze teria uma finalidade se-
melhante a dos olhos de Atena, ou seja, causar o pânico nos adversários por ofus-
car-lhes a visão.
Volume 1 143
pelo som do aulós, responsável por cadenciar a marcha dos esparcia-
tas (Xen., Cons. Lac., 13.7-8). Plutarco pontuou que após os últimos
sacrifícios no campo de batalha, o basileu determinava que os auletas
tocassem o aulós e iniciassem a “ária de Castor” (Plut. Vida de Licurgo,
22.2). Mediante os indícios documentais devemos destacar que o au-
lós teria sido uma criação de Atena e, embora não fosse exclusivo em
Esparta, nos demonstra que a referida deusa se mantinha amplamente
associada à conduta dos guerreiros esparciatas, ainda que os indícios
documentais não sejam evidentes.

Considerações Finais

Sendo assim, podemos concluir que Atena foi recorrentemen-


te representada no discurso documental e historiográfico ocidental, da
Antiguidade à Modernidade. Contudo, ao ser apropriada, a imagem de
Atena passou a se adaptar aos mais variados interesses político-cultu-
rais inerentes ao contexto histórico. No que tange à figura de Atena,
fomos capazes de enfatizar que esta deusa não detinha prerrogativas
polarizadas e, devido ao seu ideal de justiça, a mesma não estaria as-
sociada a noções de “bem e mal”. Por sua vez, a deusa imponente e
de “olhos brilhantes” poderia ser amável com os seus protegidos, mas
também terrível com os seus oponentes, o que nos aponta para uma
natureza múltipla. No interior de Esparta, observamos que esta deusa
nem sempre foi representada pelo discurso documental como parte
integrante das ações cotidianas e militares desta pólis.
Todavia, ao confrontarmos os indícios literários pudemos no-
tar que as prerrogativas desta divindade se faziam presentes entre os
guerreiros esparciatas de maneira intensa. Logo, em Esparta, Atena
manifestava a ordem e a disciplina necessárias ao convívio social e a
interação dos sujeitos no campo de batalha. Do mesmo modo, a astú-
cia e a téchne inerentes a esta deusa eram atributos que os esparciatas
cultivavam e desenvolviam desde a juventude. Imersos nessa ótica, os
guerreiros espartanos também se preocupavam com a aparência de
seus corpos e armaduras – de tal maneira que pudessem acometer

144 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


o pânico em seus inimigos – seja pela beleza e a organização de suas
falanges ou pelo temor de seus horrendos rostos. Para tanto, assim
como Atena, os esparciatas se mantinham preocupados com a imagem
que poderiam transmitir aos seus aliados e adversários, em virtude da
maneira como valorizavam a tradição ancestral e a “magia da guerra”.

Volume 1 145
DEUSES VIVOS, PRESENTES E
HONRADOS:
A EUSÉBEIA E A CULTURA DAS IMAGENS
Renata Cardoso Belleboni-Rodrigues1

As religiões antigas não são menos ricas espiritualmente nem


menos complexas e organizadas intelectualmente do que as
de hoje. Elas são outras2.

Θεοι δε υμιν εσθλα δοιεν


“que os bens, os deuses vos deem”

Ao se tomar para análise a eusébeia grega há que se consi-


derar que estaremos voltados para uma cultura religiosa em que não
há um profeta fundador, um livro sagrado, dogmas a ser respeitados,
uma hierarquia sacerdotal ou mesmo uma igreja unificada. Com tan-
tas negativas, a religiosidade grega foi, sem dúvida, um dos indicativos
mais claros do poder de uma tradição, pois, sua prática repousava na
apropriação dos costumes antepassados, os nómoi. A nós, cabe então
perguntar: que caminhos tomar para compreender esse espaço dos
protegidos de Zeus? O que pesquisar? Os deuses? Seus poderes ou
modos de atuação? A relação entre as potências? A relação ou comér-
cio, como diria Vernant3, entre mortais e imortais? Talvez estudar a
mitologia, os hinos, as preces, templos e/ou santuários e mesmo os
cultos, as oferendas, os sacrifícios e a arte. Ainda nos restaria pensar
nos oráculos e por que não a magia. A densidade e complexidade da
religiosidade grega se revela como um campo promissor às pesquisas
históricas, antropológicas, filológicas, arqueológicas, filosóficas e tan-
tos outros ramos das humanidades. Podemos mesmo afirmar que este

1  Doutora em História Cultural pela UNICAMP. Coordenadora do curso de Licen-


ciatura em História na Faculdade de Ciências e Letras de Bragança Paulista – FESB.
Tem experiência na área de arte, religiosidade e mitologias gregas.
2  VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica
D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p. 3.
3  Idem.
Volume 1 147
tema nos possibilita não apenas estudar uma dada polis grega, como
aprofundar nossa compreensão do Homem Grego Antigo.
Vale ressaltar que, ao tomarmos a expressão Homem Grego
Antigo, não julgamos que havia uma única identidade ou uma forma
homogênea de ver, viver e sentir as coisas sagradas, assim como não
havia uma única fórmula a seguir na prática religiosa. Nossa intenção
é aquela de reforçar a ideia de que os gregos das épocas arcaicas, clás-
sica e helenística, cada um ao seu modo, segundo as características
regionais e mesmo considerando-se as diferenças de gênero, posição
social e idade, conviveram com o divino em seu dia-a-dia. A despeito
dos contextos históricos e sociais, o Homem Grego Antigo teve a eusé-
beia como um dos pilares de sua relação com o mundo que o cercava.
Mesmo que cada pólis tivesse sua própria vivência dos hierás, das coi-
sas sagradas, o respeito a elas era inerente aos helenos.
Tomando estas prerrogativas como ponto de partida para nos-
sa discussão, iremos decompor esta temática de múltiplas facetas, dire-
cionando nossos olhares para a cultura da imagem, elemento essencial
para o entendimento desse universo mental do grego arcaico (e por-
que não clássico e helenístico). É importante que enfatizemos, já neste
momento, que imagem será compreendida aqui, não apenas como re-
presentações figuradas presentes em vasos com funções específicas em
determinados ritos, como igualmente as estátuas, sejam elas votivas ou
cultuais e mesmo os sacrifícios, pois eram para serem vistos por homens
e pelos deuses. Trataremos da relação dos homens com suas divindades
“vivas”, mas não temos a pretensão de apresentar esta relação tal como
foi, tarefa desprovida de significado, mas como, com os olhos de hoje,
nos parece ter sido. Tentaremos trazer para a presença o que está ausen-
te. Sem os preceitos judaico-cristãos que nos fundam e tomando as pa-
lavras de Vernant como nossas: “afastando-nos para nos aproximarmos
mais sem o perigo de nos confundirmos e aproximando-nos para melhor
captar as diferenças e, ao mesmo tempo, as afinidades”.4
Antes, porém, de adentrarmos na análise da relação entre
mortais e imortais, faz-se importante destacar que o vocabulário do
sagrado é extenso e diversificado, algo que merece atenção do estu-

4  VERNANT, Jean-Pierre. O Homem Grego. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo.


Lisboa: Editorial Presença, 1993, p.10.
148 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
dioso da religiosidade grega. O próprio termo eusébeia não estava
presente na literatura homérica e mesmo hesiódica. Em Homero ve-
mos a utilização dos verbos besomai (venerar), sebas (venerar), aideis-
thai (experimentar da honra), assim como o substantivo aidôs (honra,
respeito). Já em Hesíodo encontramos o termo dikè (justiça) para se
referir ao contato com o sagrado. É preciso ser justo nas ações para
com os deuses e suas vontades.5 Eusébeia será visto pela primeira
vez em Teágenes de Reggio (529 a.C.), num contexto aristocrático, no
seio de uma reflexão política. Outros termos (e suas derivações) do
vocabulário do sagrado podem ser igualmente analisados se buscamos
uma compreensão desse universo. Dentre eles, hieros, hosios, hagnos,
hagios, ago. Tarefa que deixamos aos especialistas e leitores que se
dedicam a esta causa, avigorando que, como nos diz Vernant, “estas
palavras se associam e se opõem não somente termo a termo, mas
seguindo um complexo de relações que as unem todas para constituir
um sistema suscetível de exprimir os diferentes planos do Real, e as
modalidades de ação humana sobre o Real.”6
Tendo ciência de que a própria língua grega nos evidencia que
se trata mesmo de uma religiosidade complexa, recheada de mínimos
detalhes, complementares e contraditórios simultaneamente, tente-
mos esboçar um quadro que nos dê elementos mais concretos da prá-
tica do sagrado.
Comecemos pelas afinidades entre aquela e a nossa realida-
de, ao menos as aparentes. Os gregos acreditavam em algo superior,
para quem eram capazes de percorrer longas distâncias para visitarem
santuários e participarem de festivais, a quem realizavam cultos, di-
ziam preces, construíam templos, ofertavam, cantavam e cuidavam.
Eis o que significa eusébeia: os cuidados devidos ao deus ou a “obser-
vância pontual dos ritos cultuais que exprimem o respeito, a veneração

5  Para saber mais: Bruit-Zaidman, Louise. Le commerce des dieux. Eusébéia.


Essai sur la piété en Grèce ancienne. Paris: Editions la Découvert, 2001. E da mesma
autora, Les Grecs et leurs dieux, pratiques et représentations religieuses dans la cité
à l’époque classique, Paris: Armand Colin, 2005.
6  Idem, Notions fondamentales de la pensée religieuse et actes constitutifs du
culte dans la Grèce classique. In: Archives de Sociologie des Religions, n.9, 1960, p.
206. Tradução nossa, assim como todas as traduções das obras em francês presentes
nas referências.
Volume 1 149
e a deferência dos homens pela divindade”.7 É o que os franceses
traduzem por piété, piedade. Tais semelhanças nos aproximam na re-
lação com o divino. Também construímos templos, dirigimos preces,
organizamos romarias, entoamos hinos de louvor.
Afinidades aparentes. A começar logo pela ideia de “algo su-
perior”. Não que não seja isso, como é de conhecimento de todos, esse
“algo”, para os gregos, estava no plural: deuses. No entanto, o que
realmente é da ordem do diferente, é o motivo pelo qual o homem
se aproximava das potências: não se buscava a salvação do que, na
linguagem cristã, chamamos alma. Não havia a intenção de se redimir
para obter a vida eterna no paraíso. O indivíduo, isoladamente, não
importa aqui. Neste sentido, dois pontos devem ser destacados: o que
os deuses não eram e a questão da coletividade ou religião cívica. Ana-
lisando estes dois elementos, reforçamos a assertiva da especificidade
da relação entre mortais e imortais.
Enquanto estamos habituados a um Deus onipresente, onipo-
tente e onisciente, eles estavam habituados a um panteão de divinda-
des que nem tudo sabiam (como Deméter, que não sabia o paradeiro
de sua filha raptada por Hades), que possuíam poderes específicos e
limitados (como Hélios que não conseguia, mesmo que muito tentas-
se, modificar o curso de seu carro) e que não eram onipresentes, pois,
para além de possuírem espaços específicos de atuação, não eram
eternos, uma vez criados por potências primordiais (Cháos, Gaía, Éros,
Nûx, Ouranós, Okeanós). Se como prega a religiosidade judaico-cristã,
Deus está em nós e tudo pode e tudo vê, a diferença aqui está clara.
Mas se há afinidades aparentes e uma multiplicidade de
elementos diversos, temos que considerar como categoria de análi-
se comparativa um tanto complicada a questão da imortalidade8.
A princípio a pensemos como importante fronteira entre homens e
deus ou deuses. Sófocles enfatizou: “Fecundo em seus recursos, ele
(o homem9) realiza sempre o ideal a que aspira! Só a Morte, ele não

7  Cuidados = therapeia. Cf. VEGETTI, M. Os homens e os deuses. In: VERNANT,


1993, p. 232. Para uma análise filosófica do significado de eusébeia, ver o diálogo
Eutifron de Platão.
8  Aqui apenas esboçada com o intuito de levantar pontos de reflexão futuros.
9  Inserção nossa.
150 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
encontrará nunca, o meio de evitar!”10 Como escreveu Vidal-Naquet:
“Mortalidade, imortalidade: aí está a fronteira essencial.11 Não temos
como ultrapassar a porta da vida rumo ao além continuando vivos.
Mesmo para os gregos antigos, embora a tradição contasse que Orfeu
recebera tal privilégio quando da busca de sua amada Eurídice em ter-
ras de Hades12 e que a Ulisses foi dada a chance de ultrapassar esta
fronteira (no momento da proposta apresentada pela ninfa Calipso -
Odisseia, I), aos homens comuns, reais, as Moiras reservavam, após o
efeito das águas do rio Lethe, o mundo do disforme: “...a pobre morta-
lidade dos homens, esses ‘efêmeros’ que aparecem para desaparecer,
como sombras ou fumaças.13 Essa fronteira clara entre eles e os imor-
tais os lembrava a todo instante de que não era possível desejar ser
um deles ou ser melhor que eles em algo (mesmo que o sofrimento,
os sentimentos como amor e ódio, por exemplo, fossem características
comuns). As fontes antigas nos trazem exemplos dessa impossibilida-
de. A bela Aracne que desafiou Atena na arte do bordar, dizendo-se
superior àquela, foi transformada em aranha. Ou então, os castigos
sofridos pela Etiópia, país reinado por Cefeu, quando sua esposa Cas-
siopeia espalhou aos ventos ser mais bela que as Nereidas.

Os poetas, como Homero e Píndaro, repetem incansavel-


mente que os deuses e os homens pertencem a duas raças
inteiramente diferentes, que o homem não deve procurar se
igualar aos deuses. ‘Não ignora teus limites, contenta-te em
ser um homem, conhece-te a ti mesmo’: tais são as máximas
que definem a sabedoria grega.14

No caso do cristianismo, guardadas as devidas precauções re-


lativas às questões teológicas – não analisadas aqui - é permitido e
mesmo oferecido aos mortais a possibilidade de se buscar a perfeição.
Os homens são feitos à imagem e semelhança de Deus (Gênesis, 1,26)

10  SÓFOCLES, Antígona, 2001, v.415.


11  VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. Trad. Jônatas Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.66.
12  Cf. Pseudo-Apolodoro, Biblioteca.
13  VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia antiga. Trad. Myriam Cam-
pello. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p.97.
14  Ibidem, p.101.
Volume 1 151
e, mesmo que pecadores, devem buscar a plenitude, o chegar mais
próximo, na semelhança, com a divindade.15
Mas a imortalidade do Deus cristão comparada àquela das
potências gregas? Deus é imortal porque eterno. Mas seu Filho não
morreu para nos salvar?16 E o papel da ambrosia na alimentação das
divindades criadas a partir do Caos? Sem ela o que aconteceria? E o
caso do Zeus cretense? Ele não teria morrido de acordo com a tradição
oral? Apenas por esse viés, a discussão se alongaria o suficiente para
um novo texto. Respondendo à questões historiográficas, filológicas
ou mesmo de não especialistas interessados no assunto, o que é certo,
embora nos pareça contraditório, é que a imortalidade do homem é
possível, desde que seja a de seu nome e feitos.

Na verdade me disse minha mãe, Tétis dos pés prateados,


que um dual destino me leva até ao termo da morte:
se eu aqui ficar a combater em torno da cidade de Tróia,
perece meu regresso, mas terei um renome imorredouro;
porém se eu regressar a casa, para a amada terra pátria,
perece o meu renome religioso, mas terei uma vida longa.17

Ciente dessa diferença, como afirmado mais acima, o grego


convivia com o sagrado, hieros, em suas práticas cotidianas e, por isso
mesmo, por sua relação com as coisas do mundo, este sagrado não era
compreendido como a forma perfeitamente contrária do mundano.
Esta relação conflituosa foi estabelecida em período posterior ao mun-
do arcaico (e mesmo clássico). Assim, como não havia uma separação
efetiva entre as coisas do mundo e aquelas dos deuses, podemos falar
de uma religiosidade cívica. Nas palavras de Vernant,

Entre o religioso e o social, o doméstico e o cívico, portan-


to, não há oposição nem corte nítido, assim como entre
sobrenatural e natural, divino e mundano. A religião grega
não constitui um setor à parte, fechado em seus limites e su-
perpondo-se à vida familiar, profissional, política ou de lazer,

15  Não pretendemos aqui, adentrar as questões da alma ou da perfeição tratadas


na filosofia antiga.
16  Questionamento muito presente no decorrer da prática docente da autora
do texto.
17  HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2005.
152 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
sem confundir-se com ela. Se é cabível falar, quanto à Grécia
arcaica e clássica, de ‘religião cívica’, é porque ali o religioso
está incluído no social e, reciprocamente, o social, em todos
os seus níveis e na diversidade dos seus aspectos, é penetra-
do de ponta a ponta pelo religioso.18

Corroborando essa ideia, Vidal-Naquet ao analisar o mundo de


Homero escreveu:” ...Homero retrata as instituições divinas à imagem
do que ele conhece das instituições humanas”.19 Vemos, portanto,
uma estreita relação entre a vida dos homens e os deuses vivos.
Vernant e Vidal-Naquet compartilham da ideia (mesmo bus-
cando elementos em fontes distintas) de que estaríamos utilizando o
leito de Procusto caso pensássemos a eusébeia isoladamente, estudan-
do a prática religiosa por ela mesma, sem inseri-la no contexto maior
da sociedade do homem grego arcaico. Este, em momentos de guerra,
buscava respostas a seus tormentos nos deuses; ofereciam parte de
suas colheitas a eles; chamavam por Dikè quando das ações políticas;
não se esqueciam das potências que cuidavam dos mortos e que os
conduziam ao Hades; diziam o nome dos recém-nascidos na presen-
ça de Héstia. Para inúmeros atos cotidianos recorriam às divindades.
Nelas buscavam proteção, respaldo, inspiração, resultados, consenti-
mento. Para entender esta religiosidade é necessário, portanto, ligá-la
diretamente com aqueles que a viveram, a sentiram e a proclamaram.
A despeito dessa prática tão enraizada, mais uma vez recorre-
mos a Vernant para lembrarmos que

Isso não quer dizer que o grego confunde tudo, que vive
numa espécie de mentalidade primitiva onde tudo participa-
ria de tudo. Quando pensa religiosamente, o grego faz distin-
ções, mas que não são as nossas.20

Estar em acordo com a premissa de que o grego tudo confun-


dia, nos dias de hoje, seria ignorar toda uma pesquisa que vem sendo

18  VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica
D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p.8-9.
19  VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. Trad. Jônatas Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.69.
20  Idem, Mito e sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Campello. Rio de Janei-
ro: José Olympio, 1999, p.91.
Volume 1 153
feita desde o início do século passado e mais intensamente nos finais do
mesmo e início deste, com novas fontes, novas metodologias, novas ba-
ses teóricas. Em outros termos, aceitar esta confusão nos tornaria pre-
sos a alguns estudiosos dos séculos XVIII e XIX que, pelo contexto histo-
riográfico do período, tomavam a religiosidade e mitologia gregas como
algo incongruente, bizarro, mentiroso, insano ou mesmo fantasioso.21
A certeza de que o grego não confunde tudo, embora não se-
pare os elementos da ordem do sobrenatural com o social, vem da
percepção, por meio da análise de inúmeras fontes escritas e de repre-
sentação figurada, de que ele, embora atribua muitos elementos da
natureza às ações divinas, sabem que as ocorrências naturais são dos
deuses e não eles próprios. Assim, para citar apenas dois exemplos, o
raio e o trovão são de Zeus e não ele; o maremoto é de Poseidon e não
ele; “...só se vê uma potência através de sua manifestação aos olhos
dos homens mas, ao mesmo tempo, ela transborda sempre todas as
suas manifestações; não se confunde com nenhuma delas”.22
Mas como entrar em contato (e não comunhão) com os imor-
tais? Partimos de duas formas: as preces e os hinos. Acerca das pre-
ces, apenas depois do meado do século XX surgiram estudos especí-
ficos. Até este momento, o que havia eram estudos que o abordavam
no interior de outros debates como aqueles sobre ritos ou hinos, por
exemplo. Nas preces e hinos os gregos cantavam os feitos dos deuses,
faziam conhecer, exaltar e perpetuar suas glórias.
A respeito das preces, muito próximas dos hinos, dos jura-
mentos e apelos, o vocabulário grego nos apresenta especialmente
três verbos: euchomai (reivindicação pessoal), araomai (muito utili-
zado nas imprecações) e lissomai, associado a hiknéomai (princípio/
apresentação de uma solicitação). Faz-se importante destacar, que as
preces eram feitas em voz alta, numa tentativa de se convencer os deu-
ses e não solicitar suas atuações em situações complicadas aos demais
mortais. Há que se destacar ainda, a prece como ‘palavra’. A questão

21  A este respeito, VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia antiga.


Trad. Myriam Campello. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. Mais especificamente
o capítulo Razões do mito, quando tece comentários sobre uma ciência dos mitos
adentrando nas teorias da Escola de Mitologia Comparada, da Escola Antropológica
Inglesa e da Filologia Histórica, dentre outras (p.171-214).
22  Ibidem, p.92.
154 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
da força da palavra para aquele homem foi muito bem posta por Ver-
nant em sua obra As origens do pensamento grego.
Os estudiosos tendem a destacar que a prece poderia ser divi-
dida em duas vertentes: aquela litúrgica, realizada nos cultos e aquela
em forma do que hoje denominamos oração pessoal. A respeito desta
última, temos que ter em mente que não se tratava de uma relação de
intimidade com a divindade invocada. “Nesse tipo de religião, o indiví-
duo não ocupa, como tal, um lugar central. Não participa do culto por
razões puramente pessoais, como criatura singular voltada para a sal-
vação de sua alma”.23 Em ambos os casos, nas preces litúrgica e pes-
soal, é possível verificar que as mesmas se dividiam em duas ou três
partes: a invocação da potência por meio de seus epítetos (escolhidos
de acordo com o objetivo da prece) e atributos; narração dos feitos dos
deuses mostrando que o que se pede está no campo de sua atuação,
portanto, não será lhe cobrado muito esforço para cumprir; e, enfim, a
súplica. A segunda etapa, por vezes, não está presente.
Vejamos um trecho da tragédia Hipólito em que temos a in-
vocação de Ártemis, quando sua descendência, beleza e virgindade,
alguns de seus principais atributos, são exaltados:

Soberana, soberana veneradíssima,


descendente de Zeus,
salve, salve, filha
de Leto, Ártemis, e de Zeus,
a mais bela das virgens
tu que no vasto céu
habitas a corte do nobre pai,
o palácio multidourado de Zeus.
Salve, a mais bela, a mais
bela <das virgens>
do Olimpo, <Ártemis> (61-71)24

23  VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica
D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p.8.
24  EURIPIDE. Hippolyte, Andromaque, Hécube. Téxte établi et traduit par Louis
MÉRIDIER. 2eme ed. Paris: Les Belles Lettres, 1956.
Volume 1 155
Quanto aos hinos25, parte importante dos rituais e mesmo
festivais, eles agiam como proêmios da ação principal. Talvez não re-
conheçamos a real eficácia sagrada deste recurso uma vez que apenas
textos chegaram até nós. A este respeito, Cabral escreve:

[...] a poesia grega arcaica não pode ser compreendida se


desconsiderarmos a execução ao vivo para a qual ela esta-
va destinada, bem como o cabedal riquíssimo de metros e
padrões cadenciais que lhe fora inerente. Um autor antigo
não escrevia um livro de textos: ele compunha e atuava em
consonância com sua audiência.26

Para compreender, dentro do que nos é possível, dadas estas


circunstâncias, o papel dos hinos na eusébeia grega, apreciemos um
Hino homérico a Ártemis:

Ártemis buliçosa, canto, de flecha dourada,


a virgem veneranda, caçadora de corça, flecheira,
a própria irmã de Apolo de espada dourada,
que nas montanhas sombrias e nos íncaros ventosos,

25  OLIVEIRA, Flávio Ribeiro de. Duas passagens de Platão afirmam que o hino é um
gênero literário estritamente ligado ao divino (República607a; Banquete 177a). A. E.
Harvey (“The classification of greek lyric poetry”, CQ 5, 1955, p. 165) crê que, nesses
trechos, o propósito de Platão tenha sido definir o hino como um canto cultual diri-
gido aos deuses (e não aos mortais). Contudo, essa definição da poesia hínica como
canto associado a uma prática cultual é problemática: o próprio Harvey (ibidem) ad-
mite que, na literatura grega, o termo “hino” é aplicado a praticamente qualquer
tipo de canto. De fato, o corpus que forma a hínica grega apresenta grande variedade
formal e funcional – ali encontramos hinos cultuais, mas também simpóticos, líricos,
rapsódicos. Muitos hinos têm de fato uma função cultual; há outros, contudo, que
são de fundo literário e não estão associados a nenhum culto. Disponível em:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2011/09/02/hinos-gregos-entre-o-divino-e-o-profano/
Para aprofundamento das questões sobre os hinos indicamos a leitura de A palavra
ofertada. Um estudo retórico de hinos gregos e indianos | José Marcos Macedo |
Editora Unicamp, 2010.
Sobre a questão da nomenclatura dos hinos homéricos e não de Homero, sugerimos
a leitura de O Hino Homérico a Apolo, de Luiz Alberto Machado Cabral, editado pela
Ateliê Editorial, 2004; e RIBEIRO JR., Wilson A. (Ed.) Hinos Homéricos: tradução, notas
e estudo. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
26  CABRAL, Luiz Alberto Machado. O hino homérico a Apolo. Cotia, SP: Ateliê Edi-
torial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004, p.21.
156 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
regozijando-se com a caça, estende seu arco de ouro,
enviando flechas gementes. Tremem os cumes
das elevadas montanhas, grita a floresta sombria,
pelos rosnados dos animais, e agitam-se a terra
e o mar piscoso. Ela, de coração valente,
bole por todo lado, aniquilando a raça dos animais.
Depois de regozijar e agradar seu espírito, a flecheira,
observadora das feras, afrouxando o arco flexível,
vai ao paço grande do caro irmão,
Febo Apolo, na terra opulenta de Delfos,
para preparar o belo coro das Musas e das Graças.
Ali, suspendendo o arco esticado e as flechas,
e trazendo no corpo gracioso adorno,
dirige os coros dando o sinal. Lançam imperecível voz e cantam,
como Leto de belos tornozelos pariu, dentre os imortais, filhos
superiormente melhores nos desígnios e nas ações.
Alegrai-vos, filhos de Zeus e Leto de belos cabelos.
Depois me lembrarei de vós e de outro canto.27

Os principais atributos da deusa das fronteiras estão aqui des-


tacados: a virgindade, a caçadora, portadora do arco e da flecha. Assim
essa potência ficou consagrada na memória literária e visual dos gre-
gos antigos. Sua história, sempre associada àquela de Apolo, também
é cantada neste hino.

27  MASSI, Maria Lúcia Gili. Zeus e a poderosa indiferença. USP: Faculdade de Fi-
losofia, Letras e Ciências Humanas. (Tese de doutorado). Disponível em http://www.
teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-04092006-152413/pt-br.php
Volume 1 157
Fig. 1 - Ártemis caçando. Cópia romana em mármore, I-II d.C., conhecida como
Ártemis de Versalhes, 2m. Encontrada na Itália. Paris: Louvre. Original em bronze,
atribuído a Leochares, de 325 a.C.28

Uma vez a prece feita ou o hino entoado, outras práticas ritu-


ais se seguiam. É nesta sequência que temos os sacrifícios. A oferta de
vegetais era recorrente, mas “...o modo normal de comunicação entre
homens e deuses é o sacrifício sangrento, desde a modesta oferenda
de um carneiro até a hecatombe na qual perecem cem bois cuja carne
é distribuída aos participantes.29 Mas esta comunicação não se dava
de modo simples, a teia ritual era meticulosamente arranjada. Desde
a escolha do animal (domesticado e sem defeitos) até sua imolação,
o processo era repleto de simbologias. Para ser levado até o bomos
(altar), a vítima era preparada, enfeitada, coroada.

Durante o prólogo, os protagonistas – sacerdote, vítima e


participantes – entravam em procissão e se reuniam em vol-
ta do altar. O suspense crescia à medida que a ação entrava
na fase mais crucial (graças a um artifício): a água pura as-
pergida sobre a cabeça da vítima fazia-a balançar a cabeça
‘aceitando’ o que se seguiria. Sem perda de tempo, o animal
era atordoado; então enfiava-se-lhe uma faca na garganta.
Quando o sangue jorrava sobre o altar, as mulheres pronun-

28  Fonte: http://www.theoi.com/Gallery/S6.1.html - Acesso em: 12 dez 2015.


29  VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. Trad. Jônatas Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.74.
158 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ciavam um grito ritual para marcar o clímax. O desenlace
consistia em um processo elaborado de trinchar, assar e par-
tilhar; a distribuição das porções era feita por sorteio ou de
acordo com a condição social relativa dos participantes.30

O ato de trinchar estava quase sempre associado à leitura das


entranhas. Saber o que os deuses reservavam aos mortais era um dos
momentos prestigiosos do culto. Associar, neste instante, o que se vê
e o voo de um pássaro, era praticamente ter a certeza absoluta do que
se estava lendo, pois, “é bom lembrar que os pássaros são intermediá-
rios ‘naturais’ porque frequentam o céu e habitam a terra, situando-se
entre os deuses e os homens.”31 Quanto ao assar, era necessário que
se seguissem os nómoi: os ossos deveriam ser envoltos com gordura
e aromatizantes para serem queimados sobre o altar. A fumaça perfu-
mada ascendia ao deus cultuado. E, por fim, a partilha, realizada com
a carne que sobrou, fervida em caldeirões ou grelhada. Esta prática
tinha seu fundamento mitológico na história hesiódica de Prometeu,
quando este engana Zeus na partilha das carnes de um sacrifício.

Fig. 2 – Enócoa de figuras vermelhas. Aproximadamente de 430-425 a.C. Representação


de um sacrifício onde podem ser percebidas a carne, em um espeto, sendo assada so-
bre o altar, enquanto libações são oferecidas pelo personagem central32. Paris: Louvre.

30  BUXTON, Richard. Religião e mito. In: CARTLEDGE, Paul (org.) História ilustrada da
Grécia Antiga. Trad. Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p.441.
31  VIDAL-NAQUET, Pierre. op. cit., p.74.
32 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sacrif%C3%ADcio_na_Gr%C3%A9cia_An-
tiga#/media/File:Sacrifice_scene_Louvre_G402.jpg - Acesso em: 12 dez 2015.
Volume 1 159
Mas há um porém. Nem sempre os sacrifícios ou ofertas eram
aceitas pelos deuses, fossem ofertas vegetais, animais, objetos votivos
e mesmo presentes. Para o praticante da eusébeia, as frustações ou
negativas sentidas no cotidiano, após os sacrifícios, poderiam ser in-
terpretadas como a recusa divina de suas oferendas. Na própria Ilíada
temos um exemplo. No canto VI, Heitor pediu à sua mãe, Hécuba, que
recorresse a Atena e lhe apresentasse uma oferenda. O item selecio-
nado foi um grande e brilhante véu com lindos bordados. Ao chegarem
ao templo troiano da deusa, a rainha e suas companheiras o entrega-
ram à sacerdotisa de linda face, Teano. Esta, por suas funções, o depo-
sitou nos joelhos da deusa e suplicou:

Ó venerável Atena, defesa de nossa cidade,


quebra o forte Diomedes a lança, ou o derruba tu própria
das portas Céias em frente, de bruços em solo fecundo,
que doze vacas ao tempo, sem mora, viremos trazer-te,
ainda indomadas, apenas de um ano, se fores benigna
para a cidade, as esposas dos Teucros e nossos filhinhos!33

Mas Atena, abanando a cabeça, disse não. E conhecemos o


destino troiano.
Existe um ditado que circula entre nós assim pronunciado:
Quem nada vê nada sente. No tocante aos gregos antigos (e aqui inclu-
ímos aqueles dos períodos arcaico, clássico e mesmo helenístico), eles
sentiam porque viam e viviam os hierás. A prece, o hino e os sacrifí-
cios faziam do ritual algo visto, sentido, ouvido. As danças, os cortejos,
os enfeites não eram meros adendos ou acréscimos aleatórios ao ato.
Serviam de veia condutora das emoções. Essa cultura que presava pelo
visual, tomou seus deuses e seus feitos e os personificaram e os repre-
sentaram de distintas formas, e os colocaram aos olhos dos homens
em diferentes suportes, espaços e situações (sociais, políticas e as es-
pecificamente religiosas): estátuas nos templos e/ou ao redor destes,
nos santuários e nos caminhos que levavam a este; vasos figurados
com as divindades e seus mitos, utilizados em ritos como nascimento,
casamento e funerais e mesmo nos banquetes; a Héstia doméstica,
no interior dos lares ou a koiné, aquela da cidade. Em todo o tempo o

33  HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2005. (Il., VI, 305-310)
160 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
homem era lembrado de suas raízes, de sua cultura, de seus deveres
para com os deuses e mesmo para com os demais mortais que com-
partilhavam de sua existência, porque a religião era cívica. As imagens
não lhe deixavam esquecer de quem ele era, dos modelos a seguir, dos
cuidados a tomar em relação aos deuses. O homem não estava sozinho
na empreitada de vencer os obstáculos da vida. Os deuses estavam
com eles, visíveis e vivos em suas representações.
Mas como reconhecê-los? Como ter certeza de quem era
aquela representação? Tonio Hölscher, em sua obra La vie des images
grecques parte da constatação que, na Grécia antiga, as imagens fa-
ziam parte integrante do mundo vivo e que, falando propriamente, ‘os
homens viviam com elas’.34
Se havia uma inscrição ao lado da imagem no vaso ou na base
da estátua, para quem lia a identificação estava dada e era partilhada.
Sem este recurso e mesmo com ele, para os que hoje chamamos de
não alfabetizados, as memórias oral e visual eram requisitadas. Por
meio da tradição oral o grego já estabelecia as relações. O tempo aju-
dou a estabelecer as convenções na arte figurada. Mas o tempo não
foi o único aliado desse homem praticante da eusébeia. O teatro, já
no período clássico, foi um importante recurso para os olhos e para a
arte. A arqueóloga Haiganuch Sarian discute esta questão, da cenogra-
fia teatral servir como inspiração da arte figurada nos vasos, em um
artigo intitulado A expressão imagética do mito e da religião nos vasos
gregos e de tradição grega.35
A respeito das imagens das coisas sagradas nos vasos, em
grande parte utilizada nos rituais, nos é difícil afirmar que os gregos
as percebiam todas, em seus mínimos detalhes, principalmente o ex-
pectador que se encontra um pouco mais distante do ato ritual. No
entanto, “se não há forçosamente a necessidade de olhar as imagens

34  HÖLSCHER, Tonio. La vie des images grecques. Sociétés de statues, rôles des ar-
tistes et notions esthétiques dans l’art grec ancien. Traduction d’allemand par Laure
Bernardi. Paris: Musée du Louvre / Hazan, 2015, p.12.
35  SARIAN, Haiganuch. A. Expressão imagética do mito e da religião nos vasos
gregos e da tradição grega. In: Cultura clássica em debate: estudos de Arqueologia,
História, Filosofia, Literatura e Lingüistica Greco-Romana. Belo Horizonte: Universi-
dade Federal de Minas Gerais, 1987, p. 15-50.
Volume 1 161
com intensidade, era difícil não vê-las. Elas tinham no decorrer da exis-
tência um grande poder de interpelação”.36
Vejamos três exemplos da religiosidade em vasos do período
arcaico.

Fig. 3 – Dioniso, Hermes, Atena, Zeus, Hera, Afrodite. Assembleia dos deuses. De-
senho de Notor a partir de uma ânfora báquica arcaica de figuras negras. (Coleção
Bassegio, Roma)37.

Fig. 4 - Sacrifício de hecatombe sem defeitos. Desenho de Notor a partir de um vaso


de Pollanotos (antiga coleção Depoletti, Roma)38.

36  HÖLSCHER, Tonio. op.cit., p.64.


37  Fonte: http://iliadeodyssee.texte.free.fr/aagravur/notor/odyssnotor/odyssnotor01/
odyssnotor1.htm Acesso em: 12 dez 2015.
38  Fonte: http://iliadeodyssee.texte.free.fr/aagravur/notor/odyssnotor/odyssnotor01/
odyssnotor1.htm. Acesso em: 12 dez 2015.
162 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Fig. 5 - Sacrifício de Nestor a Atena. Desenho de Notor a partir de um cântaro de
figuras negras. (Museu de Wùrzbourg)39.

Na imagem 3, vemos atributos divinos encontrados nas ce-


nas figuradas muito posteriores. Dioniso com a taça nas mãos, Her-
mes com suas sandálias aladas, Atena com sua lança, Zeus portando
o raio... É interessante observar a centralidade de Zeus, que mes-
mo tendo seu corpo encoberto por aquele de Atena, tem no raio o
enfoque de atenção. Outro fator a ser destacado nesta imagem é a
aparente divisão de sexo: à esquerda, potências masculinas e à direi-
ta, as femininas. Divisão realmente aparente, pois, ao centro, junta-
mente com o senhor dos céus, temos uma deusa. O grego sabia que
a hierarquia divina não estava baseada no gênero, como também
estava ciente de que não poderia pensar e sentir as coisas de Zeus
como separadas do conjunto maior do panteão. Conforme Vernant,
os estudiosos de hoje igualmente teriam problemas nos resultados
de suas pesquisas se assim a conduzissem:

Todo estudo que buscasse definir os deuses gregos indepen-


dentemente uns dos outros, como personagens separados e
isolados, se arriscaria a deixar escapar o essencial.... É pre-
ciso substituir um simples catálogo das divindades por uma
análise das estruturas do panteão trazendo à luz a maneira

39  Fonte: http://iliadeodyssee.texte.free.fr/aagravur/notor/odyssnotor/odyssnotor01/


odyssnotor1.htm Acessado em: 30/03/2016.
Volume 1 163
como são agrupadas, associadas, contrapostas e diferencia-
das as diversas potências divinas.40

A imagem 4 traz a preparação das vítimas para o sacrifício.


Os enfeites colocados nas mesmas não são mera decoração. Fazem
parte da eusébeia, é a demonstração do respeito aos imortais. Outro
elemento se destaca nesta representação: são as mulheres que ficam
responsáveis por esta preparação. A elas é dado o encargo de transfor-
mar o animal em oferenda. Essa não é uma simples função.
A procissão rumo ao ritual do sacrifício, na imagem 5, toma
grande extensão na figuração. A música está presente por meio dos
instrumentos musicais levados rumo ao altar. A libação está garantida
pela presença do vaso nas mãos de um dos participantes. A carrua-
gem, bem à esquerda da cena, evidencia a classe social daqueles que
assistirão e compartilharão do sacrifício. Atena, à direita do altar, iden-
tificada pela vestimenta e armamentos, traços da convenção artística,
é seguida de uma serpente, também lembrando ao grego de sua rela-
ção com Medusa. O último elemento da representação é uma coluna,
indicando que o templo está atrás da deusa.
Os vasos figurados com cenas mítico-religiosas eram, assim,
instrumentos de perpetuação cultural, eram representações culturais
com significados (para além da utilidade) próprios.

Os exemplos de tradição iconográfica situam a importân-


cia da imagem na experiência mítica e religiosa dos gregos.
Surgindo da tradição cultural, a expressão imagética revela
modos de comportamento e uma visão do mundo em que
deuses e heróis têm forma. Na narração e na transmissão de
mitos e ritos, o pintor exprime nas imagens uma versão que
corresponde às crenças coletivas, aquelas que se cristaliza-
ram na aceitação popular. O universo imagético tinha, por
isto, um grande alcance: inspirado na tradição e voltado para
ao grande público, estava na confluência dessas duas dire-
ções, o meio propulsor e o meio receptor. A tal ponto que,
para o grego antigo, identificar imagem mítica ou religiosas
era reconhecer o seu próprio patrimônio espiritual.41

40  VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Cam-
pello. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p.95.
41  SARIAN, Haiganuch. op. cit., , p. 48.
164 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
O que dizer dos templos, moradas dos deuses? Antes mesmo
dos espaços propriamente políticos, eles foram os primeiros projetos
arquiteturais de grande escala construídos por comunidades dos cida-
dãos. Esse fato nos leva a imaginar que possa ter brotado, no corpo
cívico envolvido no longo processo coletivo de realização destes edifí-
cios dedicados aos imortais, um novo sentimento de coesão. A cons-
trução de um templo seja em uma acrópole, ou em um santuário, era
a realização de uma coletividade. Era a cidade mostrando sua religiosi-
dade e mesmo sua força.
No seu interior nenhum sangue era derramado e nem mesmo
era frequentado com tamanha intensidade como nos dias atuais. Em-
bora feito pela cidade, nele a ekklesia não se reunia. Para ali entrar era
preciso que o piedoso se purificasse. E estando dentro, o temor aos
deuses lhe sussurrava à mente: faça sua prece. “O templo é mais do
que um edifício protegendo a imagem da divindade, ele é o sinal visível
dos lugares religiosos que mantém a divindade e a comunidade”.42
Este espaço sagrado era integrado nos rituais enquanto repre-
sentantes da divindade. Sobre seus ornamentos, devemos considerar
que o que está(va) representado em suas métopes, por exemplo, não
eram objetos de veneração, e muitas vezes nem mesmo de observa-
ção. É bem possível que quase nenhum grego, em momentos de cul-
tos, tenha dado uma volta completa em torno do templo para apreciar
a figuração. No entanto, ela não é aleatória, uma vez que apresenta
elementos importantes ao deus a quem é dedicado e mesmo à cidade
que o construiu. Há uma organização de significados representados. As
imagens revelam o kosmos, a atmosfera do ambiente.
A descrição de Plutarco acerca da construção dos templos,
neste caso específico, do Partenon, nos deixa clara a participação ativa
da comunidade em uma das etapas desta religiosidade cívica:

As matérias-primas eram a pedra, o bronze, o marfim, o ouro,


o ébano e o cipreste: para modelá-las e trabalhá-las havia ar-
tesãos – carpinteiros, modeladores, caldeireiros, talhadores,
de pedra, ourives, artesãos do marfim, pintores, criadores de
desenhos e escultores de relevos. Havia também homens en-
gajados no transporte e no carregamento: mercadores, ma-

42  HÖLSCHER, Tonio. op. cit., p.46.


Volume 1 165
rinheiros, timoneiros, carpinteiros de carroças, cuidadores
de juntas de bois e vaqueiros; fabricantes de cordas, carda-
dores de linho, sapateiros, construtores de estrada e minei-
ros. Cada ofício, como um general e seu exército, tinha a sua
própria multidão de empregados e de artesãos individuais,
todos organizados como instrumento e corpo para o serviço
a ser executado; em resumo, as várias necessidades a serem
satisfeitas, criavam e espalhavam prosperidade por todas as
idades e condições. (Plutarco, A vida de Péricles 12)43

Mas é preciso que o deus reconheça o templo como seu lugar,


sua morada. É neste contexto, de reconhecimento do que é seu, que
a potência incarna sua imagem em forma de estátua. Não se tratava
do que denominamos “possessão” ou algo dessa natureza. Tratava-se
da forma que o grego entendia a chegada do deus após a invocação.
Mas o que dizer destas estátuas? Que são obras de arte a tradição já
estabeleceu. Que são importantes elementos de transmissão de dados
culturais também. Entretanto, os gregos não viam apenas a sua mate-
rialidade. O seu valor enquanto resultado do trabalho humano ou seu
valor pelo material produzido importavam por indicar a posição social
daquele que fez a oferenda, seja um rico cidadão ou a cidade. Mas o
valor simbólico era mais importante: uma estreita relação com a di-
vindade era estabelecida por meio deste objeto. Tornando presente o
que está ausente, a imagem propiciava a estreita relação com o divino,
permitia que o grego visse o impossível de se ver. “Em nenhum caso a
materialidade da imagem entra em contradição com a identificação da
imagem ao ser vivo representado”.44
A relação com a estátua cultual era intensa. Nos santuários, as
imagens eram tratadas como se fossem os deuses eles mesmos. Eram
levados em procissão, lavados no mar ou no rio, ungidos, ornados com
joias e mesmo coroas. A elas eram tecidas vestimentas. Os sacrifícios
eram entendidos não apenas como oferendas, como também uma
maneira de alimentar a divindade. Era comum que determinadas ofer-
tas fossem depositadas entre suas mãos ou sobre seus joelhos (como
o caso da oferenda de Hécuba). A imagem desta tornava-se viva. A es-
tátua cultual dizia ao grego que o deus estava ali. E para que este par-

43  PLUTARCO. Vidas Paralelas. São Paulo: Editora PAUMAPE,1991,5v.


44  HÖLSCHER, Tonio. op. cit., p.32.
166 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ticipasse e visse os cultos e homenagens a ele dedicados, as portas dos
templos eram abertas. Tudo o que acontecia do lado de fora era visto
pelo deus pelos olhos da estátua, ou melhor, por seus próprios olhos.
A interação com esta representação viva poderia ganhar uma
proximidade mais íntima. Aproximavam-se de sua representação para
endereçar uma prece, como poderiam murmurar em sua orelha para
ser mais bem entendido. E por que não tocá-la e beijar seus lábios para
obter uma proteção particular? “A divindade, de seu lado, poderia sob
sua forma representada exprimir a aceitação ou a recusa, por meio de
mímica e gestos, ou mesmo desviando seu corpo todo... na intensida-
de dos rituais, a imagem da divindade é a divindade”.45
Mas a vida da estátua depende de ações cultuais. É enquanto
a eusébeia é praticada que o deus torna-se vivo. Portanto, para o gre-
go, a estátua possuía uma vida potencial suscetível de aparecer quan-
do o homem queria ter a experiência da divindade. É a forma de tratar
seus objetos simbólicos, são as significações culturais desse homem
que possibilitam a experiência da imagem viva. Sem essas significa-
ções, sem esse modo de presença no mundo próprio àquele homem,
não nos seria possível crer que se tratava de uma religiosidade viva. E
lembremos, o convite a essa experiência de dar vida ao que tem mate-
rialidade era feito de forma persistente. As estátuas estavam presen-
tes não somente nos santuários e templos, como também ao redor
destes, no caminho que levavam a estes. Eram erigidas sobre bases,
algumas vezes construídas de materiais reluzentes. O exemplo abaixo,
embora uma reconstituição, evidencia que a interação com os deuses,
por meio de suas imagens, era algo essencial à sua natureza humana e
social. Provavelmente não teriam esculpido imagens cultuais (de gran-
de porte) e mesmo as estátuas votivas de pequeno porte, mas com ta-
manhos detalhes, se não quisessem ser vistos pelas divindades como
aqueles que os respeitavam, temiam e veneravam.

45  Ibidem, p.27.


Volume 1 167
Fig. 6: Atena criselefantina. Escultura atribuída a Fidias. Reconstituição no Museu
Real de Ontario. Toronto, Canadá46.

Considerações Finais

Muito ainda há que ser dito sobre a religiosidade grega. Os


períodos arcaico, clássico e helenístico, cada um a seu modo, deixaram
inúmeras fontes que ainda têm bastante a nos dizer. O que é certo, é
que temos um cenário montado por estudiosos que pode trazer ape-
nas uma pequena parcela do que realmente foi a eusébeia.
Que as fontes ainda a serem descobertas nos falem mais. Que
os deuses se apresentem em nossos sonhos, assim como apareciam aos
gregos, ou por meio de presságios e nos digam o que queremos ouvir.

[...] os deuses gregos, dos quais já disse serem de certa forma


uma linguagem, continuam a nos falar, se os escutarmos.47

46 Fonte: ttps://www.google.com.br/search?q=atena+crisilefantina&espv=2&-
biw=1280&bih=699&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiJybCYudXKAhU-
Jkx4KHYKBBkkQ_AUIBygC#tbm=isch&q=atena+crisilefantina+boardman&imgrc=Nr-
bk1urMbuFXTM%3A. Acessado em: 30/03/2016.
47  VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Cam-
pello. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p.103.
168 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
EDIFÍCIOS DE ESPETÁCULOS E RELIGIÃO
NO NORTE DAS GÁLIAS
Filipe Carvalheiro-Ferreira48 – Marin Mauger49

São vários os capítulos e artigos escritos que abordam a im-


plicação religiosa dos teatros romanos descobertos nas Três Gálias50.
Iremo-nos focar igualmente no papel religioso desempenhado pelos
teatros, mas agora numa das regiões periféricas do império, o norte
das Gálias. O lugar do teatro na paisagem religiosa dos Romanos nunca
foi difícil de aceitar devido às numerosas provas escritas disponíveis,
particularmente na parte oriental e central do império, pelas quais
dispomos não só do equipamento adequado mas também de fontes
explicitas, relatando diversas cerimónias51. Poucos são os relatos es-

48  Doutourando na EA-4081, « Rome et ses Renaissances », Universidade Paris-


-Sorbonne e Lyon II-Lumière, dirigido pelos Prof.s Gilles Sauron (Universidade Paris
–Sorbonne) e Jean-Charles Moretti (IRAA du CNRS, Universidade de Lyon II –Lumière)
- ATER (Assitente Temporario de Ensino e de Pesquisas) em arqueologia clássica, Uni-
versidade de Estrasburgo.
49  Mestrado dirigido em 2013-2014 por E. Rosso (Universidade Paris-Sorbonne),
EA-4081 « Rome et ses Renaissances », Universidade Paris-Sorbonne.
50  FINCKER, Myriam, TASSAUX, Francis, « Les grands sanctuaires «ruraux» d’Aqui-
taine et le culte impérial ». In: MEFRA, 1992, p.41-76 ; TARDY, Dominique, « Les lieux
de culte dans les édifices de spectacles gallo-romains ». In : MORETTI, Jean-Charles,
Fronts de scène et lieux de culte dans le théâtre antique, Lyon, Travaux de la Maison
de l’Orient et de la Méditerranée, n°52, 2010. ; DUMASY, Françoise, « Théâtres et
amphithéâtres dans les cités de Gaule romaine : fonctions et répartition », p.193-
222. In : FUCHS, Michel, DUBOSSON Benoît, Theatra et spectacula – Les grands mo-
numents des jeux dans l’antiquité. Lausanne, Etudes de Lettres, 288, Université de
Lausanne, 2011, p. 193-222 ; HUFSCHMID Thomas, « Funktionale gesichtspunkte des
theaters und des amphitheaters im architektonischen, sozialen und politischen kon-
text ». In : FUCHS, Michel, DUBOSSON Benoît, Theatra et spectacula – Les grands
monuments des jeux dans l’antiquité. Lausanne, Etudes de Lettres, 288, Université de
Lausanne, 2011, p. 263-292.
51  GHEBARD, Elizabeth, « The Theater and the City », In: Roman Theatre and
Society (E. Togo Salmon Papers), 1996, p. 113-128 ; Fishwick, Duncan, The Imperial
cult in the Latin West: studies in the ruler cult of the western provinces of the Roman
Empire, III.3 (Religions in the Graeco-Roman world, 147), Leiden, 2004, p. 269-282;
MORETTI, Jean-Charles, « Les lieux de cultes dans les théâtres grecs », Fronts de
Volume 1 169
critos existentes relativos a reuniões de populações de cidade e arre-
dores nos teatros das Gálias.
Portador de uma ideologia própria desde do período helenís-
tico, o teatro tem por objetivo consolidar a imagem do soberano. A
apropriação do teatro helenístico pelos romanos, que já tinham expe-
rimentado a magnificência destas construções52 através dos edifícios
temporários como o teatro de Scaurus, concretiza-se no projeto pom-
peiano do Campus Martius antes de ser reutilizado por Augusto. A polí-
tica Augustea dá ao teatro romano um novo impulso, que faz deste um
verdadeiro lugar para expressar o poder do Príncipe, proporcionando
o início de uma nova era cósmica53. Certos monumentos construídos
durante este período, ou pouco depois, ficam diretamente implicados
na cenografia religiosa das cidades. Vários exemplos podem ser men-
cionados como a Gallia Narbonnensis ou as províncias ibéricas54. É
necessário destacar as questões dos modelos arquitetónicos da nossa
demonstração que também constitui um dos tópicos mais debatidos;
resumiremos o seguinte : o teatro presente nas Três Gálias, que rever-
te diferentes formas dos modelos ideais expostos por Vitruvio, pode
ser considerado como o resultado de uma evolução própria onde a
tradição arquitetónica, os meios financeiros disponíveis e o substrato
cultural foram determinantes nas formas e no equipamento adotado
pelas populações de origem gaulesa55.
As particularidades arquiteturais sugerem espetáculos di-
ferentes em função do equipamento presente nos monumentos. As
transformações efetuadas nos edifícios de espetáculos permitiram mo-
dificar a natureza dos jogos que aí eram apresentados. Apesar da fun-

scène et lieux de culte dans le théâtre antique, Lyon, 2009, p. 23-52.


52  Plinio, Historia Natural, XXXVI, 2. 1-2.
53  SAURON, Gilles, « Architecture et âge d’or, le front de scène augustéen », In :
MORETTI Jean-Charles, Fronts de scène et lieux de culte dans le théâtre antique. Tra-
vaux de la Maison de l’Orient et de la Méditerranée, Lyon, 2009, p. 79-88.
54  GROS, Pierre, « Théâtre et culte impérial en Gaule Narbonnaise et dans la pé-
ninsule ibérique », In : Stadbild und Ideologie, Die Monumentalisierung hispanischer
Stadte zwischen Republik und Kaiserzeit. Kolloquium im Madrid vom 19. Bis 23 Ok-
tober 1987, Abhandlungen - Bayerische Akademie der Wissenschaften. Philosophis-
ch- Historische Klasse,1990, p. 381-390.
55  FREZOULS, Edmond, « Aspects de l’histoire architecturale du théâtre romain »,
In: Principat, II, 12, 1982, p. 343-441.
170 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ção religiosa do teatro ser admitida, seria interessante questionar se
esta nova conceção do monumento levou novamente a uma definição
dos ritos próprios do edifício teatral. Poderemos então refletir sobre as
relações existentes entre religião e edifícios de espetáculos? Será que
o teatro é, ademais, pensado como um edifício religioso? Será possível
definir ritos religiosos próprios a estes monumentos? Finalmente, será
a religião somente uma componente dos espetáculos ou devemos atri-
buir a estes monumentos uma função unicamente religiosa?
Tentaremos, através de diferentes exemplos, completar es-
tas primeiras hipóteses ou rejeitá-las no estado atual dos nossos co-
nhecimentos. Identificar e definir o contexto religioso no qual os tea-
tros são inseridos constitui uma das primeiras etapas, antes mesmo
de refletir sobre os espaços sagrados no teatro. Alguns fragmentos
epigráficos também fornecem vários indícios que contribuem cada
vez mais para o conhecimento destes monumentos, mas também
dos protagonistas dos rituais. O que nos leva a reconsiderar certas
hipóteses que dão ao teatro um papel unicamente religioso excluin-
do a função lúdica do palco cénico.

1 A integração urbana do teatro : santuários,


cidades secundarias e capitais de civitates

Numerosos são os exemplos disponíveis de teatros e outros


edifícios de espetáculos presentes nas cidades e nos santuários do
norte das Gálias. Se alguns teatros não podem ser atribuídos de ma-
neira irrefutável a um conjunto urbano, os outros dispõem de contex-
tos mais conhecidos, que sejam santuários isolados ou suburbanos,
cidades secundárias ou mesmo capitais de civitates56. Alguns já tenta-
ram justificar a implantação dos teatros evocando vários argumentos
que, como veremos, não são sempre de todo relevantes 57. É preciso

56  Supra 3, DUMASY, 2011, p. 196-201.


57  BRUNET-GASTON, Véronique « Temple et théâtre en Gaule : une relation ar-
chitecturale complexe ». In : MEYLAN KRAUSE, Françoise, CASTELLA Daniella, To-
pographie sacrée et rituels - Le cas d’Aventicum, capitale des Helvètes. Actes du collo-
Volume 1 171
admitir que as descobertas por prospeção aérea ou escavações, não
permitem definir sempre a trama urbana, nas quais os monumentos
são inseridos, como na cidade de Lillebonne58, exceto alguns casos
como o teatro de Canouville, perto do qual foram descobertos vários
elementos que atestam a extensão do sítio59. Mas nada mais permite
esclarecer a situação urbana deste conjunto.
O papel religioso do teatro caracteriza-se por uma implanta-
ção particular do monumento que aparece na maior parte das ceno-
grafias monumentais dos grandes santuários presentes no norte das
Gálias. Estes santuários podem ser integrados na trama urbana de uma
cidade, situados na sua periferia direta (a que chamamos “santuários
suburbanos”) ou mais longe dos centros urbanos. Estes últimos casos
são, várias vezes, relacionados com a proximidade das fronteiras entre
diferentes civitates mas podem também traduzir a sobrevivência de
espaços cultuais anteriores à conquista romana. Assim, os exemplos
do Vieil-Evreux, de Champlieu e de Meaux oferecem diferentes possi-
bilidades, onde o teatro participa de maneira evidente a organização
do espaço religioso.

1.1 Santuários e cidades secundárias

O santuário do Vieil-Evreux pode ser considerado como um


dos maiores santuários da Normandia romana. No seu último estado
de desenvolvimento, o santuário é delimitado por um pórtico de 6 km
de comprimento, atrás do qual são rejeitadas as habitações, deixando
uma área livre para os diferentes monumentos que compõem o santu-
ário60. Os templos principais, situados no centro da área são cercados
por um pórtico. Um alto terraço matem três templos relacionados por

que international d’Avenches 2-4 novembre 2006 ,Antiqua - Basel, 2008, p.283-286 .
58  MUTARELLI, Enzo, In : DORION-PEYRONNET, Les Gaulois face à Rome: la Nor-
mandie entre deux mondes, Rouen, 2009, p. 52.
59  NICOLLE, Jean-Marie, MAHO, Jacques, « Le théâtre gallo-romain de Canouville
(Seine-Maritime) », Gallia, 37, 2, 1979, Paris, p. 237-246.
60  HARTZ Cécile, « Le sanctuaire du Vieil-Evreux : une création urbaine originale »,
http://hicsa.univ-paris1.fr/documents/pdf/MondeRomainMedieval/Art%20CHartz.
pdf In : La Monumentalité urbaine - Journée d’étude du 4 novembre 2011, EA-4100
HiCSA, p. 1-7.
172 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
importantes pórticos laterais. Ao sudeste, foi descoberto um edifício
termal, um macellum, e alguns templos de tipo galo-romano. A nor-
te, um espaço público, tradicionalmente chamado forum e um teatro.
Podemos notar que o templo central e o teatro são separados por um
pórtico duplo que servia provavelmente para materializar uma sepa-
ração entre o temenos e o resto do santuário61. Uma via importante
também foi identificada entre os dois monumentos. Este tipo de ali-
nhamento existe em vários exemplos e permite supor a existência de
procissões entre os templos e o teatro. No caso do Vieil-Evreux, tam-
bém podemos notar que a cavea do teatro esta ligeiramente orientada
mais para Oeste que os templos. Este desalinhamento deve-se mais às
facilidades oferecidas pela topografia do local do que a qualquer rela-
ção astronómica como alguns pensaram62. Não há nenhuma “relação
solar” imaginável neste caso. De facto, os construtores aproveitaram
simplesmente o declive natural do terreno, utilizando o mesmo cri-
tério para o templo, cuja construção foi feita num dos lugares mais
elevados do planalto. Este santuário, situado a mais de 5 km da ca-
pital do povo dos Aulerci Eburovices, Mediolanum Aulercorum (atual
Evreux), constitui um centro religioso importante, onde o teatro fica
claramente separado do conjunto sagrado, mas mantém com ele uma
relação privilegiada. O edifício de espetáculo está incluído no espaço
delimitado pelo pórtico monumental e situa-se na proximidade duma
das entradas do santuário, correspondendo a uma evidente cenografia
cujo objetivo era imprecionar os diferentes visitantes que chegavam
pelo norte. Podemos supor o mesmo para outros teatros como aque-
le de Ribemont-sur-Ancre. Neste caso, a esplanada central, delimitada
também pelo um pórtico, dispõe de um teatro que mais uma vez, fica
rejeitado fora do temenos do templo63. Aqui, o alinhamento é parti-

61  BERTAUDIERE, Sandrine, GUYARD, Laurent, Gisacum, ville sanctuaire gallo-


-romaine. Catalogue de l’exposition permanente du Centre d’interprétation archéo-
logique du site gallo-romain de Gisacum (Le Vieil-Evreux). Departement de l’Eure,
Evreux, 2006.
62  Supra 10, BRUNET GASTON, 2008, p. 284.
63  BRUNAUX Jean-Louis, AMANDRY Michel, BROUQUIER-REDDÉ Véronique,
DELESTRÉE Louis-Pol, DUDAY Henri, FERCOQ DU LESLAY Gérard, LEJARS Thier-
ry, MARCHAND Christine, MÉNIEL Patrice, PETIT Bernard, ROGÉRÉ Béatrice. Ri-
bemont-sur-Ancre (Somme)- Bilan préliminaire et nouvelles hypothèses. In: Gallia.
Tome 56, 1999. p. 177-283.
Volume 1 173
cularmente marcado entre o dois edifícios. Por enquanto, esta formula
não é sistemática.
O teatro de Champlieu apresenta uma organização diferente.
O templo dispõe do seu temenos que está integrado a outro pórtico
maior, cujo o lado sul segue o muro retilineo do teatro. Desta vez, a
orientação do templo, este-oeste, não corresponde à do teatro norte-
-sul64. O mesmo pode ser notado no santuário de Genainville, onde o
teatro e o templo estão relacionados por uma esplanada65. A particu-
laridade da ligação do templo ao teatro de Champlieu através do pórti-
co significa que este não é só um espaço comum aos dois monumentos
mas também corresponde ao espaço atravessado pela via principal da
cidade66. De facto, o teatro aparece como um edifício provavelmente
ligado ao templo durante certas manifestações. Fora destes eventos
religiosos é difícil imaginar os visitantes não atravessarem os pórticos,
seguindo a via principal, particularmente se este espaço e o templo
constituem centro publico da cidade67. Era também uma oportunida-
de do povo ver, fora dos tempos de celebrações, parte da panóplia
monumental da cidade. Estes exemplos mostram o desenvolvimento
importante de certos santuários onde, apesar de ser difícil esclarecer
certos elementos cronológicos, é possível notar a influencia do santu-
ário e do seu equipamento na rede urbana. Estes exemplos concernem
essencialmente a cidades com estatutos jurídicos mal definidos. Será
que certos conjuntos religiosos, como aqueles das capitais de civitates,
dispõem de uma organização particular ?

64  Supra 3, TARDY, 2009, p. 182.


65  BRUNET-GASTON, Véronique, « Décor baroque ou perspective illusoire : le com-
plexe « théâtre-temple » de Genainville (Val d’Oise). In : FUCHS, Michel, DUBOSSON
Benoît, Theatra et spectacula – Les grands monuments des jeux dans l’antiquité. Lau-
sanne, Etudes de Lettres, 288, Université de Lausanne, 2011, p. 119-128.
66  DI STEFANO, Giovanni, 2007, Le sanctuaire gallo-romain de Champlieu (Oise) :
architecture et urbanisme. Recherches 1991-2002. In : HANOUNE, Roger, Les villes
romaines du nord de la Gaule. Revue du Nord, Hors-série, Collection Art et Archéolo-
gie n°10, 2007, Lille, p. 147-156.
67  Ibid. p. 153.
174 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
1.2 Os edifícios de espetáculos e os templos na trama urbana
das capitais de civitates

O santuário de la Beauve situa-se nos arredores da cidade de


Meaux, a antiga Fuixtinum, capital dos Meldi. Esta cidade aparece-nos
como um dos exemplos mais completos no que se refere aos edifícios
de espetáculos descobertos numa mesma cidade68. Teatro e anfitea-
tro integram-se no tecido urbano do norte da cidade. Um terceiro edi-
fício de espetáculos foi descoberto no santuário suburbano de la Be-
auve. Este santuário, situado diretamente a Este da cidade, compõe-se
de um temenos no qual foram construídos dois templos gémeos. O
teatro, neste caso, não apresenta qualquer relação de simetria estrita
com os templos, ficando orientado para Sudoeste69. Esta implantação
do edifício é devida a topografia mas também à trama urbana preexis-
tente. A integração deste monumento no complexo religioso no fim do
I s. d. C., permite supor que o teatro era um dos elementos necessários
ao conjunto monumental para o desenrolar de cerimónias. A cidade
já dispunha de um primeiro edifício teatral, situado perto do anfitea-
tro70. A datação proposta depois do estudo dos materiais descober-
tos é relativamente precoce (secunda década do I s. d. C.). A posta
em paralelo destes elementos com uma inscrição descoberta no XIX
s. e hoje perdida também tem tendência a precisar esta cronologia71.
Por enquanto iremos ver as dificuldades em relacionar elementos epi-
gráficos perdidos, com descobertas recentes quando abordaremos a
questão dos protagonistas da religião no teatro. O teatro de la Beauve
constitui um complemento ao santuário suburbano que não podia fun-
cionar com o teatro presente na cidade. O mesmo pode ser suposto no
teatro de La Genetoye, no santuário suburbano da capital dos Aedui,
Augustodunum72.O santuário, situado longe demais do teatro urbano,

68  MAGNAN Danielle, LE COZ, Guy, VERMEERSCH Didier, 2012, Les édifices de
spectacles en Ile-de-France. Supplément à la Revue archéologique du Centre de la
France, 39, FERACF, Tours, 2012.
69  Ibid. p. 212.
70  Ibid. p. 140 e 164.
71  Ibid. p. 127-128.
72  GOGUEY, René, « Le théâtre « du temple de Janus » à Autun : les données de
la photographie aérienne et l’environnement archéologique. In : LANDES, Christian,
Spectacula – II, Le théâtre antique et ses spectacles. Actes du colloque tenu au Musée
Volume 1 175
necessitou da construção de um monumento de espetáculos. Por en-
quanto, esta hipótese não implica que os teatros sejam diretamente
situados ao lado do santuário. O exemplo da capital dos Aulerci Dia-
blintes, Jublains, pode também ser evocado : o santuário suburbano e
o teatro são exatamente opostos na trama urbana, mas a via principal
que atravessa a cidade, define um eixo monumental onde ambos mo-
numentos constituem os dois polos principais73. É necessário recordar
que, mais uma vez, foram necessidades religiosas que orientaram o
templo, mas que a orientação do teatro (e do resto da trama urbana da
cidade) foi claramente influenciada pela topografia. Se existem teatros
em relação aos santuários suburbanos a que elementos podemos ligar
aqueles presentes na trama urbana ?
É difícil imaginar, depois dos vários conjuntos monumentais
desenvolvidos durante o período augusteo, que um edifício de
espetáculo não seja relacionado com um dos órgãos da cidade. Na
maioria dos casos, Orange, Nîmes, Lyon e outros, o edifício participa
a cenografia urbana74. No norte das Gálias, o desconhecimento da
maioria das tramas urbanas das diferentes capitais de civitates não
permite sempre de avaliar a relação entre um templo e um teatro. O
teatro de Lillebonne, por exemplo é suposto situar-se na proximidade
do forum, mas a identificação do conjunto comercial descoberto não
foi verificada75. Outras cidades deixam entrever uma relação possível
entre um templo ou o centro nevrálgico da cidade, o forum. A cidade
de Lutecia, que corresponde a atual cidade de Paris, dispõe de dois
edifícios de espetáculos. Se as celebres “Arènes de Lutèce” estão si-
tuadas nos flancos das colinas dominando o rio Bièvre, o teatro da rua
Racine, foi construído do outro lado do monte Sainte-Geneviève, e de
facto, foi incluído a trama ortogonal da cidade onde ocupa duas insu-
lae. O forum de Paris situa-se mais ao sul, no topo do mesmo monte.
Se a monumentalização do forum só começa realmente no fim do I s.

Archéologique Henri Prades de Lattes les 27, 28, 29 et 30 Avril 1989. Musée archéo-
logique Henri Prades, Lattes, 1992, p. 45-56.
73  DEBIEN, Bernard, « Le théâtre de Jublains », In : Dossier d’histoire et d’archéo-
logie, n°134, p. 82-83.
74  Supra 3, DUMASY, 2011, p. 201-202.
75  Supra11, MUTARELLI, 2011, p. 28.
176 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
d. C. 76, é possível que os dois conjuntos, situados no centro da cida-
de tenham feito parte do projeto inicial. Apesar dos dois edifícios não
apresentarem nenhuma relação visual, podemos supor que esta é feita
pelo cardo que reúne os dois edifícios distantes de 200 m 77. Atual-
mente, não existe outro templo conhecido situado na proximidade do
teatro. O monumento era provavelmente necessário durante certas
manifestações próprias dos cultos presentes na cidade, e mais especi-
ficamente no forum. Temos que admitir que hoje em dia, nenhum dos
teatros observados nas capitais de civitates pode ser relacionado dire-
tamente com o forum. No caso de Paris, esta distância é imposta pela
cenografia da cidade : o templo do forum que está diretamente ligado
ao culto das autoridades da cidade e do Imperio só podia ser disposto
no lugar mais alto da cidade. O teatro, mais uma vez, tira vantagem do
declive do terreno pela instalação da cavea. Porquê rejeitar então as
arenas de Lutecia fora da cidade ? O edifício de espetáculo da capital
dos Viducasses, Aregenua, atualmente Vieux-la-Romaine, oferece um
caso semelhante. O edifício de espetáculo, também equipado de uma
arena, situa-se nas margem da cidade78. A rejeição dos edifícios de es-
petáculos fora do centro da cidade responde a várias necessidades que
podem ser religiosas ou simplesmente praticas. É provável que a cons-
tituição de verdadeiros bairros dedicados aos edifícios de espetáculos
facilite o acesso e a gestão dos numerosos espectadores que estavam
em redor dos edifícios durantes as festas. Por enquanto, é interessan-
te notar a crescente importância que tomam os jogos de gladiadores.
Vários edifícios são conhecidos por serem teatros adaptados a este
tipo de manifestações, e estão, na maioria dos casos, presentes nas
capitais79, outros foram descobertos nas cidades secundárias e nos
santuários. O anfiteatro de Samarobiva (Amiens), capital dos Ambiani,
propõe um exemplo interessante : neste caso o edifício de espetáculo
situa-se diretamente atrás do conjunto do forum composto por uma

76  BUISSON, Didier, Paris – Carte archéologique de la Gaule 75. Académie des
Inscriptions et Belles Lettres, Paris, 1998.
77  Supra 3, DUMASY, 2011, p. 202.
78  VIPARD, Pascal, La cité d’Aregenua (Vieux, Calvados), chef-lieu des Viducasses :
état des connaissances, Exe, Paris, 2002.
79  Podemos mencionar por exemplo os teatros de Paris, Evreux, Vieux-la-Romaine
nas capitais de civitates, Beaumont-sur-Oise, o Vieil-Evreux, e Ribemont-sur-Ancre
pelas cidades secundárias e os sanctuários.
Volume 1 177
basílica, uma esplanada rodeada de comércios e por um templo80.
Existe um acesso direto entre o pórtico do forum e as escadas do anfi-
teatro, traduzindo assim uma relação evidente entre os monumentos.
O teatro descoberto recentemente na mesma cidade, foi datado do
inicio do II s. d. C. Neste caso, as representações no anfiteatro foram
privilegiadas e provavelmente ligadas às cerimonias do culto civico
presentes no centro urbano da cidade, o teatro sendo rejeitado para a
periferia da cidade81.
A situação dos edifícios de espetáculos nas diferentes tramas
urbanas observadas, fornecem preciosos indícios. Primeiramente, po-
demos notar que vários teatros são localizados nos santuários. Podem
ser integrados no bairro monumental mas em nenhum dos casos per-
manece no temenos do templo. No que se refere à posição do teatro
nos santuários, o alinhamento de certos exemplos evocados não é sis-
temático mas os outros planos urbanos não impedem qualquer rela-
ção entre os dois edifícios. No que se refere às procissões, é necessário
recordar que estamos frente a elementos pelos quais, ainda hoje, não
temos nenhum vestígio material no norte das Gálias. Nas capitais de
civitates podemos notar que temos edifícios que apresentam ligações
com os templos dos santuários suburbanos e outros com os órgãos
políticos e religiosos oficias da cidade. Podemos concluir que o teatro
quase sempre figura como um dos elementos próprios dos conjuntos
monumentais e que a sua situação pode implicar um uso religioso do
monumento.

2 O espaço cultual no teatro: entre evidências e


suposições

Se o teatro apresenta uma disposição urbanística que favore-


ce uma relação com os espaços de culto nos santuários e nas cidades,

80  BAYARD, Didier, MASSY, Jean-Luc, Amiens romain : Samarobriva Ambianorum,


Revue archéologique de Picardie, Amiens, p.86-89.
81  BINET Eric, 2007, “Amiens-îlot de la Boucherie”, In : Bilan Scientifique Régiona-
le, Picardie, Amiens, 2007, p. 108-109.
178 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
seria interessante determinar, ou pelo menos refletir, sobre o espa-
ço sagrado no teatro mesmo como entidade arquitetural. O teatro,
seja romano ou galo-romano, articula-se com três espaços distintos :
os assentos, a orquestra e as estruturas cénicas. Apesar das suas for-
mas arquiteturais serem diversas, é necessário recordar que cada uma
destas “zonas” do monumento vai receber uma população distinta e
uma decoração própria, mas o que nos interessa mais, é o facto delas
poderem também receber parte do equipamento religioso necessário
ao desenrolamento dos jogos. Mais uma vez, o estado de conservação
e a falta de escavações recentes não permitem enunciar numerosos
exemplos, porem tentaremos refletir sobre as diferentes possibilida-
des oferecidas pelos teatros do norte das Galias.

2.1 Cavea

A cavea do teatro é subdividida em diferentes maeniana que


acolhem os espectadores tendo em conta aos seus estatutos sociais.
Na parte alta, os escravos e as mulheres, na parte media, os homens
livres e nos graderios inferiores as personalidades implicadas na vida
cívica ou religiosa da cidade. D. Tardy já exprimiu as diferentes possi-
bilidades de localização das famosas sacella, pequenas salas habitu-
almente situadas em redor da arena na maior parte dos anfiteatros,
mas pelas quais temos poucos índices de um uso verdadeiramente
religioso. Estas salas foram observadas em certos monumentos, por
exemplo, em Paris apresentam no mesmo edifício uma cena e uma
arena82. O único caso que temos num teatro na região estudada, situ-
a-se em Vendeuil-Caply. No eixo central da cavea, foi descoberta uma
pequena sala, acessível a partir da orquestra mas também da primeira
fila de assentos. Este lugar estava presente desde a primeira fase de
construção do monumento conhecida83. Revestido de frescos, tam-
bém era dotado de um pequeno nicho no qual devia ser exposta uma
estatua84. É interessante notar que, neste caso, a imagem não podia

82  Supra 3, TARDY, 2009, p. 179-180.


83  DUFOUR, Gérard, Le théâtre de Vendeuil-Caply, In : Dossier d’Histoire et d’Ar-
chéologie, n°134, Dijon, 1989, p.69-73.
84  DUFOUR, Gérard, L’orchestra du grand théâtre de Vendeuil-Caply et son sa-
Volume 1 179
ser vista do publico durante as representações, no entanto, podemos
estabelecer uma relação direta entre ela e o que se desenrolava na
orquestra. Este exemplo é único e, como explica D. Tardy, os elementos
são poucos para determinar o papel real das diferentes salas que en-
contramos no redor das orquestras ou das arenas. Por enquanto, o lu-
gar ocupado por uma imagem cultual, seja um retrato pintado ou uma
figura de bronze ou noutro material, podia ocupar lugar num espaço
dedicado no meio dos espectadores. Um dos elementos importantes,
parcialmente evocado por D. Tardy é a questão dos acessos a cavea.
Vários teatros dispõem de portas localizadas de parte e de outra do
palco cénico. Mas por vezes, também apresentam uma entrada prin-
cipal situada no eixo do monumento, ligando o exterior diretamente à
orquestra, ou pelo menos aos assentos inferiores. Assim nos teatros do
Vieil-Evreux85, de Evreux 86 ou de Vieux-la-Romaine87, podemos no-
tar a presença deste tipo de corredor. É obvio que nem todos podiam
desfrutar deste acesso direto, e é provável que nestes edifícios onde
nenhum lugar pode ser determinado como sacellum, que as imagens
levadas nas procissões ao chegarem vindas diretamente do templo, to-
massem lugar nos assentos com os espectadores. Recordaremos, por
exemplo, as procissões do teatro de Éfeso, nas quais as imagens es-
tão distribuídas pelo meio dos espectadores88. Atualmente nada, sem
ser o uso próprio do teatro que começa com manifestações religiosas,
pode ser adicionado sobre o uso da cavea como espaço cultual nos
teatros do norte das Gálias.

cellum, In : Revue archéologique de Picardie, n°4, Amiens, 1984, p. 145-157.


85  FERREIRA, Filipe, Le théâtre antique du sanctuaire du Vieil-Evreux (Eure), In :
Journées archéologiques de Haute-Normandie, Evreux 6-8 Mai 2011, Publication des
Université de Rouen et du Havre, 2012, p. 129-138.
86  DUMASY, Françoise, Petit atlas des édifices de théâtre en Gaule romaine. In :
LANDES, Christian, Le goût du théâtre en Gaule romaine, Musée archéologique de
Lattes, 1989, p. 43-75.
87  DELAVAL, Eric, Vieux-Aregenua, quartier du théâtre, dans Bilan scientifi-
que 2001 de la région Basse-Normandie, Caen, Ministère de la Culture et de la Com-
munication, 2003, p. 57-59.
88  Supra 4, MORETI, 2009, nota 53, p. 40.
180 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
2.2 Orquestra e redor da orquestra

A utilização religiosa das orquestras podia parecer-nos mais


evidente devido à presença, em vários teatros conhecidos, de altares.
Mais uma vez poucos são os exemplos disponíveis na região estudada
e o exemplo mais conhecido é o de Vendeuil-Caply. O altar descoberto
na orquestra do “grande teatro” da cidade estava situado a proximida-
de de uma pequena área ladrilhada onde foi observado o negativo do
bloco do altar89. Uma das suas faces é caracterizada por uma patera e
um urceus, provavelmente utilizado para libações90. Aqui podemos ve-
rificar um dos únicos exemplos que permite entrever as práticas rituais
que podiam ocorrer nos teatros galo-romanos. Por enquanto, esta de-
coração é genérica e a libação não era a única maneira de honrar as
divindades91. No teatro de Châteaubleau, um fragmento de altar foi
achado atrás do muro perimetral retilineo que fecha o hemiciclo, mas,
devido a presença de vários elementos arquitetónicos acumulados
no teatro por caleiros, não é possível determinar se pertencia ou não
ao teatro92. É necessário recordar que o uso de altares perenes, de
pedra, não era sistemático como foi notado por vários pesquisadores
nas outras províncias do Imperio. De facto, o equipamento cultual dos
teatros que podiam ser moveis e constituído de metais preciosos, não
foram descobertos93. O papel religioso da orquestra devia ser signifi-
cativo, este espaço constituindo um dos pontos focais do monumento.
Os outros altares descobertos em vários teatros ocidentais como Arles
em França, Cartagena ou Italica em Espanha, apresentam todos uma
iconografia que podemos por em relação com Apolo94, os deuses ca-

89  Supra 37, DUFOUR, 1982, p. 154.


90  Supra 3, TARDY, 2009, p. 179.
91  HANO, Michel, « A l’origine du culte impérial. Les autels des Lares Augusti. Re-
cherche sur les thèmes iconographiques et leur signification », ANRW II, 16, 3, 1986,
p. 2334-2381.
92  Queriamos aproveitar desta ocasião para agradecer Fabien Pilon, responsável
da escavação do teatro de Châteaubleau que nos deu acesso as reservas e onde
pudemos começar o estudo dos diferentes fragmentos esculptidos, hoje porseguido
por Séverine Blin e Marjolaine Imbs (Universidade de Estrasburgo).
93  Supra 3, TARDY, 2009, p. 180.
94  CARRIER, Cécile, Carrier Cécile. Sculptures augustéennes du théâtre d’Arles. In:
Revue archéologique de Narbonnaise, Tome 38-39, 2005, p. 365-396.
Volume 1 181
pitolinos de Roma95 ou ainda Baccho96. No caso de Vendeuil-Caply,
nenhuma divindade pode ser identificada através do objetos rituais re-
presentados. O que também nos leva a refletir sobre a ausência de atri-
butos que pode ser devido ao facto que um mesmo altar num edifício
público como o teatro podia seja utilizado em celebrações diferentes
? O altar aparece como um elemento independente que estabelece a
ligação entre o ritual e os deuses. Não é necessário dispor de um tem-
plo, nem de um sacellum para honrar os deuses no espaço publico, o
altar constitui um medium suficiente entre os deuses e a comunidade.
A presença de um altar no centro da orquestra também levan-
ta certos problemas em relação às manifestações lúdicas que encon-
trámos no teatro. Poucas são as testemunhas textuais que permitem
definir precisamente a natureza destas representações, tanto mais que
vários edifícios teatrais das Gálias dotam-se de arenas. Podemos per-
guntar-nos se houve, durante estas modificações, um movimento do
equipamento cultual. Seria então importante refletir sobre uma mu-
dança das modalidades do rito : o que fazer com o equipamento cul-
tual ? São várias as perguntas que ficam sem respostas, no entanto é
importante guardá-las para pesquisas futuras.

2.3 Palco cénico e outras estruturas cénicas

Também é necessário voltar ao debate no que se refere ao


palco cénico. Vários autores avançaram que a sua exiguidade era devi-
da ao uso das imagines, estes eram verdadeiros lugares de exposição
dos retratos dos imperadores para o povo reunido no monumento de
espetáculo, facto existente também nas Gálias97. Veremos, neste caso,
o que podemos deduzir das informações recolhidas quando abordare-

95  RAMALLO ASENSIO, Sebastian, Espaces, images et mobilier utilisés pour le culte
dans les théâtres romains d’Hispania. In : MORETTI Jean-Charles, Fronts de scène et
lieux de culte dans le théâtre antique. Travaux de la Maison de l’Orient et de la Médi-
terranée, Lyon, 2009, p. 127-156.
96  Ibid. p. 142.
97  Supra 3 Fincker, Tassaux, 1992, p. 68 ; Tardy 2009, p. 176 e ver tambem ROS-
SO, Emmanuelle, L’image de l’empereur en Gaule romaine: portraits et inscriptions.
Archéologie et histoire de l’art, 20, Comité des Travaux Historiques et Scientifiques,
Paris, 2006.
182 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
mos o culto imperial. Por último, sabemos que o muro que fecha o con-
junto cénico, é também conhecido nos outros teatros por apresentar
figuras dos deuses ou dos imperadores, que podiam ser acompanha-
dos por outras entidades. Estas figuras impunham uma certa forma de
respeito, mas não podem ser consideradas como estatuas de culto98.
A frons scaenae dos teatros galo-romanos são pouco conhecidas. Por
enquanto, aqueles que apresentavam uma decoração esculpida mais
fornecida proveem do norte das Gálias : Epiais-Rhus, Paris (as arenas)
e, mais uma vez, Vendeuil-Caply. Por enquanto, nenhum estudo re-
cente permite confirmar os programas iconográficos expostos nestes
monumentos, e a identificação de um fragmento de rostro por E. Belot
como sendo um retrato do imperador Trajano no teatro de Vendeuil-
-Caply é bastante abusiva99. Só um retrato do imperador Tito, desco-
berto nas arenas de Paris, nos deixa imaginar que a figura imperial po-
dia ser presente nestes teatros100. Seja como for, é difícil imaginar que
a decoração esculpida nos teatros do norte das Gálias, respondesse às
mesmas exigências que os programas requeridos nos teatros do início
do império. No fim do I s. d. C., o anfiteatro oferece uma alternativa ao
teatro e constitui, nos centros urbanos, o novo lugar de expressão da
ideologia imperial, como sugerem talvez as arenas de Paris, nas quais,
encontrava-se provavelmente a figura do imperador.
Nos diferentes exemplos apresentados e no estado atual das
investigações, podemos notar que não é possível determinar de ma-
neira definitiva o lugar do culto nos teatros galo-romanos do norte das
Gálias. Só conhecemos um sacellum e um altar dentro de um teatro na
região estudada, mas também é possível que os lugares de culto sejam
rejeitados diretamente fora do monumento, e integrados por exemplo,
num pórtico. Alguns dos teatros mencionados dispõem de esplanadas
porticadas observada no XIX s. mas poucas foram escavadas recente-

98  ROSSO, Emmanuelle, Le message religieux des statues divines et impériales


dans les théâtres romains, approche contextuelle et typologique. In : MORETTI Je-
an-Charles, Fronts de scène et lieux de culte dans le théâtre antique. Travaux de la
Maison de l’Orient et de la Méditerranée, Lyon, 2009, p. 89-126.
99  VAN ANDRINGA, William, La religion en Gaule romaine, piété et politique (Ier-
s.-IIIe s. apr. J.-C.), Errance, Paris, 2002. Ver tambem a origem da hipotese proposta :
Belot 1993 : E. Belot, Pour une étude systématique des éléments sculptés de Ven-
deuil-Caply. Revue archéologique de Picardie, 5, Amiens, 1993, p. 213 -226.
100  Supra 46, ROSSO, 2006, p. 142.
Volume 1 183
mente101. Também é difícil avaliar a amplitude do fenómeno religioso,
atendendo praticas que não deixaram necessariamente vestígios mate-
riais. De facto, seria útil reunir outros elementos para precisar as prá-
ticas associadas aos rituais presentes nos teatros da Gália. Se os ele-
mentos significativos e tangíveis estão obviamente em falta, será que as
inscrições descobertas em relação aos teatros oferecem mais indícios?

3 Os atores do rito

Como já verificámos, os edifícios relacionados com os espe-


táculos têm uma função religiosa afirmada que aparece tanto através
das relações que entretêm no monumento com um complexo cultual
que no estabelecimento de lugares sagrados no edifício mesmo. Por
enquanto, o que dá realmente uma dimensão religiosa aos edifícios
de espetáculos, e que define a sua vocação cultual, é o rito que ocorre
nele. As fontes literárias e epigráficas sobre estas cerimonias são pou-
cas, para não dizer cause totalmente ausentes nas Gálias. Estes mo-
numentos são sistematicamente limpos e reocupados depois do seu
abandono, o que torna difícil definir as praticais rituais. Para tentarmo-
-nos aproximar do rito nos teatros, é necessário recorrer aos poucos
elementos epigráficos disponíveis mencionando um teatro ou a edição
de jogos (ludi). Para relacionar estas ações debilitarias com as nossas
problemáticas religiosas, iremos estudar mais particularmente o lugar
tomado neste processo pelos sacerdotes, que são, no estado atual das
pesquisas na nossa região, os únicos evérgetas conhecidos. A sua fun-
ção religiosa permite refletir sobre o valor sagrado atribuído aos edifí-
cios e aos jogos. Se um sacerdote oferece um teatro, podemos deduzir
que o monumento seja ligado ao culto cujo sacerdote tem ao seu car-
go ? Quando um flamen edita o munus, a que divindades são destina-
dos esses jogos, ao deus ligado ao sacerdócio ou a outra divindade da
cidade ? Será então um sacerdote que sacrifica nestes monumentos

101  Podemos mencionar, por exemplo, o pórtico do teatro do Vieil-Evreux, cf. Supra
35
TARDY, 2009, p. 179-180 p. 129 ; ou tambem aquele do teatro de Champlieu, cf.
Supra 18 DI STEFANO, 2007, p. 153.
184 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
ou um magistrado ? Em que medida a invocaçao dedicatoria de um
edifício de espetáculo define o culto dado nestes monumentos ? será
que o teatro é ligado a um deus único ou os espetáculos podiam ser
ofertos a diversas divindades conforme o calendario civico ? São tantas
perguntas que temos que guardar em mente para cada inscriçao do
nosso corpus reduzido. De facto, na zona estudada, só duas inscrições
mencionam a dedicação de um edifício de espetáculos e três outras
à edição do munus. O conjunto dos dedicantes são qualificados, com
ou sem razão, de sacerdotes do culto imperial. É essencial para nós
refletir sobre as relações estreitas entre o culto imperial e os edifícios
de espetáculos. Estudaremos, num primeiro tempo, os evérgetas dos
edifícios de espetáculos para focalizarmo-nos depois sobre os editores
do munus e, em fim, refletir sobre o papel desempenhado pelos sacer-
dotes na liturgia destes monumentos.

3.1 A evergesia nos edifícios de espetáculos

No corpus de inscrições do noroeste das Gálias, apenas duas


inscrições que mencionam a dedicação de um edifício de espetáculos,
são atualmente conhecidas. Ambas são fragmentarias e foi proposto
para cada uma de restituir sacerdócios do culto imperial no cursus do
dedicante. Será que esta função, juntamente com a invocação dedica-
tória, permita definir o culto nestes monumentos ?
A primeira inscrição é interpretada, correntemente, como a
dedicação de um dos teatros da civitas Meldorum (Meaux) recordando
a dádiva ob honorem de um flamen Aug. Esta menção de uma dadiva
ob honorem supõe que a construção do teatro é uma obrigação rela-
cionada com o sacerdócio do culto imperial revestido pelo dedicante.
Por enquanto, a restituição proposta para esta inscrição é demasiado
conjetural. Na verdade, a dedicação, hoje desaparecida, é fragmenta-
da demais para que a restituição proposta seja aceite. O desenvolvi-
mento da inscrição geralmente admitida é o seguinte : [--- C(aius) Iulius
Orget]orix Orgetor[igis f(ilius)/ flamen] Aug(ustalis) theatrum civi[bus
suis / ob hon(orem) fla]m(onii) d(e) s(ua) p(ecunia) d(edit) effecerun[t

Volume 1 185
--- / et T]auricus fil[---]102. Todavia, a restituição proposta coloca certas
dificuldades. Em primeiro lugar, a lacuna na localização do nome do
dedicante impede a restituição de um praenomen e de um nomen im-
perial, que são meramente hipotéticos. Assim, R. Bedon103 justifica a
restituição dos tria nomina datando, segundo o cognomen de origem
indígena, a obtenção do direito de cidade durante a Guerra das Gá-
lias. A latinização do cognomen Tauricus da personagem mencionada
na ultima linha é identificado como o filho de [Orget]orix, segundo o
autor, seguindo a evolução da onomástica dos primeiros cidadãos. Por
enquanto, a organização dos nomes da primeira linha aparecem mais
na forma gaulesa da onomástica. O nome único de [Orget]orix é apre-
sentado no primeiro lugar no nominativo seguido do nome do pai no
genitivo para mencionar a filiação, como de costume nas atestações
peregrinas gaulesas. Além disso, o nome de Tauricus não faz necessa-
riamente referência ao cognomen romanizado. Um ex-voto descober-
to em Craon menciona o dedicante Tauricus Tauri f(ilius)104. De facto,
nada permite afirmar a cidadania do dedicante. Em segundo lugar, a
datação precoce ligada às origens gaulesas do cognomen é audaciosa
demais. Pois, a difusão da cidadania nas Gálias não é uniforme e os
aristocratas peregrinos são integrados na cidade e vão, até, revestir as
mais importantes cargas, como demonstram os atos de evergesia rea-
lizados por Taurus Celeris f(ilius), sacerdos Romae et Augusti, na civitas
Mediomatricorum105. Por último lugar, o exercício do flaminado e as
dádivas ob honorem flamonii não correspondem, nem a datação, nem
ao estatuto do personagem. De facto, não existe nenhuma atestação
peregrina que tenha realizado uma dádiva ob honorem flamonii. Além

102  Restituido por J.-M. DESBORDES, « Le site de Meaux antique », Archeologia,


341 1970, p. 69.
103  A. Grenier propôs de datar a inscrição da primeira metade do I s. d. C. (GRE-
NIER, Albert, Manuel d’archéologie gallo-romaine, III, 2 1958, p. 846) e R. Bedon
propôs uma datação augusto-tiberiana (BEDON, Robert, Les villes des Trois Gaules,
de César à Néron dans leur contexte historique, territorial et politique, 1999, p. 232-
233) ; MAGNAN, Danielle, « Les édifices de spectacles de Meaux, Seine-et-Marne, ar-
chéologie et données documentaires » In : Les édifices de spectacle en Ile-de-France,
2012, p.127-128 et p.202-203.
104  CIL XIII, 3096.
105  CIL XIII, 4324 ; CIL XIII, 11353 ; CAG 57-02, p 201 ; DEMOUGIN, Ségolène, « À
propos des Médiomatriques », Cahiers du Centre Gustave Glotz, 6, 1995. pp. 190-
193.
186 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
disso, o formulário pode ser estimado do semble dater du II s. d. C.106,
o que não corresponde à datação precoce da inscrição. Parece então
necessário abandonar a restituição de um flaminato para esta perso-
nagem. A letra M iniciando a terceira linha pode ser restituída por uma
menção como civi[tatis / Meldoru]m definindo deste modo a cidade
ou os cidadãos mencionados no fim da segunda linha en vez de uma
dádiva ob honorem que não parece segura. Esta restituição poderia
ser apoiada numa inscrição de Jublains (Noviodunum Aulercorum), na
qual o dedicante, um peregrino nomeado Orgetorix, dedica um tea-
tro para o uso da cidade107. Esta dedicação confirma a possibilidade
de um peregrino sem funções religiosas poder oferecer um edifício de
espetáculos. A comparação entre as duas inscrições, reforça o caracter
lacunário da dedicação de Meaux pela qual, falta a invocação dedi-
catória. De facto, apesar do seu aspeto fragmentário, a inscrição de
Jublains apresenta uma invocação ao imperador ou a Domus Augustae
ou Divinae108. Finalmente parece difícil utilizar a inscrição de Meaux
para definir entre a dedicação, o sacerdote e o rito. Poderíamos, de
facto, propor a restituição de um sacerd(os) Rom(ae) et Aug(usti) ou
como em Feurs de um sacerdos Aug109 desenvolvendo a restituição en-
tre o fim da primeira linha e o único da segunda linha, mas esta resti-
tuição é demasiado incerta para ser viável.
A segunda inscrição permite expor o problema inverso. A de-
dicação do teatro de Eu110 foi realizada por um sacerdote, cujo sacer-
dócio foi desenvolvido na lacuna. Só subsiste uma letra, um R, permi-
tindo de restituir o culto de Roma e de Augusto. Tal desenvolvimento
da inscrição parece pouco duvidoso. De facto, nas províncias da Gália,
nenhuma menção de um sacerdos seguida da letra R faz referência a
outro culto. Esta inscrição descoberta in situ adornava provavelmen-
te a frise acima do arquitravo do muro cenico111. Apesar de ter-mos
uma inscrição excecional ligada ao lugar direto onde foi exposta, as

106  JACQUES, François, le privilège de liberté, E.F.R, 1984, p. 728-729.


107  AE 1991, 1238 = AE 1997, 1133.
108  Sobre o teatro de Jublains : NAVEAU, Jacques, « L’épigraphie du site de Jublains
(Mayenne) ». In: Revue archéologique de l’ouest, T. 8, 1991. pp. 108-111.
109  CIL XIII, 1642.
110  AE 1978, 501 = AE 1982, 716.
111  CAG 76-01 p. 252.
Volume 1 187
lacunas do texto não permitem definir claramente a natureza da dádi-
va. A restituição propõem determinar esta dedicação como aquela do
teatro e do seu proscaenium 112. Por enquanto, a lacuna precedente
à menção do proscaenium não pode confirmar tal desenvolvimento.
É então impossível afirmar que o sacerdote oferece o teatro na sua
integralidade. É verdade que certas inscrições recordam a dadiva de
um teatro e do seu son proscaenium113, mas outras associam o prosca-
enium com a orquestra114 ou a scaena115. Por fim, a ausência dos dois
últimos fragmentos impedem entender a ação do sacerdote. Ele pode,
com os seus fundos próprios, ter dado, feito ou restaurado o edifício
ou só parte dele. Em Mirebeau-sur-Bèze, por exemplo, a vetustez do
proscaenium incitou Attia Sacrata a restaurar exclusivamente esta par-
te do edifício116. Parece então impossível no estado atual das pesquisas
de afirmar que o sacerdote de Eu tenha oferecido todo o edifício de es-
petáculo. Só um estudo das construções e a estratigrafia em conjunto
com novas escavações dariam uma resposta certa.

3.2 Oferecer os jogos: uma obrigação da função sacerdotal ?

“[…] iam sacerdos esse et cupio et opto et editionem muneris


quam olim detestabamur amplector [...]”117. O senador gaulês que pro-
nuncio ao Senado em 176-178 d. C. este discurso mostra a obrigação
que existia pelos sacerdotes das Tres-Galias de oferecer jogos. Assim,
este sacerdote escolhido recorre à sua nomeação, porque a função im-
plicava uma despesa demasiado elevada para ele. O senatus consul-
te estabelecido depois deste discurso tinha por objetivo de suprimir
certas taxas sobre os gladiadores. A edição de jogos era uma tarefa
que pertencia aos sacerdotes provinciais do culto imperial. Parece que
existe, porém, uma prerrogativa dos sacerdotes municipais pela orga-

112  MANGARD, Michel, « L’inscription dédicatoire du théâtre du Bois l’Abbé à Eu »,


Gallia, T. 40, 1982, p. 38.
113  CIL IX, 3857 ; CIL XI, 2710.
114  CIL II, 183 ; AE 1981, 503.
115  CIL IX, 4663.
116  CIL XIII 2462.
117  Lex italicensis (CIL II, 6278) : iam sacerdos esse et cupio et opto et editionem
muneris quam olim detestabamur amplector.
188 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
nização do munus. O concilio de Elvira mostra que a segunda carga que
cabia aos flamines durante o Baixo-Imperio era a edição dos munera118.
Encontramos este duplo nível de leitura de jogos provinciais e
municipais numa celebre inscrição da civitas dos Viducassios: o “Mar-
bre de Thorigny”119. De facto, esta inscrição apresenta sobre uma base
de estatua o cursus de um aristocrata local, T. Sennius Sollemnis, que
recebeu todas as honras na sua pátria e revestiu o sacerdócio provin-
cial. É também especificado que deu todos os munera. Esta informação
permite supor que ele ofereceu jogos na sua cidade de origem, mas
também ao Confluent. Na mesma inscrição, verifica-se o número de
gladiadores, o tipo de combates apresentados e a duração dos jogos
dados ao Confluent. Sollemnis ofereceu o munus provincial em quali-
dade de sacerdote do culto imperial no Sanctuario das Tres Galias em
Lyon. Pelo contrário, é mais difícil de verificar o tipo dos jogos dados a
escala da sua própria cidade de origem. A primeira parte da inscrição
é demasiado fragmentada e os autores não concordam sobre a resti-
tuição das lacunas. É geralmente entendido que Sollemnis foi [flamen]
m[unera]r[i]us120, ou seja que editou jogos durante o seu sacerdócio
municipal. Por enquanto, esta restituição é incerta e a palavra munera-
rius só foi atestada na cidade de Sens (Agedincum)121 onde o anfiteatro
é hoje integrado a trama urbana122. Em Vieux-la-romaine (Aregenua),
os jogos podem ter ocorrido no único edifício de espetáculos conhe-
cido na cidade de Sollemnis : o teatro com uma arena, que já mencio-
námos123. O outro problema deste termo, é que induz que os jogos
foram dados durante o flaminato. O resto do texto precisa porém que
o sacerdócio municipal foi revestido ao mesmo tempo (eodem tem-

118  Concilio d’Elvira (Plat. Lat 84, col. 301-10).


119  CIL XIII 3162 = AE 2008, 909 = ILTG 341 ; PFLAUM, Hans- Georg, Le marbre de
Thorigny, Paris : H. Champion, 1948 ; VIPARD, Pascal, Le marbre de Thorigny, Vieux,
Calvados : la carrière d’un grand notable gaulois au début du troisième siècle ap. J.-C.,
Paris : de Boccard, 2008.
120  VIPARD, Pascal, supra, 2008, p. 71.
121  AE 1992, 1240 ; CIL XIII, 2940 = AE 2006, 823 ; CIL XIII 2949.
122  PINON, Pierre, Approche typologique des modes de réutilisation des amphi-
théâtres de la fin de l’Antiquité au XIXe s., In : DOMERGUE Claude, LANDES, Christian,
PAILLER Jean-Marie, Spectacula – I, Gladiateurs et amphithéâtres. Actes du colloque
tenu à Toulouse et à Lattes les 26, 27, 28 et 29 mai 1987. Musée archéologique Henri
Prades, Lattes, 1990, p. 103-128.
123  Supra 31, Vipard, 2002, p.31-33.
Volume 1 189
pore) que o sacerdócio provincial. Parece então surpreendente que
Sollemnis tenha exercido simultaneamente dois sacerdócios em duas
cidades diferentes sabendo que este cargo impõe ao sacerdote ficar
na cidade de exercício.124. Talvez seja mais logico restituir [flamen per-
petu]us125 que explicaria a tomada simultânea de posse. Por enquanto,
esta reflexão sobre a natureza incerta de um sacerdócio restituído não
tem por objetivo rejeitar o facto que ele organizou combates de gla-
diadores na cidade dos Viducassios. É importante notar que, de facto,
não podemos ligar a edição dos jogos com o sacerdócio126. Além disso,
o sacerdócio revestido por Sollemnis também não pode ser relaciona-
do com o culto imperial, como foi várias vezes admitido127. Também é
possível restituir, por exemplo, o sacerdócio de um deus poliade : [fla-
men] m[ercu]r[i]us. As dificuldades de restituição de uma inscrição tão
importante, não permitem definir a que divindades foram oferecidos
os ludi celebrados na civitas do Viducassios.
Parece-nos por enquanto possível relacionar esta primeira
inscrição com a dedicação de uma base de estatua descoberta em
Lyon em honra de Sex. Iulius Therminanius128. A inscrição realça que se
trata de um sacerdote do culto provincial originário da civitas dos Se-
nones que recebeu todas as honras na sua cidade, mais particularmen-
te aquele de flamen Aug munerarius. Assim, este sacerdote ofereceu
jogos na sua cidade durante o seu sacerdócio municipal. O aristocrata
também é conhecido através da dedicação de um monumento votivo
dotado de um grupo estatuário da sua família descoberto na mesma
cidade129. Este monumento foi oferecido pelo o seu genro, M. Maglius
Honoratus, também flamen Aug munerarius. E apresentado ao lado do
seu irmão que também teve a mesma carga sacerdotal. É interessante
notar que este título está ligado aos três homens no exercício do sacer-
dócio do culto imperial. Durante os seus respectivos flaminatos, os três
sacerdotes ofereceram combates de gladiadores. Esta ação é de fac-

124  Lex de flamonio provinciae Narbonensis (CIL XII, 6038): l. 18-20.


125  FISHWICK, Duncan, The Imperial Cult in the Latin West, V. III, T. 2, 2002, p. 67.
126  VILLE, Georges, La gladiature en Occident des origines à la mort de Domitien,
E.F.R., 1981, p. 206.
127  VIPARD, Pascal, supra, 2008, p. 85.
128  AE 1992, 1240 ; RICHARD, François, Nouvelle inscription lyonnaise d’un Sacer-
dos Sénon des Trois Gaules, CRAI, n°3, 1992 p. 489-509.
129  CIL XIII, 2940 = AE 2006, 823.
190 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
to associada à carga do sacerdócio, por enquanto é importante notar
se esta edição do munus é própria dos sacerdotes dos imperadores.
Na verdade, nas Gálias, as atestações de magistrados munerarius são
poucas e não permitem dar esta prerrogativa ao sacerdote. De facto,
exceto uma inscrição, cujo lugar de descobrimento não é conhecido,
menciona um flamen munerarius130, todas as outras provêm de Sens.
Além dos três flamines que estudamos, só temos uma outra inscrição
que menciona em Sens, mais uma vez, um magistrado que organizou
jogos, um duumvir munerarius131. A edição do munus nas Gálias não
era então reservada exclusivamente aos sacerdotes. Nas outras pro-
víncias, todos os outros magistrados podem receber esta honra. Não
parece também que o munus seja uma obrigação do percurso de um
magistrado senono. A segunda inscrição de um sacerdote senono des-
coberta ao Confluent132 deixa supor que durante o seu percurso muni-
cipal, nunca deu os munera. Todavia, os sacerdote pode ter escolhido
só mencionar os honores, únicas funções que traziam a dignitas, deci-
dindo não mencionar os munera133.

3.3 O papel do sacerdote nos espetáculos

Também podemos refletir, para concluir sobre os atores do


rito, da importância tomada pelos sacerdotes por parte nos edifícios
de espetáculos que financiam, por outra parte nos jogos que dão. Na
verdade, é impossível salientar uma ligação entre a dedicação de um
monumento e as cerimonias cultuais que se desenrolavam lá. Assim,
é difícil atribuir um lugar preciso aos sacerdotes no que se refere aos
edifícios de espetáculos. De facto, consideramos a dedicação do edi-
fício de espetáculos de Eu134 onde não podemos claramente definir a
quem era dado o culto durante as festividades. A invocação do numina
augustorum corresponde a uma forma convencional da dedicação que

130  AE 1992, 1239.


131  CIL XIII 2949.
132  CIL XIII, 1684.
133  Sobre a diferença entre honor e munus : JACQUES, François, le privilège de
liberté, E.F.R, 1984, p. 352-357.
134  AE 1978, 501 = AE 1982, 716.
Volume 1 191
combina a figura imperial, ao deus poliade e /ou local. Assim, a menção
pagus Catuslovius e de um deus – Marte ou Mercúrio135 – parece mais
definir uma contextualização do monumento que afirmar o primado
das cerimonias do culto imperial num edifício. Parece que nos teatros
gauleses fora da região estudada, o problema seja o mesmo. Em Feurs
(civitas dos Segusiavos), a consagração do teatro ao divino Augusto pela
salute do imperador Cláudio136 não permite de afirmar que as obras
sejam ofertas unicamente ao imperador divinizado. O formulário pro
salute mostra que outros deuses podem ser invocados para cuidar da
salus de Cláudio. Além disso, esta dedicação corresponde à cerimónia
de consagração do monumento e não implica que o oficiante dos sacri-
fícios abra os espetáculos seja, por um lado, um sacerdote e por outro,
que escolha consagrar a cerimonia ao divino Augusto.
Podemos dizer o mesmo sobre o anfiteatro das Três Gálias. Se
podemos afirmar que as cerimónias estão ligadas ao culto imperial, não
é necessariamente possível de as relacionar com a dedicação. De facto,
a invocação dedicatória do monumento137 é realizada pela salvação do
imperador Tibério. Poderíamos então supor que o conjunto dos sacrifí-
cios eram ainda oferecidos a Tibério, mesmo com este já falecido? Pro-
vavelmente que não. As cerimónias podem ter evoluído à medida das
mudanças de imperadores. Não parece então que a dedicação de um
edifício de espetáculos permita definir os ritos que lá ocorriam.
No que se refere aos espetáculos de gladiadores oferecidos
pelos flamines Aug. senones138, é muito provável que as cerimónias
relacionadas diretamente com a carga sacerdotal, sejam consagradas
à família imperial. Neste preciso contexto, parece provável que eles
tenham sido os oficiantes das cerimónias cultuais abrindo os jogos. Por
enquanto, é impossível definir os destinatários do sacrifício, os divi, o
imperador vivo com uma forma divina particular, ou certas divindades
pela salvação do imperador. Esta última forma, a mais frequente se-
gundo G. Ville139, não faz referência ao culto imperial. Na verdade, o

135  BERARD, François, « Épigraphie latine du monde romain », Annuaire de l’EPHE,


Section des sciences historiques et philologiques, 142, 2011, p. 100-101.
136  CIL XIII, 1642.
137  AE, 2000, 938 = ILTG 217.
138  CIL XIII, 2940 = AE 2006, 823; AE 1992, 1240.
139  VILLE, Georges, supra, 1981, p. 208.
192 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
papel dos sacerdotes como aqueles que sacrificam, ou que oficiam, é
demasiado pouco documentado para atribuir sem dúvidas esta ação
noutro contexto que naquele das evergesias que realizaram. Além dis-
so, em Sens, a edição do munus por um duumvir reforça esta ideia.
De facto, é muito provável que durante estes jogos, seja o magistrados
que oferece o munus que tenha realizado o sacrifício. Assim, a ligação
definida entre os sacerdotes e os espetáculos fica por enunciar. As
dedicações, por exemplo, de um teatro por um sacerdote ficam de-
masiado raras para serem generalizadas. Seria, todavia, interessante
perguntar-se se nos teatros das Três gálias os monumentos oferecidos
pelos sacerdotes não são edifícios de tipo « misto » com uma arena
que permitiria organizar os munera. Mas a inscrição de Feurs140 reali-
zada por um sacerdote do culto imperial durante o reinado de Cláudio
fica precoce demais para avançar tal teoria. As modificações dos edi-
fícios de espetáculos em edifícios capazes de acolher representações
cénicas e jogos de gladiadores ou caças é suposto começar por volta
do fim I s. d.C. ou no inicio do II s. d.C. A menção proscaenium do teatro
de Eu não permite apoiar esta teoria. Parece então complicado procu-
rar nas dádivas de edifícios de espetáculos um ato evergetico próprio
á atribuição dos sacerdotes dos imperadores de editar o munus. Talvez
seja mais razoável ver nestes atos uma ação própria as personalidades
municipais que desejam acrescentar o adorno das suas cidades.

4 Os teatros galo-romanos e o culto imperial : uma


obviedade ?

A representação abundante dos sacerdotes dos emperado-


res na edição de jogos e as numerosas inscrições relacionadas de
uma ou de outra forma com o culto imperial nas dedicações de edi-
fícios de espetáculo, levou várias vezes os autores a dotar o culto
imperial de uma preponderância sobre os cultos tradicionais. Para
uma melhor apreensão do verdadeiro lugar que ocupa o culto impe-

140  CIL XIII, 1642.


Volume 1 193
rial no edifício teatral, é necessário desconstruir esta visão de uma
omnipresença do culto imperial.
O culto imperial ocupa um lugar de destaque no centro urba-
no da cidade, no entanto não é o único culto existente141. Os cultos dos
deuses poliades conhecem um desenvolvimento propício nos grandes
santuários, porém isso não impede a presença do culto imperial. Dis-
tinguir estritamente os lugares onde é possível prestar um culto aos
deuses de aqueles onde é possível prestar um culto aos imperadores
equivale a considerar o culto imperial como um elemento específico e
diferente do panteão cívico. É necessário recordar que o “culto impe-
rial” é uma criação histórica142 que dissimula, por detrás desse termo
único, uma realidade múltipla. Não existe uma maneira universal de
sacrificar ao imperador, mas sim uma pluralidade de ritos endereçados
a diversas divindades. Para intender o alcance do culto, é necessário
determinar a sua destinação. Cada província, cidade, associação cul-
tual define a suas regras para honrar o imperador respeitando por
enquanto os preceito da religião romana. Assim, torna-se delicado re-
sumir o culto imperial num lugar particular da cidade. Por enquanto,
se o culto não está segmentado num lugar próprio, não devemos vê-lo
em todo lado. Tornou-se comum atribuir ao culto imperial uma virtude
explicativa para responder as perguntas insolúveis. Um bom exemplo
é o artigo bem conhecido de M. Fincker e F. Tassaux tratando os “gran-
des santuários” da Aquitânia143. Os autores escolhem explicar a dimen-
são reduzida do dispositivo cénico de alguns edifícios de espetáculo,
questão de debates sem respostas no estado atual das pesquisas144,
pelo culto imperial. O palco cénico, pequeno demais para as repre-

141  VAN ANDRINGA, William, « Sanctuaire et genèse urbaine en Gaule », In : CAS-


TELLA, Daniel (dir.), Topographie sacrée et rituels : le cas d’Aventicum, capitale des
Helvètes : actes du colloque international d’Avenches, 2-4 , Bâle : Archéologie Suisse,
2008, p. 124.
142  BICKERMAN, Elias, « Consecratio », in : Le culte des souverains dans l’Empire
romain, Genève : Fondation Hardt pour l’étude de l’antiquité, 1973, p.3-25.
143  FINCKER, Myriam, TASSAUX, Francis, « Les grands sanctuaires «ruraux» d’Aqui-
taine et le culte impérial ». In: MEFRA, 1992. p. 41-76.
144  Para um estado atual das pesquisas cf. FERREIRA, Filipe, « L’usage de la scène
dans les théâtre de Gaule romaine », In : Theaterbauten als Teil monumentaler Heili-
gtümer in den nordwestlichen Provinzen des Imperium Romanum : Architektur – Or-
ganisation – Nutzung, 18-21 September 2013, Augst, proxima publicaçao.
194 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
sentações teatrais, serviria para acolher as imagines145. Propomos-mos
estudar a argumentação estabelecida neste artigo no que se refere
ao culto imperial nos santuários, mais particularmente nos edifícios
de espetáculos para salientar o problema metodológico dum estudo
aproximado das fontes inscritas. W. Van Andringa escreveu «Ne voyons
pas du culte impérial partout […] l’impression n’est qu’illusion. » 146 É o
que tentaremos demonstrar.
A argumentação de M. Fincker et F. Tassaux para realçar « l’évi-
dence des liens entre culte impérial et grands sanctuaires » assenta em
quatro argumentos « La place prépondérante des prêtres du culte impé-
rial », « la concentration des dédicaces faites au culte impérial », « des
théâtres voués au culte impérial » e « l’existence, dans les capitales de
civitates de sanctuaires avec théâtre consacrés au culte impérial ».
O primeiro argumento exposto no artigo corresponde de ma-
neira concreta às nossas problemáticas sobre a representação dos sa-
cerdotes dos imperadores em relação aos sacerdotes das divindades
tradicionais. Os autores propõem ver nas dedicações dos evérgetas
das cidades secundárias e dos santuários sacerdotes do culto imperial.
Em seis evérgetas apresentados, cinco foram identificados como sacer-
dotes do culto imperial.
Os dois primeiros sacerdócios estudados seriam sacerdócios
provinciais do altar das Tres-Galias, em Lyon. A primeira inscrição pro-
veniente de Vendeuvre-du-Poitou147 apresenta um sacerdos. A inscri-
ção, lacunária, não faz referencia ao altar do Confluent. A escolha de
identificar este sacerdocio a aquele das Três Gálias revela uma histo-
riografia obsoleta transmitida por H.-G. Pflaum148 seguido por L. Mau-
rin 149 que supõem que na Gália, o sacerdos é um sacerdote provincial
enquanto os flamines são sacerdotes municipais150. A inscrição de Ven-

145  FINCKER, Myriam, TASSAUX, Francis, art. cit., p. 68.


146  VAN ANDRINGA, William, « Prêtrises et cités dans les trois Gaules et les Germa-
nies au Haut-Empire », In : DONDIN-PAYRE, Monique et RAEPSAET-CHARLIER, Marie-
-Thérèse, Cités, municipes et colonies, 1999, p. 438.
147  AE 1967, 303.
148  PFLAUM, Hans-Georg, Le marbre de Thorigny, 1948, p. 13.
149  MAURIN, Louis, Saintes antiques, des origines à la fin du IVe siècle, 1978, p. 197.
150  Pour une historiographie de la question : DEMOUGIN, Ségolène, « À propos des
Médiomatriques », In: Cahiers du Centre Gustave Glotz, 6, 1995, p. 190-193. ; VAN
ANDRINGA, William, la religion en Gaule romaine, Errance, Paris, 2002, p. 208-209.
Volume 1 195
deuvre não permite de qualquer maneira, tendo em conta o seu carac-
ter fragmentado, de afirmar se o sacerdos apresentado é um sacerdote
provincial ou municipal e ainda menos se é ligado ao culto imperial ou
a aquele duma outra divindade151.
O segundo sacerdócio152 estudado depende de uma aborda-
gem semelhante. A descoberta em Argentomagus (Saint-Marcel) de um
fragmento de altar dedicado a Mater Deum por um sa]cerd(os) ar[---]
levou os pesquisadores153 a identificar o dedicante com um sacerdote
provincial do altar do Confluent. A lacuna é então restituída por sa]cer-
d(os) ar[ensis ou –ae inter Confluentes]154. Finalmente, o caracter frag-
mentário do monumento torna qualquer restituição possível. Esta inter-
pretação é motivada pelas numerosas inscrições descobertas nas Gálias
mencionando sacerdotes do altar do Confluent, mas também pelo uma
comparação mais relevante. A descoberta em Périgueux d’un taurobolio
dedicado a Magna Mater Deum por um sacerdos Arensis é um argumen-
to tangível para esta interpretação155. Por enquanto, ha que ter em conta
que as dedicações dos taurobolios a Magna Mater mencionam cuase
sistematicamente o nome do sacerdote que faz o sacrifício. Assim, é
possível discutir a restituição propondo paralelos como a dedicação dos
taurobolios de Cordoba que tratam de um sacerdote ar[am]/ sacris156.
Uma restituição mais simples também pode ser proposta, como o su-
gere uma inscrição de Timgad apresentando a formula sacerdos aram/
s(ua) p(ecunia) f(ecit)157. De facto, sem privilegiar uma hipótese ou outra,
parece-nos necessário refletir sobre as diferentes possibilidades de de-
senvolvimento para demonstrar que aquela escolhida na argumentação
não é absoluta. O caracter lacunário da inscrição torna a proposta de um
sacerdote do culto imperial possível mas incerta.

151  E interessante notar que D. Fishwick (FISCHWICK, Ducan, The Imperial Cult in
the Latin West, V.III, T.2, 2002, p.104-125) nao integra a inscrição na sua lista dos
sacerdotes provinciais das Três Gálias.
152  AE 1973, 343.
153  CAG 36, p. 71.
154  FISHWICK, Ducan, “A Priest of the Three Gauls from Argentomagus”, Historia
32, 1983, p. 384.
155  CIL 13, 11042 = ILA, Pétrucores, 9.
156  CIL II²/7, 233 et 235 : [---] / III[---] / Clodia [---] / a{d}stante Ul[pio Helia]/de sa-
cerdote ar[am] / sacris suis d(ederunt) d(edicaverunt) Maximo Urbano co(n)s(ulibus).
157  BCTH 1907, 277.
196 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Os três sacerdotes evocados na parte seguinte são definidos
pelos autores como flamines, ou seja sacerdotes municipais. A primei-
ra menção proposta é uma inscrição em vários fragmentos descober-
tos em Vendeuvre-du-Poitou158 que não menciona o sacerdócio. Os
pesquisadores propuseram restituir os termos Ro[m---] et [Aug]. Esta
menção integra-se num cursus, e se a restituição de um sacerdote li-
gado au culto de Roma e d’Augusto pode ser proposta, não é possível
que seja um flamen. Alem disso, o caracter lacunário permite restituir
varias formas conhecidas incluindo Rom., como eques rom(anus), a
conjunção et pontuando o cursus.
A segunda inscrição159 é uma dedicação mencionando L. Iulius
Equester flamen de Roma e de Augusto associando os seus dois filhos,
também flamines de Roma e de Augusto. L. Julius Equester é também
flamen p[erpetuus ?]. A doação ob honorem flamonii não permite de-
finir se esta munificência serviu para financiar o seu acesso au flami-
nado imperial ou ao seu segundo sacerdócio. Aquando a dedicam, é
muito provável que Equester já não fosse flamen de Roma e de Augus-
to pelo menos desde um ano, visto que os seus filhos encargaram-se
igualmente do mesmo sacerdócio. Por enquanto, a doação sendo ele-
vada, o tempo entre a promessa ob honorem e a dedicação pode ter
sido de longa duração. E então impossível de dizer se Equester e seus
filhos realizaram a doação sendo flamines do culto imperial, porem é
inegável que tenham revestido esta carga.
O ultimo exemplo é uma inscrição descoberta em Vendoeu-
vres-en-Brenne mencionando um flamen160. O sacerdócio é indicado
sem menção do culto ao qual é ligado. Parece então difícil aceitar
qualquer referencia ao culto imperial. A restituição na quinta linha do
sacerdócio flam a]ug também é pouco provável. Todavia, a associa-
ção proposta entre o flaminado e o duunvirato favorece a identificam
da personagem como sacerdote do culto imperial161. Apesar disso ser
uma hipótese aceitável, não pode ser verificada.
Para concluir sobre este primeiro argumento avançado, é im-
portante notar a dificuldade em apoiar uma teoria sobre um corpus

158  Gallia, 1973, p. 392.


159  CIL XIII, 1376.
160  CIL XIII, 11151.
161  VAN ANDRINGA, William, La religion en Gaule romaine, 2002, p. 215-216.
Volume 1 197
tão lacunário. « Il conviendrait de peser la valeur des témoignages
conservés, et surtout de privilégier les dossiers bien fournis »162. De
facto, das cinco inscrições apresentadas quatro restituem sacerdotes
do culto imperial. Este primeiro argumento revela-se pouco convin-
cente e confirma a importância de não ceder as conclusões precipita-
das a partir de diferentes inscrições restituídas.
O segundo argumento proposto pelos autores trata de uma
elevada concentração das dedicações relacionadas com o culto impe-
rial nas “cidades secundarias”. Estas inscrições permitiriam supor uma
relação privilegiada entre os « grandes santuários » e o culto imperial.
As 35 inscrições apresentadas podem ser repartidas em quatro gru-
pos : as dedicações destinadas às divindades augustas (3), as virtudes
imperiais divinizadas (3), aos numina dos imperadores sós (5) e a as-
sociação dos numina imperiais e uma divindade tópica (24).O conjun-
to destes documentos diferentes, para atestar de a presença do culto
imperial, constitui um problema metodológico. O culto imperial pode,
de facto reunir uma pluralidade de deuses, porém cada culto que men-
ciona o imperador não pode ser assimilado com o culto imperial. O
caso das divindades augustas pode ser um bom exemplo163. Afirmar
que o culto dado a uma divindade augusta é ligada ao culto imperial
impõem-nos antes de definir se a epiclese augustus corresponde ao
epiteto divino usado desde a Republica ou ao qualificativo próprio ao
imperador ou a função imperial. No primeiro caso, o culto é dado em
honra das divindades tradicionais sem relação com o imperador, no se-
gundo, o culto é dado ao deus pela proteção do imperador. Esta asso-
ciação pode ser entendida como uma formula pro salute imperatoris,
ou seja um culto a uma divindade para a salus do imperador. Este con-
ceito de divindade protegendo o príncipe encontra-se perfeitamente
ilustrada nas moedas do imperador Trajano164, apresentando Júpiter
nu agarrando um cetro na mão esquerda, o raio na outra mão, o braço
direito estendido protegendo do seu pallium o imperador de mais pe-
quena dimensão, segurando na mão uma rama de oliveira. A legenda

162  SCHEID, John, « Comprendre le culte dit impérial. Autour de deux livres ré-
cents ». In: L’antiquité classique T.73, 2004, p. 243.
163  BEAUDOUIN, Edouard, « Le culte des empereurs dans les cités de Gaule Nar-
bonnaise », In : Annales de l’ens. Supérieur de Grenoble, III, 1891, p. 44.
164  BNC, Trajan, 737, 764, 794, 841.
198 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
conservatori patri patriae confirma a interpretação do deus guiando e
protegendo imperador para ele trazer a paz. Mesmo assim, este rito
pela salus do príncipe não entra na categoria dos cultos imperiais.
Os dois terços das outras inscrições apresentam uma asso-
ciação entre os numina imperiais e um deus tópico provavelmente
poliade. Esta ligação entre as divindades tradicionais e imperais não
deve ser entendida como uma invasão dos cultos imperiais a todas
as escalas do rito. Como o recorda W. Van Andringa, « hors du centre
urbain, le culte impérial n’existait qu’associé aux dieux de la cité »165. O
estabelecimento de relações entre os dois cultos traduz mais uma re-
presentação da ordem religiosa cívica que uma presença fundamental
do culto imperial nos santuários.
O terceiro argumento tenta demonstrar a ligação entre o te-
atro e o culto imperial. Os autores partem de um postulado : as divin-
dades associadas a dedicação de um monumento definem o culto que
ocorria lá. Pretendem então, a partir de seis dedicações de teatros,
que a vocação destes edifícios é de receber as celebrações do culto
imperial. A ausência de dedicações de edifícios teatrais em Aquitânia
levou os autores a examinar exemplos proveniente de todas as Gálias.
A ambição é louvável mas o objetivo sendo de reunir um corpus conse-
quente torna-se invalido porque impõe um modelo religioso comum a
todas as províncias gaulesas. Como já notamos, a religião cívica enten-
de-se a escala de uma civitas e é difícil aplicar a Aquitânia um modelo
concebido a partir de outras províncias sem atestações para apoia-lo.
Alem disso, o argumento supondo que é possível determinar o cul-
to num edifício a partir da dedicação encontra bastante contradições.
As seis dedicações de teatros apresentadas referem-se ao esquema já
evocado onde existe uma associação entre uma forma do culto impe-
rial (os numina imperiais ou as honras a domus divinae) e a divindade
poliade. Como entender este formulário ? Será uma formula dedicató-
ria estereotipada ou podemos admitir uma ligação evidente entre os
cultos mencionados na dedicação e aqueles que ocorriam no edifício
? A invocação dos numina augustorum na formula de consagração de
um monumento não é uma prova segura de um culto imperial166. A
165  VAN ANDRINGA, William, art. cit., 1999, p. 438.
166  F. Bérard (BERARD, François, « Mars Mullo. Un Mars des cités occidentales de
la province de Lyonnaise», In : Mars en Occident, 2006, p. 21) faz uma observação
similar sobre formulario In honorem Domus Divinae que é « un hommage conven-
Volume 1 199
presença de divindades numa dedicação é um ato ritual sistemático
que não impõe a existência de um culto no edifício. Alem disso, a de-
dicação não é necessariamente ligada com o culto futuro: o exemplo
citado nas inscrições precedentes menciona a consagração de um fa-
num Plutonis aos numina imperiais167. A dedicação de um monumento
aos numina dos imperadores é um formulário que permite definir a
ordem estabelecida. O monumento é contextualizado como o vemos
na inscrição de Eu168. O edifício é dedicado aos numina imperiais, ao
pagus divinizado, e ao deus poliade. As diferentes escalas do poder são
recordadas para integrar o edifício num contexto cívico preciso. Esta
versão tripartida do formulário de consagração encontra-se em vários
lugares diferentes das Gálias como na dedicação das estatuas de Mars
Mullo no território dos Riedones169, sem ser, obrigatoriamente em liga-
ção com o culto imperial. A relação « sans équivoque » proposta pelos
autores entre a dedicação, o dedicante, sacerdote do culto imperial
– como no exemplo de Rennes – e o edifício tem que ser colocada em
questão. De facto, como o escreveu J. Scheid, a dedicação do teatro de
Eu « n’est en aucun cas un acte central du culte impérial de la cité. Elle
ne concerne vraisemblablement même pas un empereur, mais la divi-
nité dont le nom a disparu dans la lacune (Mars ?) »170. A presença de
certas formas do culto imperial em alguns edifícios de espetáculos não
faz duvidas. Por enquanto, a argumentação apresentada pelos autores
não é convincente e traduz um problema metodológico evidente que
consista em aplicar um modelo de uma província a outra sem indícios
permitindo tal processo.
O ultimo argumento permite uma ultima nota metodológica
na compreensão do culto imperial. Desta vez os autores tentam de-
monstrar a existência de santuários com teatros recebendo cerimonias
do culto imperial.
Para apoiar assua argumentação, recordam as teorias de au-
tores que demonstram a ligação entre o culto imperial e os teatros.
Assim, lembram as pesquisas de P. Gros sobre o Augusteum de Nî-

tionnel auquel il ne faut pas attribuer trop d’importance » seguindo assim D. Fishwick
(FISCHWICK, Duncan, The imperial cult in the latin West, II. 1, 1991, p. 431-432).
167  CIL XIII, 1449.
168  AE 1978, 501 = AE 1982, 716
169  AE 1969/70, 405b-c ; CIL XIII 3148 ; CIL XIII, 3149.
170  SCHEID, John, art. cit., 2004, p. 243.
200 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
mes171, que supõe a existência ao lado de uma fonte de um santuário
do culto imperial e de um teatro. Este exemplo, geralmente aceito,
continua a ser controverso. Alem disso, P. Gros nota que o estudo do
teatro não é possível devido ao seu enterramento depois de uma es-
cavação parcial172. Segue a sua demonstração salientando a ligação
privilegiada que existe entre alguns teatros e santuários do culto im-
perial na Gallia Narbonensis173. Parece então delicado comparar um
circuito litúrgico entre um teatro e um altar ou um templo do culto
imperial num centro urbano de uma colonia (lugar privilegiado pelo
culto imperial) e os grandes santuários atribuídos a divindades polia-
des e situados na periferia do território de uma civitas. M. Fincker et
F. Tassaux dão por exemplo o argumento de D. Fishwick174 que destaca
a relação particular entre os edifícios de espetáculos e o culto imperial
nos santuários provinciais. O problema metodológico que revela este
argumento é o esquecimento das diferentes escalas de compreensão
e de representação dos cultos imperiais. Não é possível estudar o culto
dos imperadores sem contextualizar continuamente os diversos níveis
do culto. Os edifícios de espetáculo evocados por D. Fishwick são inte-
grados nos santuários provinciais do culto imperial. É difícil, aplicar o
modelo de um santuário cujo atributo ao culto imperial é claramente
atestado aos santuários cívicos sobe a tutela de um deus poliade. Alem
disso, mesmo se existisse uma ligação evidente entre o centro provin-
cial e as outras cidades, não seria inútil recordar que para o santuário
provincial do altar do Confluent, o edifício privilegiado para acolher as
cerimonias do culto imperial é o anfiteatro.
Os dois autores decidem, a partir dos três argumentos epigrá-
ficos propostos aqui, que os modelos de P. Gros e de D. Fishwick podem

171  GROS, Pierre, “L’Augusteum de Nîmes”, In: RAN 17 1984, p. 123-134.


172  Ibid. p. 128.
173  GROS, Pierre, « Théâtre et culte impérial en Gaule Narbonnaise et dans la pé-
ninsule ibérique », In : Stadtbild und Ideologie, 1990, p. 381-390. Os exemplos de
P. Gros não são sempre convincentes. Nos quatro exemplos propostos, o caso de
Nîmes fica discutido. Para aquele de Arles, a teoria sobre a criação dum altar ou
dum sacellum no forum da colónia tambem não é admitida, os elementos da sua
demonstração sendo postos a prova (cf. ROSSO, Emmanuelle, L’image de l’empereur
en Gaule romaine, 2006, p. 132-33). Em fim, no que se refere a cidade de Orange,
os indícios não chegam para propor identificar o templo ao lado do teatro como um
edifício do culto imperial.
174  FISHWICK, Duncan, The Imperial Cult in the Latin West, II.1, 1991, p. 522-523.
Volume 1 201
ser aplicados nas cidades secundarias da Aquitânia. Tal aproximação con-
fronta-se primeiramente com um problemas de escala na compreensão
dos cultos, e, em seguida, a argumentação que tentamos enunciar aqui.
Antes de desenvolver as conclusões desta argumentação
sobre as modificações do edifício teatral como lugar privilegiado das
procissões e cerimonias do culto imperial, já podemos notar os pro-
blemas de método que suscita uma utilização das fontes inscritas sem
as contextualizar permanentemente. Os diferentes problemas deste
artigo revelam uma historiografia que não entende o culto imperial e
que o procura seja onde for. Os cultos dos imperadores tinham mui-
to provavelmente uma certa importância nas civitates das Gálias que
deixa pensar, no inicio, uma predominância sobre os outros cultos.
Por enquanto, quando estas fontes são contextualizadas, aparece que
os cultos imperiais só representam um aspeto do panteão cívico. Tal
argumentação levou os autores a considerar o teatro como um lugar
privilegiado pela expressão do culto imperial, de tal maneira que o uso
cultual do edifício chegue a explicar a sua forma arquitetural particular.
O caracter original dos teatros seria, segundo os autores, uma
tradução das modificações profundas do uso dos teatros pelos Galo-
-romanos. Se certas hipóteses podem ser formuladas, como a existên-
cia de procissões indo dum ponto ao outro da cidade, outras são cla-
ramente induzidas pelo uma tradução e uma interpretação subjetivas
das diferentes entidades arquiteturais como os tribunalia ou o pros-
caenium. Alem disso, e sempre segundo os autores, a cena reduzida
acaba por constituir unicamente um lugar de exposição pelas imagines
e o teatro, de facto, transforma-se num lugar favorecendo as orações
“ferventes” dos “fieis” que podem ver os retratos dos imperadores175.
Precisam que o palco dos teatros oferece uma melhor visibilidade das
imagens que nos anfiteatros. Desta vez, as conclusões propostas pe-
los autores não incluem certos elementos cronológicos relacionados a
evolução dos teatros, também insistam sobre certos conceitos que não
podem ser acrescentados a religião romana. O culto das imagines, que
seriam expostas no palco cénico, impediria então o desenrolamento
de espetáculos na cena. Finalmente, seria realmente possível rejeitar
os ludi scaenici dos edificios de espectaculos ?

175  Supra 3, Fincker, Tassaux, 1992, p. 69-70.


202 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Segundo os autores, os tribunalia evocados na inscrição de
Bitburg constituiriam um dos elementos mais importantes do tea-
176

tro. Assim, fariam referencia a um elemento sobrelevado de onde o


publico poderia ver as imagines trazidas no teatro177. Esta interpreta-
ção, propõem de identificar estes tribunalia como um palco cénico re-
duzido. E obvio que o termo tribunal faz referencia a vários elementos
diferentes que só têm em comum de serem “elevados”. Se voltamos ao
tribunal presente no vocabulário vitrúviano, este faz referencia as lo-
jas de honra onde tomavam lugar as principais personagens da cidade
no teatro178. Outras menções epigráficas, levam ao mesmo sentido. As
duas entidades distintas do tribunal e do proscaenium podem efetiva-
mente ser ligadas : de facto, estas lojas podiam ser dispostas de cada
lado do proscaenium. O teatro de Bitburg não sendo descoberto, todas
as possibilidades podem ser evocadas, mas nenhuma delas permite
supor, de maneira definitiva, que o palco seja confundido com estes
espaços, especialmente quando a inscrição mesma faria referencia aos
jogos cénicos179. Se hoje certos teatros descobertos como aquele de
Dalheim oferecem exemplos de uma arquitetura teatral dispondo de
vários elementos que pensávamos próprios aos exemplos clássicos180,
porque nao aceitar que outros teatros dispunham de verdadeiros tri-
bunalia no sentido vitruviano ? Podemos, por exemplo, pensar que a
inscrição de Nantes utilizada pelos autores tenha o mesmo sentido181.
O tribunal cum locis corresponderia assim a um lugar visível com as-
sentos, e nao ao palco de um lado e a cavea do outro. O valor “religio-

176  CIL, XIII, 4132, comentada por E. Bouley. Cf. Infra 132.
177  Supra 3, FINCKER, TASSAUX, 1992, p. 56 e 68.
178  Vitruve, V, 6, 7, ver nota 3 do comentário de C. Saliou, cf. Vitruve, d l’Architec-
ture, Livre V, p. 251.
179  BOULEY, Elisabeth, Les théâtres des vici et des pagi du nord de la Gaule. In :
LANDES, Christian, Spectacula – II, Le théâtre antique et ses spectacles. Actes du
colloque tenu au Musée Archéologique Henri Prades de Lattes les 27, 28, 29 et 30
Avril 1989. Musée archéologique Henri Prades, Lattes, 1992, p. 79-87.
180  Ver por exemplo os assentos de Dalheim, cf. HENRICH, Peter, Das gallorömische
Theater von Dalheim (Grossherzogtum Luxemburg). In : FUCHS, Michel, DUBOSSON
Benoît, Theatra et spectacula – Les grands monuments des jeux dans l’antiquité. Lau-
sanne, Etudes de Lettres, 288, Université de Lausanne, 2011, p. 129-152 ; ou, por
exemplo, a provavel presença no teatro de Champlieu dum auleum : Supra 18, DI
STEFANO, 2007, p. 151.
181  CIL, XIII, 3106 em Supra 3, FINCKER, TASSAUX, 1992, p. 62.
Volume 1 203
so” atribuído pelos autores aos tribunalia seriam justificados pela sua
disposição em espaços sagrados. Todavia, mais uma vez, é necessário
distinguir uma invocação dedicatória de um contexto religioso.
O tribunal sendo o palco cénico pelos autores, o proscaenium
mencionado na mesma inscrição é interpretado como os muros retili-
neos fechando o teatro de cada lado do palco cénico182. E verdade que
a palavra scaena, por exemplo, pode ser utilizada por metonímia e que
faz referencia ao conjunto das estruturas cénicas ou até ao teatro intei-
ro. Por enquanto, em vários teatros galo-romanos, as construções cé-
nicas se compõem de dois espaços retangulares dispostos de cada lado
do muro retilineo que podem ser interpretados como o palco cénico,
avançando na orquestra na maioria dos casos e um espaço de serviços
atras deste mesmo muro. Em certos exemplos, e mais particularmen-
te aqueles evocados pelos autores na Aquitânia, só sobreviveu a sala
situada atras do muro retilineo. Se na maioria dos casos que podemos
qualificar de “completos” a sala situada atras deste muro é interpreta-
da como um tipo de postscaenium porque transforma-las em palcos
cénicos que impediriam de facto o desenrolamento de espetáculos
neste lugar ? E obvio que estas salas não eram feitas para ser vistas.
Temos então que refletir sobre a ausência de palco cénico e não tentar
vê-lo noutro espaço que, de facto, não teria uso no teatro. Mais uma
vez, o método aplicado pelos autores consista em identificar um espa-
ço que seja adequado com a exposiçao das imagines, definem um lu-
gar a partir duma hipótese pela qual ainda nao temos provas tangiveis.
Outro argumento evocado, não só pelos autores mas também
por outros pesquisadores, é a exiguidade do palco cénico183. No que
se refere a sua suposta ausência, basta recordar que uma estrutura
de madeira podia amplamente chegar para efetuar os ludi scaenici. O
que ainda se justifica mais em certos exemplos que também tiveram a
função de arenas : o elemento móvel sendo mais pratico de instalar e
retirar da arena. O teatro de Eu é mais uma vez evocado como exemplo
de cena reduzida184 ao qual se ajuntam, na demonstração de D. Tardy,
os edifícios de Drevant, Derventum et St. Albans, Verulamium185. No

182  Supra 3, FINCKER, TASSAUX, 1992, p. 62.


183  Supra 3, FINCKER, TASSAUX, 1992, p. 68.
184  Supra 3, FINCKER, TASSAUX, 1992, p. 56.
185  Supra 3, FINCKER, TASSAUX, 1992, p. 181.
204 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
primeiro caso, hemos de recordar que o palco cenico nao foi escavado
na sua totalidade186 e que o espaço situado atras das colunas do muro
retilineo não constitui necessariamente o palco cénico. No caso de
Drevant, M. Fincker precisa no fim da sua demonstração (que explica
a ausência do palco cénico no teatro segundo varias transformações)
que os elementos estratigráficos não foram incluídos187. Sabemos a im-
portância destes indícios e o perigo que pode ser, em certos casos, de
apoiar-se unicamente sobre a cronologia relativa das construções. No
caso de Verulamium, é verdade que o edifício dispôs, no seu primeiro
estado, de uma cena reduzida, devida a presencia de uma arena. Por
enquanto, esta cena foi acrescentada entre dez et vinte anos depois,
dando-lhe proporções que permitiam o desenrolamento de jogos cé-
nicos188. O mesmo pode ser observado em vários teatros como aquele
do Vieil-Evreux189, que jà mencionamos. A cena e os jogos cénicos não
foram necessariamente suplantados por um culto, mas sim adaptados
as necessidade dos jogos cénicos próprios as Gálias e a adaptação de
vários edifícios aos jogos das arenas. Vários indícios permitem supor
que ainda existiam no III s. d. C.
O uso da cena nos teatros galo-romanos é suposta em vários
trechos que podemos encontrar em certas fontes, o que supõe que
ainda podiam existir representações. O imperador Julião, no Misopo-
gon, faz duas vezes referencias aos espetáculos presentes nos palcos
das Gálias, região onde ficou vários anos, salientando a decência dos
seus espetáculos ou explicando o stupor dos Celtas em frente dos es-
petáculos orientais que lhes foram apresentados 190. E interessante

186  Supra 132, BOULEY, 1992, p. 81 e as pesquisas mais recentes de L. Cholet : CHO-
LET, Laurent, Eu-le Bois l’Abbé. Bilan Scientifique Régional – Haute-Normandie, 1995,
p. 81-84.
187  FINCKER, Myriam, et alii, Le théâtre de Drevant (Cher). Analyse préliminaire du
bâtiment de scène et de ses abords. In : D’Orient et d’Occident, Mélanges offerts à
Pierre Aupert, textes réunis par Alain Bouet, Mémoires, 19, Ausonius, Brdeaux, 2008,
p. 257-268.
188  KENYON, Kathleen, The roman theatre of Verulamium, St. Albans and Her-
tfordshire Architectural and Archaelogical Society’s Transactions, St. Albans, 1934.
189  FERREIRA, Filipe, Les constructions scéniques du théâtre du Vieil-Evreux, résul-
tats des campagnes 2012 et 2013. In : Journées archéologiques de Haute-Normandie,
Alizay, - 20, 21 et 22 Juin 2014, Publication des Université de Rouen et du Havre,
publicaçao proxima (2015).
190  Pela relaçao do Misopogon com os teatros das Gálias, cf. Supra 21, MAGNAN,
Volume 1 205
notar que estes espetáculos existiam na Gallia Narbonensis durante a
época imperial e pelos quais temos varias inscrições relatando a exis-
tência de bailarinos ou mimos191. F. Dumasy recorda também a dedi-
cação do Querolus, uma das ultimas peças de teatro escritas no fim da
Antiguidade, precisando que este tipo de representações eram agora
mais provavelmente dedicadas ao contexto privado192. Se os espetá-
culos cénicos mudaram mas sobreviveram neste tipo de contexto, é
difícil confirmar que nunca foi apresentado durante a época imperial
nos teatros. Podemos supor que o espetáculo nas Gálias não foram
sempre os mesmos e que a arquitetura particular dos seus edifícios
teatrais representam um evolução original que foi influenciada não só
por razoes religiosas, que puderam determinar certos elementos como
a presença de altares ou de lugares de exposição, mas também pela
necessidade de responder ao desejo das populações em frente aos di-
ferentes tipos de representações lúdicas.

Considerações Finais

Frente aos diferentes factos expostos, é possível propor algu-


mas hipóteses sobre a função religiosa dos teatros no norte das Gálias.
Entendemos que esta função é subentendida, a primeira vista, por cer-
tos elementos concretos. O lugar de relevo cujo os teatros dispõem nos
santuários, como a sua associação ao templo ou ao centro cívico da ci-
dade supõem a existência de uma relação entre estes diferentes monu-
mentos. Todavia, é bem a natureza desta relação que é difícil justificar e
precisar. Dum lado, é importante recordar que em função do lugar –san-
tuário, cidade secundaria ou capital de civitates- a divindade honrada
não podia ser a mesma e que a topografia religiosa aplicada nas Gálias

VERMEERSCH, LECOZ, 2012, p. 100.


191  VENDRIES, Christophe, Le carnyx et la lyre: archéologie musicale en Gaule cel-
tique et romaine, 1993.
192  DUMASY, Françoise, Les édifices de spectacles dans le paysage urbain de la
Gaule tardive. In : SOLER, Emmanuel, THELAMON, François, Les jeux et les spectacles
dans l’empire romain tardif et les royaumes barbares. Publications des Universités de
Rouen et du Havre, les cahiers du GRHis, n°19, p. 69-88.
206 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
não era necessariamente a mesma que aquela das outras províncias do
império. As procissões cultuais, que sejam dedicadas a uma divindade
local ou imperial, ficam uma hipótese plausível para explicar as relações
estreitas existentes entre os diferentes monumentos mas, excerto al-
guns artefactos e algumas representações supostas, nada permite ainda
confirmar as suas existências. A presença dos deuses dentro do edifício
não pode ser negada, como a existência de ritos sacrificiais. A presen-
ça dos deuses, que traduz-se pelas imagens divinas evocadas em certas
fontes ou subentendida pelos lugares próprios (os supostos sacella), su-
põe de facto que os deuses assistiam ao espetáculo.
Da mesma maneira, o altar de Vendeuil-Caply deixa enten-
der a realização de sacrifícios no edifício. Nada, por enquanto, permite
ainda de determinar quais eram as divindades honradas. O estudo das
diferentes inscrições também não ajuda a precisa-lo. Porem, oferece
indicações preciosas sobre a ação dos sacerdotes nestes monumentos.
A sua implicação traduz-se por diferentes atos evergeticos : a oferta de
jogos ao povo por um lado, e a construção ou a reconstrução de certos
elementos dos teatros por outro. Por enquanto, não é possível deter-
minar se estas dadivas eram sistematicamente relacionados as suas
cargas. Se certas divindades são mencionadas, é necessário salientar
que a evocação do númen imperial, que aparece na maioria das inscri-
ções, não constitui uma prova dos ritos ligados ao culto imperial nos
teatros como isso foi sugerido pela Aquitânia ; mas sim de uma evoca-
ção feita durante o rito de consagração ou no pedido de proteção, por
exemplo, pelo imperador e não ao imperador. O certo é que os atos
religiosos acompanhavam os espetáculos mas raros são ainda os ele-
mentos que permitiriam os definir. No futuro, seria necessário enten-
der o âmbito das possibilidades ofertas pelos edifícios de espetáculos
na Gálias, que seja sobre a religião ou os espetáculos sobre os quais
temos poucas informações. Os edifícios de espetáculos apresentam-se
mais como monumentos que deviam responder a várias necessidades
que não podem ser limitadas ao facto religioso.

Volume 1 207
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E SOCIAL
ENTRE GRUPOS NO JUDAÍSMO DOS
SÉCULOS II A.C. A I D.C.:
UM ENFOQUE PELA PROXIMIDADE
Fernando Mattiolli Vieira 1

Na atualidade, o que ainda mais interessa aos pesquisadores


que se dedicam ao estudo da sociedade judaica dos séculos II a.C. a I
d.C., fomentado em muitos casos por interesses religiosos (por ter sido
aquele o ambiente para o nascimento de duas grandes religiões mo-
noteístas), são as particularidades originadas com os grupos diversos
do período. Elas se caracterizariam como elementos singulares, que
chamam a atenção dos pesquisadores pela criatividade e inovação no
campo religioso e social. Contudo, as similaridades podem revelar a
nós que a distância entre aqueles grupos, no que se refere à experiên-
cia religiosa e social, não era grande. Na verdade, o posicionamento
deles era oriundo de um ambiente cultural em que todos compartilha-
vam de elementos similares. Mas ainda mais que isso, como procurarei
demonstrar aqui, havia elementos políticos e sociais que faziam com
que suas experiências se tornassem bastante próximas.
Primeiramente, temos que trazer à discussão como devem
ser caracterizadas as organizações coletivas do período. Até os tempos
recentes, a historiografia que trata dos estudos judaicos antigos regis-
trou várias maneiras de defini-las; como clubes, sociedades de ajuda
mútua, guildas, associações, escolas filosóficas, facções, partidos, filo-
sofias e outros. As bases para a conceituação utilizadas pelos pesqui-
sadores são, em geral, a envergadura (pequena ou grande) e a repre-
sentação (menor ou maior) da organização coletiva no meio social.2

1 Doutor em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista, Unesp/


Assis. Email: khirbet.qumran@gmail.com
2  Por ex., é difícil dizer que a Yahad, formada (ao que as pesquisas mais recentes in-
dicam) por dissidentes essênios na primeira metade do séc. II a.C., pudesse compor um
“movimento” com a mesma envergadura dos fariseus, saduceus e essênios. Para este
caso, conceitos que fazem uma delimitação mais estrita não parecem equivocados.
Volume 1 209
O conceito utilizado para se referir a elas é de grande importância, pois
pode delimitar o papel exercido na sociedade. As complicações relacio-
nadas a abordagem podem ser exemplificadas com o uso do conceito
“seita”, bastante presente ainda em pesquisas atuais. Seu uso advém
de estudos modernos que inseriram algumas daquelas coletividades
em paradigmas bastante preconceituosos. Aqui, opto por chamá-las
de “grupos” – conceito “aberto”, que não as coloca como apartadas
e sem ligação com o meio social, e que ao mesmo tempo pressupõe
laços de proximidade e solidariedade entre os indivíduos aderentes.3
Outra importante colocação que deve ser feita a princípio
está relacionada com a identidade dos grupos considerados. Não ha-
via apenas grupos judaicos em território judeu entre os séculos II a.C.
e I d.C. De maneira inversa, sabemos também que havia grupos de
matriz judaica fora da Judeia (como consideraremos abaixo). Para dar
cabo disso, tomo emprestada a proposta encontrada com o especialis-
ta em estudos judaicos Albert Baumgarten, que divide os grupos desde
o Egito até a Ásia Menor em dois blocos básicos: judaicos e greco-ro-
manos.4 A maior diferença entre eles é que os judaicos se pautavam
no ideal religioso da Aliança (berit) e nas tradições ligadas ao passado
bíblico, enquanto que os greco-romanos se assemelhavam a escolas
filosóficas, principalmente de base epicurista, estoica e pitagórica. No
que se refere à estrutura organizacional, todos possuíam elementos
bastante comuns, como códigos de conduta internos, refeições em
conjunto, processos de admissão de novos membros, reuniões etc.
Nosso foco de análise serão os grupos de matriz judaica.5
As fontes mais conhecidas do período, como os livros do historiador
judeu Flávio Josefo (séc. I d.C.), os manuscritos do mar Morto e os
textos bíblicos cristãos, nos falam sobre grupos que parecem ter sido
os mais destacados entre os séculos II a.C. e I d.C., como os fariseus,
saduceus e essênios, que se originaram das disputas pelo poder polí-

3  Outro fator que implica na conceituação daqueles grupos está ligado à ampli-
tude pretendida pelos pesquisadores em suas análises. Se são considerados vários
grupos, de amplitude e natureza variadas, conceitos mais abrangentes respondem
melhor às abordagens por diminuírem o peso da caracterização.
4  BAUMGARTEN, Albert L. Graeco-Roman voluntary associations and ancient
Jewish sects. In: GOODMAN, Martin. (org) Jews in a Graeco-Roman world. NY: Ox-
ford, 1998. p. 93.
5  Os greco-romanos serão utilizados para comparação.
210 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
tico e religioso no período de instauração do governo dos asmoneus
(152 a.C.). Contudo, a partir desse tempo houve uma proliferação de
grupos das mais diversas orientações, que parece manter um movi-
mento crescente até o séc. I d.C., trazendo ao cenário social grupos
como os gnósticos, batistas (cf. At6 18:25, 19:1-5), judeus-cristãos
(cf. At 24:5), herodianos (cf. Mc 3:6, 12:13) e a “quarta filosofia” (cf.
AJ7 18:3-10, 23-258).9
A natureza destes grupos é sempre heterogênea. Com cons-
tância, caímos na tentação de defini-los como entidades monolíticas,
com atuação social limitada a um campo específico. Como efeito dis-
so, por vezes, as possibilidades de experiências no meio social são re-
duzidas. Os saduceus, por exemplo, parecem formar um grupo muito
mais unido pelo poder e pela riqueza do que por qualquer doutrina
religiosa particular (não são capazes de persuadir ninguém além dos
ricos [AJ 13:298]); não podendo, por isso, serem considerados como
um grupo exclusivamente religioso. Em casos como esse, é difícil con-
cluir que o grupo possuía uma natureza fixa. É menos incerto afirmar
que determinadas ações possuíam seu direcionamento de acordo com
determinações políticas e situações sociais existentes na época.10

6  Para as citações bíblicas utilizo BÍBLIA DE JERUSALÉM (7o Impressão Revista).


São Paulo: Paulinas, 1995.
7  A tradução dos textos de Josefo utilizada aqui é a de WHISTON, William. Jose-
phus: The complete works. Nashville: Thomas Nelson Incorporated, 2003.
8  Ver a opinião discordante de Horsley que, diferentemente do que se consoli-
dou na historiografia, discorda que a “quarta filosofia”, descrita por Josefo, estivesse
relacionada aos grupos combatentes dos zelotas e dos sicários, como normalmente
colocado na historiografia (HORSLEY, Richard. HANSON, John S. Bandidos, profetas e
messias: movimentos populares no tempo de Jesus. Trad. Edwino Aloysius Royer. São
Paulo: Paulus, 1995. pp. 166-173).
9  A proliferação de grupos não foi algo restrito ao território da Judéia. Os pesqui-
sadores têm encontrado documentos que apontam esse aumento em toda a região
do Oriente helenístico a partir do séc. III a.C. No Mediterrâneo romano parece ter
havido uma ampliação ainda maior, com grupos falantes do latim e do grego (cf.
BAUMGARTEN, Albert L. Graeco-Roman voluntary associations and ancient Jewish
sects. In: GOODMAN, Martin. (org) Jews in a Graeco-Roman world. NY: Oxford, 1998.
p. 94, 109).
10  Os essênios, por ex., são descritos por Josefo (e pelo filósofo judeu-egípcio
Fílon de Alexandria) como “pacifistas”, que buscavam a virtude e a temperança (cf.
AJ 15:379). Mas com a eclosão da guerra contra Roma no séc. I d.C., alguns de suas
fileiras abandonam esse posicionamento e se lançam ao embate contra o inimigo.
Volume 1 211
O que nos ajuda a compreender o posicionamento daqueles
grupos é o fato de próprios pensadores judeus do séc. I d.C., como
Flávio Josefo e Fílon de Alexandria, terem considerado os grupos de
natureza judaica ou greco-romana pelo prisma da proximidade – fato
que, ao invés de ressaltar as dissonâncias entre eles (que sabemos
existir em suas descrições), destacava as similaridades. Josefo afirmou
que os essênios não vivem de uma forma diferente, mas similar àque-
les entre os Dácios, chamados Ctistae (AJ 18:22). Os essênios foram
aproximados por ele também aos pitagóricos (cf. AJ 15:371), enquanto
os fariseus aos estoicos (cf. Vita 12). As similaridades apontadas por
Josefo se encontram principalmente no que se refere à experiência re-
ligiosa, como a perspectiva da imortalidade da alma (cf. GJ 2:154-157),
sobre os sacrifícios e a importância dada aos calendários. Fílon, por
sua vez, não aponta para uma comparação direta entre eles, mas suas
descrições partem de pressupostos comuns a todos. Por exemplo, um
de seus escritos, De Vita Contemplativa, fala sobre um grupo egípcio
chamado terapeutas (do grego therapeutae). Por sua descrição possuir
elementos similares aos atribuídos aos essênios, como o regime comu-
nitário, o desprezo pela riqueza material e a reverência pelo Sábado, os
historiadores acreditam que Fílon pode ter se referido a um grupo de
judeus-egípcios essênios ou outro grupo de matriz judaica.11
A pluralidade de organizações coletivas de caráter religioso
é a prova mais evidente de que o Judaísmo daquele período estava
longe de possuir uma unidade. Grupos dominantes que se intercala-
ram no poder e por isso estavam ligados a uma “religião do Templo”,
não tinham autoridade suficiente para impor uma vertente estrita da
religião para toda a nação. Chama a atenção também o papel das mas-
sas camponesas – menos lembrado pelos pesquisadores (em virtude
de ser menos documentado). Richard Horsley nos lembra que apenas
10% (ou talvez menos) da população estava diretamente ligada a algum

Esse foi o caso de João, o essênio, registrado em GJ 2:567-568.


11  As perspectivas utilizadas por estes autores podem ser questionadas, sobretu-
do por suas comparações estarem comprometidas com modelos filosóficos gregos
e direcionados para o público de língua grega. No entanto, a dependência para com
esses padrões se refere à maneira de conceber suas descrições não elimina a real
possibilidade de existência da proximidade entre os grupos.
212 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
grupo importante de matriz judaica no séc. I d.C.12 A grande maio-
ria da população não compartilhava de experiências religiosas “bem
elaboradas”, de base teológica profunda, encontradas principalmente
entre grupos letrados. Pelo contrário, se pautavam por elementos cul-
turais presentes na sociedade, que vinham a formar uma experiência
religiosa mais ligada a uma religiosidade camponesa – com participa-
ção nas festividades nacionais (cf. Ex 23:14-17; 2Cr 8:13) e com a oferta
sacrificial no Templo quando viajavam a Jerusalém (cf. Lc 2:41).
Essa diversidade religiosa será drasticamente reduzida com a
destruição do Segundo Templo de Jerusalém em 70 d.C. pelos roma-
nos e com o consequente trabalho dos sábios de Yavnev, que entre o
final do séc. I d.C. e início do séc. II d.C. buscaram a uniformização e a
unidade do Judaísmo diante da pequena variedade que havia sobrevi-
vido à catástrofe infligida pelos romanos.
É interessante notar que mesmo dentro de um cenário em que
coexistiam grupos diversos, alguns deles rivais em suas representações
e luta pelos monopólios, havia similaridades significativas em suas ex-
periências religiosa e social, que fazem com que possam ser pensados
por uma perspectiva de proximidade. O que devemos fazer agora é
apontar de onde aquelas similaridades eram oriundas. Existiam dois
grandes fornecedores de material ideológico para a composição dos
grupos. O primeiro deles, mais fácil de se compreender, é o passado
bíblico. O segundo é o que tomará nossa atenção no decorrer deste
capítulo, pois elas não são encontradas no passado bíblico reverencia-
do pelos judeus e apresentam similaridades com grupos não judaicos.
É aqui que se concentra a maior parte das discussões historiográficas.
Primeiramente, falemos brevemente sobre a importância do
que chamo aqui de passado bíblico. As tradições do passado estavam
presentes com força entre os séculos II a.C. e I d.C. As fontes escritas
desse período nos mostram que elas não se colocavam como criações
literárias, que não representariam o que de fato seria a realidade social
do período. Pelo contrário, demonstram com clareza que a experiência
religiosa e social dos grupos judaicos estiveram ligadas às tradições an-
tigas. A variedade e as particularidades de cada um deles se dava prin-

12  HORSLEY, Richard. HANSON, John S. Bandidos, profetas e messias: movimen-


tos populares no tempo de Jesus. Trad. Edwino Aloysius Royer. São Paulo: Paulus,
1995, p. 8.
Volume 1 213
cipalmente no campo religioso, com a interpretação da Torá. Maneiras
de se encarar o Sábado, a interpretação da Lei, as regras relacionadas à
pureza e a maneira de se pensar o apocalipticismo (elemento religioso-
-militante comum entre grupos da época), proviam os elementos que
apresentavam as semelhanças e as diferenças entre eles.
O Templo de Jerusalém pode nos dar um bom exemplo da
proximidade entre os grupos de matriz judaica. Ele colocava-se como o
centro da fé e símbolo físico de um passado vivo. Ainda que os grupos
judaicos do período pudessem discordar das facções dirigentes, possu-
íam o Templo como símbolo religioso nacional.13 O Templo era dirigido
pelos saduceus (cf. At 5:17), que compunham uma elite aristocrática
que acendeu ao domínio político das instituições judaicas no séc. II a.C.
Contudo, outros segmentos não eram impedidos de participar nas ati-
vidades religiosas previstas no calendário judaico. Os fariseus compu-
nham a maior força de oposição aos saduceus, mas tinham o Templo
aberto para realizarem sacrifícios e participarem das discussões com os
saduceus. Os essênios, narrados por Flávio Josefo, enviavam ofertas ao
Templo, mas faziam seus sacrifícios de forma diferente que os outros
grupos judaicos (cf. AJ 18:1914). Os judeus-cristãos, segundo o escritor
Lucas, se aproveitaram do ambiente comum do Templo para pregar
(At 5:20-21, 42).15 O Templo de Jerusalém ajuda-nos a entender que
todos aqueles grupos, ainda que possuíssem rivalidades religiosas e
políticas, compartilhavam de uma base histórica e social comum.
A reverência ao passado não impediu que determinados gru-
pos, por inúmeros motivos, revissem as tradições antigas em favor pró-

13  Para Baumgarten, Jerusalém e o Templo eram o principal foco da atividade


“sectária” (BAUMGARTEN, Albert L. Graeco-Roman voluntary associations and an-
cient Jewish sects. In: GOODMAN, Martin. (org) Jews in a Graeco-Roman world. NY:
Oxford, 1998. p. 106).
14  Ao que tudo indica, esse posicionamento por parte dos essênios estava rela-
cionado às suas estritas regras de pureza ritual ou/e o contato muito próximo com
não essênios (veja a boa discussão em BEALL, Todd. S. Josephu’s description of the
essenes ilustrated by the Dead Sea Scrolls. New York: Cambridge University Press,
1988. pp. 115-119).
15  Contudo, houve grupos que romperam sua associação com o Templo de Je-
rusalém. A Yahad rompeu relações com o Templo por considerá-lo “contaminado”.
Na verdade, o grupo contestou a ascensão dos asmoneus ao sumo-sacerdócio, que
consideraram irregular. Isso pode ser visto em seus escritos 4QMMT e Documento
de Damasco (CD).
214 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
prio. Por exemplo, a Yahad, grupo que redigiu parte dos manuscritos do
mar Morto, abdicou de importantes tradições penais antigas. Os grupos
cristãos também se detiveram em reformular pressupostos importan-
tes da tradição judaica, como as regras relacionadas ao Sábado.16
Mas o que chama mais a atenção é o fato de muitos elemen-
tos daqueles grupos serem similares e não possuírem raízes nas tradi-
ções do passado. Isso começou a ser percebido desde cedo entre os
pesquisadores. Tanto em grupos de matriz judaica como greco-roma-
nos (ou ainda os mais sincréticos, formados por judeus de pensamen-
to helenista) havia características bastante similares, como o caráter
de irmandade, a voluntariedade (ao invés de nascimento), os ritos de
iniciação, a necessidade de apreensão de conhecimento para ascen-
são hierárquica, o sigilo quanto ao conhecimento do grupo para com
a sociedade, as refeições, o sistema jurídico e judiciário, doutrinas, li-
bações, incensos, sacrifícios etc. Não há espaço aqui para discutirmos
cada um desses elementos – nem é esse o interesse principal. O ob-
jetivo é entender o que estaria por trás de todas essas similaridades.
Ao longo da historiografia, já tivemos várias explicações para
justificar as similaridades entre os grupos do período, principalmente
de matriz judaica. Darei destaque a três delas. A primeira tem como
base o mecanismo da influência. Já foram apontadas influências em
todos os aspectos; entre os principais estão os linguísticos, literários,
doutrinais e organizacionais. As principais fontes de influência teriam
advindo da troca de experiências com grupos greco-romanos. Nesse
sentido, um grande nome foi o do historiador alemão Martin Hengel.
Seu foco principal foi o estudo das influências helenísticas sobre os
grupos de matriz judaica. Parte de suas considerações foi feita sobre
o essenismo e a Yahad (seguindo o grande impulso das pesquisas aca-
dêmicas ocorrido com a descoberta dos manuscritos do mar morto,
em 1947). Ele afirma que o Mestre da Justiça, líder fundador da Yahad,

16  Devemos ressaltar que o passado bíblico também foi resultante de um projeto
arbitrário de reconstrução político e religioso nacional, decorrido principalmente no
período que sucedeu ao retorno dos judeus ao território da Judeia, após o Exílio
babilônico (séc. VI a.C.). As pesquisas atuais apontam que não havia unidade entre
as tradições antigas. Por isso, como projeto de presente e futuro, as gerações que se
ocuparam dessa construção eliminaram o rico sincretismo dos tempos do Primeiro
Templo de Jerusalém.
Volume 1 215
poderia ter conhecido práticas comuns das escolas pitagóricas e intro-
duzido no grupo padrões da educação grega.17 Isto seria encontrado,
por exemplo, no sistema normativo dela, que era também utilizado
por grupos helenísticos.18 Entretanto, estudos mais recentes têm dis-
cordado de que as similaridades entre aqueles grupos tivessem se ori-
ginado meramente por influências, já que na maioria dos casos não
é possível provar uma dependência direta e os caminhos percorridos
pelos elementos compartilhados.
A segunda explicação leva em consideração as mudanças his-
tóricas e o reflexo disso na sociedade. Um dos pesquisadores que mais
tem se destacado em apresentar esta relação é Albert Baumgarten.
Para ele, a formação dos reinos helenísticos propiciou o fim das per-
seguições a segmentos políticos discordantes, que viriam, a partir de
então, a se organizar em “seitas” de matriz grega. O ambiente em que
elas teriam se desenvolvido era urbano, o que teria provido “[...] mais
ou menos o mesmo tipo de pessoas, em equivalente ambiente e em
circunstâncias similares”.19 Estas condições teriam provido todo um
aparato social e ideológico que teria sido utilizado pelos grupos gre-
gos e, talvez em seguida, os de matriz judaica. É com base nessa pers-
pectiva que ele acredita que podem ser encontrados os elementos de
aproximação entre grupos greco-romanos e judaicos. Quando trata dos
essênios, por exemplo, diz o seguinte: “[...] para encontrar equivalentes
mais exatos do comportamento essênio, devemos voltar nossa atenção
para o domínio da imaginação, para as utopias gregas”.20 O trabalho
de Baumgarten é de grande colaboração a nós por enquadrar os gru-
pos greco-romanos e judaicos em um cenário social mais amplo. Não
há dúvida de que os elementos constituintes daqueles grupos estavam

17  HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism: studies in their encounter in Palestine
during the Early Hellenistic Period. Trad. John Bowden. Philadelphia: Fortress Press,
1974, p. 246.
18  HENGEL, Martin. Qumran and Hellenism. In: COLLINS, J. J. KUGLER, R. A. (eds.)
Religion in the Dead Sea Scrolls. Michigan: Grand Rapids, 2000, p. 50.
19  BAUMGARTEN, Albert L. Graeco-Roman voluntary associations and ancient
Jewish sects. In: GOODMAN, Martin. (org) Jews in a Graeco-Roman world. NY: Ox-
ford, 1998, p. 109.
20  BAUMGARTEN, Albert L. Graeco-Roman voluntary associations and ancient
Jewish sects. In: GOODMAN, Martin. (org) Jews in a Graeco-Roman world. NY: Ox-
ford, 1998, p. 101.
216 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
relacionados ao que estava disponível no meio social. Contudo, o maior
problema ao considerar as mudanças históricas como o vetor que pro-
piciou as semelhanças entre os grupos do período tem sido a falta de
elementos mais específicos que pudesse provar como isso teria se
dado. Esse parece ser o caso de Baumgarten; que, ao final, cai no mes-
ma vacuidade enfrentada pelos pesquisadores que tentam explicar as
semelhanças entre os grupos através do mecanismo das influências.21
A última forma de explicação das similaridades entre os gru-
pos do período que destaco é um apontamento mais específico feito
pelo historiador americano Yonder M. Gillihan. Seu objetivo maior é
explicar a ideologia cívica e a organização da Yahad através da com-
paração com outros grupos judaicos e greco-romanos. Para ele, o que
fazia com que eles apresentassem proximidade em suas experiências
era o fato de se basearem em padrões criados pelo Estado. Eles teriam
“[...] emprestado termos e padrões das poleis locais e dos impérios
helenístico e romano, incluindo a terminologia dos governantes, cultos
oficiais, corpos legislativos, cortes, conselhos deliberativos, unidades
militares e outros”.22 Os procedimentos internos também teriam sido
baseados nas disposições do Estado, entre os quais o sistema jurídico e
judiciário. Assim, as similaridades entre os grupos tinham como base o
que Gillihan chama de “linguagem de Estado”,23 que de acordo com o
lugar e maneira de atuação, fornecia o material necessário para a for-
mação dos grupos – mais ou menos similar no Mediterrâneo oriental a
partir da constituição de grandes unidades sociais integradas.
Não se pode dizer que as propostas colocadas pelos autores
considerados acima (e as de outros não consideradas aqui) são de todo
equivocadas. Um ou outro elemento, de acordo com sua especificida-
de, pontuais ou mais amplos, podem ter sido emprestados entre eles

21  Veja a crítica feita ao trabalho de Baumgarten em GILLIHAN, Yonder M. Civic


ideology, organization, and law in the rule scrolls: a comparative study of the cove-
nanters’ sect and contemporary voluntary associations in political context. Leiden:
Brill, 2012, pp. 55-56.
22  GILLIHAN, Yonder M. Civic ideology, organization, and law in the rule scrolls: a
comparative study of the covenanters’ sect and contemporary voluntary associations
in political context. Leiden: Brill, 2012, p. 2.
23  GILLIHAN, Yonder M. Civic ideology, organization, and law in the rule scrolls: a
comparative study of the covenanters’ sect and contemporary voluntary associations
in political context. Leiden: Brill, 2012, p. 3.
Volume 1 217
por algum desses caminhos considerados acima. Sendo assim, todas
essas propostas podem ter seu valor, desde que apontado o caminho
que teria gerado as analogias.
Ao contrário dessas, a proposta apresentada aqui é a de que
havia um agente regulador social que influía sobre aqueles grupos, limi-
tando suas ações e provendo moldes mais ou menos similares de atu-
ação – o que fazia com que as experiências religiosas e sociais fossem
aproximadas entre todos eles por se posicionarem em uma base social
similar. No centro, no local de onde provinha essa regulação, estava o
poder soberano, detentor dos monopólios e organizador da sociedade.
Devemos agora buscar informações nas fontes para que essa
proposta alcance seu valor. O interesse maior deve pairar na busca de
elementos que possam apontar a relação existente entre os grupos
com o poder soberano – que por fim viriam a moldar e aproximar suas
experiências religiosas e sociais. Com base nesse recorte, seleciono
dois trechos de documentos para serem considerados. O primeiro re-
fere-se a uma carta enviada pelo apóstolo Paulo ao grupo judeu-cristão
e gentio da cidade de Corinto. O segundo é um texto que pertenceu
ao grupo que redigiu parte dos manuscritos do mar Morto, conhecido
como Yahad. Comecemos com o texto de 1Coríntios 6:1-8:

Quando alguém de vós tem rixa com outro, como ousa levá-
-la aos injustos, para ser julgada, e não aos santos? 2Então
não sabeis que os santos julgarão o mundo? E se é por vós
que o mundo será julgado, seríeis indignos de proferir julga-
mentos de menor importância? 3Não sabeis que julgaremos
os anjos? Quanto mais então as coisas da vida cotidiana?
4
Quando, pois, tendes processos desta vida para ser julga-
dos, constituís como juízes aqueles que a Igreja despreza!
5
Digo isto para confusão vossa. Não se encontra entre vós
alguém suficientemente sábio para poder julgar entre os
seus irmãos? 6No entanto, acontece que um irmão entra em
litígio contra seu irmão, e isto diante de infiéis! 7De qual-
quer modo, já é para vós uma falta a existência de litígios
entre vós. Por que não preferis, antes, padecer uma injusti-
ça? Por que não vos deixais, antes, defraudar? 8Entretanto,
ao contrário, sois vós que cometeis injustiça e defraudais - e
isto contra vossos irmãos!

218 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


Uma primeira leitura aponta o foco religioso dado por Paulo
sobre a relação entre a justiça do grupo (“divina”) e a justiça promovi-
da por cortes externas, aquelas provavelmente ligadas à estrutura do
poder soberano. Ele afirma que as cortes do grupo teriam o poder para
julgar o “mundo” e até os “anjos”. Se retirarmos o verniz da religião,
poderemos enxergar melhor as razões de sua admoestação. Paulo co-
nhecia muito bem a existência de poderes externos que podiam inter-
ferir na jurisdição dos grupos cristãos ligados a ele. Ele próprio já havia
passado por julgamento na mais importante corte judaica, o Sinédrio
(cf. At 23). Ainda assim, ele impõe limites à apelação de membros em
qualquer tribunal externo ao grupo.
Na visão paulina, a relação entre os grupos cristãos com o po-
der temporal era permitida por seu deus até um determinado ponto,
sendo as próprias instituições do poder soberano oriundas da vontade
divina. Se relacionarmos este texto com as exortações existentes em ou-
tras cartas paulinas direcionadas para grupos cristãos, percebemos que
a relação permitida com instituições da sociedade se colocava apenas
em um âmbito que não entrasse em atrito com suas disposições, como
o pagamento de impostos e o respeito às autoridades superiores do Es-
tado (cf. Rm 13:1-7). Qualquer outro problema envolvendo a quebra de
preceitos religiosos e sociais apontados pela estrutura do grupo deveria
ser levado exclusivamente às suas próprias autoridades judiciárias.
A outra fonte que podemos utilizar neste momento é um tex-
to que foi utilizado pelo grupo Yahad, presente na coleção dos manus-
critos do mar Morto, conhecido como Documento de Damasco (CD).
Em 9:1, ele diz o seguinte: Qualquer homem que devota ao anátema
alguém dentre os homens pelas leis dos gentios deve ser morto. Os
pesquisadores apontam o texto como uma paráfrase extraída do li-
vro bíblico de Levítico. Lá, o texto é colocado da seguinte maneira:
Nenhum ser humano votado ao anátema poderá ser resgatado; será
morto (27:29). A formulação do original em hebraico, de fato, mostra
a dependência que o redator do grupo teve com o texto levítico.24
Contudo, ele faz um acréscimo ao final, o trecho pelas leis dos gentios.

24  Para uma comparação entre os textos em hebraico, sugiro GILLIHAN, Yonder
M. Civic ideology, organization, and law in the rule scrolls: a comparative study of
the covenanters’ sect and contemporary voluntary associations in political context.
Leiden: Brill, 2012. pp. 192-193.
Volume 1 219
Já se procurou apontar que esta passagem era também extraída do
livro de Levítico, de partes que falam sobre não manter contato com
as nações em oposição aos israelitas, talvez o texto 20:23, que diz: não
seguireis os estatutos das nações.25 Minha posição, no entanto, é a
de que o redator tenha direcionado o texto exclusivamente para seu
grupo (considerado o “verdadeiro Israel”), marcando o trecho a inten-
cionalidade do redator.
A busca pela autonomia da Yahad está ligada ao grupo desde
seu nascimento. Ao que as pesquisas atuais apontam, esse grupo era
oriundo dos essênios, mas ainda cultivava contato com os outros gru-
pos de natureza essênia, chamados por seus escritos de acampamen-
tos ou assembleias (cf. CD 12: 22-23). Em cada um dos acampamentos
havia um corpo legislativo e judiciário responsável por aplicar as re-
gras (cf. CD 14:3-21), mas parece haver uma distância jurídica maior
da Yahad para com eles. Isso teria se delineado já em seu período de
formação. A Yahad teve suas bases institucionais criadas com um rom-
pimento político-religioso ocorrido na primeira metade do séc. II a.C.,
que fez com que um grupo legalista se dirigisse ao deserto buscando
criar um novo “caminho” na religião e salvaguardar sua própria exis-
tência, ameaçada naquele momento pelo poder soberano que se ins-
tituía na Judéia (cf. CD 1:11).
Assim como com os grupos cristãos sob a autoridade de Pau-
lo, a Yahad disputava com os tribunais externos a legitimidade no tra-
to da justiça para com seus membros. Ela desenvolveu códigos penais
para a regulação de sua estrutura interna. Estes códigos mostram a
autonomia que as lideranças do grupo possuíam em lidar com os as-
sociados. Eles descrevem algumas infrações que podiam ser motivo
para julgamento nos tribunais judaicos por serem conhecidas também
pelo texto bíblico, como a profanação do nome divino (1QS 6:27-72),
conduta sexual inapropriada dentro do casamento (4QDe, frag. 7, col.
1, vv. 12-13) e, de maneira mais geral, a transgressão contra as leis
de Moisés (1QS 8:21-23) – leis que ainda estavam presentes na socie-
dade judaica do séc. I d.C., como podemos ver nas fontes judaicas e
judaico-cristãs. Em todos estes casos, as autoridades da Yahad se co-

25  GILLIHAN, Yonder M. Civic ideology, organization, and law in the rule scrolls: a
comparative study of the covenanters’ sect and contemporary voluntary associations
in political context. Leiden: Brill, 2012. p. 193.
220 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
locavam como responsáveis pelo julgamento, sendo excluída qualquer
participação de cortes externas. Devota(r) ao anátema alguém dentre
os homens pelas leis dos gentios era o mesmo que se utilizar das cor-
tes judiciais reconhecidas pela sociedade judaica (mas não pelo grupo)
para resolver qualquer litígio dentro do grupo.
A conclusão mais objetiva que podemos extrair destas duas
fontes é a de que nenhum membro daqueles grupos poderia apelar
para as cortes “gentias”, ou seja, para as autoridades não designadas
pelos próprios grupos. Não podiam, também, reivindicar a utilização
de leis externas para solucionar conflitos ocorridos no interior deles,
entre seus membros. Qual o objetivo disso? Caso os indivíduos pudes-
sem recorrer às leis e aos tribunais externos, o poder que emanava das
autoridades daqueles grupos se romperia – destruindo as barreiras ju-
rídicas e institucionais entre o grupo e a sociedade, colocando em risco
sua própria existência. Eles reivindicavam não apenas o controle dos
bens de salvação aos filiados, mas também o poder sobre sua própria
estrutura, que se reconhecia e se dava a conhecer como uma institui-
ção autônoma e singular em meio à sociedade.
De qualquer maneira, saber que tais grupos buscavam auto-
nomia e que em favor dela e da própria existência deles, todos deve-
riam limitar suas relações com os poderes externos, é o menos impor-
tante para alcançarmos nosso objetivo aqui. O ponto essencial é saber
que havia uma tensão entre o poder que emanava dos grupos e do
poder soberano. Se formos mais a fundo na consideração destas fon-
tes, poderemos encontrar apontamentos ainda mais elucidativos. O
pequeno e importante texto CD 9:1 pode ser usado novamente. A par-
te final dele mostra que quem apelasse às leis dos gentios seria morto.
Essa conclusão foi copiada da mesma maneira como presente no texto
de Levítico 27:29. No entanto, sua utilização nos leva a questionar se,
de fato, as lideranças da Yahad podiam utilizar a pena de morte como
punição a membros infratores. Com base nos próprios textos do grupo,
principalmente seus códigos penais, é possível concluir que eles não
utilizavam a pena de morte como punição. No código penal do livro
1QRegra da Comunidade (6:24-7:25), o mais extenso entre todos os da
Yahad, a penalidade utilizada para punir os infratores que cometiam as
mais sérias transgressões era a expulsão.

Volume 1 221
A mesma medida foi tomada pelos grupos cristãos encabeça-
dos por Paulo. A carta aos coríntios pode nos ajudar a compreender o
posicionamento deles. Vejamos o trecho 5:1-5.

Só se ouve falar de imoralidade entre vós, e imoralidade tal


que não se encontra nem mesmo entre os gentios: um den-
tre vós vive com a mulher do seu pai! E vós estais cheios de
orgulho! Nem mesmo vos mergulhastes na tristeza, a fim de
que o autor desse mal fosse eliminado do meio de vós? ... É
preciso que, estando vós e meu espírito reunidos em assem-
bleia com o poder de nosso Senhor Jesus, entreguemos tal
homem a Satanás... (vv. 1-5).

Os limites impostos pelo poder soberano ao grupo cristão co-


ríntio não eram diferentes que os existentes para a Yahad. A imoralida-
de era, para Paulo, uma grave transgressão. O homem que a cometia
devia ser “eliminado” do meio do grupo coríntio. O que significava isso
entre eles? A pena capital orientada por Paulo para graves transgres-
sões era a expulsão do grupo, simbolizada no texto por entreguemos
tal homem a Satanás. Essa perspectiva religiosa imputada para uma
experiência social colocava a expulsão como a perda do favor divino e
do reconhecimento frente ao grupo ao qual pertencia.
A experiência religiosa e social daqueles grupos tinha que ser
direcionada de uma maneira que evitasse ao máximo qualquer conflito
com o meio social e principalmente com o poder soberano que detinha
o domínio sobre os monopólios (sobretudo o da violência). Tal atitude
os protegia de atritos contra as autoridades externas e com os não as-
sociados, além de regular a interação com eles fora de seus domínios.
A pena de morte, por exemplo, não podia ser imputada entre eles. Na
Judeia, desde o governo dos asmoneus até o séc. I d.C – tempo em que
tínhamos todos os grupos citados acima em atividade –, o governo
era quem detinha o poder legal para punir indivíduos com a morte.
O julgamento de Jesus de Nazaré reflete bem esse limite. Segundo os
evangelhos, o governador Pôncio Pilatos pergunta: “Que farei de Jesus,
que chamam de Cristo?” Todos responderam (sacerdotes e anciãos):
“Seja crucificado!” (Mt 27:22-23). A quem caberia a crucificação do
Nazareno? A resposta é dada pelo evangelista João: Disse-lhes Pilatos:

222 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


“Tomai-o vós mesmos, e julgai-o conforme a vossa Lei”. Disseram-lhe
os judeus: “Não nos é permitido condenar ninguém à morte” (18:31).
Estes grupos não poderiam aplicar penas severas, como a
pena de morte, aos seus membros. Sabemos disso pelos manuscritos
do mar Morto, pelos escritos de Josefo, pelos textos cristãos e mish-
náicos de grupos judaicos do séc. I d.C. Com isso, a própria prática da
expulsão pode ser encarada como uma experiência religiosa e social
corrente entre eles; pois era praticada pela maioria deles, sem que
tivesse sido “copiada” de um para outro. Ao contrário, foi criada por
todos eles com base nas limitações impostas pelos poderes externos.
As experiências sociais decorrentes da tensão entre o poder
soberano e os grupos diversos eram transmutadas para uma ordem
divina; passando, a partir deste momento, a compor um quadro de
experiências religiosas internas. Para David Flusser, eram as expecta-
tivas messiânicas que faziam com que grupos como a Yahad e cristãos
mantivessem o respeito às autoridades civis. Como o fim dos tempos
era iminente, havia a necessidade de manter um “pacifismo condi-
cionado”, tendo em mente que os governos profanos ainda se faziam
existentes por se enquadrarem em uma periodização orientada divina-
mente.26 Estes grupos não tinham poder para atuar contra as limita-
ções impostas pelos governos soberanos. Por isso, qualquer vingança
necessária seria efetivada no tempo do fim, pelas mãos de deus (cf. Rm
12:19). A mensagem de Paulo para os cristãos romanos deixava bem
claro que as autoridades governamentais que existem foram estabele-
cidas por Deus e que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-
-se à ordem estabelecida por Deus (Rm 13:1-2). De maneira similar, a
passagem de Guerra Judaica 2:140, que diz: ele sempre mostrará fide-
lidade para todos os homens, especialmente aqueles em autoridade,
pois ninguém obtém um governo sem a assistência de Deus, tem sido
encarada por muitos eruditos como uma descrição do respeito dos es-
sênios para com as autoridades do poder soberano.27

26  FLUSSER, David. The jewish origins of the early church’s attitude toward the
State. In. Judaism in the Second Temple Period. Trad. Azzan Yadin. Grand Rapids (Mi-
chigan): Eerdmans, 2007, pp. 300-301.
27  FLUSSER, David. The jewish origins of the early church’s attitude toward the
State. In. Judaism in the Second Temple Period. Trad. Azzan Yadin. Grand Rapids (Mi-
chigan): Eerdmans, 2007, p. 229.
Volume 1 223
Para tornar ainda mais claro que as similaridades entre os gru-
pos daquele período eram resultantes de limites impostos pelo poder
soberano, talvez seja mais útil sabermos o que eles não poderiam fazer
ao invés do que poderiam. Utilizemos as fontes josefianas como ajuda.
Josefo cita alguns movimentos de natureza político-religiosa que não
chegaram a se consolidar como grupos organizados hierarquicamente
devido ao modo com que suas representações foram apresentadas ao
meio social logo na gênese deles. Um destes casos foi o do líder mes-
siânico Teúdas (cf. AJ 20:97-98). Segundo Josefo, Teúdas, que se consi-
derava um profeta, abriria as águas do rio Jordão. Entretanto, antes de
conseguir fazer isso, ele e seus seguidores foram atacados de surpresa
por ordens do governador Cúspio Fado, da Judéia (44-46 d.C.). Muitos
deles foram mortos; e Teúdas, depois de capturado, teve sua cabeça
decepada. Este certamente fora um movimento conhecido, uma vez
que também foi citado por Lucas, em Atos (5:36).28 Outro exemplo foi
o de um judeu que voltara a Jerusalém vindo do Egito, por isso chama-
do por Josefo (e por Lucas, em At 21:38) como o “Egípcio” (cf. GJ 2:261-
263, AJ 20:169-172). Após dizer que entraria na cidade de Jerusalém
com ajuda divina, ele e seus seguidores foram atacados pelas forças
romanas. A maioria foi morta e o movimento dissipado.29
É claro que estes movimentos podem também ser conside-
rados por uma perspectiva política, que demonstra o embate entre
segmentos diversos para com o poder soberano da época. De fato, a
própria mensagem religiosa se colocava como um discurso de opo-
sição política. A atuação de líderes como Teúdas e o Egípcio foi con-
siderada como uma ameaça para a ordem estabelecida e a reação a
eles foi imediata. Contudo, a maior parte dos grupos durante aquele
tempo era também de entidades de contestação política e religiosa,
mas nem por isso entraram em choque frontal com o poder soberano
a ponto de serem dizimados. Por exemplo, tínhamos a Yahad como
grupo bem estabelecido (até a destruição de seu local físico pelas
forças romanas em 67 d.C.) e o desenvolvimento dos grupos cristãos
(por judeus e gentios). Movimentos como o de Teúdas e o Egípcio não
chegaram a passar por um processo de “sedentarização”; ou seja, não

28  Embora a referência a ele no livro de Atos esteja cronologicamente equivocada.


29  Outro exemplo citado por Josefo e encontrado também nos evangelhos é o de
João Batista, que pode ser encarado pela mesma ótica (AJ 18:116-119, Lc 3:1-21).
224 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
se desenvolveram a ponto de criar uma estrutura física e ideológica
organizada. Logo em seu nascimento, desprovidos da noção que re-
lacionava as experiências de grupo com o meio social, entraram em
choque com o poder soberano.
Da maneira como colocado aqui, é possível enxergar de forma
clara que os elementos que permeavam na fronteira jurídica e social
dos grupos estavam sujeitos à pressão direta do poder soberano. Con-
tudo, não se deve pensar que era apenas onde havia o contato estreito
entre os grupos e a sociedade – como em seus sistemas judiciários e
atuações sociais – que as limitações do poder soberano faziam com
que eles apresentassem o mesmo comportamento. Os elementos in-
ternos que constituíam as experiências religiosas, que podem parecer
terem sido criados sem dependerem de qualquer coisa que não da
própria criatividade, também se originaram com base em limitações
externas. Essa tensão influía, por exemplo, na própria teologia deles.
Podemos citar a explicação criada por alguns deles no trato de mem-
bros que cometiam graves infrações. No momento em que as lideran-
ças dos grupos não possuíam autoridade suficiente para punir algum
de seus membros, por entrar em conflito direto com o poder sobera-
no, era invocada a participação divina para lidar com o infrator. Ele era
“morto”, mas não fisicamente e sim em sentido espiritual. As cortes
celestiais eram convocadas e o destino do infrator era, neste momen-
to, decidido pelo juiz maior, deus.30
O exemplo colocado acima, acerca da legislação interna de
grupos como a Yahad e os cristãos coríntios, é importante para que
se possa entender os limites da experiência religiosa e social dentro
de um cenário mais amplo. Por isso, é importante colocar a seguinte
pergunta: é possível dizer que as imposições do poder soberano eram
válidas para todos os grupos matriz religiosa judaica e greco-romanos?
Falamos acima sobre um florescimento de grupos que teria se iniciado
a partir do séc. II a.C., na região da Judeia. Isso esteve ligado ao próprio
processo de centralização política que ocorreu em um âmbito político
maior, no Mediterrâneo oriental, com os governos helenistas a partir

30  Isso era o que ocorria em grupos como a Yahad e cristãos. Segundo Jacob Neus-
ner, a mesma atitude era tomada pelos grupos sob liderança de sábios rabis do séc. I
d.C. (cf. NEUSNER, Jacob. “By the testimony of two witnesses” in the Damascus Doc-
ument 9:17-22 and in Pharisaic-rabbinic law. RQ, Paris, v. 8 n. 2, pp. 197-217, 1973).
Volume 1 225
do séc. III a.C., e aumentando sua intensidade até o domínio romano.
Por isso, determinados segmentos sociais que até então disputavam os
monopólios do poder foram reduzidos à situação de grupos de oposi-
ção ou foram aniquilados. No território da Judéia, isso aconteceu com
um forte governo autóctone, o dos asmoneus, que aprendeu muito
com os antecessores helenistas do Egito e principalmente da Síria, que
dominaram a região desde o final do séc. III a.C. até a primeira metade
do séc. II a.C.
Diante de governos cada vez mais centralizados e unificados,
o regramento dos grupos nascentes passa a estar relacionado com o
que se passava nos círculos centrais de onde se emanava o poder so-
berano. Assim, é possível afirmar que a regra (e não a exceção) era
que todos os grupos estavam sujeitos às mesmas limitações impostas
por ele. Nos limitando aos grupos de matriz judaica, podemos concluir
que as similaridades entre as experiências religiosas e sociais entre
eles ocorria pelo motivo de eles não poderem ultrapassar os limites
em que havia a presença jurídica do poder soberano. O movimento de
Teúdas não tinha consciência disso. Paulo, por sua vez, lidou com isso
com destreza.

Considerações Finais

O Judaísmo dos séculos II a.C. a I d.C. era multifacetado. A


diversidade de interpretações e interesses políticos fez com que hou-
vesse a organização de grupos que defendiam posições particulares
dentro daquele cenário. Parte das experiências daqueles grupos pos-
sui uma similaridade considerável. Algumas dessas similaridades são
facilmente explicadas, pois possuem uma base religiosa provida pelo
texto bíblico reverenciado por eles. No entanto, uma série de outras
experiências que não possuem raiz nos textos antigos também apre-
sentam semelhança. Vários eruditos procuraram explicar de onde es-
sas similaridades provinham, encontrando a base na difusão do pensa-
mento helenista, nas influências entre um grupo e outro ou em mode-
los providos pelos governos locais. A proposta apresentada aqui é a de

226 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


que o poder destes governos era o que aproximava a atuação daqueles
grupos. Isso os coloca como entidades que não agiam com plena auto-
nomia, independentes das estruturas da sociedade em se localizavam.
Pelo contrário, suas experiências estiveram ligadas às limitações im-
postas pelo poder soberano local.

Lista de abreviações (por ordem alfabética)

1QS – 1QRegra da Comunidade


2Cr – 2 Crônicas
4QDe – 4QDocumento de Damascoe
4QMMT – Carta Haláquica
AJ – Antiguidades Judaicas
At – Atos
CD – Documento de Damasco
Ex – Êxodo
GJ – Guerra Judaica
Lc – Evangelho de Lucas
Lv – Levítico
Mc – Evangelho de Marcos
Mt – Evangelho de Mateus
Rm – Romanos
Vita – Autobiografia

Volume 1 227
AS FRONTEIRAS NAS REPRESENTAÇÕES
DA MAGIA NO IMPÉRIO ROMANO:
APOLÔNIO DE TIANA ENTRE O
FEITICEIRO CHARLATÃO E O SÁBIO
DIVINO PITAGÓRICO
Semíramis Corsi Silva1

Apolônio de Tiana foi um personagem que viveu, prova-


velmente, no século I d.C., cuja realidade e possível trajetória são
permeadas por dúvidas. Nascido em Tiana, na província romana da
Capadócia, causou admiração em algumas pessoas, como no sofista
grego Flávio Filóstrato, que, em meados do século III d.C., lhe ren-
deu uma longa biografia apologética, a Vida de Apolônio de Tiana,
contando seus feitos e, especialmente, destacando características de
suas funções e relações com povos e regiões em suas viagens, que
duram a vida toda do protagonista da obra.2 Além dessa obra de
natureza biográfica escrita por Filóstrato, temos algumas referências
na cultura material e breves menções sobre Apolônio em textos an-
teriores e posteriores a Filóstrato e temos uma série de cartas trans-
mitidas pela tradição manuscrita como documentação em torno de
Apolônio.3 Essas cartas são consideradas na tradição como de au-

1  Docente do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria


- UFSM. Doutora em História pela UNESP/Franca. Pesquisadora e coordenadora do
Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM - GEMAM/UFSM,
pesquisadora do Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano - G.LEIR-
-UNESP/Franca e do ATRIVM-UFRJ - Espaço Interdisciplinar de Estudos sobre a Anti-
guidade. E-mail: semiramiscorsi@yahoo.com.br
2  Abreviaremos o título da Vida de Apolônio de Tiana como VA, conforme regras
de abreviação de nomes de autores e de obras clássicas utilizadas pelo Oxford Clas-
sical Dictionary.
3  Há um grande debate acadêmico sobre o gênero literário da VA. Dessa forma, te-
mos sua classificação como romance, biografia, hagiografia, aretologia ou, ainda, um
gênero híbrido entre essas formas. Por questão de espaço e propósito do texto não
desenvolveremos esse debate, mas consideraremos aqui a obra como possuindo uma
natureza biográfica. Entretanto, percebemos no texto aspectos ficcionais que chegam
Volume 1 229
toria do próprio Apolônio e algumas são destinas a ele. Contudo, a
autoria das cartas é debatida por estudiosos que acreditam que as
mesmas possam não ser de fato de Apolônio.4
Além das representações do tianeu, como o protagonista
deste texto também pode ser chamado, em documentos textuais que
tratam da magia, ele foi utilizado em práticas mágicas, como nas rela-
cionadas ao uso de talismãs – τελέσματα – telesmata – difundidos no
século IV d.C., em que seu nome aparece gravado.5 Também sabe-
mos do envolvimento do nome de Apolônio de Tiana em polêmicas
anticristãs do século IV6 e sabemos que ele chegou a ser admirado
no século XVI, quando um artista renascentista, chamado Johannes
Stradanus, produziu uma série de desenhos sobre a narrativa de suas
viagens feita por Filóstrato.7
Dessa maneira, como vemos, Apolônio de Tiana foi um perso-
nagem muito polêmico e a forma como seu nome aparece relacionado
às práticas mágicas, na documentação que chegou até nós do contex-
to imperial, mostra-nos o interessante aspecto ambíguo que a socie-
dade greco-romana do Império Romano pré-cristão concebia o que era

a acentuar o que pode se caracterizar a ficção própria das biografias do período de sua
elaboração. Além disso, consideramos que ela prenuncia elementos hagiográficos.
4  Mesmo diante dessa problemática, no entanto, algumas dessas cartas serão
usadas neste texto, pois mostram uma visão sobre Apolônio dele próprio ou de ou-
tra(s) pessoa(s) que também é importante para compreender suas representações
na Antiguidade.
5  CORNELLI, G. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na recepção
das figuras de θεῖοι ἅνδρες na literatura helenística: a magia incomoda de Apolônio
de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado apresentada na Universidade Meto-
dista de São Paulo, 2001, p.65.
6  Trata-se do material que nos é transmitido por Eusébio de Cesareia (Resposta
a Hierocles) sobre a leitura de Hierocles, governador da Bitínia, perseguidor de cris-
tãos ao lado de Dioclesiano no início do século IV, que teria valorizado os atributos
miraculosos de Apolônio contra Jesus. Hierocles, pelo que nos mostra Eusébio, uma
vez que a obra de Hierocles não chegou até a atualidade, teria criado em Apolônio
um rival para Jesus Cristo. A obra de Hierocles e o Apolônio por ele defendido, então,
são duramente criticados por Eusébio. Tivemos acesso à obra na seguinte tradução:
EUSEBIUS. Reply to Hierocles. In: PHILOSTRATUS. The Life of Apollonius of Tyana.
Editado e traduzido por Christopher P. Jones. Cambridge/Massachusetts/London:
Harvard University Press, 2006, Vol. III, p. 145-257.
7  Tais desenhos podem ser vistos no artigo: YSSELT, D.V.S. Stradanus Drawings for
the “Life of Apollonius of Tyana”, Master Drawings, n. 4, 1994, Vol. 32, p. 351-359.
230 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
a magia, ora considerada uma prática não perigosa e parte de estudos
filosóficos sistematizados, ora considerada uma prática charlatanesca
que devia ser punida por leis severas.
O objetivo deste texto é analisar as referências que temos a
Apolônio de Tiana na obra de Filóstrato e nos demais testemunhos,
buscando apresentar como havia uma fronteira muito tênue entre o
que era benéfico e o que era tido como um malefício dentro daquilo
que os antigos gregos e romanos do período do Principado pensavam
sobre as práticas mágicas.8

1 A magia no Império Romano: considerações


gerais

Podemos considerar como magia fenômenos de diversas na-


turezas que têm em comum a ideia de, por meio de elaborados rituais,
agir sobre a realidade sensível. Temos diversos testemunhos sobre o
que a sociedade greco-romana do Principado considerava como ma-
gia. No entanto grande parte dos documentos que temos para estudar
a magia nesse contexto “não exprimem strictu senso a realidade do
ofício de adivinhos e feiticeiros no Império, mas a representação acer-
ca dele forjada pela sociedade romana”,9 pois tratam de produção
textual carregada pelos ideais e visões de mundo de seus autores.10

8  Por Principado estamos nos referindo ao governo do princeps (imperador ro-


mano). Os historiadores utilizam o termo Principado para se referirem ao período
correspondente aos primeiros séculos do Império Romano (séculos I, II e meados do
século III d.C.), o período posterior é chamado por nós de Antiguidade Tardia, últimos
séculos do Império Romano e período de grandes transformações nas estruturas so-
ciais, econômicas, mentais e culturais e que conduzirão ao período denominado de
Idade Média na historiografia.
9  SILVA, G. V. Prefácio. Notas para o estudo da magia no Império Romano. In:
SILVA, S.C. Magia e Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio. São Paulo:
Annablume/FAPESP, 2012, p. 19.
10  Compreendemos representação, conforme Roger Chartier, como apreensões
particulares de mundo que fornecem informações sobre os grupos sociais, pois, vi-
sando a estabelecer uma comunicação social, os indivíduos classificam, ordenam
e hierarquizam a sociedade a sua volta. Assim sendo, consideramos que os grupos
Volume 1 231
Além de testemunhos esparsos em diversos documentos,
como alguns que fazem referência a Apolônio de Tiana e serão traba-
lhados por nós no próximo tópico deste texto, há obras que mostram
mais detalhadamente a visão de como tal sociedade considerava como
magia. Desta forma, temos poemas que representam cenas de rituais
como o Épodo V e a Sátira VIII de Horácio, tratados de magia e astro-
logia, tais como os de Manílio e Fírmico Materno, relatos de práticas
mágicas em textos literários em prosa, como o famoso romance Meta-
morfoses, também conhecido como O asno de ouro, de Apuleio e, des-
se mesmo autor, o dramático discurso Apologia, autodefesa perante
uma acusação de práticas mágicas.
Em relação às práticas mágicas propriamente, temos testemu-
nhos por meio de uma série de defixiones, plaquetas de chumbo com
imprecações mágicas escritas em latim encontradas pelos arqueólogos
em antigos túmulos, poços e ruas. “Tais artefatos tinham a função de
amaldiçoar (imprecar) e foram denominados de tabellae defixionum, em
latim, e de katadesmós (κατάδεσμοι), em grego.”11 Temos ainda papiros
com textos mágicos escritos em grego da época imperial romana.12
No entanto, a documentação material “é bastante dispersa
tanto no tempo quanto no espaço, dificultando bastante qualquer ten-
tativa de apreensão sistemática do objeto [...].”13 Portanto, o histo-
riador da magia no período do Principado romano, se depara com a
necessidade de buscar também subsídios para sua melhor compreen-
são na documentação textual, devendo, neste caso, desvelar o texto
dentro de suas proposições através dos métodos e técnicas historio-
gráficos, buscando compreender as representações da magia, sendo

criam os mecanismos necessários para tentar impor a sua concepção de mundo e


seus valores. CHARTIER, R. A História Cultural. Entre práticas e representações. Tra-
dução de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 17.
11  CAMPOS, C. E. C. A estrutura de atitudes e referências do Imperialismo Romano
em Sagunto. Séculos II a.C. – I d.C. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2014, p. 116.
12  Para o estudo desse material ver GAGER, J. G. Curse Tablets and Binding Spells
from the Ancient World. New York/Oxford: Oxford University Press, 1992. Sobre os
papiros mágicos ver TEXTOS DE MAGIA EM PAPIROS GRIEGOS. Tradução, introdução
e notas de J. L. Calvo Martínez e Mª. D. Sánchez Romero. Madrid: Gredos, 1987.
13  SILVA, G. V. Prefácio. Notas para o estudo da magia no Império Romano. In:
SILVA, S.C. Magia e Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio. São Paulo:
Annablume/FAPESP, 2012, p. 19.
232 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
igualmente importante refletir sobre a prática analisada por meio das
tabellae defixionum e dos papiros.
Uma primeira realidade que os textos nos trazem, em nossa
percepção, é a ambiguidade do que era a prática mágica na mentali-
dade dos escritores romanos, membros dos grupos das elites do Im-
pério. De maneira geral, havia uma distinção entre práticas de cunho
mágico, consideradas populares, maléficas e charlatãs, a γοητεία –
goeteia – de outra magia incorporada em rituais de deuses da religião
oficial romana e parte de estudos filosóficos, a teurgia. “As práticas
comumente reconhecidas como γοητεία são: viagens para o inferno,
práticas mediúnicas, necromancia, simpatias, maldições, e todo tipo
de persuasão oculta.”14
Já a teurgia, de acordo com Joseph Bidez, era um tipo de prá-
tica de magia baseada na relação entre espíritos celestes. O objetivo
principal da teurgia era, assim, atingir as forças divinas, sendo nor-
malmente oposta a goeteia, que invocaria forças maléficas, na crença
dos antigos romanos.15 A teurgia, portanto, era uma assimilação de
rituais religiosos e especulações filosóficas com uma base mágica. A
fim de atingir o conhecimento, dessa maneira, os filósofos teurgos
praticavam ritos mágicos. Conforme Jacyntho Lins Brandão, a magia
ligada à filosofia, por um lado, era considerada um conhecimento
místico, por outro lado, era uma espécie de conhecimento científico,
o que fazia com que fosse aceita por largas faixas das camadas mais
eruditas do Império Romano.16
O termo μαγεία – mageia, do qual deriva o vocábulo magia
do português moderno, por sua vez, era usado para definir as práticas
religiosas dos persas, que, no entanto, não eram consideradas de ma-
neira negativa na literatura. Etimologicamente a palavra “magia”, ma-
geia no grego e magia no latim, parece ter originado da raiz sânscrita
mah, grande, significando a atividade do mago.

14  CORNELLI, G. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na recepção


das figuras de θεῖοι ἅνδρες na literatura helenística: a magia incômoda de Apolônio
de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado apresentada na Universidade Meto-
dista de São Paulo, 2001, p. 27.
15  BIDEZ apud DODDS, E. R. Teurgia In: ______. Os gregos e o irracional. São Paulo:
Escuta, 2002, p. 284.
16  BRANDÃO, J. L. A adivinhação no mundo helenizado do II século, Clássica, São
Paulo, 4, 1991, p. 103-121.
Volume 1 233
Podemos considerar que na sociedade greco-romana imperial
havia diferentes termos que, entretanto, designavam uma única classe
de fenômenos e os filósofos buscavam preponderar a característica
religiosa de suas práticas, mas entre a teurgia e a goeteia, havia uma
fronteira pouco demarcada.17
Tal preponderância demarcada pelos filósofos e a diferencia-
ção que estes faziam das práticas mágicas, de acordo com a intenção
do praticante, estão claras nas palavras do escritor Apuleio, do século
II d.C., que sofreu a já referida acusação de praticante de magia:

Esta segunda classe de magia a que meus adversários se


referem, segundo entendi, é uma prática penalizada pelas
leis e está proibida desde os tempos mais antigos pelas Leis
das XII Tábuas, devido as misteriosos e nefastas influencias
que pode exercer sobre as colheitas. É, portanto, uma prá-
tica tenebrosa e horrível, que se realiza durante a noite,
se oculta nas trevas, evita testemunhos, busca a solidão e
murmura seus encantamentos em voz baixa [...] (APULEIO,
Apologia, XLVII, 3).18

Apuleio, da mesma forma, distingue dois tipos de práticas má-


gicas no romance Metamorfoses: uma magia totalmente afastada de
concepções tidas como religiosas, representadas por meio de opera-
ções privadas (que quando o protagonista Lúcio realiza, o transforma
em um asno), e outra que explora elementos religiosos como a súplica
e as orações, ligada a filosofias e ritos religiosos, portanto, não punida
por leis (como as iniciações nos cultos de mistérios, que volta Lúcio a
forma humana). O primeiro tipo de magia pode ser considerado, nesse
texto, um sacrilégio, mostrado metaforicamente na transformação de
Lúcio no asno. O segundo tipo de magia, por sua vez, opera na crença
na ação dos deuses, embora também seja atingida por meio de ritos
específicos que podem ser considerados de cunho mágico.19

17  HUBERT, H. Magia. In: DAREMBERG, C. H.; SAGLIO, E. Dictionnaire des antiqui-
tés grecques et romaines. Tomo II, 1ère partie. Paris: Hachete, s/d., p. 1495.
18  As traduções de textos em língua estrangeira, como essa, são nossas. Utiliza-
mos a seguinte versão da obra de Apuleio: APULEYO. Apologia. Tradução, introdução
e notas de Santiago Segura Munguía. Madrid: Editorial Gredos, 1980.
19  APULEYO. El asno de ouro. Introdução de Carlos Gual García. Madrid: Alianza
Editorial, 1988.
234 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Um exemplo de práticas teurgicas na Antiguidade é a ligação de
muitos filósofos com os daimones. O daimon, ou gênio, eram o que os
antigos gregos e romanos acreditavam como seres superiores capazes de
intermediar a relação entre os homens e as divindades. Os filósofos da
época imperial tinham um conceito de daimones, que eram utilizados em
suas práticas de cunho mágico, claramente influenciado sobre as noções
que Platão formulou sobre este elemento em sua obra O Banquete.20
No século IV d.C., o historiador Amiano Marcelino ligou a
fama de Apolônio de Tiana com o contato com os daimones, chamado
pelo historiador de gênios.

Igualmente nos é mostrado pelos imortais poemas de Home-


ro que não são os deuses celestiais que se misturam ou aju-
dam os combatentes, mas sim espíritos familiares (gênios)
que convivem com eles. Este foi o apoio, o que causou a emi-
nência de Pitágoras, Sócrates, Numa Pompilio, o velho Cipião
e (como alguns pensam), Mário, Otávio (que foi chamado de
“Augusto”, o grande), Hermes Trismegisto, Apolônio de Tiana
e Plotino (AMIANO MARCELINO, Histórias, 21, 14, 5).21

Já um exemplo da prática mágica considerada charlatanesca,


popular e, na literatura, feminina, pode ser visto neste trecho de um
poema também da época do Principado romano:

Vós, que não conheceis tártea22 velha,


Vil corretora de venais carícias,

20  ZABALA, Jesús de Miguel. Demonologia en Apuleyo. In: ALVAR, J.; BLÁNQUEZ, C.;
WAGNER, C. G. (eds.). Heroes, semidioses y daimones. Madrid: Ediciones Clásicas, p. 266.
21  As citações sobre Apolônio de Tiana deste texto, com exceção das contidas nas
obras de Luciano, Filóstrato e Dião Cássio, estão em: TESTIMONIA. In: PHILOSTRA-
TUS. The Life of Apollonius of Tyana. Edited and Translated by Christopher P. Jones.
Cambridge/Massachusetts/London: Harvard University Press, 2006, Vol. III, p. 81-
143. A saber, Christopher Jones, em Testimonia, cataloga e traduz para o inglês, no
volume III da VA publicado pela Harvard University Press (Loeb Classical Library), uma
série de menções a Apolônio de Tiana em grego e latim na documentação escrita e
na cultura material. As traduções do inglês para o português são nossas.
22  Relativo ao Tártaro. Para os romanos, o Tártaro é o lugar para onde são en-
viados os deuses que cometeram problemas. Temos descrição sobre o Tártaro em
Virgílio, Eneida (Livro VI), mostrado como um lugar gigantesco, rodeado por um rio
de fogo e cercado por uma muralha que impede a fuga dos que ali vivem.
Volume 1 235
Lede nos versos meus o retrato.
– Sorvedouro de vinho – a chama do vulgo
Nunca livre dos báquicos vapores
Viu de Memnos a mãe o róseo carro;
Entende a fundo os mágicos segredos;
Os versos canta a feroz Medéia.
E os rios para trás remete às fontes;
Sabe a virtude à grama, ao rombo em giro,
Ao vírus seminal de égua ciosa;
Quando lhe apraz, no céu se apinham nuvens;
No céu quando lhe apraz, renasce o dia.
Eu vi a sua voz, se fé mereço,
Os astros destilar sanguíneas gotas,
E em cruento rubor tingir-se a lua
Suspeito que nas trevas esvoaça,
Perdida a antiga forma, e revestido
O corpo anoso de encantadas plumas
Suspeito... e é fama. Dúplices pupilas
Vibram dos olhos seus fulmíneo lume.
Avós e bisavós extrai das campas,
E rasga o duro chão com longos carmens. (OVÍDIO, Canção
VIII, Terceira de Amores, Os amores, 1 ao 23).23

As leis romanas também pautavam sobre a magia enquanto


crime. Na época do Principado a Lex Cornelia de Sicariis et Veneficis,
instituída em 81 a.C. por Sila, condenava os crimes a mão armada con-
tra a vida dos cidadãos, emparelhando a magia ao envenenamento.
Assim, esta lei punia os fabricadores de venenos e o atentado à vida
humana decorrente desta fabricação, mostrando a crença no conheci-
mento do/a feiticeiro/a e sua possibilidade de produção de substâncias
mortais.24 No entanto, a prática mágica ser condenável ou não depen-
dia muito da própria habilidade do acusador ou da defesa do acusa-
do, como mostra-nos a defesa de Apuleio em sua Apologia, quando o
escritor acusado não nega que seus ritos de cunho filosófico-religioso
possuíam algo mágico, os convertendo em teurgia, buscando, assim,

23  OVÍDIO. Os Amores. In: _______. Obras. 2ª ed. Tradução de Antônio Feliciano
de Castilho. São Paulo: Edições Cultura, 1945.
24  Esta lei encontra-se compilada no Digesto de Justiniano. A versão por nós usada
foi a seguinte: EL DIGESTO DE JUSTINIANO. Tomo II. Versão castelhana de A. D’Ors,
Tejero e outros. Madrid: Aranadi, Pamplona, 1975.
236 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
se safar das leis que puniam à magia enquanto prática maléfica.25
Voltando à discussão sobre os termos utilizados nesse contex-
to para referir-se à magia, sabemos que o termo mago tem a etimo-
logia mais discutida, podendo também ter originado do hebraico ao
referir-se ao mago Jeremias ou ainda do assírio mahhu, significando a
pessoas que realiza prodígios e feitos fantásticos.26 Heródoto, no livro
I de sua obra História, cita a expressão mago para referir-se ao nome
de uma tribo dos medos, especialista em oniromancia (interpretação
dos sonhos), astrologia e magia propriamente, arte esta que lhes ren-
dia o nome.27 Flitz Graf percebe que na sociedade greco-romana os
termos magus e magia apareceram muito tarde, sendo que em Roma
este vocabulário derivou do grego. Cícero usará a palavra pela primeira
vez se referindo aos sábios persas. Na poesia, a palavra apareceu pela
primeira vez com Catulo, se referindo à prática de haruspicina (adivi-
nhação pelas entranhas de animais).28
Tomando como base a observação do historiador Gilvan Ven-
tura da Silva sobre a variedade de termos usados para identificar os
praticantes de magia no contexto estudado (magus, goes, vates, va-
ticinium, mathematicus, maleficus, hariolous, philosophus e caldeu –
e acrescentamos o termo teurgo),29 vemos que estas práticas eram
consideradas um conhecimento também variado. E, como vimos, a
concepção sobre esse conhecimento – maléfico ou não – tinha suas
fronteiras também extremamente tênues e variáveis.
Diante de tais informações, vejamos agora tais fronteiras nas
representações de um personagem concreto, Apolônio de Tiana, nos
testemunhos documentais que chegaram até nossa atualidade.

25  A análise da acusação e defesa de Apuleio é feita por nós em: SILVA, S. C. Magia e
Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2012.
26  RIBEIRO, J. J. O que é magia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, p. 16.
27  Idem.
28  GRAF, F. La magie dans l’ Antiquité greco-romaine. Ideologie et Pratique. Paris:
Les Belles Lettres, 1994, p. 46.
29  SILVA, G. V. Prefácio. Notas para o estudo da magia no Império Romano. In:
SILVA, S.C. Magia e Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio. São Paulo:
Annablume/FAPESP, 2012, p. 20.
Volume 1 237
2 Apolônio de Tiana entre o mago charlatão e o
sábio divino pitagórico

Como já mencionados, Apolônio de Tiana pode ser considera-


do como um personagem paradigmático para a percepção da ambigui-
dade nas concepções sobre a magia no período do Principado romano.
Em relação à cultura material, referências a Apolônio aparecem em
uma inscrição honorífica de Mopsouhestia (atual Adana, na Turquia) e
em um papiro mágico grego.

Este homem, nomeado assim por relação com Apolo, e bri-


lhando de Tiana, extinguiu os erros da humanidade. O... de
Tiana... (ele), mas no céu verdadeiro... ele afasta as tristezas
dos mortais (inscrição em Mopsouhestia).

Uma velha mulher, a serva de Apolônio de Tiana. Tome o crâ-


nio de Tiphon e escreva os seguintes caracteres com o san-
gue de um cachorro negro (o feitiço segue). Este feitiço foi
testado (Pápiro mágico).

Há também menções, como já comentamos na introdução


deste texto, de talismãs atribuídos a Apolônio em Pseudo-Justino, au-
tor do século IV, e em outros autores da Antiguidade Tardia e da Idade
Média. Os Pais da Igreja do período tardo-antigo criticaram duramente
esses talismãs, mas pela eficácia que muitas pessoas acreditavam que
eles possuíam, já que pensavam que Apolônio teria os criado por seus
conhecimentos das forças da natureza e não por seu poder sobrena-
tural, os mesmos foram tolerados pela Igreja medieval, sendo quase
reconhecidos oficialmente.30
Ainda temos descrições, por cronistas bizantinos, de monu-
mentos dedicados a Apolônio com poderes apotropaicos, erguidos
em Bizâncio.31

30  CORNELLI, G. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na recepção


das figuras de θεῖοι ἅνδρες na literatura helenística: a magia incômoda de Apolônio
de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado apresentada na Universidade Meto-
dista de São Paulo, 2001, p. 65.
31  Idem.
238 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Na tradição de textos da Antiguidade que chegaram até nos-
sos dias, vemos Apolônio sendo mencionado de maneira ne-
gativa nos escritos de Luciano de Samósata, que diz: “Este
mestre e amante era tianeu do círculo de Apolônio e dos que
sabiam de toda a sua tragédia, já vês de que tipo é o homem
de quem te falo” (LUCIANO, Alexandre ou o falso profeta,
5).32 De acordo com o historiador Fernando Gascó, pode-
mos também considerar a passagem XXIX da obra Philopseu-
des, de Luciano, como menção irônica e crítica a Apolônio,
citando a obra:33 “Neste momento entrou na casa o pitagó-
rico Arígnoto, o de cabelo comprido e aspecto solene. Já se
sabe a quem me refiro, àquele que goza de tanta fama por
sua sabedoria e que leva o nome de santo.” Concordamos
que tal passagem da obra de Luciano pode referir-se a Apo-
lônio, pois confere com descrições da Vida de Apolônio de
Tiana e das cartas tidas como de sua autoria sobre o cabelo.
No entanto, a sabedoria e o caráter divino dele estão, em
Luciano, citadas de forma extremamente pejorativa.34

Aparecem menções a Apolônio também nos textos do histo-


riador Dião Cássio, quando o autor se refere de maneira duvidosa à vi-
são da morte do imperador Domiciano por Apolônio, também relatada
na VA (VIII, 26).

Certo Apolônio de Tiana, naquele mesmo dia e naquela mes-


ma hora, quando Domiciano estava sendo assassinado (como
que determinando precisamente os eventos que aconteciam
em ambos os locais) subiu no alto de uma rocha em Éfeso (ou
possivelmente em outro lugar) e, tendo reunido a população,
proferiu estas palavras: “Bom, Stéfano! Bravo, Stéfano! Fere
o desgraçado sanguinário! Atingiste, feriste, mataste.” Isso é
o que realmente aconteceu, embora eu duvide dez mil vezes
(História Romana, LXVII, 18).35

32  LUCIANO. Alejandro o el falso profeta. In: ______. Obras. Tradução de José Luís
Navarro Gonzales. Madrid: Gredos, 1988, Vol. II, p. 396.
33  GASCÓ, F. Magia, religión o filosofia, una comparación entre el Philopseudes de
Luciano y la Vida de Apolônio de Tiana, Habis, 17, 1986, p. 271-281.
34  Sobre o cabelo comprido de Apolônio: VA, I, 8, 32; VIII, 7.2, 7.5. Sobre sua sa-
bedoria: VA, I, 2, 29, 38, 40; II, 41; III, 6, 12, 16, 17, 23, 38; IV, 10, 40; VII, 11, 14; VIII,
7.1, 7.11. Sobre seu caráter divino: VA, I, 2, 21; II, 17, 29, 41; III, 16, 25, 28; IV, 10, 20,
45; V, 12; VI, 39, 43; VII, 38, 41; VIII, 13, 15, 23, 26.
35  Utilizamos a seguinte versão da obra de Dião Cássio: CASSIUS DIO. Dio’s Roman
History. Traduzido por Earnest Cony. London/Harvard William Heinemann, Harvard
Volume 1 239
Dião Cássio também deprecia as práticas religiosas do impe-
rador Caracala (211-217) ligadas a Apolônio de Tiana.

Sua afeição a magos (μάγοις - magois) e feiticeiros


(γόησιν - goesin) era tão grande que ele elogiou e
honrou a Apolônio da Capadócia, que viveu na época de Do-
miciano e foi julgado como mago e feiticeiro. A este ele er-
gueu um templo (História Romana, LXXVIII, 18, 4).

A historiadora Maria Dzielska observa que Apolônio também


é citado como γόης – goes em uma homilia de João Crisós-
tomo.36 Apolônio é mencionado como magus pelo autor
anônimo conhecido pela tradição como Peregrino de Bour-
deaux.37 E suas práticas são ligadas a goeteia por Cirilo de
Alexandria em breve menção no discurso Contra Juliano.38

Entretanto, o contemporâneo de Dião Cássio e do imperador


Caracala (imperador considerado admirador de Apolônio por Dião Cás-
sio), Filóstrato, desenvolve um longo relato sobre Apolônio de Tiana,
apresentando o personagem de uma maneira totalmente diferente
da imagem de feiticeiro charlatão acima mostrada. Assim, em Filós-
trato, Apolônio de Tiana é considerado um homem sábio, cuja sabe-
doria transcende ao humano, sendo ele um homem divino. Embora
no início da VA Filóstrato mostre que Apolônio teve relações com os
magos (μάγοις – magois) da Babilônia, o biógrafo ressalta o caráter
de sabedoria do biografado e seu estatuto enquanto homem divino
(θεῖος ἀνήρ – theios aner), negando-lhe o título de mago – Filóstrato o
chama de sábio – e também a ligação de filósofos como Empédocles,
Pitágoras, Demócrito e Platão com este tipo de arte.

University Press, s/d.


36  DZIELSKA, M. Apollonius of Tyana in legend and history. Problemi e ricerche di
Storia Ântica. Roma: L’Erma di Bretschneider, 1986, p. 75.
37  Informação contida no Corpus Christianorum Series Latina, 175, 10; CSEL, 39,
16 – Peregrino de Boudeaux (333).
38  Além do material trabalhado neste texto, temos ainda citações sobre Apolônio no
léxico bizântino Suda, na História Augusta e nos escritos de Porfírio, Jâmblico, Arnóbio,
Lactâncio, Libânio, Temístio, Jerônimo, Agostinho, Flávio Marcelino, Pseudo-Ambrósio,
Eunápio, Sinésio, Nilo, Cirilo, Isidoro, Pseudo-Nono, Basílio, Macário e Sidônio
240 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
A Apolônio, no entanto, ainda que se ocupasse de práticas
semelhantes a estas e se aproximasse da sabedoria de ma-
neira mais divina que Pitágoras por sua negação às tiranias, e
apesar de ter nascido em tempos nem tão antigos, nem tão
recentes, os homens ainda não o conhecem por sua sabedo-
ria, que praticava de maneira filosófica e verdadeira. Mas,
ao invés disso, alguns falam dele por uma coisa, outros por
outra, outros ainda por ter relações com os magos da Babi-
lônia, os brâmanes da Índia e os gimnosofistas do Egito, o
consideram um mago ou o caluniam como um intruso entre
os sábios, por lhe conhecerem mal. Porque Empédocles, o
próprio Pitágoras e Demócrito, que conviveram com os ma-
gos e disseram muitas verdades sobrenaturais, nunca se sen-
tiram atraídos por esta arte. E Platão, que foi ao Egito e que
misturou muitas coisas de profetas e sacerdotes deste lugar
com suas próprias teorias e que, como um pintor, deu cores
ao que já tinha esquematizado, jamais foi tomado por um
mago, mesmo quando lhe invejaram mais que nenhum outro
por sua sabedoria.

Assim, tampouco o feito de ter pressentido e previsto muitas


coisas poderia incluir Apolônio neste tipo de sabedoria [...]
(VA, I, 2, ).39

Vemos que o caráter divino de Apolônio aparece nas cartas


consideradas como de autoria do tianeu pela tradição (Cartas 44.1 e
48.3)40, mas com certa modéstia por parte de Apolônio em se apre-
sentar assim.

Para Hestiaeo, seu irmão: Por que é surpreendente que a


maioria da humanidade pensa que estou mais perto de um

39  Em relação à VA utilizamos as seguintes traduções: FILÓSTRATO. Vida de Apo-


lônio de Tiana. Tradução, introdução e notas de Alberto Bernabé Pajares. Madrid:
Editorial Gredos, 1979. PHILOSTRATUS. The Life of Apollonius of Tyana. Editado e
traduzido por Cristopher P. Jones. Cambridge/Massachusetts/London: Harvard Uni-
versity Press, 2005, Vol. I. PHILOSTRATUS. The Life of Apollonius of Tyana. Editado e
traduzido por Cristopher P. Jones. Cambridge/Massachusetts/London: Harvard Uni-
versity Press, 2005, Vol. II.
40  As cartas de Apolônio foram lidas por nós na seguinte tradução: APOLLONIUS
OF TYANA. Letters of Apollonius. In: PHILOSTRATUS. The Life of Apollonius of Tyana.
Editado e traduzido por Christopher P. Jones. Cambridge/Massachusetts/London:
Harvard University Press, 2006, Vol. III, p. 10-79.
Volume 1 241
deus, e alguns pensam que sou um verdadeiro deus e até
agora somente minha cidade ancestral falhava em me re-
conhecer, quando é para ela que eu particularmente tenho
esforçado para me distinguir? Não, porque nem a vós, meus
irmãos, então eu vejo, é que é claro que eu me tornei su-
perior à maioria das pessoas em princípios e caráter. Caso
contrário, como poderíeis me condenar de forma tão seve-
ra a ponto de supor que eu precisava lembrar de todos os
assuntos, sobre os quais nem mesmo o maior tolo poderia
suportar sendo instruído? Isto é, sobre a própria cidade e ir-
mãos (Carta 44.1).

Para Diotimo: Pessoas boas, no entanto, aceitam a versão


verdadeira, tendo uma afinidade com ela, mas as más acei-
tam o contrário, e podemos rir de seu desprezo, quero dizer
de sua inferioridade. Eu deveria mencionar somente isso so-
bre mim por hora, que os deuses têm muitas vezes falado de
mim como um homem divino não apenas aos indivíduos, em
particular e em muitas ocasiões, mas publicamente também.
Seria uma pena dizer algo mais profundo ou elevado sobre si
mesmo. Eu oro por tua boa saúde (Carta 48.3).

O caráter divino de Apolônio também aparece na VA, quando


Filóstrato ressalta seu biografado com tal característica por ser um sá-
bio superior aos demais, sendo este elemento expresso pelo próprio
autor/narrador ou pelas falas de personagens da obra.41

Por conseguinte, parece-me que não devo ver com indiferen-


ça a ignorância das pessoas, mas dar uma visão exata desse
homem nos momentos nos quais falou ou fez cada coisa e as

41  Citamos aqui apenas passagens nas quais Apolônio é mencionado como ho-
mem divino, mas há diversas passagens da VA que tais características ficam eviden-
tes. Para saber mais sobre a análise de Apolônio como um homem divino sugerimos
a leitura de: CORNELLI, G. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na
recepção das figuras de θεῖοι ἅνδρες na literatura helenística: a magia incômoda
de Apolônio de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado apresentada na Uni-
versidade Metodista de São Paulo, 2001. HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Emperadores
romanos y hombres divinos. In: ______. El intelectual, la realeza y el poder político
en el Imperio Romano. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 1995, p. 187-
220 e HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Hombres divinos: de la dependencia religiosa a la
autoridad política, Arys, 2001, n. 4, p. 211-230.
242 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
particularidades de sua sabedoria pelas quais foi considera-
do sobrenatural e divino (VA, I, 2).42

– Ele é, respondeu, divino Apolônio (VA, I, 21).43

Também escreveu a seu rei, para que não fosse inferior a Var-
danes a respeito de um homem grego e divino (VA, II, 17).44

[...] ainda que seja o mais divino entre os homens (VA, II,
29).45

Além disso, mandarei uma carta a Iarcas, o mais velho dos


sábios, para que não acolha Apolônio como a alguém inferior
a ele mesmo e a vós, como a filósofos e acompanhantes de
um homem divino (VA, II, 41).46

– Eu penso, respondeu, que és o mais sábio e muito mais


divino. (VA, III, 16).47

[...] e há aqueles que jogaram pedras em cima dele e o inju-


riaram terrivelmente, a um homem divino e bom (VA, III, 25).

– Proponho-te um brinde, rei, por um homem grego, indican-


do Apolônio, que estava reclinado abaixo dele e denotando
com um gesto de sua mão que era nobre e divino (VA, III,
28).48

Que conhecia de antemão essas coisas por impulso divino e


que não eram corretos os que consideravam nosso homem
um feiticeiro [...] (VA, V, 12).

Então dei-me conta pela primeira vez de que era divino e su-
perior à sabedoria comum e corrente [...] (VA, VIII, 13).49

42  Narrador.
43  Fala do sátrapa do reino parto.
44  Refere-se ao sátrapa indiano.
45  Fala de Fraotes, rei indiano.
46  Fala de Fraotes, rei indiano.
47  Fala de Iarcas, sábio indiano.
48  Fala de Iarcas, sábio indiano.
49  Fala de Damis, discípulo de Apolônio e seu fiel seguidor que Filóstrato conta
(VA, I, 3) ter escrito um diário sobre as viagens de Apolônio, sua principal fonte para
Volume 1 243
– Ouvi falar de ti, Apolônio, que és sábio em assuntos divinos
(VA, VIII, 23).50

Além destas passagens que mencionam o caráter divino de


Apolônio, em outras passagens da VA seus poderes enquanto tal são
descritos, como quando ele consegue ressuscitar uma jovem (VA, IV,
45), sua capacidade de cura (VA, VI, 43), sua capacidade de livrar Éfeso
de uma praga (VA, IV, 10), seu poder de exorcismo (VA, IV, 20), sua ca-
pacidade de descobrir um tesouro escondido (VA, VI, 39), quando ele
livra sua perna das correntes que o prendiam (VA, VII, 38), desaparece
em Roma e aparece em Dicearquia (VA, VII, 41) e tem uma visão do
momento exato da morte de Domiciano (VA, VIII, 26).
Já nas cartas, Apolônio aceita bem a ligação com a magia (Car-
ta 16 e Carta 17), apresentando-se como um mago (μάγος) e filósofo
pitagórico (φιλόσοφος πυθαγορικός – philosofos pithagorikos).

Para Eufrates: Julgas que devem ser chamado de filósofos


os que seguem Pitágoras, e da mesma forma, sem dúvida,
aqueles que seguem a Orfeu. Mas eu penso que mesmo
aqueles que seguem a Zeus devem ser chamados magos, se
pretendem ser piedosos e honrados (Carta 16).

Para Eufrates: Os persas chamam os homens piedosos de


magos, de modo que aquele que adora os deuses ou tem
uma natureza divina é um mago. Mas tu não és um mago, e
sim um incrédulo (Carta 17).

No entanto, a magia na qual ele se apresenta ligado é a re-


ligiosidade dos persas, mostrando-nos que o termo mago era aceito
neste sentido, já que para as práticas consideradas charlatãs havia ou-
tras expressões, como vimos.
Desta forma, o que vemos é Apolônio, ou quem escreveu as
cartas, assumindo a ligação do tianeu com a magia enquanto prática
religiosa dos persas. Na VA é Filóstrato busca defender seu persona-

escrita da VA.
50  Fala do governador da Grécia. O texto em grego trata este personagem como
governador da Grécia, porém não existia uma Província da Grécia no Império Roma-
no, acreditamos que talvez seja o governador da Província de Acaia.
244 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
gem do sentido negativo que a magia poderia ter em sua época de
maneira clara nessa passagem.

Tomemos, no entanto, em consideração, outros argumentos:


os feiticeiros (γόης – goes) – e eu os considero os mais in-
fortunados dos homens – recorrem uns ao interrogatório de
espíritos, outros a sacrifícios bárbaros, outros a pronunciar
algum verso ou a untar-se com algo, afirmando que podem
alterar o curso do destino. Muitos deles, submetidos a acusa-
ções, reconhecem ser expertos em tais procedimentos. Mas
nosso homem se submetia aos ditados das Moiras e pressen-
tia, como necessário, determinados acontecimentos, ele os
conhecia de antemão, não por praticar a goeteia, e sim por
revelação divina (VA, V, 12).

Assim, o biógrafo não nega às práticas de cunho mágico do bio-


grafado, mas as imprime um caráter divino e defende o saber no qual
Apolônio estava envolto. Mas, mesmo assim, ao relacionar Apolônio com
os sábios magos persas, Filóstrato mostra certa ressalva, como vimos.
Na passagem abaixo, por exemplo, pela capacidade de Apo-
lônio em se libertar das correntes que o prendiam durante a prisão
ordenada por Domiciano, ele é visto como alguém com capacidades
sobre-humanas, mas nunca como um feiticeiro no sentido negativo
que isso poderia ter naquele contexto.51 Filóstrato se utiliza do relato
sobre a libertação de Apolônio das correntes para desenvolver uma
dura crítica à goetia em oposição às capacidades miraculosas divinas
de seu protagonista:

E tendo falado isso, tirou a perna das correntes e disse a Da-


mis:

– Dei-te uma prova de minha liberdade, assim tem valor.

Foi então que Damis se deu conta, pela primeira vez, da na-
tureza de Apolônio, que era divina e sobre-humana, pois sem
ter celebrado nenhum sacrifício – como fazê-lo se estava na
prisão? – nem ter realizado orações, sem nada dizer, havia se

51  Ao utilizarmos o termo feiticeiro estamos nos referindo ao γόης – goes, os pra-
ticantes da magia considerada nefasta na época do Principado.
Volume 1 245
libertado das correntes e, após voltar a colocar suas pernas
nelas, voltava a se comportar como um prisioneiro.

As pessoas mais simples atribuem tais feitos a feiticeiros, e


o mesmo lhes acontece em várias ações humanas. À arte
destes recorrem alguns atletas e também os competidores
desejosos de vencer, mas estes em nada contribuem para
a vitória, mas a vitória que obtêm por acaso, esses desgra-
çados, desmerecendo a si mesmos, atribuem a esta arte e
não desconfiam dela, nem sequer quando vencidos [...]. Fre-
quentam também as portas daqueles os comerciantes, e po-
demos encontrá-los atribuindo o êxito de seus negócios aos
feiticeiros e as falhas a sua própria mesquinharia e a não te-
rem realizado os sacrifícios como deviam. E fazem uso dessa
arte especialmente os apaixonados [...].

As formas como produzem sinais no céu e realizam outros


prodígios maiores, também foram incluídas em livros por al-
guns que deram gargalhadas dessa arte. Assim que a mim
me basta denunciá-los, para que os jovens que se relacionam
com eles não se habituem a tais práticas. Já perdi muito tem-
po nesta digressão em meu discurso. Por que eu iria me ocu-
par mais com um assunto condenado pela natureza e pela
lei? 52 (VA, VII, 38-39).

Filóstrato ainda comenta (VA, VIII, 31) que visitou um templo


dedicado a Apolônio na cidade de Tiana pelo imperador, não mencio-
nando quem é esse imperador, mas que, segundo Dião Cássio, em pas-
sagem já citada (História Romana, LXXVIII, 18, 4), foi Caracala. Ou seja,
Apolônio chegou a ser admirado a ponto de ter um tempo para sua
reverência, apesar da imagem negativa ligada à nefasta goeteia que
vemos em muitos textos.
O momento que temos a maior defesa das práticas mágicas
de Apolônio como teurgia em oposição à goeteia é na descrição da

52  Outras passagens da obra poderiam configurar Apolônio e seus poderes como
um feiticeiro, mas com essa longa crítica aos aspectos negativos da magia, além da
defesa, em todo o texto, de Apolônio como divino, percebemos que Filóstrato livra
seu biografado de ser considerado um γόης – goes. Uma passagem interessante,
nesse sentido, é quando Apolônio desaparece do tribunal ante Domiciano, após ser
absolvido da acusação de práticas mágicas (VA, VIII, 5).
246 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
autodefesa de Apolônio por Filóstrato perante a acusação como pra-
ticante de magia feita pelo imperador Domiciano. Assim Apolônio, ou
melhor, seu biógrafo, diz:

Quanto a essa arte, todos seus praticantes são gananciosos,


pois as engenhosas demonstrações que fazem, as fazem para
obter benefícios e gastam muito dinheiro enganando os que
desejam alguma coisa, lhes convencendo de que são capa-
zes de tudo. Desta forma, vê alguma riqueza em mim, impe-
rador, para acreditar que me dedico a essa falsa sabedoria?
Além disso, vosso pai me considerava acima do desejo de ri-
queza (VA, VIII, 7, 3).

Como Apuleio na Apologia, Apolônio advoga em causa pró-


pria frente ao tribunal. A defesa de Apolônio, mostrada por Filóstrato,
por sua vez, segue como uma defesa da filosofia. No primeiro trecho
citado a seguir, como podemos ler, Apolônio mostra a Domiciano que
ao acusá-lo, o imperador se opõe à filosofia:

Na causa entre mim e o imperador, quem será o juiz? Prosse-


guiu Apolônio. Pois vou demonstrar que ele cometeu injusti-
ça contra a filosofia (VA, VIII, 2).

O litígio entre nós, imperador, se refere a questões graves.


Pois vós vos envolveis em questões que nunca nenhum im-
perador se havia envolvido e dais assim a impressão de que
tendes má vontade contra a própria filosofia, sem nenhum
motivo justo (VA, VIII, 7, 1).

Que grau de verdade alcança essa acusação fica evidente no


testemunho destes senhores, pois eu não estava nos subúr-
bios, mas na cidade; não estava fora das muralhas, mas em
uma casa; não estava com Nerva, mas com Filisco; não estava
degolando, mas suplicando por uma vida; não estava em fa-
vor do império, mas da filosofia [...] (VA, VIII, 7, 15).

Filóstrato também mostra Apolônio comparando sua defesa


com a do filósofo Sócrates, que foi acusado de corromper a juventude
ateniense (VA, VIII, 2, 7).

Volume 1 247
Em sua Apologia, Apuleio recorreu à filosofia para se defender
da acusação de praticar magia e trouxe à tona, em diferentes pontos
da defesa, suas especulações como filósofo místico e naturalista (reba-
tendo acusações relacionadas à magia e à sua imagem como filósofo) e
como filósofo desprendido de preocupações com bens matérias (reba-
tendo acusações relacionadas ao casamento por interesses financeiros
com a viúva Pudentila, motivo principal da acusação já que é a família
de Pudentila que o acusa de ter recorrido à magia para conquistá-la).
Apuleio procurou, assim, demonstrar a importância da sua imagem
como filósofo e convencer o juiz de sua inculpabilidade. A causa que
Apuleio chama em defesa é a da filosofia:

Confiado, sobretudo, neste principio, fico feliz por ter tido a


sorte de ter a ampla possibilidade de defender a pureza da
filosofia frente a ignorantes e provar minha inocência ante
um juíz como tu (Apologia, I, 3).

Com efeito, assino a defesa não somente em minha própria


causa, mas também em nome da filosofia, cuja majestade
não admite a menor reprovação, como se tratasse da acusa-
ção mais terrível. E faço-o porque há pouco tempo os advo-
gados de Emiliano, com eloquência venal, disseram contra
minha pessoa, particularmente, todas as invenções calunio-
sas que lhes ocorreram e, contra os filósofos em geral, to-
dos demais tópicos que possam estar na boca dos ignorantes
(Apologia, III, 6).

Portanto, tanto Apuleio em sua defesa, quanto Filóstrato na


de Apolônio usam a filosofia para legitimar as práticas de magia dentro
dos limites que eram aceitos e para rebaterem as acusações. Cumpre
ressaltar que o discurso de defesa de Apolônio apresentado por Fi-
lóstrato, não mencionado nas cartas da tradição, é considerado por
alguns estudiosos, como Alberto Bernabé Pajares e F. W. Lenz, como
invenção filostratiana.53 Acreditamos que seja possível que Filóstrato
criou essa acusação e também sua defesa, uma vez que isso lhe dá

53  PAJARES, A. B. Traducción, Introducción y Notas. In: FILÓSTRATO. Vida de Apo-


lônio de Tiana. Tradução, introdução e notas de Alberto Bernabé Pajares. Madrid:
Editorial Gredos, 1979, p. 465.
248 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
mais oportunidades para defender seu biografado das nefastas práti-
cas da goeteia, especialmente diante da maior preocupação legal com
a magia no período da dinastia dos Severos, quando Filóstrato escre-
veu a obra, com as Sentenças de Paulo.54 Além disso, Filóstrato pode
ter usado a mesma estratégia de Apuleio por ter conhecimento de tal
defesa com a leitura da Apologia, uma vez que Apuleio pode ter cha-
mado sua atenção por seu interesse em filósofos e sofistas.55
Em toda obra é destacada por Filóstrato a ligação de Apolônio
com a filosofia pitagórica que, assim como o chamado médio-platonis-
mo de Apuleio, admitiam as práticas teurgicas em larga escala. Segundo
Jaap-Jan Flinterman as características pitagóricas na VA também podiam
ser consideradas na época como características da magia nefasta, mas
Filóstrato as alude em tom de comunicação de Apolônio com o divino.56
A capacidade miraculosa de Apolônio é mostrada por Filós-
trato em diversas passagens, como quando o tianeu desmascara uma
empusa57 que se passava por uma linda mulher para seduzir e devorar
o sangue e o corpo do filósofo Menipo (VA, IV, 25). E todas as capaci-
dades miraculosas de Apolônio são justificadas por sua filosofia pitagó-
rica que lhe conduzia a uma vigorosa dieta e um estilo de vida capazes
de lhe fazer ter presságios e poderes sobre-humanos.
Não são claras as razões que levaram Filóstrato a desenvolver
essa apologia de Apolônio ligando sua imagem relacionada à magia

54  Com as Sentenças de Paulo, jurisconsulto contemporâneo a Caracala, as artes


mágicas e divinatórias atraem uma atenção especial, e até mesmo a posse de livros
mágicos passa a ser proibida. Paulo determina que todos os culpados de praticarem
magia, feiticeiros, adivinhos, astrólogos e seus consulentes, deveriam ser expostos às
feras ou crucificados ou, ainda, queimados vivos. Também seriam punidos aqueles
que ministrassem poções abortivas e filtros amorosos e aqueles que praticassem
sacrifícios humanos, sendo que sob estes últimos recaía a pena de morte. SILVA, G.
V. Reis, Santos e Feiticeiros: Constâncio II e os fundamentos místicos da Basiléia. (337
– 361). Vitória: EDUFES, 2003, p. 230-231.
55  Filóstrato é também autor da obra Vidas dos sofistas, escrita depois do texto
sobre Apolônio, informação que temos devido à menção da obra sobre Apolônio no
primeiro trabalho (Vidas dos sofistas, II, 570). Utilizamos a seguinte versão da obra
Vidas dos sofistas: FILÓSTRATO. Vidas de los Sofistas. Introdução, tradução e notas de
María Concepción Giner Soria. Madrid: Editorial Gredos, 1982.
56  FLINTERMAN, Jaap-Jan. The ancestor of my wisdom’: Pytagoras and Pythago-
reanism in Life of Apollonius. In: BOWIE. E. ELSNER, J. Philostratus. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2009, p. 170.
57  Monstro grego, espécie de vampiro que assustava crianças na literatura.
Volume 1 249
com a teurgia, distinta de outra tradição sobre o biografado. O biógrafo
nos conta que escreveu a obra a pedido da imperatriz severiana Júlia
Domna (VA, I, 3), esposa de Septímio Severo (193-211), o que pode
ser real ou não, mas que de fato legitimava o texto. Jamais poderemos
ter certeza se tal informação é verdadeira. Dzielska acredita que sim,
pois a imperatriz seria a única pessoa capaz de atrair a atenção de Fi-
lóstrato para Apolônio, um sábio de poderes mágicos, conhecido prin-
cipalmente nas distantes regiões orientais do Império, de onde vinha
também Júlia, natural de Emesa, na Síria.58
Também não sabemos da repercussão que a obra teve especi-
ficamente no contexto em que Filóstrato viveu, mas possivelmente ela
foi lida pelos imperadores da época, já que além de Júlia se interessar
pela obra, como conta Filóstrato, seu filho e imperador Caracala tinha
interesses pelo tianeu como já mostramos na documentação e Severo
Alexandre (222-235), o último imperador da dinastia dos Severos, pa-
rece ter rendido admiração especial por Apolônio, como mostra a His-
tória Augusta (Vida de Severo Alexandre, 29, 2).59 Chamar a atenção
imperial para seus escritos através de uma apologia a um personagem
por eles admirado pode ter sido um dos objetivos de Filóstrato com a
escrita da VA.
Diante disso, a conclusão que podemos chegar é que a ima-
gem de Apolônio variou no período do Principado de maneira total-
mente oposta e que a apologética biografia de Filóstrato serviu para
defesas e ataques de escritores futuros, conforme os interesses que os
mesmos tinham ao tratar da temática da magia.

58  DZIELSKA, M. Apollonius of Tyana in legend and history. Problemi e ricerche di


Storia Ântica. Roma: L’Erma di Bretschneider, 1986, p. 188.
59  SCRIPTORES. Severus Alexander. In: ______. The Historia Augusta. Tradução de
David Magie. Loeb Classical Library edition. Disponível em: <http://penelope.uchicago.
edu/Thayer/E/Roman/Texts/Historia_Augusta/home.html>. Acesso em: 04 mar. 2013.
250 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Considerações finais

No texto filostratiano Apolônio é um sábio pitagórico sen-


do suas práticas de caráter mágico-religioso parte de sua sabedoria,
portanto ele é um teurgo, para Filóstrato, é aquele que tem seus co-
nhecimentos revelados pelos deuses pela ascese divina. Nosso sofista
retira de seu protagonista, dessa forma, qualquer ligação possível com
a prática de magia considerada negativa, charlatanesca e punida por
lei pelos romanos, a goeteia, e faz uma verdadeira defesa da teurgia
como forma de conhecimento do filósofo pitagórico e homem divino
que ele o transforma.
Como vimos, portanto, a magia no contexto do Principado ro-
mano era uma prática ambígua cujas fronteiras, entre o que era con-
siderado uma prática positiva, daquilo que era considerado negativo,
não eram bem delimitadas. Assim, os autores usaram da imagem de
Apolônio ligando-a ao tipo de prática mágica, negativa ou positiva,
conforme os convinha.
Ainda hoje a imagem de Apolônio causa inquietação, desper-
tando a atenção não apenas dos estudos acadêmicos que buscam pelo
Apolônio histórico e pelas variadas representações que dele foram
feitas, mas também de correntes místicas como a Teosofia que, se-
gundo Cornelli, buscam se remeter aos mistérios antigos e consideram
Apolônio como um iniciado.60 Muito ligado à imagem de Jesus Cristo,
tema de variados estudos, desde a polêmica de Eusébio de Cesareia
contra Hierocles, por nós mencionada, a figura de Apolônio continua
sendo revisitada, mostrando-nos variados aspectos sobre as crenças
dos antigos, mas também mostrando como um personagem tão lon-
gínquo de nós no tempo e no espaço pode dizer sobre muito sobre
nossos próprios interesses e inquietações contemporâneas. No Brasil,
um país onde temos a forte presença de religiosidades mágicas tam-
bém consideradas, muitas vezes, de maneira preconceituosa e ambí-
gua na sociedade, como o caso da umbanda e do candomblé, pensar

60  CORNELLI, G. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na recepção


das figuras de θεῖοι ἅνδρες na literatura helenística: a magia incômoda de Apolônio
de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado apresentada na Universidade Meto-
dista de São Paulo, 2001, p. 69.
Volume 1 251
a magia romana e personagens significativos como Apolônio é uma
oportunidade para refletir sobre aspectos de nossas próprias crenças e
nossas ideias religiosas preconcebidas, assim como sobre a forma que
as imagens sobre a religiosidade são criadas e recriadas como repre-
sentações e, neste sentido, como mecanismos necessários para impor
a concepção de mundo e os valores dos grupos sociais.

252 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


RELIGIÓN SIN HOGAR:
CRISTIANOS REACIOS A LA
DISCIPLINA DEL OIKOS
Mariano Spléndido1

“¡Ay de ellos!, porque se han ido por el camino de Caín,


y por un salario se han abandonado al descarrío de Balaam,
y han perecido en la rebelión de Coré” Jd 11

Con mucha probabilidad podríamos afirmar que la vertien-


te paulina del cristianismo fue la primera que se apropió del espacio
doméstico como núcleo para el culto, construyendo a partir de allí una
moral familiar nueva. Sin embargo, no todos los grupos cristianos de los
dos primeros siglos coincidieron en esto. Varios documentos nos propo-
nen una resistencia al ámbito del oikos y a su ética subordinacionista y
centrada en la obediencia. Este conflicto puede vincularse con una se-
rie de circunstancias particulares que lo enmarcan y lo determinan. Pri-
meramente hemos de considerar al periodo comprendido entre las dos
guerras judías (70-135) como un punto de inflexión en las identidades
cristianas. Los fieles de las iglesias paulinas experimentaron esto como
una clara señal de despegue de la sinagoga, un ámbito que comenzó
a mostrarse menos tolerante a la disparidad de manifestaciones en su
seno. Por otro lado, las iglesias con componentes nomistas continuaron
reivindicando un tipo de apostolado carismático itinerante que recla-
maba control sobre una clientela local que ya no parecía tan proclive a
una recepción incuestionada. Al aparecer la casa como núcleo cristiano
por excelencia, opuesto a la sinagoga y también al carisma exaltado, el
cristianismo urbano propuso una primera delimitación en pos de la cons-
trucción de una jerarquía que no todos aprobaron. Esto está también en
clara vinculación con el decaimiento de las esperanzas escatológicas.
Ahora bien, los cristianos que no conformaron una ekklesia
en el sentido administrativo-jerárquico y espacial (el oikos del líder

1  Prof. Dr. del Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias Sociales


(UNLP-CONICET).
Volume 1 253
encumbrado transformado en sede del rito y punto de reunión re-
conocido) habrían formado una especie de “asociación voluntaria
intersticial”. Este concepto lo aplican Adriana Destro y Mauro Pesce
para analizar a la comunidad original de Jesús2, pero creo que nos
sería muy útil para abordar a los creyentes reacios a someterse a los
ejes organizativos del oikos creyente. Esta comunidad intersticial se
habría formado a partir de una relación directa de los individuos con
el apóstol o profeta itinerante, generando así un desbarajuste en los
roles sociales de los adherentes, ya sea a nivel doméstico como ex-
tradoméstico. Este planteo no debe hacernos pensar que abordare-
mos el problema desde una perspectiva como la de Gonzalo Puente
Ojea3, quien postuló que el movimiento cristiano original, reforma-
dor y de tinte rural, fue traicionado por la propuesta secularista y
urbana de Pablo. Es imposible pensar en traición cuando no existe
un cuerpo establecido de creencias y prácticas básicas. La llegada del
cristianismo a la Diáspora lo puso en contacto con otras realidades y
el rol de los personajes carismáticos fue perdiendo fuerza en tanto
no podían contener a los creyentes ni ofrecerles soporte ante su mar-
ginación de la solidaridad sinagogal. Según el nivel de intersticialidad
que experimentasen, los cristianos fueron dando pasos en la confor-
mación de su identidad y en su organización.
Nuestro objetivo en este trabajo es identificar la retórica
de los grupos cristianos no adherentes al principio de cristianizaci-
ón del oikos, su argumentación y su diálogo con las propuestas de
sus oponentes. Estos grupos construyeron una imagen del “otro” que
consideraban como incompatible en relación a los parámetros de su
fe mesiánica. Para esto, analizaremos algunos textos a fin de obser-
var las tensiones y la intertextualidad con las propuestas jerárquicas
(especialmente la paulina): Apocalipsis, el Evangelio de Juan, la As-
censión de Isaías y la Epístola de Judas. Asimismo, varios textos pro-
motores del cristianismo doméstico-jerárquico en construcción nos
darán interesantes datos sobre sus críticos, a fin de comprender este
debate más ampliamente.

2  DESTRO, Adriana e PESCE, Mauro. L´huomo Gesú. Giorni, luoghi, incontri di una
vita. Milano: Mondadori, 2008.p.42-58.
3  PUENTE OJEA, Gonzalo. Ideología e historia. La formación del cristianismo como
fenómeno ideológico. Madrid: Siglo XXI, 2001.p.200-232.
254 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
El espacio doméstico con todos sus miembros no fue una pre-
ocupación central para Pablo de Tarso. Si bien en sus epístolas habla de
familias que colaboran con él (1Cor 1.11 y 16; 16.15 y 19; Rom 16.3-4;
Flm 1-2) sería complejo afirmar que les imponía una moral determi-
nante4. Hay reuniones domésticas pero no existe una familia cristiana
en sentido estricto, pues la ekklesia era una célula de la sinagoga5.
El apóstol descansa en ciertos personajes encumbrados a nivel local
que ejercen el rol de benefactores y son depositarios de algún carisma,
pero el resto del oikos de estos individuos no es creyente en muchos
casos y tampoco se pide convertirlos6.
No será hasta después de la destrucción de Jerusalén en el 70
que surja una necesidad de pensar el hogar como núcleo de reunión
codificado. Hasta este momento la sinagoga aparece como el único
centro legitimado de autoridad, ya que en muchas localidades alojaba

4  Meeks señala claramente que la “casa” paulina es solo una célula no identificable
como la iglesia. MEEKS, Wayne A. (2003) The First Urban Christians. The Social World of
the Apostle Paul., New Haven and London: Yale University Press, 2003.p.75-77.
5  En este período aún no se encuentra evidencia de un conflicto con las sinago-
gas, ya que las ekklesiai paulinas eran parte de las mismas. MONTSERRAT TORRENTS,
José. La sinagoga cristiana. Madrid: Editorial Trotta, 2005.p. 55, 93, 121, 123. Lieu
considera la multiplicidad de grupos que podían funcionar al interior de una sinago-
ga. LIEU, Judith. Christian Identity in the Jewish and Graeco-Roman World. Oxford:
Oxford University Press, 2004.p.153-155. En Hechos de los Apóstoles 13.42-43 Pablo
convierte a un jefe de sinagoga y tiene tratos cordiales con miembros relevantes de
las mismas, lo cual se ve también en 1Cor 1.14; 18.8. Sobre las sinagogas del siglo I es
muy útil el trabajo de Kee, quien plantea que la institución sinagogal era una asamblea
que se reunía en casas particulares, no en un edificio específico. KEE, Howard Clark.
Definig the First Century C. E. Synagogue: Problems and Progress. En: KEE, Howard
Clark and COHICK, Lynn H. (eds.) Evolution of the Synagogue. Problems and Progress.
Harrisburg: Trinity Press, 1999.p.7-26. En este aspecto hay un vínculo espacial muy
fuerte con las células paulinas. Zetterholm ha propuesto que los primeros cristianos
organizaron sinagogas separadas, desvinculadas de la sinagoga local. ZETTERHOLM,
Magnus The Formation of Christianity in Antioch. A Social-Scientific Approach to the
Separation between Judaism and Christianity, New York: Routledge, 2005.p.198.
6  En 1 Cor 5, Pablo critica el comportamiento de un cristiano que convive con
la mujer de su padre, presumiblemente una esclava. Más adelante, 1Cor 7.12-16,
el apóstol admite la unión matrimonial con no creyentes. En Flm 10-16 puede en-
tenderse que el esclavo Onésimo no era creyente pese a vivir bajo el techo de un
amo cristiano. Glancy supone que la conversión del amo implica la de toda la fa-
milia. GLANCY, Jennifer. Slavery in Ancient Christianity. Minneapolis: Fortress Press,
2006.p.46-49.
Volume 1 255
a los cristianos entre su población dependiente de caracter intersti-
cial.7 En este sentido, los paulinos fueron innovadores, ya que hicie-
ron de la ekklesia un conventículo con identidad propia. Si vamos a los
códigos hogareños presentados en Colosenses (Col) y Efesios (Ef), epís-
tolas deuteropaulinas de las décadas del 70-80, podremos observar
propuestas innovadoras en cuanto a la sujeción de los miembros de la
casa.8 En estas cartas es evidente que los cristianos se han separado
de la sinagoga en lo que atañe a la administración y al espacio físico
de reunión; hay una búsqueda de identidad y de liderazgo que, por el
momento, solo desemboca en algunas recomendaciones en materia
organizativa9. El conflicto en estas cartas se da no con los judíos, sino
con cristianos de tendencias carismáticas que promueven la retracción
social, recomendando una cierta ascesis como marca identificatoria.
Los preceptos restrictivos de estos personajes se asocian a comidas y
prácticas ascéticas que parecen coronarse con visiones y una inclinaci-
ón al culto angélico (Col 2.16-23; Ef 4.14). Esto nos pone en presencia,
probablemente, de itinerantes paulinos portadores del carisma pro-
fético, pues no se cuestiona su doctrina, sino su práctica. Que estos
oponentes fueran cristianos paulinos de viejo cuño puede pensarse
en base a la reivindicación que hacen de la idea de discernimiento por
la posesión del Espíritu. Sin embargo, a diferencia de los carismáticos,
el eje para los autores de Col y Ef ya no es el individuo, sino la asam-
blea como un todo agrupado y organizado en diferentes núcleos do-

7  Montserrat Torrents propone que mientras que los principales dirigentes de


las comunidades cristianas de este periodo fueran circuncisos, puede considerarse
como muy posible la adscripción jurídica a la sinagoga aunque no se respete la disci-
plina sinagogal. MONTSERRAT TORRENTS, José. La sinagoga cristiana. Madrid: Edito-
rial Trotta, 2005.p.155-161.
8  Gil Arbiol llama a esta etapa del paulinismo (70-100 d.C.) “fase de estabilizaci-
ón”. En la misma las comunidades afianzan su identidad generando respuestas orien-
tadas a reforzar la pertenencia. GIL ARBIOL, C. El desarrollo de la tradición paulina. En:
AGUIRRE, Rafael (ed.) Así empezó el cristianismo. Estella: Verbo Divino, 2010.p.258.
9  Lo que aparece en estas comunidades es la idea de obligación. MACDONALD,
Margaret Y. The Pauline Churches: A Socio-Historical Study of Institutionalization in
the Pauline and Deutero-Pauline Writings. Cambridge: Cambridge University Press,
1988.p.104-105; WILSON, Walter T. The Hope of Glory. Education and Exhortation in
the Epistle to the Colossians. Leiden: Brill, 1997.p.40-47; GLANCY, Jennifer. Slavery in
Ancient Christianity. Minneapolis: Fortress Press, 2006.p.141.
256 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
mésticos (Col 3.18-4.1; Ef 5.21-6.9)10. Se quiere hacer de estos la base
comunitaria a partir de una ética relacional interna y externa lo más
delimitada posible y garante de una buena interacción con el entorno
de la ciudad. Para esto los autores proponen una medida profiláctica
socialmente inocua: la acción de gracias (Col 3.17).
La composición gentil del paulinismo fue un elemento que
colaboró sin lugar a dudas con su propuesta identitaria. Pese a esto
hubo comunidades que se resistieron a dejar atrás la totalidad de las
observancias y entraron en crisis a la hora de identificarse como un
colectivo organizado. Esto puede verse en las asambleas productoras
de los evangelios sinópticos. El Jesús de Marcos, Mateo y Lucas se pre-
senta como ambivalente respecto al espacio doméstico, ya que si bien
es una base para la misión, también es el seno de la discordia y los con-
flictos (Mc 3.20-21 y 31-35; 6.3-4; Mt 9.21; 10.21-22; 10.36-37; 12.46-
50; 13.57; 19.1-9; 19.13-15; 24.43-44; Lc 8.21; 9.59, 61; 11.27-28;
12.52-53; 14.26; 21.16); los lazos comunitarios tienen preeminencia
por sobre los familiares, imponiéndose la denominación “hermano”
como identificatoria. En este sentido no hay solidaridad directa con
el esquema paulino de Col y Ef, sino cautela en relación a los vínculos
domésticos ya sean matrimoniales, filiales o serviles.
Apocalipsis (Ap), escrito asiático del periodo de Domiciano11,
nos aporta información interesante sobre un grupo cristiano que no

10  D´Angelo propone que estos códigos domésticos son la herramienta para la
cristianización de los miembros del hogar. D´ANGELO, Mary Rose. Colossians. En:
SCHUSSLER FIORENZA, Elisabeth (ed.) Searching the Scriptures. A Feminist Commen-
tary. Vol. 2, New York: Crossroad, 1994.p.315. Cfr. CROUCH, James. E. The Origin and In-
tention of the Colossian Haustafel. Gottingen: Vandenhoeck and Ruprecht, 1972.p.120-
122; BALCH, David. Let the Wives be Submissive. The Domestic Code in 1 Peter. Society
of Biblical Literature Monograph Series. Vol. 26. Ann Arbor- Michigan: Scholars Press,
1981.p.1-10; LINCOLN, Andrew T. “The Household Code and Wisdom Mode of Colos-
sians”, Journal for the Study of the New Testament 74, 1999.p.93-94, 100-102.
11  Cfr. ARENS KUCKERLKORN, Eduardo, DÍAZ MATEOS, Manuel y KRAFT, Tomas.
Apocalipsis. En: LEVORATTI, Armando J., MCEVENUE, Sean, DUNGAN, David L. y
FARMER, William R. (dirs.). Comentario Bíblico Internacional. Estella-Navarra: Verbo
Divino, 1999.p.1682-1683; FOULKES, Ricardo. Apocalipsis. En: LEVORATTI, Armando
J., TAMEZ, Elsa y RICHARD, Pablo (dirs.). Comentario Bíblico Latinoamericano. Este-
lla-Navarra: Verbo Divino, 2003.p.1181-1182; WHITE, Michael L. De Jesús al cristia-
nismo. El Nuevo Testamento y la fe cristiana. Un proceso de cuatro generaciones.
Estella-Navarra: Verbo Divino, 2007.p.352-354.
Volume 1 257
comulga con los presupuestos organizativos jerárquicos. Ya el género
del texto, netamente milenarista, nos alerta en cuanto a su planteo
socio-político. Si seguimos la propuesta de Schussler Fiorenza12, Ap
estaría reivindicando una red profética corporizada en los ángeles de
las siete iglesias, en las cuales hay serios conflictos con algunos disi-
dentes. Ap denuncia la existencia de ciertos poderes en pugna en las
iglesias de Asia Menor (Ap 1.11)13, sobre todo en Éfeso, donde se des-
cubre el engaño de los “falsos apóstoles” (Ap 2.2)14. Sin embargo de-
bería pensarse de qué apóstoles está hablando el autor de Ap, pues su
fuerte tendencia nomista señalaría que los que “se llaman apóstoles
sin serlo” podrían ser los paulinos, aquellos que identifica como la “si-
nagoga de Satanás” término que identificaría al oikos como epicentro
de estos grupos que han desertado en pos de un nuevo liderazgo (Ap
2.9; 3.9)15. Los paulinos desde Col se habían inclinado a una postura
filoimperial (Col 4.5-6)16; la comunidad de Ap renegaba del imperio,
condenaba el poder de Roma y reivindicaba a los mártires y víctimas
de la Guerra Judía. Para esta vertiente cristiana adaptarse a los patro-
nes de la cultura romana era sinónimo de adorar a Satanás17.

12  SCHUSSLER-FIORENZA, Elisabeth “The Quest for the Johannine School: The
Apocalypse and the Fourth Gospel”, New Testament Studies 23, 1976-1977.p.425.
13  Cfr. WEISS, Armando. Los siete mensajes a las Iglesias. Análisis exegético de
Apocalipsis 2-3. Buenos Aires: Instituto Superior de Estudios Teológicos (Tesis de li-
cenciatura no publicada), 1997.p.46-73.
14  Cfr. HOYOS, Federico. “La Carta dirigida al ángel de Efeso: ensayo sobre la parte
parenética del Apocalipsis”, Revista Bíblica 19.85, 1957.p.134-142.
15  Schussler Fiorenza cree que con el término “sinagoga de Satanás” el autor de Ap
se refiere a la sinagoga rabínica. SCHUSSLER FIORENZA, Elisabeth. “The Followers of
the Lamb: Visionary Rethoric and Social Political Situation”, Semeia 36, 1986.p.137.
16  Los cristianos paulinos de Asia Menor han aminorado el conflicto entre las ver-
tientes judía y gentil del movimiento, defendiendo por encima de ellas la idea de
unidad e inserción en el mundo. Cfr. LEE, E. Kenneth. Unity in Israel and unity in
Christ. En: CROSS, Frank Leslie (ed.) Studies in Ephesians. London: A. R. Mowbray
and Co., 1956.p.36-50; BARTH, Markus. The Broken Wall: A Study of the Epistle to the
Ephesians. Chicago: Judson Press, 1959.p.39-50; MONTSERRAT TORRENTS, José. La
sinagoga cristiana. Madrid: Editorial Trotta, 2005.p.243.
17  Cfr. WHITE, Michael L. De Jesús al cristianismo. El Nuevo Testamento y la fe cris-
tiana. Un proceso de cuatro generaciones. Estella-Navarra: Verbo Divino, 2007.p.362-
363. El conflicto en Asia Menor no parece darse por la existencia de una persecución,
sino por distintas formas de prácticas sociales entre grupos cristianos. Cfr. FRIESEN,
Steven. The Cult of the Roman Emperors in Ephesos. Temple Wardens, City Titles
and the Interpretation of the Revelation of John. En: KOESTER, Helmut (ed.) Ephesos:
258 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Frente al reclamo de Ap (2.20) a varias iglesias de Asia sobre
la obligación de respetar los preceptos noáquicos (puntos básicos de
la Ley) por parte de los creyentes gentiles, Ef y Hechos de los Apóstoles
(Hch) se muestran laxos en esa cuestión, subrayando que Cristo hizo
las paces entre judíos y gentiles, y que los líderes apostólicos de Jeru-
salén reconocieron la apostolicidad de Pablo y legitimaron la forma de
su misión a los incircuncisos18. No es menor el dato de que Hch sea
la primera “historia” de las iglesias paulinas, vistas por el autor como
en clara concordia y continuidad con el prestigioso y ya desaparecido
núcleo jerosolimitano de Santiago. Podríamos aducir entonces que la
comunidad del autor de Ap también remontaba su origen a los obser-
vantes de Jerusalén y unía su martirio con el de los rebeldes judíos de
la guerra (Ap 20.4). El pasado comienza a ser objeto de debate y apro-
piación, la base de una evidente voluntad jerárquica que recurre a la
historia del movimiento para legitimar sus posturas19.
Para Ap cimentar la comunidad en base a la familia y al in-
cipiente liderazgo de sus cabezas es sinónimo de amoldarse al impe-
rio. Es por esto que el autor identifica al falso profeta (¿Pablo?) como

Metropolis of Asia. An Interdisciplinary Approach to its Archaeology, Religion and


Culture. Valley Forge: Trinity Press, 1995.p.229-250. Los judeocristianos apocalípti-
cos y los paulinos no eran las únicas vertientes cristianas en Asia Menor, pues tam-
bién se menciona a nicolaítas y adoradores de Juan Bautista. Cfr. RAISANEN, Heikki.
The Nicolaitans: Apoc.2; Acta 6. En: TEMPORINI, Hildegard and HAASE, Wolfgang.
(eds.) Aufstieg und Niedergang der Romischen Welt. Vol. II.26.2. Berlin-New York:
De Gruyter, 1995.p.1602-1622; WALL, Robert W. The Acts of the Apostles. En: AA.
VV. The New Interpreter´s Bible. A Commentary in Twelve Volumes. Vol. VIII. Nashvil-
le: Abingdon Press, 2002.p.260-263; RICHARD, Pablo. Hechos de los apóstoles. En:
LEVORATTI, Armando J., TAMEZ, Elsa y RICHARD, Pablo. (dirs.) Comentario Bíblico
Latinoamericano. Estella-Navarra: Verbo Divino, 2003.p.734.
18  Ef 2.11-13; Hch 15.23-29. Sin embargo en Hch 21.21 nos encontramos con que
Santiago le reprocha a Pablo que su misión ha variado los requisitos de integración
acordados anteriormente.
19  Cfr. HENGEL, Martin. Acts and the History of Earliest Christianity. Fortress Press,
Philadelphia, 1980.p.35-39; BRUCE, Frederick. Fyvie. The Acts of the Apostles: His-
torical Record or Theological Reconstruction? En: TEMPORINI, Hildegard and HAASE,
Wolfgang. (eds.) Aufstieg Und Niedergang del Romischen Welt II.25.3. Berlin-New
York: De Gruyter, 1988.p.2569-2603; BARRETT, Charles Kingsley. “The Historicity of
Acts”, Journal of Theological Studies 50.2, 1999.p.515-534; WALL, Robert W. The Acts
of the Apostles. En: AA. VV. The New Interpreter´s Bible. A Commentary in Twelve
Volumes. Vol. VIII. Nashville: Abingdon Press, 2002.p.5-11.
Volume 1 259
promotor de la Bestia (el imperio), pues hace que todos: se hagan la
“marca (járagma) con el nombre de la Bestia o con la cifra de su nom-
bre” (Ap 13.11-14)20. Las denominaciones que utiliza el autor para
designar a quienes se someten al poder diabólico, “Pequeños y gran-
des, ricos y pobres, libres y esclavos” (Ap 13.16-17)21, recuerdan mu-
cho a la fórmula de Col 3.11, en la que se integra a todos los creyentes
en Cristo. Visto de esta forma podría pensarse que Ap estaría ironi-
zando sobre los intereses en pugna en las ekklesiai paulinas, a las que
consideraba heterogéneas en su composición y a la deriva en materia
de conducción. Esto también estaría remitiendo a la tolerancia y al
respeto por el culto imperial en las ciudades asiáticas, sobre todo en
aquellas donde Domiciano y sus antecesores tenían templos oficiales
(el “lugar del trono de Satanás” Ap 2.13). El que tiene la marca de la
Bestia puede comprar y vender, es decir que puede moverse libre-
mente (aquí habría una dura crítica a los paulinos pues se dicen judí-
os, ya que pagan el fiscus judaicus, pero no participan de la sinagoga
y toleran el culto idólatra de los emperadores Flavios)22. Es por esto
que el autor se opone a la familia, pues crea lazos carnales que llevan
a priorizar la supervivencia y, con ese fin, negocia con Satanás23. En
la estructura familiar se ha terminado el don profético que permite
discernir24, pues ahora todos van en conjunto detrás de algunos líde-

20  ROWLAND, Christopher C. The Book of Revelation. En: KECK, Leander E. (ed.)
The New Interpreter´s Bible. Volume XII. Nashville: Abingdon Press, 1998.p.658.
21  RIST, Martin and HOUGH, Lynn Harold. The Revelation of St. John the Divine. En:
AA. VV. The Interpreter´s Bible. Volume XII. Nashville: Abingdon Press, 1957.p.465.
22  Cfr. KRAYBILL, J. Nelson. Imperial Cult and Commerce in John´s Apocalypse.
Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996.p.15-31. Harland, sin identificarlos con los
paulinos, presenta a los opositores del autor de Ap como cristianos participantes
en asociaciones cívicas fundamentalmente a través de sus actividades comerciales
o artesanales. HARLAND, Philip. “Honouring the Emperor or Assailing the Beast:
Participations in Civic Life among Associations (Jewish, Christian and Other) in Asia
Minor and the Apocalypse of John”, Journal for the Study of the New Testament 77.
2000.p.99-121.
23  Según De Souza Nogueira, en Ap 2.20-23 el autor del texto está criticando la
ética sexual matrimonial y familiar paulina, contraponiéndola con su rigurosa ascesis
profética. DE SOUZA NOGUEIRA, Paulo Augusto. “Cristianismos en Asia Menor. Un
estudio comparativo de las comunidades en Éfeso al final del primer siglo d.C.”, Re-
vista de Interpretación Bíblica Latinoamericana 29, 1998.p.135.
24  En Ap 19.10 el autor señala que el testimonio de Jesús es el espíritu de profecía, que
él posee (Ap 10.11), pero que está ausente de los núcleos cristianos opositores, que siguen
260 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
res que se arrogan el control de la disciplina moral y comienzan a ser
reverenciados (de aquí que en Ap 19.10 y 22.9 se corrija al vidente
cuando quiere adorar a intermediarios)25. La sinagoga judeo-cristiana
de Ap es profética y milenarista, proyectada hacia la destrucción de
Babilonia-Roma y la conservación pura de los fieles hasta el cumpli-
miento del tiempo. Los cristianos refugiados en la disciplina domésti-
ca se han secularizado y se manchan continuamente con las prácticas
impuras, fruto de su interacción social y cívica (Ap 22.11).
Los cristianos opositores a la ética patriarcal doméstica des-
cansaban en un liderazgo carismático que remontaban a los apóstoles,
desconociendo cualquier legitimación jerárquica local. Sin embargo,
en muchas ekklesiai el poder del carisma no era visto como compati-
ble con el pedido de obediencia y con los presupuestos organizativos
de la familia. Si bien Ap tiene en alta estima a los itinerantes, no así
las asambleas paulinas y otras en las que su inmiscusión en los asun-
tos locales comienza a ser vista como competencia en la carrera por
la jerarquización. Esto puede verse por ejemplo en Didajé (Did), un
manual cristiano del año 110 aproximadamente, proveniente de una
comunidad del área de Antioquía de Siria26. En el mismo se refleja la
tensión inherente a la convivencia de apóstoles y profetas con obispos
y diáconos, poderes colectivos de la ekklesia local (Did 15.1-2). El au-
tor del documento pide que no se desprecie a los itinerantes aunque
autoriza a los fieles a indagar sobre sus intenciones y su discurso. Aún
es válido el precepto de sostener al ministro ambulante, pero ahora
se delimita su estancia y se prohíbe que reciba dinero; sin embargo, el
itinerante puede asentarse en la comunidad permanentemente y vivir
con los hermanos, poniendo su don al servicio de los líderes locales
(Did 11.3-13.7)27. En Did se nos da otro valioso dato para analizar el

órdenes del falso profeta al servicio de la Bestia y así se garantizan la inclusión social.
25  RIST, Martin and HOUGH, Lynn Harold. The Revelation of St. John the Divine. En:
AA. VV. The Interpreter´s Bible. Volume XII. Nashville: Abingdon Press, 1957.p.510.
26  Cfr. AUDET, Jean Paul. La Didaché. Instructions des Apotres. Paris: Gabalda,
1958.p.187-210; WHITE, Michael L. De Jesús al cristianismo. El Nuevo Testamento
y la fe cristiana. Un proceso de cuatro generaciones. Estella-Navarra: Verbo Divino,
2007.p.415-416.
27  DRAPER, Jonathan A. Social Ambiguity and the Production of Text: Prophets,
Teachers, Bishops, and Deacons and the Development of the Jesus Tradition in the
Community of the Didache. En: JEFFORD, Clayton N. (ed.) The Didache in Context.
Volume 1 261
discurso de los cristianos resistentes al espacio del oikos: el grado de
perfección y compromiso de los subordinados domésticos. Si nos de-
tenemos en Did 4.9-11 veremos que se espera que el padre-amo sea
el reflejo de Dios para sus hijos y esclavos, calificados como miembros
cuya integración y convicción cristiana tiene que ver con una correcta
asunción de los presupuestos jerárquicos del hogar28. A diferencia de
Col y Ef, Did propone ver al kyrios como reflejo de las actitudes de Dios,
la expresión de la autoridad divina en el hogar. Este punto conlleva sus
dificultades para muchos cristianos, pues el oikos cristianizado somete
la pluralidad de expresiones carismáticas a un orden y a un líder, no
a manifestaciones divinas personales, intersticiales y conflictivas. Para
comprender esto más en profundidad es necesario observar al Evan-
gelio de Juan, cuya comunidad se habría originado en el área de Siria.
El Evangelio de Juan (Jn), cuyo grupo redactor habría migra-
do de Siria-Palestina a Anatolia29, nos ofrece una cristología avanzada,
centrada en una confesión de fe salvífica que contrabalancea el fracaso
de la parusía: la salvación es un estado que se alcanza por la creencia
en Jesús y su confesión como Hijo enviado del Padre (Jn 5.24)30. Los
juaninos consideran su situación como intersticial o, al menos, semi-in-
tersticial, ya que quedan absorbidos por una tensión entre dos grandes
polos: la sinagoga y las ekklesiai jerárquicas. La sinagoga es un espacio

Essays on its Text, History and Transmission. Supplements to Novum Testamentum


77. Leiden: Brill, 1995.p.296-300; PATTERSON, Stephen J. Didache 11-13: The Legacy
of Radical Itinerancy in Early Christianity. En: JEFFORD, Clayton N. (ed.) The Didache
in Context. Essays on its Text, History and Transmission. Supplements to Novum Tes-
tamentum 77. Leiden: Brill, 1995.p.313-329.
28  - Por la repetición del tema en los documentos cristianos de la época podemos
conjeturar que esta ética doméstica no fue de fácil adopción. Glancy considera que
puede entenderse que el amo-padre de Did usa la violencia con sus subordinados
como una de sus prerrogativas. GLANCY, Jennifer. Slavery in Ancient Christianity. Min-
neapolis: Fortress Press, 2006.p.151.
29  BROWN, Raymond E. La comunidad del discípulo amado. Estudio de la ecle-
siología juánica. Salamanca: Sígueme, 1983.p.35-53; BERNABÉ UBIETA, Carmen. Las
comunidades joanicas: un largo recorrido en dos generaciones. En: AGUIRRE, Rafael.
(ed.) Así empezó el cristianismo. Estella: Verbo Divino, 2010.p.309-312.
30  BROWN, Raymond E. La comunidad del discípulo amado. Estudio de la eclesio-
logía juánica. Salamanca: Sígueme, 1983.p.47-50; O´DAY, Gail R. John. En: KECK, Le-
ander E. (ed.) The New Interpreter´s Bible. A Commentary in Twelve Volumes. Volume
IX. Nashville: Abingdon Press, 1995.p.497-498; THEISSEN, Gerd. El Nuevo Testamen-
to. Historia, literatura, religión. Santander: Sal Terrae, 2003.p.204.
262 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
de oposición en todo el relato; la expulsión ya aparece como castigo
para aquellos que confiesan a Jesús, y ese castigo es experimentado
de forma traumática y ofensiva31. Los juaninos tampoco acuerdan del
todo con los círculos que reivindican a Pedro y Pablo, ya que su orga-
nización comunitaria atenta contra su idea espiritual del liderazgo32.
El grupo juanino no es parte de la sinagoga pero tampoco se fía del
espacio doméstico y menos de los cargos oficiales. Por oposición a
los líderes administrativos se exalta al Paráclito, el Espíritu clarificador
cuya posesión no es privilegio de nadie (Jn 14.16-26; 15.26; 16.13)33.
El Jesús de Jn es opositor del “mundo”, entendido como el espacio de
dominio de Satanás,34 y busca que, por el reconocimiento de su divi-

31  MARTYN, J. Louis. History and Theology in the Fourth Gospel. Nashville: Abing-
don Press, 1979.p.47-51; BROWN, Raymond E. La comunidad del discípulo amado.
Estudio de la eclesiología juánica. Salamanca: Sígueme, 1983.p.65-68; COLLINS, Ray-
mond F. Speaking of the Jews: “Jews” in the Discourse Material of the Fourth Gospel.
En: BIERINGER, Reimund, POLLEFEYT, Didier and VANDECASTEELE-VANNEUVILLE,
Frederique. (eds.) Anti-judaism in the Fourth Gospel. Louisville-Kentucky: Westmin-
ster John Knox Press, 2001.p.158-175; THEISSEN, Gerd. La redacción de los evange-
lios y la política eclesial. Un enfoque socio-retórico. Estella-Navarra: Verbo Divino,
2002.p.155-158; BERNABÉ UBIETA, Carmen. Las comunidades joanicas: un largo re-
corrido en dos generaciones. En: AGUIRRE, Rafael. (ed.) Así empezó el cristianismo.
Estella: Verbo Divino, 2010.p.320. Es interesante el planteo de varios autores que
postulan que la Birkat ha-minim (la exclamación condenatoria contra los herejes de
la sinagoga) jugó un rol en esta separación, pero no como elemento de expulsión,
sino de disuasión. LIEU, Judith. Neither Jew nor Greek? Constructing Early Christian-
ity. Edinburgh: TyT, 2002.p.11-29; MARCUS, Joel. “Birkat ha-Minim Revisited”, New
Testament Studies 55, 2009.p.523-551.
32  Brown señala que los juaninos dialogan con los grupos petrinos en el evan-
gelio. Allí se los cuestiona por su incomprensión cristológica. BROWN, Raymond E.
La comunidad del discípulo amado. Estudio de la eclesiología juánica. Salamanca:
Sígueme, 1983.p.79-85. Cfr. BERNABÉ UBIETA, Carmen. Las comunidades joanicas:
un largo recorrido en dos generaciones. En: AGUIRRE, Rafael. (ed.) Así empezó el
cristianismo. Estella: Verbo Divino, 2010.p.331-332.
33  THEISSEN, Gerd. La redacción de los evangelios y la política eclesial. Un enfo-
que socio-retórico. Estella-Navarra: Verbo Divino, 2002.p.169. Según Brown, el rol del
Paráclito es compensar la falla escatológica, pues el Paráclito es el Espíritu de Jesús
siempre presente. BROWN, Raymond E. La comunidad del discípulo amado. Estudio
de la eclesiología juánica. Salamanca: Sígueme, 1983.p.131-133.
34  PIPER, Ronald A. Satan, Demons and the Absence of Exorcisms in the Fourth
Gospel. En: HORRELL, David G., and TUCKETT, Christopher M. (eds.) Christology,
Controversy and Community. New Testament Essays in Honor of David R. Catchpole.
Leiden: Brill, 2000.p.271-276; WATT, Jan G. Van der. Salvation in the Gospel According
Volume 1 263
nidad, se pase a integrar un colectivo de creyentes que avanzan en la
perfección de su fe.
Jn utiliza el concepto de “amistad” (filía) para nombrar la ali-
neación de los hombres ya sea con Jesús, ya sea con el César35. La
amistad supone demandas y un comportamiento concreto que se aso-
cia inexorablemente con el sufrimiento, como en el caso del ciego de
nacimiento, insultado y finalmente expulsado de la sinagoga y de sus
mismos lazos familiares (dado que sus padres se retraen ante las pre-
siones de los interrogatorios. Jn 9.18-34)36. Es curioso que Jn adopte
el término amistad para señalar las relaciones con Dios o con el mundo
y no recurra a “esclavitud” (douleia), pero esto podría quedar aclara-
do si observamos a qué equivale la esclavitud para el evangelista en
términos simbólicos. Ser esclavo para Jn es sinónimo de conocimiento
imperfecto, ya que en 8.34-35 asocia el pecado con la esclavitud, situa-
ción de inestabilidad y de lealtad dudosa. La esclavitud es una relación
en la que media el dinero, ya sea en la compra o la venta del esclavo, y
que, además, presupone un origen oscuro (el esclavo “no sabe de don-
de viene”). Por esto, el autor de Jn ubica a la esclavitud por debajo de
los vínculos filiales y de amistad figurativos37, los cuales garantizan un
verdadero conocimiento y legitimidad: Jesús es Dios porque revela al
Padre y hace lo que él le encomendó, así como los discípulos hacen lo
que Jesús y el Paráclito les señalan; de la misma manera el funcionario
real intercede por su hijo (ya no su esclavo, como en Mt o Lc) para la
curación38. Esta procedencia del Padre que reclama Jesús es lo que lo
habilita como líder único, creando así un eje carismático continuado en
el Paráclito y en el Discípulo Amado39.

to John. En: WATT, Jan G. Van der (ed.) Salvation in the New Testament. Perspectives
on Soteriology. Leiden: Brill, 2005.p.118.
35  RINGE, Sharon H. Wisdom´s Friends. Community and Christology in the Fourth
Gospel. Louisville-Kentucky: Westminster John Knox Press, 1999.p.65-68; THEISSEN,
Gerd. La redacción de los evangelios y la política eclesial. Un enfoque socio-retórico.
Estella-Navarra: Verbo Divino, 2002.p.151-153.
36  WATT, Jan G. Van der. Salvation in the Gospel According to John. En: WATT, Jan
G. Van der (ed.) Salvation in the New Testament. Perspectives on Soteriology. Leiden:
Brill, 2005.p.121-122.
37  TENNEY, Merrill Chapin. “Topics from the Gospel of John. Part I: The Person of
the Father”. Bibliotheca Sacra 132, 1975.p.38-41.
38  BROWN, Raymond E. El Evangelio según San Juan. I-XII. Madrid: Ediciones Cris-
tiandad, 1979.p.398-404.
39  Pedro aparece como una autoridad recién en Jn 21, capítulo agregado con
264 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
La figura del Buen Pastor, que Jn aplica a Jesús (Jn 10.11-
18) , tendría que ver con una dura crítica al creciente avance de las
40

ekklesiai jerárquicas, ya sean las paulinas u otras, en donde aparecen


cargos como los de obispo, diáconos y presbíteros cimentados en una
red clientelar absorbente con base en los oikoi. La metáfora del Buen
Pastor contrapone a Jesús, cuya voz las ovejas conocen y cuyo sacri-
ficio por el rebaño atrae la salvación41, con el pastor asalariado (jo
misthotos), al que “no le importan las ovejas” (ou mélei autō perì tōn
probáton. Jn 10.12)42. El sentido de asalariado supone el cobro, es de-
cir el manejo de dinero, la creación de un poder regulador que gene-
ra dependencia. Podríamos aducir que el autor de Jn sabía muy bien
que el poder de los “pastores asalariados” se cimentaba en el oikos,
en el manejo de una disciplina ajustada y de carácter mediador. Por
este motivo el relato juanino no presenta positivamente a la familia, ya
que el ámbito doméstico sería un espacio donde priman lealtades que
desvían o bien se convive con miembros descreídos o no avanzados
en la comprensión de la fe (Jn 7.2-5; 9.22)43. El prototipo de “pastor
asalariado” para Jn sería Judas Iscariote, en quién el autor se focaliza
mucho más que los sinópticos. Primeramente es necesario aclarar que
Jn se despega de la historia de las treinta monedas de la traición y de
los datos que vinculan a Judas con los sumos sacerdotes; en el relato

posterioridad a las cartas juaninas. BROWN, Raymond E. La comunidad del discípulo


amado. Estudio de la eclesiología juánica. Salamanca: Sígueme, 1983.p.79-82; THEIS-
SEN, Gerd. La redacción de los evangelios y la política eclesial. Un enfoque socio-retó-
rico. Estella-Navarra: Verbo Divino, 2002.p.169.
40  HOWARD, Wilbert Francis and GOSSIP, Arthur John. The Gospel According to St.
John. En: AA.VV. The Interpreter´s Bible. Volume VIII. Nashville-Tennessee: Abingdon
Press, 1952.p.626.
41  PAINTER, John. Tradition, History and Interpretation in John 10. En: BEUTLER,
Johannes and FORTNA, Robert. (eds.) The Shepherd Discourse of John 10 and its
Context. Society for New Testament Studies Monograph Series 67. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1991.p.53-74; TURNER, John D. The History of Religions Back-
ground of John 10. En: BEUTLER, Johannes and FORTNA, Robert. (eds.) The Shepherd
Discourse of John 10 and its Context. Society for New Testament Studies Monograph
Series 67. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.p.33-52.
42  VAWTER, Bruce. Evangelio Según San Juan. En: BROWN, Raymond E., FITZMY-
ER, Joseph A. y MURPHY, Roland E. (dirs.) Comentario Bíblico San Jerónimo. Tomo IV.
Madrid: Ediciones Cristiandad, 1972.p.475-476.
43  WATT, Jan G. Van der (ed.) Salvation in the New Testament. Perspectives on
Soteriology. Leiden: Brill, 2005.p.126.
Volume 1 265
juanino Judas es poseído por Satanás y con él acuerda el propósito de
entregar a Jesús (Jn 13.2, 27)44. En dos pasajes Judas queda estigma-
tizado en tanto “pastor asalariado” y, curiosamente, los dos ocurren
en torno a una mesa compartida en una casa. El primer caso se da en
12.1-8, durante la cena de Betania, cuando María derrama el perfume
de nardo y Judas se queja.
El evangelista acota que su disgusto no era “porque le impor-
taran los pobres” (oux jóti perì tōn ptojōn jemelen autō), sino porque
llevaba la bolsa del grupo (es decir, administraba los ingresos) y ro-
baba de ella. Esto queda confirmado más extensamente en 13.25-30,
cuando Satanás entra en Judas durante la última cena y sale hacia la
oscuridad para cometer la traición mientras que casi todos los discípu-
los piensan que ha ido a hacer caridad o a comprar alimentos. Varias
cosas pueden decirse de esto, la primera de las cuales es la utilización
del verbo meletaō (preocuparse), aplicado tanto a Judas como al pas-
tor asalariado45. Que Judas sea administrador de la bolsa del grupo
es un dato netamente juanino que, más allá de que proceda o no de
un desarrollo de la tradición sinóptica, podría ser perfectamente una
dura crítica a las intenciones y formas de los que, para Jn, presumen
de ser pastores. Por último, el hecho de que ambos momentos tensos
ocurran en la cordialidad del hogar abona la hipótesis de que Jn no se
fía del oikos, no lo asume como espacio propio porque distorsiona las
lealtades y no busca la progresión espiritual, sino que la encadena a
la obediencia y la materialidad. Por esto mismo en Jn 6.26-27 el autor
pone en boca de Jesús una frase que busca desengañar a los oyentes:
“Ustedes me buscan porque han comido los panes y se han saciado.

44  HOWARD, Wilbert Francis and GOSSIP, Arthur John. The Gospel According to St.
John. En: AA.VV. The Interpreter´s Bible. Volume VIII. Nashville-Tennessee: Abingdon
Press, 1952.p.689-690; BAILEY, John Amadeo. The Traditions Common to the Gospels
of Luke and John. Leiden: Brill, 1963.p.29-31; Eslinger (2000:59); PIPER, Ronald A.
Satan, Demons and the Absence of Exorcisms in the Fourth Gospel. En: HORRELL, Da-
vid G., and TUCKETT, Christopher M. (eds.) Christology, Controversy and Community.
New Testament Essays in Honor of David R. Catchpole. Leiden: Brill, 2000.p.264-265.
45  VAWTER, Bruce. Evangelio Según San Juan. En: BROWN, Raymond E., FITZMYER,
Joseph A. y MURPHY, Roland E. (dirs.) Comentario Bíblico San Jerónimo. Tomo IV. Ma-
drid: Ediciones Cristiandad, 1972.p.484; BROWN, Raymond E. El Evangelio según San
Juan. I-XII. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1979.p.707; O´DAY, Gail R. John. En: KECK,
Leander E. (ed.) The New Interpreter´s Bible. A Commentary in Twelve Volumes. Vol-
ume IX. Nashville: Abingdon Press, 1995.p.702.
266 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
Obren no por el alimento perecedero, sino por el alimento que perma-
nece para la vida eterna”46, es decir que no se debe confundir a Jesús
con un proveedor y patrono garante de su clientela.
Es curioso que, a la par de Jn, Ignacio de Antioquía estaba
promoviendo este modelo comunitario en las comunidades de Asia
Menor. En su carta a Policarpo, presbítero de Esmirna, Ignacio describe
el rol del obispo ideal en un tono netamente económico, ya que debe
ser quien garantice y presida las reuniones y la beneficencia así como
la bolsa comunitaria (Pol 1.2-5.2). A esto Ignacio le suma el hecho de
que el obispo debe resumir en sí mismo los dones proféticos (Ef 6.1;
15.2; Tral 5.1-2; Fil 1.2; Pol 2.2)47, de ahora en más patrimonio exclusi-
vo de su persona y orientados a la administración de la federación de
oikoi que lo reconocen como autoridad legítima.
La propuesta monoepiscopal de Ignacio no encontró gran asi-
dero en Anatolia, donde el paulinismo se volcaba a una jerarquía toda-
vía no muy definida en cuanto a roles precisos. Sin embargo, el oikos
cristiano seguía siendo la plataforma exclusiva del poder en construc-
ción, el espacio en el que se reflejaban las características del aspirante
a un cargo. Las Pastorales nos dan una idea de los conflictos que atra-
vesaban las ekklesiai paulinas para consolidar liderazgos, intentando
apostar a una disciplina interna por grupos que no parece haber sido
tan sencilla e incontestada (Tit 2.1-10; 1Tim 2.8-3.13; 5.1-6.2). No muy
lejos, en la zona de Siria-Palestina, otras voces emprendieron una dura
crítica hacia este proceso de secularización, reivindicando el carácter
intersticial del cristianismo así como su raigambre carismática. Dos tex-
tos son los mejores representantes de estas posturas: la Ascensión de
Isaías (AscIs) y la Epístola de Judas (Jd).
La AscIs fue producida hacia el 115 por un grupo de fieles pro-
bablemente de Siria48. Este texto reivindica fuertemente el rol proféti-

46  Brown, Raymond E. The Gospel According to John (I-XII). The Anchor Bible. Vol-
ume 29. Garden City-New York: Doubleday & Company, 1966.p.264.
47  CHADWICK, Henry. “The Silence of Bishops in Ignatius”, Harvard Theological
Review 43, 1950.p.69-72.
48  KNIGHT, J. The Ascension of Isaiah. Melksham-Wiltshire: Sheffield Aca-
demic Press, 1995.p.21-23; MÜLLER, C. Detlef G. The Ascension of Isaiah. En:
SCHNEEMELCHER, Wilhem. (ed.) New Testament Apocrypha. Vol 2. Writings Relating
to the Apostles; Apocalypses and Related Subjects. Louisville- Kentucky: Westminster
John Konx Press, 2003.p.603-605.
Volume 1 267
co, cuya figura emblemática, Isaías, sufre la persecución política ante el
cambio de monarca (AscIs 2.1-10). En la primera parte de esta ficción
hallamos una descripción de la preocupación presente del autor: pas-
tores y ancianos perversos han alienado el Espíritu Santo, anteponien-
do sus propias voces y sus propios intereses en la administración de
los creyentes, acomodándose al “honor del mundo”. El descrédito de la
profecía provoca que los profetas sufran un desplazamiento y el Espíritu
del error y la fornicación se presente de forma legítima en los nuevos
líderes (AscIs 3.21-31)49. Evidentemente AscIs está dialogando con la
propuesta ignaciana, que hacía del obispo el silencioso intérprete de la
voluntad divina, e incluso con la propuesta paulina, la cual descarta las
manifestaciones exaltadas en pos de mostrar obediencia a las autorida-
des50. No deja de ser significativo que este texto use el término “pas-
tores violentos y sin ley” (3.24) para referirse a los jerarcas y que consi-
dere profetas a los doce apóstoles (3.21). Todo esto es una relectura en
clave escatológica de la historia del cristianismo en miras de la parusía,
el tiempo final que AscIs exalta como próximo así como la oposición al
poder romano, asesino de los apóstoles y los justos (AscIs 4.1-14).
Algo similar a AscIs encontramos en Jd, texto que pareciera
proceder de la zona de Palestina hacia el 125-130, un poco antes de
la revuelta del Bar-Kochba51. Esta epístola con tintes homiliéticos está
motivada por una escisión comunitaria en la que no se observa una
disensión teológica con los oponentes, sino mas bien un problema de
autoridad52. El liderazgo que plantean estos personajes se opone a lo

49  Cfr. HALL, Robert G. “The Ascension of Isaiah: Community Situation, Date,
and Place in Early Christianity”, Journal of Biblical Literature 109.2, 1990.p.296-298;
KNIGHT, J. The Ascension of Isaiah. Melksham-Wiltshire: Sheffield Academic Press,
1995.p.31-32, 56-57.
50  HALL, Robert G. “The Ascension of Isaiah: Community Situation, Date, and
Place in Early Christianity”, Journal of Biblical Literature 109.2, 1990.p.305-306.
51  Cfr. DESJARDINS, Michel. “The Portrayal of the Dissidents in 2 Peter and Jude:
Does It Tell Us More About the `Goodly´ than the `Ungodly´?”, Journal for the Study
of The New Testament 30, 1987.p.89; BAUCKHAM, Richard J. The Letter of Jude:
An Account of Research. En: TEMPORINI, Hildegard and HAASE, Wolfgang. (eds.)
Aufstieg Und Niedergang del Romischen Welt II.25.5. Berlin-New York: De Gruyter,
1988.p.3814; FUCHS, Eric et REYMOND, Pierre. La Deuxieme Épitre de Saint Pierre.
L´Épitre de Saint Jude. Genève: Labor et Fides, 1988.p.150-153.
52  GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter and the General Epistle
of Jude. An Introduction and Commentary. London-Rochester: The Tyndale Press,
268 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
que el autor llama “la fe transmitida” (Jd 3), ya que su propuesta orga-
nizativa va claramente en contra de la sucesión profético-carismática
local que, además, reivindica a Santiago, hermano de Jesús, como fi-
gura central (Jd 1)53. Dado que el problema es netamente organizativo
y no doctrinal, bien podría aducirse que lo que está amenazado es el
carácter intersticial de la comunidad, a la cual los innovadores están
tratando de convertir en ekklesia.
Los opositores en Jd son acusados de convertir en libertina-
je la gracia y rebelarse contra lo establecido, como los israelitas en el
desierto, los ángeles indignos y los habitantes de Sodoma y Gomorra
(Jd 5-7)54. En este aspecto podría verse un conflicto intracomunitario,
con la emergencia de figuras aglutinadoras que desconfían de las ca-
bezas carismáticas y prefieren negociar los espacios de poder con las
autoridades locales a fin de no ser molestados debido a los roces fruto
de una situación intersticial55. El oikos aparecería como el nuevo eje
de poder, centro aglutinador y, por ende, espacio de conflictos para el
autor de Jd. La acusación de “manchar la carne” tendría que ver enton-
ces con los tratos mundanos a que está sometido un jerarca y no a una

1968.p.168; DESJARDINS, Michel. “The Portrayal of the Dissidents in 2 Peter and


Jude: Does It Tell Us More About the `Goodly´ than the `Ungodly´?”, Journal for the
Study of The New Testament 30, 1987.p.90-91; BAUCKHAM, Richard J. The Letter
of Jude: An Account of Research. En: TEMPORINI, Hildegard and HAASE, Wolfgang.
(eds.) Aufstieg Und Niedergang del Romischen Welt II.25.5. Berlin-New York: De
Gruyter, 1988.p.3804. Watson apoya la hipótesis de que los problemas surgen por
infiltrados que proponen una doctrina y una ética diferentes. WATSON, Duane Fred-
erick. Invention, Arrangement and Style. Rhetorical Criticism of Jude and 2 Peter. At-
lanta-Georgia: Scholars Press, 1986.p.29-30.
53  WATSON, Duane Frederick. Invention, Arrangement and Style. Rhetorical Criti-
cism of Jude and 2 Peter. Atlanta-Georgia: Scholars Press, 1986.p.31.
54  GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter and the General Epistle
of Jude. An Introduction and Commentary. London-Rochester: The Tyndale Press,
1968.p.164; FUCHS, Eric et REYMOND, Pierre. La Deuxieme Épitre de Saint Pierre.
L´Épitre de Saint Jude. Genève: Labor et Fides, 1988.p.162-167.
55  - Esto podría suponerse en base a la acusación que les lanza el autor de ser
“murmuradores (goggistaí) y descontentos de su suerte (mempsímoiroi)”, es decir,
que tratan de sobresalir en la comunidad. Fuchs-Reymond señalan que estos verbos
se utilizan en la versión griega del AT para referirse a las quejas y descontentos de
los israelitas en el desierto. FUCHS, Eric et REYMOND, Pierre. La Deuxieme Épitre de
Saint Pierre. L´Épitre de Saint Jude. Genève: Labor et Fides, 1988.p.177.
Volume 1 269
conducta sexual descontrolada (Jd 8)56. El despotes debe cuidar de su
esposa, regir a sus hijos y disciplinar a sus esclavos; la moral doméstica
entraña tentaciones y un poder que, para el autor de Jd, se superpone
al de Dios. Concretamente el texto acusa a los separatistas de negar “al
único dueño y señor nuestro, Jesucristo” y de “despreciar el señorío” e
injuriar a “las glorias” (Jd 4,8)57. El poder regulador de estos nuevos je-
rarcas que analiza Jd tiene que ver, por un lado, con una preeminencia
económica, pues se dice que han desertado “por un salario” (misthou),
“banquetean desvergonzadamente en sus ágapes” y que “adulan por
interés”, o sea que tienen los medios necesarios para atraer volunta-
des y ejercer como patronos (Jd 11-12, 16)58.
Por otro lado, estos líderes estarían reivindicando un derecho
de adoctrinamiento que al autor le parece escandaloso, ya que los acu-
sa de “corromper las cosas que, como animales irracionales, conocen
por instinto” y, además, de injuriar “lo que ignoran”, principalmente el
don profético y el culto angélico, de los cuales parecen querer separar-
se (Jd 10, 19)59. Lo carismático ya no tiene lugar, y mucho menos los
reclamos proféticos de tinte antiimperial; esta nueva jerarquía parecie-
ra no reconocer a los apóstoles como profetas sino simplemente como
fundadores y organizadores (Jd 17-19). No sería inverosímil pensar que
estos jerarcas estuvieran escudándose en una única figura a la que le
otorgarían el título de apóstol: Pablo; a este el autor de Jd lo podría

56  FUCHS, Eric et REYMOND, Pierre. La Deuxieme Épitre de Saint Pierre. L´Épitre de
Saint Jude. Genève: Labor et Fides, 1988.p.166-167.
57 . DESJARDINS, Michel. “The Portrayal of the Dissidents in 2 Peter and Jude: Does
It Tell Us More About the `Goodly´ than the `Ungodly´?”, Journal for the Study of The
New Testament 30, 1987.p.91. Green aclara que esto supone irreverencia hacia los
maestros-profetas y un rechazo de su recurrencia a las figuras angélicas (sentido que
se le da al término doxa). GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter and
the General Epistle of Jude. An Introduction and Commentary. London-Rochester:
The Tyndale Press, 1968.p.168-169.
58  Green asocia la expresión “banquetear desvergonzadamente” con desórdenes
en el rito de la cena del Señor. GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter
and the General Epistle of Jude. An Introduction and Commentary. London-Roches-
ter: The Tyndale Press, 1968.p.174.
59  Cfr. SIDEBOTTOM, E. M. James, Jude, 2 Peter. New Century Bible Commentary.
Grand Rapids-Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1982.p.169-172; THEISSEN, Gerd.
El Nuevo Testamento. Historia, literatura, religión. Santander: Sal Terrae, 2003.p.195.
270 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
estar identificando solapadamente como Balaam60. Visto esto, no es
extraño que en Jd se utilice el verbo poimainō (apacentar), propio de
la metáfora del pastor, para referirse a los disidentes, ya que según el
autor poco les importan los creyentes, pues “se apacientan a sí mis-
mos” (eautous poimaínontes. Jd 12)61, es decir que hacen su negocio
con una administración traicionera y que elimina lo intersticial para
acomodarse al modelo cívico imperial.
Entre el 70 y el 135 las comunidades cristianas intentaron es-
bozar una identidad a partir de postulados organizativos medianamen-
te definidos. Diversas propuestas retóricas circularon para justificar a
las nuevas autoridades locales y respaldar un funcionamiento comu-
nitario coincidente con las premisas de la polis grecorromana. Junto a
esto, las asambleas necesariamente debieron repensar su historia, lo
que las llevó a volcar por escrito sus normativas centrales.

Conclusiones

La situación intersticial del cristianismo carismático de los


orígenes fue minada paulatinamente, ya sea por la pérdida de poten-
cia de sus reclamos escatológicos como por la creciente conflictividad
con la matriz sinagogal en la cual se alojaban. Por los documentos que
abordamos hemos podido observar que estos cristianos se amparaban
en personalidades carismáticas itinerantes que promovían una mística
personal combinada con cierta retracción social. El ayuno, la profecía

60  BAUCKHAM, Richard J. The Letter of Jude: An Account of Research. En: TEMPO-
RINI, Hildegard and HAASE, Wolfgang. (eds.) Aufstieg Und Niedergang del Romischen
Welt II.25.5. Berlin-New York: De Gruyter, 1988.p.3811. El tema de la apostolicidad
de Pablo fue discutido ya en vida de este (1Cor 8.1-7; 15.9-10; Gal 1.1), prolongándo-
se la disputa a lo largo de los siglos I y II.
61  GREEN, Michael. The Second Epistle General of Peter and the General Epistle
of Jude. An Introduction and Commentary. London-Rochester: The Tyndale Press,
1968.p.175; WATSON, Duane Frederick. Invention, Arrangement and Style. Rhetori-
cal Criticism of Jude and 2 Peter. Atlanta-Georgia: Scholars Press, 1986.p.62; BAUCK-
HAM, Richard J. The Letter of Jude: An Account of Research. En: TEMPORINI, Hil-
degard and HAASE, Wolfgang. (eds.) Aufstieg Und Niedergang del Romischen Welt
II.25.5. Berlin-New York: De Gruyter, 1988.p.3812.
Volume 1 271
y las visiones angélicas generan conflicto con el entorno, pues obligan
a romper lazos de solidaridad tanto domésticos como clientelares o
cívicos. El objetivo de esto es conservar un nivel de pureza que habi-
lite a los creyentes para la espera escatológica inminente. Para estos
cristianos, los fieles nucleados alrededor de patronos eclesiales han
corrompido su compromiso al someter su fe a los caprichos de un im-
provisado y astuto administrador; y no solo eso, sino que en su afán
han arrastrado a todos sus dependientes domésticos a practicar una
ética para la cual no están preparados. Pese a esto, si consideramos
a Did, los carismáticos no fueron desplazados violentamente y se les
abrieron las puertas de la iglesia para que se afinquen y aporten al
sostenimiento y gestión del grupo. La única diferencia es que ahora su
voz deberá estar en concordancia con los lineamientos de los diversos
órdenes. No desparecieron, sino que se resignificaron al interior de la
organización de la ekklesia.

272 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1


QUANDO TODOS OS CAMINHOS
LEVAM A ROMA: A INTERVENÇÃO
DE INOCÊNCIO I NO EPISÓDIO DA
DEPOSIÇÃO DE JOÃO CRISÓSTOMO
Gilvan Ventura da Silva1
Érica Cristhyane Morais da Silva2

Nas primeiras décadas do século IV, sob o governo de Constan-


tino, o episcopado experimenta não apenas uma expansão sem prece-
dentes em termos numéricos, como também os bispos adquirem uma
surpreendente projeção na qualidade de representantes terrenos do
Logos e de gestores e porta-vozes de suas cidades, o que os capacita a
revestir ao mesmo tempo uma dignidade espiritual e política.3 Essa é

1  Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de História


Antiga da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Bolsista Produtividade 1-D
do CNPq. No momento, executa o projeto de pesquisa intitulado A cidade e os usos
do corpo no Império Romano: um olhar sobre a cristianização de Antioquia.
2  Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Fi-
lho” (UNESP/franca). Professora de História Antiga na Universidade Federal do Espíri-
to Santo (Ufes). No momento, coordena o projeto de pesquisa intitulado Espaços do
sagrado e do Direito no mundo antigo: topografia urbana, texto e cultura material.
3  De acordo com Vam Dam (Bishops and society. In: NOBLE, T.; SMITH, J. (Ed.).
The Cambridge History of Christianity. Cambridge: Cambridge University Press, 2008,
p. 344), deveria haver, no século IV, cerca de dois mil bispos. Muito embora seja
bastante difícil mensurar a extensão da ordem episcopal em qualquer fase do Im-
pério Romano, esta deveria ser, sem dúvida, numerosa, na medida em que, desde
pelo menos o Concílio de Niceia (325), haveria um bispo em cada cidade. Acima do
episcopado urbano, havia a figura do metropolitano, o bispo da capital da província,
que exercia certa liderança mediante sua capacidade de intervenção nas eleições
episcopais. Cabia ainda ao metropolitano convocar duas vezes por ano um concílio
provincial a fim de resolver questões locais (HUNT. D. The Church as a public institu-
tion. In: CAMERON, A.; GARNSEY, P. (Ed.). The Cambridge Ancient History. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008, p. 240 E SS. v. XIII). Acima dos metropolitanos,
exercendo uma autoridade um tanto ou quanto difusa, mas real, estavam os bispos
de Roma, Alexandria, Antioquia e, mais tarde, Constantinopla (GWYNN, D. Episcopal
leadership. In: JOHNSON, S. F. (Ed.). The Oxford Handbook of Late Antiquity. Oxford:
Oxford University Press, 2012, p. 882), mas sem que tenhamos ainda a figura do pa-
Volume 1 273
a grande transformação que se opera no ofício episcopal entre o Prin-
cipado e a Antiguidade Tardia. Como assinala Rapp,4 nos primeiros
séculos da era imperial as tarefas do bispo poderiam ser definidas com
certa precisão pelo vocábulo grego episkopos, que significava original-
mente “supervisor”, “protetor”, “vigia”. As atribuições do episkopos se
restringiam então ao zelo na manutenção da comunidade, com des-
taque para a coleta e alocação de recursos destinados às atividades
filantrópicas, ficando a pregação e o ensino sob a responsabilidade
dos profetas e professores. Nessa fase, era comum inclusive haver vá-
rios episkopoi atuando ao mesmo tempo numa casa-igreja ao lado dos
presbíteros, com os quais por vezes se confundiam.5 O passo inicial
no sentido da construção de um episcopado monárquico, ou seja, da
centralização das congregações cristãs em torno de um único bispo
foi dado nas primeiras décadas do século II, como podemos consta-
tar por meio da correspondência de Inácio, o líder da igreja de Antio-
quia que, escrevendo a diversas comunidades no seu trajeto rumo ao
martírio, em Roma, exorta-as à obediência incondicional perante seus
bispos, especialmente em assuntos de doutrina.6 Embora seja difícil
acompanhar os detalhes do processo de instauração do episcopado
monárquico, Torjesen supõe que,7 entre os séculos II e III, os cristãos
das cidades com mais de uma casa-igreja sentiram a necessidade de
instituir um representante comum, o que conduziu ao fortalecimento
do episkopos, que com o tempo passou a concentrar os múltiplos mi-
nistérios outrora confiados aos professores, profetas, diáconos, pres-
bíteros e viúvas.
A autoridade episcopal limitava-se, num primeiro momento, à
congregação local, sendo, portanto, uma autoridade interna corporis,
o que não significava, em absoluto, uma agenda restrita de afazeres.
Os bispos pregavam, instruíam a assembleia, batizavam os catecúme-

triarca formalmente instituída, o que somente ocorrerá por decisão do Concílio de


Calcedônia, em 451.
4  RAPP, C. The elite status of bishops in Late Antiquity in ecclesiastical, spiritual
and social contexts. Arethusa. Los Angeles, n. 33, p. 379-99, 2000.
5  GWYNN, D. Episcopal leadership. In: JOHNSON, S. F. (Ed.). The Oxford Handbook
of Late Antiquity. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 877.
6  In. Ad Mag., 6; Ad Tral., 7.
7  TORJESEN, K. T. Clergy and laity. In: HARVEY, S. A.; HUNTER, D.G. (Ed.). The Oxford
handbook of Early Christian Studies. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 398.
274 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
nos, impunham penitências aos pecadores, sustentavam os princípios
ortodoxos contra os heréticos, ordenavam presbíteros e diáconos,
operavam conversões e tomavam assento nos concílios, que, a partir
da segunda metade do século II, tendem a se tornar cada vez mais
frequentes. Aos poucos, vão adquirindo também capacidade jurídica
sobre os membros do clero e os leigos, privilégio que, mais tarde, será
ratificado e expandido por meio da legislação imperial.8 No século IV,
à medida que avança o processo de cristianização, os bispos passam a
intervir também em assuntos que dizem respeito ao funcionamento
das civitates, como, por exemplo, o exercício da justiça, a organização
do abastecimento de víveres em tempos de escassez, a defesa contra
as investidas dos bárbaros, o patrocínio de obras públicas e a represen-
tação do populus junto à corte, razão pela qual diversos autores iden-
tificam, nessa época, a emergência de um patronato cristão à seme-
lhança do patronato greco-romano.9 A partir daí, as tarefas do bispo
se deslocam do âmbito da ecclesia para o da civitas, da administração
religiosa para a civil, o que lhe confere, em contrapartida, a capacidade
de, em muitas circunstâncias, interpelar o próprio imperador sobre a
sua conduta pública e privada. Os bispos se tornam, portanto, agentes
políticos altamente influentes cuja posição é reforçada pelo apoio que
amiúde lhes tributa a população urbana, sempre pronta a tomar a de-
fesa dos seus líderes pastorais.
Por vezes, no entanto, os bispos não se contentam apenas em
garantir o bem-estar da assembleia em conformidade com as limita-
ções impostas pelo seu tempo e lugar, a fornecer aos fiéis lenitivo ma-
terial e espiritual diante das vicissitudes da existência. Pelo contrário,
temos, na Antiguidade Tardia, exemplos de bispos que, desafiados pe-
los dilemas de um processo de cristianização eivado de contradições e
reveses e pela ingerência de múltiplos interesses externos sobre a Igre-
ja, concebem um audacioso programa de reforma social. Essas perso-
nagens demonstram amiúde uma compreensão muito particular das

8  TEJA, R. Emperadores, obispos, monjes y mujeres: protagonistas del cristianis-


mo antiguo. Madrid: Trotta, 1999, p. 97100.
9  GREER, R. A. Pastoral care and discipline. In: CASIDAY, A.; NORRIS, F. W. (Ed.).
The Cambridge History of Christianity. Cambridge: Cambridge University Press, 2008,
p. 573. TORJESEN, K. T. Op. cit., p. 3923.

Volume 1 275
suas responsabilidades episcopais. Para elas, sua eleição não assinala
tão somente a instalação no vértice da hierarquia sacerdotal, o coroar
de uma carreira profissional bem-sucedida, mas a oportunidade de le-
var a cabo uma missão divina da qual se julgam os fiéis executores: a de
corrigir o século, de superar as mazelas que afligem a sociedade de seu
tempo e, com isso, debelar a crise de valores nas quais se pretendem
imersos.10 Os bispos, estimulados pela convicção de que, como vigá-
rios de Cristo, cumpria-lhes zelar permanentemente pela santificação
da assembleia, erradicando qualquer vestígio de impureza, impiedade
e devassidão, assumiam por vezes a posição de reformadores sociais.
Para tanto, costumavam buscar inspiração no movimento monástico,
sem dúvida um dos mais espetaculares fenômenos de piedade popular
de todos os tempos. A ascese obtida pelo monge mediante uma au-
tomortificação solitária ou exercida em companhia dos iniciados, quer
se tratem de anacoretas ou de cenobitas, é transposta assim para o
conjunto da assembleia mediante a atuação pedagógica dos bispos,
que não cessam de clamar pela retidão dos costumes, não poupando
nem mesmo os membros das suas próprias fileiras. Nesse sentido, a
figura de João Crisóstomo é, sob diversos aspectos, notável, pois sua
atuação pastoral, em Constantinopla, representou um momento em-
blemático dentro do processo de centralização administrativa levado
a cabo pelos bispos e que não raro implicou um aumento correlato na
capacidade de intervenção nos ritmos da vida urbana.11

10  A carreira episcopal no fim do Mundo Antigo era bastante promissora. Em


muitas cidades, a remuneração de um bispo era superior a de um médico ou a de um
professor de retórica e, dependendo da sé, compatível com a de um governador de
província. Nas grandes cidades, mesmo os presbíteros e diáconos eram bem pagos,
o que os desencorajava a ser entronizados como bispos nas menores (WILKEN, R. L.
John Chrysostom and the Jews. Eugene: University of California Press, 1983, p. 7).
11  PASQUATO, O. Giovanni Crisostomo e l’Impero Romano. In: GIOVANNI CRISO-
STOMO. ORIENTE E OCCIDENTE TRA IV E V SECOLO. RAPPORTI TRA LE CHIESA NEI
SECOLI IV-V. Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 2005, p. 783.
276 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
1 Um episcopado turbulento

João Crisóstomo foi uma das lideranças mais influentes do seu


tempo, tanto em virtude da sua volumosa produção literária, que con-
tabiliza cerca de 900 homilias, além de cartas e tratados, quanto da sua
destacada atuação como líder religioso em Antioquia e Constantinopla,
as duas mais importantes cidades da parte oriental do Império à épo-
ca.12 João nasceu por volta de 349 em Antioquia, província da Síria.13
Sobre os seus primeiros anos de vida, infelizmente não dispomos de
informações precisas, uma vez que o seu principal biógrafo, Paládio de
Helenópolis, se detém muito mais na trajetória da personagem a partir
de 397, quando João assume o bispado de Constantinopla, tratando
brevemente dos seus anos de infância e juventude. Logo após o térmi-
no da sua formação educacional, por volta de 368, João apresenta-se
para ser batizado pelo bispo Melécio, permanecendo por três anos em
sua companhia. Em torno de 371, inicia sua carreira eclesiástica na
condição de lector da congregação de Antioquia, recebendo como en-
cargo a leitura do Antigo Testamento e das epístolas durante o culto.
Entre 372 e 378 teria passado cerca de seis anos em retiro, nos Montes
Sílpios, na companhia dos anacoretas sírios. Em fins de 380 ou no iní-
cio de 381, no contexto do retorno definitivo de Melécio a Antioquia,
após a morte de Valente, é promovido ao diaconato, cargo que exerce
até 386, quando então é ordenado presbítero por Flaviano, o sucessor
de Melécio. Como presbítero, sua principal incumbência é pregar e
instruir a assembleia, além de auxiliar o bispo na celebração das ceri-
mônias litúrgicas e de substituí-lo sempre que necessário. Desse mo-
mento em diante, começa a exibir toda a exuberância da sua formação
literária. É quase certo que desde a juventude João já se notabilizasse
como autor de epístolas e tratados. Como presbítero, no entanto, sua
habilidade retórica passou a ser cada vez mais estimulada devido às
exigências do labor pastoral, o que lhe rendeu grande notoriedade.

12  MAYER, W.; ALLEN, P. John Chrysostom. London: Routledge, 2000, p. 7.


13  Adotamos aqui a cronologia da vida de João Crisóstomo sugerida por Kelly
(1995), muito embora haja diversas discordâncias entre os especialistas, principal-
mente no que diz respeito à carreira da personagem antes de assumir o cargo de
presbítero da congregação de Antioquia, em 386.
Volume 1 277
Podemos afirmar com certa segurança que a notoriedade al-
cançada por João como orador em Antioquia foi um importante fator
que o credenciou, embora de modo involuntário, ao posto de bispo
de Constantinopla. Na opinião de Mayer,14 a indicação de João Cri-
sóstomo para o cargo se deveu a uma articulação política realizada a
partir de Antioquia. Na disputa que opôs Paulino a Melécio, os bispos
rivais da cidade, o primeiro teria se alinhado com Roma e Alexandria,
ao passo que o segundo teria selado uma aliança com os bispos do
Oriente, o que lhe permitiu interferir mais tarde nos assuntos do bis-
pado de Constantinopla. Essa rede de contatos teria sido assim deter-
minante na eleição de João Crisóstomo, um candidato pertencente à
facção meleciana. A despeito da hipótese de Mayer, para a qual faltam
evidências, é bem possível que a ascensão de João Crisóstomo teria
ocorrido também em função dos seus predicados intelectuais, com
destaque para a excelência oratória. Como sugere Baán,15 diante da
morte de Nectário, em setembro de 397, tudo leva a crer que a cor-
te de Constantinopla buscasse, para suceder o bispo falecido, alguém
que apresentasse aptidão para a vida pública, capacidade oratória, es-
tilo de vida despojado e que fosse independente de Alexandria, uma sé
liderada na ocasião por Teófilo, cuja influência e ambição se irradiavam
para além do Egito. Em virtude de uma hábil manobra de Eutrópio, o
praepositus sacri cubiculi de Arcádio, João foi designado como suces-
sor de Nectário. As condições nas quais se deu sua nomeação são, no
mínimo, pitorescas. Convocado secretamente a comparecer perante
o Comes Orientis Astério, no Portão Romanesiano, um dos portões de
Antioquia, João foi escoltado em segredo até a Capital. De acordo com
Paládio,16 o estratagema visava a evitar a resistência da população,
por demais afeiçoada ao presbítero. Na realidade, a convocação, da
forma como se deu, teve igualmente o propósito de impedir qualquer
tentativa de recusa por parte do indicado. Segundo o testemunho de
Sozomeno,17 ao chegar ao Portão Romanesiano, João foi obrigado a

14  MAYER, W. John Chrysostom as bishop: the view from Antioch. Journal of Eccle-
siastical History, Cambridge, v. 55, n. 3, p. 455-466, 2004.
15  BAÁN, I. L’évèque Chrysostome: exigences et réalisations. In: VESCOVI E PASTORI
IN EPOCA TEODOSIANA. Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 1997, p. 424.
16  Pal. Dial., 5.
17  Soz. Hist. Eccl., VIII, 2.
278 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
entrar na carruagem de Astério, que o conduziu até a estação militar
de Pagras. Somente aí lhe foi dada ciência formal da sua nomeação.
Em 15 de dezembro de 397 ou 26 de fevereiro de 398, João é consagra-
do bispo, inaugurando um episcopado que, desde o início, se mostrou
bastante turbulento.18
A passagem de João por Constantinopla foi marcada pela ado-
ção de um amplo programa de reformas, algumas das quais polêmicas,
o que lhe angariou uma profunda antipatia, a começar pelos mem-
bros do seu próprio clero, familiarizados de longa data com contro-
vérsias e dissensões intra ecclesiam. João, ao suceder Nectário, passa
a responder por um bispado que havia, nos últimos anos, adquirido
visibilidade crescente em virtude da ascensão fulgurante de Constan-
tinopla, a Nova Roma, que, devido à partilha do Império entre os fi-
lhos de Teodósio, em 395, se converte na sede permanente da corte
no Oriente. Um bispado, assim, cuja administração se revela por de-
mais complexa devido à excessiva proximidade com a cúpula imperial.
Além disso, Constantinopla, a exemplo de outras sés da época, sofria
por anos a fio com disputas entre arianos, nicenos, novacianos e de-
mais facções do cristianismo, o que conferiu uma aguda instabilidade
ao cotidiano da congregação.19 No decorrer da segunda metade do
século IV, os cristãos da Capital vivenciaram percalços diversos, fragili-
zados por múltiplos contratempos de natureza teológica, disciplinar e

18  Com referência às duas datas para a sagração de João Crisóstomo como bis-
po de Constantinopla transmitidas pelos autores antigos, Brändle (Jean Chrysostom
(349-407): «Saint Jean Bouche d’or», christianisme et politique au IVe siècle. Paris:
Du Cerf, 2003, p. 84) propõe que João teria sido ordenado em dezembro de 397 e en-
tronizado em fevereiro de 398. Para o autor, morto Nectário, em setembro de 397,
não haveria razão para postergar a eleição do novo bispo.
19  Os novacianos constituíam uma comunidade própria, fundada em meados do
século III por Novaciano, um dos membros do clero de Roma, inconformado com o
fato de o seu bispo, Cornélio, ter readmitido à comunhão os lapsi, isto é, aqueles que
abjuraram a fé cristã por ocasião das perseguições de Décio e Valeriano. A igreja no-
vaciana se expandiu por todo o norte da África, alcançando adeptos inclusive em algu-
mas cidades do Oriente e até o século V permaneceu ativa. Os quartodecimanos, por
sua vez, eram os cristãos que, fiéis à cronologia transmitida por João, celebravam a
Páscoa no décimo-quarto dia da primeira lua da primavera, isto é, na data do Pessach
hebraico, em 14 do mês de Nisã. No concílio de Niceia, fixou-se definitivamente a ce-
lebração dominical da Páscoa, razão pela qual os quartodecimanos, restritos a alguns
grupos espalhados pelas cidades do Oriente, foram tidos como heréticos (BERARDI-
NO, A. (Org.). Dicionário patrístico e de Antigüidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002).
Volume 1 279
administrativa.20 Antes de Nectário, Gregório de Nazianzo havia, por
um lapso de tempo, tentado unir as facções dissidentes da cidade, mas
os obstáculos que teve de enfrentar se mostraram intransponíveis, o
que precipitou a sua renúncia em junho de 381, um pouco depois de
sua investidura.21 Para o seu lugar, os padres reunidos no Concílio
de Constantinopla elegeram, por determinação explícita de Teodósio,
Nectário, um integrante da ordem senatorial que à época era tão so-
mente um catecúmeno, ou seja, um aspirante ao batismo. O ato do
imperador exprimia com clareza seu desejo em manter à frente do
bispado da Capital um homem de sua inteira confiança, oriundo das
fileiras do seu próprio comitatus. Morto Nectário, reacendem-se as
disputas em torno da sucessão episcopal. Teófilo, o eminente bispo de
Alexandria, tenta patrocinar a candidatura de Isidoro, um presbítero
da sua igreja reputado como alguém de rara erudição, mas, na queda
de braço que se segue, Eutrópio sagra-se vencedor ao obter a nomea-
ção de João Crisóstomo.22 Derrotado em suas pretensões de controlar
um bispado importante como o de Constantinopla, Teófilo é convoca-
do a consagrar o novo bispo, nutrindo daí em diante um profundo res-
sentimento contra João. O ajuste de contas entre ambos seria apenas
uma questão de tempo.23
Levando-se em consideração o papel do rigorismo na forma-
ção religiosa e intelectual de João e a obstinação do seu caráter, era
de se esperar que, na condição de bispo, ou seja, de líder absoluto
dos destinos de uma congregação, ele vislumbrasse a oportunidade
de implementar as suas ideias acerca do comportamento ideal espera-
do daqueles que se autointitulavam cristãos.24 João encarava o ofício

20  MARAVAL, P. Constantinople, l’Illyricum et l’Asie Mineure. In : MAYEUR, J. et al.


Histoire du Christianisme. T. 2. Paris: Desclée, 1995, p. 925.
21  SPANNEUT, M. Os padres da Igreja (séculos IV-VIII). São Paulo: Loyola, 2002, p.
4950.
22  BRÄNDLE, R. Op. Cit., p. 84.
23  PASQUATO, O. Giovanni Crisostomo e l’Impero Romano. In: GIOVANNI CRISO-
STOMO. ORIENTE E OCCIDENTE TRA IV E V SECOLO. RAPPORTI TRA LE CHIESA NEI
SECOLI IV-V. Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 2005, p. 786.
24  Na condição de bispo, João era responsável por um extenso conjunto de tarefas
relacionadas à manutenção da sua cidade, um dos desdobramentos mais significa-
tivos da ascensão da Igreja no século IV. João, ao optar pela vida religiosa por volta
dos vinte anos de idade, exibe um autêntico fascínio pelo estilo de vida ascético,
certamente sob a influência dos monges que habitavam as montanhas próximas à
280 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
episcopal como uma autêntica arché, ou seja, uma modalidade parti-
cular de magistratura, cabendo ao bispo não apenas o dever de guiar
espiritualmente o seu povo, mas também o de discipliná-lo com mão
forte, se necessário.25 As denúncias apresentadas contra João perante
o Sínodo do Carvalho (setembro-outubro de 403), no qual decidiu-se
pela sua deposição, nos informam que o bispo costumava exigir dos
seus sacerdotes uma disciplina severa e que frequentemente os acu-
sava de corrupção e incompetência, tendo inclusive expulsado muitos
da congregação.26 Durante o tempo em que respondeu pelo bispado
da Capital, João se destacou também pela acirrada campanha que mo-
veu contra a prática corrente de coabitação dos ascetas com as virgens
(as subintroductae), algo que reputava como indecoroso. No âmbito
da administração financeira, interveio de maneira enérgica, passan-
do a controlar diretamente a arrecadação e as despesas dos fundos
eclesiásticos. João suprimiu os gastos supérfluos com a manutenção
da residência episcopal e transferiu o excedente assim obtido para o
serviço dos doentes, construindo novos hospitais. Segundo Paládio,27
com a expansão da rede de assistência médica, foi possível inclusive
atender pessoas oriundas de outras localidades. Além disso, aboliu os
banquetes eclesiásticos e vendeu as pedras de mármore compradas
por Nectário para decorar a Igreja de Santa Anastácia. Em seguida,
reformou a ordem das viúvas, empreendendo uma investigação para
detectar aquelas cujo comportamento não era compatível com a dig-
nidade da sua posição, a quem recomendou evitar os banhos públicos
e observar jejuns mais rigorosos. João introduziu também o hábito
das litanias noturnas, o que teria desagradado o clero, acostumado a
dormir a noite inteira.

sua cidade natal, razão pela qual em duas das suas mais antigas obras, intituladas
Confronto entre o rei e o monge e Contra os detratores da vida monástica, se dedica
a exaltar a virtude daqueles que foram corajosos o suficiente para renunciar ao con-
forto da vida urbana e enfrentar as agruras dos desertos e das montanhas, devotan-
do-se assim integralmente à ascese e à oração (MORESCHINI, C.; NORELLI, E. História
da literatura cristã antiga grega e latina. São Paulo: Loyola, 2000, p. 190. v. II, t. I).
25  GUINOT, J. N. L’apport des panégyriques de Jean Chrysostome à une definition
de l’évèque modèle. In: VESCOVI E PASTORI IN EPOCA TEODOSIANA. Roma: Institu-
tum Patristicum Augustinianum, 1997, p. 398.
26  KELLY, J. N. D. Golden Mouth: the story of John Chrysostom – ascetic, preacher,
bishop. London: Duckworth, 1995, p. 299.
27  Pal. Dial. 5.
Volume 1 281
Entre os círculos monásticos da cidade, o descontentamento
com as medidas tomadas por João era generalizado, tanto que Isaque,
um dos fundadores do monacato em Constantinopla, foi um dos prin-
cipais articuladores da sua deposição.28 Ao que tudo leva a crer, a di-
vergência que se estabeleceu entre João e os monges da cidade girava
em torno de concepções distintas da vida monástica. Segundo Sozo-
meno,29 João “[...] tinha em alta conta os monges que permaneciam
em quietude, nos mosteiros, e aí praticavam a filosofia. Ele os protegia
de toda injustiça e de modo solícito os provia de quaisquer necessida-
des. Mas os monges que transpunham as portas [do mosteiro] e se
exibiam nas cidades, ele os insultava”. A animosidade entre o bispo e
os monges repercutiu até mesmo na elite administrativa do Império,
uma vez que o general Saturnino e o prefeito do pretório Aureliano
mantinham contatos estreitos com Isaque. Desse modo, uma dispu-
ta originada no âmbito da congregação de Constantinopla logo passa
a envolver representantes da administração pública, o que ameaça a
posição de João Crisóstomo.
A situação se agrava ainda mais com o embate que se esta-
belece entre João e Teófilo de Alexandria por conta do episódio dos
“Grandes Irmãos” (Makroi Adelphoi), um grupo de monges da Nitria
conhecido pela estatura física de seus componentes. Seguidores de
Orígenes, os “Grandes Irmãos” defendiam a tese da natureza incorpó-
rea de Cristo, ao passo que Teófilo, fiel ao credo de Niceia, sustentava
o argumento de que Cristo teria sofrido o processo de encarnação por
intermédio da Virgem. No auge da polêmica, o bispo de Alexandria
lidera ataques às comunidades dos monges origenistas, forçando-os
a deixar o Egito. Acuados, os fugitivos aportam em Constantinopla na
esperança de obter o favor imperial, sendo então acolhidos por Eudó-
xia, que abraça a sua causa. Diante da recusa de Teófilo em receber
os monges em comunhão, Eudóxia solicita a Arcádio que convoque um
concílio, a ser presidido por João Crisóstomo, a fim de apurar os abu-
sos cometidos pelo bispo de Alexandria contra os monges. João, no
entanto, se recusa a atender a solicitação do imperador, evocando o

28  LIEBESCHUETZ, J. H. G. W. Friends and enemies of John Chrysostom. In: MOF-


FAT, A. (Ed.). Maistor, Classic, Byzantine and Renaissance studies for Robert Browning.
Canberra: Australian Association for Byzantine Studies, 1984, p. 85-111.
29  Soz. Hist. Eccl., VIII, 9.
282 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
princípio canônico segundo o qual todo e qualquer litígio de caráter
religioso deveria ser julgado no seu território de origem.30 Sua atitude
conduz a um estranhamento irreversível entre o bispo e a corte. Até
esse momento, João podia contar com a leniência de Arcádio e Eudóxia
como um poderoso escudo capaz de neutralizar as investidas dos seus
oponentes. No entanto, ao adotar uma atitude recalcitrante e hostil
diante do imperador, cuja autoridade sobre a Igreja João simplesmen-
te negava, sua permanência no episcopado se torna insustentável.31
Após uma fase inicial de confronto com a corte, quando João, deposto
pelo Sínodo do Carvalho, é reinstalado por decisão de Arcádio, apreen-
sivo com o clamor da população de Constantinopla, a situação torna a
se complicar em virtude dos ataques que João dirige, do púlpito da sua
igreja, à imperatriz Eudóxia.32
Em represália ao comportamento insolente de João, já no Na-
tal de 403 Arcádio e Eudóxia não comparecem aos ofícios religiosos
em Santa Sofia. Na abertura das solenidades da Páscoa de 404, João
é formalmente notificado da proibição imperial de executar qualquer
ato litúrgico. Na noite da vigília pascal, soldados são enviados para
expulsar das igrejas os partidários do bispo, o que desencadeia uma
intensa comoção popular. No dia seguinte, parte do clero fiel a João
decide ocupar as termas, aí celebrando a festa da Páscoa, numa auda-
ciosa demonstração de desacato à decisão imperial que os desalojava
de seus lugares de culto. Em seguida, passam a se reunir fora dos
muros da cidade. Daí por diante, os assim denominados “joanitas”
formam uma facção autônoma dentro da igreja de Constantinopla. Na

30  KELLY, J. N. D. Op. cit., p. 215.


31  SANDWELL, I. Christian self-definition in the Fourth Century AD: John
Chrysostom on Christianity, imperial rule and the city. In: SANDWELL, I.; HUSKINSON,
J. Culture and society in Later Roman Antioch. Oxford: Oxbow Books, 2004, p. 1-11;
38. Para maiores informações acerca desse assunto, consultar Silva (A deposição de
João Crisóstomo e a polêmica Império/Igreja na corte de Arcádio e Eudóxia. In: CAM-
POS, A. P. et al. (Org.). Os impérios e suas matrizes políticas e culturais. Vitória: Flor
& Cultura, 2008, p. 53-79).
32  Simplício, o praefectus Urbi, havia decidido erigir uma estátua de Eudóxia, con-
feccionada em prata e posta sobre uma base de pórfiro, nas imediações da igreja de
Santa Sofia, para desagrado de João Crisóstomo. Como era de costume, a cerimônia
de dedicação da estátua foi acompanhada de jogos, danças e mimos. João, um crí-
tico inclemente das festividades romanas, não perdeu a oportunidade de recriminar
os participantes da homenagem (Soz. Hist. Eccl., VIII,20).
Volume 1 283
Capital, o ambiente se torna bastante tenso, ocorrendo duas tentati-
vas de assassinato contra João.33 Temendo pela vida de seu bispo,
os “joanitas” o mantêm sob vigilância dia e noite. Após dois meses
de expectativa, Arcádio enfim ordena o seu exílio. Em 20 de junho
de 404, João deixa Constantinopla rumo a Cucuso, na Armênia. Ao
tomar conhecimento da sua partida, a população é acometida de uma
sensação de medo e ressentimento, em parte devido à perda do seu
líder, em parte com receio da repressão imperial às agitações fomen-
tadas na Capital. Novamente, as facções em atrito se digladiam em
praça pública, culminando com um incêndio que consome a basílica de
Santa Sofia e a cúria senatorial.34 Em 27 de junho, Arsácio, então com
cerca de oitenta anos, assume o bispado de Constantinopla, o que não
contribui em nada para amenizar o clima de hostilidade que domina
a cidade e que se prolongará pelos anos seguintes, quando as partes
em confronto realizarão diversas gestões com a finalidade de angariar
apoio para a sua causa.

2 Intervenção na Ásia Menor

Quando avaliamos a passagem de João Crisóstomo pela sé


de Constantinopla e todos os contratempos gerados pelas reformas
que pretendeu implementar e que, ao fim e ao cabo, precipitaram a
sua ruína, um elemento importante e ao qual por vezes não se presta
a devida atenção diz respeito à aproximação entre João e Inocêncio
de Roma, fato que, à primeira vista, poderia soar um tanto ou quanto
contraditório, uma vez que os contatos de João Crisóstomo com a sé
romana nunca foram dos mais amistosos por conta do apoio que a
igreja de Roma tributou por anos a fio a Paulino, bispo rival de Melécio
e de Flaviano, em Antioquia. No episódio da sucessão da sé de Antio-
quia, em 381, devido à súbita morte de Melécio enquanto presidia o
Concílio de Constantinopla, os representantes do Ocidente tentaram a
todo custo obter o reconhecimento de Paulino que, a despeito de con-

33  Soz. Hist. Eccl., VIII, 21.


34  Soz. Hist. Eccl. VIII, 22.
284 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
tar com o voto de Gregório de Nazianzo, foi preterido por Flaviano.35
Em Roma, Dâmaso se recusa a aceitar a decisão conciliar, promovendo,
em 382, outro concílio, no qual Paulino é confirmado como único bispo
de Antioquia, o que acirra uma vez mais o cisma entre os nicenos da
cidade.36 Fazendo parte do clero de Melécio e de Flaviano, é pouco
provável que João Crisóstomo tenha permanecido neutro nessa dis-
puta, embora à época da morte de Melécio ocupasse apenas o cargo
de diácono, o que não lhe conferia maior projeção. Mais tarde, já na
condição de bispo, João não buscou, ao menos num primeiro momen-
to, aproximar-se de Roma, muito pelo contrário. Ao que tudo leva a
crer, uma das sua principais preocupações ao assumir um bispado que,
em 381, havia sido reconhecido como segundo em dignidade, foi o de
reforçar a sua capacidade de intervenção nas demais sés do Oriente,37
o que o colocou em rota de colisão com uma fração não desprezível da
elite eclesiástica oriental, confrontada em sua autonomia pela atuação
intervencionista de João, razão pela qual uma das acusações apresen-
tadas contra ele no Sínodo do Carvalho foi a de ter ultrapassado os
limites da sua jurisdição, consagrando bispos em outras províncias sem
a devida autoridade. 38
De acordo com Paládio,39 testemunha ocular de muitos dos
acontecimentos que descreve, diante da acusação de simonia contra
Antonino, bispo de Éfeso, sustentada em 400 por Eusébio de Valenti-
nópolis perante um sínodo reunindo vinte e dois bispos asiáticos na
residência episcopal, em Constantinopla, João teria decidido empreen-
der uma viagem à Ásia Menor com a finalidade de esclarecer o assun-
to. O plano inicial, todavia, foi suspenso, em função de uma manobra
de Antonino junto à corte e das investidas de Gainas, o general godo
de Arcádio que, àquela altura, encontrava-se em conflito aberto com
o imperador. João decide então enviar à Ásia Menor três delegados,
dentre eles o próprio Paládio, a fim de apurar a situação, iniciativa que

35  KELLY, J. N. D. Op. cit., p. 38.


36  BERARDINO, A. (Org.). Dicionário patrístico e de Antigüidades cristãs. Petrópo-
lis: Vozes, 2002, p. 1107.
37  PIETRI, L. ; BROTTIER, L. Le prix de l’unité: Jean Chrysostome et le systéme
“théodosien”. In: MAYEUR, J. et al. Histoire du Christianisme. T. 2. Paris: Desclée,
1995, p. 489-90.
38  A acusação foi apresentada pelo monge Isaque, cf. KELLY, J. N. D. Op. cit., p. 300.
39  Pal. Dial., 13-15.
Volume 1 285
por fim restou inócua, pois nenhuma das partes envolvidas foi capaz
de apresentar testemunhas que corroborassem as respectivas versões.
Um pouco depois, Antonino vem a falecer. O clero de Éfeso e os bispos
da província, perturbados com as acusações levantadas contra o bispo
recém-falecido e que ressoavam entre os membros da congregação,
requisitam a presença de João Crisóstomo como moderador. Segundo
Kelly,40 João teria partido para a Ásia em janeiro de 402, logo após o
batismo de Teodósio II, permanecendo cerca de quatro meses em via-
gem. Tão logo chega a Éfeso, encontra a congregação dividida em duas
facções, cada uma delas sustentando um candidato próprio ao epis-
copado. Na tentativa de solucionar o impasse, preside um sínodo no
qual Heráclides, diácono da igreja de Constantinopla, é eleito sucessor
de Antonino, o que gera uma onda de protestos na cidade.41
Não bastasse o tumulto na igreja de Éfeso, Eusébio de Valen-
tinópolis decide retomar as acusações feitas contra Antonino, decla-
rando que seis bispos ordenados mediante suborno continuavam no
exercício de suas funções. Desta vez, Eusébio foi eficiente em apre-
sentar suas testemunhas, obrigando João a instituir uma nova inves-
tigação, no decorrer da qual os acusados confessaram ter pago Anto-
nino pela consagração episcopal. Depostos, os bispos foram substitu-
ídos por outros, indicados por João. Em seguida, deslocando-se para
a Lícia e a Frígia, João teria destituído, segundo Sozomeno,42 outros
bispos sob a mesma acusação de simonia. No decorrer da viagem à
Ásia Menor, João também teria retomado diversas igrejas em poder
dos novacianos e quartodecimanos,43 o que gerou protestos da parte
de Sisino, o bispo novaciano de Constantinopla. No caminho de volta
para a Capital, depôs Gerôncio de Nicomédia, um antigo diácono de
Ambrósio, consagrando em seu lugar Pansófio, que havia sido tutor de
Eudóxia. Assim como no episódio da eleição de Heráclides, em Éfeso,
a população de Nicomédia se revolta, protestando em praça pública.
Ao término da sua narrativa sobre a viagem de João Crisóstomo, Sozo-
meno44 ressalta a atmosfera de animosidade que então se instalou na

40  KELLY, J. N. D. Op. cit., p. 173.


41  Soc. Hist., Eccl. VI,11.
42  Soz. Hist. Eccl. VIII, 6.
43  Soc. Hist., Eccl., VI, 11.
44  Soz. Hist. Eccl., VIII, 6.
286 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
províncias, pois os bispos depostos e seus seguidores não tardaram a
se levantar contra João, atacando-o por promover distúrbios nas igre-
jas e por subverter as normas ancestrais de ordenação episcopal.
A despeito da defesa intransigente de Paládio acerca da tra-
jetória de seu herói, os testemunhos de Sócrates e de Sozomeno con-
cordam em assinalar o quanto a missão de João Crisóstomo na Ásia
Menor suscitou descontentamento, na medida em que a deposição
sumária de bispos nas dioceses da Asiana e da Pôntica não encontrava,
a princípio, amparo na legislação canônica, mesmo que, na prática, o
bispo da Capital agisse de comum acordo com a corte, o que, no fim
das contas, representava um trunfo importante no sentido de fazer va-
ler as prerrogativas do bispado de Constantinopla.45 Desse ponto de
vista, a atuação de João Crisóstomo constitui, sem sombra de dúvida,
um passo decisivo no sentido de fortalecer o patriarcado de Constan-
tinopla, que somente obterá reconhecimento formal no Concílio de
Calcedônia, em 451, quando o bispo da Nova Roma será autorizado a
interferir na indicação dos metropolitanos das dioceses sob sua juris-
dição (Trácia, Pôntica e Asiana). Importa assinalar, no entanto, que a
consolidação do patriarcado não se fez sem desgaste político para os
envolvidos, em especial para João Crisóstomo, cuja contribuição nesse
processo não é desprezível. A instabilidade da sua posição pode ser
aferida por meio da conduta de Paulo de Heracleia e Cirino de Calce-
dônia, dois bispos que acompanharam João a Éfeso, mas que logo de-
pois se converteram em tenazes inimigos.46 Não menos importante,
segundo o relato de Sócrates,47 teria sido o descontentamento dos
novacianos e quartodecimanos, que odiavam João pela maneira vio-
lenta com a qual os privou de suas igrejas, o que contribuía para tornar
ainda mais frágeis as bases de sustentação do bispo.

45  HUNT. D. Op. cit., p. 248. v. XIII.


46  BRÄNDLE, R. Op. Cit., p. 130.
47  Soc. Hist. Eccl., VI, 19.
Volume 1 287
3 Um novo protagonista em cena

Considerando os ressentimentos gerados pela intervenção


de João Crisóstomo na Ásia Menor, era pouco provável que os bispos
orientais estivessem dispostos a se agrupar numa ampla coalizão para
defendê-lo das investidas de Teófilo de Alexandria e sua trupe, com-
posta por personalidades influentes como Acácio de Bereia, Antíoco
de Ptolemaida, Severiano de Gabala e mesmo Epifânio de Salamina.
Desse modo, o conflito envolvendo João Crisóstomo ultrapassava e
muito os limites da igreja de Constantinopla, como nos revelam dois
dados sugestivos. Em primeiro lugar, dos trinta e seis bispos reunidos
no Sínodo do Carvalho, vinte e nove eram provenientes do Egito, inte-
grando naturalmente o séquito de Teófilo. Em segundo lugar, como
assistentes do Sínodo foram admitidos os bispos asiáticos depostos
por João.48 Diante de tal conjuntura, uma conclusão parece se impor:
afora a população de Constantinopla e membros leais da sua própria
entourage, João não contava com outros partidários aos quais pudesse
recorrer. Decerto, houve bispos que se mantiveram leais a ele mesmo
após sua deposição definitiva, em junho de 404, a exemplo de Pansófio
da Pisídia, Demétrio de Pessino, Timóteo de Maroneia, João da Lídia
e Paládio de Helenópolis, mas que não tardaram a sofrer retaliações,
culminando mesmo com o exílio.49 Privado do apoio da corte impe-
rial e confrontado não apenas pelos bispos egípcios, mas também por
bispos das dioceses do Oriente, restava a João apenas uma alternativa,
embora desesperada: recorrer ao bispo de Roma, Inocêncio, que por
essa época exercia já uma nítida ascendência sobre as congregações
do Ocidente. Na opinião de Liebeschuetz,50 um ponto de convergên-
cia entre João e o episcopado ocidental residia na concepção segundo
a qual a Igreja seria uma entidade independente do poder imperial, o
que conferia aos bispos uma flagrante autonomia de ação. Persegui-
do por defender de modo intransigente as prerrogativas eclesiásticas
diante da corte, João talvez conseguisse angariar a simpatia de Inocên-

48  KELLY, J. N. D. Op. cit., p. 218.


49  Para uma descrição dos bispos e demais clérigos leais a João condenados ao
exílio, consultar Paládio, Diálogo sobre a vida de São João Crisóstomo (20).
50  LIEBESCHUETZ, J. H. G. W. Op.cit., p. 109.
288 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
cio. Com esse propósito, em 404, logo após a invasão da igreja de San-
ta Sofia pelas forças imperiais, se apressa em escrever uma missiva ao
bispo de Roma na qual expõe sua versão do complô urdido contra ele,
denunciando a imperícia com a qual Teófilo de Alexandria conduziu
a matéria e apelando para a intercessão romana. Cópias da epístola
foram igualmente enviadas a Venério de Milão e a Cromácio de Aqui-
leia, o que demonstra o esforço de João em sensibilizar os principais
dignitários eclesiásticos do Ocidente.
Na epístola, escrita num tom de extrema reverência e humil-
dade, João solicita a intervenção de Inocêncio a fim de debelar o que
considera uma grave crise na igreja de Constantinopla, ameaçada pe-
las maquinações de Teófilo, que teria ingressado na Capital à frente de
um bando de bispos egípcios, revelando assim, desde o início, a inten-
ção de afrontar João Crisóstomo. A ação intempestiva de Teófilo teria
provocado um grande tumulto na cidade. Além disso, Teófilo teria sido
bem sucedido em atrair para a sua causa membros do clero de Cons-
tantinopla.51 Exorbitando os limites da sua competência eclesiástica,
pois estaria interferindo nos assuntos de outra província, Teófilo ob-
tém a condenação de João Crisóstomo, sem lhe dar a oportunidade de
defesa. Prosseguindo com o seu relato, João descreve o episódio da in-
vasão de Santa Sofia com contornos bastante dramáticos: os soldados
cercam a igreja, dispersam o clero e expulsam até mesmo as mulhe-
res seminuas que aguardavam para serem batizadas. Muitos teriam
sido feridos e outros tantos foram expulsos da cidade, dentre leigos
e clérigos, incluindo cerca de quarenta bispos que se encontravam na
Capital para as celebrações da Páscoa.52 Um dos cuidados de João ao
solicitar o auxílio de Inocêncio é o de isentar o imperador de qualquer
participação ativa no episódio, fazendo recair toda a culpa sobre os
ombros de Teófilo, muito embora fique claro, pelo teor da missiva, que
os destacamentos aquartelados na Capital foram mobilizados para re-
movê-lo, o que não poderia ter ocorrido sem a anuência de Arcádio.53
Tal artifício retórico, no entanto, é plenamente justificável, pois João
se apresenta como uma vítima dos desmandos de bispos dissidentes

51  John Chrys. Ep., 1.


52  John Chrys. Ep., 3.
53  John Chrys. Ep., 3.
Volume 1 289
e não como alguém perseguido pelo poder imperial, o que poderia
tornar mais difícil o auxílio pretendido.
Ao apelar para Inocêncio, João revela, nas entrelinhas da
sua epístola, a fragilidade das suas bases de apoio.54 Segundo ele, a
discórdia semeada na igreja de Constantinopla por Teófilo teria se di-
fundido por todas as províncias orientais, de maneira que, em muitas
localidades, o clero havia se levantado contra os bispos, os bispos se
voltavam uns contra os outros e o povo contra o povo. Tal afirmação
nos induz a supor que a deposição de João Crisóstomo foi acompanha-
da por um movimento de reação local às medidas que havia tomado
quando da viagem à Ásia e que culminaram com a deposição de vários
bispos, alguns deles bastante populares, a exemplo de Gerôncio. Em
face de uma situação como essa, João solicita a Inocêncio que interve-
nha no sentido de restabelecer a normalidade eclesiástica, impedindo
assim que, mediante subterfúgios condenáveis, dentre os quais o em-
prego da violência física, os detentores da dignidade episcopal sejam
sumariamente privados das suas igrejas. Além disso, João aproveita
para sugerir a Inocêncio que convoque um novo sínodo, no qual possa
se defender das acusações infundadas das quais foi vítima.55
Sozomeno conserva, em sua História Eclesiástica,56 duas car-
tas de Inocêncio remetidas, muito provavelmente, quando João já se
encontrava em Cucuso. Na primeira delas, o autor se ocupa em con-
solar João pelas injustiças sofridas, evocando o argumento segundo
o qual os melhores homens são frequentemente testados em sua ca-
pacidade de suportar o sofrimento, em demonstrar paciência diante
das provações. Uma vez que, conforme sua própria consciência, João
tenha agido com correção, isso basta para que ele receba o consolo
devido. Na segunda epístola, endereçada ao clero e ao povo de Cons-
tantinopla, Inocêncio retoma o elogio da paciência, virtude capaz de
fortalecer o ânimo daqueles que sofrem até que a misericórdia divina
venha em seu socorro. Todavia, o tom da carta é um pouco mais rude,
pois Inocêncio não se furta em denunciar a lamentável situação das
igrejas do Oriente, muitas delas privadas injustamente dos seus líde-
res, a exemplo de Constantinopla, cujo bispo teria sido deposto sem

54  John Chrys. Ep., 1.


55  John Chrys. Ep., 4.
56  Soz, Hist. Eccl, VIII, 26.
290 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
que nenhuma acusação fosse provada contra ele. Inocêncio se mos-
tra bastante irritado com o que qualifica como obra de “heréticos”, ou
seja, de dissidentes interessados em introduzir o cisma nas congrega-
ções. Visando a solucionar o impasse, propõe a realização de um novo
sínodo, ideia que em breve tentará executar.57
Ao refletirmos sobre os desdobramentos da crise que condu-
ziu à deposição de João Crisóstomo, uma conclusão que logo se impõe
diz respeito ao papel desempenhado pelo bispado de Roma, a todo
momento solicitado pelas facções em litígio. Assim é que Teófilo de
Alexandria, logo após o Sínodo do Carvalho, se apressa em informar
Inocêncio acerca da deposição de João Crisóstomo, sem dúvida na ex-
pectativa de que Roma não viesse a se opor à decisão sinodal. Ao
mesmo tempo, certo Eusébio, diácono da congregação de Constanti-
nopla, que se encontrava então em Roma, se apresenta diante do bis-
po com documentos que denunciavam a trama armada contra João.
Um pouco depois, chega a Roma uma comitiva de quatro bispos e dois
diáconos portando a carta de João Crisóstomo à qual aludimos, bem
como uma carta de apoio a ele assinada por quarenta bispos orientais
e outra assinada pelo clero da igreja de Constantinopla.58 Certamente,
em resposta às epístolas recebidas, Inocêncio escreve a João e a Teófi-
lo exortando-os à reconciliação, o que enseja uma segunda correspon-
dência de Teófilo, desta vez contendo as atas do Sínodo do Carvalho.
Conforme o relato de Paládio,59 Inocêncio, ao ler as atas, conclui pela
fragilidade das acusações contra João, mostrando-se particularmente
incomodado com o fato de o acusado não se encontrar presente ao
Sínodo, o que rompia com a praxe eclesiástica. Em seguida, Inocêncio
escreve uma vez mais a Teófilo, comunicando-lhe da impossibilidade
de romper relações com João Crisóstomo e defendendo a realização
de um novo sínodo. Nesse ínterim, aporta em Roma um tal Paterno,
sacerdote da igreja de Constantinopla, com cartas escritas por Acácio
de Bereia, Paulo de Heracleia, Antíoco de Ptolemaida, Cirino de Cal-
cedônia e Severiano de Gabala, dentre outros, nas quais João é acu-
sado pelo incêndio da igreja de Santa Sofia quando da sua remoção,
em junho. O papel de destaque de Roma na contenda pode ser afe-

57  Pal. Dial. 20.


58  Pal. Dial., 1.
59  Pal. Dial., 3.
Volume 1 291
rido também pela sua condição de porto seguro para os partidários
de João, cassados do Oriente por força de uma lei de Arcádio datada
de 29 de agosto de 404, na qual o imperador determinava a expulsão,
de Constantinopla, de todos os clérigos supostamente envolvidos nos
tumultos que se seguiram à partida de João Crisósomo.60 Assim é que
buscam refúgio, em Roma, Ciríaco de Sinadi, Eulísio de Apameia, Palá-
dio, além de outros diáconos e presbíteros orientais.61
Não obstante o prestígio que a sé de Roma então gozava, é
importante salientar a pouca margem de manobra de Inocêncio diante
de um acontecimento envolvendo a corte de Constantinopla. Todavia,
o bispo de Roma, convencido da injustiça cometida contra João, busca
por todos os meios reverter a situação. Para tanto, recorre a Honório,
colocando-o a par do problema e solicitando sua intervenção junto a
Arcádio. A manobra surte efeito e Honório escreve em três ocasiões
sucessivas ao irmão. Na última carta, conservada por Paládio,62 o im-
perador solicita a celebração de um novo sínodo, na cidade de Tessa-
lônica, com a presença de bispos do Ocidente e do Oriente, incluindo
Teófilo de Alexandria.63 A recomendação de que este novo sínodo
mencionado por Honório fosse realizado teria sido obtida num sínodo
anterior convocado em meados de 405 por Inocêncio do qual parti-
ciparam os bispos dos arredores de Roma, os do norte da Península
Itálica, dentre eles Cromácio de Aquileia, e os bispos orientais refugia-

60  “Imperadores Augustos Arcádio e Honório para Estúdio, Prefeito da Cidade.


Uma vez que, após as investigações, as pessoas que perpetraram o incêndio não
puderam ser identificadas, como o relatório oficial de Vossa Excelência revelou, nós
decidimos libertar os clérigos do confinamento na prisão, contanto que eles sejam
embarcados num navio e retornem aos seus lares. Além disso, as casas que, me-
diante prova, tenham recebido bispos estrangeiros ou sacerdotes estrangeiros após
a publicação dos editos e após a proclamação de Nossa Serenidade não devem esca-
par do perigo da proscrição. A mesma regra geral deve ser observada se alguma casa
receber clérigos da Cidade que liderem reuniões estranhas e sediciosas exteriores à
Igreja. De fato, com o propósito de evitar o irromper de sedições, é determinado por
Nossa decisão que todo bispo estrangeiro ou sacerdote estrangeiro seja expulso de
nossa sacratíssima Cidade” (C. Th. 16,2,37).
61  De acordo com Soraci (Patrimonia esparsa per orbem: Melania e Pininiano tra
errabondaggio ascetico e carità eversiva. Roma: Bonnano, 2013, p. 63), Paládio e os
demais refugiados das igrejas do Oriente teriam sido acolhidos por Melânia e seu
esposo, Piniano, na sua villa suburbana.
62  Pal. Dial., 3.
63  Pal. Dial., 3.
292 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
dos na Capital.64 O fato de Honório subscrever tal decisão é um claro
indicativo de que as relações de Inocêncio com o imperador eram à
época amistosas. O mesmo, entretanto, não se poderia afirmar quan-
to a Arcádio, tendo em vista o tratamento humilhante dispensado aos
mensageiros de Inocêncio: cinco bispos latinos, dois presbíteros e um
diácono da congregação romana, além de quatro bispos orientais, in-
cluindo Paládio. Muito provavelmente a comitiva partiu de Roma no
início de 406, alcançando os arredores de Constantinopla após a entro-
nização de Ático, o sucessor de Arsácio, morto em novembro de 405.
De acordo com Sozomeno,65 os adversários de João Crisóstomo foram
hábeis o bastante para difundir a versão de que a embaixada represen-
tava um insulto direto a Arcádio. Interceptados no caminho de Atenas,
os emissários foram impedidos de cumprir sua missão. Conduzidos a
uma fortaleza em Atira, na Trácia, foram encarcerados e torturados.
As cartas que traziam consigo teriam sido recolhidas por um oficial de
nome Valeriano. Após uma tentativa fracassada de suborno para que
entrassem em comunhão com Ático, os mensageiros ocidentais rece-
beram autorização de retornar a Roma, ao passo que os quatro bispos
orientais foram deportados.66 Sem muitas opções, Inocêncio decide
romper com Ático, Teófilo de Alexandria e seus partidários. Doravante,
muito pouco restava a fazer. Do exílio, João escreve uma vez mais a
Inocêncio, agradecendo-o pelo empenho em favor da sua causa. Na
mesma carta, antecipa os planos do governo imperial de removê-lo da
Armênia para alguma localidade mais remota, como de fato ocorreu
um pouco depois.67

64  KELLY, J. N. D. Op.cit., p. 278


65  Soz. Hist. Eccl., VIII, 28.
66  Pal. Dial., 4.
67  De Cucuso, na Armênia, João foi transferido para uma fortaleza em Pítio, na
margem oriental do Mar Negro, cerca de 1100 km de Constantinopla, frequentemen-
te assaltado pelas tribos vizinhas. É no decorrer do deslocamento para Pítio que João
vem a falecer, em 14 de setembro de 407.
Volume 1 293
Considerações finais

Ao investigarmos a turbulenta deposição de João Crisóstomo


tendo em vista a repercussão do episódio para a política eclesiástica do
período, é impossível ignorar os esforços de Inocêncio, não apenas no
sentido de garantir um julgamento justo para o acusado, o que decer-
to tranquilizaria os demais bispados do Oriente, então em litígio, mas
também no de reforçar a própria posição de liderança que os bispos
de Roma começavam a exercer. Cumpre observar que um dos aconte-
cimentos que acirraram as reivindicações de Roma acerca da sua pri-
mazia sobre as congregações cristãs foi a decisão tomada no concílio
de 381, quando Constantinopla foi proclamada a segunda sé em dig-
nidade no Império, o que lhe concedia uma precedência sobre as sés
apostólicas do Oriente, ou seja, Antioquia e Alexandria, com base em
critérios meramente políticos e não apostólicos. Em represália, Dâma-
so negou-se a aceitar as resoluções do Concílio, iniciando assim uma
atitude de aberta resistência contra o que considerava um perigoso
desvio diante da tradição.68 No ano anterior, o decreto Cunctos Popu-
los, proclamado por Graciano e Teodósio em 380, havia reafirmado a
importância dos ensinamentos de Pedro como paradigma para a Igre-
ja, o que levou Roma, muito oportunamente, a investir numa continui-
dade direta entre os seus bispos e o apóstolo como um contraponto
à autoridade de Constantinopla, em vias de consolidação. A disputa
por primazia, no entanto, não envolveu apenas o episcopado das duas
capitais. Pelo contrário, Alexandria, um bispado que durante décadas
manteve-se alinhado com Roma, começava, em finais do século IV, a
se opor igualmente à ascensão de Constantinopla, demonstrando uma
capacidade de ingerência nos assuntos eclesiásticos do Oriente que
não poderia deixar de suscitar apreensão. A deposição de João Cri-
sóstomo, da maneira como se deu, representou, no fim das contas,
um notável triunfo político de Teófilo de Alexandria, hábil o suficiente
não apenas para catalisar as forças hostis a João, mas também para
projetar a sua sé no contexto da geopolítica eclesiástica, o que decerto

68  COLLINS, R. Los guardianes de las llaves del cielo: una historia del papado. Ma-
drid: Ariel, 2009, p. 75.
294 Experiências Religiosas no Mundo Antigo 1
não poderia agradar Inocêncio, ele próprio empenhado em reforçar a
concepção segundo a qual os bispos de Roma, sendo sucessores dire-
tos de Pedro, detinham uma preeminência inconteste sobre as demais
igrejas, como vemos em suas epístolas, nas quais reitera a concepção
segundo a qual Roma era a líder da Igreja, tanto por delegação apostó-
lica quanto por decisão conciliar.69
Assumindo a defesa incondicional de João Crisóstomo, Ino-
cêncio tinha condições, em primeiro lugar, de resguardar o protagonis-
mo de Roma como árbitra nas disputas intra ecclesiam às expensas de
Constantinopla, forçada a reconhecer, de uma maneira ou de outra, tal
situação. Em segundo lugar, de confrontar Alexandria, desautorizando
qualquer intervenção dos seus bispos além dos limites do território
africano. É digno de nota o fato de que, mesmo diante do desapare-
cimento precoce de João Crisóstomo e de Arcádio, falecidos em 407 e
408, respectivamente, Inocêncio tenha continuado a sustentar a causa
do bispo deposto, colocando-se assim em oposição não apenas a Te-
ófilo de Alexandria, mas também a Porfírio de Antioquia e a Ático de
Constantinopla, os líderes das três principais sés do Oriente, que man-
tinham-se hostis aos joanitas e, por extensão, ao bispado de Roma.
Pouco a pouco, no entanto, Inocêncio consegue impor o seu ponto
de vista, a começar por Antioquia, onde, em 413, Alexandre é eleito
como sucessor de Porfírio. Em troca da suspensão do apoio de Roma
aos últimos partidários de Eustácio e de Paulino na cidade, Alexandre
concorda em introduzir o nome de João Crisóstomo nos dípticos da
liturgia que celebravam a memória dos santos com os quais sua igre-
ja se encontrava em comunhão. Em seguida, num hábil movimento,
Inocêncio ratifica a precedência de Antioquia sobre as igrejas integran-
tes da diocese do Oriente, declarando que nenhum bispo poderia ser
eleito sem a anuência do bispo de Antioquia, que compartilhava da
autoridade de Pedro e cuja jurisdição extraprovincial havia sido reco-
nhecida pelo Concílio de Niceia. No que se refere a Constantinopla,
Inocêncio realiza gestões com a finalidade de pressionar Ático a seguir
o exemplo de Alexandre, incluindo o nome de João nos dípticos da sua
igreja.70 Por mais que acreditemos no senso de justiça de Inocêncio e

69  QUASTEN, J. Patrology. Notre Dame: Christina Classics, 1986, p. 584.


70  CHADWICK, H. The Church in ancient society. Oxford: Oxford University Press,
2001, p. 502 e ss.
Volume 1 295
no seu apego às normas conciliares, é inegável que sua disposição em
defender a causa de João Crisóstomo contra as principais lideranças
eclesiásticas do Oriente constituiu ao mesmo tempo uma importante
bandeira em defesa da supremacia romana. Por fim, é impossível não
vislumbrar certa ironia subjacente a todo o episódio, pois João Crisós-
tomo, ao pretender reforçar, por meio das suas reformas, a autoridade
do episcopado de Constantinopla, terminou por fornecer a Inocêncio
uma excelente oportunidade para confrontar as igrejas do Oriente.

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