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escamandro
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“A descida de Inana ao mundo dos mortos” | escamandro https://escamandro.wordpress.com/2015/04/06/a-descida-de-inana-ao...
(h ps://escamandro.files.wordpress.com/2015/03/british_museum_queen_of_the_night.jpg)
Relevo mesopotâmio em terracota,em exposição no British Museum conhecido como “Rainha da Noite”, que,
acredita-se, seria uma representação da deusa Inana/Ištar, ou, possivelmente, sua irmã Ereškigal
“A descida de Inana ao mundo dos mortos” é o principal texto por trás de um dos mitos mais
célebres do Oriente Médio: a narrativa de Tâmuz e Ištar. Como se sabe, Tâmuz era um deus da
vegetação, consorte da deusa do amor, do sexo, da fertilidade e da guerra, e a cada ano, ao chegar o
solstício de verão, quando ele morre e renasce, seus ritos envolveriam lamentos pela sua morte, e as
águas do rio Adônis (hoje chamado Ibrahim), no Líbano, próxima à cidade antiga de Biblos (hoje
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Jubayl), avermelhadas por causa da lama, seriam manchadas por seu sangue. Essa é a narrativa
padrão que temos e que, não por acaso, encontra ecos depois no mito grego de Vênus e Adônis
(segundo o qual, o deus seria partilhado, durante meses diferentes, por Vênus e por Prosérpina,
passando metade do ano no mundo dos vivos e metade no mundo dos mortos, segundo o ciclo das
estações), um mito muito possivelmente importado através dos fenícios, considerando como Adônis,
como o nome clássico do rio Ibrahim, é uma palavra de origem semítica, partilhando da mesma raiz
‘A-D-N que Adonai, com o sentido de “senhor”. Em todo caso, porém, se formos olhar bem o mapa
do Oriente Médio, podemos observar que a Mesopotâmia fica a alguns bons quilômetros de distância
de Biblos, e, uma vez que o mito de Tâmuz é originalmente sumério, observa-se que ele deve ter feito
uma bela viagem para sair das margens dos rios Tigre e Eufrates e chegar ao rio Adônis. Mas há mais
algumas coisas curiosas ainda em torno dessa história, que pretendo comentar aqui como introdução
para a minha tradução do poema.
Antes de mais nada, alguns detalhes sobre nomes: Tâmuz é o nome que chega a nós pelo viés
hebraico
()תמוז. Até hoje ele é o nome do mês do calendário judaico equivalente a junho/julho – pleno verão,
portanto – que os judeus derivaram a partir de um mês chamado Du’uzu do calendário babilônico,
que homenageava o deus. Como se sabe, porém, a língua falada na Babilônia, especialmente à época
do exílio dos judeus, não era o sumério, mas uma língua semítica, como o hebraico e o aramaico, que
era o acádio (em que foi escrita a versão mais completa que temos do Épico de Gilgámeš
(h ps://escamandro.wordpress.com/tag/gilgamesh/)), e Du’uzu seria um empréstimo de
Dumuzi/Dumuzid – do sumério significando “filho (dumu) legítimo (zid)”. Além de uma divindade,
Dumuzid também teria sido um rei do período pré-dinástico da Suméria, assim como Gilgámeš
(conhecido em sumério como Bilgameš). O nome Ištar é também um nome acádio, e, assim como
Vênus é um sincretismo feito pelos latinos com base na Afrodite grega, ela se baseia na deusa Inana
dos sumérios, que residia em Úruk e que também estava associada ao planeta que hoje chamamos
Vênus e que era conhecido entre os babilônios pelo nome Dilbat.
Dito isso, imagino que o mais surpreendente seja descobrir que o que parece ser um dos principais
elementos do mito à primeira vista (a morte e renascimento do deus), é, na verdade, um elemento
secundário que quase não aparece nas tabuletas que chegaram a nós. A situação é tão confusa que,
quando traduziram pela primeira vez a tabuleta contendo “A descida de Inana ao mundo dos
mortos”, o consenso inicial era que a deusa Inana estaria indo buscar o seu amado nos infernos, como
faz o Orfeu grego. Porém, muito pelo contrário, ocorre é que Inana estava na verdade indo ao
submundo por outros motivos – em sua maior parte desconhecidos, mas há autores que presumem
que fosse uma tentativa de ampliar sua esfera de influência – e que, ao fracassar em sua empreitada,
morrendo no caminho (por pouco não permanentemente), ela acaba era causando a morte do marido.
Para dar mais detalhes, o problema é que não é permitido a ninguém (nem mesmo a uma deusa
consideravelmente poderosa como Inana) voltar dos infernos, ou pelo menos não sem mandar
alguém no seu lugar – e esse alguém acaba sendo Dumuzid, por ele não ter chorado a morte dela.
Esse é o principal assunto do poema: a preparação de Inana para descer ao mundo dos mortos, sua
morte ao tentar sentar no trono de sua irmã, Ereškigal, rainha dos mortos, e seu renascimento com
Dumuzid sendo escolhido como substituto.
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(h ps://escamandro.files.wordpress.com/2015/03/estrela-
de-inana.jpg)
A estrela de Inana, um dos símbolos da deusa
de ciclos sazonais no mito, pelo qual ele viria a ser conhecido. Esse acordo está presente nos versos
404-410 da tabuleta, onde há menção a cada um passar uma metade do ano entre os mortos, mas,
diferente de outras obras literárias que tratam de deuses de vegetação e ciclos sazonais, como, por
exemplo, em grego, o “Hino Homérico a Deméter” (do século VII ou VI a.C.), a relação disso com o
revezamento dos deuses não está bem explícita, e o papel exato de Dumuzid, que a princípio era um
deus pastor, também fica obscuro.
Esse mesmo mito é recontado depois no poema em acádio “A descida de Ištar ao mundo dos
mortos”, uma releitura contendo menos da metade dos versos do original sumério, que encurta
consideravelmente a narrativa. “A descida de Ištar” também introduz alguns elementos importantes
para a caracterização dos deuses, um dos quais é o de que nele a morte de Ištar faz com que todo tipo
de fertilidade e desejo sexual cessem enquanto ela estiver no inferno, assim como, no mito grego, o
tempo que Perséfone/Prosérpina passa no Hades faz com que venha o inverno. Ao que tudo indica,
porém, há vários séculos que separam um poema do outro. “A descida de Ištar” foi escrito no
período neo-assírio (entre 911 e 612 a.C., aproximadamente), ao passo que o original sumério teria
algo entre sete e quatorze séculos a mais. E, falando em datas, como expõe Marie-Louise Thomsen
em The Sumerian Language, há três períodos de história da produção textual suméria: o período do
Antigo Sumério (2600 – 2200 a.C.), cujos textos são quase ilegíveis, porque o cuneiforme era usado
apenas como auxílio mnemônico (o que faz com que detalhes gramaticais sejam ausentes nesses
textos); o período Neossumério (2200-2000 a.C.), do qual faz parte a 3ª dinastia de Ur, que produziu
textos como “A canção de amor de Šu-sin” (h ps://escamandro.wordpress.com/2015/01/19/a-cancao-
de-amor-de-su-sin-um-poema-sumerio/) e os poemas de Enheduana
(h p://revistamododeusar.blogspot.com.br/2014/04/en-heduanna-2285-2250-ac.html); e, por fim, o
chamado Pós-sumério ou Paleobabilônico (2000 – 1600 a.C.), do qual datam a maioria dos textos do
corpus poético que temos à disposição. É por causa de elementos gramaticais que Thomsen identifica
que “A descida de Inana” só poderia ter sido escrito no período Paleobabilônico – e, de fato, é notável
como os textos dessa época são mais complexos do que os das épocas anteriores.
Considerando então os comentários do profeta bíblico Ezequiel (que viveu em torno do século VI
a.C.), condenando o culto idólatra a Tâmuz (Ez. 8:14-15), que já incorporava os elementos rituais de
lamento pelo deus morto, temos aí, entre os anos 2000/1600 e 600 a.C., uns bons mil anos para o culto
se disseminar e se desenvolver. Outra data importante é o ano de 1750 a.C., quando é instituído o
calendário babilônico, como uma tentativa de aperfeiçoar o calendário sumério (que era lunar e no
qual faltavam alguns dias para bater a contagem dos dias com a órbita da Terra), dividindo um ano
de 354 dias em 12 meses, começando a partir da primavera, com um 13º mês sendo eventualmente
decretado pelo rei para compensar as disparidades e corrigir o calendário. O fato de que Tâmuz
ganha um mês dedicado a ele – e justo o mês em que se passariam os ritos relacionados ao lamento
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por sua morte – parece significativo, portanto, visto que outros deuses importantes do panteão
babilônico – como Ánu, Ea, Sin, Šámaš e Ištar – também têm um mês dedicado a cada um.
(h ps://escamandro.files.wordpress.com/2015/03/inanna-dumuzi.jpg)
Inana e Dumuzid
A coisa toda fica ainda mais complicada quando lembramos que existia um outro deus, chamado
Damu, que também morre e renasce e que, diferente de Dumuzid, que era um pastor, seria um deus
da vegetação propriamente. Ele é mencionado no poema “Jornada de Niĝišzida ao mundo dos
mortos” (h p://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.7.3#), que, ao que parece, a julgar pela
complexidade do texto, deve datar do mesmo período que “A descida de Inana”. Segundo diversos
autores, Damu e Dumuzid poderiam ser identificados um com o outro, de modo a representar
diferentes aspectos – opostos-complementares, inclusive, vide a relação Caim e Abel, que parece
encarnada de forma mais harmônica em Damu/Dumuzid – de uma mesma divindade. Enfim, é
provavelmente impossível dizer como o mito de Inana e Dumuzid se desenvolveu até assumir a
forma que viria a ser associada ao culto de Tâmuz. Fora “A descida” e os poemas em torno de sua
narrativa, há 33 outros poemas sobreviventes sobre o casal, em estados diversos de conservação,
tematizando o amor ou os jogos de sedução entre os dois deuses. Um deles (4.08.16 no ETCSL, o
balbale a Inana (Dumuzid-Inana P), acessível clicando aqui (h p://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin
/etcsl.cgi?text=t.4.08.16#)), aliás, é particularmente digno de nota, ao representar um diálogo bastante
pitoresco em que a deusa descreve seu sexo como um “campo úmido e bem regado”, pedindo para
que Dumuzid venha lavrá-lo. Por isso é estranho que, com tantos poemas (e tão variados), nenhum
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deles que tenha sobrevivido trate mais longamente do trecho final do mito. Pode parecer um pouco
obsessivo de minha parte (e, de fato, é), mas, para traçarmos uma comparação, o que acontece com o
culto de Tâmuz/Dumuzid parece ser mais ou menos como se Jesus viesse a ser conhecido não pelo
episódio da sua morte na cruz e ressurreição, descritos em todos os quatro evangelhos, mas pelo
milagre mais obscuro da moeda na boca de um peixe para pagar o imposto do templo (Mateus
17:24-27) e se tornasse então o deus do pagamento de imposto. De quebra ainda, “A descida de
Inana” termina com um verso dedicado não a Inana, heroína do poema, ou a Dumuzid, sua vítima,
ou mesmo Ĝeštinana, por ter se sacrificado pelo irmão, mas a Ereškigal, que é quase a vilã da
história: “Divina Ereškigal / doce é louvar-te”. Pois é.
Agora, sobre o poema em si: a história que ele narra, como é comum entre poemas de mitos, é
bastante esquemática e apresentada segundo as convenções que parecem típicas da literatura
suméria, como as fórmulas e repetições. Ele começa dizendo:
…onde se observa a mesma estrutura dos versos que abrem “O sonho de Dumuzid”:
O primeiro verso anuncia o mote dos poemas (Inana, que rege os céus, se interessa pela terra,
Dumuzid sai perturbado porque teve um sonho profético sobre sua morte), mas sem anunciar quem
é o seu protagonista. O segundo alude ao protagonista por um título (diĝir, “divindade”, e ĝereš,
“jovem”) e só no terceiro vemos o seu nome completo.
Depois desses versos de abertura, temos uma sequência enumerando todos os locais com templos
dedicados à deusa onde ela abandonou o ofício divino para seguir ao mundo dos mortos, que optei
por traduzir como “abismo” para manter algo do tom topológico da palavra kur, que em sumério
também quer dizer “montanha”, além de “inferno”. Inana se prepara, então, e para isso prepara os
sete me para acompanhá-la. Um me é um decreto universal de autoridade divina e é parte da
concepção de mundo dos mesopotâmios, que é distribuído aos deuses pelo Pai Enki no poema “Enki
e a Ordem do Mundo” (h p://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.1.3#). Aqui, porém, eles
assumem a forma de peças de roupa, com as quais Inana se veste. A palavra é mencionada também
em outros momentos do poema, como quando Enlil e Nana afirmam que “os me do abismo não são
me que se deseje”. Na tradução, para tentar captar esse sentido e evitar salpicar o poema de palavras
sem tradução, optei por verter consistentemente a palavra me por “dom”/”dons”, que, acredito, capta
algo dessa conotação religiosa do termo.
Na sequência, Inana se vira para Ninšubur, sua sukkal (algo como “cortesã”, “mensageira”), e lhe dá
as instruções para o que ela deve fazer em sua ausência. Primeiro temos os atos de luto, depois o
pedido de que Ninšubur visite Enlil, um dos deuses supremos, e Nana, deus da lua, pai de Inana e de
seu irmão Utu, deus do sol (Šámaš em acádio), e, caso eles não possam ajudar, por fim, Enki, que
conhece a erva da vida e a água da vida e poderá trazer Inana do mundo dos mortos, caso ela não
retorne. Dito isso, ela parte e vem bater na porta de Ganzir, o palácio do mundo dos mortos, sendo
atendida pelo porteiro Neti. Ela diz que vem visitar Ereškigal, sua irmã, que está de luto pela morte
de seu marido Gugalana – literalmente “Grande Touro do Céu”. No Épico de Gilgámeš, como vimos
na tábua 6 na tradução de Jacyntho Lins Brandão (clique aqui (h ps://escamandro.wordpress.com
/2015/03/30/sin-leqi-unnini-ele-o-abismo-viu-serie-de-gilgamesh-tabuinha-6-traducao-de-jacyntho-
lins-brandao/)), Gugalana tem um papel importante, pois Ištar, após ser recusada pelo herói por
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(h ps://escamandro.files.wordpress.com/2015/03/enki.jpg)
Enki, deus da criação, da sabedoria, da água e do logro
causa do que aconteceu com Dumuzid e a outros heróis, pede a Ánu para que solte a imensa besta
para vingá-la, mas o animal é morto por Gilgámeš e seu parceiro Enkídu. O Épico de Gilgámeš, porém,
é um poema acádio, organizado primeiramente no período Paleobabilônico a partir de tabuletas
anteriores individuais, que não formavam um todo coeso, mas um ciclo de episódios em torno do
herói sumério, só depois ainda (1200 a.C.) assumindo a forma que conhecemos como definitiva. Na
tabuleta original que trata do episódio de Gugalana (h p://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin
/etcsl.cgi?text=t.1.8.1.2#), Inana está furiosa com Gilgámeš, mas o motivo é desconhecido e pode ter se
perdido nas avarias sofridas pela argila. Em todo caso, não parece haver menção a Dumuzid – o que
criaria um paradoxo curioso, pois Dumuzid morre porque Inana desce aos infernos, mas Inana só
desce aos infernos após a morte de Gugalana, morto por Gilgámeš após Inana soltá-lo, porque
Gilgámeš a recusou por não querer que lhe acontecesse… o que aconteceu (aliás, acontecerá!) com
Dumuzid, amante de Inana!
Mas estou digredindo… em todo caso, Gugalana é só a desculpa dada por Inana, e uma desculpa que
Ereškigal não engole. Suspeitando da irmã, ela manda Neti preparar sete portões, com cada um só se
abrindo para ela após ela se despir de uma de suas sete peças de roupa (seus me, portanto). Passados
todos os portões, ela chega aos infernos nua – e, mais do que isso, desprotegida. Ao tentar sentar-se
sobre o trono de sua irmã, porém, Inana é julgada pelos juízes infernais, os Anuna, ou Anunaki
(como os 3 juízes do Hades grego, só que 7 em vez de 3), e se transforma imediatamente num
cadáver, pendurado num gancho.
Enquanto isso, Ninšubur suspeita que algo tenha dado errado e vai consultar os deuses. O único que
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a ajuda, como esperado, é Enki, criando da terra debaixo das suas unhas duas criaturas, que manda
atrás de Inana, chamadas gala-tura e kur-ĝara, levando a erva da vida e a água da vida até ela. Os dois
nomes são termos também para tipos de sacerdotes que aparentemente deviam cantar e dançar
durante os ritos religiosos sumérios. De novo, para evitar cobrir o poema de termos não traduzidos,
eu decidi arriscar uma tradução (meio à moda de Haroldo de Campos, quando verte o nome Qohélet,
o Eclesiastes, como O-que-sabe (h ps://escamandro.wordpress.com/2013/09/26/qohelet-o-que-sabe/))
para eles, de modo que gala-tura se tornou “chora-miúdo” (gala é um tipo de sacerdote de
lamentações, tur é pequeno) e kur-ĝara, “deita-abismo” (kur, como dito, é a palavra para “montanha”
ou “abismo”, ĝar é mais ou menos o verbo “pôr”, presente em outros verbos compostos como a ĝar,
“irrigar” (literalmente pôr água), igi ĝar (deitar os olhos), etc).
O plano de Enki dá certo, mas Inana descobre que não poderá fugir assim tão fácil do submundo e
que precisa escolher alguém para morrer em seu lugar. Ela é escoltada por um bando de demônios
chamados gala, e eles primeiro querem levar Ninšubur, mas Inana não deixa, porque ela cumpriu
suas instruções e seria desleal recompensá-la assim. Depois eles se voltam para Šara e Lulal, mas ela
também não quer que eles os levem. Por fim, eles flagram Dumuzid que não só não estava de luto
como ainda parecia estar aproveitando que Inana tinha morrido. Dumuzid faz uma prece a Utu para
que o transforme numa cobra e possa fugir, e o deus o concede, mas mesmo assim ele acaba
capturado (esse trecho está descrito com mais detalhes no poema “O sonho de Dumuzid”). E então o
restante da tabuleta está danificado demais para podermos entender direito o que se passa. Vemos
que Inana chora a morte do marido, depois conta com a ajuda de uma mosca para reencontrá-lo.
Então tem o acordo e o verso final de louvor a Ereškigal. E isso é uma das coisas frustrantes de se
trabalhar com poemas dessa época.
A disparidade entre o que se sabe do culto de Tâmuz e a matéria do poema faz com que ele seja um
tanto complicado de interpretar. Há algumas leituras junguianas do mito que o interpretam como
aquela coisa de morte e renascimento pessoais (simbolizados pela passagem no inferno) e a
necessidade de desapego do passado (simbolizada pelo despir-se da deusa), mas essa leitura
beirando a auto-ajuda não parece se sustentar diante do texto em si, além de ser problemática por
projetar como o “verdadeiro” sentido “por trás” do mito uma mensagem que é essencialmente
burguesa, no sentido de que só é possível numa sociedade individualista (que não era o caso dos
sumérios). Em vez disso, eu arriscaria dizer, parece que o foco principal do poema é a morte. Antes
de partir, Inana explica a Ninšubur os atos adequados do luto (vestir-se como “alguém que nada
possui”, carpir-se, bater tambor) e, quando conversa com Neti, comenta os ritos fúnebres de
Ereškigal em honra a Gugalana. Quando ela retorna do inferno, consegue impedir que aqueles que
estão de luto por ela sejam afligidos pelos demônios, mas não Dumuzid, que não respeitou esses ritos
sagrados. As coisas que são levadas a ela para trazê-la de volta à vida são uma comida e água, duas
coisas completamente ausentes na concepção suméria de inferno (os mortos só recebem o que comer
e beber através das oferendas fúnebres). Até a presença da mosca parece simbólica nesse sentido, por
ser um inseto ligado à morte e à putrefação. E, de quebra, podemos enxergar no poema um eco,
séculos antes, da noção que virá a aparecer na Eneida (livro VI, v. 126-30) de Virgílio, na boca da
Sibila que fala com Eneias, de que ir ao mundo dos mortos é fácil, difícil é sair (e ninguém melhor
que Inana aqui para expor isso). O verso final de louvor a Ereškigal também parece corroborar essa
possibilidade de leitura.
A minha tradução, como na outra vez com “A canção de amor de Šu-Sin”, se orienta na tradução
disponível no Electronic Text Corpus of Sumerian Literature (clique aqui (h p://etcsl.orinst.ox.ac.uk
/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.4.1#)), mas, com o que eu pude aprender até agora de vocabulário e
gramática do sumério, prestando atenção no original, também disponível no site, de modo a atentar
para a estrutura dos versos e as possíveis nuances das palavras. Porque o final do poema está
bastante danificado, eu pulei as partes que seriam difíceis de traduzir de modo satisfatório (as
lacunas estão marcadas com (…)), dado o grau de ilegilibilade dos fragmentos, mas o restante está
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Adriano Scandolara
(h ps://escamandro.files.wordpress.com/2015/03/inana.jpg)
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E Inana levantará”.
(…)
Pelas palavras de Enki, Inana voltava do abismo,
Inana voltava do abismo,
quando os Anuna a detêm:
“Quem já voltou do abismo? voltou vivo do abismo?
se Inana quer voltar do abismo,
que outra cabeça seja dada pela sua”.
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Em Šeg-kuršaga, em Umma,
Šara, em sua cidade, cai aos pés dela:
vestia andrajos, sentava no pó.
Os demônios dizem à divina Inana:
“Vai para tua cidade, nós o levaremos”.
E-muškalama, em Bad-tibira,
Lulal, em sua cidade, cai aos pés dela:
vestia andrajos, sentava no pó.
Os demônios dizem à divina Inana:
“Vai para tua cidade, nós o levaremos”.
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Eles seguiram seus passos até as campinas de Kulaba, onde brota a macieira.
Lá Dumuzid ostentava vestes majestosas, sentado majestoso sobre o trono.
Os demônios o agarram pelas coxas,
os 7 despejam seu leite do manteigueiro,
(…)
(…)
Divina Ereškigal,
doce é louvar-te.
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