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BAURU/SP
2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
LINHA DE PESQUISA: PRODUÇÃO DE SENTIDO
BAURU/SP
2019
Antônio, Guilherme Henrique Gooda.
Uma Jornada em Quadrinhos: comparação entre as
adaptações chinesa e italiana de Jornada ao Oeste /
Guilherme Henrique Gooda Antonio, 2019
138 p.: il.
Banca Examinadora:
À Deus por renovar diariamente suas misericórdias sobre nós, e nos abençoar com saúde e
esperança.
Aos meus pais Afonso e Jane pelo apoio e incentivo que serviram de alicerce para as minhas
realizações.
À minha querida esposa Lígia pelo seu amor incondicional e por compreender minha dedicação
ao projeto de pesquisa.
Ao meu irmão Eduardo pelo companheirismo e atenção dedicada quando sempre precisei.
Ao meu professor orientador Marcelo Bulhões pelas valiosas contribuições dadas durante todo o
processo e por me apresentar o mundo dos quadrinhos e das adaptações, norteando um caminho
que eu pretendo seguir.
Aos membros da banca examinadora que contribuíram para a execução desta dissertação.
A todos os meus amigos do curso de graduação que compartilharam dos inúmeros desafios que
enfrentamos.
Também quero agradecer à UNESP e o seu corpo docente, que me adotou como filho desta casa e
que demonstrou estar comprometida com a qualidade e excelência do ensino.
ANTONIO, G. H. G. Uma Jornada em Quadrinhos: comparação entre as adaptações
chinesa e italiana de Jornada ao Oeste. 2019. Dissertação (Mestrado Acadêmico em
Comunicação) – FAAC – UNESP, sob orientação do Prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões.
Bauru, 2019.
RESUMO
ABSTRACT
The end of the 20th century brought deep political and social discussions that were embodied by
the media productions. Among those medium, comics started to point out as a political tool both
in Italy and China, those production evolved together with the technology. The present work aims
to point, through a comparative analysis, how the worldview acts in the adaptation process. Taking
the 16th century literary work Journey to the West, Chinese and Italians created distinct adaptations
among all aspects: Journey to West in Comics, the chinese adaptation from 1962 and the italian
production Lo Scimmiotto from 1976. Both comics have shown us how the symbolic system in
comic books were molded by artists, who interpreted and resignified a cultural collection of
symbols creating a coherent work. By tracing those comparative elements and present them each
comic strip at a time, we argue that although the original plot remains, there is an hypertext that
can only be accessed by knowing the social, cultural and historical context. The hypertext is
directly linked to the cosmovision and to the remnants of images as discussed previously by
Warburg and Panofsky. Lastly the work discuss how comic books as a media offer itself to this
kind of artistic expression as any due to his unique language.
Resumo ...........................................................................................................................................4
Abstract ..........................................................................................................................................5
Lista de Figuras......……………………………………………………………………................6
1. Introdução ..................................................................................................................................8
1.1. Pesquisas em quadrinhos...........................................................................................................8
1.2. A linguagem............................................................................................................................11
1.3. Caminho bifurcado…………………………………………………………………..............13
5. Conclusões ................................................................................................................................96
6. Referências Bibliográficas ......................................................................................................99
7. Anexo e Notas................................................…………………………………………..........101
11
1. Introdução
(...)talvez por ser a nossa uma cultura fundamentalmente verbal, herdada dos franceses,
nossos modelos. O importante foi sempre a palavra, falada e escrita. In princípio erat
Verbum, dogmatizara a Bíblia. Apesar de todos os incômodos, a imagem ainda se prostra
aos pés da palavra, servindo-lhe de estribo, simples ilustração. Com mais razão, se pode
dizer que esse é o destino do desenho. Designium, desígnio, de-signo, aquilo que vai ser,
rascunho da arte maior, foi também o estigma dos quadrinhos: “Coisa pra crianças, se diz
ainda com desdém (CAGNIN, 1975, p.12)
1
Muito já se discutiu sobre a utilização dos termos: história em quadrinhos (hq), Graphic Novels ou arte sequencial.
Tal diferença se dá basicamente pela complexidade da narrativa e pelo fato da história ser fechada ou não, como
definida por Will Eisner. Nesta dissertação, decidiu-se pelo termo “quadrinhos”, por ser mais abrangente,
incorporando tanto graphic novels, como mangás ou tirinhas.
Quadrinistas vêm atacando questões sociais importantes e, apesar de hoje gozarem de
status de “serious art” os quadrinhos sempre mantiveram, por outro lado, uma reputação de
vanguarda.
Groensteen localiza na década de 1960 a mudança de posicionamento dos intelectuais em
relação às histórias em quadrinhos. Atribuiu-se tal mudança ao fato das artes plásticas começarem
a utilizar recursos das histórias em quadrinhos – Andy Warhol aparecerá aqui como grande difusor
desta prática. Outros respeitados nomes do mundo artístico como Orson Welles, Frederico Fellini
e Luiz Buñuel, e o mundo acadêmico, passaram a dar atenção e crédito às histórias em quadrinhos,
com alguns pesquisadores europeus ousando utilizá-los como objeto de pesquisa, principalmente
nas áreas de linguística e semiologia.
O Brasil tem um histórico no desenvolvimento de pesquisa e trabalhos acadêmicos sobre
histórias em quadrinho se concentrando na área de Comunicação midiática, mas existem trabalhos
investigativos também nas áreas de Letras, Psicologia, História e Sociologia, visto que as histórias
em quadrinho demonstram uma importante forma de expressão cultural e artística carregada de
múltiplas significações. Também traduzem em palavras e imagens a Weltanschauung – a
mundividência de toda uma sociedade.
Um quadrinho requer um salto de fé do leitor cada vez que ele muda de painel.
Mudamos e precisamos absorvê-lo antes mesmo de entendermos sua completa
ligação com o quadro anterior. Só então, somos capazes de relacioná-lo com o
restante da narrativa. Imagem, Palavra, então Conexão. Isto dá ao autor uma
oportunidade impar: inserir imagens e palavras na cabeça do leitor antes mesmo
que ele tenha o contexto dessa informação. Este é o tremendo poder por trás da
habilidade dos quadrinhos de gerar iconografia cultural – criar mitologia moderna.
(LEWIS e KRAEMER, 2010, p. 16, tradução nossa)2
Com a importação dos primeiros quadrinhos americanos para o Brasil, surgiu já em 1951
um grupo de pesquisadores, guiados por Álvaro de Moya, que organizou a I Exposição
Internacional de Histórias em Quadrinhos, na cidade de São Paulo. Álvaro de Moya dedicou-se a
produção em arte sequencial de forma sistemática, produzindo muitos livros e diversos materiais
a respeito das diversas facetas do tema.
2
a comic requires a leap of faith from its readers every time they move from one panel to the next. We move to the
next panel and must absorb it before we even understand its connection to the panel before. Only then are we able to
relate it to the narrative of which it is a component part. Picture, word, then connection.This gives the author an
amazing opportunity: to instill word and image into a reader’s mind before the reader has a context for this information.
This is the tremendous power behind comics’ ability to generate cultural iconography — to create modern mythology.
Na década de 1960, a revista Cultura Vozes, do Rio de Janeiro voltou sua atenção para as
histórias em quadrinhos, tendo como integrante da equipe Moacy Cirne, um dos mais sérios
pesquisadores desta área. Nas ciências da comunicação, a pesquisa acontecia em diversas
Universidades ou instituições isoladas – destaco a Universidade de São Paulo e a Federal
Fluminense -, como também outras associações científicas como a INTERCOM – Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares de comunicação, criando na década de 1990 o GT (grupo
de trabalho) Humor e Quadrinhos, denominado posteriormente Núcleo de Pesquisa de História em
Quadrinhos.
Com discussões já avançadas sobre os quadrinhos no campo da Comunicação, cria-se na
Universidade de Brasília uma disciplina sobre esse assunto, no curso de graduação de
comunicação. Simultaneamente cresce a pesquisa nessa área e destaca-se o Centro de Pesquisa da
Comunicação Social da Faculdade de Jornalismo Casper Líbero, com coordenação do professor
José Marques de Melo.
Na Universidade de São Paulo, a Escola de Comunicações e Artes tem o mérito de manter
um esforço de pesquisa duradouro às histórias em quadrinhos, tornando-se posteriormente ponto
de referência nacional para as pesquisas relativas a essa forma de arte. No início dos anos 1990,
foi criado o Núcleo de Pesquisas em História em Quadrinhos, como propostas da professora Dr.
Sônia Bibe Luyten, que se dedicou a quadrinhos produzidos no oriente, principalmente às formas
produzidas no Japão, como o mangá.
Várias tendências de pesquisas foram observadas nos recentes trabalhos: alguns
preocupados com as particularidades da linguagem, outros preocupados com o conteúdo, outros,
ainda, buscando nos quadrinhos um reflexo da sociedade. Por que então insistir na pesquisa nesta
área? Primeiramente por se tratar de uma produção artístico-cultural que envolve uma narrativa
própria da cultura contemporânea. Assim, as produções culturais, sejam elas audiovisuais,
literárias, performáticas ou plásticas, bem como seus derivados (mitologias e miscelâneas
diversas), tornam-se objeto de interesse de pesquisa em seu sentido lato, isto é, dentro do espectro
da chamada “cultura pop” ou “cultura de massas”.
Embora existam trabalhos que procuram observar a sociedade e o mundo pela ótica dos
quadrinhos, buscando seus paralelismos e contradições, estes trabalhos focam prioritariamente nas
produções ocidentais (os quadrinhos de heróis, as narrativas policiais, dentre outros). Crescem no
Brasil, de todo modo, as pesquisas sobre os mangás japoneses e outros estilos vindos do oriente,
impulsionados em grande parte pelas produções de Luyten, e por uma nova geração de
pesquisadores que cresceu em contato com esses estilos.
1.2. A linguagem
Os quadrinhos, em todas as suas vertentes, conseguem capturar a imaginação e o interesse
dos mais variados públicos. A combinação da mídia visual - como pinturas, desenhos, caricaturas,
etc - com a palavra escrita permitiu que os quadrinhos alcançem desde crianças que serão
alfabetizadas por essa mídia como adultos que se enveredam nas leituras de graphics novels.
Compreender um quadrinho nos parece um exercício cultural tão instigante quanto compreender
nossa linguagem. De fato, como argumenta Will Eisner, os quadrinhos têm uma linguagem
própria, que não difere da língua materna do leitor, levando-o a uma compreensão sem que seja
necessário um grande esforço.
3
Comics communicate in a language that relies on a visual experience common to both creator and reader. Modern
readers can be expected to have an easy understanding of the image-word mix and the traditional deciphering of text.
desenho sem nenhum esforço e compreender a linguagem utilizada nos diálogos, narrações e
outros auxílios textuais, porém é exigido que ele necessariamente conheça e seja “treinado” em
linguagem convencional, para que consiga entender as relações entre os símbolos e as estruturas
textuais utilizadas na confecção de uma obra. Assim, cada painel de um quadrinho inclui todas as
operações sintáticas requeridas para o funcionamento de uma língua.
A noção de que os quadrinhos compõem uma linguagem própria e independente é melhor
desenvolvida por Scott McCloud a partir de sua redefinição do termo. O autor afirma que:
Uma inspeção mais acurada da definição acima os leva a pensar que as palavras em sua
forma convencional são meramente imagens pictóricas justapostas em uma sequência deliberada
com a intenção de transmitir um conteúdo. O fator em comum entre os quadrinhos e as palavras
abrem uma nova perspectiva para as mídias visuais e os ícones.
A representação dos ícones confere a cada objeto uma subjetividade representada que
coloca autor e leitor face a face. Como resultado, ler ou produzir quadrinhos equivale a percebê-
los internamente.
O leitor compreende a mídia visual comparando os elementos simbólicos com a realidade
empírica e com suas próprias experiências de vida. A representatividade das imagens ou dos ícones
permite ao leitor perceber a imagem no âmbito de sua apreensão do mundo, criando um elo entre
o leitor e a própria imagem. O desenho em quadrinhos, nesse sentido, fala para cada indivíduo de
forma diferente.
Os quadrinhos têm raízes profundas no campo visual. Cada aspecto e cada elemento do
quadrinho operam para aprimorar a compreensão visual do leitor. Existe nos quadrinhos um
constituinte imutável e incontroverso que não apenas os torna o que eles são, mas os capacita a
“falar uma língua”. Esta linguagem, embora incorporada no visível, dá origem a sensações e
compreensões do invisível. Ela evoca respostas sinestésicas nos leitores que permitem, através de
sua cosmovisão e percepção comum, envolver-se com experiências quase sublimes. Consistindo
4
[...] comics are juxtaposed pictorial and other images in deliberate sequence, intended to convey information and
or to produce an aesthetic response in the viewer.
de estrutura quase semelhante à de qualquer outra língua através de seus textos, gráficos, desenhos,
esquemas temporais e assim por diante, a linguagem da revista em quadrinhos constitui
praticamente uma mídia única em si mesma.
1.3. Caminho Bifurcado
Pensando que os quadrinhos contam com a cosmovisão do leitor e do autor para criar
imagens e ícones diversos e passíveis de interpretação, é vital traçarmos uma linha entre os
caminhos que as produções artísticas (principalmente as artes visuais) tomaram na China. Ao
analisarmos uma obra chinesa e outra italiana tomamos dois pontos de vistas distintos: tanto na
sua forma (seu cânone artístico), quando em seu conteúdo (suas narrativas, mitologias e valores)
Com Robert Stam (2008), em um trecho em que o autor discute variadas representações
estéticas temos a seguinte afirmação:
Trataremos de um objeto misto, uma adaptação de uma obra literária para uma
mídia em arte sequencial. Não convém, principalmente após os estudos de Scott McCloud (1993)
pensar o quadrinho como dois sistemas simbólicos distintos sendo um deles o texto propriamente
dito (os diálogos e as marcações do “narrador”) e outro as imagens (os símbolos e as composições
dos quadros). Pensaremos na produção em quadrinho como detentora de uma linguagem própria,
norteada pelo sentido da visão, expressa em sintagmas e paradigmas que lhe são bastante
peculiares, mas que dialogam também com outras mídias, como a literatura e o cinema.
Antes mesmo de tratarmos do referencial teórico, é necessário estabelecermos alguns
prolegômenos que balizam uma análise desta natureza. O primeiro deles é afirmar a
indissolubilidade da forma e do conteúdo. Tratando-se, porém, de uma análise é perfeitamente
possível distinguir as duas faces: uma que aparece disposta graficamente como objeto (a forma) e
outra que lhe está implícita (o conteúdo). Desde Ferdinand Saussure receberam as denominações
de significado e significante.
Segundo, sabemos que existe certa hierarquia dos elementos simbólicos que nos
quadrinhos aparecem nas imagens, nos balões de fala, no texto, no background etc. Cada um desses
elementos interage com os outros a fim de criar um sentido que possa ser apreendido pelo leitor.
Terceiro, o quadrinho trabalha com uma interpretação em dois níveis: denotativo e conotativo. O
nível denotativo trata do significado aparente da narrativa, enquanto o conotativo trata de seu
significado implícito, mas que se faz ser achado através do emaranhado de elementos visíveis
significativos. A permanência de certos padrões conotativos denuncia certos modos de ver o
mundo, certos valores, ideias fixas e moldes mentais, constituindo quase uma constante filosófica
- uma forma de interpretar o mundo, uma cosmovisão.
Por fim, ao investigar uma obra é necessário reconhecer que o analista carrega uma gama
de ideias feitas, ou ao menos algumas informações provenientes de leituras anteriores, de sua
cultura geral, etc. Assim, a isenção plena é utópica. Existe, porém, uma tentativa de ser tão
“objetivo” quanto possível, colocando o texto antes das racionalizações, ideologias e tendências.
Assim, nossa análise se sustenta sobre um tripé teórico. A primeira perna refere-se à cosmovisão-
termo bastante utilizado na filosofia e nas discussões sobre produção de conteúdo e estética; a
segunda sobre a adaptação de obras de uma mídia para outra, tratada aqui como tradução
intersemiótica; e por último os estudos de iconologia de Warburg e Panofsky, que discutem a
sobrevivências e a transmissão de narrativas através de imagens.
5
James H. Olthuis – Professor e pesquisador no campo das ciências sociais, ph.D. em ética filosófica pela Vrije
Universiteit Amsterdam, publicando estudos sobre ética, hermenêutica e filosofia das religiões.
Nossa noção de cosmovisão é marcada historicamente pelo conceito alemão de
Weltanschauung, que vem sendo empregado desde o século XVIII.
Em seu livro Cosmovisão: a história de um conceito (2017), David Naugle faz uma análise
diacrônica do termo passeando pelo trabalho de importantes filósofos que moldaram o pensamento
ocidental.
A palavra alemã Weltanschauung alcançou status de “celebridade acadêmica” na segunda
metade do século XIX, tornando-se extremamente comum em obras literárias que lidavam com
questões de filosofia ou de religião, chegando ao ponto de se haver tornado, em certo sentido,
indispensável. Com seu auge de popularidade, tanto do discurso acadêmico como no discurso
comum já na virada do século XX, autores começaram a teorizar sobre o conceito e traçar sua
história através da filosofia.
Em ordem cronológica, um dos primeiros estudos sobre o Weltanschauung é encontrado
nas observâncias de Albert Gombert (1902 e 1907)6. Alfred Götze em 19247, escreve o ensaio
Euphorion-Artikel, no qual aprofunda a discussão sobre o tema.
Notável ainda é a tese de doutoramento escrita por Helmut G. Meier em 1967 8:
“Worldview: Studies towards a History and Theory of the Concept”. Tal obra é um tratamento
exaustivo da história do conceito de Weltanschauung. Meier inicia com uma investigação dos
problemas teóricos associados à disciplina. Depois nos apresenta um olhar sobre o uso do conceito
no contexto do romantismo e do idealismo alemães, focando nos usos de Kant e Hegel, apontando
o uso da palavra como pessoal e subjetivo, e, por fim, relaciona o termo Weltanschauung com
ideologia, passando a analisar o uso da palavra nas disciplinas de filosofia e religião.
Durante o século de Goethe, uma variedade de conceitos e palavras-chave que até hoje
utilizamos foram cunhados nos ambientes acadêmicos. Durante este período cultural fervilhante,
Naugle afirma que Immanuel Kant recebe um reconhecimento universal por ter cunhado o termo
Weltanschauung em sua obra Crítica da faculdade do Juízo publicado pela primeira vez em 1790.
6
Albert Gombert, “Besprechungen von R. M. Meyer`s Vierhundert Schlagworte”, Zeitschrift für deutsche
Wortforschung 3 (1902): 144-58; “Kleine Bemerkungen zur Wortgeschichte”, Zeitschrift für deutsche
Wortforschung 8 (1907): 121-40.
7
Alfred Götze, “Weltanschauung”, Euphorion: Zeitschrift für literature-geschichte 25 (1924)
8
Helmut G. Meier, “Weltanschauung: Studien zu einer Geschichte und Theorie des Begriffs” (tese de Ph. D.,
Westfälischen Wilhelms-Universität zu Münster, 1967.
Se a mente humana, no entanto, deve ser mesmo capaz de pensar o elemento
infinito sem contradição, deve ter dentro de si um poder que seja suprassensível,
cuja ideia do noumenon não possa ser instituída, mas ainda assim considerada
como o substrato que subjaz o que é mera aparência, isto é, nossa intuição do
mundo [Weltanschauung]. Porque somente através desse poder e sua ideia, numa
estima puramente intelectual de grandeza, é que nós compreendemos o infinito
mundo dos sentidos inteiramente sob um conceito, muito embora, numa
estimativa matemática de grandeza através de conceitos numéricos, nós jamais
possamos pensar nele em sua inteireza. (KANT apud NAUGLE, 2017, p.93) 9
No contexto desta citação, parece-nos que para Kant o termo Weltanschauung significava
simplesmente a percepção do mundo pelos sentidos, para se referir a uma “intuição de mundo no
sentido de contemplação do mundo dada aos sentidos”. A forte influência de Kant na filosofia fez
com que o termo fosse adotado por seus sucessores, sendo bem acolhido na vida intelectual
europeia e sobretudo alemã.
O pensamento e obra de George Wilhelm Friedrich Hegel coroam o período de
quatro décadas de realizações intelectuais (1780 – 1820). Logo no início de sua produção
acadêmica, Hegel demonstrou interesse pelo termo Weltanschauung, utilizando a palavra para
expressar uma importante ideia na estrutura do pensamento dialético. Hegel escreve:
A razão, portanto, une essa totalidade objetiva à totalidade subjetiva oposta para
formar uma intuição de mundo infinita [unendlichen Weltanschauung], cuja
expansão se contrai ao mesmo tempo na mais rica e mais simples identidade.
(HEGEL apud NAUGLE, 2017, p.106)10
9
Immanuel Kant, Critique of Judgment: including the First Introduction, tradução e introdução por Werner S.
Pluhar, com prefácio de Mary J. Gregor (Indianapolis: Hackett, 1987), p. 111-12.
10
G. W. F. Hegel, The difference between Fichte`s and Schelling`s System of Philosophy, trad. H. S. Harris e Walter
Cerf (Albany: State University of New York Press, 1977) p. 114.
num processo de relacionar o aspecto implícito da moralidade e o aspecto
explícito. Essa relação pressupõe haver a completa indiferença recíproca e
independência específica entre a natureza e os propósitos e atividades morais; (...)
A visão moral de mundo [Die moralische Weltanschauung], a atitude moral,
consiste no desenvolvimento dos momentos que se acham presentes nessa relação
de pressuposições inteiramente antitéticas e conflitantes. (HEGEL apud
NAUGLE, 2017, p.107)11
É, por fim, na Filosofia da História que Hegel sugere que as cosmovisões devem estar
incorporadas tanto na consciência individual como na consciência nacional, usando o termo para
se referir à cosmovisão de toda uma nação. Assim, é possível afirmar que em Hegel o conceito se
expande e torna-se uma visão compartilhada de determinada nação em uma época, adquirida por
uma pessoa pela participação nos tempos e na sociedade que ela forma com o seu semelhante.
Hegel ainda nos auxilia com sua perspectiva do termo, quando relaciona “cosmovisão e
arte”. A arte é invocada para representar a essência interior de um dado período, tendo a arte uma
vocação para exibir o espírito da época.
O frequente uso do termo na obra, contribuiu para a popularização do conceito na
comunidade acadêmica européia do século XIX – certamente devido à popularidade do trabalho
de Hegel, atingindo um grau de importância que não seria possível de outra forma. Na perspectiva
do autor, as cosmovisões são o fenômeno do Espírito Absoluto que em termos antropológicos, se
manifesta nos humores, percepções, atitudes e estruturas da realidade.
Com a popularização do termo na Europa, principalmente após o uso por Hegel, o termo
chegou rapidamente à região escandinava. Por volta de 1838, Kierkegaard abraçou o termo e
cunhou seu correspondente em dinamarquês empregando o já em sua primeira publicação. Embora
a palavra-cópia de Weltanschauung em dinamarquês seja verdensanskuelse, a palavra mais
utilizada por Kierkegaard é livsankuelse, traduzida por muitas vezes como “visão de vida”. O autor
muitas vezes utiliza as duas como sinônimos, podendo ser entendidos como uma visão profunda e
satisfatória da vida que o capacitaria a se tornar um ser humano total. Naugle explicaria a visão de
Kierkegaard fazendo um paralelo com a literatura:
11
Immanuel Kant, Critique of Judgment: including the First Introduction, tradução e introdução por Werner S.
Pluhar, com prefácio de Mary J. Gregor ( Indianapolis: Hackett, 1987), p. 111-12.
Uma visão de vida funciona na verdade como a providência no romance; ela é sua
unidade mais profunda, fazendo com que a novela tenha um centro de gravidade
em si. A visão de vida livra o romance de ser arbitrário ou sem propósito, já que
o propósito é apresentado em toda parte na obra de arte. (NAUGLE, 2017, p.
114)
Para Kierkegaard, uma visão de vida está ligada a questões hermenêuticas cruciais,
aparecendo e dando o tom para as artes, sejam literárias, visuais, audiovisuais, motoras, etc.
Em diferenciação de Hegel, o termo para Kierkegaard assume um caráter muito mais
existencialista do que abstrato, associando o termo às diversas esferas da vida (literatura,
paternidade, amizades, educação) e não somente às artes. Colocando a busca da visão de vida
como o cerne da filosofia.
Ao tratarmos de duas obras distintas que partem do mesmo material fonte em um intervalo
de tempo curto, poderíamos crer que as produções artísticas avaliadas nesta dissertação fossem
parelhas, porém cada uma das obras está em conformidade com uma cosmovisão bastante
divergente da outra. Enquanto a versão chinesa se apresenta de maneira predominantemente
denotativa e seu hipertexto também se alinha a visão original da obra (a introdução do budismo na
China), a obra italiana aparece de maneira bastante conotativa e cheia de simbolismos. Essas
conotações apontam para um hipertexto inédito (a jornada do comunismo chinês). Tais
apontamentos serão discutidos no capítulo de análise.
Definida a aplicação do termo cosmovisão, podemos partir deste conceito para traçar em
linhas gerais uma cosmovisão chinesa que permeia toda a produção artística anterior e durante o
governo Maoísta e as revoluções chinesas do século XX.
Nos parece pertinente considerar então a obra literária e suas adaptações para os
quadrinhos como obras artísticas distintas, sem a necessidade de se buscar uma semelhança entre
os elementos constituintes da adaptação:
Warburg substituiu o modelo ideal das “renascenças”, das “boas imitações” e das
“serenas belezas” antigas por um modelo fantasmal da história, no qual os tempos
já não se baseiam na transmissão acadêmica dos saberes, mas se exprimiam por
obsessões, “sobrevivências”, reminiscências, reaparições das formas. (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p.25)
Como todo apanhado histórico está sujeito a uma metodologia organizacional, uma
coletânea de história da arte se baseia pela normal estética, na qual se decide quais seriam os
“objetos valiosos” dignos de serem sistematizados e analisados, formando o que seria nas
palavras de Winckelmann “o belo ideal”. O grande entrave desta proposta dá-se ao fato de que
o “belo ideal” se refere somente à estética grega, reivindicando toda a história da arte a um gosto
pessoal.
Assim, as imagens seriam consideradas como aquilo que sobrevive de uma dinâmica de
“sedimentação antropológica”, tornadas parciais por terem sido em larga medida destruídas pelo
tempo histórico. A “imagem que sobrevive” (o Nachleben) é, em sua realidade, uma população de
“fantasmas” cujos traços já mal são visíveis, mas se espalham e se disseminam por toda parte.
Tal conceituação teórica encaixa bem com o objeto de estudo desta dissertação.
Considerando que a obra base foi escrita no século XVI e suas duas adaptações datam
respectivamente das décadas de 60 e 70, muitos elementos simbólicos foram sedimentados e
12GANCE, Abel. “Le tempts de lìmage est venu”, L`art cinematographique II. Paris, 1927, p. 94 -96 citado por
BENJAMIN, Walter, 2012, p. 25.
transmitidos. Alguns elementos simbólicos se repetem nas duas adaptações: a representação de
algumas divindades (Buda, por exemplo) e as tradicionais vestes cerimoniais chinesas
correspondendo à hierarquia de cada personagem dentro da narrativa. Outros elementos ainda
estão presentes, porém ressignificados: o bastão de Wu Kong agora exibe características de uma
arma nuclear e a caverna de flores e frutos, que na narrativa chinesa se apresenta como um local
bucólico, foi modernizada aparentando-se com uma “rave” celebrando a liberdade individual.
Não estando num universo meramente físico, o homem vive em um universo simbólico. A
linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo simbólico. Simbolizar significa
lançar juntamente, amontoar, reunir; ou seja, aproximar objetos e ideias. O símbolo surge como
estruturação das relações do homem com o mundo.
Em seu livro História de fantasmas para gente grande (2015), Warburg traça a trilha e
persegue alguns fantasmas através das paredes do tempo.
[...] A cosmologia das imagens e dos signos cuja adequação ou cujo colapso
agem como instrumento espiritual de orientação são justamente o que indica o
destino da cultura humana. (WARBURG, 2015, p. 363)
Outro autor que bem discute a questão das imagens dialéticas é Walter Benajmin.
Podendo trazer fôlego novo para os estudos de Aby Warburg, Benjamin argumenta que a
imagem detém o poder de atualizar o passado, pela rememoração. A história é então pensada a
partir da categoria operatória de imagem dialéctica, de forma correspondente a Warburg, que
buscou - a partir do conceito de Pathosformel - uma representação também “imagética” da
história de arte.
O conceito de imagem dialética cria uma história que não se organiza de maneira
cronológica, mas figurativa.
Benjamin (1993) afirma que as criações do espírito humano devem não somente sua
existência, mas também sua transmissão, a um trabalho social constante destarte a “cultura” do
século XIX se manifestava nos bens culturais como “fantasmagoria”.
Assim, toda mercadoria seria um signo, pois enquanto valor, ela é apenas o
invólucro material do trabalho despendido nela. Mas na medida em que se
tomam por meros signos os [...] caracteres materiais que as determinações
sociais do trabalho recebem com base num determinado modo de produção,
passa-se a explicá-los como produtos arbitrários do pensamento dos homens.
(BENJAMIN, 1983, p.805)
Marx fala do caráter fetiche da mercadoria. Esse caráter fetiche do mundo das
mercadorias, do caráter social específico do trabalho que produz mercadorias.
É apenas a relação social determinada dos homens que assume para eles aqui
a forma fantasmagórica de uma relação de coisas. (BENJAMIN, 2007, p.217)
Para Walter Benjamin, tal conceito é justamente todo o processo histórico que se renova
e se atualiza nos costumes e nos valores de uma sociedade. Warburg, por outro lado, fixa seus
“fantasmas” nas obras de artes, desenvolvendo uma busca extenuante para dar forma e coletar
traços que compõem estes fantasmas que certamente eram sentidos, mas que dificilmente eram
observados.
Warburg buscava - em suas próprias palavras – a “incorporação visível da estranheza”.
A imagem, a obra artística, ou um detalhe de vestuário, o cabeçalho de uma carta, a data de
nascimento em um horóscopo, a fivela de um cinto, todos esses itens apresentam traços quase
invisíveis, mas que permanecem, sobreviventes de uma população de fantasmas.
Em seu Atlas Mnemosine, Warburg indica qual sua ambição com os estudos de diversas
imagens em comparações:
O Atlas pretende, com seu material de imagens, ilustrar um processo que
poderia se designar como uma tentativa de introjeção na alma dos valores
expressivos pré-formados na representação da vida em movimento.
(WARBURG, 2015, p. 365)
Assim, tal como a nossa experiência prática tem de ser controlada por uma
compreensão de que, sob condições históricas diferentes, os objetos e as ações
são expressos por diferentes formas; tal como nosso conhecimento das fontes
literárias teve de ser controlado pela compreensão de como , sob condições
históricas diferentes temas e conceitos específicos se exprimem, assim
também, ou quem sabe se não mais, a nossa intuição sintética tem de ser
informada por uma compreensão do modo pelo qual, sob condições históricas
diferentes, as tendências gerais e essenciais do espírito humano são expressas
por temas e conceitos específicos. (PANOFSKY, 1995 p.28).
Assim, a análise a ser aqui desenvolvida terá como calço sempre a obra midiática e toda
a interpretação partirá das composições dos quadros dessa mesma obra. Todavia, ao longo da
análise serão acessados elementos extra-texto que contribuirão para a apuração do significado
intrínseco e funcionam como balizas para a interpretação, controlando e organizando a intuição
sintética do analista.
Definido o tripé teórico que sustenta esta dissertação, passamos para a delimitação e
recorte do nosso objeto de análise e na descrição metodológica que formam o passo a passo da
análise, e garantem sua relevância enquanto pesquisa.
3. Discurso e lógica nas adaptações
A criação de significados pode ser designada como o ato básico da civilização humana.
Cria-se, então, um substrato da figuração artística que se vale tanto da memória da personalidade
coletiva como da do indivíduo que socorrem o artista, aquele que produz a obra de arte.
Do outro lado está o leitor, que graças ao prodígio do olho humano normal capaz de
decodificar a linguagem dos gestos na forma de imagem reforçado pela linguagem da palavra (nos
quadrinhos como legenda ou balões de fala); e da memória, que contribui com ímpeto indestrutível
para a formação expressiva da comoção humana.
Assim, produtor e consumidor se encontram nas obras artísticas, compartilhando
significados e criando outros tantos. E quão visível é esse processo nas adaptações midiáticas.
Esta dissertação intentou encontrar recorrências e sistemas simbólicos que denunciem uma
cosmovisão que permeia duas adaptações para quadrinhos da obra Jornada ao Oeste.
O Jornada ao Oeste concorre com o Romance dos três reinos pelo posto de obra mais
exemplar da literatura épica chinesa, sendo traduzida para vários idiomas e gerando diversas
produções midiáticas: filmes, quadrinhos, séries e games; e alçando seus personagens (sendo o
Macaco Wukong o principal deles) ao posto de celebridade na China, protagonizando campanhas
publicitárias, estampando fachadas de lojas e outdoors e sendo imediatamente reconhecido em
território chinês e possivelmente em toda a Ásia.
Tratamos nesta dissertação de duas adaptações em quadrinhos (uma chinesa e outra
italiana), que partem da mesma obra base, criaram objetos midiáticos distintos tanto em forma
quanto em conteúdo, produzindo uma emaranhada rede de significados intrínsecos que se
distanciam gerando diferentes alegorias e metáforas.
Pensamos que ao acessar o repertório cultural chinês, a produção chinesa se manteria mais
próxima dos conteúdos primeiros transmitidos pela obra base. Tais noções são muito caras ao povo
chinês, como a valorização do serviço, uma postura positiva frente às dificuldades (noções
certamente sustentadas pela cultura chinesa, pelo taoísmo, pelo budismo e pelo comunismo que
seria difundido a partir do século XX), e a implantação do Budismo na China. Já na forma, o
quadrinho chinês ainda não havia sofrido tanta influência das produções americanas, se apegando
a uma forma já consagrada (e até um pouco ultrapassada): o lianhuan hua, dois quadros com
legenda; a própria construção do quadro se assemelha às produções artísticas chinesas que
incorporam muito bem as noções de “vazio” e “cheio”, herdadas também do taoísmo.
Já obra italiana de Milo Manara e Silvério Pisu acessa uma outra poética cultural. O
quadrinho reflete uma perspectiva italiana sobre a China, principalmente aquela China que
encantava uma Europa pós-guerra e surgia como um idealizado “país do povo”. A narrativa italiana
abarca outras noções: a idéia de liberdade, um líder nascido do povo, um embate entre um jovem
e poderoso ideal e uma política velha, grotesca e corrupta que insiste em barrá-lo. Parece-nos que
a adaptação italiana aproveita a narrativa de Jornada ao Oeste de uma maneira muito politizada e
o personagem Macaco representa outro icônico personagem da história chinesa: Mao Tsé-Tung.
Já na forma, o quadro italiano se assemelha às composições americanas (já famosas em toda a
Europa), os balões de fala substituem as legendas, e a ação mais contida nos quadros chineses dá
lugar a uma ação muito performática que insistem em engrandecer o Macaco em todos os quadros
dando-lhe ares de herói trágico.
Ao analisarmos os elementos visíveis e composicionais lado a lado, poderemos perceber
melhor como se aproveitam essas duas cosmovisões distintas que estão em outra camada
interpretativa.
Como dito, tratamos de duas obras midiáticas em quadrinhos. Uma produção é chinesa
lançada em 1962, que convocou os principais artistas da época para uma espécie de superprodução
quadrinizada, atingindo um milhão de exemplares vendidos às vésperas da Revolução Cultural e
1966, que praticamente zerou a produção e comercialização de quadrinhos. Para essa dissertação
utilizamos a tradução para a língua portuguesa traduzida por Adam Sun e publicada pela editora
Conrad em 2008, e creditada ao mesmo Wu Cheng’en (autor da obra original do século XVI). A
obra foi segmentada em dois volumes, totalizando 863 páginas e 1726 quadros, contando toda a
narrativa de Jornada ao Oeste original, que começa como ascensão e queda de Sun Wukong em
uma primeira parte o que se convencionou chamar de “o embate no Céu” (por causa desfecho deste
arco), e seguindo para a Jornada ao Oeste, onde Sun Wukong acompanha o monge Tripitaka até a
Índia para reaver os sutras budistas.
A produção italiana intitulada, Lo Scimmiotto, roteirizada por Silvério Pisu e ilustrada por
Milo Manara, se contenta em adaptar somente a primeira parte, focando na história de Sun Wukong
até seu derradeiro embate com as divindades e o próprio Buda. Publicada na Itália entre 1976 e
1977 na revista Alterlinus, a obra italiana conta com 80 páginas em um formato muito mais
americanizado.
Sendo tão desigual o tamanho das obras, recortamos a narrativa chinesa tendo por base a
italiana. Tratamos, assim, da primeira parte da narrativa chinesa que corresponde a todo o enredo
da obra italiana. Além disso, nos atemos aos quadros que focam nas ações do personagem Macaco,
principalmente nos momentos que apontam para características de personalidade do personagem
e para momentos de reviravolta e clímax. Chegamos, por fim, a um recorte composto de 64
páginas, sendo 34 páginas da obra chinesa somadas a 30 páginas da adaptação italiana. Tais figuras
foram selecionadas por representarem a mesma cena da narrativa literária e pela facilidade da
identificação de certos elementos composicionais comuns às duas obras. As páginas selecionadas
foram alinhadas e dispostas em pares para facilitar na comparação, gerando assim 32 figuras
apresentadas como miniaturas no corpo desta dissertação. O lado esquerdo do par refere-se a
adaptação chinesa de 1962 (traduzida por Adam Sun e reimpressa pela editora Conrad em 2008),
enquanto que o direito trata da adaptação italiana de 1976 (roteirizada por Silvério Pisu e ilustrada
por Milo Manara). As páginas em sua máxima resolução serão como anexo único desta dissertação
seguindo a mesma ordem de apresentação das miniaturas.
A análise trata primeiro dos elementos narrativos: personagem central, espaço, tempo e
ação já denunciando distinções elementares entre as duas produções artísticas. E posteriormente
trata da comparação entre os quadros buscando os indícios simbólicos das cosmovisões de cada
obra.
Desenhamos as fases que presidiram a feitura desta análise a fim de que os resultados
possam ser verificados. Primeiro, após escolhida a obra, procedeu-se uma leitura integral que
fornece uma “impressão” geral da obra midiática. Segundo, foram feitas várias releituras
assinalando nos quadrinhos cenas que chama a atenção ou que envolvem problemas de
compreensão. Terceiro, como focamos esta dissertação nas imagens e no texto, por vezes foi
necessário consultar um dicionário para resolver dúvidas quanto a denotação de palavras e
expressões. Depois, partimos para uma releitura mirando compreender o índice conotativo e
apontamos constantes ou recorrências que tocam sobretudo à conotação. Tais constantes foram
então interpretadas com base nos elementos do próprio texto e nas informações que o analista já
possui, gerando uma camada externa de significâncias.
Posteriormente, foram consultadas fontes secundárias: história da cultura, contexto social
e econômico - como o sentimento nacionalista que emergiu após as guerras, uma certa
“necessidade” de entretenimento barato por parte da sociedade em uma época de crise -
informações sobre os autores - como a visão dos quadrinhos como ferramenta política pelos
chineses e certo encantamento com a narrativa comunista pelos italianos - referências formais de
cada adaptação - a importância do lianhuang hua na China e dos quadrinhos de super-heróis na
Europa. Essas fontes atuam como os balizadores citados por Panofsky durante sua explanação
sobre a análise. Organizamos e interpretamos as constantes dividindo o processo de análise de
acordo com os elementos composicionais da narrativa, buscando elementos que, à luz dos dados
selecionados, indicam a cosmovisão da obra. Depois, comparamos quadro a quadro as mesmas
cenas, demonstrando as recorrências e partindo para um nível interno de significâncias, que
refletem os significados intrínsecos e por fim a cosmovisão. Concluímos esta dissertação com a
redação final da análise, conduzindo invariavelmente à crítica, que deve ser o objetivo final de
uma análise desta natureza.
Ao analisar uma obra de tamanha importância para a cultura chinesa, existe um primeiro
problema, qual (ou quais) das diversas produções midiáticas servirão como objeto de análise?
Apesar de não discutirmos propriamente a adaptação dos recursos de tradução
intersemiótica que partem da obra base, julgamos que ela seja a fonte primária de onde partirão
todas as traduções e adaptações.
As adaptações, por outro lado, formam uma miríade de obras de diversas naturezas e
mídias: audiovisuais, quadrinizadas, produções poéticas, canções, músicas e obras publicitárias,
cada uma adaptando elementos que lhe sejam relevantes para o fim ao qual se propõem. Não
podemos deslocá-las de suas cosmovisões e contextos de produção.
Esta dissertação selecionou duas destas adaptações, primeiramente pois trata-se de duas
produções em arte sequencial, que apesar de se basearem em duas versões distintas da obra
literária, a chinesa partindo do texto original replicado ao longo do tempo, e a italiana
declaradamente adaptando a versão inglesa de Arthur Waley, exprimem semelhanças elementares
para o desenrolar da narrativa.
Além disso, o breve intervalo de tempo entre as duas produções midiáticas também foi
considerado para essa seleção. O intervalo de menos de 15 anos entre uma obra e outra não reflete
em grandes mudanças no que diz respeito à produção técnica e à linguagem dos quadrinhos sendo
possível, sendo possível desconsiderar tais fatores na produção de sentido de cada uma das obras.
Nas apresentações que se seguem, serão discutidas com maior detalhamento as produções
midiáticas utilizadas como objeto de estudo deste trabalho, bem como seus respectivos contextos
de produção nos atendo a fatos que possam contribuir para a produção de sentido das obras.
Jornada ao Oeste aparece durante um dos períodos mais férteis da produção literária
chinesa, o século XVI, enquanto os Ming reinavam sobre a China.
A dinastia Ming iniciou-se na China em 1368, logo após a expulsão dos mongóis e a
retomada do governo pelos chineses. A sinóloga francesa Anne Cheng (2008) afirma que com a
pressão cultural imposta pelo governo mongol e a desvalorização da cultura clássica chinesa, a
dinastia Ming, que floresce após este período, inicia sob o signo da restauração da identidade
chinesa, da reconstrução e da expansão territorial. A releitura dos clássicos, o avivamento das artes,
da literatura, poesia, música e teatro das mais variadas formas tiveram seu auge durante a dinastia
Ming, especialmente no vale do Rio Yangzi.
Embora as ficções curtas fossem populares já na dinastia Tang (que governou a China de
618 a 907), as mais inovadoras revoluções da dinastia Ming foram as narrativas escritas em língua
vernácula. Enquanto a elite tinha educação suficiente para compreender a língua clássica chinesa,
aqueles com educação básica – como mercadores, vendedores e mulheres em famílias eruditas –
tornaram-se uma audiência crescente para a literatura e as artes performáticas.
A lenda de Sun Wukong, ou o Rei Macaco, é um patrimônio cultural chinês. Publicado
como obra escrita pela primeira vez em 1592 e escrito por Wu Cheng’en por volta de 1570, a
história retrata a viagem e a interação entre pelo menos três personagens – Tripitaka, Macaco e
Porco. Estes dois últimos personagens são tão memoráveis quanto seus pares na literatura mundial
Don Quixote e Sancho Panza. As comparações com Don Quixote, como fantasia satírica pautada
em observação realista e sabedoria filosófica, são apontadas por diversos críticos, considerando a
importância das duas obras para o desenvolvimento da literatura Europeia e Chinesa.
A obra se baseia em um acontecimento histórico ocorrido na China entre 629-645, em que
um monge Budista conhecido como Tripitaka viajou até a Índia para recuperar textos budistas e
após sua volta dedicou o restante da vida a traduzi-los.
A história “factual” de Tripitaka se tornou uma lenda e elementos ficcionais foram
adicionados como narrativa oral, culminando na versão lendária e fantasiosa representada em
“Jornada ao Oeste”.
Como obra de fantasia, Jornada ao Oeste (西|游|记 - Xī Yóu Jì) é prontamente acessado
pela imaginação ocidental através da obra adaptada de Arthur Waley, Macaco (1942), sendo
a adaptação preferida do grande público e principalmente do meio acadêmico.
Waley escolheu apresentar apenas quarenta dos cem capítulos da obra original, visto que a
tradução completa se provaria cansativa para os leitores Ocidentais, já que muitos episódios
parecem repetitivos e procedurais.
A narrativa completa de “Jornada para o Oeste” possui em sua completude cem capítulos,
que podem ser divididos em 4 partes distintas. A primeira destas quatro partes, que inclui os
capítulos do primeiro ao sétimo, contém a introdução a história e a apresentação do personagem
Macaco, o protagonista da narrativa de viagens mais famosa no oriente. Por este ângulo, Jornada
ao Oeste já foi comparado pela crítica com a Odisséia de Homero, aproximando as soluções
engenhosas de Wukong com a astúcia de Ulisses.
Certamente os traços principais de Sun Wukong (孙悟空- Macaco) são sua bravura e
prontidão, seu destacamento espiritual, seu humor travesso e sua grande energia, definiam seu
caráter heroico. A postura desafiadora, principalmente durante a primeira fase da história, deve-se
ao fato do personagem parecer invencível e imensamente poderoso. Seu único medo é a morte, o
que explica sua jornada em busca da imortalidade.
Já na segunda metade, Wukong percebe que a imortalidade só poderia ser alcançada com
o cumprimento de sua jornada através do serviço, dando início ao trajeto de viagens da China para
a Índia, acompanhando o monge Tripitaka. Alegoricamente, a jornada de Wukong é uma busca
por compreensão e entendimento dialogando diretamente com o Budismo chinês, enquanto o pano
de fundo místico ajusta-se com um Taoísmo já de certa forma influenciado pelo Budismo que se
expandia na China durante a Dinastia Ming.
Diversos sinólogos a partir do século XIX e principalmente no século XX, com o fascínio
da Europa pelo extremo oriente, se debruçaram e dedicaram sua lavra a entender e estudar
profundamente os pilares que fundamentavam o pensamento oriental, tão diferente da filosofia
Ocidental. Essa diferenciação primeira entre “pensamento oriental” e “filosofia ocidental” é de
fato importante para fundar a base da cosmovisão oriental e ocidental.
A galeria de pensadores chineses presentes nos diversos períodos da história foi
praticamente ignorada pelo ocidente, mas resgatada no século XX, principalmente por sinólogos
franceses. Nomes mais comuns como Confúcio, Mêncio, Chuâncio e Mozi são hoje objeto de
estudos de trabalhos nas áreas de humanidade, e a popularização desses nomes se deu justamente
pelos estudos em sinologia.
Sobre a distinção inicial entre a filosofia e o pensamento oriental, François Jullien (2000)
afirma:
Outras palavras, isto é, que não nos façam ouvir na Grécia a manhã do
pensamento, em Israel a história da fé, de que não tenhamos de herdar justamente,
essa velha clivagem entre a “razão” e a “fé”. Ampliando de saída a distância em
relação ao desenvolvimento da filosofia, permitam reconsiderá-la de mais longe,
remontar a seu impensado, interrogar suas opções implícitas, enterrados todo os
seus parti pris. (JULLIEN, 2000, pg. 59).
Por que haveria de me ressentir?” Respondeu Mestre Yu. “Se meu braço esquerdo
se transformasse num galo, eu seria capaz de saudar a aurora com ele. Se meu
braço direito se transformasse numa flecha, eu poderia atirar uma ave e assá-la.
Se minhas nádegas se virassem em rodas e meu espírito virasse um cavalo eu
poderia montar nele – que necessidade teria de um carro? Obtive a vida porque
era chegado o meu tempo e agora dela me separo de acordo com Tao. (Zhuang
Zi, 1992, p. 75)14
A arte chinesa e sua filosofia foram guiadas pelas questões de transformação e de não
permanência dos estados, como as estações são cíclicas. Se assim é a vida do homem, dos animais,
assim é também o tempo e as questões mais profundas como morte e imortalidade.
Para o pensamento chinês clássico, nada escapa ao Tao, ao movimento que rege todas as
coisas e as coloca em seu “devido lugar”. Da noção de Tao nasce as noções de Yin e Yang, que ao
contrário do que pensa nossa dicotomia Ocidental, não são opostos, mas complementares. O Yang
é a representação do calor, do masculino, do cheio e do criativo; enquanto o Yin é a representação
do frio, do feminino, dos vazios e do receptivo, muito mais sobre isso pode ser encontrado no I
Ching, o clássico das mutações. Para os propósitos deste trabalho é importante notarmos essa
complementação entre os dois, e como as noções de Yin e Yang se complementam na arte oriental.
13
KHERDIAN, David. Macaco: Uma jornada para o oeste. Tradução: Sandra de Camargo. São Paulo: Odysseus
Editora, 2003 p. 105
14
Zhuangzi. Chuang Zi: Escritos Básicos. Tradução: Yolanda S. Toledo. São Paulo: Cultrix, 1992.
Em língua chinesa, o termo utilizado para as histórias em quadrinhos é manhua. Na grande
maioria das vezes quando este termo é utilizado em outra língua, como o inglês, por exemplo, ele
se refere a quadrinhos chineses, ou ao que os chineses popularmente chamam de guochan manhua
國產漫畫, ou quadrinhos domésticos, dentro do país.
Naturalmente, os quadrinhos chineses não surgiram do nada. Apesar do termo que os define
- manhua - só começou a ser usado a partir de 1927, já se fazia HQ na China desde o século XIX.
Em inglês, o termo manhua é comumente utilizado para apontar a diferença entre os
quadrinhos chineses e os mangás japoneses, da mesma forma que o termo manhwa, que serve para
se referir às obras sequenciais coreanas. De qualquer forma, tais obras se assemelham bastante aos
quadrinhos japoneses.
Em chinês, manhua é um termo geral que se refere a todo o espectro de produção em arte
sequencial, incluindo, assim, as produções japonesas, coreanas, americanas e europeias.
Um terceiro uso do termo descreve o “quadrinho chinês tradicional” que é comumente
localizado com a introdução da impressão litográfica no século XIX em Hong Kong e Shanghai.
As mais antigas produções tomadas por essa definição são duas antologias satíricas
produzidas em inglês, The China Punch (1867–1868, 1872–1876). Juntamente com as obras
importadas da América e da Europa, esses trabalhos serviram para inspirar a primeira geração de
quadrinistas chineses como Sapajou (? – 1949), Feng Zikai (1898-1975) e Zhang Leping 張樂平
(1910-1992) e muitos dos quais passaram grande parte do suas carreiras criando propagandas anti-
Japão. Infelizmente, a grande maioria dos quadrinistas abandonou a produção depois de 1949,
devido às várias e radicais mudanças no cenário político-cultural e social chinês.
Até o início do século XX, os principais pensadores chineses pareciam ainda tratar e
discutir certos temas e noções postas em circulação diversos séculos antes, esforçando-se para
debater os clássicos e os pensamentos fundadores da sociedade chinesa.
Um embate intelectual se desenrolava dentro dos muros das Universidades: confrontos
iniciais entre o pensamento oriental e o ocidental. A partir do século XVIII, desenvolveu-se certa
fórmula simplista de que o pensamento chinês seria o fundamento constitutivo e o pensamento
ocidental era considerado prático funcionalista. Tal simplificação é refutada por sinólogos
conceituados, dentre eles Anne Cheng (2008), que dedica todo o epílogo de seu livro para discutir
essas questões. Nas palavras da autora:
Os esquemas do pensamento tradicional explodem sob a pressão das ideias
ocidentais e intensifica-se o impulso revolucionário, os diálogos internos cedem
lugar aos desafios urgentes da modernidade. No momento em que se esbarram os
fundamentos e os valores da cultura chinesa, torna-se imperioso para os
intelectuais dissociá-los da China enquanto Estado político moderno. (CHENG,
2008, p. 728-729)
Kang Youwei e Liang Qichao foram dois fomentadores do movimento reformista, que
ganhou grande força a partir da fundação – em 1895 - do jornal Shiwu Bao (conhecido em inglês
como The China Press), em que dois autores voltavam-se para as autoridades de Pequim para
reclamar uma reforma parlamentar e reforma do sistema acadêmico. Conforme dito, as ideias
desses autores ajudam a moldar o que seria a nova juventude chinesa do início do século XX, tal
juventude passou por um processo de transição – diria até de “brusco rompimento” – do pensar e
fazer antigo, para um modelo completamente novo.
Essa juventude será responsável também por uma revolução midiática na China e pela
popularização e expansão dos quadrinhos como ferramenta biarticulada: servindo ao
entretenimento, mas também às manifestações políticas.
Dentre estes jovens certamente podemos destacar aqueles que compunham a Sociedade de
Manhua de Shanghai, uma das mais importantes associações civis dedicada a produção de
conteúdo midiático durante as décadas de 20 e 30, os artistas que se associavam viam na produção
de quadrinhos não só uma oportunidade financeira, mas também um dever moral frente à agitação
política da época.
Notamos que a grande variedade de produções dos membros definiu manhua como uma
esfera criativa que ultrapassa o conceito de quadrinhos, como popularmente utilizamos em língua
portuguesa. Na verdade, as obras publicadas pelos membros da Sociedade apontam que o termo
manhua era compreendido como uma categoria geral para as representações visuais como
quadrinhos, caricaturas, ilustrações de moda, publicidade, pôsteres e tipografias.
Com o propósito inicial de entreter (por humor ou provocação) ou convencer (através de
sátiras políticas ou propaganda nacionalista). Os editores e criadores de conteúdo ambicionavam
15
Bo kang youwei zhi zongtong zongli shu (“Discussão crítica da carta de Kang Youwei ao presidente e ao Primeiro
ministro”), em Xin qingnian (A Nova Juventude), t.2. n.2 (1º de outubro de 1916), p.1
que seus quadrinhos esclarecesse os leitores, inspirassem reflexão em um período tumultuado da
história. O manhua humorístico não foi o único tipo de quadrinho a emergir na China durante a
primeira metade do século 20. Por exemplo, uma forma de quadrinho, próxima em estilo com as
narrativas de super-heróis ocidentais eram os lianhuan tuhua 連環圖畫, ou “livros com figuras
conectadas”, conhecidos também por lianhuan hua 連環畫, sendo extremamente populares nos
anos 1920, pois eram uma forma barata de entretenimento.
Diferentemente dos autores mais idealistas e militantes, os primeiros produtores de
lianhuan tuhua evitavam as críticas sociais e entendiam seu trabalho como forma de
entretenimento simples, fazendo com que poucos sobrevivessem para a posteridade. A maioria dos
exemplares remanescentes é pós-1949, quando o Partido Comunista Chinês começou a promover
histórias ilustradas como propaganda para as massas. De maneira similar, outras formas de arte
relacionadas aos desenhos, como a arte decô, cubismo, e os retratos latino-americanos, ganhavam
espaço ao lado da tradicional arte chinesa.
Não nos surpreende o fato de que alguns estudos recentes sobre influências estéticas nos
manhua tenham encontrados elementos artísticos notadamente ocidentais como o cubismo, art
nouveau, surrealismo, simbolismo nas publicações do final da década de 1920.
Jornada ao Oeste é classificado como um lianhuan hua, ou livro de imagens conectadas.
Essa forma de quadrinho existe desde o início do século XX, quando a tecnologia de impressão
barata tornou possível para as editoras a produção em massa de imagens com alta fidelidade e texto
com baixíssimo custo, oferecendo uma nova forma de entretenimento para o número crescente de
leitores nas cidades. Uma das características deste quadrinho é a representação de apenas um ou
dois quadros por página – riquíssimos em detalhes, trazendo uma legenda que explica a cena
representada.
Com o advento do mangá no Japão, principalmente após as obras de Osamu Tezuka16, o
lianhuan hua perdeu espaço para o novo quadrinho chinês, num estilo muito mais influenciado
pelos quadrinhos japoneses e ocidentais, adotando o nome de manhua, para se aproximar dos
mangás japoneses.
16
Cartunista, artista gráfico, mangaka, produtor e ativista japonês, considerado o “pai do mangá” devido a suas
técnicas inovadores que redefiniram o gênero.
Diferente do quadrinho ocidental moderno e do mangá, onde existem, os “balões” para
darem fala e indicarem os pensamentos dos personagens, aqui a legenda funciona como parte
integrante da cena, sem ela a compreensão de certos quadros ficaria impossível.
Durante as décadas de 1920 e 1930, uma das vertentes mais comuns dos quadrinhos
chineses eram as adaptações não autorizadas, “pirateadas” de obras já consagradas na Europa e
Estados Unidos. Paul Gravett, jornalista e pesquisador de histórias em quadrinho, cita como se
dava o processo de adaptação não autorizada, usando como exemplo um lianhuan hua de 1984
que adapta as Aventuras de Tintin de Hergé:
Embora nos pareça equivocado dizer que o lianhuan hua precedeu manhua - visto que
ambos emergiram durante o mesmo período como forma de expressão distinta - Gravett afirma
corretamente que, entre os anos de 1920 e 1930, o lianhuan hua se destacou, tornando-se algo que
os leitores preferiam alugar e não comprar. Devido a seu caráter praticamente descartável,
pouquíssimos exemplares das primeiras obras sobreviveram.
Hoje, o lianhuan hua é uma mídia essencialmente renegada, com sua distribuição e
negociação atendendo a nichos específicos de colecionadores e adultos mais nostálgicos.
As produções anteriores aos anos 50, que adaptavam as óperas clássicas, são também de
pouco interesse para a juventude chinesa atual. Para a academia chinesa, por outro lado, o lianhuan
hua apresenta informações valiosas sobre um interessante período da história chinesa, em que
forças e revoluções se agitavam.
O mais famoso exemplo que resistiu ao teste do tempo ultrapassando a marca dos 5 milhões
de exemplares vendidos é a obra utilizada como objeto de estudos deste trabalho, a adaptação de
Jornada ao Oeste.
17
Alex Fitch / Paul Gravett, Panel Borders: Manhua! China Comics Now Part 1,
2008.<http://www.nickstember.com/chinese-lianhuanhua-century-of-pirated-movies/#footnote_3_236.> Acessado
em 6 de Janeiro de 2019
Apesar de não ser um artigo da “Era de ouro” dos lianhuan hua chineses, Jornada ao
Oeste de 1962 guarda todas as características que tornaram o gênero famoso e soma-se a essas
características uma atitude bastante politizada de uma segunda geração de quadrinistas chineses,
influenciados principalmente pelas revistas em quadrinhos publicadas no final dos anos 1930 e
1940.
Em 24 de janeiro de 1934, por exemplo, a revista Modern Sketch 時代漫畫 foi lançada
tendo Lu Shaofei como seu editor. Tal revista se provou como o periódico de maior duração,
contando com 39 edições lançadas ao longo de 42 meses encerrando sua produção em 20 de junho
de 1937. Cada edição contava com 32 páginas de quadrinhos, fotografias e ensaios, além de capa
e contra-capa coloridas. Para explicar a capa da primeira edição da revista, Lu Shaofei incluiu uma
breve nota:
Uma era de tensão nos cerca por todos os lados. Seja como indivíduos, como nação, ou
mesmo para o mundo. Será sempre assim? Eu não sei. Mas considerando que este
sentimento não passa, ansiamos por uma resposta; e quanto mais falhamos em responder,
mais aumenta nosso desejo. Nossa posição, nossa única responsabilidade é, então, lutar!
A imagem que ilustra nossa primeira capa, será também nosso logo: Não nos renderemos.
(LU, 1934, Nota do Editor)18
18
Lu Shaofei 魯少飛, “Bianzhe Bubai” 編者補白 [Nota do Editor], Shidai Manhua時代漫畫, Janeiro 1934,
traduzido por John A. Crespi. In “China’s Modern Sketch: The Golden Era of Cartooning 1934-1937. ”
A vida é um grande palco. Todos nós estamos atuando nessa tragicomédia, e ao
mesmo tempo, somos a audiência. Embora o programa se altere todos os dias,
nunca saímos da tragicomédia. Vamos dar uma olhada no programa de hoje: o
caos da guerra, desemprego, fome, desnutrição, tudo ocupa o palco nessa era de
tumultos. As vidas das massas nesta era são também cruéis. Mesmo assim, no
outro canto do palco, existe uma pequena minoria que dança de alegria na cratera
do vulcão. Grandes são as contradições do mundo que se abre perante nossos
olhos. Nós cremos que essas discordâncias desaparecerão, cedo ou tarde.
(SHIYING, 1934, prólogo)19
A capa da primeira edição da Manhua Life, é intitulada: The Cry of Life. Ela retrata um
homem chinês de joelhos, nas ruínas de uma cidade demolida, com a boca tão aberta que obscurece
o restante da face. Para os leitores da época, a cidade em ruínas remetia diretamente à devastação
causada em 1932 pelos bombardeiros japoneses em Zhabei. Como aconteceu com a Modern
Sketch, a Manhua Life também sofreu com a censura, já em sua segunda edição.
Como aconteceu com os mangás, as produções de lianhuan hua pareciam ter se esgotado
durante a segunda Guerra Sino-Japonesa devido aos baixos estoques de tinta e à destruição parcial
de Shanghai, que na época concentrava praticamente toda a produção em quadrinhos chineses e à
censura.
Em fevereiro de 1936, tanto a Modern Sketch quanto a Indepent Manhua foram obrigadas
a cessar a produção graças a uma ação de censura do KMT, encabeçada pelo Escritório Geral de
Propaganda. A revista Manhua Life também encerrou suas publicações em fevereiro pelos mesmos
motivos.
Ironicamente, enquanto as editoras e revistas em quadrinhos começavam a fechar suas
portas, o interesse público por esta forma de arte começou a aumentar, culminando na fundação
da Associação Nacional de Artistas de Manhua (ANAM) 中華全國漫畫作家協會 na primavera
de 1937. A ANAM tinha a intenção de unir os quadrinistas de toda a nação, promover o manhua
como arte, além de transformá-lo em uma ferramenta para educação social.
Após a vitória comunista na guerra civil chinesa de 1945-1949, o lianhuan hua
experimentou uma “era de prata”. Mao Tse Tung e outros líderes do partido promoviam o novo
lianhuan hua como propaganda, focando principalmente as comunidades agrícolas semiletradas e
19
Shiying Huang 黄士英, “Kaichangbai” 開場白 [Prólogo], Manhua Shenghuo 漫畫生活, 20 de setembro de 1934.
as grandes massas urbanas. É sob essa ótica revolucionária que vários quadrinistas se juntam para
produzir o Jornada ao Oeste.
As transformações da China durante o século XX influenciaram as escolhas artísticas para
a adaptação da obra clássica focando em um enredo que popularizava uma cultura erudita e ao
mesmo tempo poderia inserir valores e narrativas que discutiam a situação política, cultural e
econômica da China. Se Jornada ao Oeste enquanto obra literária já brincava com as questões de
burocracia, meritocracia, religião, ritos e formalidades, sua versão quadrinizada exacerba essas
mesmas questões criando uma narrativa que se mantém bastante fidedigna ao material fonte,
porém modificando certos papéis e sentidos que serão discutidos na análise.
Apesar do curto intervalo de tempo entre as duas produções, a adaptação italiana foi
desenvolvida durante um contexto muito diferente da versão chinesa, apresentando um repertório
cultural diferente, o que acabou por criar uma narrativa completamente inédita. Perceber como a
mesma obra foi adaptada em dois contextos - ou duas cosmovisões - produzindo resultados tão
distintos alinha-se com os interesses desta dissertação no que diz respeito à permanência,
desaparecimento e atualização das imagens.
Pisu e Manara não se limitaram a uma simples transposição. Os dois artistas fizeram muito
mais, adaptaram a história ao seu tempo, transformando-a principalmente em uma alegoria de
poder.
A adaptação italiana foi concebida no ar dos anos setenta, quando os sonhos de revoluções
utópicas começavam a desvanecer. Certa descrença no futuro inflamou os corações dos jovens de
68 em diante. Relendo hoje a história do Lo Scimmiotto de Manara e Pisu, percebemos tratar-se de
uma obra de grande importância, um verdadeiro clássico para os fãs de quadrinhos pelo seguinte
motivo: a reconstrução da dialética política e essencial daquela época, em que o sonho de construir
um mundo melhor não poderia de forma alguma ser excluído de qualquer debate.
O que Manara e Pisu parecem fazer é olhar para a China e suas Revoluções populares com
um certo deslumbramento, ansiando por contar uma história que de alguma forma anima-se um
sonho revolucionário.
O estilo artístico de Milo Manara concebe Lo Scimmiotto como um grande afresco, onde
cada página parece pronta para ser reproduzida em uma parede, como um grande grafite alertando
sobre todo o mal que pode expressar a ganância do poder.
Os estudos em sinologia já haviam se consolidado nas academias europeias desde o século
XVIII (ou mesmo antes deste período considerando os estudos desenvolvidos por Jesuítas como
Matteo Ricci já no século XVI), porém foi após a Segunda Guerra que as academias parisienses
começaram a dominar e pautar os estudos sobre a China, principalmente tirando o foco do
Confucionismo e buscando estudar outras manifestações culturais, artísticas e religiosas. Foi
graças a esses estudos mais abrangentes que obras como Jornada ao Oeste chegaram à Europa.
Para sua adaptação quadrinizada, Silvério Pisu e Milo Manara se basearam na edição
inglesa de Jornada ao Oeste, traduzida por Arthur Waley em 1942. Foi Renata Pisu, irmã de
Silvério e uma das principais sinólogas italianas, que sugeriu a ideia da adaptação ao regressa de
uma viagem à China e trazer consigo uma cópia da obra.
Em sua tradução, Waley opta por não contar toda a aventura épica do Macaco, mas foca
na juventude do personagem principal, em suas andanças aprendendo sobre o mundo antes de se
tornar imortal e adquirir todos os poderes que o transformaram em lenda.
A publicação de Lo Scimmioto permitiu que Milo Manara e Silvério Pisu entrassem na
galeria dos quadrinhos italianos e internacionais. A versão quadrinizada foi publicada na Itália e
na França. Além de sua qualidade artística inegável, Lo Scimmiotto representa um momento
importante para os dois jovens autores, que precisamente com esta história engajam uma profunda
reflexão sobre os quadrinhos e sua função social.
Na forma, a estética já se alia à linguagem dos quadrinhos demarcada por Scott McCloud.
De forte inspiração nos quadrinhos americanos e britânicos da mesma época, Lo Scimmitto conta
com quadros multiformes, enquadramentos que certas vezes lembram a linguagem
cinematográfica e balões de fala representando os diálogos, criando uma grande distinção entre
esta obra e a versão chinesa que se pautava na estética do lianhua.
A obra italiana também serve como testemunho político: seus mitos e ideologia apresentam
a visão diária de Manara e Pisu, que procuram a linguagem certa nos quadrinhos para contar as
mudanças históricas dos anos setenta que eles estão experimentando.
Os dois responsáveis pela adaptação italiana tinham se encontrado a editora Erregi um dos
principais centros italianos de produção de obras de caráter erótico. Enfrentando diversos tabus e
decretando a ascensão das personagens femininas que rechaçavam os estereótipos da época.
Em 1966, a postura pudica de uma sociedade já às portas de uma revolução sexual
incomodava uma geração de novos artistas que insistiam em produzir obras que insinuavam uma
sesualidade e outras que mergulhavam de vez em um erotismo como forma de manifestação. Os
leitores italianos ainda corriam nas bancas para comprar a primeira edição de Isabella, com a
heroína bastante erotizada desenhada por Sandro Angiolini. A produção deste tipo de quadrinhos
explodiu, ao ponto em que foi possível transformar romances fotográficos, que na época eram
eróticos, em quadrinhos. Entre estes romances adaptados estava Genius publicado em 1970, no
qual o jovem Milo Manara fez sua estreia, depois de deixar a Academia de Belas Artes.
Com o talento do jovem artista sendo notado, o chamaram para o projeto Jolanda de
Almaviva, personagem inspirado no romance de Emilio Salgari: Jolanda a filha do Corsário
Negro, anunciando a estreia no número anterior. Enquanto trabalhava na editora ERREGI,
Manara também colaborou com Telerompo, o primeiro exemplo de sátira televisiva, projeto
bastante significativo se levarmos em conta de que a televisão era mais autoritária, e satirizar os
figurões da televisão era considerado repreensível. Entre os autores de Telerompo encontrava-se
Silverio Pisu, com quem Manara iniciou uma amizade.
Figurando entre os mestres da televisão e da arte sequencial italiana, Pisu conhecia a
linguagem televisiva e da paródia. Graças a seu talento multifacetado, o autor desenvolveu uma
espécie de “nomadismo criativo” transitando entre as mídias.
No início dos anos setenta, a China não só foi visto como a terra prometida do comunismo
propagado pelo Livro Vermelho de Mao, mas representou também uma revolução estética,
especialmente para os jovens artistas recém-saídos de uma escola de arte, que tentaram entender
qual deveria ser o propósito social de seu trabalho. Ao escrever o prefácio da edição italiana de
Jornada ao Oeste, Sérgio Rossi afirma:
Na China fantasiosa de Mao, ansiava-se por uma agenda comunistas coletiva que
concedia aos artistas a capacidade de lidar com a realidade em que viviam.
Servindo as pessoas de maneira propriamente artística, mas respeitando as
restrições de justiça social. “Se um cartaz fosse desenhado, por exemplo, era
obrigatório incluir um camponês, um soldado e um trabalhador, coloridos em
cinza, verde e azul, respectivamente. (ROSSI, 1976, p. 6).
Havia certamente um entusiasmo inicial com a Revolução Chinesa principalmente em meio as juventudes da
Itália e da França, muitos intelectuais europeus principalmente alinhados com a esquerda ansiavam por viver uma
outra Jornada, para o Leste deixando a Europa e rumando para a China.
O experimento era fascinante, especialmente para aqueles que, como Milo Manara, viviam
em um ambiente em que todas as convenções haviam caído e se permitiam o privilégio de seguir
seu próprio "êxtase". O segredo do comunismo chinês, como muitos outros no campo político, só
apareceu posteriormente se configurando como uma imposição do regime totalitário, e então de
uma censura cujas consequências ainda são sentidas hoje nas mais variadas limitações.
O Sun Wukong que enfrenta os deuses e bagunça o Céu de Manara e Pisu é na verdade
Mao Tsé Tung que bagunça os jogos de poder. A escolha de encerrar a narrativa justamente na
derrota de Sun Wukong para as divindades celestes reforça a dissolução abrupta do sonho
revolucionário que se desenhava na China e inspirava a Itália nos anos 70. O Macaco também é
simultaneamente o jovem intelectual ou artista europeu que desiludido com o pós-guerra encontra
na China uma alternativa a priori viável.
Pisu diz tratar-se da sensação de leve desorientação que ocorre quando se percebe que há
uma fração, no começo, entre o que é dito e o que é feito, e depois se espalha até que toda a
estrutura seja quebrada. Jornada ao Oeste dialoga com as etapas e as experiências revolucionárias
das revoluções chinesas. Iniciando com um sentimento de ímpeto revolucionário que se encerra
soterrado por uma montanha de conceitos e não consegue se concretizar.
É sob tal sentimento que Manara e Pisu realizaram um ano antes Alessio, Il Borghese
Rivoluzionario (1975), no qual o protagonista, que não tem sequer um rosto definido, passa a vários
estágios experiência revolucionária na Rússia do início do século XX -mais arrastado por eventos
para uma participação sentida - para então avançar nos anos setenta, onde ele escreve publicidade
para os produtos daquela empresa que não puderam mudar, com todas as frustrações do caso.
Segundo Manara, essa involução talvez seja uma consequência direta da cultura dos anos setenta:
existia um ímpeto de mudar a sociedade com ferramentas culturais, com a política. Instrumentos
que, em vez disso, estavam firmemente nas mãos daqueles que contestavam.
Durante os escuros anos 1970, muitos artistas renegaram a vida pública e conseguiram
retornar à vida privada. Outros, frustrados pela queda de suas ilusões, aliaram-se ao mesmo sistema
de poder que desprezavam. Manara e Pisu acreditavam que seu ponto de referência era a política,
porque tudo era político, inclusive suas manifestações artísticas. Os dois autores acrescentaram a
Jornada ao Oeste camadas interpretativas e ressuscitaram outras que já estavam presentes
ressignificando-as a seu molde.
Lo Scimmiotto já não fala somente da introdução do Budismo na China, mas se apresenta
como uma parábola para China Revolucionária e a narrativa Maoísta contada pelos olhos de dois
jovens italianos em um período de repreensão artística e danças de poder.
A obra é resultado da recepção do Jornada ao oeste no contexto de um jovem artista italiano
que ao interpretá-la através de suas mediações deu-lhe um novo sentido atrelado a sua cosmovisão
europeia dos anos 70.
4. Vis-a-vis: Análise Comparativa e Discussão
A cena inicial (figura 1) retrata o nascimento mitológico do rei dos Macacos. Conta-se que
o macaco tenha surgido da explosão de uma rocha sagrada. O nascimento de Wukong faz uma
referência direta à gênese do cosmo na mitologia chinesa, o nascimento de Pan Gu e o ínicio do
universo.
No início, os céus e a terra eram um e tudo era o caos. O universo era como um
grande ovo negro carregando Pan Gu. Depois de 18 mil anos Pan Gu despertou
de seu longo sono. Ele se sentiu sufocado e abrindo os braços trincou o ovo de
dentro para fora. A luz clara subiu e formou os céus, a matéria fria e túrbida ficou
em baixo e formou a terra. Pan Gu ficou no meio, sua cabeça tocava o céu e seus
pés estavam firmados na terra. (BIRREL, 1999, p. 64, tradução nossa)20
20
The universe was like a big black egg, carrying Pan Gu inside itself. After 18 thousand years Pan Gu woke from a
long sleep. He felt suffocated, so he took up a broadax and wielded it with all his might to crack open the egg. The
light, clear part of it floated up and formed the heavens, the cold, turbid matter stayed below to form earth. Pan Gu
stood in the middle, his head touching the sky, his feet planted on the earth.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
No princípio da narrativa, a personalidade quase infantil do Macaco faz com que ele pregue
peças, zombe e discuta com seus opositores como uma criança que desafia os pais em frente ao
castigo.
Nesse sentido, Wukong poderia representar o caos que perturbar a ordem celestial,
principalmente por não respeitar o “protocolo e a hierarquia” estabelecida pelas divindades.
Wukong é a representação de uma força da natureza, de um poder e força bruta que se mostram
desapegado das convenções sociais do Céu exigindo o que acha ser o certo:
[...] Por que o Céu deveria ter apenas um mestre, quando na Terra reis seguem
reis? Se força é honra, então ninguém é mais forte do que eu, ou mais honrável. É
por isso que ouso lutar, pois apenas heróis merecem vencer e governar.
(KHERIDAN, 2003 p. 116)
Wukong acredita que sua força era seu direito de governar e por sua arrogância que foi
punido finalmente pelo Buda. Sua força física é demonstrada durante as passagens de combate e
de treinamento e sua ânsia para tornar-se imortal o levou até o Céu, mas por ser insubmisso caiu
novamente à Terra, onde ficou aprisionado.
21
HSIA, C. T. The Classic Chinese Novel – A critical introduction, Columbia University Press, New York, 2004 p.
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Sun Wukong ainda goza de grande fama tanto na China, quanto em outros países asiáticos,
sendo personagem recorrente em quadrinhos, desenhos, animações, games, novelas e filmes.
Para estudiosos de mitologias comparadas, o Rei Macaco é um primo de Hanuman, o deus
Macaco Hindu, ou ainda uma versão chinesa de um personagem brincalhão, trapaceiro, como Loki
no Norte da Europa ou o Coiote na América.
No fundo, Sun Wukong é um mito. Parece por vezes ser um personagem plano, com pouco
apelo para nossa cultura atual, pois foi desenvolvido em um período comum à todas as culturas e
continentes, onde as figuras míticas desempenhavam papéis específicos em contextos morais
estreitamente definidos. Seja o herói, deus, trapaceiro ou donzela, não se esperava que o
personagem fosse contra seu tipo.
Talvez essa seja a grande inovação a respeito do personagem proposta por Manara e Pisu.
Os dois, partindo da narrativa chinesa e aproveitando traços característicos do personagem, o
adaptam de maneira mais performática. Wukong ainda é o herói destemido que encara os
problemas com humor e irreverência. Porém outras camadas foram acrescidas à sua personalidade,
transformando-o em um personagem esférico, que conversa muito mais com um público leitor já
acostumado com essa humanização dos tipos.
Na versão italiana Wukong chora, se desespera, tem medo e se torna por vezes violento e
agressivo. Tais características não aparecem na adaptação chinesa que prefere trabalhar o
personagem por outra ótica, mais colada à produção literária original, tratando Wukong como um
personagem plano.
Aparecendo nas duas adaptações como super-herói, Wukong, é também o personagem de
desenho perfeito: indestrutível, incansável, e perspicaz.
Contando a história de Sun Wukong, que originalmente é uma história fantasiosa sobre a
busca da imortalidade, os autores italianos focam no primeiro arco narrativo centralizado na figura
de Wukong e no embate com os deuses. A crítica literária chinesa concorda em afirmar que este
arco na obra literária é uma alegoria as disputas de poder durante dinastia Ming. No quadrinho
chinês dos anos sessenta, tal embate é ressignificado como uma luta de classes, atuando em um
contexto de produção inserido no meio da Revolução Comunista, considerando que a mídia de
quadrinhos servia também como propaganda para a juventude.
Na versão quadrinizada chinesa, Wukong representa o povo, enquanto os deuses poderiam
representar o velho governo que barra o povo da busca de seus desejos por meio de burocracias e
esquemas. Voltaremos a esta temática quando chegarmos ao “palácio celestial”. A adaptação
italiana continua nesta mesma perspectiva (povo x governo), porém existe ainda uma outra camada
interpretativa. A cosmovisão italiana, principalmente a da juventude, idealizava a China como o
paraíso exótico do comunismo. Tal visão ganhou forma graças às várias crises do governo na Itália
e a insatisfação das classes operárias e acadêmicas com o governo. A adaptação chinesa nos conta
paralelamente a trajetória de Wukong, a trajetória do próprio comunismo chinês. Abrir o quadrinho
com o Macaco estrangulando um tigre com as listras e estrelas americanas é dizer a China é
superior: O tigre americano foi inicialmente pego pela cauda e arremessado para longe, e agora o
povo tinha acesso à caverna dos prazeres. Ao se livrar dos ideais americanos o povo finalmente
seria livre para buscar a felicidade da maneira que desejassem.
A ideia de liberdade é expressa na cena seguinte (figura 3), na entrada da caverna das flores
e frutos. A caverna das flores e frutos funciona na narrativa como um característico locus amoenus,
expressão comumente utilizada nas narrativas arturianas. Trata-se de um lugar de descanso, o
ponto de partida para a jornada e para onde os personagens retornam depois de suas aventuras.
Na versão chinesa, a expressão do Macaco parece ser uma expressão de constatação. Não
notamos tristeza em seu rosto (embora a legenda nos diga que lágrimas rolaram), a frase do Rei
dos Macacos é também bastante contida: “Este velho corpo já não pertencerá a este mundo”. A
versão italiana é muito mais emotiva. Os variados “closes” no rosto do macaco denunciam sua
tristeza, reiterada no quadro final com a sua cabeça reclinada no colo de uma de suas seguidoras
onde o personagem fala: “O rei da morte, Yama, me chamará”. A lágrima escorre de seu rosto.
Durante toda a versão italiana acompanhamos uma figura feminina que acompanha a jornada do
Macaco. Tal figura não está presente na narrativa original de Jornada ao Oeste e é apresentada de
início como uma seguidora devota, uma companheira fiel. Considerando a versão de Manara como
uma alegoria à Jornada de Mao Tse Tung associamos essa personagem à Jiang Qing (江青);
conhecida por Madame Mao, a quarta esposa do líder do Partido Comunista. Na obra, sendo mais
que esposa, a personagem feminina parece agir como uma consciência para o personagem
Wukong. Ela equilibra os desejos do Macaco e por várias vezes ao longo da narrativa conduz os
acontecimentos. Do ponto de vista imagético é notadamente o dedo de Manara na narrativa. O
autor é bastante famoso pelos quadrinhos mais sensuais e por vezes sexistas retratando o corpo
feminino em posições e proporções absurdas. Tal traço reflete também um pensamento da época
que acompanha outros quadrinhos já consagrados do mesmo período tanto americanos quanto
europeus. A falta de personagens femininos durante o primeiro arco de Jornada ao Oeste,
enquanto obra literária, pode ter levado Manara a criar esta personagem justamente para apelar ao
público masculino (que nessa época era o maior consumidor de narrativas em quadrinhos), bem
como transgredir uma postura falsamente recatada da sociedade italiana de sua época.
A aproximação mais afetiva da cena contribui para a empatia do leitor em relação ao
personagem. Ele serve como elo entre o leitor e a narrativa. É a personagem que torna patente a
ficção, através dela a ficção se adensa e se cristaliza.
Um equívoco de interpretação é notado nessa cena. No folclore e na mitologia chinesa, não
existe um Yama, Rei da Morte. A aparição dessa divindade na cultura chinesa coincide com a
introdução do Budismo no país. A versão chinesa, se alinhando com o texto original, prefere não
tratar deste assunto por adotar uma cosmovisão mais taoísta, na qual a morte e o inferno não são
encarados como o domínio de um deus. A cosmovisão italiana, partindo de uma visão greco-
romana é acostumada a atribuir o reino dos mortos a uma divindade (Hades, por exemplo ou
Lúcifer) e para esta adaptação aproveitou-se a divindade Budista. A personificação da morte está
muito mais presente na nossa cosmovisão ocidental do que na visão chinesa, principalmente se
considerarmos o contexto de produção da obra base, quando o Budismo ainda estava em expansão.
Seguimos para uma cena clássica (figura 5), após construir uma jangada e despedir-se de
seu povo o Macaco navega em busca da imortalidade.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
Nela, a abordagem do Macaco é muito mais agressiva e após descobrir que o lenhador não
era o sábio que ele estava procurando, Wukong mata o lenhador com um golpe de machado
abrindo-lhe a cabeça. A cena final do quadro é justamente o Macaco saindo sem olhar para trás,
enquanto o lenhador aparece morto com o machado fincado na cabeça. Tal cena, aliada às cenas
de nudez apresentadas anteriormente denunciam o caráter adulto da narrativa italiana e ao traço de
Milo Manara.
A figura seguinte (figura 7) e a próxima (figura 8) talvez sejam as que mais se afastam na
questão composicional do quadro. Trata-se do encontro de Macaco com os sábios chineses e com
seu primeiro mestre que lhe dá seu nome de discípulo (Sun Wukong), e versa o personagem
principal na arte da metamorfose e nos poderes místicos. O personagem do velho sábio é comum
em várias narrativas, sendo inclusive um dos elementos marcados na Jornada do Herói de
Campbell (CAMPBELL, J. 1949).
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
A alegria do personagem a ser aceito como discípulo e sua disposição para o trabalho (por
mais árduo que seja) dizem muito a seu respeito. Tal aspecto de criação de personagem será uma
marca do “herói oriental” e tratado também como o segredo para atingir a “sabedoria perfeita”
expressada no taoísmo e budismo chinês. Wu Kong se dispõe a servir e enquanto serve observa os
outros discípulos e aprende em silêncio. Certa noite, após solucionar um enigma proposto por seu
mestre, Wukong vai visitá-lo em seus aposentos com a finalidade de finalmente descobrir o
segredo da imortalidade.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
Wukong facilmente escapa dos ataques e, usando sua recém adquirida magia, faz cópias
de si mesmo apenas dizendo a palavra “transforme-se”. A mesma cena aparece nas duas
adaptações. Uma curiosidade desta página na edição italiana são as palavras escritas em inglês em
meio à cidade podemos ler: “acid, flash, overdose, junkie, shot e Katmandu”. O local representado
naquela cena é um misto da cultura tibetana (sendo Catmandu a capital do Nepal) e a liberdade ou
a depravação trazida pelos tóxicos, todas as outras palavras fazem referência às drogas. Na figura
seguinte (figura 10), o demônio é subjugado por Wukong com a ajuda de seus companheiros
macacos, a cena é muito semelhante nas duas adaptações, porém a versão italiana a retrata de uma
maneira mais “gore”: podemos ver o sangue o demônio sendo desmembrado.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
Sobre o demônio, enquanto na versão chinesa ele seja tratado como o Rei da Confusão, a
versão italiana lhe dá um pouco mais de seriedade tratando-o como o “Demônio da Destruição”.
Tal característica deve-se ao caráter mais performático ou grandioso da narrativa italiana.
Derrotando o demônio, Wukong percebe que lhe falta uma arma apropriada para o combate
e parte para o Reino submarino do Dragão do Mar em busca de um de seus tesouros. O Rei Dragão
lhe oferece algumas armas, mas Wukong não parece impressionado (figura 11).
Eis que ele avista o pilar que sustenta o mar (figura 12). Na versão chinesa, o pilar se
encontra visível, enquanto na versão italiana ele está escondido atrás do trono do Rei Dragão,
Wukong destrói o trono (deixando o Rei Dragão furioso) e encontra um arsenal bélico composto
de granadas, fuzis, bombas químicas, máscaras de gás, e, no centro, um bastão gigantesco que
parece emanar radiação. Tais armas contrastam com as armas antes apresentadas pelo Rei Dragão
em tom cordial que eram espadas, lanças e armas.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
O arsenal invisível revelado destoa da postura amistosa do Rei Dragão. Aqui Manara
parece fazer uma alusão aos tratados para a interrupção de testes nucleares assinados por 100 países
em 1963. As armas de destruição em massa foram escondidas atrás de uma postura amistosa e de
cooperação, porém a China se recusou a assinar o acordo e em outubro de 1964 desenvolveu o
primeiro teste nuclear do projeto 596, em Lop Nur.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
Após enfrentar o rei Dragão do Mar, Wukong retorna para a caverna das flores e frutos e
em seu momento de lazer cai no sono e sonha com o Reino das sombras. Na versão chinesa,
Wukong adormece depois de beber e comemorar com seus companheiros, enquanto na versão
italiana o personagem adormece após fazer sexo com sua companheira. As escolhas conotam
também uma segmentação do público: uma adaptação tem como alvo um público genérico
incluindo crianças não sendo cabível a representação de uma cena de sexo nos quadrinhos, embora
a literatura chinesa já abordasse há muito essa temática, a graphic novel italiana dirige-se para um
público maduro que está acostumado com o caráter transgressor das obras quadrinizadas e
principalmente com o estilo de Milo Manara.
Nas duas adaptações, o reino é representado como um templo, apesar da versão italiana ele
parecer mais imponente e a fumaça ao redor bem como o vazio contribuem para o sentimento de
desolação. Wukong é capturado, amarrado e levado para esse lugar. Enquanto na adaptação
italiana os responsáveis pela captura de Wukong não tem rosto, na versão chinesa eles são
retratados com aspectos animalescos. Tal aspecto se dá pela crença chinesa de que os demônios
podem assumir formas animais e mesmo intermediárias. Wukong se liberta das amarras e vai à
presença das divindades que comando o Reino das Sombras. Na versão chinesa estes são os reis
das 10 gerações, na versão italiana seria o Rei Yama. A ambientação da cena também é bastante
distinta (figura 14): enquanto na adaptação chinesa o mundo das sombras parece uma cidade
comum, na versão italiana é certamente um lugar de tortura e sofrimento. Podemos ver corpos
empalados, outros em chamas, outros ainda em gaiolas e enforcados acima da sala onde Wukong
se encontra com o rei Yama.
É apresentado a Wukong o livro da vida e da morte e Wukong intimida o Rei Yama a retirar
seu nome e de todos os outros Macacos. A cena finalmente se revela como uma visão que Wukong
teve enquanto descansava após obter o bastão. Após despertar, Wukong decide agir por impulso
e parte para os portões do Céu.
Wukong está sozinho no centro, enquanto todos os encaram, afirmam sua postura
desafiadora, o Imperador de Jade está reclinado sozinho em sua mesa no meio do salão sem
demonstrar preocupação.
As formas quadradas e redondas se alternam. A ideia de um espaço quadrado aparece
ligada a um conjunto de regras sociais estabelecidas: os diversos grupos sociais se organizavam
em espaços bem delimitados.
Para aferirmos espaço na narrativa, é necessário recorrer aos mitos chineses,
principalmente ao mito de criação, e, além disso compreender o espaço e tempo não como duas
concepções distintas, mas como princípios intrinsecamente interligados.
Em uma de suas variadas versões, uma entidade duplamente feminina e masculina criou e
organizou o cosmo, cabendo à identidade feminina (Nü Wa) organizar o tempo, e à identidade
masculina ( Fu Xi) organizar o espaço.
Nü Wa trazia em sua mão como símbolo um compasso; e o redondo e o Yin são os símbolos
do feminino que emprestam suas características ao tempo. O tempo é cíclico. Na China antiga a
contagem do tempo era dada pela transição das fases da lua, pela mudança das estações, pelas
revoluções e alternâncias de dinastias.
Fu Xi carregava um esquadro e o quadrado e o Yang são o símbolo do masculino. Assim,
os espaços eram distribuídos em quadrados: os espaços agrícolas, os muros ao redor das cidades,
a organização das tropas e as festas religiosas. O quadrado tem quatro pontas, cada uma apontando
para uma das direções: Norte, Sul, Leste e Oeste.
O pensamento erudito e comum obedece na China a uma representação do Espaço e do
Tempo que não é puramente empírica, mas relacional. Assim, não cabe ver o tempo e o espaço
como duas entidades autônomas, ambos podem constituir um meio de ação que pode também ser
um meio receptivo.
Na narrativa de Jornada ao Oeste, inicialmente Wukong habitava a montanha de flores e
frutos, os deuses habitavam o palácio celestial, os homens habitavam as cidades. Cada um desses
grupos seguia sua própria cartilha de relações sociais e afetivas que os separavam um dos outros.
Para além dos quatro lados do espaço, encontram-se os confins das terra e os quatro mares.
Neles habitam os bárbaros, os seres animalescos, os demônios e espíritos que os personagens de
Jornada ao Oeste enfrentam.
Os chineses – os seres humanos – não podem residir nos Degraus do Mundo sem
perder imediatamente sua condição de homem. Os banidos a quem se pretende
desqualificar revestem-se, tão logo são expulsos para lá, da aparência semi-
animalesca que marca os seres desses confins desertos. O Espaço inculto – sem
regras sociais – suporta apenas seres imperfeitos. (GRANET, 2008 p. 69)
Ao viajar para o palácio celestial, Wukong viola a ordem das relações sociais e age como
se não pertencesse àquele lugar. Assim, o percurso do personagem é justamente a alternância de
espaços, e, simultaneamente, a mudança dos paradigmas sociais e hierárquicos. O Macaco transita
através da extensão, muitas vezes sem entender os ritos e as relações entre os indivíduos, e sua
jornada é certamente em busca da Imortalidade – como o próprio personagem afirma por diversas
vezes. Mas também é uma jornada para conhecer as diversas relações.
Na adaptação chinesa, a composição da cena é bastante similar à adaptação italiana, porém
aqui Wukong é acompanhado pelos celestiais até a presença do imperador. A corte dos celestiais
demonstra a cordialidade e a ritualidade escritas nos tomos confucianos e denunciam que o sistema
celestial funciona através de um conjunto de regras e princípios que deve ser seguido. O imperador
de Jade então oferece para Wukong um cargo na corte ficando responsável por cuidar dos estábulos
dos deuses.
O Imperador é representado de maneira bastante distinta nas duas adaptações. Enquanto na
chinesa ele é retratado como um homem por volta de seus 40 ou 50 anos, bastante solene e austero,
a versão italiana prefere retratá-lo como um velho obeso, caquético e promíscuo. A figura do
imperador de Jade funciona nas duas obras como uma alegoria para o governo: na China, a
solenidade e a seriedade representam a burocracia e o distanciamento dos governantes para com o
povo impedindo-os de progredir e iludindo o com sonhos de ascensão social e financeira; na
italiana, ao optar por pintá-lo como um velho promíscuo, Manara e Pisu denunciam como sua
cosmovisão lida com o governo tratando-o como aproveitador, retrógrado e perverso.
Wukong vai então trabalhar com os cavalos celestes, mas quando percebe que sua posição
não traz nenhum prestígio, fica insatisfeito e agrupa seu exército.
A partir daí desenvolve-se o primeiro duelo entre Wukong e seus macacos contra as
divindades. Na obra chinesa, a tropa de Wukong é apoiada por um exército de demônios e outras
criaturas da floresta que se engajam em feroz combate com as divindades que marcham para o
combate (figura 16). A obra chinesa parece remeter a uma luta de classes: os que estavam no céu
com suas pomposas armaduras e armamentos, e os que se encontravam na floresta com armas
roubadas e improvisadas. Wukong os lidera e, usando seus poderes, se multiplica e vence os
exércitos celestiais que batem em retirada.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
Uma mulher só passa da condição de filha para a de esposa, um homem só sai da vida
para entrar na morte, um recém-nascido só abandona o mundo de seus ancestrais para
penetrar na porção viva da família – tudo isso só ocorre se gestos de despedida houverem
precedido os festejos de acolhida. (GRANET, 2008, p. 71-72)
Assim, é possível pensar que havia um tempo em que o Macaco habitava a caverna de
flores e frutos, e ao abandonar esse espaço encerrou-se este tempo, e neste momento a narrativa
existe em outro espaço (o Céu) e consequentemente um novo Tempo, que passa mais devagar. A
concepção temporal, decomposta em eras completas e finitas, é harmonizada com a concepção
espacial que se decompõe também num mundo fechado e finito. Ambas têm por fundamento uma
ordenação da sociedade.
Os ideogramas que traduzimos como Tempo e Espaço, em chinês, trazem verdadeiramente
duas significações distintas. Shi (时) indica a ideia de circunstância, de ocasião; enquanto Fang
(方) traz a idéia de locação, sítio. A alternância que regia os Tempos e os Espaços era justamente
o que organizava a vida social, imprimindo na sociedade uma necessidade periódica de renovação
e recomposição.
Wukong habitou todas as transições, renovações e recomposições sociais. Em sua busca
por imortalidade, o personagem incorpora diversos papéis sociais: soldado, monge, deus,
prisioneiro, discípulo, mestre. Transitando pelos tempos, ele vive todos os tempos, transita por
todas as estações.
Jornada ao Oeste segue em seu aspecto temporal o ciclo das estações, que iniciam e
terminam o ciclo mais de uma vez, referindo-se à imortalidade buscada pelo personagem.
Essa noção de tempo cíclico não aparece na narrativa italiana que conta uma história linear
com início (apresentação), desenvolvimento, clímax e desfecho seguindo um ritmo narrativo
adequado ao público europeu.
Ao perceber a chateação de Wukong, o imperador de Jade decide passar-lhe uma tarefa:
cuidar do pomar dos pessegueiros sagrados (figura 18).
Wukong parte então para uma vistoria preliminar na plantação (figura 18). Wukong se
admira dos pêssegos produzidos no pomar e intenta comer um dos frutos. A intenção de Wukong
com os pêssegos é distinta nas duas obras. Na versão chinesa parece que é a fome ou a curiosidade
pelo gosto da fruta que atrai Wukong para os pêssegos. Na narrativa italiana existe com maior
clareza uma ideia de transgressão: o pêssego seria o fruto proibido análogo ao fruto bíblico de
Adão e Eva. Ao comer da fruta proibida do pomar Wukong se tornaria mais poderoso, mais sábio
e é essa tentação (similar a tentação da serpente) que leva o Macaco a comer o fruto e derrubar a
primeira peça de um dominó de acontecimentos que culminam com o embate com o Buda.
Ao aproximar essa cena da narrativa bíblica, há um “sintoma” de uma cosmovisão européia
e italiana marcada pelo catolicismo romano. Wukong aqui se aproxima de Adão em sua
intencionalidade e sentimento destoando da narrativa chinesa, que o aproximam de um caráter
muito mais símio, animalesco, onde o Macaco é apresentado como travesso e curioso.
Este mesmo trecho guarda ainda grande semelhança com a narrativa do Comunismo chinês
e a figura de Mao Tse Tung. O líder chinês, assim como Wukong, após assumir o poder e
finalmente concretizar seu sonho, percebe que ainda lhe falta algo e a ânsia para suprir essa falta
leva o líder a uma Revolução, no caso de Mao Tse Tung, a Revolução Cultural e no caso de
Wukong a Revolução no Céu.
Dessa vez, os celestiais lutam novamente com Wukong causando um grande alvoroço e o
que parece ser uma massa de corpos engajada em combate nas duas adaptações (figura 19).
O Imperador de Jade decide então convocar Erlang Shen, o grande herói idealizado e figura
recorrente nas narrativas tradicionais chinesas, para liderar os celestiais em combate. Na adaptação
oriental Erlang é apresentado de maneira imponente sempre desenhado acima e um pouco maior
que Wukong, utilizando sua veste tradicional de combate e acompanhado por seus dois animais o
cão e a águia (respectivos símbolos de lealdade e coragem, símbolos que definem também o
personagem).
A narrativa italiana não retrata o personagem com tanta pompa, e a escolha simbólica
reforça a ideia de que aqui o herói é o Macaco Sun Wukong. Erlang é grotesco, desajeitado e
aparece nu o tempo todo exceto pela máscara de gás. Apesar da figura cômica, Er-lang se mostra
um temível oponente para Wukong. O embate entre os dois parece empatado durante todo o tempo.
A sequência de imagens em uma produção em quadrinhos é o que simula a passagem de
tempo. A mente humana tende a preencher lacunas de compreensão para criar sentidos. Mesmo
quando algo é incompleto, nossa mente tende a completá-lo da melhor forma possível. A
linguagem do quadrinho se aproveita disso e utiliza a calha (o vão entre um quadro e outro) para
induzir nossa mente a agir dessa forma. Um exemplo claro disso é o final da página italiana: um
dos servos de Erlang aponta uma câmera televisa para Wukong (o embate entre os dois tratava-se
de um embate televisionado) e no quadro seguinte vemos uma luva atingir o Macaco no rosto,
apesar de serem dois momentos distintos. Ao notar a calha do quadrinho, o leitor cria e racionaliza
o tempo e a ação automaticamente. Finalmente apesar de haver duas figuras, o leitor as
compreende como um único momento.
Essa articulação induzida é o que possibilita os leitores de compreenderem a linguagem
dos quadrinhos. A obra, por sua vez, se utiliza dessa percepção motivada pela linguística para ser
compreendido naturalmente pelos leitores.
A adição de balões de fala também contribui para a formação da temporalidade. Os
quadrinhos determinam uma noção de tempo dentro de cada painel. A introdução dos diálogos na
versão italiana faz uma enorme diferença da versão chinesa, pois simultaneamente com os diálogos
foi acrescentado o tempo, na verdade uma espacialidade temporal. Sendo os diálogos nada uma
marcação discursiva, eles indicam que a conversa acontece em um determinado espaço de tempo,
que permite ao leitor associar passado e futuro simultaneamente ao considerar o diálogo como
referência para o tempo presente.
Outro fator a se considerar é a “sonoridade” dos diálogos e onomatopeias. Quando ocorre
um diálogo entre os personagens de quadrinhos, eles estão falando em voz alta. O texto escrito
dentro de um balão de fala é uma indicação de som. Tecnicamente, o leitor não está lendo o
diálogo, mas “ouvindo-o”, a informação sensorial de som é recebida pelos olhos e não pelos
ouvidos. A luva que salta da câmera imediatamente nos remete aos cartoons da época como os
Looney Tunes, que tem por personagem principal o coelho Perna Longa.
No quadrinho em questão, a onomatopeia SPRÒCK evoca não somente um reconhecimento
sensorial, mas também uma emoção.
A fonte, a cor e o tamanho projetam um sentimento específico devido a uma formalidade
visual já consolidada em nossa cosmovisão através da multidão de fantasmas propostas por
Warburg. A recorrência desta mesmo forma em várias produções é o que possibilita sua rápida
compreensão pelos leitores que já estão familiarizados com esses elementos. Para um público
diferente isso certamente não ocorrerá da mesma maneira.
O embate entre Wukong e Erlang é o maior da narrativa, e apresenta ambos os personagens
se transformando e apresentando seus poderes (figura 21).
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
Já foi tratado nesta dissertação a mutabilidade como traço central do pensamento chinês
tradicional, partindo do I Ching e das noções de Yin e Yang sempre em alternância. É comum em
uma narrativa fantástica chinesa que o poder de luta de um personagem seja medido por sua
capacidade de transformação. Quanto mais elementos ele domina mais poderoso o personagem é,
nesse ponto Wukong e Erlang são equipotentes. Cada um responde imediatamente às
transformações do outro. Wukong vira um peixe e Erlang transforma-se em gaivota. Wukong
transforma-se então em um peru e Erlang encontra-o imediatamente (sempre acompanhado por
seus assistentes que filmam toda a cena). Wukong transforma-se em um templo (figura 22) e
ErLang brinca com a situação nas duas narrativas. Na chinesa ao notar o mastro no centro, o
personagem ameaça dizendo que quebrará as janelas e arrombará a porta. Na italiana o personagem
parece brincar de esconde-esconde provocando o Macaco. Nota-se que o templo (que é Wukong
transformado) parece estar preocupado com o oponente as janelas quadradas abertas se
assemelham a olhos arregalados e a porta composta por tábuas verticais nos remete a uma boca
cerrando os dentes de nervosismo.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
Esses elementos simbólicos não aparecem na adaptação chinesa, onde o templo é retratado
de maneira mimética, assemelhando-se a um templo real, sem características antropomorfizadas
que contribuem para o caráter cômico da adaptação italiana (figura 23).
.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
A disputa entre os dois personagens se encerra com Erlang saindo vitorioso (figura 24).
Wukong é finalmente capturado e levado para sofrer seu castigo.
Na versão italiana, temos Erlang entoando o refrão uma canção da era fascista italiana
composta no período entre-guerras. A música é Vincere, Vincere, Vincere (datada de 10 de junho
de 1940), um exemplo claro da exaltação italiana frente à guerra. Nela hà referências à Roma
imperial e um claro sentimento de vingança, com o objetivo claro de enaltecer o povo italiano e a
figura de Mussolini a quem foi dado um halo divino. Segue transcrita toda a letra da canção:
Temprata da mille passioni la voce d'Italia squillò! Ad ogni costo, nessun ci fermerà!
"Centurie, coorti, legioni, in piedi che l'ora suono"! I cuori esultano, son pronti a obbedir,
Avanti gioventù! son pronti lo giurano: o vincere o morir!
Ogni vincolo, ogni ostacolo superiamo, Elmetto, pugnale, moschetto, a passo romano si va!
spezziamo la schiavitù che ci soffoca prigionieri La fiamma che brucia nel petto
del nostro Mar! ci sprona ci guida si va!
Vincere! Vincere! Vincere! Avanti! Si oserà l'inosabile, l'impossibile non esiste!
E vinceremo in terra, in cielo, in mare! La nostra volontà è invincibile,
E' la parola d'ordine d'una suprema volontà! mai nessun ci piegherà! (VINCERE, VINCERE,
Vincere! Vincere! Vincere! VINCERE, Cori Era Fascista, Vol. 5)
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
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Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
Na figura seguinte (figura 26), Wukong é colocado dentro de um vaso que queimará sua
pele, músculos e vasos na intenção de purificá-lo.
92
No quadrinho chinês, sob esse vaso aparece o BaGua símbolo da transformação chinesa e
o responsável pelo fogo é o próprio Lao Zi, o maior pensador taoísta e responsável pelos primeiros
ensinamentos desta corrente.
Lao Zi também aparece na versão italiana. Porém ao invés do BaGua, símbolos do
satanismo acompanham o personagem como o pentagrama, os morcegos e o bode. Eis a clara
alusão à cosmovisão italiana ao alterar um símbolo chinês por outros elementos, mais facilmente
associados pelos leitores ocidentais. Na edição italiana Lao Zi não é um sábio, mas um feiticeiro
cheio de más intenções. As associações com o satanismo e a magia negra dão ar de Rasputin ao
personagem.
Ao contrário do que se esperava, Wukong se liberta rompendo o vaso e saltando pronto
para atacar seus agressores (figura 27).
A cena é bastante performática nas duas adaptações, porém o grande quadro que ocupa
quase toda a página com o escrito “W LA LIBERTÁ” (o “W” na verdade são dois “V” e a frase
deve ser lida como Viva la libertá). Wukong se liberta do castigo dos deuses, e mantém sua
integridade física e mental e parte para cima dos imortais se engajando mais uma vez em combate.
Os imortais, sem ver possibilidade de vitória, apelam para o Buda (figura 28). Na narrativa
chinesa original, esta etapa é carregada de significados simbólicos. Considerando que os imortais
não dão conta de derrotar Wukong, eles necessitam apelar para um poder superior. Tal
93
posicionamento é uma alegoria do Budismo que crescia na China durante os séculos XV e XVI
(período de produção da narrativa literária). Enquanto nova religião, o Budismo viria a superar
todas as antigas divindades chinesas e as crenças “atrasadas” que elas representavam, em favor de
uma nova crença, mais verdadeira e poderosa. O quadrinho chinês faz ainda tal associação,
enquanto na narrativa italiana tal sentido interpretativo é passado ao largo.
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Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
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dedica dois quadros para este fato e Wukong é retratado urinando com as nádegas de fora
despreocupadamente.
Com outro salto ele retorna para a palma de Buda somente para descobrir que nunca havia
saído dela, os pilares nos confins do espaço eram os dedos da divindade. A fisionomia de Buda é
diferente nas duas adaptações: na chinesa ele é sempre sereno e calmo, enquanto que na italiana
ele demonstra insatisfação frente à irreverência do Macaco. O Buda chinês trata nosso personagem
principal como uma criança insolente que ainda não sabe muito do mundo, enquanto que na versão
italiana Buda parece apreciar a derrota de Wukong.
Ao perceber sua derrota, Wukong imediatamente definha na narrativa italiana e é
arremessado para longe na chinesa (figura 31). O reconhecimento do personagem acontece
juntamente com o nosso. Percebemos que o personagem invencível que evoluiu em poder e
consciência durante a narrativa chegou em seu momento derradeiro.
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Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976
O quadro demonstra a mão de Buda pressionando o Macaco contra a terra. Wukong agora
está esquelético desprovido de seus poderes derrotado em todos os sentidos. A altivez e a
irreverência do personagem dão lugar à súplica e frustração: a Jornada de Wukong estava
acabando. O Macaco inicialmente visto como herói parece acabar derrotado como um vilão. Todos
os poderes que ele adquiriu durante a narrativa não servirão frente ao Buda.
Mais uma vez, na narrativa chinesa literária isso é uma alegoria ao Budismo em pleno
desenvolvimento na China. A narrativa quadrinizada chinesa demonstra a impotência da
população frente ao governo; e na narrativa italiana, que se define como uma contadora da
narrativa comunista na China, Wukong é Mao Tse Tung e simultaneamente Mao Tse Tung é o
Ideal Comunista chinês derrotado. Todas as revoluções, todos os planos e todas as vitórias
anteriores culminam na morte do personagem e na derrota eminente.
A figura final (figura 32) é bastante destoante nas duas narrativas. A chinesa acaba com o
monge Tripitaka encontrando o Macaco após 500 anos de castigo, representando o início do arco
seguinte da narrativa em que Wukong funcionará como personagem secundário em uma Jornada
de redenção e autodescobrimento. A última página da adaptação italiana nos mostra a discípula
fiel do Rei dos Macacos, saltando de cabeça na montanha em sacrifício; o líder havia morrido e
com ele a narrativa que se construía, só restava morrer junto com ele. Wukong e sonho Comunista
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foi soterrado sob uma montanha de conceitos e o quadro final de Manara é belo e aterrador. A
montanha é composta de palavras de ordem e rostos. Vemos Lumumba fundador do Movimento
Nacional Congolês (MNC), Giuseppe Pinelli, conhecido anarquista italiano que morreu após ser
detido pela polícia em 1969, o próprio Mao Tse Tung, soldados chineses, letreiros dizendo “classe
operária”, “contradição”, “contestação”, “desilusão”.
Manara e Pisu tinham decidido não adaptar para os quadrinhos todo o Jornada ao Oeste,
mas decidiram parar no ponto onde o Macaco foi bloqueado pelo Imperador de Jade e por Buda
nas entranhas de uma montanha a partir da qual apenas 500 anos depois foi liberto para viver a
segunda parte de sua aventura.
Enquanto Manara desenhava a cena final de “Lo Scimmiotto”, o rádio transmitia a notícia
de que Mao Tse Tung estava morto. A notícia certamente impactou o desenhista, que termina sua
narrativa em um tom muito mais pessimista que o lianhua chinês, que vê a prisão de Wukong
como uma pausa e não um fim. Na aventura Wukong é aprisionado como um vilão para depois
voltar e aprender a ser um herói. A italiana o pinta como herói durante todo o tempo e encerra com
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sua derrota na hora mais sombria. O Wukong de Manara e Pisu não vence, mas é derrotado tal
como o Ideal comunista de Mao Tse Tung.
A opção de Manara por encerrar sua obra nesse momento da narrativa chinesa ao invés de
dar prosseguimento para a segunda parte (a jornada de redenção de Wukong) revela também outra
interpretação. A derrota no final é também símbolo do sentimento de desassossego daquela
juventude italiana idealista frente ao rumo violento que o Comunismo chinês tomou em seus
últimos suspiros. O sonho chinês, os intelectuais e artistas italianos que olhavam para a China com
admiração agora desviam o olhar e cogitam o que deu errado, ou onde a revolução se perdeu.
A jornada do “Jornada ao Oeste” saindo da China e sendo adaptado no Ocidente, despertou
em uma geração um desejo de “Jornada ao Leste”, de conhecer e experimentar a China em busca
de encontrar lá uma palavra outra distinta da que se ouvia na Europa. A alternativa chinesa bastante
promissora de início agora já não parecia mais viável. O sonho da Jornada ao Leste também foi
soterrado sob a montanha.
99
5. Conclusões
Seguindo nosso percurso metodológico, foi desenvolvida uma análise de caráter ensaístico
a fim recolher e interpretar elementos composicionais de duas narrativas de arte sequencial que
tem como obra base a mesma produção literária.
Considerando o pouco intervalo de tempo entre as duas obras e desconsiderando a questão
técnica como definidora da estética das duas obras, partimos da hipótese de que as cosmovisões
variadas e as claras distinções entre o pensamento oriental e ocidental criaram obras distintas, sob
diversos aspectos.
Embora mantenham os elementos básicos constituintes da obra original, como os
personagens e os eventos principais (o que possibilita a análise quadro a quadro), as obras tratam
de temáticas distintas que concordam com os eventos históricos, a sociedade e o ponto de vista da
população de cada um dos dois países. Enquanto a China estava entrando no Comunismo, a Itália
havia acabado de sair do Fascismo. Enquanto na China Wukong era visto como o homem do povo
que supera os desafios com um sorriso e trabalho duro, na Itália ele era o próprio Mao Tse Tung
que desafiou o mundo com suas ideias revolucionárias.
A linguagem dos quadrinhos possibilita que esta história seja contada de maneira que
nenhuma outra mídia permitiria. O fácil reconhecimento, a leitura natural as transcrições de todos
os outros elementos para o sentido da visão fazem com que o quadrinho tenha uma linguagem
única. Tal linguagem é enraizada no visível, dando vasão a sensações e compreensões do invisível,
o que sustenta uma análise dos elementos constituintes como foi feita nesta dissertação, buscando
encontrar, partindo do visível, elementos outros representados na narrativa. No encalço do
hipertexto e da cosmovisão, essa busca é possível, considerando a explicação de Warburg e
Panosfky sobre a sobrevivência das imagens e da representação imagética de idéias, sentimentos
e conceitos. Creio que hoje os quadrinhos são a mídia onde esses conceitos são melhores aplicados.
A linguagem dos quadrinhos evoca no leitor uma respostas estética que permite com que ele,
através de sua própria cosmovisão individual e subjetiva, se engaje em uma experiência sublime
através dos quadrinhos.
Diversos estudos foram desenvolvidos utilizando as ilustrações e os quadrinhos para
demonstrar o desenvolvimento da esfera pública na China. Embora eu mesmo tenha me valido de
estudos similares para meus interesses, para compor este trabalho e para entender o contexto
cultura da China e da Itália nos períodos de produção (trabalhos como de Anne Cheng, Marcel
100
Granet François Julien), creio que este seja o primeiro trabalho em língua portuguesa a comparar
as duas obras oferecendo um relato acessível e ilustrado dos acervos culturais e de formação de
sentido que partem deste acervo.
Futuras pesquisas podem ser desenvolvidas tendo como objeto de estudos os quadrinhos
chineses. Embora talvez nunca saibamos ao certo quantos periódicos desta mídia foram
publicados, sabemos que um número ínfimo sobreviveu à Revolução Cultural e por isso Jornada
ao Oeste é tão importante neste contexto, primeiro, pois adapta um dos maiores (senão o maior)
clássico da literatura chinesa. Segundo pois foi uma superprodução da indústria dos quadrinhos
chineses, sendo inclusive elogiado pelo próprio Mao Tse Tung.
No capítulo I, buscamos dar um panorama geral das pesquisas em história em quadrinhos
e de sua importância para a área da Comunicação e da produção de sentido. Demonstramos como
os quadrinhos não devem ser tratados como uma mídia híbrida, mas como detentor de uma
linguagem própria calcada no imagético. Também demonstramos como Oriente e Ocidente se
distanciam em questões essenciais de filosofia, forma de pensamento e estética, e que devido a tais
distinções é necessário estudarmos as cosmovisões que regem as produções midiáticas destes
ambientes culturais heterogêneos.
No capítulo III, ampliamos a discussão e conceituamos o termo “cosmovisão”, apontando
sua importância para os estudos das artes e da filosofia. Também tratamos da tradução
intersemiótica entre duas mídias distintas o livro e os quadrinhos e no final deste capítulo nos
esforçamos para elucidar os conceitos Warbugianos de imagens sobreviventes e fantasmagorias
que serviram para o capítulo de análise desta dissertação.
O capítulo IV é uma delimitação dos objetos de estudos. Nele traçamos um panorama das
duas produções midiáticas que serviram de corpus para esta dissertação, discutindo seus conceitos
de produção e como eles cooperam para os elementos simbólicos que compõe cada uma das obras.
Na análise propriamente dita, no capítulo V, as duas obras foram comparadas, suas
recorrências e elementos simbólicos foram isolados e analisados à luz das respectivas
cosmovisões, demonstrando sentidos distintos (por vezes antagônicos) entre as duas obras.
Estudos futuros podem se debruçar sobre o texto das duas obras, que para esta dissertação
foi de certa forma negligenciado para focarmos no imagético considerando que a metodologia de
Warburg e Panofsky atenta principalmente para este sistema simbólico.
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Concluindo, este estudo demonstrou como, apesar de manter os mesmos elementos básicos
para a criação do sentido, sem alterar o personagem e os elementos centrais das narrativas, a visão
de mundo dos autores criou narrativas distintas. Em suas distinções, os artistas por trás dessas
obras leram a sociedade à sua volta e traduziram uma época em quadrinhos, forma de arte
importada para a China mas que ganhou espaço durante uma geração em mudança, e uma Itália já
acostumada com a postura transgressora e irreverente desta mídia que se presta tanto a entreter
como a formar culturalmente o indivíduo leitor.
102
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104
7. Anexo e notas
Conforme descrito no capítulo IV, deixamos como anexo as páginas inteiras utilizadas na
análise dessa dissertação. De um lado a página correspondente a adaptação chinesa de Wu
Cheng’en (2008) e do outro a adaptação italiana desenhada por Milo Manara (1976), as ilustrações
são dispostas na horizontal visando manter uma melhor resolução da imagem. A intenção de incluir
essas imagens enquanto anexo é possibilitar ao leitor visualizar com maior detalhamento as
recorrências simbólicas apresentadas nessa dissertação, juntamente com o texto original em
português e em italiano. As gravuras foram indexadas no anexo de acordo com sua aparição no
corpo do texto e elencadas sistematicamente.
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