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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
LINHA DE PESQUISA: PRODUÇÃO DE SENTIDO

GUILHERME HENRIQUE GOODA ANTÔNIO

UMA JORNADA EM QUADRINHOS: COMPARAÇÃO ENTRE AS


ADAPTAÇÕES CHINESA E ITALIANA DE JORNADA AO OESTE

BAURU/SP
2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
LINHA DE PESQUISA: PRODUÇÃO DE SENTIDO

UMA JORNADA EM QUADRINHOS: COMPARAÇÃO ENTRE AS ADAPTAÇÕES


CHINESA E ITALIANA DE JORNADA AO OESTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Comunicação, da Faculdade
de Arquitetura, Artes e Comunicação, da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, como requisito para obtenção
do título de Mestre em Comunicação, sob a
orientação do Prof. Dr. Marcelo Magalhães
Bulhões.

BAURU/SP
2019
Antônio, Guilherme Henrique Gooda.
Uma Jornada em Quadrinhos: comparação entre as
adaptações chinesa e italiana de Jornada ao Oeste /
Guilherme Henrique Gooda Antonio, 2019
138 p.: il.

Orientador: Marcelo Magalhães Bulhões

Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual


Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação, Bauru, 2019

1. Quadrinhos. 2. Adaptação Midiática. 3.


Cosmovisão. 4. Milo Manara. I. Universidade Estadual
Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação. II. Título.
GUILHERME HENRIQUE GOODA ANTÔNIO

UMA JORNADA EM QUADRINHOS: COMPARAÇÃO ENTRE AS ADAPTAÇÕES


CHINESAS E ITALIANA DE JORNADA AO OESTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Comunicação, da Faculdade
de Arquitetura, Artes e Comunicação, da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, como requisito para obtenção
do título de Mestre em Comunicação, sob
orientação do Prof. Dr. Marcelo Magalhães
Bulhões.
Área de Concentração: Comunicação
Midiática. Linha de Pesquisa: Produção de
Sentido.

Banca Examinadora:

Presidente/Orientador: Prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões


Instituição: Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – UNESP Bauru/SP

Membro: Prof. Dr. Laan Mendes de Barros


Instituição: Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – UNESP Bauru/SP

Membro: Profa. Dr. Antônio Bezerra de Menezes Jr.


Instituição: Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas - USP São Paulo/SP

Bauru, 28 de agosto de 2019.


Bodhidharma sentou fitando a parede. O segundo patriarca, em pé
na neve, lhe disse: “ Mestre, a mente deste seu discípulo ainda não
está em paz. Eu te peço, Mestre, apazigue a minha mente”
Bodhidharma respondeu “Traga-me sua mente e eu a colocarei em
paz”
Tempo depois o patriarca retornou dizendo: “Procurei a minha
mente em todo lugar, e não fui capaz de encontrá-la.”
Bodhidharma respondeu, “Então, eu já terminei de colocá-la em
paz”.
(The Gateless Gate - Case 41)
AGRADECIMENTOS

À Deus por renovar diariamente suas misericórdias sobre nós, e nos abençoar com saúde e
esperança.

Aos meus pais Afonso e Jane pelo apoio e incentivo que serviram de alicerce para as minhas
realizações.

À minha querida esposa Lígia pelo seu amor incondicional e por compreender minha dedicação
ao projeto de pesquisa.

Ao meu irmão Eduardo pelo companheirismo e atenção dedicada quando sempre precisei.

Ao meu professor orientador Marcelo Bulhões pelas valiosas contribuições dadas durante todo o
processo e por me apresentar o mundo dos quadrinhos e das adaptações, norteando um caminho
que eu pretendo seguir.

Aos membros da banca examinadora que contribuíram para a execução desta dissertação.

A todos os meus amigos do curso de graduação que compartilharam dos inúmeros desafios que
enfrentamos.

Também quero agradecer à UNESP e o seu corpo docente, que me adotou como filho desta casa e
que demonstrou estar comprometida com a qualidade e excelência do ensino.
ANTONIO, G. H. G. Uma Jornada em Quadrinhos: comparação entre as adaptações
chinesa e italiana de Jornada ao Oeste. 2019. Dissertação (Mestrado Acadêmico em
Comunicação) – FAAC – UNESP, sob orientação do Prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões.
Bauru, 2019.

RESUMO

As transformações sociais e políticas do final do século XX trouxeram profundas considerações e


discussões que foram incorporadas às produções midiáticas da época. Dentre essas mídias os
quadrinhos já se destacavam como ferramenta política tanto na China como na Itália, e essas
produções eram aprimoradas conforme a tecnologia se desenvolvia. Esta dissertação busca
perceber, através de uma análise comparativa, como cosmovisão atua no processo de adaptação
midiática. Tomando por obra base a narrativa Jornada ao Oeste do século XVI, italianos e chineses
criaram obras distintas sobre todos os aspectos: O Jornada ao Oeste em Quadrinhos adaptação
chinesa de 1962 e a produção italiana Lo Scimmiotto de 1976. As duas narrativas contam como a
simbologia nos quadrinhos foi moldada por artistas que interpretam e ressignificam um acervo
simbólico e cultural formando uma obra coesa e repleta de significações. Ao traçar os elementos
comparativos entre as duas obras e apresentá-los quadro a quadro, argumentamos que embora o
enredo da narrativa base se sustente, existe um hipertexto que só pode ser acessado ao conhecer o
acervo histórico, social e cultural. Esse hipertexto se relaciona diretamente com a cosmovisão e
com permanência das imagens como tratados nos estudos sobre arte de Warburg e Panofsky. Por
fim este trabalho discute como os quadrinhos enquanto mídia se presta a receber este tipo de
manifestação artística como nenhum outro meio de comunicação devido a sua linguagem própria.

Palavras-chave: Quadrinhos. Adaptação midiática. Cosmovisão. Milo Manara. Jornada ao Oeste.


ANTONIO, G. H. G. Uma Jornada em Quadrinhos: comparação entre as adaptações
chinesa e italiana de Jornada ao Oeste. 2019. Dissertação (Mestrado Acadêmico em
Comunicação) – FAAC – UNESP, sob orientação do Prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões.
Bauru, 2019.

ABSTRACT

The end of the 20th century brought deep political and social discussions that were embodied by
the media productions. Among those medium, comics started to point out as a political tool both
in Italy and China, those production evolved together with the technology. The present work aims
to point, through a comparative analysis, how the worldview acts in the adaptation process. Taking
the 16th century literary work Journey to the West, Chinese and Italians created distinct adaptations
among all aspects: Journey to West in Comics, the chinese adaptation from 1962 and the italian
production Lo Scimmiotto from 1976. Both comics have shown us how the symbolic system in
comic books were molded by artists, who interpreted and resignified a cultural collection of
symbols creating a coherent work. By tracing those comparative elements and present them each
comic strip at a time, we argue that although the original plot remains, there is an hypertext that
can only be accessed by knowing the social, cultural and historical context. The hypertext is
directly linked to the cosmovision and to the remnants of images as discussed previously by
Warburg and Panofsky. Lastly the work discuss how comic books as a media offer itself to this
kind of artistic expression as any due to his unique language.

Keywords: Comics. Adaptation. Worldview. Milo Manara. Journey to the West..


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – O Nascimento do rei Macaco.........................................................................................55


Figura 2 – Wukong e os animais da floresta....................................................................................59
Figura 3 – O interior da caverna......................................................................................................61
Figura 4 – A tristeza de Wukong.....................................................................................................62
Figura 5 – A travessia do Mar.........................................................................................................63
Figura 6 – O Macaco e o Lenhador.................................................................................................64
Figura 7 – Wukong recebe instrução do sacerdote..........................................................................65
Figura 8 – Palavras de Sabedoria....................................................................................................66
Figura 9 – O demônio inimigo........................................................................................................67
Figura 10 – Wukong e o bando enfrentam o demônio....................................................................68
Figura 11 – O arsenal do Rei Dragão do Mar.................................................................................69
Figura 12 – Wukong escolhe sua arma...........................................................................................70
Figura 13 – O Reino das Sombras...................................................................................................71
Figura 14 – O Livro de Registros da Vida e da Morte...................................................................72
Figura 15 – Os Portões do Céu........................................................................................................73
Figura 16 – A marcha dos celestiais................................................................................................76
Figura 17 – Grande Sábio igual aos Céus........................................................................................78
Figura 18 – Wukong no Jardim dos Pessegueiros...........................................................................80
Figura 19 – Wukong enfrenta os celestiais.....................................................................................81
Figura 20 – Erlang Shen contra Sun Wukong.................................................................................82
Figura 21 – As transformações de Wukong e Erlang Shen.............................................................84
Figura 22 – Wukong se transforma em um templo.........................................................................85
Figura 23 – Erlang Shen descobre o truque de Wukong.................................................................86
Figura 24 – Wukong é capturado....................................................................................................87
Figura 25 – Wukong é torturado enquanto os celestiais discutem..................................................88
Figura 26 – O caldeirão dos oito trigramas.....................................................................................88
Figura 27 – Wukong escapa do caldeirão.......................................................................................89
Figura 28 – Os celestiais apelam para Buda....................................................................................90
Figura 29 – Wukong e Buda...........................................................................................................91
Figura 30 – A palma de Buda..........................................................................................................92
Figura 31 – Wukong é aprisionado.................................................................................................93
Figura 32 – A montanha sobre Wukong.........................................................................................94
SUMÁRIO

Resumo ...........................................................................................................................................4
Abstract ..........................................................................................................................................5
Lista de Figuras......……………………………………………………………………................6

1. Introdução ..................................................................................................................................8
1.1. Pesquisas em quadrinhos...........................................................................................................8
1.2. A linguagem............................................................................................................................11
1.3. Caminho bifurcado…………………………………………………………………..............13

2. Discussão Teórica ....................................................................................................................16


2.1. Cosmovisão: um conceito....................... ................................................................................17
2.2. Adaptação literária para quadrinhos........................................................................................21
2.3. A sobrevivência das imagens e suas implicações.....................................................................24

3. Discurso e lógica nas adaptações.............................................................................................32


3.1. Recorte e etapas de análise.......................................................................................................33
3.2. Os “Jornada ao Oeste” ............................................................................................................35
3.2.1. A Obra literária e o pensamento clássico……………………………......................36
3.2.2. A Revolução em quadro………………………………………………....................39
3.2.3. Um sonho chinês narrado em italiano…………………………………..................47

4. Vis-a-vis: Análise Comparativa e Discussão ..........................................................................52


4.1. O Belo Rei dos Macacos…………………………………………………………..................54
4.2. Wukong e o caos no Céu…………………………………………………………….............72

5. Conclusões ................................................................................................................................96
6. Referências Bibliográficas ......................................................................................................99
7. Anexo e Notas................................................…………………………………………..........101
11

1. Introdução

1.1. As recentes pesquisas em arte sequencial.

A arte sequencial e as histórias em quadrinhos1 têm despertado o interesse de pesquisadores


ao redor do mundo e em território nacional, embora tenham encontrado dificuldades de se firmar
no meio acadêmico enquanto objeto de pesquisas,
Para Thierry Gronsteen (2000), especialista belga em quadrinhos, parece haver limitações
simbólicas que estigmatizavam os quadrinhos como um tipo menos sério de produção visual: 1) o
fato de ser uma arte híbrida, 2) as ambições narrativas supostamente limitadas; 3) sua ligação com
a infância e as artes lúdicas.
Por tratar-se de uma linguagem híbrida, verbal e visual, os quadrinhos pareciam ocupar
sempre um papel intermediário entre as linguagens de grande aceitação popular e as formas
marginais de cultura. Essa mescla entre imagem e texto, esteticamente única e com forte apelo
emocional desenvolvendo-se em uma sofisticada forma de arte, foi por diversas vezes associada
ao universo infantil.
Para o estudioso Antônio Luiz Cagnin:

(...)talvez por ser a nossa uma cultura fundamentalmente verbal, herdada dos franceses,
nossos modelos. O importante foi sempre a palavra, falada e escrita. In princípio erat
Verbum, dogmatizara a Bíblia. Apesar de todos os incômodos, a imagem ainda se prostra
aos pés da palavra, servindo-lhe de estribo, simples ilustração. Com mais razão, se pode
dizer que esse é o destino do desenho. Designium, desígnio, de-signo, aquilo que vai ser,
rascunho da arte maior, foi também o estigma dos quadrinhos: “Coisa pra crianças, se diz
ainda com desdém (CAGNIN, 1975, p.12)

1
Muito já se discutiu sobre a utilização dos termos: história em quadrinhos (hq), Graphic Novels ou arte sequencial.
Tal diferença se dá basicamente pela complexidade da narrativa e pelo fato da história ser fechada ou não, como
definida por Will Eisner. Nesta dissertação, decidiu-se pelo termo “quadrinhos”, por ser mais abrangente,
incorporando tanto graphic novels, como mangás ou tirinhas.
Quadrinistas vêm atacando questões sociais importantes e, apesar de hoje gozarem de
status de “serious art” os quadrinhos sempre mantiveram, por outro lado, uma reputação de
vanguarda.
Groensteen localiza na década de 1960 a mudança de posicionamento dos intelectuais em
relação às histórias em quadrinhos. Atribuiu-se tal mudança ao fato das artes plásticas começarem
a utilizar recursos das histórias em quadrinhos – Andy Warhol aparecerá aqui como grande difusor
desta prática. Outros respeitados nomes do mundo artístico como Orson Welles, Frederico Fellini
e Luiz Buñuel, e o mundo acadêmico, passaram a dar atenção e crédito às histórias em quadrinhos,
com alguns pesquisadores europeus ousando utilizá-los como objeto de pesquisa, principalmente
nas áreas de linguística e semiologia.
O Brasil tem um histórico no desenvolvimento de pesquisa e trabalhos acadêmicos sobre
histórias em quadrinho se concentrando na área de Comunicação midiática, mas existem trabalhos
investigativos também nas áreas de Letras, Psicologia, História e Sociologia, visto que as histórias
em quadrinho demonstram uma importante forma de expressão cultural e artística carregada de
múltiplas significações. Também traduzem em palavras e imagens a Weltanschauung – a
mundividência de toda uma sociedade.

Um quadrinho requer um salto de fé do leitor cada vez que ele muda de painel.
Mudamos e precisamos absorvê-lo antes mesmo de entendermos sua completa
ligação com o quadro anterior. Só então, somos capazes de relacioná-lo com o
restante da narrativa. Imagem, Palavra, então Conexão. Isto dá ao autor uma
oportunidade impar: inserir imagens e palavras na cabeça do leitor antes mesmo
que ele tenha o contexto dessa informação. Este é o tremendo poder por trás da
habilidade dos quadrinhos de gerar iconografia cultural – criar mitologia moderna.
(LEWIS e KRAEMER, 2010, p. 16, tradução nossa)2

Com a importação dos primeiros quadrinhos americanos para o Brasil, surgiu já em 1951
um grupo de pesquisadores, guiados por Álvaro de Moya, que organizou a I Exposição
Internacional de Histórias em Quadrinhos, na cidade de São Paulo. Álvaro de Moya dedicou-se a
produção em arte sequencial de forma sistemática, produzindo muitos livros e diversos materiais
a respeito das diversas facetas do tema.

2
a comic requires a leap of faith from its readers every time they move from one panel to the next. We move to the
next panel and must absorb it before we even understand its connection to the panel before. Only then are we able to
relate it to the narrative of which it is a component part. Picture, word, then connection.This gives the author an
amazing opportunity: to instill word and image into a reader’s mind before the reader has a context for this information.
This is the tremendous power behind comics’ ability to generate cultural iconography — to create modern mythology.
Na década de 1960, a revista Cultura Vozes, do Rio de Janeiro voltou sua atenção para as
histórias em quadrinhos, tendo como integrante da equipe Moacy Cirne, um dos mais sérios
pesquisadores desta área. Nas ciências da comunicação, a pesquisa acontecia em diversas
Universidades ou instituições isoladas – destaco a Universidade de São Paulo e a Federal
Fluminense -, como também outras associações científicas como a INTERCOM – Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares de comunicação, criando na década de 1990 o GT (grupo
de trabalho) Humor e Quadrinhos, denominado posteriormente Núcleo de Pesquisa de História em
Quadrinhos.
Com discussões já avançadas sobre os quadrinhos no campo da Comunicação, cria-se na
Universidade de Brasília uma disciplina sobre esse assunto, no curso de graduação de
comunicação. Simultaneamente cresce a pesquisa nessa área e destaca-se o Centro de Pesquisa da
Comunicação Social da Faculdade de Jornalismo Casper Líbero, com coordenação do professor
José Marques de Melo.
Na Universidade de São Paulo, a Escola de Comunicações e Artes tem o mérito de manter
um esforço de pesquisa duradouro às histórias em quadrinhos, tornando-se posteriormente ponto
de referência nacional para as pesquisas relativas a essa forma de arte. No início dos anos 1990,
foi criado o Núcleo de Pesquisas em História em Quadrinhos, como propostas da professora Dr.
Sônia Bibe Luyten, que se dedicou a quadrinhos produzidos no oriente, principalmente às formas
produzidas no Japão, como o mangá.
Várias tendências de pesquisas foram observadas nos recentes trabalhos: alguns
preocupados com as particularidades da linguagem, outros preocupados com o conteúdo, outros,
ainda, buscando nos quadrinhos um reflexo da sociedade. Por que então insistir na pesquisa nesta
área? Primeiramente por se tratar de uma produção artístico-cultural que envolve uma narrativa
própria da cultura contemporânea. Assim, as produções culturais, sejam elas audiovisuais,
literárias, performáticas ou plásticas, bem como seus derivados (mitologias e miscelâneas
diversas), tornam-se objeto de interesse de pesquisa em seu sentido lato, isto é, dentro do espectro
da chamada “cultura pop” ou “cultura de massas”.
Embora existam trabalhos que procuram observar a sociedade e o mundo pela ótica dos
quadrinhos, buscando seus paralelismos e contradições, estes trabalhos focam prioritariamente nas
produções ocidentais (os quadrinhos de heróis, as narrativas policiais, dentre outros). Crescem no
Brasil, de todo modo, as pesquisas sobre os mangás japoneses e outros estilos vindos do oriente,
impulsionados em grande parte pelas produções de Luyten, e por uma nova geração de
pesquisadores que cresceu em contato com esses estilos.

1.2. A linguagem
Os quadrinhos, em todas as suas vertentes, conseguem capturar a imaginação e o interesse
dos mais variados públicos. A combinação da mídia visual - como pinturas, desenhos, caricaturas,
etc - com a palavra escrita permitiu que os quadrinhos alcançem desde crianças que serão
alfabetizadas por essa mídia como adultos que se enveredam nas leituras de graphics novels.
Compreender um quadrinho nos parece um exercício cultural tão instigante quanto compreender
nossa linguagem. De fato, como argumenta Will Eisner, os quadrinhos têm uma linguagem
própria, que não difere da língua materna do leitor, levando-o a uma compreensão sem que seja
necessário um grande esforço.

Quadrinhos comunicam em uma linguagem que conta com a experiência visual


comum do criador e do leitor. Espera-se que leitores modernos compreendam
rapidamente a mistura de imagem-palavra e conseguiam decifrar o texto.
(EISNER, 2000, p. 7, tradução nossa)3

A expectativa de Eisner sobre a compreensão natural do leitor deriva da percepção natural


do ser humano para criar e associar significados. Considerando que a linguagem convencional é
arbitrária, no que tange por exemplo à atribuição de significado para uma palavra, uma narrativa
em quadrinhos contém dentro de cada painel tanto significante quanto significado, ou a palavra-
imagem agindo como significante e uma ação agindo como significado. Ademais, os quadrinhos
condensam informação sensorial necessária para a produção do sentido através da visão.
A linguagem humana e nossa comunicação pautam-se preferencialmente por dois sistemas
- um escrito e outro falado. A escrita é ensinada e aprendida através de treinamento formal,
enquanto que a falada é percebida. De maneira similar, os quadrinhos apresentam as mesmas
formas de percepção e aprendizado. Consideramos que não é exigido do leitor nenhum
treinamento especial para que ele consiga desempenhar sua função; ele é capaz de perceber o

3
Comics communicate in a language that relies on a visual experience common to both creator and reader. Modern
readers can be expected to have an easy understanding of the image-word mix and the traditional deciphering of text.
desenho sem nenhum esforço e compreender a linguagem utilizada nos diálogos, narrações e
outros auxílios textuais, porém é exigido que ele necessariamente conheça e seja “treinado” em
linguagem convencional, para que consiga entender as relações entre os símbolos e as estruturas
textuais utilizadas na confecção de uma obra. Assim, cada painel de um quadrinho inclui todas as
operações sintáticas requeridas para o funcionamento de uma língua.
A noção de que os quadrinhos compõem uma linguagem própria e independente é melhor
desenvolvida por Scott McCloud a partir de sua redefinição do termo. O autor afirma que:

[...] quadrinhos são imagens pictóricas justapostas em sequência deliberada,


destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta estética no
espectador. (MCCLOUD, 1993, p. 9, tradução nossa)4

Uma inspeção mais acurada da definição acima os leva a pensar que as palavras em sua
forma convencional são meramente imagens pictóricas justapostas em uma sequência deliberada
com a intenção de transmitir um conteúdo. O fator em comum entre os quadrinhos e as palavras
abrem uma nova perspectiva para as mídias visuais e os ícones.
A representação dos ícones confere a cada objeto uma subjetividade representada que
coloca autor e leitor face a face. Como resultado, ler ou produzir quadrinhos equivale a percebê-
los internamente.
O leitor compreende a mídia visual comparando os elementos simbólicos com a realidade
empírica e com suas próprias experiências de vida. A representatividade das imagens ou dos ícones
permite ao leitor perceber a imagem no âmbito de sua apreensão do mundo, criando um elo entre
o leitor e a própria imagem. O desenho em quadrinhos, nesse sentido, fala para cada indivíduo de
forma diferente.
Os quadrinhos têm raízes profundas no campo visual. Cada aspecto e cada elemento do
quadrinho operam para aprimorar a compreensão visual do leitor. Existe nos quadrinhos um
constituinte imutável e incontroverso que não apenas os torna o que eles são, mas os capacita a
“falar uma língua”. Esta linguagem, embora incorporada no visível, dá origem a sensações e
compreensões do invisível. Ela evoca respostas sinestésicas nos leitores que permitem, através de
sua cosmovisão e percepção comum, envolver-se com experiências quase sublimes. Consistindo

4
[...] comics are juxtaposed pictorial and other images in deliberate sequence, intended to convey information and
or to produce an aesthetic response in the viewer.
de estrutura quase semelhante à de qualquer outra língua através de seus textos, gráficos, desenhos,
esquemas temporais e assim por diante, a linguagem da revista em quadrinhos constitui
praticamente uma mídia única em si mesma.
1.3. Caminho Bifurcado
Pensando que os quadrinhos contam com a cosmovisão do leitor e do autor para criar
imagens e ícones diversos e passíveis de interpretação, é vital traçarmos uma linha entre os
caminhos que as produções artísticas (principalmente as artes visuais) tomaram na China. Ao
analisarmos uma obra chinesa e outra italiana tomamos dois pontos de vistas distintos: tanto na
sua forma (seu cânone artístico), quando em seu conteúdo (suas narrativas, mitologias e valores)
Com Robert Stam (2008), em um trecho em que o autor discute variadas representações
estéticas temos a seguinte afirmação:

Uma teoria estética comum governa todas as artes, performáticas e plásticas, na


Ásia. A grosso modo, a tendência parece ser a negação de um princípio de
imitação realista na arte, em favor do estabelecimento de uma hierarquia de
realidades onde o princípio de sugestão através da abstração é seguido e a
manifestação na arte da crença que o tempo não é linear e sim cíclico. (STAM,
2008, p. 32)

No Ocidente, especialmente no início da filosofia grega, esta forma de raciocínio foi


obscurecida pelo brilhantismo e dominância do pensamento de Platão, que argumentava em favor
do “ser” superior ao “tornar-se”, da “permanência” sobre a “inconstância”, lançando os alicerces
da epistemologia. Além disso, o Cristianismo teve grande influência na perpetuação do legado de
Platão, por exemplo, sustentando a dualidade espírito (eterno) x carne (passageira). Tal forma de
pensamento teve seu impacto no mundo das artes, certamente até o final do século XIX ou início
do século XX, quando os avanços científicos, a teoria da relatividade, as ações dos pós-
modernistas, tiraram o homem de sua zona confortável, e o fizeram voltar ao questionamento,
assumindo assim uma postura que parece concordar mais com a “inconstância” do que com a
“permanência”.
As produções audiovisuais e artísticas, longe da Europa, segundo Robert Stam, se
desenvolveram de maneira paralela à forma europeia:

A história Eurocêntrica vê a Europa, sozinha e autossuficiente, como o motor, o


primum mobile, para as mudanças históricas progressivas, incluindo as mudanças
na arte. Um monologismo arrogante que exalta apenas uma cultura, uma narrativa
uma trajetória um caminho de criação estética. (STAM, 2008, p. 27)

Enquanto na Europa, e no ocidente de um modo geral, percebemos um ciclo que


passa da “inconstância” (nos primórdios da filosofia grega) para a “permanência” (em Platão),
para que somente dois milênios depois voltemos a pensar na mutabilidade. O pensamento oriental
se manteve firme nessa perspectiva desde sua origem, sustentando o “tornar-se”, ao invés do “ser”.
Tal perspectiva de pensamento certamente teve impacto nas artes, na criação e na valoração
estética divergente nos dois lados do mundo.
Assim, ao produzir uma obra artística, de qualquer natureza, o artista passa a transmitir
ideias já presentes nos campos da arte. Tais ideias são uma forma de ver o mundo filtrada no
oriente por duas correntes filosóficas concordantes em muitos aspectos: o Taoismo e o Budismo.
Essas duas linhas contribuíram para o molde estético das artes tradicionais e continuam
contribuindo nas artes atualmente. No cinema e nas séries, devido ao seu grande público, a arte
precisa “conversar” com seu espectador. Assim, as visões de mundo de artistas e produtores
precisam estar de acordo com as visões daqueles que vão ao cinema ou que sintonizam em um
canal de televisão. Estes elementos estéticos são transmitidos para o grande público, que aprova
ou reprova tais elementos baseados em um repertório cultural.
Em sua forma de escrita, com os ideogramas por exemplo, os chineses já demonstram a
materialização de conceitos abstratos em imagens. A necessidade de expressar de forma concreta
conceitos como “amor”, “vida” e “morte” traz para a língua chinesa uma aproximação tamanha
com a artes plásticas que não pode ser apreendida em outras línguas.
Uma produção seriada chinesa, um filme ou um quadro pode causar estranheza para
o público ocidental: podem parecer fantasiosos demais, sem ritmo ou místico demais e
simplificado. Mas devemos ter em mente que tratamos de dois repertórios culturais (ocidental e
oriental) que evoluíram de maneira distinta, não sendo pertinente uma comparação tomando como
partida os nossos padrões estéticos e culturais.
Entendendo a importância das histórias em quadrinho enquanto produto midiático de
grande difusão e alcance, e a problemática de uma tradução intersemiótica, passando uma narrativa
de uma mídia para outra (no caso aqui tratado de um romance para duas produções em quadrinhos),
desenvolvemos uma análise comparativa que se dispõe a verificar o processo de adaptação da
mesma obra de literatura em dois contextos socioculturais distintos: o primeiro, a China na década
de 1960; e o segundo, a Itália nos final dos anos 1970.
Argumenta-se que mesmo partindo da mesma obra base, o repertório cultural distinto
produz obras com significações múltiplas que dialogam com diferentes públicos. Ao desenvolver
nossa análise verificaremos a cosmovisão como grande formadora do sistema simbólico e da
produção de sentido de uma obra.
A análise aqui proposta se dá em dois processos fundamentais: uma análise macroscópica
e outra microscópica. Para o desenvolvimento da análise macroscópica (que elucida as
cosmovisões) o capítulo da análise responde questões (análises microscópicas) referentes aos
elementos composicionais da narrativa (personagem, espaço, tempo) verificados a partir da
comparação quadro-a-quadro das duas produções.
Existem diferenças significativas entre as duas narrativas que precisam ser analisados com
rigor, sejam no referencial simbólico (no plano do conteúdo), como na expressão (na composição
dos quadros, no recorte narrativo (ao compararmos com a narrativa fonte), na construção dos
personagens, nos espaços, no cerne do próprio enredo. Tais diferenças aparecem traduzidas nos
quadrinhos podendo ser analisadas como “sintomas” ou como um coletivo de sobrevivências
imagéticas que representam uma visão mais generalista.
2. Discussão teórica

Trataremos de um objeto misto, uma adaptação de uma obra literária para uma
mídia em arte sequencial. Não convém, principalmente após os estudos de Scott McCloud (1993)
pensar o quadrinho como dois sistemas simbólicos distintos sendo um deles o texto propriamente
dito (os diálogos e as marcações do “narrador”) e outro as imagens (os símbolos e as composições
dos quadros). Pensaremos na produção em quadrinho como detentora de uma linguagem própria,
norteada pelo sentido da visão, expressa em sintagmas e paradigmas que lhe são bastante
peculiares, mas que dialogam também com outras mídias, como a literatura e o cinema.
Antes mesmo de tratarmos do referencial teórico, é necessário estabelecermos alguns
prolegômenos que balizam uma análise desta natureza. O primeiro deles é afirmar a
indissolubilidade da forma e do conteúdo. Tratando-se, porém, de uma análise é perfeitamente
possível distinguir as duas faces: uma que aparece disposta graficamente como objeto (a forma) e
outra que lhe está implícita (o conteúdo). Desde Ferdinand Saussure receberam as denominações
de significado e significante.
Segundo, sabemos que existe certa hierarquia dos elementos simbólicos que nos
quadrinhos aparecem nas imagens, nos balões de fala, no texto, no background etc. Cada um desses
elementos interage com os outros a fim de criar um sentido que possa ser apreendido pelo leitor.
Terceiro, o quadrinho trabalha com uma interpretação em dois níveis: denotativo e conotativo. O
nível denotativo trata do significado aparente da narrativa, enquanto o conotativo trata de seu
significado implícito, mas que se faz ser achado através do emaranhado de elementos visíveis
significativos. A permanência de certos padrões conotativos denuncia certos modos de ver o
mundo, certos valores, ideias fixas e moldes mentais, constituindo quase uma constante filosófica
- uma forma de interpretar o mundo, uma cosmovisão.
Por fim, ao investigar uma obra é necessário reconhecer que o analista carrega uma gama
de ideias feitas, ou ao menos algumas informações provenientes de leituras anteriores, de sua
cultura geral, etc. Assim, a isenção plena é utópica. Existe, porém, uma tentativa de ser tão
“objetivo” quanto possível, colocando o texto antes das racionalizações, ideologias e tendências.
Assim, nossa análise se sustenta sobre um tripé teórico. A primeira perna refere-se à cosmovisão-
termo bastante utilizado na filosofia e nas discussões sobre produção de conteúdo e estética; a
segunda sobre a adaptação de obras de uma mídia para outra, tratada aqui como tradução
intersemiótica; e por último os estudos de iconologia de Warburg e Panofsky, que discutem a
sobrevivências e a transmissão de narrativas através de imagens.

2.1. Cosmovisão: um conceito


Antes de iniciarmos a análise das duas obras propostas para esta dissertação, é
necessário discutirmos o conceito de cosmovisão ou Weltanschauung, que aparece tanto nas obras
de Warburg como na de Panofsky, assumindo um papel central na teoria dos dois autores. Assim,
nos valemos brevemente do termo cosmovisão tratado à exaustão por filósofos e pensadores em
sua maioria alemães; e dos trabalhos de sinólogos franceses, como Marcel Granet, Anne Cheng e
François Jullien que – já desde o início do século XX até nossos dias – discutem as aproximações
e distanciamentos entre o extremo oriente e o ocidente, tratando especialmente do pensamento
chinês.
Em termos bem simplificados, entende-se a palavra cosmovisão como um conjunto
de conceitos que trabalham para fornecer um quadro de referência mais ou menos coerente para
todo o pensamento e ação. Olthuis5 define o termo como as dobradiças ou engrenagens que movem
os pensamentos:
Cosmovisão (ou visão de vida) é uma estrutura ou conjunto de crenças
fundamentais pelas quais enxergamos o mundo. Essa visão não precisa estar
articulada por completo; pode estar tão internalizada a ponto de permanecer quase
inquestionada; pode não estar explicitamente desenvolvida em uma concepção
sistemática da vida; pode nem estar aprofundada, em sentido teórico, sob a forma
de uma filosofia; pode nem sequer estar codificada na forma de um credo; pode
ter sido bastante refinada pelo desenvolvimento histórico-cultural. Não obstante,
essa visão é um canal de crenças últimas que orientam e dão significado à vida. É
uma estrutura integradora e interpretativa para julgar a ordem e a desordem,
consiste no padrão da direção e do almejo da realidade; representa o conjunto de
dobradiças que giram todos os nossos pensamentos e afazeres cotidianos.
(OLTHUIS apud SIRE, 2018, p. 24)

5
James H. Olthuis – Professor e pesquisador no campo das ciências sociais, ph.D. em ética filosófica pela Vrije
Universiteit Amsterdam, publicando estudos sobre ética, hermenêutica e filosofia das religiões.
Nossa noção de cosmovisão é marcada historicamente pelo conceito alemão de
Weltanschauung, que vem sendo empregado desde o século XVIII.
Em seu livro Cosmovisão: a história de um conceito (2017), David Naugle faz uma análise
diacrônica do termo passeando pelo trabalho de importantes filósofos que moldaram o pensamento
ocidental.
A palavra alemã Weltanschauung alcançou status de “celebridade acadêmica” na segunda
metade do século XIX, tornando-se extremamente comum em obras literárias que lidavam com
questões de filosofia ou de religião, chegando ao ponto de se haver tornado, em certo sentido,
indispensável. Com seu auge de popularidade, tanto do discurso acadêmico como no discurso
comum já na virada do século XX, autores começaram a teorizar sobre o conceito e traçar sua
história através da filosofia.
Em ordem cronológica, um dos primeiros estudos sobre o Weltanschauung é encontrado
nas observâncias de Albert Gombert (1902 e 1907)6. Alfred Götze em 19247, escreve o ensaio
Euphorion-Artikel, no qual aprofunda a discussão sobre o tema.
Notável ainda é a tese de doutoramento escrita por Helmut G. Meier em 1967 8:
“Worldview: Studies towards a History and Theory of the Concept”. Tal obra é um tratamento
exaustivo da história do conceito de Weltanschauung. Meier inicia com uma investigação dos
problemas teóricos associados à disciplina. Depois nos apresenta um olhar sobre o uso do conceito
no contexto do romantismo e do idealismo alemães, focando nos usos de Kant e Hegel, apontando
o uso da palavra como pessoal e subjetivo, e, por fim, relaciona o termo Weltanschauung com
ideologia, passando a analisar o uso da palavra nas disciplinas de filosofia e religião.
Durante o século de Goethe, uma variedade de conceitos e palavras-chave que até hoje
utilizamos foram cunhados nos ambientes acadêmicos. Durante este período cultural fervilhante,
Naugle afirma que Immanuel Kant recebe um reconhecimento universal por ter cunhado o termo
Weltanschauung em sua obra Crítica da faculdade do Juízo publicado pela primeira vez em 1790.

6
Albert Gombert, “Besprechungen von R. M. Meyer`s Vierhundert Schlagworte”, Zeitschrift für deutsche
Wortforschung 3 (1902): 144-58; “Kleine Bemerkungen zur Wortgeschichte”, Zeitschrift für deutsche
Wortforschung 8 (1907): 121-40.
7
Alfred Götze, “Weltanschauung”, Euphorion: Zeitschrift für literature-geschichte 25 (1924)
8
Helmut G. Meier, “Weltanschauung: Studien zu einer Geschichte und Theorie des Begriffs” (tese de Ph. D.,
Westfälischen Wilhelms-Universität zu Münster, 1967.
Se a mente humana, no entanto, deve ser mesmo capaz de pensar o elemento
infinito sem contradição, deve ter dentro de si um poder que seja suprassensível,
cuja ideia do noumenon não possa ser instituída, mas ainda assim considerada
como o substrato que subjaz o que é mera aparência, isto é, nossa intuição do
mundo [Weltanschauung]. Porque somente através desse poder e sua ideia, numa
estima puramente intelectual de grandeza, é que nós compreendemos o infinito
mundo dos sentidos inteiramente sob um conceito, muito embora, numa
estimativa matemática de grandeza através de conceitos numéricos, nós jamais
possamos pensar nele em sua inteireza. (KANT apud NAUGLE, 2017, p.93) 9

No contexto desta citação, parece-nos que para Kant o termo Weltanschauung significava
simplesmente a percepção do mundo pelos sentidos, para se referir a uma “intuição de mundo no
sentido de contemplação do mundo dada aos sentidos”. A forte influência de Kant na filosofia fez
com que o termo fosse adotado por seus sucessores, sendo bem acolhido na vida intelectual
europeia e sobretudo alemã.
O pensamento e obra de George Wilhelm Friedrich Hegel coroam o período de
quatro décadas de realizações intelectuais (1780 – 1820). Logo no início de sua produção
acadêmica, Hegel demonstrou interesse pelo termo Weltanschauung, utilizando a palavra para
expressar uma importante ideia na estrutura do pensamento dialético. Hegel escreve:

A razão, portanto, une essa totalidade objetiva à totalidade subjetiva oposta para
formar uma intuição de mundo infinita [unendlichen Weltanschauung], cuja
expansão se contrai ao mesmo tempo na mais rica e mais simples identidade.
(HEGEL apud NAUGLE, 2017, p.106)10

Para o filósofo, há uma variedade de formas de consciência sensoriais, intelectuais,


emocionais e reflexivas, práticas e teóricas, místicas, céticas e dogmáticas, empíricas e
especulativas, egoístas e sociais. Hegel, ao examinar de forma sistemática essas várias
perspectivas, chama uma delas de “visão moral do mundo”.

Começando com um caráter específico dessa espécie, é formada e estabelecida


uma perspectiva moral do mundo [moralische Weltanschauung], que consiste

9
Immanuel Kant, Critique of Judgment: including the First Introduction, tradução e introdução por Werner S.
Pluhar, com prefácio de Mary J. Gregor (Indianapolis: Hackett, 1987), p. 111-12.
10
G. W. F. Hegel, The difference between Fichte`s and Schelling`s System of Philosophy, trad. H. S. Harris e Walter
Cerf (Albany: State University of New York Press, 1977) p. 114.
num processo de relacionar o aspecto implícito da moralidade e o aspecto
explícito. Essa relação pressupõe haver a completa indiferença recíproca e
independência específica entre a natureza e os propósitos e atividades morais; (...)
A visão moral de mundo [Die moralische Weltanschauung], a atitude moral,
consiste no desenvolvimento dos momentos que se acham presentes nessa relação
de pressuposições inteiramente antitéticas e conflitantes. (HEGEL apud
NAUGLE, 2017, p.107)11

É, por fim, na Filosofia da História que Hegel sugere que as cosmovisões devem estar
incorporadas tanto na consciência individual como na consciência nacional, usando o termo para
se referir à cosmovisão de toda uma nação. Assim, é possível afirmar que em Hegel o conceito se
expande e torna-se uma visão compartilhada de determinada nação em uma época, adquirida por
uma pessoa pela participação nos tempos e na sociedade que ela forma com o seu semelhante.
Hegel ainda nos auxilia com sua perspectiva do termo, quando relaciona “cosmovisão e
arte”. A arte é invocada para representar a essência interior de um dado período, tendo a arte uma
vocação para exibir o espírito da época.
O frequente uso do termo na obra, contribuiu para a popularização do conceito na
comunidade acadêmica européia do século XIX – certamente devido à popularidade do trabalho
de Hegel, atingindo um grau de importância que não seria possível de outra forma. Na perspectiva
do autor, as cosmovisões são o fenômeno do Espírito Absoluto que em termos antropológicos, se
manifesta nos humores, percepções, atitudes e estruturas da realidade.
Com a popularização do termo na Europa, principalmente após o uso por Hegel, o termo
chegou rapidamente à região escandinava. Por volta de 1838, Kierkegaard abraçou o termo e
cunhou seu correspondente em dinamarquês empregando o já em sua primeira publicação. Embora
a palavra-cópia de Weltanschauung em dinamarquês seja verdensanskuelse, a palavra mais
utilizada por Kierkegaard é livsankuelse, traduzida por muitas vezes como “visão de vida”. O autor
muitas vezes utiliza as duas como sinônimos, podendo ser entendidos como uma visão profunda e
satisfatória da vida que o capacitaria a se tornar um ser humano total. Naugle explicaria a visão de
Kierkegaard fazendo um paralelo com a literatura:

11
Immanuel Kant, Critique of Judgment: including the First Introduction, tradução e introdução por Werner S.
Pluhar, com prefácio de Mary J. Gregor ( Indianapolis: Hackett, 1987), p. 111-12.
Uma visão de vida funciona na verdade como a providência no romance; ela é sua
unidade mais profunda, fazendo com que a novela tenha um centro de gravidade
em si. A visão de vida livra o romance de ser arbitrário ou sem propósito, já que
o propósito é apresentado em toda parte na obra de arte. (NAUGLE, 2017, p.
114)

Para Kierkegaard, uma visão de vida está ligada a questões hermenêuticas cruciais,
aparecendo e dando o tom para as artes, sejam literárias, visuais, audiovisuais, motoras, etc.
Em diferenciação de Hegel, o termo para Kierkegaard assume um caráter muito mais
existencialista do que abstrato, associando o termo às diversas esferas da vida (literatura,
paternidade, amizades, educação) e não somente às artes. Colocando a busca da visão de vida
como o cerne da filosofia.
Ao tratarmos de duas obras distintas que partem do mesmo material fonte em um intervalo
de tempo curto, poderíamos crer que as produções artísticas avaliadas nesta dissertação fossem
parelhas, porém cada uma das obras está em conformidade com uma cosmovisão bastante
divergente da outra. Enquanto a versão chinesa se apresenta de maneira predominantemente
denotativa e seu hipertexto também se alinha a visão original da obra (a introdução do budismo na
China), a obra italiana aparece de maneira bastante conotativa e cheia de simbolismos. Essas
conotações apontam para um hipertexto inédito (a jornada do comunismo chinês). Tais
apontamentos serão discutidos no capítulo de análise.
Definida a aplicação do termo cosmovisão, podemos partir deste conceito para traçar em
linhas gerais uma cosmovisão chinesa que permeia toda a produção artística anterior e durante o
governo Maoísta e as revoluções chinesas do século XX.

2.2. Adaptação literária para quadrinhos

Criar sentido com um enunciado em uma interlocução é tarefa complexa.


Transmitir sentido para uma sociedade ou um grupo é certamente um trabalho hercúleo. Os estudos
de comunicação de massa têm se debruçado para entender o processo de criação de sentido e
formas que consigam atingir o maior número de pessoas, dialogando com estes interlocutores e se
realizando enquanto obra. A participação de várias pessoas e do intenso capital na indústria impôs
métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente, em numerosos locais,
necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados.
Assim, as obras literárias são adaptadas a) porque existem leitores dessas obras e o mercado
os convida para as outras mídias; b) existe um cânone, uma cultura de prestígio que atrai a atenção
do público pelo seu valor cultural agregado; c) as obras provam seu poder mercadológico. Para
todos os públicos consumidores, alguma coisa é prevista a fim de que nenhum possa escapar; as
diferenças vêm cunhadas e difundidas artificialmente. No caso de Jornada ao Oeste, trata-se de
uma obra canônica da literatura chinesa - um dos quatro clássicos - que influenciou e continua a
influenciar várias obras até os dias de hoje. Seus personagens carismáticos - sendo o principal
deles o Macaco Sun Wukong - sua narrativa leve e aventuresca convidam o leitor, principalmente
aqueles que se interessam por cultura chinesa e oriental.
Como a obra serviu de inspiração para várias outras produções, vários de seus elementos
são imediatamente reconhecíveis pelo leitor, tornando Jornada ao Oeste uma ótima porta de
entrada para a literatura chinesa.
Para atingir um público ainda maior que teve pouco ou nenhum contato com a obra
bibliográfica, a indústria cultural passou a adaptar seu produto, encontrando nos quadrinhos uma
excelente mídia para as adaptações. A linguagem acessível dos quadrinhos alinhado ao seu baixo
custo de produção serviram como território fértil para as narrativas bibliográficas. Nesta zona
franca de gênero, a noção de fidelidade já não deveria ser a mais importante. Tal problemática,
porém, sempre volta a surgir conforme novas adaptações vão aparecendo e a mesma discussão
surgiu com a versão italiana de Jornada ao Oeste.
Ao optar por certas construções narrativas e/ou visuais, os roteiristas e desenhistas das
adaptações desagradaram parte do público, principalmente aquele que já havia tido contato com a
obra original. Para alguns sinólogos da época, a adaptação italiana desenhada por Milo Manara e
roteirizada por Silvério Pisu tomou certas liberdades intoleráveis, como a omissão de alguns
personagens, a criação de outros, além de optar por um tom muito mais violento e sensual.
Devemos, porém, notar que o critério da fidelidade já não nos serve como critério de juízo
para afirmar se uma narrativa foi bem ou mal adaptada. Em seu texto sobre as adaptações, Bulhões
afirma:
[...] Ao mesmo tempo em que a questão da adaptação passou a dizer respeito a
uma espécie de zona franca de intercâmbios de gêneros midiáticos, sobretudo no
âmbito da narrativa ficcional, a passagem do tempo foi tornando mais deslocada
ou esmaecida – para não dizer que conduziu ao franco descrédito – a noção de
fidelidade como critério valorativo das obras adaptadas. (BULHÕES, M. 2011, p.
64)

Nos parece pertinente considerar então a obra literária e suas adaptações para os
quadrinhos como obras artísticas distintas, sem a necessidade de se buscar uma semelhança entre
os elementos constituintes da adaptação:

No lugar de tal “cobrança”, aos poucos foi prevalecendo a convicção de que a


adaptação é sempre um processo de criação ou um fenômeno afeito ao engenho
da reelaboração, sejam nas obras adaptadas que buscam produzir um efeito de
semelhança em relação às obras originais, sejam as que acentuam o próprio traço
distintivo, para não dizer discordante, em relação à obra matriz. Assim, em vez de
se julgar a validade de um trabalho de adaptação pelo suposto grau de adesão ou
de similitude com a obra original, passou-se a respeitar o caráter de autonomia da
obra resultante, uma vez que se entendeu que o meio de expressão é distinto e à
nova obra seriam respeitadas suas deliberações inventivas. (BULHÕES, M. 2011,
p. 64-65 )

Assim, percebendo os conceitos que norteiam as discussões sobre adaptações midiáticas a


atenção se volta para os elementos culturais, as representações artísticas envolvidas e as soluções
de adaptação da obra literária para a narrativa em arte sequencial. Não apresentando a narrativa ao
público vazia de sentidos e desconexa de uma “realidade cultural”, mas impregnada de uma
miríade de significados dentro de uma rede de múltiplas interpretações.
Ao discutirmos as adaptações, podemos pensar em como certos elementos narrativos foram
adaptados para os quadrinhos ou, melhor dizendo, como a linguagem literária foi traduzida para a
linguagem dos quadrinhos. Cada uma das categorias narrativas (personagem, espaço, tempo e
ação) serão analisados posteriormente ancorados nas cosmovisões que definem os andamentos de
cada uma das duas obras adaptadas.
2.3. A sobrevivência das imagens

Ao lidarmos com repertórios culturais distintos, foi necessário encontrar categorias de


análises e linhas teóricas que dessem conta de compreender as imagens não somente como um
sistema simbólico a ser interpretado, mas como um “sintoma” de uma sociedade, época, período
ou escola artística.
Um dos autores que contribui para o debate destas questões foi Aby Warburg, e a
aproximação deste trabalho com suas pesquisas se dão por alguns motivos que gostaria de apontar.
Primeiro, a concepção de história de arte de Warburg descentraliza um pouco o eixo
europeu, olhando com maior rigor para as produções artísticas - e também midiáticas - fora da
Europa, expandido a concepção de arte para fora dos salões de Paris e Londres e incorporando em
seu repertório produções até então menos expressivas, como americanas e asiáticas.
Ademais, o pensamento warbugiano que trata da “sobrevivências das imagens” e das
“fantasmagorias” abordando categorias imagéticas e critérios de representações que se repetem ao
longo da história das produções artística tem muito a acrescentar quando comparamos produções
para mídias visuais propostas para esta dissertação. Ao alterarmos o ecossistema cultural,
deixando a China e rumando para a Itália, precisamos considerar outros paradigmas
representativos e outra simbologia que dialogue com o público italiano, mas que nada diz ao
público chinês, por exemplo.
A construção formal do próprio quadrinho já nos dá uma pista. Enquanto a versão chinesa
ainda se pauta em um modelo ultrapassado - mesmo na China - trabalhando com quadro duplo e
legendagem, o modelo italiano é claramente inspirado nas produções americanas, trazendo balões
de fala e distinção de fontes que são incorporadas à imagem ao invés de serem inseridas como
rodapé.
Na mesma esteira teórica, temos Erwin Panofsky, que contribuiu para uma sistematização
e organização de uma metodologia que segue os princípios propostos por Warburg, culminando
em uma ciência com fronteiras bem demarcadas, objetos de pesquisa específicos, métodos e
técnicas conhecidos e documentados. Tal ciência agora nomeada de Iconologia, contribui com
diversas pesquisas nas áreas de artes visuais e comunicação midiática, principalmente ao tratarmos
de cultura de massa e de produções midiáticas capazes de atingir um público heterogêneo.
Os trabalhos de Aby Warburg começaram a ser revisitados durante a década de 90,
demonstrando uma atualidade tamanha que muito tem a dialogar com outros estudos, seja no
campo da história da arte ou da antropologia.
Aby Moritz Warburg nasceu em Hamburg em uma família de judeus alemães. Em 1886,
Warburg iniciou seus estudos em história da arte e arqueologia em Bonn, continuou seus estudos
em München, sob a orientação de Hubert Janitschek, completando sua dissertação em 1892, sobre
as pinturas de Botticelli, principalmente “O Nascimento de Vênus”. Os estudos de Warburg
introduziram um novo método para a história da arte: a iconologia.
Warburg argumentou contra o modelo natural de evolução e decadência das escolas
artísticas, buscando um modelo cultural da história, em que os tempos não são blocos estáticos,
mas complexidades com retornos inesperados, exprimindo sempre tensões e choques.

Warburg substituiu o modelo ideal das “renascenças”, das “boas imitações” e das
“serenas belezas” antigas por um modelo fantasmal da história, no qual os tempos
já não se baseiam na transmissão acadêmica dos saberes, mas se exprimiam por
obsessões, “sobrevivências”, reminiscências, reaparições das formas. (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p.25)

Como todo apanhado histórico está sujeito a uma metodologia organizacional, uma
coletânea de história da arte se baseia pela normal estética, na qual se decide quais seriam os
“objetos valiosos” dignos de serem sistematizados e analisados, formando o que seria nas
palavras de Winckelmann “o belo ideal”. O grande entrave desta proposta dá-se ao fato de que
o “belo ideal” se refere somente à estética grega, reivindicando toda a história da arte a um gosto
pessoal.

A contraproposta de Warburg atravessa a história que funciona de forma análoga à


biologia. Para Winckelmann, a arte possui um nascimento, um desenvolvimento e uma morte,
em que as temáticas, estilos e escolas invariavelmente encontram seu fim; já em Warburg vemos
um “pós-viver”: um ser passado que não para de sobreviver, mas que insiste em reencarnar
através dos tempos. É bem esse o sentido da palavra em alemão Nachleben – termo difícil de se
traduzir para o português devido à seu uso dentro da metodologia específica, mas que pode ser
entendido como pós vida.

Sem esgotar o significado e o peso conceitual da palavra Nachleben, podemos entendê-


la a priori como a perpetuação e transmissão das características formais na produção cultural.
Warburg dirá tratar-se de uma “vida”, uma nova chance, que se renova e se perpetua,
produzindo-se para além de todos os condicionalismos que a sujeitam, graças ao seu impulso
energético de vida. A iconologia tenta compreender como ocorrem a sobrevivência de
convenções visuais mesmo após o núcleo de significado que tal forma possuía originalmente
ter se perdido.
Assim, as imagens seriam consideradas como aquilo que sobrevive de uma dinâmica de
“sedimentação antropológica”, tornadas parciais por terem sido em larga medida destruídas pelo
tempo histórico. A “imagem que sobrevive” – o Nachleben – é, em sua realidade, uma
população de “fantasmas” cujos traços já mal são visíveis, mas se espalham e se disseminam
por toda parte.

As artes e mídias visuais nesta perspectiva warbuguiana de história e de fantasmagorias,


atuariam como um “fetiche”, um objeto mágico, que atrai esses fantasmas e os re-introduzem
no repertório cultural. O cineasta Abel Gance, em 1927, exclamou:

Shakespeare, Rembrandt, Beethoven farão cinema [...]. Todas as lendas todas


as mitologias e todos os mitos, todos os fundadores de religiões,sim, todas as
religiões [...] esperam por sua ressurreição iluminada e os heróis premem-se
nos portões. (GANCE, 1927, p. 94-96)12

Assim, as imagens seriam consideradas como aquilo que sobrevive de uma dinâmica de
“sedimentação antropológica”, tornadas parciais por terem sido em larga medida destruídas pelo
tempo histórico. A “imagem que sobrevive” (o Nachleben) é, em sua realidade, uma população de
“fantasmas” cujos traços já mal são visíveis, mas se espalham e se disseminam por toda parte.
Tal conceituação teórica encaixa bem com o objeto de estudo desta dissertação.
Considerando que a obra base foi escrita no século XVI e suas duas adaptações datam
respectivamente das décadas de 60 e 70, muitos elementos simbólicos foram sedimentados e

12GANCE, Abel. “Le tempts de lìmage est venu”, L`art cinematographique II. Paris, 1927, p. 94 -96 citado por
BENJAMIN, Walter, 2012, p. 25.
transmitidos. Alguns elementos simbólicos se repetem nas duas adaptações: a representação de
algumas divindades (Buda, por exemplo) e as tradicionais vestes cerimoniais chinesas
correspondendo à hierarquia de cada personagem dentro da narrativa. Outros elementos ainda
estão presentes, porém ressignificados: o bastão de Wu Kong agora exibe características de uma
arma nuclear e a caverna de flores e frutos, que na narrativa chinesa se apresenta como um local
bucólico, foi modernizada aparentando-se com uma “rave” celebrando a liberdade individual.
Não estando num universo meramente físico, o homem vive em um universo simbólico. A
linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo simbólico. Simbolizar significa
lançar juntamente, amontoar, reunir; ou seja, aproximar objetos e ideias. O símbolo surge como
estruturação das relações do homem com o mundo.
Em seu livro História de fantasmas para gente grande (2015), Warburg traça a trilha e
persegue alguns fantasmas através das paredes do tempo.

[...] A cosmologia das imagens e dos signos cuja adequação ou cujo colapso
agem como instrumento espiritual de orientação são justamente o que indica o
destino da cultura humana. (WARBURG, 2015, p. 363)

A “sobrevivência das imagens” era circuncidada por um conjunto de operações que


articulavam diferentes ações como o esquecimento, a transformação de sentido, a lembrança
provocada, formando, na opinião do autor, não uma sucessão de fatos artísticos e nem uma
narrativa da história, mas uma meada história e uma teoria da complexidade simbólica.

Outro autor que bem discute a questão das imagens dialéticas é Walter Benajmin.
Podendo trazer fôlego novo para os estudos de Aby Warburg, Benjamin argumenta que a
imagem detém o poder de atualizar o passado, pela rememoração. A história é então pensada a
partir da categoria operatória de imagem dialéctica, de forma correspondente a Warburg, que
buscou - a partir do conceito de Pathosformel - uma representação também “imagética” da
história de arte.

O conceito de imagem dialética cria uma história que não se organiza de maneira
cronológica, mas figurativa.

Não é que o passado lance a sua luz sobre o presente ou o presente


sobre o passado. Uma imagem, pelo contrário, é aquilo em que o Outrora
encontra o Agora para formar uma constelação [...] Porque, ao passo que a
relação do presente com o passado é puramente temporal, a relação do Outrora
com o Agora é dialéctica. (BENJAMIN, 1972, p. 577, 578)

Se Benjamin procurava enfrentar a ideia de história numa base narrativa, procurando


uma nova maneira de “escrever” e “ler” a história, valorizando a “história dos vencidos”, a
ideia warburguiana de uma história construída por imagens pode nos ajudar.
O Pathosformel de Warburg seria a expressão visual, o traço, ou o vestígio de um
“fantasma” que atravessou a história e se fez presente em outra época. Nas palavras do próprio
Warburg, são “engramas da experiência emotiva que sobrevivem como patrimônio hereditário
da memória” (WARBURG, 2015, pg. 362).

Benjamin (1993) afirma que as criações do espírito humano devem não somente sua
existência, mas também sua transmissão, a um trabalho social constante destarte a “cultura” do
século XIX se manifestava nos bens culturais como “fantasmagoria”.

Assim, toda mercadoria seria um signo, pois enquanto valor, ela é apenas o
invólucro material do trabalho despendido nela. Mas na medida em que se
tomam por meros signos os [...] caracteres materiais que as determinações
sociais do trabalho recebem com base num determinado modo de produção,
passa-se a explicá-los como produtos arbitrários do pensamento dos homens.
(BENJAMIN, 1983, p.805)

Trocando em miúdos, Benjamin concorda que o poder social da mercadoria não é


exatamente a soma do valor da matéria bruta e do trabalho realizado para desenvolvê-la. Este
seria o “clímax” do fetiche da mercadoria. O valor das coisas é embutido nelas e é resultado de
processos sociais que se escondem por trás de formas, atribuindo-lhes poder e valor – que em
nossa sociedade é traduzido em valor de mercado.

A fantasmagoria empregada por Benjamin faz referência aos impactos sociais do


fetichismo da mercadoria como discutido por Marx.

Marx fala do caráter fetiche da mercadoria. Esse caráter fetiche do mundo das
mercadorias, do caráter social específico do trabalho que produz mercadorias.
É apenas a relação social determinada dos homens que assume para eles aqui
a forma fantasmagórica de uma relação de coisas. (BENJAMIN, 2007, p.217)
Para Walter Benjamin, tal conceito é justamente todo o processo histórico que se renova
e se atualiza nos costumes e nos valores de uma sociedade. Warburg, por outro lado, fixa seus
“fantasmas” nas obras de artes, desenvolvendo uma busca extenuante para dar forma e coletar
traços que compõem estes fantasmas que certamente eram sentidos, mas que dificilmente eram
observados.
Warburg buscava - em suas próprias palavras – a “incorporação visível da estranheza”.
A imagem, a obra artística, ou um detalhe de vestuário, o cabeçalho de uma carta, a data de
nascimento em um horóscopo, a fivela de um cinto, todos esses itens apresentam traços quase
invisíveis, mas que permanecem, sobreviventes de uma população de fantasmas.
Em seu Atlas Mnemosine, Warburg indica qual sua ambição com os estudos de diversas
imagens em comparações:
O Atlas pretende, com seu material de imagens, ilustrar um processo que
poderia se designar como uma tentativa de introjeção na alma dos valores
expressivos pré-formados na representação da vida em movimento.
(WARBURG, 2015, p. 365)

Seguindo semelhante diretriz teórica, Erwin Panofsky buscou desenvolver uma


metodologia que pudesse dar conta de encontrar e sistematizar a “incorporação visível da
estranheza”. O autor propõe a sistematização de uma metodologia quase semiológica, distinta
em três movimentos: “tema primário”, “tema convencional” e “significação intrínseca”.
No discurso de Panofsky, existem dois tipos de significado: 1) aqueles que são de
natureza elementar, fáceis de compreender, chamados por ele de significado factual, apreendido
pelas formas visíveis do objeto e sua relação certas ações e acontecimentos.
Os objetos e ações identificados a princípio produzem certas reações, no indivíduo que
os observa. Tais reações, organizadas como matizes psicológicos, revestem o objeto com outro
significado chamado de significado expressivo. Os dois significados podem ser classificados
em conjuntos, formando o grupo dos significados primários. Ambos são:

Apreendidos pela identificação de formas, da configuração de linhas e cor, ou


certas massas de bronze ou pedra de forma característica, de representações de
objetos naturais, tais como seres humanos, animais, plantas, casas,
instrumentos, etc. (...) O mundo das formas puras, reconhecidas como
portadoras de significados primários ou naturais, pode ser chamado o mundo
dos motivos artísticos. Uma enumeração destes motivos constituiria uma
descrição pré-iconográfica da obra de arte. (PANOFSKY, 1995, p.21)

Ademais, existem conotações expressivas que acompanham a ação, reconhecendo um


significado, não mais primário por não ser sensível, mas inteligível, sendo conscientemente
implicado na ação através da qual é transmitido.
Relacionando motivos artísticos e combinações de motivos artísticos com temas ou
conceitos, reconhecemos portadores de significados secundários, chamando, assim, as imagens
ou as combinações de imagens de alegorias.
Soma-se ainda a “personalidade”, que é a gama de características que compõe o objeto
artístico, como seu contexto histórico cultural, seu diálogo com as vanguardas, nacionalidade,
classe, tradição etc. Chamamos este composto de pressupostos que revelam a atitude básica de
uma nação, ou época, classe social ou religião – assumidos inconscientemente por um indivíduo
e condensado em uma obra de “significado intrínseco”.

Concebendo assim as formas puras, os motivos, as imagens, as histórias e as


alegorias como manifestações de princípios fundamentais, interpretamos todos
os elementos como sendo aquilo a que Ernst Cassirer chamou valores
simbólicos. [...] A descoberta e a interpretação desses “valores simbólicos”
(geralmente ignorados pelo próprio artista e que inclusivamente podem ser
muito diferentes daquilo que o artista tencionava exprimir) é o objetivo daquilo
a que chamamos de iconografia num sentido mais profundo. (PANOFSKY, E.
1995, p.23)

A interpretação do significado intrínseco, que trata daquilo que chamamos de valores


simbólicos, requer bastante mais que o conhecimento de temas ou conceitos específicos. Para
compreender tais motivos em sua totalidade, é necessária uma faculdade mental que o próprio
Panofsky não conseguia definir muito bem, optando por fim chamá-la de intuição sintética.
A fonte de interpretação pode ser bastante subjetiva e irracional (visto que a
aproximação intuitiva está sempre sujeita à psicologia e a “cosmovisão” do que a interpreta),
mais necessária será a aplicação dos corretivos e controles, já exemplificados por Panofsky
como indispensáveis nos casos de análises iconográficas.
O duplo movimento proposto por Panofsky (buscando compreender os significados
primários, e o significado intrínseco), serve de base para o tipo de análise executada nesta
dissertação: uma análise comparativa em dois movimentos. O primeiro deles é uma análise da
forma almejando compreender os significados primários apreendidos por nossos sentidos, no
caso de uma obra em quadrinhos pela visão. E o segundo movimento, uma análise conteudística
que ambiciona buscar o significado intrínseco, através de uma interpretação que pode ser
bastante subjetiva (visto que a aproximação intuitiva está sempre sujeita à psicologia e a
“cosmovisão” do que a interpreta), sendo necessário a aplicação dos corretivos e controles, já
exemplificados por Panofsky, como indispensáveis nos casos de análises iconográficas.

Assim, tal como a nossa experiência prática tem de ser controlada por uma
compreensão de que, sob condições históricas diferentes, os objetos e as ações
são expressos por diferentes formas; tal como nosso conhecimento das fontes
literárias teve de ser controlado pela compreensão de como , sob condições
históricas diferentes temas e conceitos específicos se exprimem, assim
também, ou quem sabe se não mais, a nossa intuição sintética tem de ser
informada por uma compreensão do modo pelo qual, sob condições históricas
diferentes, as tendências gerais e essenciais do espírito humano são expressas
por temas e conceitos específicos. (PANOFSKY, 1995 p.28).

Assim, a análise a ser aqui desenvolvida terá como calço sempre a obra midiática e toda
a interpretação partirá das composições dos quadros dessa mesma obra. Todavia, ao longo da
análise serão acessados elementos extra-texto que contribuirão para a apuração do significado
intrínseco e funcionam como balizas para a interpretação, controlando e organizando a intuição
sintética do analista.
Definido o tripé teórico que sustenta esta dissertação, passamos para a delimitação e
recorte do nosso objeto de análise e na descrição metodológica que formam o passo a passo da
análise, e garantem sua relevância enquanto pesquisa.
3. Discurso e lógica nas adaptações

A criação de significados pode ser designada como o ato básico da civilização humana.
Cria-se, então, um substrato da figuração artística que se vale tanto da memória da personalidade
coletiva como da do indivíduo que socorrem o artista, aquele que produz a obra de arte.
Do outro lado está o leitor, que graças ao prodígio do olho humano normal capaz de
decodificar a linguagem dos gestos na forma de imagem reforçado pela linguagem da palavra (nos
quadrinhos como legenda ou balões de fala); e da memória, que contribui com ímpeto indestrutível
para a formação expressiva da comoção humana.
Assim, produtor e consumidor se encontram nas obras artísticas, compartilhando
significados e criando outros tantos. E quão visível é esse processo nas adaptações midiáticas.
Esta dissertação intentou encontrar recorrências e sistemas simbólicos que denunciem uma
cosmovisão que permeia duas adaptações para quadrinhos da obra Jornada ao Oeste.
O Jornada ao Oeste concorre com o Romance dos três reinos pelo posto de obra mais
exemplar da literatura épica chinesa, sendo traduzida para vários idiomas e gerando diversas
produções midiáticas: filmes, quadrinhos, séries e games; e alçando seus personagens (sendo o
Macaco Wukong o principal deles) ao posto de celebridade na China, protagonizando campanhas
publicitárias, estampando fachadas de lojas e outdoors e sendo imediatamente reconhecido em
território chinês e possivelmente em toda a Ásia.
Tratamos nesta dissertação de duas adaptações em quadrinhos (uma chinesa e outra
italiana), que partem da mesma obra base, criaram objetos midiáticos distintos tanto em forma
quanto em conteúdo, produzindo uma emaranhada rede de significados intrínsecos que se
distanciam gerando diferentes alegorias e metáforas.
Pensamos que ao acessar o repertório cultural chinês, a produção chinesa se manteria mais
próxima dos conteúdos primeiros transmitidos pela obra base. Tais noções são muito caras ao povo
chinês, como a valorização do serviço, uma postura positiva frente às dificuldades (noções
certamente sustentadas pela cultura chinesa, pelo taoísmo, pelo budismo e pelo comunismo que
seria difundido a partir do século XX), e a implantação do Budismo na China. Já na forma, o
quadrinho chinês ainda não havia sofrido tanta influência das produções americanas, se apegando
a uma forma já consagrada (e até um pouco ultrapassada): o lianhuan hua, dois quadros com
legenda; a própria construção do quadro se assemelha às produções artísticas chinesas que
incorporam muito bem as noções de “vazio” e “cheio”, herdadas também do taoísmo.
Já obra italiana de Milo Manara e Silvério Pisu acessa uma outra poética cultural. O
quadrinho reflete uma perspectiva italiana sobre a China, principalmente aquela China que
encantava uma Europa pós-guerra e surgia como um idealizado “país do povo”. A narrativa italiana
abarca outras noções: a idéia de liberdade, um líder nascido do povo, um embate entre um jovem
e poderoso ideal e uma política velha, grotesca e corrupta que insiste em barrá-lo. Parece-nos que
a adaptação italiana aproveita a narrativa de Jornada ao Oeste de uma maneira muito politizada e
o personagem Macaco representa outro icônico personagem da história chinesa: Mao Tsé-Tung.
Já na forma, o quadro italiano se assemelha às composições americanas (já famosas em toda a
Europa), os balões de fala substituem as legendas, e a ação mais contida nos quadros chineses dá
lugar a uma ação muito performática que insistem em engrandecer o Macaco em todos os quadros
dando-lhe ares de herói trágico.
Ao analisarmos os elementos visíveis e composicionais lado a lado, poderemos perceber
melhor como se aproveitam essas duas cosmovisões distintas que estão em outra camada
interpretativa.

3.1. Recorte e etapas de análise

Como dito, tratamos de duas obras midiáticas em quadrinhos. Uma produção é chinesa
lançada em 1962, que convocou os principais artistas da época para uma espécie de superprodução
quadrinizada, atingindo um milhão de exemplares vendidos às vésperas da Revolução Cultural e
1966, que praticamente zerou a produção e comercialização de quadrinhos. Para essa dissertação
utilizamos a tradução para a língua portuguesa traduzida por Adam Sun e publicada pela editora
Conrad em 2008, e creditada ao mesmo Wu Cheng’en (autor da obra original do século XVI). A
obra foi segmentada em dois volumes, totalizando 863 páginas e 1726 quadros, contando toda a
narrativa de Jornada ao Oeste original, que começa como ascensão e queda de Sun Wukong em
uma primeira parte o que se convencionou chamar de “o embate no Céu” (por causa desfecho deste
arco), e seguindo para a Jornada ao Oeste, onde Sun Wukong acompanha o monge Tripitaka até a
Índia para reaver os sutras budistas.
A produção italiana intitulada, Lo Scimmiotto, roteirizada por Silvério Pisu e ilustrada por
Milo Manara, se contenta em adaptar somente a primeira parte, focando na história de Sun Wukong
até seu derradeiro embate com as divindades e o próprio Buda. Publicada na Itália entre 1976 e
1977 na revista Alterlinus, a obra italiana conta com 80 páginas em um formato muito mais
americanizado.
Sendo tão desigual o tamanho das obras, recortamos a narrativa chinesa tendo por base a
italiana. Tratamos, assim, da primeira parte da narrativa chinesa que corresponde a todo o enredo
da obra italiana. Além disso, nos atemos aos quadros que focam nas ações do personagem Macaco,
principalmente nos momentos que apontam para características de personalidade do personagem
e para momentos de reviravolta e clímax. Chegamos, por fim, a um recorte composto de 64
páginas, sendo 34 páginas da obra chinesa somadas a 30 páginas da adaptação italiana. Tais figuras
foram selecionadas por representarem a mesma cena da narrativa literária e pela facilidade da
identificação de certos elementos composicionais comuns às duas obras. As páginas selecionadas
foram alinhadas e dispostas em pares para facilitar na comparação, gerando assim 32 figuras
apresentadas como miniaturas no corpo desta dissertação. O lado esquerdo do par refere-se a
adaptação chinesa de 1962 (traduzida por Adam Sun e reimpressa pela editora Conrad em 2008),
enquanto que o direito trata da adaptação italiana de 1976 (roteirizada por Silvério Pisu e ilustrada
por Milo Manara). As páginas em sua máxima resolução serão como anexo único desta dissertação
seguindo a mesma ordem de apresentação das miniaturas.
A análise trata primeiro dos elementos narrativos: personagem central, espaço, tempo e
ação já denunciando distinções elementares entre as duas produções artísticas. E posteriormente
trata da comparação entre os quadros buscando os indícios simbólicos das cosmovisões de cada
obra.
Desenhamos as fases que presidiram a feitura desta análise a fim de que os resultados
possam ser verificados. Primeiro, após escolhida a obra, procedeu-se uma leitura integral que
fornece uma “impressão” geral da obra midiática. Segundo, foram feitas várias releituras
assinalando nos quadrinhos cenas que chama a atenção ou que envolvem problemas de
compreensão. Terceiro, como focamos esta dissertação nas imagens e no texto, por vezes foi
necessário consultar um dicionário para resolver dúvidas quanto a denotação de palavras e
expressões. Depois, partimos para uma releitura mirando compreender o índice conotativo e
apontamos constantes ou recorrências que tocam sobretudo à conotação. Tais constantes foram
então interpretadas com base nos elementos do próprio texto e nas informações que o analista já
possui, gerando uma camada externa de significâncias.
Posteriormente, foram consultadas fontes secundárias: história da cultura, contexto social
e econômico - como o sentimento nacionalista que emergiu após as guerras, uma certa
“necessidade” de entretenimento barato por parte da sociedade em uma época de crise -
informações sobre os autores - como a visão dos quadrinhos como ferramenta política pelos
chineses e certo encantamento com a narrativa comunista pelos italianos - referências formais de
cada adaptação - a importância do lianhuang hua na China e dos quadrinhos de super-heróis na
Europa. Essas fontes atuam como os balizadores citados por Panofsky durante sua explanação
sobre a análise. Organizamos e interpretamos as constantes dividindo o processo de análise de
acordo com os elementos composicionais da narrativa, buscando elementos que, à luz dos dados
selecionados, indicam a cosmovisão da obra. Depois, comparamos quadro a quadro as mesmas
cenas, demonstrando as recorrências e partindo para um nível interno de significâncias, que
refletem os significados intrínsecos e por fim a cosmovisão. Concluímos esta dissertação com a
redação final da análise, conduzindo invariavelmente à crítica, que deve ser o objetivo final de
uma análise desta natureza.

3.2. Os “Jornada ao Oeste”

Ao analisar uma obra de tamanha importância para a cultura chinesa, existe um primeiro
problema, qual (ou quais) das diversas produções midiáticas servirão como objeto de análise?
Apesar de não discutirmos propriamente a adaptação dos recursos de tradução
intersemiótica que partem da obra base, julgamos que ela seja a fonte primária de onde partirão
todas as traduções e adaptações.
As adaptações, por outro lado, formam uma miríade de obras de diversas naturezas e
mídias: audiovisuais, quadrinizadas, produções poéticas, canções, músicas e obras publicitárias,
cada uma adaptando elementos que lhe sejam relevantes para o fim ao qual se propõem. Não
podemos deslocá-las de suas cosmovisões e contextos de produção.
Esta dissertação selecionou duas destas adaptações, primeiramente pois trata-se de duas
produções em arte sequencial, que apesar de se basearem em duas versões distintas da obra
literária, a chinesa partindo do texto original replicado ao longo do tempo, e a italiana
declaradamente adaptando a versão inglesa de Arthur Waley, exprimem semelhanças elementares
para o desenrolar da narrativa.
Além disso, o breve intervalo de tempo entre as duas produções midiáticas também foi
considerado para essa seleção. O intervalo de menos de 15 anos entre uma obra e outra não reflete
em grandes mudanças no que diz respeito à produção técnica e à linguagem dos quadrinhos sendo
possível, sendo possível desconsiderar tais fatores na produção de sentido de cada uma das obras.
Nas apresentações que se seguem, serão discutidas com maior detalhamento as produções
midiáticas utilizadas como objeto de estudo deste trabalho, bem como seus respectivos contextos
de produção nos atendo a fatos que possam contribuir para a produção de sentido das obras.

3.2.1. A Obra literária e o pensamento clássico

Jornada ao Oeste aparece durante um dos períodos mais férteis da produção literária
chinesa, o século XVI, enquanto os Ming reinavam sobre a China.
A dinastia Ming iniciou-se na China em 1368, logo após a expulsão dos mongóis e a
retomada do governo pelos chineses. A sinóloga francesa Anne Cheng (2008) afirma que com a
pressão cultural imposta pelo governo mongol e a desvalorização da cultura clássica chinesa, a
dinastia Ming, que floresce após este período, inicia sob o signo da restauração da identidade
chinesa, da reconstrução e da expansão territorial. A releitura dos clássicos, o avivamento das artes,
da literatura, poesia, música e teatro das mais variadas formas tiveram seu auge durante a dinastia
Ming, especialmente no vale do Rio Yangzi.
Embora as ficções curtas fossem populares já na dinastia Tang (que governou a China de
618 a 907), as mais inovadoras revoluções da dinastia Ming foram as narrativas escritas em língua
vernácula. Enquanto a elite tinha educação suficiente para compreender a língua clássica chinesa,
aqueles com educação básica – como mercadores, vendedores e mulheres em famílias eruditas –
tornaram-se uma audiência crescente para a literatura e as artes performáticas.
A lenda de Sun Wukong, ou o Rei Macaco, é um patrimônio cultural chinês. Publicado
como obra escrita pela primeira vez em 1592 e escrito por Wu Cheng’en por volta de 1570, a
história retrata a viagem e a interação entre pelo menos três personagens – Tripitaka, Macaco e
Porco. Estes dois últimos personagens são tão memoráveis quanto seus pares na literatura mundial
Don Quixote e Sancho Panza. As comparações com Don Quixote, como fantasia satírica pautada
em observação realista e sabedoria filosófica, são apontadas por diversos críticos, considerando a
importância das duas obras para o desenvolvimento da literatura Europeia e Chinesa.
A obra se baseia em um acontecimento histórico ocorrido na China entre 629-645, em que
um monge Budista conhecido como Tripitaka viajou até a Índia para recuperar textos budistas e
após sua volta dedicou o restante da vida a traduzi-los.
A história “factual” de Tripitaka se tornou uma lenda e elementos ficcionais foram
adicionados como narrativa oral, culminando na versão lendária e fantasiosa representada em
“Jornada ao Oeste”.
Como obra de fantasia, Jornada ao Oeste (西|游|记 - Xī Yóu Jì) é prontamente acessado
pela imaginação ocidental através da obra adaptada de Arthur Waley, Macaco (1942), sendo
a adaptação preferida do grande público e principalmente do meio acadêmico.
Waley escolheu apresentar apenas quarenta dos cem capítulos da obra original, visto que a
tradução completa se provaria cansativa para os leitores Ocidentais, já que muitos episódios
parecem repetitivos e procedurais.
A narrativa completa de “Jornada para o Oeste” possui em sua completude cem capítulos,
que podem ser divididos em 4 partes distintas. A primeira destas quatro partes, que inclui os
capítulos do primeiro ao sétimo, contém a introdução a história e a apresentação do personagem
Macaco, o protagonista da narrativa de viagens mais famosa no oriente. Por este ângulo, Jornada
ao Oeste já foi comparado pela crítica com a Odisséia de Homero, aproximando as soluções
engenhosas de Wukong com a astúcia de Ulisses.
Certamente os traços principais de Sun Wukong (孙悟空- Macaco) são sua bravura e
prontidão, seu destacamento espiritual, seu humor travesso e sua grande energia, definiam seu
caráter heroico. A postura desafiadora, principalmente durante a primeira fase da história, deve-se
ao fato do personagem parecer invencível e imensamente poderoso. Seu único medo é a morte, o
que explica sua jornada em busca da imortalidade.
Já na segunda metade, Wukong percebe que a imortalidade só poderia ser alcançada com
o cumprimento de sua jornada através do serviço, dando início ao trajeto de viagens da China para
a Índia, acompanhando o monge Tripitaka. Alegoricamente, a jornada de Wukong é uma busca
por compreensão e entendimento dialogando diretamente com o Budismo chinês, enquanto o pano
de fundo místico ajusta-se com um Taoísmo já de certa forma influenciado pelo Budismo que se
expandia na China durante a Dinastia Ming.
Diversos sinólogos a partir do século XIX e principalmente no século XX, com o fascínio
da Europa pelo extremo oriente, se debruçaram e dedicaram sua lavra a entender e estudar
profundamente os pilares que fundamentavam o pensamento oriental, tão diferente da filosofia
Ocidental. Essa diferenciação primeira entre “pensamento oriental” e “filosofia ocidental” é de
fato importante para fundar a base da cosmovisão oriental e ocidental.
A galeria de pensadores chineses presentes nos diversos períodos da história foi
praticamente ignorada pelo ocidente, mas resgatada no século XX, principalmente por sinólogos
franceses. Nomes mais comuns como Confúcio, Mêncio, Chuâncio e Mozi são hoje objeto de
estudos de trabalhos nas áreas de humanidade, e a popularização desses nomes se deu justamente
pelos estudos em sinologia.
Sobre a distinção inicial entre a filosofia e o pensamento oriental, François Jullien (2000)
afirma:

Outras palavras, isto é, que não nos façam ouvir na Grécia a manhã do
pensamento, em Israel a história da fé, de que não tenhamos de herdar justamente,
essa velha clivagem entre a “razão” e a “fé”. Ampliando de saída a distância em
relação ao desenvolvimento da filosofia, permitam reconsiderá-la de mais longe,
remontar a seu impensado, interrogar suas opções implícitas, enterrados todo os
seus parti pris. (JULLIEN, 2000, pg. 59).

Se existe um conceito que pode resumir brevemente o Taoísmo e o Budismo seria


dinamismo. As duas linhas filosóficas mais influentes na China (e no oriente como um todo)
entendem o mundo e as coisas como mutáveis, inconstantes e não-permanentes. Assim, os dois
sistemas de pensamento tratam de um “processo de tornar-se algo”.
As narrativas chinesas clássicas articulam as tensões entre “torna-se” e “ser”. Umas das
formas de trabalhar com esses elementos nas narrativas é incorporar a capacidade de
“transformação” dos personagens, seja ela uma transformação interna - um personagem que cresce
e evolui com a narrativa - ou mesmo uma transformação física - com o personagem assumindo
outra aparência. Nas narrativas chinesas, os personagens místicos têm poderes ou habilidades de
transformação, podendo aparecer como animais, plantas, nuvens ou qualquer outro elemento da
natureza. Assim, os personagens se ajustam às adversidades e às situações sempre em constante
mudança. A habilidade de transformação está diretamente relacionada ao poder do personagem
dentro da narrativa. É comum vermos heróis, divindades e vilões que dominam diversas
transformações:
Erh-Lang estava andando depressa, mas quando chegou à margem do rio seu rival
havia desaparecido. “Ele transformou-se em um peixe”, pensou Ehr-Lang, e
metamorfoseou-se em um grou e começou a voar sobre a água. (KHERIDAN,
2003, p 105)13

Sobre a transformação, há várias passagens de pensadores taoístas e budistas que


discutiam o assunto, como vemos no comentário de Zhuang Zi, um pensador chinês que viveu
durante o período dos Estados Combatentes (por volta dos anos 300 a.C.):

Por que haveria de me ressentir?” Respondeu Mestre Yu. “Se meu braço esquerdo
se transformasse num galo, eu seria capaz de saudar a aurora com ele. Se meu
braço direito se transformasse numa flecha, eu poderia atirar uma ave e assá-la.
Se minhas nádegas se virassem em rodas e meu espírito virasse um cavalo eu
poderia montar nele – que necessidade teria de um carro? Obtive a vida porque
era chegado o meu tempo e agora dela me separo de acordo com Tao. (Zhuang
Zi, 1992, p. 75)14

A arte chinesa e sua filosofia foram guiadas pelas questões de transformação e de não
permanência dos estados, como as estações são cíclicas. Se assim é a vida do homem, dos animais,
assim é também o tempo e as questões mais profundas como morte e imortalidade.
Para o pensamento chinês clássico, nada escapa ao Tao, ao movimento que rege todas as
coisas e as coloca em seu “devido lugar”. Da noção de Tao nasce as noções de Yin e Yang, que ao
contrário do que pensa nossa dicotomia Ocidental, não são opostos, mas complementares. O Yang
é a representação do calor, do masculino, do cheio e do criativo; enquanto o Yin é a representação
do frio, do feminino, dos vazios e do receptivo, muito mais sobre isso pode ser encontrado no I
Ching, o clássico das mutações. Para os propósitos deste trabalho é importante notarmos essa
complementação entre os dois, e como as noções de Yin e Yang se complementam na arte oriental.

3.2.2. A Revolução em quadro

13
KHERDIAN, David. Macaco: Uma jornada para o oeste. Tradução: Sandra de Camargo. São Paulo: Odysseus
Editora, 2003 p. 105
14
Zhuangzi. Chuang Zi: Escritos Básicos. Tradução: Yolanda S. Toledo. São Paulo: Cultrix, 1992.
Em língua chinesa, o termo utilizado para as histórias em quadrinhos é manhua. Na grande
maioria das vezes quando este termo é utilizado em outra língua, como o inglês, por exemplo, ele
se refere a quadrinhos chineses, ou ao que os chineses popularmente chamam de guochan manhua
國產漫畫, ou quadrinhos domésticos, dentro do país.
Naturalmente, os quadrinhos chineses não surgiram do nada. Apesar do termo que os define
- manhua - só começou a ser usado a partir de 1927, já se fazia HQ na China desde o século XIX.
Em inglês, o termo manhua é comumente utilizado para apontar a diferença entre os
quadrinhos chineses e os mangás japoneses, da mesma forma que o termo manhwa, que serve para
se referir às obras sequenciais coreanas. De qualquer forma, tais obras se assemelham bastante aos
quadrinhos japoneses.
Em chinês, manhua é um termo geral que se refere a todo o espectro de produção em arte
sequencial, incluindo, assim, as produções japonesas, coreanas, americanas e europeias.
Um terceiro uso do termo descreve o “quadrinho chinês tradicional” que é comumente
localizado com a introdução da impressão litográfica no século XIX em Hong Kong e Shanghai.
As mais antigas produções tomadas por essa definição são duas antologias satíricas
produzidas em inglês, The China Punch (1867–1868, 1872–1876). Juntamente com as obras
importadas da América e da Europa, esses trabalhos serviram para inspirar a primeira geração de
quadrinistas chineses como Sapajou (? – 1949), Feng Zikai (1898-1975) e Zhang Leping 張樂平
(1910-1992) e muitos dos quais passaram grande parte do suas carreiras criando propagandas anti-
Japão. Infelizmente, a grande maioria dos quadrinistas abandonou a produção depois de 1949,
devido às várias e radicais mudanças no cenário político-cultural e social chinês.
Até o início do século XX, os principais pensadores chineses pareciam ainda tratar e
discutir certos temas e noções postas em circulação diversos séculos antes, esforçando-se para
debater os clássicos e os pensamentos fundadores da sociedade chinesa.
Um embate intelectual se desenrolava dentro dos muros das Universidades: confrontos
iniciais entre o pensamento oriental e o ocidental. A partir do século XVIII, desenvolveu-se certa
fórmula simplista de que o pensamento chinês seria o fundamento constitutivo e o pensamento
ocidental era considerado prático funcionalista. Tal simplificação é refutada por sinólogos
conceituados, dentre eles Anne Cheng (2008), que dedica todo o epílogo de seu livro para discutir
essas questões. Nas palavras da autora:
Os esquemas do pensamento tradicional explodem sob a pressão das ideias
ocidentais e intensifica-se o impulso revolucionário, os diálogos internos cedem
lugar aos desafios urgentes da modernidade. No momento em que se esbarram os
fundamentos e os valores da cultura chinesa, torna-se imperioso para os
intelectuais dissociá-los da China enquanto Estado político moderno. (CHENG,
2008, p. 728-729)

Como as questões políticas e da modernidade sempre se viram abafadas pelas acaloradas


discussões a respeito de obras clássicas, o século XX se inicia sob um signo de revolução de
pensamento. Tal revolução só foi possível em grande parte pelo envolvimento da parcela
intelectualizada da população que se concentrava nos grandes centros universitários.

No espaço de uma geração passou-se do questionamento dos valores


fundamentais da tradição à sua total rejeição, em favor de uma “nova cultura” à
qual recorrem os alunos das universidades modernas, ou seja, ocidentalizadas.
(CHENG, 2008, p. 728)

Um grande exemplo dessa revolução foi a reestruturação da Universidade de Pequim a


partir de modelos europeus, em especial o alemão, marcada pela noção hegeliana de autonomia de
estado e pela liberdade de estudo ligada a Kant, a valorização da investigação científica e novo
papel da filosofia como regente dos outros campos acadêmicos.
Não havia na China um paralelo com as noções de liberdade acadêmicas que emergiram na
Europa.
Se por um lado havia a absoluta hegemonia intelectual dos burocratas-
acadêmicos, que definiam os exames e controlavam o conhecimento canônico na
Universidade de Hanlin (...) por outro lado havia uma intermitente liberdade
intelectual que por vezes desafiava a autoridade imperial por meio de críticas e
intervenções nas práticas governamentais. (HAYHOE, 1996, p. 12)

A Universidade de Pequim praticamente rompe com pensamento tradicional chinês que se


vê questionado já em suas fundações invocando modelos ocidentais de ciência, democracia e
mesmo de nacionalismo.
Sobre a revolução do sistema acadêmico chinês e sobre a forma de pensamento que
ocupava a cabeça dos estudantes participantes do Movimento de 4 de Maio, trago a frase de Chen
Duxiu, editor do jornal Nova Juventude, e um dos co-fundadores do partido Comunista em 1921:
Em nossa juventude estávamos ocupados em estudar a composição em oito partes
e a discutir sobre o saber antigo. Muitas vezes não tínhamos senão desprezo pelos
letrados que aprendiam as línguas europeias e discutiam sobre o saber novo: todos
era escravos dos ocidentais, indignos de nossa tradição. Foi somente ao ler os
escritos do Sr. Kang [Youwei] e de seu discípulo Liang Qichao que começamos
a adquirir consciência de que os princípios políticos, a religião e o saber dos
estrangeiros podiam trazer-nos uma grande contribuição e abrir-nos os olhos, a
ponto de fazer-nos rejeitar o passado para abraçar o presente. 15 (KANG, 1916,
p.1)

Kang Youwei e Liang Qichao foram dois fomentadores do movimento reformista, que
ganhou grande força a partir da fundação – em 1895 - do jornal Shiwu Bao (conhecido em inglês
como The China Press), em que dois autores voltavam-se para as autoridades de Pequim para
reclamar uma reforma parlamentar e reforma do sistema acadêmico. Conforme dito, as ideias
desses autores ajudam a moldar o que seria a nova juventude chinesa do início do século XX, tal
juventude passou por um processo de transição – diria até de “brusco rompimento” – do pensar e
fazer antigo, para um modelo completamente novo.
Essa juventude será responsável também por uma revolução midiática na China e pela
popularização e expansão dos quadrinhos como ferramenta biarticulada: servindo ao
entretenimento, mas também às manifestações políticas.
Dentre estes jovens certamente podemos destacar aqueles que compunham a Sociedade de
Manhua de Shanghai, uma das mais importantes associações civis dedicada a produção de
conteúdo midiático durante as décadas de 20 e 30, os artistas que se associavam viam na produção
de quadrinhos não só uma oportunidade financeira, mas também um dever moral frente à agitação
política da época.
Notamos que a grande variedade de produções dos membros definiu manhua como uma
esfera criativa que ultrapassa o conceito de quadrinhos, como popularmente utilizamos em língua
portuguesa. Na verdade, as obras publicadas pelos membros da Sociedade apontam que o termo
manhua era compreendido como uma categoria geral para as representações visuais como
quadrinhos, caricaturas, ilustrações de moda, publicidade, pôsteres e tipografias.
Com o propósito inicial de entreter (por humor ou provocação) ou convencer (através de
sátiras políticas ou propaganda nacionalista). Os editores e criadores de conteúdo ambicionavam

15
Bo kang youwei zhi zongtong zongli shu (“Discussão crítica da carta de Kang Youwei ao presidente e ao Primeiro
ministro”), em Xin qingnian (A Nova Juventude), t.2. n.2 (1º de outubro de 1916), p.1
que seus quadrinhos esclarecesse os leitores, inspirassem reflexão em um período tumultuado da
história. O manhua humorístico não foi o único tipo de quadrinho a emergir na China durante a
primeira metade do século 20. Por exemplo, uma forma de quadrinho, próxima em estilo com as
narrativas de super-heróis ocidentais eram os lianhuan tuhua 連環圖畫, ou “livros com figuras
conectadas”, conhecidos também por lianhuan hua 連環畫, sendo extremamente populares nos
anos 1920, pois eram uma forma barata de entretenimento.
Diferentemente dos autores mais idealistas e militantes, os primeiros produtores de
lianhuan tuhua evitavam as críticas sociais e entendiam seu trabalho como forma de
entretenimento simples, fazendo com que poucos sobrevivessem para a posteridade. A maioria dos
exemplares remanescentes é pós-1949, quando o Partido Comunista Chinês começou a promover
histórias ilustradas como propaganda para as massas. De maneira similar, outras formas de arte
relacionadas aos desenhos, como a arte decô, cubismo, e os retratos latino-americanos, ganhavam
espaço ao lado da tradicional arte chinesa.
Não nos surpreende o fato de que alguns estudos recentes sobre influências estéticas nos
manhua tenham encontrados elementos artísticos notadamente ocidentais como o cubismo, art
nouveau, surrealismo, simbolismo nas publicações do final da década de 1920.
Jornada ao Oeste é classificado como um lianhuan hua, ou livro de imagens conectadas.
Essa forma de quadrinho existe desde o início do século XX, quando a tecnologia de impressão
barata tornou possível para as editoras a produção em massa de imagens com alta fidelidade e texto
com baixíssimo custo, oferecendo uma nova forma de entretenimento para o número crescente de
leitores nas cidades. Uma das características deste quadrinho é a representação de apenas um ou
dois quadros por página – riquíssimos em detalhes, trazendo uma legenda que explica a cena
representada.
Com o advento do mangá no Japão, principalmente após as obras de Osamu Tezuka16, o
lianhuan hua perdeu espaço para o novo quadrinho chinês, num estilo muito mais influenciado
pelos quadrinhos japoneses e ocidentais, adotando o nome de manhua, para se aproximar dos
mangás japoneses.

16
Cartunista, artista gráfico, mangaka, produtor e ativista japonês, considerado o “pai do mangá” devido a suas
técnicas inovadores que redefiniram o gênero.
Diferente do quadrinho ocidental moderno e do mangá, onde existem, os “balões” para
darem fala e indicarem os pensamentos dos personagens, aqui a legenda funciona como parte
integrante da cena, sem ela a compreensão de certos quadros ficaria impossível.
Durante as décadas de 1920 e 1930, uma das vertentes mais comuns dos quadrinhos
chineses eram as adaptações não autorizadas, “pirateadas” de obras já consagradas na Europa e
Estados Unidos. Paul Gravett, jornalista e pesquisador de histórias em quadrinho, cita como se
dava o processo de adaptação não autorizada, usando como exemplo um lianhuan hua de 1984
que adapta as Aventuras de Tintin de Hergé:

Os quadrinhos chineses antes de serem chamados de manhua, eram conhecidos


como lianhuanhua, hua significa desenho e lianhuan significa conectar, linkar.
São quadros em sequência. Alguns coloridos, outros em preto e branco, com um
ou dois quadros por página e com o texto sempre embaixo do quadro. Eram
extremamente baratos, mesmo se você não pudesse comprá-los, era possível
sentar nas calçadas e alugá-los. As pessoas liam nas ruas. Uma banca de
quadrinhos era montada, com algumas cadeiras, e você poderia se sentar e ler
(GRAVETT, P. 2008)17

Embora nos pareça equivocado dizer que o lianhuan hua precedeu manhua - visto que
ambos emergiram durante o mesmo período como forma de expressão distinta - Gravett afirma
corretamente que, entre os anos de 1920 e 1930, o lianhuan hua se destacou, tornando-se algo que
os leitores preferiam alugar e não comprar. Devido a seu caráter praticamente descartável,
pouquíssimos exemplares das primeiras obras sobreviveram.
Hoje, o lianhuan hua é uma mídia essencialmente renegada, com sua distribuição e
negociação atendendo a nichos específicos de colecionadores e adultos mais nostálgicos.
As produções anteriores aos anos 50, que adaptavam as óperas clássicas, são também de
pouco interesse para a juventude chinesa atual. Para a academia chinesa, por outro lado, o lianhuan
hua apresenta informações valiosas sobre um interessante período da história chinesa, em que
forças e revoluções se agitavam.
O mais famoso exemplo que resistiu ao teste do tempo ultrapassando a marca dos 5 milhões
de exemplares vendidos é a obra utilizada como objeto de estudos deste trabalho, a adaptação de
Jornada ao Oeste.

17
Alex Fitch / Paul Gravett, Panel Borders: Manhua! China Comics Now Part 1,
2008.<http://www.nickstember.com/chinese-lianhuanhua-century-of-pirated-movies/#footnote_3_236.> Acessado
em 6 de Janeiro de 2019
Apesar de não ser um artigo da “Era de ouro” dos lianhuan hua chineses, Jornada ao
Oeste de 1962 guarda todas as características que tornaram o gênero famoso e soma-se a essas
características uma atitude bastante politizada de uma segunda geração de quadrinistas chineses,
influenciados principalmente pelas revistas em quadrinhos publicadas no final dos anos 1930 e
1940.
Em 24 de janeiro de 1934, por exemplo, a revista Modern Sketch 時代漫畫 foi lançada
tendo Lu Shaofei como seu editor. Tal revista se provou como o periódico de maior duração,
contando com 39 edições lançadas ao longo de 42 meses encerrando sua produção em 20 de junho
de 1937. Cada edição contava com 32 páginas de quadrinhos, fotografias e ensaios, além de capa
e contra-capa coloridas. Para explicar a capa da primeira edição da revista, Lu Shaofei incluiu uma
breve nota:
Uma era de tensão nos cerca por todos os lados. Seja como indivíduos, como nação, ou
mesmo para o mundo. Será sempre assim? Eu não sei. Mas considerando que este
sentimento não passa, ansiamos por uma resposta; e quanto mais falhamos em responder,
mais aumenta nosso desejo. Nossa posição, nossa única responsabilidade é, então, lutar!
A imagem que ilustra nossa primeira capa, será também nosso logo: Não nos renderemos.
(LU, 1934, Nota do Editor)18

Lu foi extremamente produtivo, contribuindo com suas próprias ilustrações e artigos na


revista. Em fevereiro de 1936, a revista foi acusada pelo escritório geral de propaganda do
Kumingtang (KMT) de “caluniar o governo, prejudicar as relações internacionais da China e
caluniar líderes políticos. Tal acusação culminou com um banimento de 3 meses.
Outro periódico de grande importância foi a revista Manhua Life. Considerada talvez a
última iteração em uma longa corrente de periódicos lançados por Huang Shiying, tratava-se de
uma revista em quadrinhos de 32 páginas lançada em 20 de setembro de 1934.
Da mesma forma que Lu Shaofei e os quadrinistas por trás da Modern Sketch, Huang
Shiying e seu time tinham grandes ambições para seu pequeno periódico, como escrito no prefácio
da primeira edição:

18
Lu Shaofei 魯少飛, “Bianzhe Bubai” 編者補白 [Nota do Editor], Shidai Manhua時代漫畫, Janeiro 1934,
traduzido por John A. Crespi. In “China’s Modern Sketch: The Golden Era of Cartooning 1934-1937. ”
A vida é um grande palco. Todos nós estamos atuando nessa tragicomédia, e ao
mesmo tempo, somos a audiência. Embora o programa se altere todos os dias,
nunca saímos da tragicomédia. Vamos dar uma olhada no programa de hoje: o
caos da guerra, desemprego, fome, desnutrição, tudo ocupa o palco nessa era de
tumultos. As vidas das massas nesta era são também cruéis. Mesmo assim, no
outro canto do palco, existe uma pequena minoria que dança de alegria na cratera
do vulcão. Grandes são as contradições do mundo que se abre perante nossos
olhos. Nós cremos que essas discordâncias desaparecerão, cedo ou tarde.
(SHIYING, 1934, prólogo)19

A capa da primeira edição da Manhua Life, é intitulada: The Cry of Life. Ela retrata um
homem chinês de joelhos, nas ruínas de uma cidade demolida, com a boca tão aberta que obscurece
o restante da face. Para os leitores da época, a cidade em ruínas remetia diretamente à devastação
causada em 1932 pelos bombardeiros japoneses em Zhabei. Como aconteceu com a Modern
Sketch, a Manhua Life também sofreu com a censura, já em sua segunda edição.
Como aconteceu com os mangás, as produções de lianhuan hua pareciam ter se esgotado
durante a segunda Guerra Sino-Japonesa devido aos baixos estoques de tinta e à destruição parcial
de Shanghai, que na época concentrava praticamente toda a produção em quadrinhos chineses e à
censura.
Em fevereiro de 1936, tanto a Modern Sketch quanto a Indepent Manhua foram obrigadas
a cessar a produção graças a uma ação de censura do KMT, encabeçada pelo Escritório Geral de
Propaganda. A revista Manhua Life também encerrou suas publicações em fevereiro pelos mesmos
motivos.
Ironicamente, enquanto as editoras e revistas em quadrinhos começavam a fechar suas
portas, o interesse público por esta forma de arte começou a aumentar, culminando na fundação
da Associação Nacional de Artistas de Manhua (ANAM) 中華全國漫畫作家協會 na primavera
de 1937. A ANAM tinha a intenção de unir os quadrinistas de toda a nação, promover o manhua
como arte, além de transformá-lo em uma ferramenta para educação social.
Após a vitória comunista na guerra civil chinesa de 1945-1949, o lianhuan hua
experimentou uma “era de prata”. Mao Tse Tung e outros líderes do partido promoviam o novo
lianhuan hua como propaganda, focando principalmente as comunidades agrícolas semiletradas e

19
Shiying Huang 黄士英, “Kaichangbai” 開場白 [Prólogo], Manhua Shenghuo 漫畫生活, 20 de setembro de 1934.
as grandes massas urbanas. É sob essa ótica revolucionária que vários quadrinistas se juntam para
produzir o Jornada ao Oeste.
As transformações da China durante o século XX influenciaram as escolhas artísticas para
a adaptação da obra clássica focando em um enredo que popularizava uma cultura erudita e ao
mesmo tempo poderia inserir valores e narrativas que discutiam a situação política, cultural e
econômica da China. Se Jornada ao Oeste enquanto obra literária já brincava com as questões de
burocracia, meritocracia, religião, ritos e formalidades, sua versão quadrinizada exacerba essas
mesmas questões criando uma narrativa que se mantém bastante fidedigna ao material fonte,
porém modificando certos papéis e sentidos que serão discutidos na análise.

3.2.3. Um sonho chinês narrado em italiano

Apesar do curto intervalo de tempo entre as duas produções, a adaptação italiana foi
desenvolvida durante um contexto muito diferente da versão chinesa, apresentando um repertório
cultural diferente, o que acabou por criar uma narrativa completamente inédita. Perceber como a
mesma obra foi adaptada em dois contextos - ou duas cosmovisões - produzindo resultados tão
distintos alinha-se com os interesses desta dissertação no que diz respeito à permanência,
desaparecimento e atualização das imagens.
Pisu e Manara não se limitaram a uma simples transposição. Os dois artistas fizeram muito
mais, adaptaram a história ao seu tempo, transformando-a principalmente em uma alegoria de
poder.
A adaptação italiana foi concebida no ar dos anos setenta, quando os sonhos de revoluções
utópicas começavam a desvanecer. Certa descrença no futuro inflamou os corações dos jovens de
68 em diante. Relendo hoje a história do Lo Scimmiotto de Manara e Pisu, percebemos tratar-se de
uma obra de grande importância, um verdadeiro clássico para os fãs de quadrinhos pelo seguinte
motivo: a reconstrução da dialética política e essencial daquela época, em que o sonho de construir
um mundo melhor não poderia de forma alguma ser excluído de qualquer debate.
O que Manara e Pisu parecem fazer é olhar para a China e suas Revoluções populares com
um certo deslumbramento, ansiando por contar uma história que de alguma forma anima-se um
sonho revolucionário.
O estilo artístico de Milo Manara concebe Lo Scimmiotto como um grande afresco, onde
cada página parece pronta para ser reproduzida em uma parede, como um grande grafite alertando
sobre todo o mal que pode expressar a ganância do poder.
Os estudos em sinologia já haviam se consolidado nas academias europeias desde o século
XVIII (ou mesmo antes deste período considerando os estudos desenvolvidos por Jesuítas como
Matteo Ricci já no século XVI), porém foi após a Segunda Guerra que as academias parisienses
começaram a dominar e pautar os estudos sobre a China, principalmente tirando o foco do
Confucionismo e buscando estudar outras manifestações culturais, artísticas e religiosas. Foi
graças a esses estudos mais abrangentes que obras como Jornada ao Oeste chegaram à Europa.
Para sua adaptação quadrinizada, Silvério Pisu e Milo Manara se basearam na edição
inglesa de Jornada ao Oeste, traduzida por Arthur Waley em 1942. Foi Renata Pisu, irmã de
Silvério e uma das principais sinólogas italianas, que sugeriu a ideia da adaptação ao regressa de
uma viagem à China e trazer consigo uma cópia da obra.
Em sua tradução, Waley opta por não contar toda a aventura épica do Macaco, mas foca
na juventude do personagem principal, em suas andanças aprendendo sobre o mundo antes de se
tornar imortal e adquirir todos os poderes que o transformaram em lenda.
A publicação de Lo Scimmioto permitiu que Milo Manara e Silvério Pisu entrassem na
galeria dos quadrinhos italianos e internacionais. A versão quadrinizada foi publicada na Itália e
na França. Além de sua qualidade artística inegável, Lo Scimmiotto representa um momento
importante para os dois jovens autores, que precisamente com esta história engajam uma profunda
reflexão sobre os quadrinhos e sua função social.
Na forma, a estética já se alia à linguagem dos quadrinhos demarcada por Scott McCloud.
De forte inspiração nos quadrinhos americanos e britânicos da mesma época, Lo Scimmitto conta
com quadros multiformes, enquadramentos que certas vezes lembram a linguagem
cinematográfica e balões de fala representando os diálogos, criando uma grande distinção entre
esta obra e a versão chinesa que se pautava na estética do lianhua.
A obra italiana também serve como testemunho político: seus mitos e ideologia apresentam
a visão diária de Manara e Pisu, que procuram a linguagem certa nos quadrinhos para contar as
mudanças históricas dos anos setenta que eles estão experimentando.
Os dois responsáveis pela adaptação italiana tinham se encontrado a editora Erregi um dos
principais centros italianos de produção de obras de caráter erótico. Enfrentando diversos tabus e
decretando a ascensão das personagens femininas que rechaçavam os estereótipos da época.
Em 1966, a postura pudica de uma sociedade já às portas de uma revolução sexual
incomodava uma geração de novos artistas que insistiam em produzir obras que insinuavam uma
sesualidade e outras que mergulhavam de vez em um erotismo como forma de manifestação. Os
leitores italianos ainda corriam nas bancas para comprar a primeira edição de Isabella, com a
heroína bastante erotizada desenhada por Sandro Angiolini. A produção deste tipo de quadrinhos
explodiu, ao ponto em que foi possível transformar romances fotográficos, que na época eram
eróticos, em quadrinhos. Entre estes romances adaptados estava Genius publicado em 1970, no
qual o jovem Milo Manara fez sua estreia, depois de deixar a Academia de Belas Artes.
Com o talento do jovem artista sendo notado, o chamaram para o projeto Jolanda de
Almaviva, personagem inspirado no romance de Emilio Salgari: Jolanda a filha do Corsário
Negro, anunciando a estreia no número anterior. Enquanto trabalhava na editora ERREGI,
Manara também colaborou com Telerompo, o primeiro exemplo de sátira televisiva, projeto
bastante significativo se levarmos em conta de que a televisão era mais autoritária, e satirizar os
figurões da televisão era considerado repreensível. Entre os autores de Telerompo encontrava-se
Silverio Pisu, com quem Manara iniciou uma amizade.
Figurando entre os mestres da televisão e da arte sequencial italiana, Pisu conhecia a
linguagem televisiva e da paródia. Graças a seu talento multifacetado, o autor desenvolveu uma
espécie de “nomadismo criativo” transitando entre as mídias.
No início dos anos setenta, a China não só foi visto como a terra prometida do comunismo
propagado pelo Livro Vermelho de Mao, mas representou também uma revolução estética,
especialmente para os jovens artistas recém-saídos de uma escola de arte, que tentaram entender
qual deveria ser o propósito social de seu trabalho. Ao escrever o prefácio da edição italiana de
Jornada ao Oeste, Sérgio Rossi afirma:

Na China fantasiosa de Mao, ansiava-se por uma agenda comunistas coletiva que
concedia aos artistas a capacidade de lidar com a realidade em que viviam.
Servindo as pessoas de maneira propriamente artística, mas respeitando as
restrições de justiça social. “Se um cartaz fosse desenhado, por exemplo, era
obrigatório incluir um camponês, um soldado e um trabalhador, coloridos em
cinza, verde e azul, respectivamente. (ROSSI, 1976, p. 6).

Havia certamente um entusiasmo inicial com a Revolução Chinesa principalmente em meio as juventudes da
Itália e da França, muitos intelectuais europeus principalmente alinhados com a esquerda ansiavam por viver uma
outra Jornada, para o Leste deixando a Europa e rumando para a China.
O experimento era fascinante, especialmente para aqueles que, como Milo Manara, viviam
em um ambiente em que todas as convenções haviam caído e se permitiam o privilégio de seguir
seu próprio "êxtase". O segredo do comunismo chinês, como muitos outros no campo político, só
apareceu posteriormente se configurando como uma imposição do regime totalitário, e então de
uma censura cujas consequências ainda são sentidas hoje nas mais variadas limitações.

Naquela época nós só vimos coisas bonitas, estávamos cheios de um entusiasmo


que não existia mais e que tentamos colocar nas páginas do Scimmiotto junto com
toda uma série de citações e personagens que hoje podem parecer
incompreensível. Como Patrice Lumumba, presidente do Congo assassinado em
circunstâncias misteriosas e esperança despedaçada África democrática, que
aparece na última mesa gravado na montanha com vista para os pobres e para o
Macaco. (ROSSI, 1976, p. 12)

O Sun Wukong que enfrenta os deuses e bagunça o Céu de Manara e Pisu é na verdade
Mao Tsé Tung que bagunça os jogos de poder. A escolha de encerrar a narrativa justamente na
derrota de Sun Wukong para as divindades celestes reforça a dissolução abrupta do sonho
revolucionário que se desenhava na China e inspirava a Itália nos anos 70. O Macaco também é
simultaneamente o jovem intelectual ou artista europeu que desiludido com o pós-guerra encontra
na China uma alternativa a priori viável.
Pisu diz tratar-se da sensação de leve desorientação que ocorre quando se percebe que há
uma fração, no começo, entre o que é dito e o que é feito, e depois se espalha até que toda a
estrutura seja quebrada. Jornada ao Oeste dialoga com as etapas e as experiências revolucionárias
das revoluções chinesas. Iniciando com um sentimento de ímpeto revolucionário que se encerra
soterrado por uma montanha de conceitos e não consegue se concretizar.
É sob tal sentimento que Manara e Pisu realizaram um ano antes Alessio, Il Borghese
Rivoluzionario (1975), no qual o protagonista, que não tem sequer um rosto definido, passa a vários
estágios experiência revolucionária na Rússia do início do século XX -mais arrastado por eventos
para uma participação sentida - para então avançar nos anos setenta, onde ele escreve publicidade
para os produtos daquela empresa que não puderam mudar, com todas as frustrações do caso.
Segundo Manara, essa involução talvez seja uma consequência direta da cultura dos anos setenta:
existia um ímpeto de mudar a sociedade com ferramentas culturais, com a política. Instrumentos
que, em vez disso, estavam firmemente nas mãos daqueles que contestavam.
Durante os escuros anos 1970, muitos artistas renegaram a vida pública e conseguiram
retornar à vida privada. Outros, frustrados pela queda de suas ilusões, aliaram-se ao mesmo sistema
de poder que desprezavam. Manara e Pisu acreditavam que seu ponto de referência era a política,
porque tudo era político, inclusive suas manifestações artísticas. Os dois autores acrescentaram a
Jornada ao Oeste camadas interpretativas e ressuscitaram outras que já estavam presentes
ressignificando-as a seu molde.
Lo Scimmiotto já não fala somente da introdução do Budismo na China, mas se apresenta
como uma parábola para China Revolucionária e a narrativa Maoísta contada pelos olhos de dois
jovens italianos em um período de repreensão artística e danças de poder.
A obra é resultado da recepção do Jornada ao oeste no contexto de um jovem artista italiano
que ao interpretá-la através de suas mediações deu-lhe um novo sentido atrelado a sua cosmovisão
europeia dos anos 70.
4. Vis-a-vis: Análise Comparativa e Discussão

Definidos os traços constitutivos, os contextos de produção e as diferenças primordiais


entre as duas adaptações em arte sequencial partimos para a análise comparativa dos quadros que
compõem as duas obras.
Conforme descrito anteriormente, selecionamos para esta pesquisa 64 imagens das duas
adaptações literárias da obra chinesa Jornada ao Oeste. Tais imagens representam o início da
narrativa (a apresentação do personagem), algumas cenas de reviravolta centrais (cenas de combate
ou de reconhecimento do personagem) e o desfecho da primeira parte.
Embora a narrativa literária base do século XVI seja composta de 100 capítulos e a
adaptação chinesa para arte em quadrinhos acompanhe toda aventura original, a adaptação italiana
opta por nos contar somente o primeiro arco da história, focada no personagem Sun Wukong.
Dessa forma, nosso recorte da narrativa chinesa será limitado pela versão italiana.
Selecionamos assim os quadros que representam o primeiro arco da narrativa, que conta desde o
nascimento do Rei Macaco até sua prisão sob a montanha, e segmentamos o capítulo de análise
em duas partes para fins didáticos.
Em termos narrativos, a primeira parte serve como a apresentação e desenvolvimento do
personagem, uma história de origem. Nela vemos como Sun Wukong nasceu, como se consolidou
enquanto o Rei dos Macacos, qual é seu dilema inicial e o motivo de sua jornada; também explica
como ele adquiriu seus poderes e seus equipamentos e como fez inimigos ao longo de sua narrativa
para finalmente fechar o primeiro arco enfrentando e derrotando seus rivais em épicos combates.
Este primeiro arco narrativo é completo e serve como pano de fundo para o restante da narrativa.
Se o primeiro arco não existisse (e algumas correntes críticas chinesas defendem que ele tenha
sido escrito posteriormente), o texto se iniciaria “in medias res”, concordando como uma visão
estabelecida por Aristóteles em sua Poética que define a falta de necessidade de adicionar
elementos que escapem diretamente a relação de “causa-efeito” estabelecida pela narrativa.
Ao optar por batizar sua narrativa de Lo Scimmiotto, os autores italianos parecem se
aproximar mais da tradução inglesa Monkey, de Arthur Waley e menos da versão original de Wu
Chen’en. Sabemos que o foco central da narrativa italiana não é a jornada ao oeste (ela nem é
citada durante toda a obra) pois de fato só ocorre após os eventos do primeiro arco. Assim, o foco
central das duas narrativas se distingue: a chinesa se interessa pela sucessão dos eventos, enquanto
a italiana é quase um estudo de personagem.
Se considerarmos o contexto de geográfico de produção, os personagens apresentados no
texto (Macaco, as divindades chinesas, Buda) - e mesmo as apresentadas no arco de Tripitaka (o
Monge Peregrino, o Porco, os demônios) - fazem parte do folclore chinês, não havendo
necessidade de explicar motivações, argumentos e traços distintivos para o público da época da
publicação original no século XVI, e nem para o público consumidor dos quadrinhos chineses.
Na Itália houve a necessidade de apresentação e aprofundamento dos personagens centrais,
justamente para atrair a empatia do público para aquela narrativa. Embora os estudos em sinologia
estivesse em alta na Europa, em especial na França e mesmo na Itália, o público geral desconhecia
tais personagens e narrativas.
A adaptação italiana concentrou-se especialmente no primeiro arco narrativo, tendo em
vista apresentar e construir um personagem frente a um público que desconhecia a narrativa de
origem da obra.
Naquele momento histórico, a Europa olhava para a China como o país do Comunismo, e
foi justamente essa a aproximação abordada por Silvério Pisu e Milo Manara. Se a narrativa de
Jornada ao Oeste era desconhecida do grande público de quadrinhos, a narrativa do comunismo
chinês era amplamente difundida na Itália e encantava de certa forma a juventude daquele país
como explicitado anteriormente.
A respeito do ponto de vista narrativo, embora todas optem por uma aproximação em
terceira pessoa, a adaptação italiana parece muito mais colada ao personagem principal, enquanto
a chinesa parece sempre manter um olhar mais distante da narrativa. Esta estratégia intenta criar
mais um laço aproximativo entre o leitor e o personagem, envolvendo-o na narrativa.
Sobre os traços especificamente, os quadros da obra chinesa se pautam em uma
composição minimalista (que concordam com a tradição artística chinesa), utilizando os espaços
em branco e poucas linhas. A versão italiana opta por um quadro “poluído” com vários detalhes
composicionais e partículas. Tal traço serve para emular a ação, os movimentos e a sujeira das
cenas.
A posição do texto é outro elemento que rapidamente se destaca. Enquanto a versão chinesa
opta por seguir o tradicional estilo do lianhuan hua), o texto atua como uma legenda ao quadro
guiando o leitor para elementos importantes da narrativa.
A obra italiana é pautada por um quadro americano, com balões de fala que expressam
somente o diálogo entre os personagens. Em alguns quadro podemos notar a diferença entre os
balões de fala e a tipografia utilizada para demonstrar qual personagem está falando ou a gravidade,
ou importância daquela fala (como na conversa entre Sun Wukong e seu mestre).
A narrativa italiana opta por não explicar, mas mostrar: os diálogos narrativos fluem
naturalmente, poucos são explicativos e os balões de contextualização (colocados no topo quadro),
representam o que seria uma fala do narrador, ou se preferirmos utilizar a linguagem
cinematográfica, um “voice over”.
Nesta análise as cenas serão apresentadas lado a lado e então comparadas na questão
estilística, composicional e simbólica, seguindo o tripé de análise proposto por Warburg/Panofsky.
Para facilitar a compreensão, o texto de análise foi dividido em dois momentos: a primeira
parte tratando do nascimento e desenvolvimento de Sun Wukong e culminando na sua entrada ao
Reino Celestial, a segunda parte conta da vida de Wukong entre as divindades e do embate contra
os deuses até ser finalmente detido por Buda.

4.1. O Belo Rei dos Macacos

A cena inicial (figura 1) retrata o nascimento mitológico do rei dos Macacos. Conta-se que
o macaco tenha surgido da explosão de uma rocha sagrada. O nascimento de Wukong faz uma
referência direta à gênese do cosmo na mitologia chinesa, o nascimento de Pan Gu e o ínicio do
universo.

No início, os céus e a terra eram um e tudo era o caos. O universo era como um
grande ovo negro carregando Pan Gu. Depois de 18 mil anos Pan Gu despertou
de seu longo sono. Ele se sentiu sufocado e abrindo os braços trincou o ovo de
dentro para fora. A luz clara subiu e formou os céus, a matéria fria e túrbida ficou
em baixo e formou a terra. Pan Gu ficou no meio, sua cabeça tocava o céu e seus
pés estavam firmados na terra. (BIRREL, 1999, p. 64, tradução nossa)20

Enquanto na adaptação chinesa o primeiro quadro já apresenta a rocha explodindo e o


macaco indefeso em posição fetal saindo de dentro dela, a versão italiana primeiro monta o cenário,
mostrando a floresta, a paisagem com a intenção de inserir o leitor naquele universo fantástico, e
em seguida temos o nascimento de Wukong.
Aqui já em posição heroica, vestindo uma túnica e o clássico chapéu da revolução chinesa
em uma atitude muito mais performática que na sua contraparte oriental. Tal diferenciação entre
as duas obras pode ser justificada: enquanto a versão chinesa inicia retratando o Macaco como
indefeso, a versão italiana não perde tempo em retratá-lo com o herói de sua narrativa.
Outra explicação importante é a formação do herói nas duas cosmovisões. Enquanto nas
narrativas chinesas e japonesas (nos mangás por exemplo) o herói é um personagem com origem
comum que adquire suas habilidades e poderes através de intenso treinamento e esforço; nas
produções ocidentais, partindo talvez da concepção de semideuses dos heróis gregos (Aquiles,
Hércules, Perseu), os heróis já estão desde o nascimento destinados a grandes feitos, e seus poderes
e habilidades são latentes e naturais.

20
The universe was like a big black egg, carrying Pan Gu inside itself. After 18 thousand years Pan Gu woke from a
long sleep. He felt suffocated, so he took up a broadax and wielded it with all his might to crack open the egg. The
light, clear part of it floated up and formed the heavens, the cold, turbid matter stayed below to form earth. Pan Gu
stood in the middle, his head touching the sky, his feet planted on the earth.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Sabemos que a personagem da ficção ocupa lugar de destaque em toda a narrativa. É


através dela que a ficção se adensa e cristaliza e é pela personagem que o leito gera empatia ou
antipatia atraindo-o ou repelindo-o para a narrativa ficcional. Sun Wukong é quase uma
unanimidade nos corações e mentes do público chinês.
O desenho de um personagem, sendo uma representação minimalista da figura humana,
abre a possibilidade para cada leitor se envolver com o quadrinho ao ponto de se reconhecer
naquela obra. Enquanto o lianhua chinês opta por linhas mais simplificadas e contornos deixando
vários espaços em branco, a obra italiana opta por preencher o papel e detalhar tanto personagens
como cenários. Os traços simples do quadrinho chinês talvez facilitem nosso desprendimento da
realidade, enquanto a composição italiana parece apelar para um realismo “sujo” no qual
desprendimento da realidade parece inusitado e serve ao propósito de impactar ou fazer humor.
O caráter indefeso de seu nascimento na obra chinesa simbolizado pelo desenho do
personagem em posição fetal é rapidamente rompido logo nos primeiros próximos quadros da
obra.
Sun Wukong (孙悟空) é definido sempre na narrativa chinesa por sua coragem, seu humor
travesso e sua energia ilimitada, que em conjunto definem seu caráter heróico. Na obra literária e
na adaptação chinesa de 1962 muitos desses aspectos positivos são apresentados durante a primeira
parte. Wukong é confiante e otimista, não se abate durante as dificuldades, mas procura de todo
modo superá-las. Responde com humor, sendo muitas vezes inconsequente ou mesmo alheio aos
problemas que enfrenta. O Macaco nunca é excessivamente solene, nem quando encara os
batalhões celestiais. Sem seu senso de humor, seria um herói trágico. É justamente seu humor que
permite que se transforme de rebelde (no primeiro arco) em servo obediente (no segundo arco),
sem causar antipatia no público.
Tal características do personagem está diretamente ligado a um dos principais aspectos da
cosmovisão Budista chinesa: o uso do humor como uma das formas de atingir a iluminação
espiritual, sendo considerado a forma ideal de se olhar para o mundo.

Wukong é ao mesmo tempo um herói de energia praticamente ilimitada e também


um eloquente comunicador da doutrina Budista sendo considerado por
comentadores como a mente alegórica da narrativa, mas mesmo assim mantém a
imagem cômica de um macaco travesso de onde o zelo e a zombaria tornam-se
expressão de uma mesma liberdade alegre. (HSIA , 2004 p. 135)21

No princípio da narrativa, a personalidade quase infantil do Macaco faz com que ele pregue
peças, zombe e discuta com seus opositores como uma criança que desafia os pais em frente ao
castigo.
Nesse sentido, Wukong poderia representar o caos que perturbar a ordem celestial,
principalmente por não respeitar o “protocolo e a hierarquia” estabelecida pelas divindades.
Wukong é a representação de uma força da natureza, de um poder e força bruta que se mostram
desapegado das convenções sociais do Céu exigindo o que acha ser o certo:

[...] Por que o Céu deveria ter apenas um mestre, quando na Terra reis seguem
reis? Se força é honra, então ninguém é mais forte do que eu, ou mais honrável. É
por isso que ouso lutar, pois apenas heróis merecem vencer e governar.
(KHERIDAN, 2003 p. 116)

Wukong acredita que sua força era seu direito de governar e por sua arrogância que foi
punido finalmente pelo Buda. Sua força física é demonstrada durante as passagens de combate e
de treinamento e sua ânsia para tornar-se imortal o levou até o Céu, mas por ser insubmisso caiu
novamente à Terra, onde ficou aprisionado.

21
HSIA, C. T. The Classic Chinese Novel – A critical introduction, Columbia University Press, New York, 2004 p.
135
Sun Wukong ainda goza de grande fama tanto na China, quanto em outros países asiáticos,
sendo personagem recorrente em quadrinhos, desenhos, animações, games, novelas e filmes.
Para estudiosos de mitologias comparadas, o Rei Macaco é um primo de Hanuman, o deus
Macaco Hindu, ou ainda uma versão chinesa de um personagem brincalhão, trapaceiro, como Loki
no Norte da Europa ou o Coiote na América.
No fundo, Sun Wukong é um mito. Parece por vezes ser um personagem plano, com pouco
apelo para nossa cultura atual, pois foi desenvolvido em um período comum à todas as culturas e
continentes, onde as figuras míticas desempenhavam papéis específicos em contextos morais
estreitamente definidos. Seja o herói, deus, trapaceiro ou donzela, não se esperava que o
personagem fosse contra seu tipo.
Talvez essa seja a grande inovação a respeito do personagem proposta por Manara e Pisu.
Os dois, partindo da narrativa chinesa e aproveitando traços característicos do personagem, o
adaptam de maneira mais performática. Wukong ainda é o herói destemido que encara os
problemas com humor e irreverência. Porém outras camadas foram acrescidas à sua personalidade,
transformando-o em um personagem esférico, que conversa muito mais com um público leitor já
acostumado com essa humanização dos tipos.
Na versão italiana Wukong chora, se desespera, tem medo e se torna por vezes violento e
agressivo. Tais características não aparecem na adaptação chinesa que prefere trabalhar o
personagem por outra ótica, mais colada à produção literária original, tratando Wukong como um
personagem plano.
Aparecendo nas duas adaptações como super-herói, Wukong, é também o personagem de
desenho perfeito: indestrutível, incansável, e perspicaz.

Sun Wukong disse, “Apenas ouvindo sobre o Caminho, eu aprendi todas as 72


transformações terrenas. Minhas cambalhotas me permitem atravessar grandes
distâncias. Eu consigo me esconder e desaparecer. Posso fazer encantamentos e
também sei quebrá-los. Posso alcançar o Céu e achar meu caminho na Terra.
Posso andar sob o sol ou a lua sem deixar sombras e atravessar metal e pedra
livremente. Não me afogo nas águas, nem sou queimado pelo fogo. Não existe
lugar que eu não possa ir. ” (KHERIDAN, 2003 p. 117)
Essas características também são recorrências na adaptação italiana, porém o caráter do
personagem parece ter sido um adulterado em certas cenas. Enquanto na narrativa chinesa o porco
Ba Jie é responsável por todas as cenas de gulodice e desejo sexual desenfreado, cabendo a
Wukong ser seu freio moral, a adaptação italiana parece mesclar os dois personagens em um,
criando um macaco que, por ser mais humanizado, também é mais animalesco e selvagem, como
veremos ao decorrer das cenas.
O que nos parece bastante claro é que enquanto a adaptação chinesa buscou encarar o
personagem Wukong nos mesmos moldes da obra literária, tratando-o como um personagem plano
desde o início da obra, com uma caracterização que apela para seus traços positivos (exaltados
pelo próprio governo chinês no período de lançamento do quadrinho) como a bravura, o
pensamento coletivo, a capacidade de enxergar as dificuldades com humor, e sobretudo sua
lealdade (enquanto vários heróis chineses são torturados por questões de lealdade, para Wukong,
a lealdade nunca é um ponto a ser questionado, sendo tão óbvia em seu coração como a tiara de
ouro que existe em sua cabeça), tais características assemelham-se a um herói épico que mantendo
seu caráter sempre imutável percorre diversas aventuras - como Ulisses ou Gilgamesh na literatura,
ou o Superman em suas primeiras edições, nos anos 1930 nos quadrinhos.
A adaptação italiana opta por apresentar um personagem esférico humanizado, que revela
seu caráter através de suas ações na narrativa. O Macaco italiano é certamente influenciado pelos
quadrinhos já produzidos na Europa e nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970 que se afinavam
com o realismo literário, traçando personagens com dilemas complexos e enredos mais
simplificados. Os detalhes do quadrinho, a atenção ao desenho dos corpos (principalmente os
femininos) são características que já despontavam nas obras italianas do mesmo período, servindo
como palanque de manifestação contra uma sociedade apontada por Manara como “falsamente
puritana”.
Com a aparição dos animais da floresta (figura 2), Wukong se esconde nas árvores. Na
versão chinesa, o animal não é facilmente identificável, ele nos parece uma mistura de tigre com
urso denunciando um ar fantasioso. Na versão italiana, vemos Wukong estrangulando um tigre.
Tal imagem faz referência direta ao mito grego de Hércules que estrangula o Leão de Neméia em
um dos doze trabalhos. Ao fundo, percebemos Wukong rodopiando o tigre no ar pela cauda
enquanto várias pessoas se banham em um rio, em clima festivo. Notamos na versão italiana que
as listras do tigre formam a bandeira americana e por essa cena temos uma ideia do que será a
alegoria retratada na narrativa de Manara e Pisu.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Contando a história de Sun Wukong, que originalmente é uma história fantasiosa sobre a
busca da imortalidade, os autores italianos focam no primeiro arco narrativo centralizado na figura
de Wukong e no embate com os deuses. A crítica literária chinesa concorda em afirmar que este
arco na obra literária é uma alegoria as disputas de poder durante dinastia Ming. No quadrinho
chinês dos anos sessenta, tal embate é ressignificado como uma luta de classes, atuando em um
contexto de produção inserido no meio da Revolução Comunista, considerando que a mídia de
quadrinhos servia também como propaganda para a juventude.
Na versão quadrinizada chinesa, Wukong representa o povo, enquanto os deuses poderiam
representar o velho governo que barra o povo da busca de seus desejos por meio de burocracias e
esquemas. Voltaremos a esta temática quando chegarmos ao “palácio celestial”. A adaptação
italiana continua nesta mesma perspectiva (povo x governo), porém existe ainda uma outra camada
interpretativa. A cosmovisão italiana, principalmente a da juventude, idealizava a China como o
paraíso exótico do comunismo. Tal visão ganhou forma graças às várias crises do governo na Itália
e a insatisfação das classes operárias e acadêmicas com o governo. A adaptação chinesa nos conta
paralelamente a trajetória de Wukong, a trajetória do próprio comunismo chinês. Abrir o quadrinho
com o Macaco estrangulando um tigre com as listras e estrelas americanas é dizer a China é
superior: O tigre americano foi inicialmente pego pela cauda e arremessado para longe, e agora o
povo tinha acesso à caverna dos prazeres. Ao se livrar dos ideais americanos o povo finalmente
seria livre para buscar a felicidade da maneira que desejassem.
A ideia de liberdade é expressa na cena seguinte (figura 3), na entrada da caverna das flores
e frutos. A caverna das flores e frutos funciona na narrativa como um característico locus amoenus,
expressão comumente utilizada nas narrativas arturianas. Trata-se de um lugar de descanso, o
ponto de partida para a jornada e para onde os personagens retornam depois de suas aventuras.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Enquanto na adaptação italiana a caverna é representada quase como um “universo


paralelo” como se dentro da montanha existisse um palácio imperial da dinastia Ming, na
adaptação chinesa a caverna é mais modesta. Sua riqueza é representada por um trono e objetos
decorativos, a cachoeira, as sombras das árvores dão o tom de descanso da paisagem, os macacos
brincam alegremente com os objetos. A versão italiana subverte a concepção do locus amoenus.
Aqui ele assemelha-se à uma “rave”, os “macacos” (representados como pessoas) assumem sua
nudez em uma expressão mista de liberdade e rebeldia e seguem o Macaco com alegria.
Nota-se no canto da página a inscrição “Guidami” ( guia-me em italiano). Wukong é tido
o grande líder que libertou o povo e agora os conduz para um lugar melhor. Tal cena representa
também a “escolha” do Macaco como um líder popular. Ele foi aceito pelo seu povo como líder.
Tal comparação remete a uma visão idealizada da figura de Mao Tse Tung (conforme a narrativa
se desenvolve vamos notar outras semelhanças entre o protagonista e o líder chinês).
Os quadros (figura 4) seguintes retratam a tristeza de macaco frente ao primeiro
reconhecimento da narrativa: o personagem toma consciência de sua finita existência e percebe
pela primeira vez que sua vida de alegrias e prazeres dentro da montanha de flores e frutos irá
terminar eventualmente.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Na versão chinesa, a expressão do Macaco parece ser uma expressão de constatação. Não
notamos tristeza em seu rosto (embora a legenda nos diga que lágrimas rolaram), a frase do Rei
dos Macacos é também bastante contida: “Este velho corpo já não pertencerá a este mundo”. A
versão italiana é muito mais emotiva. Os variados “closes” no rosto do macaco denunciam sua
tristeza, reiterada no quadro final com a sua cabeça reclinada no colo de uma de suas seguidoras
onde o personagem fala: “O rei da morte, Yama, me chamará”. A lágrima escorre de seu rosto.
Durante toda a versão italiana acompanhamos uma figura feminina que acompanha a jornada do
Macaco. Tal figura não está presente na narrativa original de Jornada ao Oeste e é apresentada de
início como uma seguidora devota, uma companheira fiel. Considerando a versão de Manara como
uma alegoria à Jornada de Mao Tse Tung associamos essa personagem à Jiang Qing (江青);
conhecida por Madame Mao, a quarta esposa do líder do Partido Comunista. Na obra, sendo mais
que esposa, a personagem feminina parece agir como uma consciência para o personagem
Wukong. Ela equilibra os desejos do Macaco e por várias vezes ao longo da narrativa conduz os
acontecimentos. Do ponto de vista imagético é notadamente o dedo de Manara na narrativa. O
autor é bastante famoso pelos quadrinhos mais sensuais e por vezes sexistas retratando o corpo
feminino em posições e proporções absurdas. Tal traço reflete também um pensamento da época
que acompanha outros quadrinhos já consagrados do mesmo período tanto americanos quanto
europeus. A falta de personagens femininos durante o primeiro arco de Jornada ao Oeste,
enquanto obra literária, pode ter levado Manara a criar esta personagem justamente para apelar ao
público masculino (que nessa época era o maior consumidor de narrativas em quadrinhos), bem
como transgredir uma postura falsamente recatada da sociedade italiana de sua época.
A aproximação mais afetiva da cena contribui para a empatia do leitor em relação ao
personagem. Ele serve como elo entre o leitor e a narrativa. É a personagem que torna patente a
ficção, através dela a ficção se adensa e se cristaliza.
Um equívoco de interpretação é notado nessa cena. No folclore e na mitologia chinesa, não
existe um Yama, Rei da Morte. A aparição dessa divindade na cultura chinesa coincide com a
introdução do Budismo no país. A versão chinesa, se alinhando com o texto original, prefere não
tratar deste assunto por adotar uma cosmovisão mais taoísta, na qual a morte e o inferno não são
encarados como o domínio de um deus. A cosmovisão italiana, partindo de uma visão greco-
romana é acostumada a atribuir o reino dos mortos a uma divindade (Hades, por exemplo ou
Lúcifer) e para esta adaptação aproveitou-se a divindade Budista. A personificação da morte está
muito mais presente na nossa cosmovisão ocidental do que na visão chinesa, principalmente se
considerarmos o contexto de produção da obra base, quando o Budismo ainda estava em expansão.
Seguimos para uma cena clássica (figura 5), após construir uma jangada e despedir-se de
seu povo o Macaco navega em busca da imortalidade.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Os dois quadros que representam a viagem marítima são curiosamente idênticos em


questões composicionais: o Macaco sozinho em sua jangada feita de madeira, o oceano agitado,
pássaros sobrevoando o personagem e as montanhas pontiagudas ao fundo. Na versão chinesa, o
Macaco ainda está nu (pois ainda se trata de um animal), enquanto na versão italiana ele já está
trajado e vestindo o típico chapéu chinês da revolução.
A direção também é oposta: na versão chinesa a face de Wukong se volta para a direita,
enquanto na Italiana o personagem fita a esquerda. O desenho de Manara já demonstra a “Jornada
ao Oeste”, ela se inicia aqui. Wukong abandona seu paraíso secreto e cheio de prazeres para seguir
rumo ao desconhecido (que posteriormente é apresentado como caótico, sujo e corrupto). Na obra
chinesa Wukong, ainda não está indo para o Oeste (tal viagem só será contemplada na segunda
parte da narrativa). Aqui o Macaco vai finalmente se aventurar no mundo dos homens, que não é
retratado de maneira tão negativa quanto na sua contraparte europeia.
Ao chegar no reino dos humanos, Wukong se depara com um lenhador (figura 6). Ao
encontrá-lo, enquanto na versão chinesa o Macaco é mais respeitoso e a narrativa se desenvolve
de maneira mais leve, provavelmente pela censura imposta na China durante o período de
produção, a versão italiana é certamente destinada ao público adulto, contendo cenas “gore”.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Nela, a abordagem do Macaco é muito mais agressiva e após descobrir que o lenhador não
era o sábio que ele estava procurando, Wukong mata o lenhador com um golpe de machado
abrindo-lhe a cabeça. A cena final do quadro é justamente o Macaco saindo sem olhar para trás,
enquanto o lenhador aparece morto com o machado fincado na cabeça. Tal cena, aliada às cenas
de nudez apresentadas anteriormente denunciam o caráter adulto da narrativa italiana e ao traço de
Milo Manara.
A figura seguinte (figura 7) e a próxima (figura 8) talvez sejam as que mais se afastam na
questão composicional do quadro. Trata-se do encontro de Macaco com os sábios chineses e com
seu primeiro mestre que lhe dá seu nome de discípulo (Sun Wukong), e versa o personagem
principal na arte da metamorfose e nos poderes místicos. O personagem do velho sábio é comum
em várias narrativas, sendo inclusive um dos elementos marcados na Jornada do Herói de
Campbell (CAMPBELL, J. 1949).
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

A alegria do personagem a ser aceito como discípulo e sua disposição para o trabalho (por
mais árduo que seja) dizem muito a seu respeito. Tal aspecto de criação de personagem será uma
marca do “herói oriental” e tratado também como o segredo para atingir a “sabedoria perfeita”
expressada no taoísmo e budismo chinês. Wu Kong se dispõe a servir e enquanto serve observa os
outros discípulos e aprende em silêncio. Certa noite, após solucionar um enigma proposto por seu
mestre, Wukong vai visitá-lo em seus aposentos com a finalidade de finalmente descobrir o
segredo da imortalidade.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Na versão chinesa, as palavras do mestre são mantidas em segredo; a legenda do quadro


traz somente uma indicação dizendo “(...) o mestre lhe ensinou como se tornar imortal”. A versão
italiana, sendo mais prolixa, confere palavras ao mestre e a sabedoria transmitida para o discípulo
aparece em discurso direto: “ESPÍRITO, ALMA e RESPIRAÇÃO. Mantenha e cuide das forças
vitais em seu corpo, só isso eu posso te ensinar. Atente-se para o abraço da tartaruga e da serpente.
Em meio às chamas cresce o lótus de ouro. Combine os cinco elementos e será então o que você
deseja: Buda ou imortal.”
A fala do mestre parece um jogo de palavras desconexas que apelam para tradição chinesa,
mas elas atuam na narrativa também como um foreshadowing das aventuras do Macaco. Cada
frase dita pelo mestre refere-se a um momento futuro da narrativa, que vai funcionar como ponto
de virada e crescimento de Wukong.
A primeira parte refere-se ao presente da narrativa. O mestre afirma ensinando-o como
cuidar do corpo e das forças vitais. A segunda frase: “o abraço da tartaruga e da serpente”. Na
mitologia taoísta uma divindade em forma de tartaruga como uma serpente envolta de si é a guardiã
do norte. Com a introdução do budismo, tal narrativa foi adaptada e a tartaruga ganhou
características antropomórficas, sendo representada por um homem vestido de amarelo e verde.
Sua arma principal seria a pagoda, e ele seria o líder dos deuses. O abraço da tartaruga e da serpente
refere-se ao embate de Wukong contra o Imperador de Jade e as divindades chinesas.
A frase seguinte, “em meio às chamas cresce o ouro”, refere-se ao momento no qual as
divindades tentam cozinhar Wukong e ele salta do fogo ainda mais poderoso.
Por fim “Combine os cinco elementos e será então o que você deseja: Buda ou imortal”
trata do embate final com Buda. Aqui Wukong visitará os cinco picos antigos (os cinco elementos)
e será testado pelo próprio Buda a fim dele próprio se tornar igual a Buda.
Após receber os ensinamentos do mestre, Wukong retorna para a Caverna das flores e
frutos onde se depara com um demônio prestes a atacar (figura 9).

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Wukong facilmente escapa dos ataques e, usando sua recém adquirida magia, faz cópias
de si mesmo apenas dizendo a palavra “transforme-se”. A mesma cena aparece nas duas
adaptações. Uma curiosidade desta página na edição italiana são as palavras escritas em inglês em
meio à cidade podemos ler: “acid, flash, overdose, junkie, shot e Katmandu”. O local representado
naquela cena é um misto da cultura tibetana (sendo Catmandu a capital do Nepal) e a liberdade ou
a depravação trazida pelos tóxicos, todas as outras palavras fazem referência às drogas. Na figura
seguinte (figura 10), o demônio é subjugado por Wukong com a ajuda de seus companheiros
macacos, a cena é muito semelhante nas duas adaptações, porém a versão italiana a retrata de uma
maneira mais “gore”: podemos ver o sangue o demônio sendo desmembrado.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Sobre o demônio, enquanto na versão chinesa ele seja tratado como o Rei da Confusão, a
versão italiana lhe dá um pouco mais de seriedade tratando-o como o “Demônio da Destruição”.
Tal característica deve-se ao caráter mais performático ou grandioso da narrativa italiana.
Derrotando o demônio, Wukong percebe que lhe falta uma arma apropriada para o combate
e parte para o Reino submarino do Dragão do Mar em busca de um de seus tesouros. O Rei Dragão
lhe oferece algumas armas, mas Wukong não parece impressionado (figura 11).
Eis que ele avista o pilar que sustenta o mar (figura 12). Na versão chinesa, o pilar se
encontra visível, enquanto na versão italiana ele está escondido atrás do trono do Rei Dragão,
Wukong destrói o trono (deixando o Rei Dragão furioso) e encontra um arsenal bélico composto
de granadas, fuzis, bombas químicas, máscaras de gás, e, no centro, um bastão gigantesco que
parece emanar radiação. Tais armas contrastam com as armas antes apresentadas pelo Rei Dragão
em tom cordial que eram espadas, lanças e armas.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

O arsenal invisível revelado destoa da postura amistosa do Rei Dragão. Aqui Manara
parece fazer uma alusão aos tratados para a interrupção de testes nucleares assinados por 100 países
em 1963. As armas de destruição em massa foram escondidas atrás de uma postura amistosa e de
cooperação, porém a China se recusou a assinar o acordo e em outubro de 1964 desenvolveu o
primeiro teste nuclear do projeto 596, em Lop Nur.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

A bomba tratava-se de um dispositivo de fissão de urânio-235. Com este teste a China se


posicionou com a quinta potência nuclear do mundo. Wukong adquire a arma mais poderosa do
mundo e agora está devidamente preparado para os desafios que viriam em sequência.
O seguinte quadro (figura 13) mostra a visão que Wukong tem do Reino das sombras ou o
Reino da morte.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Após enfrentar o rei Dragão do Mar, Wukong retorna para a caverna das flores e frutos e
em seu momento de lazer cai no sono e sonha com o Reino das sombras. Na versão chinesa,
Wukong adormece depois de beber e comemorar com seus companheiros, enquanto na versão
italiana o personagem adormece após fazer sexo com sua companheira. As escolhas conotam
também uma segmentação do público: uma adaptação tem como alvo um público genérico
incluindo crianças não sendo cabível a representação de uma cena de sexo nos quadrinhos, embora
a literatura chinesa já abordasse há muito essa temática, a graphic novel italiana dirige-se para um
público maduro que está acostumado com o caráter transgressor das obras quadrinizadas e
principalmente com o estilo de Milo Manara.
Nas duas adaptações, o reino é representado como um templo, apesar da versão italiana ele
parecer mais imponente e a fumaça ao redor bem como o vazio contribuem para o sentimento de
desolação. Wukong é capturado, amarrado e levado para esse lugar. Enquanto na adaptação
italiana os responsáveis pela captura de Wukong não tem rosto, na versão chinesa eles são
retratados com aspectos animalescos. Tal aspecto se dá pela crença chinesa de que os demônios
podem assumir formas animais e mesmo intermediárias. Wukong se liberta das amarras e vai à
presença das divindades que comando o Reino das Sombras. Na versão chinesa estes são os reis
das 10 gerações, na versão italiana seria o Rei Yama. A ambientação da cena também é bastante
distinta (figura 14): enquanto na adaptação chinesa o mundo das sombras parece uma cidade
comum, na versão italiana é certamente um lugar de tortura e sofrimento. Podemos ver corpos
empalados, outros em chamas, outros ainda em gaiolas e enforcados acima da sala onde Wukong
se encontra com o rei Yama.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

É apresentado a Wukong o livro da vida e da morte e Wukong intimida o Rei Yama a retirar
seu nome e de todos os outros Macacos. A cena finalmente se revela como uma visão que Wukong
teve enquanto descansava após obter o bastão. Após despertar, Wukong decide agir por impulso
e parte para os portões do Céu.

4.2. Wukong e o Caos no céu

A entrada de Wukong na corte do Céu (figura 15) na adaptação italiana é certamente um


dos quadros mais bem montados de toda a narrativa: todos os imortais perfilados lado a lado,
Wukong e o imperador de Jade minúsculos frente a uma janela que aponta os planetas do sistema
solar. A janela circular é ornamentada e dois grandes pilares a sustentam. No topo, vemos o
símbolo do Yin e Yang e o vão da janela espelha o mesmo símbolo: a infinidade do universo em
preto e os planetas em branco na parte superior, enquanto a fumaça branca cobre a parte inferior.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Wukong está sozinho no centro, enquanto todos os encaram, afirmam sua postura
desafiadora, o Imperador de Jade está reclinado sozinho em sua mesa no meio do salão sem
demonstrar preocupação.
As formas quadradas e redondas se alternam. A ideia de um espaço quadrado aparece
ligada a um conjunto de regras sociais estabelecidas: os diversos grupos sociais se organizavam
em espaços bem delimitados.
Para aferirmos espaço na narrativa, é necessário recorrer aos mitos chineses,
principalmente ao mito de criação, e, além disso compreender o espaço e tempo não como duas
concepções distintas, mas como princípios intrinsecamente interligados.
Em uma de suas variadas versões, uma entidade duplamente feminina e masculina criou e
organizou o cosmo, cabendo à identidade feminina (Nü Wa) organizar o tempo, e à identidade
masculina ( Fu Xi) organizar o espaço.
Nü Wa trazia em sua mão como símbolo um compasso; e o redondo e o Yin são os símbolos
do feminino que emprestam suas características ao tempo. O tempo é cíclico. Na China antiga a
contagem do tempo era dada pela transição das fases da lua, pela mudança das estações, pelas
revoluções e alternâncias de dinastias.
Fu Xi carregava um esquadro e o quadrado e o Yang são o símbolo do masculino. Assim,
os espaços eram distribuídos em quadrados: os espaços agrícolas, os muros ao redor das cidades,
a organização das tropas e as festas religiosas. O quadrado tem quatro pontas, cada uma apontando
para uma das direções: Norte, Sul, Leste e Oeste.
O pensamento erudito e comum obedece na China a uma representação do Espaço e do
Tempo que não é puramente empírica, mas relacional. Assim, não cabe ver o tempo e o espaço
como duas entidades autônomas, ambos podem constituir um meio de ação que pode também ser
um meio receptivo.
Na narrativa de Jornada ao Oeste, inicialmente Wukong habitava a montanha de flores e
frutos, os deuses habitavam o palácio celestial, os homens habitavam as cidades. Cada um desses
grupos seguia sua própria cartilha de relações sociais e afetivas que os separavam um dos outros.
Para além dos quatro lados do espaço, encontram-se os confins das terra e os quatro mares.
Neles habitam os bárbaros, os seres animalescos, os demônios e espíritos que os personagens de
Jornada ao Oeste enfrentam.

Os chineses – os seres humanos – não podem residir nos Degraus do Mundo sem
perder imediatamente sua condição de homem. Os banidos a quem se pretende
desqualificar revestem-se, tão logo são expulsos para lá, da aparência semi-
animalesca que marca os seres desses confins desertos. O Espaço inculto – sem
regras sociais – suporta apenas seres imperfeitos. (GRANET, 2008 p. 69)

Ao viajar para o palácio celestial, Wukong viola a ordem das relações sociais e age como
se não pertencesse àquele lugar. Assim, o percurso do personagem é justamente a alternância de
espaços, e, simultaneamente, a mudança dos paradigmas sociais e hierárquicos. O Macaco transita
através da extensão, muitas vezes sem entender os ritos e as relações entre os indivíduos, e sua
jornada é certamente em busca da Imortalidade – como o próprio personagem afirma por diversas
vezes. Mas também é uma jornada para conhecer as diversas relações.
Na adaptação chinesa, a composição da cena é bastante similar à adaptação italiana, porém
aqui Wukong é acompanhado pelos celestiais até a presença do imperador. A corte dos celestiais
demonstra a cordialidade e a ritualidade escritas nos tomos confucianos e denunciam que o sistema
celestial funciona através de um conjunto de regras e princípios que deve ser seguido. O imperador
de Jade então oferece para Wukong um cargo na corte ficando responsável por cuidar dos estábulos
dos deuses.
O Imperador é representado de maneira bastante distinta nas duas adaptações. Enquanto na
chinesa ele é retratado como um homem por volta de seus 40 ou 50 anos, bastante solene e austero,
a versão italiana prefere retratá-lo como um velho obeso, caquético e promíscuo. A figura do
imperador de Jade funciona nas duas obras como uma alegoria para o governo: na China, a
solenidade e a seriedade representam a burocracia e o distanciamento dos governantes para com o
povo impedindo-os de progredir e iludindo o com sonhos de ascensão social e financeira; na
italiana, ao optar por pintá-lo como um velho promíscuo, Manara e Pisu denunciam como sua
cosmovisão lida com o governo tratando-o como aproveitador, retrógrado e perverso.
Wukong vai então trabalhar com os cavalos celestes, mas quando percebe que sua posição
não traz nenhum prestígio, fica insatisfeito e agrupa seu exército.
A partir daí desenvolve-se o primeiro duelo entre Wukong e seus macacos contra as
divindades. Na obra chinesa, a tropa de Wukong é apoiada por um exército de demônios e outras
criaturas da floresta que se engajam em feroz combate com as divindades que marcham para o
combate (figura 16). A obra chinesa parece remeter a uma luta de classes: os que estavam no céu
com suas pomposas armaduras e armamentos, e os que se encontravam na floresta com armas
roubadas e improvisadas. Wukong os lidera e, usando seus poderes, se multiplica e vence os
exércitos celestiais que batem em retirada.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Em ambas as versões, vemos soldados usando a tradicional armadura chinesa. Porém os


deuses italianos são bastante caricatos. Há aqui o desenvolvimento de um embate épico entre
Wukong e os deuses que apelam para transformações e mágicas.
Vale notar que ao tratarmos da caracterização dos personagens, a obra chinesa os define
muito próximo da forma como são retratados na Ópera de Pequim. Antes de ser publicado em
quadrinho ou exibido na televisão e o no cinema, Wukong protagonizou a opera de Pequim, sendo
esta a primeira adaptação documentada de Jornada ao Oeste. Por outro lado, na versão italiana, os
soldados não usam as tradicionais vestes de pano chinesa, mas sim armaduras de samurai, comum
no Japão iniciado durante o governo Kamakura (1185) e encerrado durante a era Meiji (1868).
Tais equívocos como a mistura de elementos da cultura do leste asiático são bastante comum
quando tratamos de produtos de massa ocidentais à respeito da Ásia, parece-nos que os autores e
ilustradores na falta de repertório sobre a cultura chinesa optam por preencherem a lacuna com
elementos japoneses. Não é raro a aparição de katanas, ou ninjas em produções sobre a China,
mesmo que tais elementos sejam da cultura japonesa. Este acervo multi-cultural plural, acabou
sendo conhecido no Ocidente como Yellow Pacific, designando a cultura midiatizada de China,
Japão e Coréia do Sul.
O quadrinho combina imagens tradicionais das artes chinesas, principalmente na
representação de animais e das paisagens como elementos reais e deuses como elementos místicos.
Tais representações das divindades chinesas se mesclam naturalmente e se alternam com
elementos reais.
Notamos que o universo fantástico é bastante visitado pelos artistas e escritores de histórias
em quadrinhos, e isso nos faz refletir sobre como se organiza e se define o universo fantástico. A
fantasia se dá por uma imaginação criadora do quadrinista. Uma obra de fantasia é fruto de uma
imaginação, mesmo aquelas que tem o pé mais firme no mundo concreto.
A adaptação em quadrinhos do Jornada para o Oeste reflete a junção mais intrínseca entre
o real e a fantasia; o elemento “realista mimético” presente no quadro nos convida a “perceber” o
elemento fantasioso. Não há, portanto, de um lado, o trivial e o concreto e do outro o vago e o
indeterminado, mas é do próprio concreto e do mais trivial que se efetua a transição. O elemento
“realistas” presente no quadro nos convida a “perceber”. Essa pode servir para nos fazer
“perceber”. Esta ação de perceber não é somente tomar consciência do fantástico, mas perceber a
evidência.
Durante toda a jornada do quadrinho, o elemento fantasioso é muito mais presente, mas o
“mundo empírico” surge sempre como um farol apontando para o fantasioso e demonstrando a
grandeza daqueles eventos, tanto na adaptação chinesa como na italiana.
Os celestiais não conseguem deter o Macaco e acabam por lhe oferecer o cargo de Grande
Sábio Digno dos Céus - cargo de alta honra na hierarquia celeste.
Na figura seguinte (figura 17), vemos Wukong e sua nova atribuição, enquanto
trabalhadores edificam seu palacete.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

A cena se dá de maneira semelhante nas duas adaptações: os imortais dialogando com


Wukong, a posição e as vestes do Macaco porém são díspares: enquanto na adaptação chinesa o
Macaco mantém as mãos para trás com uma postura interessada e séria, na versão italiana vemos
duas posturas do personagem que apontam diretamente para duas postura famosas de Buda. A
primeira: sentado com as pernas cruzadas e as mãos entrelaçadas na altura do abdômen fazendo
referência à conhecida posição de lótus (talvez a mais famosa postura do budismo); na parte
inferior do quadro, vemos Wukong reclinado sobre uma cama envolto à vapores. Esta posição se
assemelha às estátuas do Buda reclinado, famosas na Tailândia. Tal estátua para alguns representa
o momento de descanso do Buda enquanto para outros representa o fim de sua vida.
Outra referência na imagem é o famoso quadro de Michelangelo Bunattori: a criação de
Adão. A posição das pernas e o braço estendido são exatamente o mesmo da famosa obra
renascentista, obra que serviu certamente de “inspiração” para Milo Manara durante a feitura de
seu desenho. Wukong havia conseguido o que queria, já era imortal e agora alcançou uma posição
de destaque na corte celestial. Porém o tempo custa a passar e Wukong se sente entediado. O ritmo
da narrativa muda e a passagem do tempo é melhor sentida nessa parte.
Poucas são as marcações temporais na narrativa, não sabemos ao certo em quanto tempo
ela se passa, ou quanto tempo Wukong ficou treinando. O tempo geralmente constitui um dos mais
importantes aspectos narrativos. Massaud Moisés (1977) afirma que o fim último de qualquer
narrador consiste em criar o tempo. Existe de fato um tempo cronológico linear que começa com
o nascimento do Macaco e termina com seu embate com as divindades. Porém não notamos a
presença de lugares-comuns que funcionam como marcação temporal em outras obras de ficção
como nos romances ou nas novelas, nem nos quadrinhos, tampouco na narrativa literária base do
século XVI. Tal ocorrência está relacionada a uma cosmovisão chinesa clássica de enxergar o
Tempo: nenhum pensador chinês quis enxergar no tempo apenas um parâmetro, e sua duração
tampouco é imaginada como sempre idêntica a si mesma.
A ordem temporal abarca um momento da História (dinastia, reinado, parte de um reinado),
que distingue uma fórmula de vida, ou, se preferirmos, uma cosmovisão que singulariza essa época
da civilização. Na visão chinesa, para que seja instaurada uma nova ordem de Tempo, é preciso
que a antiga ordem seja abolida.

Uma mulher só passa da condição de filha para a de esposa, um homem só sai da vida
para entrar na morte, um recém-nascido só abandona o mundo de seus ancestrais para
penetrar na porção viva da família – tudo isso só ocorre se gestos de despedida houverem
precedido os festejos de acolhida. (GRANET, 2008, p. 71-72)

Assim, é possível pensar que havia um tempo em que o Macaco habitava a caverna de
flores e frutos, e ao abandonar esse espaço encerrou-se este tempo, e neste momento a narrativa
existe em outro espaço (o Céu) e consequentemente um novo Tempo, que passa mais devagar. A
concepção temporal, decomposta em eras completas e finitas, é harmonizada com a concepção
espacial que se decompõe também num mundo fechado e finito. Ambas têm por fundamento uma
ordenação da sociedade.
Os ideogramas que traduzimos como Tempo e Espaço, em chinês, trazem verdadeiramente
duas significações distintas. Shi (时) indica a ideia de circunstância, de ocasião; enquanto Fang

(方) traz a idéia de locação, sítio. A alternância que regia os Tempos e os Espaços era justamente
o que organizava a vida social, imprimindo na sociedade uma necessidade periódica de renovação
e recomposição.
Wukong habitou todas as transições, renovações e recomposições sociais. Em sua busca
por imortalidade, o personagem incorpora diversos papéis sociais: soldado, monge, deus,
prisioneiro, discípulo, mestre. Transitando pelos tempos, ele vive todos os tempos, transita por
todas as estações.
Jornada ao Oeste segue em seu aspecto temporal o ciclo das estações, que iniciam e
terminam o ciclo mais de uma vez, referindo-se à imortalidade buscada pelo personagem.
Essa noção de tempo cíclico não aparece na narrativa italiana que conta uma história linear
com início (apresentação), desenvolvimento, clímax e desfecho seguindo um ritmo narrativo
adequado ao público europeu.
Ao perceber a chateação de Wukong, o imperador de Jade decide passar-lhe uma tarefa:
cuidar do pomar dos pessegueiros sagrados (figura 18).

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Wukong parte então para uma vistoria preliminar na plantação (figura 18). Wukong se
admira dos pêssegos produzidos no pomar e intenta comer um dos frutos. A intenção de Wukong
com os pêssegos é distinta nas duas obras. Na versão chinesa parece que é a fome ou a curiosidade
pelo gosto da fruta que atrai Wukong para os pêssegos. Na narrativa italiana existe com maior
clareza uma ideia de transgressão: o pêssego seria o fruto proibido análogo ao fruto bíblico de
Adão e Eva. Ao comer da fruta proibida do pomar Wukong se tornaria mais poderoso, mais sábio
e é essa tentação (similar a tentação da serpente) que leva o Macaco a comer o fruto e derrubar a
primeira peça de um dominó de acontecimentos que culminam com o embate com o Buda.
Ao aproximar essa cena da narrativa bíblica, há um “sintoma” de uma cosmovisão européia
e italiana marcada pelo catolicismo romano. Wukong aqui se aproxima de Adão em sua
intencionalidade e sentimento destoando da narrativa chinesa, que o aproximam de um caráter
muito mais símio, animalesco, onde o Macaco é apresentado como travesso e curioso.
Este mesmo trecho guarda ainda grande semelhança com a narrativa do Comunismo chinês
e a figura de Mao Tse Tung. O líder chinês, assim como Wukong, após assumir o poder e
finalmente concretizar seu sonho, percebe que ainda lhe falta algo e a ânsia para suprir essa falta
leva o líder a uma Revolução, no caso de Mao Tse Tung, a Revolução Cultural e no caso de
Wukong a Revolução no Céu.
Dessa vez, os celestiais lutam novamente com Wukong causando um grande alvoroço e o
que parece ser uma massa de corpos engajada em combate nas duas adaptações (figura 19).
O Imperador de Jade decide então convocar Erlang Shen, o grande herói idealizado e figura
recorrente nas narrativas tradicionais chinesas, para liderar os celestiais em combate. Na adaptação
oriental Erlang é apresentado de maneira imponente sempre desenhado acima e um pouco maior
que Wukong, utilizando sua veste tradicional de combate e acompanhado por seus dois animais o
cão e a águia (respectivos símbolos de lealdade e coragem, símbolos que definem também o
personagem).

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


Neste momento da narrativa, Wukong é retratado como o antagonista. Foi ele quem causou
o conflito e o ponto de vista da história desta vez aparece contra ele. Tal fator é ainda maximizado
pela postura justa e correta de Erlang (figura 20).

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

A narrativa italiana não retrata o personagem com tanta pompa, e a escolha simbólica
reforça a ideia de que aqui o herói é o Macaco Sun Wukong. Erlang é grotesco, desajeitado e
aparece nu o tempo todo exceto pela máscara de gás. Apesar da figura cômica, Er-lang se mostra
um temível oponente para Wukong. O embate entre os dois parece empatado durante todo o tempo.
A sequência de imagens em uma produção em quadrinhos é o que simula a passagem de
tempo. A mente humana tende a preencher lacunas de compreensão para criar sentidos. Mesmo
quando algo é incompleto, nossa mente tende a completá-lo da melhor forma possível. A
linguagem do quadrinho se aproveita disso e utiliza a calha (o vão entre um quadro e outro) para
induzir nossa mente a agir dessa forma. Um exemplo claro disso é o final da página italiana: um
dos servos de Erlang aponta uma câmera televisa para Wukong (o embate entre os dois tratava-se
de um embate televisionado) e no quadro seguinte vemos uma luva atingir o Macaco no rosto,
apesar de serem dois momentos distintos. Ao notar a calha do quadrinho, o leitor cria e racionaliza
o tempo e a ação automaticamente. Finalmente apesar de haver duas figuras, o leitor as
compreende como um único momento.
Essa articulação induzida é o que possibilita os leitores de compreenderem a linguagem
dos quadrinhos. A obra, por sua vez, se utiliza dessa percepção motivada pela linguística para ser
compreendido naturalmente pelos leitores.
A adição de balões de fala também contribui para a formação da temporalidade. Os
quadrinhos determinam uma noção de tempo dentro de cada painel. A introdução dos diálogos na
versão italiana faz uma enorme diferença da versão chinesa, pois simultaneamente com os diálogos
foi acrescentado o tempo, na verdade uma espacialidade temporal. Sendo os diálogos nada uma
marcação discursiva, eles indicam que a conversa acontece em um determinado espaço de tempo,
que permite ao leitor associar passado e futuro simultaneamente ao considerar o diálogo como
referência para o tempo presente.
Outro fator a se considerar é a “sonoridade” dos diálogos e onomatopeias. Quando ocorre
um diálogo entre os personagens de quadrinhos, eles estão falando em voz alta. O texto escrito
dentro de um balão de fala é uma indicação de som. Tecnicamente, o leitor não está lendo o
diálogo, mas “ouvindo-o”, a informação sensorial de som é recebida pelos olhos e não pelos
ouvidos. A luva que salta da câmera imediatamente nos remete aos cartoons da época como os
Looney Tunes, que tem por personagem principal o coelho Perna Longa.
No quadrinho em questão, a onomatopeia SPRÒCK evoca não somente um reconhecimento
sensorial, mas também uma emoção.
A fonte, a cor e o tamanho projetam um sentimento específico devido a uma formalidade
visual já consolidada em nossa cosmovisão através da multidão de fantasmas propostas por
Warburg. A recorrência desta mesmo forma em várias produções é o que possibilita sua rápida
compreensão pelos leitores que já estão familiarizados com esses elementos. Para um público
diferente isso certamente não ocorrerá da mesma maneira.
O embate entre Wukong e Erlang é o maior da narrativa, e apresenta ambos os personagens
se transformando e apresentando seus poderes (figura 21).
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Já foi tratado nesta dissertação a mutabilidade como traço central do pensamento chinês
tradicional, partindo do I Ching e das noções de Yin e Yang sempre em alternância. É comum em
uma narrativa fantástica chinesa que o poder de luta de um personagem seja medido por sua
capacidade de transformação. Quanto mais elementos ele domina mais poderoso o personagem é,
nesse ponto Wukong e Erlang são equipotentes. Cada um responde imediatamente às
transformações do outro. Wukong vira um peixe e Erlang transforma-se em gaivota. Wukong
transforma-se então em um peru e Erlang encontra-o imediatamente (sempre acompanhado por
seus assistentes que filmam toda a cena). Wukong transforma-se em um templo (figura 22) e
ErLang brinca com a situação nas duas narrativas. Na chinesa ao notar o mastro no centro, o
personagem ameaça dizendo que quebrará as janelas e arrombará a porta. Na italiana o personagem
parece brincar de esconde-esconde provocando o Macaco. Nota-se que o templo (que é Wukong
transformado) parece estar preocupado com o oponente as janelas quadradas abertas se
assemelham a olhos arregalados e a porta composta por tábuas verticais nos remete a uma boca
cerrando os dentes de nervosismo.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Esses elementos simbólicos não aparecem na adaptação chinesa, onde o templo é retratado
de maneira mimética, assemelhando-se a um templo real, sem características antropomorfizadas
que contribuem para o caráter cômico da adaptação italiana (figura 23).
.
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

A disputa entre os dois personagens se encerra com Erlang saindo vitorioso (figura 24).
Wukong é finalmente capturado e levado para sofrer seu castigo.
Na versão italiana, temos Erlang entoando o refrão uma canção da era fascista italiana
composta no período entre-guerras. A música é Vincere, Vincere, Vincere (datada de 10 de junho
de 1940), um exemplo claro da exaltação italiana frente à guerra. Nela hà referências à Roma
imperial e um claro sentimento de vingança, com o objetivo claro de enaltecer o povo italiano e a
figura de Mussolini a quem foi dado um halo divino. Segue transcrita toda a letra da canção:

Temprata da mille passioni la voce d'Italia squillò! Ad ogni costo, nessun ci fermerà!
"Centurie, coorti, legioni, in piedi che l'ora suono"! I cuori esultano, son pronti a obbedir,
Avanti gioventù! son pronti lo giurano: o vincere o morir!
Ogni vincolo, ogni ostacolo superiamo, Elmetto, pugnale, moschetto, a passo romano si va!
spezziamo la schiavitù che ci soffoca prigionieri La fiamma che brucia nel petto
del nostro Mar! ci sprona ci guida si va!
Vincere! Vincere! Vincere! Avanti! Si oserà l'inosabile, l'impossibile non esiste!
E vinceremo in terra, in cielo, in mare! La nostra volontà è invincibile,
E' la parola d'ordine d'una suprema volontà! mai nessun ci piegherà! (VINCERE, VINCERE,
Vincere! Vincere! Vincere! VINCERE, Cori Era Fascista, Vol. 5)
Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

O canto de Er-Lang remete à vitória de um sistema sobre outro. Na adaptação italiana,


Wukong simboliza a revolução social e o sonho do Comunismo chinês, enquanto Erlang representa
o fantasma fascista que dessa vez tinha saído vitorioso. Wukong é então aprisionado e torturado
por estrelas e listras remetendo à sociedade americana e ao American way of life forte antagonista
do Comunismo chinês (figura 25), enquanto as correntes que o amarram é um terço católico, forte
referência às amarras que a religião pesava sobre a sociedade (amarras que Manara buscou
combater de maneira não ortodoxa, apelando pela sensualidade que a igreja repudia). Enquanto
isso, os imortais festejam em uma orgia, mulheres nuas e figuras fálicas compõem a cena no
quadrinho italiano, enquanto a narrativa chinesa procura mostrar a apreensão dos imortais quanto
ao destino de Wukong e a impossibilidade de matá-lo.

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Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Na figura seguinte (figura 26), Wukong é colocado dentro de um vaso que queimará sua
pele, músculos e vasos na intenção de purificá-lo.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

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No quadrinho chinês, sob esse vaso aparece o BaGua símbolo da transformação chinesa e
o responsável pelo fogo é o próprio Lao Zi, o maior pensador taoísta e responsável pelos primeiros
ensinamentos desta corrente.
Lao Zi também aparece na versão italiana. Porém ao invés do BaGua, símbolos do
satanismo acompanham o personagem como o pentagrama, os morcegos e o bode. Eis a clara
alusão à cosmovisão italiana ao alterar um símbolo chinês por outros elementos, mais facilmente
associados pelos leitores ocidentais. Na edição italiana Lao Zi não é um sábio, mas um feiticeiro
cheio de más intenções. As associações com o satanismo e a magia negra dão ar de Rasputin ao
personagem.
Ao contrário do que se esperava, Wukong se liberta rompendo o vaso e saltando pronto
para atacar seus agressores (figura 27).

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

A cena é bastante performática nas duas adaptações, porém o grande quadro que ocupa
quase toda a página com o escrito “W LA LIBERTÁ” (o “W” na verdade são dois “V” e a frase
deve ser lida como Viva la libertá). Wukong se liberta do castigo dos deuses, e mantém sua
integridade física e mental e parte para cima dos imortais se engajando mais uma vez em combate.
Os imortais, sem ver possibilidade de vitória, apelam para o Buda (figura 28). Na narrativa
chinesa original, esta etapa é carregada de significados simbólicos. Considerando que os imortais
não dão conta de derrotar Wukong, eles necessitam apelar para um poder superior. Tal

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posicionamento é uma alegoria do Budismo que crescia na China durante os séculos XV e XVI
(período de produção da narrativa literária). Enquanto nova religião, o Budismo viria a superar
todas as antigas divindades chinesas e as crenças “atrasadas” que elas representavam, em favor de
uma nova crença, mais verdadeira e poderosa. O quadrinho chinês faz ainda tal associação,
enquanto na narrativa italiana tal sentido interpretativo é passado ao largo.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Buda medita grande e imponente: na narrativa chinesa sempre posicionado à esquerda do


quadro, sempre maior que seu interlocutor indicando sua grandeza. A narrativa italiana também o
posiciona na esquerda em grande proporção: em sua primeira cena, Buda é despertado de sua
meditação por um Bodhisattva - um discípulo.
O olhar em espiral do grande Buda é hilário e destoa com a imponência da imagem anterior,
gerando um caráter propositadamente cômico e acabando com a aura de grandeza do personagem
imediatamente. Esse sentimento de irreverência (mesmo frente à figura de Buda) e transgressão
são traços constituintes dos desenhos de Milo Manara e do enredo de Silvério Pisu. Tais
características jamais seriam empregadas na produção chinesa.
Chegamos ao final da narrativa: o derradeiro embate em Sun Wukong e o Buda (figura 29).
A postura de ataque de Wukong na narrativa chinesa é substituída por uma cena muito mais
agressiva na adaptação italiana, Wukong pula ao encontro de Buda buscando atacá-lo e é
interrompido por Buda que lhe faz uma proposta.

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Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

O elemento fantástico da narrativa e os poderes quase onipotentes de Wukong são postos


à prova pela divindade suprema do Budismo. Buda afirma que se Wukong conseguir escapar de
sua mão com um único salto, então ele estará livre de todos os castigos impostos pelos deuses.
Porém caso ele não consiga, será castigado mais severamente. Wukong, sempre confiante de suas
habilidades e poderes, afirma que poderia em um único salto se afastar 8 mil milhas e a mão de
Buda era muito menor que isso. As espacialidades parecem confusas nessa cena: os personagens
ora são gigantescos e, por vezes, são muito pequenos, o salto de 8 mil milhas citado pelo Macaco
refere-se a um salto para “fora do mundo”.
Wukong aceita o desafio e com um salta chega aos confins do espaço onde encontra os
cinco picos antigos (五老峰 Wulaofeng fazendo referência à formação geográfica dos cinco picos
reais, localizados ao norte da província de Jiangxi na China). Para provar que chegou aos limites
do mundo Wukong assina seu nome e urina na base da montanha (figura 30). Na adaptação
chinesa, as montanhas são claramente dedos já denunciando o desfecho da história. Enquanto que
na versão italiana vemos uma vastidão e quatro pilares que sobem aos céus como mesetas. O céu
negro ao fundo revela planetas mostrando que a cena se passa fora da Terra. A versão chinesa,
também por reverência, prefere não desenhar Wukong urinando na montanha, enquanto a italiana

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dedica dois quadros para este fato e Wukong é retratado urinando com as nádegas de fora
despreocupadamente.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Com outro salto ele retorna para a palma de Buda somente para descobrir que nunca havia
saído dela, os pilares nos confins do espaço eram os dedos da divindade. A fisionomia de Buda é
diferente nas duas adaptações: na chinesa ele é sempre sereno e calmo, enquanto que na italiana
ele demonstra insatisfação frente à irreverência do Macaco. O Buda chinês trata nosso personagem
principal como uma criança insolente que ainda não sabe muito do mundo, enquanto que na versão
italiana Buda parece apreciar a derrota de Wukong.
Ao perceber sua derrota, Wukong imediatamente definha na narrativa italiana e é
arremessado para longe na chinesa (figura 31). O reconhecimento do personagem acontece
juntamente com o nosso. Percebemos que o personagem invencível que evoluiu em poder e
consciência durante a narrativa chegou em seu momento derradeiro.

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Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

O quadro demonstra a mão de Buda pressionando o Macaco contra a terra. Wukong agora
está esquelético desprovido de seus poderes derrotado em todos os sentidos. A altivez e a
irreverência do personagem dão lugar à súplica e frustração: a Jornada de Wukong estava
acabando. O Macaco inicialmente visto como herói parece acabar derrotado como um vilão. Todos
os poderes que ele adquiriu durante a narrativa não servirão frente ao Buda.
Mais uma vez, na narrativa chinesa literária isso é uma alegoria ao Budismo em pleno
desenvolvimento na China. A narrativa quadrinizada chinesa demonstra a impotência da
população frente ao governo; e na narrativa italiana, que se define como uma contadora da
narrativa comunista na China, Wukong é Mao Tse Tung e simultaneamente Mao Tse Tung é o
Ideal Comunista chinês derrotado. Todas as revoluções, todos os planos e todas as vitórias
anteriores culminam na morte do personagem e na derrota eminente.
A figura final (figura 32) é bastante destoante nas duas narrativas. A chinesa acaba com o
monge Tripitaka encontrando o Macaco após 500 anos de castigo, representando o início do arco
seguinte da narrativa em que Wukong funcionará como personagem secundário em uma Jornada
de redenção e autodescobrimento. A última página da adaptação italiana nos mostra a discípula
fiel do Rei dos Macacos, saltando de cabeça na montanha em sacrifício; o líder havia morrido e
com ele a narrativa que se construía, só restava morrer junto com ele. Wukong e sonho Comunista

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foi soterrado sob uma montanha de conceitos e o quadro final de Manara é belo e aterrador. A
montanha é composta de palavras de ordem e rostos. Vemos Lumumba fundador do Movimento
Nacional Congolês (MNC), Giuseppe Pinelli, conhecido anarquista italiano que morreu após ser
detido pela polícia em 1969, o próprio Mao Tse Tung, soldados chineses, letreiros dizendo “classe
operária”, “contradição”, “contestação”, “desilusão”.

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

Manara e Pisu tinham decidido não adaptar para os quadrinhos todo o Jornada ao Oeste,
mas decidiram parar no ponto onde o Macaco foi bloqueado pelo Imperador de Jade e por Buda
nas entranhas de uma montanha a partir da qual apenas 500 anos depois foi liberto para viver a
segunda parte de sua aventura.
Enquanto Manara desenhava a cena final de “Lo Scimmiotto”, o rádio transmitia a notícia
de que Mao Tse Tung estava morto. A notícia certamente impactou o desenhista, que termina sua
narrativa em um tom muito mais pessimista que o lianhua chinês, que vê a prisão de Wukong
como uma pausa e não um fim. Na aventura Wukong é aprisionado como um vilão para depois
voltar e aprender a ser um herói. A italiana o pinta como herói durante todo o tempo e encerra com

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sua derrota na hora mais sombria. O Wukong de Manara e Pisu não vence, mas é derrotado tal
como o Ideal comunista de Mao Tse Tung.
A opção de Manara por encerrar sua obra nesse momento da narrativa chinesa ao invés de
dar prosseguimento para a segunda parte (a jornada de redenção de Wukong) revela também outra
interpretação. A derrota no final é também símbolo do sentimento de desassossego daquela
juventude italiana idealista frente ao rumo violento que o Comunismo chinês tomou em seus
últimos suspiros. O sonho chinês, os intelectuais e artistas italianos que olhavam para a China com
admiração agora desviam o olhar e cogitam o que deu errado, ou onde a revolução se perdeu.
A jornada do “Jornada ao Oeste” saindo da China e sendo adaptado no Ocidente, despertou
em uma geração um desejo de “Jornada ao Leste”, de conhecer e experimentar a China em busca
de encontrar lá uma palavra outra distinta da que se ouvia na Europa. A alternativa chinesa bastante
promissora de início agora já não parecia mais viável. O sonho da Jornada ao Leste também foi
soterrado sob a montanha.

99
5. Conclusões
Seguindo nosso percurso metodológico, foi desenvolvida uma análise de caráter ensaístico
a fim recolher e interpretar elementos composicionais de duas narrativas de arte sequencial que
tem como obra base a mesma produção literária.
Considerando o pouco intervalo de tempo entre as duas obras e desconsiderando a questão
técnica como definidora da estética das duas obras, partimos da hipótese de que as cosmovisões
variadas e as claras distinções entre o pensamento oriental e ocidental criaram obras distintas, sob
diversos aspectos.
Embora mantenham os elementos básicos constituintes da obra original, como os
personagens e os eventos principais (o que possibilita a análise quadro a quadro), as obras tratam
de temáticas distintas que concordam com os eventos históricos, a sociedade e o ponto de vista da
população de cada um dos dois países. Enquanto a China estava entrando no Comunismo, a Itália
havia acabado de sair do Fascismo. Enquanto na China Wukong era visto como o homem do povo
que supera os desafios com um sorriso e trabalho duro, na Itália ele era o próprio Mao Tse Tung
que desafiou o mundo com suas ideias revolucionárias.
A linguagem dos quadrinhos possibilita que esta história seja contada de maneira que
nenhuma outra mídia permitiria. O fácil reconhecimento, a leitura natural as transcrições de todos
os outros elementos para o sentido da visão fazem com que o quadrinho tenha uma linguagem
única. Tal linguagem é enraizada no visível, dando vasão a sensações e compreensões do invisível,
o que sustenta uma análise dos elementos constituintes como foi feita nesta dissertação, buscando
encontrar, partindo do visível, elementos outros representados na narrativa. No encalço do
hipertexto e da cosmovisão, essa busca é possível, considerando a explicação de Warburg e
Panosfky sobre a sobrevivência das imagens e da representação imagética de idéias, sentimentos
e conceitos. Creio que hoje os quadrinhos são a mídia onde esses conceitos são melhores aplicados.
A linguagem dos quadrinhos evoca no leitor uma respostas estética que permite com que ele,
através de sua própria cosmovisão individual e subjetiva, se engaje em uma experiência sublime
através dos quadrinhos.
Diversos estudos foram desenvolvidos utilizando as ilustrações e os quadrinhos para
demonstrar o desenvolvimento da esfera pública na China. Embora eu mesmo tenha me valido de
estudos similares para meus interesses, para compor este trabalho e para entender o contexto
cultura da China e da Itália nos períodos de produção (trabalhos como de Anne Cheng, Marcel

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Granet François Julien), creio que este seja o primeiro trabalho em língua portuguesa a comparar
as duas obras oferecendo um relato acessível e ilustrado dos acervos culturais e de formação de
sentido que partem deste acervo.
Futuras pesquisas podem ser desenvolvidas tendo como objeto de estudos os quadrinhos
chineses. Embora talvez nunca saibamos ao certo quantos periódicos desta mídia foram
publicados, sabemos que um número ínfimo sobreviveu à Revolução Cultural e por isso Jornada
ao Oeste é tão importante neste contexto, primeiro, pois adapta um dos maiores (senão o maior)
clássico da literatura chinesa. Segundo pois foi uma superprodução da indústria dos quadrinhos
chineses, sendo inclusive elogiado pelo próprio Mao Tse Tung.
No capítulo I, buscamos dar um panorama geral das pesquisas em história em quadrinhos
e de sua importância para a área da Comunicação e da produção de sentido. Demonstramos como
os quadrinhos não devem ser tratados como uma mídia híbrida, mas como detentor de uma
linguagem própria calcada no imagético. Também demonstramos como Oriente e Ocidente se
distanciam em questões essenciais de filosofia, forma de pensamento e estética, e que devido a tais
distinções é necessário estudarmos as cosmovisões que regem as produções midiáticas destes
ambientes culturais heterogêneos.
No capítulo III, ampliamos a discussão e conceituamos o termo “cosmovisão”, apontando
sua importância para os estudos das artes e da filosofia. Também tratamos da tradução
intersemiótica entre duas mídias distintas o livro e os quadrinhos e no final deste capítulo nos
esforçamos para elucidar os conceitos Warbugianos de imagens sobreviventes e fantasmagorias
que serviram para o capítulo de análise desta dissertação.
O capítulo IV é uma delimitação dos objetos de estudos. Nele traçamos um panorama das
duas produções midiáticas que serviram de corpus para esta dissertação, discutindo seus conceitos
de produção e como eles cooperam para os elementos simbólicos que compõe cada uma das obras.
Na análise propriamente dita, no capítulo V, as duas obras foram comparadas, suas
recorrências e elementos simbólicos foram isolados e analisados à luz das respectivas
cosmovisões, demonstrando sentidos distintos (por vezes antagônicos) entre as duas obras.
Estudos futuros podem se debruçar sobre o texto das duas obras, que para esta dissertação
foi de certa forma negligenciado para focarmos no imagético considerando que a metodologia de
Warburg e Panofsky atenta principalmente para este sistema simbólico.

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Concluindo, este estudo demonstrou como, apesar de manter os mesmos elementos básicos
para a criação do sentido, sem alterar o personagem e os elementos centrais das narrativas, a visão
de mundo dos autores criou narrativas distintas. Em suas distinções, os artistas por trás dessas
obras leram a sociedade à sua volta e traduziram uma época em quadrinhos, forma de arte
importada para a China mas que ganhou espaço durante uma geração em mudança, e uma Itália já
acostumada com a postura transgressora e irreverente desta mídia que se presta tanto a entreter
como a formar culturalmente o indivíduo leitor.

102
6. Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

_________________. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem e percepção. Rio de Janeiro:


Contraponto, 2015.

_________________. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Apresentação, tradução


e notas Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado, Porto Alegre, Zouk, 2014

BULHÕES, M. Considerações sobre a Adaptação para o Audiovisual: Ficção Noir. Signo (UNISC.
Online), v. 36, p. 64-79, 2011.

____________. A ficção nas mídias: um curso sobre a narrativa nos meios audiovisuais. São Paulo:
Ática, 2009.

CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos, São Paulo: Ática, 1975.

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ZHUANGZI. Chuang Zi: Escritos Básicos. Tradução Yolanda S. Toledo. São Paulo: Cultrix, 1992.

104
7. Anexo e notas

Conforme descrito no capítulo IV, deixamos como anexo as páginas inteiras utilizadas na
análise dessa dissertação. De um lado a página correspondente a adaptação chinesa de Wu
Cheng’en (2008) e do outro a adaptação italiana desenhada por Milo Manara (1976), as ilustrações
são dispostas na horizontal visando manter uma melhor resolução da imagem. A intenção de incluir
essas imagens enquanto anexo é possibilitar ao leitor visualizar com maior detalhamento as
recorrências simbólicas apresentadas nessa dissertação, juntamente com o texto original em
português e em italiano. As gravuras foram indexadas no anexo de acordo com sua aparição no
corpo do texto e elencadas sistematicamente.

105
107

ANEXO A – FIGURA 1 – O nascimento do Rei Macaco

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


108

ANEXO B – FIGURA 2 – Wukong e os animais da floresta

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


109

ANEXO C – FIGURA 3 – O interior da caverna

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


110

ANEXO D – FIGURA 4 – O interior da caverna

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


111

ANEXO E – FIGURA 5 – A travessia do mar

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


112

ANEXO E – FIGURA 6 – O Macaco e o Lenhador

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


113

ANEXO G – Figura 7 – Wukong recebe instrução do sacerdote

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


114

ANEXO H – Figura 8 – Palavras de sabedoria

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


115

ANEXO I – Figura 9 – O demônio inimigo

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


116

ANEXO J – Figura 10 – Wukong e o bando enfrentam o demônio

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


117

ANEXO K – Figura 11 – O arsenal do Rei Dragão do Mar

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


118

ANEXO L – Figura 12 – Wukong escolhe sua arma

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


119

ANEXO M – Figura 13 – Wukong escolhe sua arma

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


120

ANEXO N – Figura 14 – O livro de registros da vida e da morte

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


121

ANEXO O – Figura 15 – Os portões do Céu

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


122

ANEXO P – Figura 16 – A marcha dos Celestiais

Fontes: CHENG’EM, 2008 e MANARA E PISU, 1976


123

ANEXO Q – Figura 17 – Grande sábio igual aos Céus

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


124

ANEXO R – Figura 18 – Wukong no Jardim dos Pessegueiros

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


125

ANEXO S – Figura 19 – Wukong enfrenta os celestiais

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


126

ANEXO T – Figura 20 – Erlang Shen contra Sun Wukong


127

ANEXO U – Figura 21 – As transformações de Wukong e Erlang Shen

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


128

ANEXO V – Figura 22 – Wukong se transforma em um templo

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


129

Anexo W – Figura 23 – Erlang Shen descobre o truque de Wukong

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


130

Anexo X – Figura 24 – Wukong é capturado

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


131

Anexo Y – Figura 25 – Wukong é torturado enquanto os celestiais discutem

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


132

Anexo Z – Figura 26 – O caldeirão dos oito trigramas

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


133

ANEXO AA – Figura 27 – Wukong escapa do caldeirão

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


134

ANEXO AB – Figura 28 – Os celestiais apelam para Buda

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


135

ANEXO AB – Figura 29 – Wukong e Buda

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


136

ANEXO AC – Figura 30 – A palma de Buda

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


137

ANEXO AD – Figura 31 – Wukong é aprisionado

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976


138

ANEXO AE – Figura 32 – A montanha sobre Wukong

Fontes: CHENG’EN, 2008 e MANARA E PISU, 1976

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