Você está na página 1de 263

UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP

AMBIÊNCIAS NAZISTAS RESSIGNIFICADAS:


a obra Jogos Vorazes pela intermidialidade

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Paulista – UNIP, para
obtenção do título de Mestre em
Comunicação.

JERÔNIMO TEIXEIRA STREHL

SÃO PAULO

2016
JERÔNIMO TEIXEIRA STREHL

AMBIÊNCIAS NAZISTAS RESSIGNIFICADAS:


a obra Jogos Vorazes pela intermidialidade

Trabalho de conclusão de curso para


obtenção do título de mestre em
Comunicação e Cultura Midiática,
apresentado à Universidade Paulista –
UNIP.

Orientadora: Profª Drª Solange Wajnman.

SÃO PAULO
2016
Strehl, Jerônimo Teixeira.
Ambiências nazistas ressignificadas : a obra Jogos Vorazes pela
intermidialidade / Jerônimo Teixeira Strehl. - 2016.
261 f. : il. color.

Dissertação de Mestrado Apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo,
2016.

Área de Concentração: Comunicação e Cultura Midiática:


Configuração de Linguagem e Produtos Audiovisuais na Cultura
Midiática.
Orientadora: Prof.ª Drª. Solange Wajnman.

1. Intermidialidade. 2. Jogos Vorazes. 3. Nazismo.


4. Remediação. 5. Desigualdade. 6. Distopia I. Wajnman, Solange
(orientadora). II. Título.
JERÔNIMO TEIXEIRA STREHL

AMBIÊNCIAS NAZISTAS RESSIGNIFICADAS:


a obra Jogos Vorazes pela intermidialidade

Trabalho de conclusão de curso para


obtenção do título de mestre em
Comunicação e Cultura Midiática,
apresentado à Universidade Paulista –
UNIP.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________/____/______
Profª. Drª. Solange Wajnman
Universidade Paulista – UNIP

_________________________________________/____/______
Prof. Dr. Gustavo Souza da Silva
Universidade Paulista – UNIP

_________________________________________/____/______
Prof. Dr. Gelson Santana Penha
Universidade Anhembi Morumbi – UAM
DEDICATÓRIA

Dedico esta pesquisa a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior (Capes) e ao seu Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de
Ensino Particulares (PROSUP), pois foi especialmente devido a esse fomento, que
me foi possível percorrer o caminho do mestrado aproveitando ao máximo as
oportunidades existentes de aperfeiçoamento, como participações em eventos e
publicações de textos.
Devido aos benefícios que proporciona tanto à pesquisa quanto ao pesquisador,
desejo imensamente que esse tipo de fomento, sempre se amplie em momentos
prósperos e que em tempos adversos, nunca retroceda.
Portanto, este estudo foi resultante direto dessa contribuição, ao qual espero que
ambas possam continuar servindo para futuras pesquisas.
AGRADECIMENTOS

Para minha esposa Michele, por ter me avisado da seleção para o mestrado;
estimulado minha inscrição; comemorado minha aprovação; acompanhado minha
produção; me aguentado durante a dissertação – obrigado por todo esse
companheirismo, não apenas nestes dois anos, mas nestes dezessete anos juntos.

Ao querido Prof. César Belardi, por todo o apoio, auxílio e parceria proporcionada
nos últimos anos. Este projeto não seria possível sem você.

A incrível Profª. Drª. Solange Wajnman, que me é muito mais do que uma
orientadora, sendo uma verdadeira guia por este universo da academia, a mim tão
novo. Apesar de ter de aguentar meus devaneios, ao me apresentar aos estudos da
intermidialidade, obteve um fiel companheiro de jornada. Esta dissertação está
impregnada com o teu espírito.

A Profª. Drª. Carla Montuori Fernandes e a Profª. Drª. Janette Brunstein Gorodscy,
que além de contribuírem com seus olhares únicos à minha formação, ao se
mostrarem interessadas em minha pesquisa, realmente me motivaram.

A todos os colegas no decorrer do curso, mas especialmente ao Marco Romiti e ao


Sérgio Pinheiro, por todos os bons debates, diálogos e parcerias.

Aos prestativos profissionais da secretaria do mestrado, em especial o Marcelo


Rodrigues e o Bruno Silva, sempre prontos a auxiliar nas desventuras acadêmicas.

Ao grande amigo de infância, Prof. Dr. Francis Morais de Almeida, que mesmo à
distância, fez pertinentes contribuições a esta pesquisa.

Tanto a minha amada mãe quanto a minha querida sogra, por todos os seus
suportes, aportes e incentivos neste momento de minha vida.

E reiterando a dedicatória, a CAPES por todo o seu fomento.


RESUMO

É por meio dos estudos de intermidialidade, que analisam as relações entre mídias,
e estas como instrumentos basilares de observação da sociedade, que esta
pesquisa verifica as remediações ocorridas entre materializações da obra fictícia
Jogos Vorazes, que converge em diversas mídias e de diferentes formas: da
literatura passando para áudio-descrição, que perpassa para o cinema e alcança a
internet e os videojogos. Essa obra apresenta uma nação totalitária, onde por meio
de uma divisão radical de classes sociais, uma minoria consumista vive em
opulência, enquanto à massa majoritária é imposta uma ditadura de miséria, fome e
servilismo, destacando-se dentre os diversos subterfúgios para esse controle, o uso
dos meios de comunicação de massa como forma doutrinação, especialmente o
reality show em forma de jogo, que dá nome a obra. Dentre as diversas
ressignificações presentes, como atualizar elementos da antiguidade clássica ou
conceitos trazidos por obras literárias cânones do gênero distópico, esta pesquisa
propões a existência de uma apropriação e atualização ao público fruidor
contemporâneo, da estética totalitária nazista, ambiência especialmente
materializada em sua transposição às telas. Para embasar esse posicionamento,
esta pesquisa se formula por meio de um estudo teórico-empírico de natureza
qualitativa, sendo elaborado através de pesquisa bibliográfico-documental, mediante
análises imagéticas, audiovisuais e textuais – como livros, filmes, videojogos,
revistas, artigos, sítios da internet e redes sociais – construindo os dados por
observação. Permeando o trabalho, fez-se paralelos dessa ficção com a atual
conjuntura social exposta nos meios de comunicação, levantando questionamentos
acerca das relações de poder, consumo exacerbado, bem como iminências da
violência real e simbólica presente em ambas as desigualdades, fictícia e não-
fictícia. Por fim, chegou-se à conclusão da validade em se utilizar a intermidialidade
para observar as diversas ressignificações presentes na obra Jogos Vorazes, bem
como o quanto essas concepções permeiam a realidade.

Palavras-chave: Intermidialidade; Jogos Vorazes; Nazismo; Remediação;


Desigualdade; Distopia.
ABSTRACT

It is through the intermediality studies that examine the relationship between media
and understand these as basic instruments of society observation, that this research
verifies the remediations occurred between the materialization of The Hunger Games
fictional work, which converges in various media and in different ways: from literature
through audio description, which runs through film and reaches the internet and video
games. This work presents a totalitarian nation where occurs a radical division of
social classes, where a consumerist minority lives in opulence, while the majority
mass lives in an imposed dictatorship of misery, hunger and servility, standing out
among the various subterfuges to this control the use of the mass media as
indoctrination way, especially the reality show in the form of game, which gives its
name to the work. Among the various existing resignifications, like the recreation of
classical antiquity elements or concepts brought by the literary canons of dystopian
genre, this research proposes the occurring of appropriations and up-to-date the Nazi
totalitarian aesthetics to the contemporary spectator public, with an especially
materialized ambience through its transposition to screens. To support this position,
this research is formulated by means of theoretical and empirical studies of
qualitative nature, being developed through bibliographic and documentary research
by imagery, visual and textual analysis – such as books, movies, video games,
magazines, articles, websites and social networks – building data by observation.
Permeating the dissertation, there was parallel with this fiction to the present social
situation exposed in the media, raising questions about power relations, exacerbated
consumption, and imminence of real and symbolic violence presented in both
inequalities, fictional and non- fictional. Finally, we reached the conclusion that
validating the use of intermediality to observe the different significations presented in
the work Hunger Games, and how these concepts permeate reality.

Key-words: Intermediality; The Hunger Games; Nazism; Remediation; Inequality;


Dystopia.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 10
1 REFERENCIAIS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ............................................................ 17
1.1 Do espírito hermenêutico até a forma como materialidade ...................................... 19
1.1.1 O campo hermenêutico ...................................................................................... 20
1.1.2 A materialidade da comunicação ....................................................................... 27
1.2 A mídia pelo turn alemão ........................................................................................... 32
1.2.1 Um outro olhar para as mídias ........................................................................... 35
1.3 O entre lugar da intermidialidade .............................................................................. 41
1.3.1 Um termo guarda-chuva..................................................................................... 45
1.4 Desdobramento teórico ............................................................................................. 53
1.4.1 Muito além do Cinema........................................................................................ 59
1.4.2 Metodologia ........................................................................................................ 62
1.4.3 Estado da arte .................................................................................................... 64
2. A CONSTRUÇÃO DE JOGOS VORAZES: ou As primeiras conexões com a
Intermidialidade ........................................................................................................................ 67
2.1. O enredo da obra ....................................................................................................... 67
2.2. A origem dos Jogos ................................................................................................... 70
2.3. Buscando a utopia ..................................................................................................... 76
2.4. O encontro da distopia ............................................................................................... 78
2.5. Uma presença nazista ............................................................................................... 83
2.5.1. Nazismo ou stalinismo........................................................................................ 85
2.5.2. Revivalismo, retrocipação e presentificação ..................................................... 87
3 A INTERMIDIALIDADE ENQUANTO TEXTO: ou A busca por uma ambiência nazista
ressignificada ............................................................................................................................ 95
3.1 De livro em livro ......................................................................................................... 96
3.2 Das páginas à capa ................................................................................................. 108
3.3 Dos textos à narração .............................................................................................. 117
3.4 Do original à tradução .............................................................................................. 120
3.4.1. O título original The Hunger Games ................................................................ 122
3.4.2. O pássaro do broche ........................................................................................ 123
3.4.3. A garota quente ................................................................................................ 124
3.4.4. De clavas a porretes......................................................................................... 125
3.5 Do jogo no papel ao papel no jogo .......................................................................... 126
3.6 Fechando o livro ...................................................................................................... 129
4. A INTERMIDIALIDADE ENQUANTO TELA: ou Ao encontro de uma ambiência nazista
ressignificada .......................................................................................................................... 134
4.1. Os bastidores da produção cinematográfica ........................................................... 134
4.1.1. Diferença entre o romance e o roteiro ............................................................. 138
4.2. A busca por meio das materialidades de referenciais nazistas .............................. 141
4.3. A materialidade cinematográfica da Capital ............................................................ 147
4.4. O triunfo, a vontade e a materialidade .................................................................... 161
4.4.1. Paralelos, referenciações e especulações ...................................................... 170
4.4.2. O Zeitgeist ........................................................................................................ 173
4.4.3. A narrativa da caixa preta ................................................................................ 181
4.5. A materialidade cinematográfica do Distrito 12....................................................... 183
4.5.1. Pele olivada ...................................................................................................... 189
4.5.2. Nominatas ......................................................................................................... 194
4.6. Pão e circo ............................................................................................................... 195
4.6.1. Reality show ..................................................................................................... 200
4.7. A tela como um videojogo voraz ............................................................................. 205
5. A INTERMIDIALIDADE ENQUANTO MERCADO: ou O consumo ressignificado em
Jogos Vorazes ........................................................................................................................ 213
5.1. Consumo licenciado................................................................................................. 215
5.2. Consumo derivado ................................................................................................... 221
5.3. Saudações reapropriadas........................................................................................ 225
5.4. Acoplagem racista ................................................................................................... 228
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 232
6.1. Considerações sobre a intermidialidade apresentada ............................................ 232
6.2. Considerações sobre a desigualdade ressignificada.............................................. 237
6.3. Considerações sobre o arcaísmo fascista .............................................................. 244
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 248
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 261
Toda revolução começa com uma faísca.
Jogos Vorazes

Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar.


E eu não vou me resignar nunca.
Darcy Ribeiro
antropólogo brasileiro
10

INTRODUÇÃO

Sou o resultado de duas famílias de origens muito diferentes: a primeira se


origina em fins do séc. XVII, na região hoje conhecida como Renânia-Palatinado,
Alemanha; enquanto a segunda surge em pleno séc. XIX, no estado brasileiro do
Rio Grande do Sul. Entre características em comum, ambas possuíam a esperança
por uma vida melhor.
Minha ascendência alemã imigrou para o Brasil, por meio da política oficial
promovida pelo governo imperial brasileiro, em duas viagens: 1827 e 1847. Sendo
camponeses da região produtora de vinhos, buscavam se afastar da terrível situação
que assolava a região ao longo do séc. XIX, resultado da dissolução do Sacro
Império Romano-Germânico, ocorrido perante as guerras napoleônicas, e a enorme
instabilidade e insegurança que se seguiram, findas somente após as guerras que
instauraram a unificação da Alemanha como Estado Nação.
Conforme consta no livro que narra a saga da família, o Palatinado era tido
como a região mais castigada pela miséria e a fome em toda a Alemanha. Mas a
migração para o Brasil começou com uma vinda nada fácil: as viagens duraram
entre 90 e 120 dias, em terrível travessia, onde o capitão era a autoridade máxima e
portava-se como chefe todo-poderoso, sendo que, por vezes, os camponeses
recebiam maus-tratos aos quais os faziam sentir como escravos (STREHL, 1993).
Já minha ascendência brasileira é típica da fundação do estado sul-rio-
grandense, marcado pelas sucessivas guerras que delimitaram estas fronteiras,
sendo totalmente miscigenada entre portugueses, espanhóis e índios. Apesar de
basicamente dedicada à pecuária, documentadamente esteve envolvida nos
movimentos revolucionários de 1893-1895 e 1923 (TIMM; GONZALEZ, 1934).
Ao seu modo, ambas prosperaram, mas minha criação – o durar da minha
infância e começo da adolescência – se deu em um momento de grandes problemas
financeiros. Fui criado numa constante de idas e vindas entre a cidade e uma
propriedade rural no interior do Rio Grande do Sul. Nessa época, a economia
familiar havia regredido, se resumindo a da subsistência, sem instrumentos agrícolas
complexos ou motorizados.
No campo, vivia-se em uma grande casa, onde o cômodo principal era a
cozinha, com seu chão de terra batida e um enorme fogão a lenha, que ardia a
11

brasa dia após dia, desde antes da alvorada e até depois de seu ocaso. Anunciava
ao se apagar que era chegado o momento de todos se deitarem.
Não havia luz elétrica, tendo as noites iluminadas por velas, lampiões a gás
e o céu ricamente estrelado muito bem visível. Nessa época, os equipamentos de
maior tecnologia presentes eram a inestimável geladeira a querosene, e o prestativo
rádio a pilha, ligado sempre no horário do noticiário informativo. Com o tempo, a
geladeira foi trocada por uma mais eficiente a gás, e o rádio ganhou, como
companheiro mais do que concorrente, uma televisão sem cores, alimentada por
uma bateria de automóvel.
A região era formada por várias fazendas, em sua maioria pertencentes a
parentes nos mais diversos graus de proximidade, e o dia a dia era preenchido pela
lida no campo, em que, frequentemente havia a necessidade de se unirem para
realizar alguma tarefa conjunta mais trabalhosa – como banhar o gado, tosquiar
ovelhas, colher alguma safra ou construir cercas e potreiros. E, parte da produção
de cada família era trocada com as outras – quem produzia abóbora, trocava com
quem produzia milho, que trocava com quem produzia feijão, e assim por diante.
Deste modo, todos tinham acesso a tudo, em uma interdependência natural e
harmoniosa. Quando havia excedente, esse era comercializado.
Não se passava fome, e como o alimento ou era colhido ou abatido, de igual
modo não havia desperdício. Sendo assim, produtos que eram comuns nas cidades
nos eram muito raros, e muitas vezes caros para adquirir, como chocolate – que se
resumia a duas vezes ao ano, na Páscoa e Natal – ou iogurte – que era consumido
até não restar nada no pote, como se o mesmo tivesse sido completamente limpo.
De igual modo, a roupa do mais velho passava para o mais novo, que passava para
um primo, e assim sucessivamente até encontrar seu derradeiro uso como pano de
chão ou archote.
Minha criação se deu em um seio familiar no qual a mulher tinha voz ativa,
sendo as matriarcas tão respeitadas e importantes quanto os patriarcas, e em certos
momentos se tornando o braço forte da família. Disso, minha mãe e tia são
exemplos, mas minha avó e suas irmãs foram exemplares.
Também não havia distinção de raça nem classe – meus avós assumiram
como filho de criação uma criança negra, do qual a família biológica ficou
completamente impossibilitada de cuidar, tendo seus direitos e deveres iguais aos
dos outros filhos, inclusive em herança, e o qual sempre tive o entendimento que era
12

meu legítimo tio. Além disso, todo trabalhador contratado, branco, negro ou índio,
era convidado a se sentar à mesa e se alimentar juntamente com a família.
Quantas noites passei em torno de uma fogueira, ouvindo encantado as
maravilhosas histórias contadas por “pretos veios”, em especial o Bráulhio e seu
irmão Petrúcio, homens sábios, ternos e pacientes, que enquanto fumavam seu
“paiero”, contavam sobre a terra, as estações, os animais, enfim, a vida. Sem falar
do “polaco” Ademar, de barba e pelos ruivos, sempre prestativo e pronto para
ensinar este jovem inexperiente que tentava ajudá-lo na lida. Todos já se foram, os
irmãos pela idade, e o polaco por um infeliz acidente na construção civil, ao buscar
uma vida melhor. Mas os honro em minhas lembranças, pois fazem parte da pessoa
que sou.
E chegado o momento de definitivamente residir na cidade, fui apresentado
a uma nova vivência diferentemente interessante, com acesso sem precedente a
aparelhos eletroeletrônicos como televisão a cores, videocassete, cinema,
videojogo, bem como inúmeros livros e histórias em quadrinhos. Sendo bolsista para
estudar em um colégio privado, enquanto passava ótimos momentos em um ensino
de qualidade, simultaneamente fui apresentado a uma outra realidade por mim
desconhecida: da desigualdade, segregação e bullying. Quando ocorreu minha
mudança para uma escola pública, apesar do ensino mais limitado, também me
deparei com uma pluralidade de colegas e vivências muito enriquecedoras.
Nessa vivência escolar, em época de limitado acesso a informação, em
parte devido a posicionamentos curriculares, a forma como fui apresentado ao
ensinamento sobre as duas grandes guerras mundiais e ao holocausto, me
induziram a romper com a cultura alemã de minha ascendência – reneguei aos
conhecimentos da língua, das culturas e tradições, e durante um tempo, tanto me
envergonhava de carregar essa genealogia, bem como não olhava com bons olhos
esse lado familiar. Enfim, ignorância tardiamente atenuada, e que procuro reparar
até hoje.
Entendo que o fluir da diversidade de minha criação, para minha época, me
presenteou com uma confluência incomum de experiências relativas ao contato com
a mídia, a indústria cultural e as relações interpessoais. Cada materialidade distinta
me ensinou que as fronteiras são mais nebulosas em vez de estritamente
delimitadas, sendo a perspectiva tomada, o fator preponderante para alguma
compreensão.
13

Essa vivência plural estimulou um modo criativo de ver e lidar com o mundo,
o que me direcionou ao mundo profissional do Design, onde a pluralidade está no
cerne do campo, que é de amplitude transversal, interdisciplinar e de ação fluida,
permeando as mais variadas áreas, sendo que tentar enquadrá-la
unidimensionalmente, é um equívoco (ALMEIDA JUNIOR; NOJIMA, 2010). Esta
visão se estendeu não somente aos anos trabalhados no mercado publicitário, e por
último, dedicados ao terceiro setor, mas também na continuação de minhas
pesquisas, seja na já finalizada especialização, ou por meio desta pesquisa stricto
sensu do mestrado, que surge como uma forma de mitigar tanto a um
posicionamento relativo ao Design, portanto mais profissional, quanto a uma questão
mais pessoal.
Em se tratando de Design, existe uma lacuna recorrente no seu campo de
estudos: ao articular a relação objeto e usuário, mesmo lidando com as mais
diversas materialidades, há uma superficialidade do seu entendimento e
posicionamento perante os estudos de Mídia, bem como ao entendimento das
mídias como um todo. Neste quesito, os estudos da Intermidialidade proporcionam
um campo riquíssimo em possibilidades para a área – o seu paradigma entende que
as mídias se encontram correlacionadas e em contínuo diálogo, gerando constantes
ressignificações nos mais diversos graus, não cabendo mais análises puramente
distintas e isoladas de cada mídia. As pesquisas sobre intermidialidade se
desenvolveram na Alemanha, nação que pode ser considerada o berço do Design
moderno, mas inicialmente como campo de investigação da esfera das letras e artes
(estudos interartes). Este viés proporciona mais uma convergência entre os campos
da Comunicação e do Design – desse modo, esta pesquisa pretende ampliar os
estudos da intermidialidade pelo viés de ambos os campos.
A isso, me vem a memória um causo ocorrido comigo, que meu pai
relembrava: quando a situação financeira familiar obteve relativa melhora, ele me
presenteou com um lindo e caro caminhão de controle remoto, que prontamente
troquei por um singelo carrinho sem valor, feito manualmente por uma criança
vizinha – a mim, era muito mais interessante entender como elementos tão distintos
quanto quatro tampinhas de refrigerante, uma lata de azeite, um pedaço de madeira
e alguns pregos poderiam adquirir um significado todo novo, “magicamente”
adquirindo a forma de um carrinho de brinquedo. O caminhão se apresentava
apenas como um caminhão, mas esse carrinho manual se apresentava como
14

inúmeras possibilidades. Tanto isto é design, quanto é meio, mídia e se apresenta


como um processo intermidiático.
É no que tange o objeto, item tão caro ao Design, que se buscou conciliar
um que fosse rico em possibilidades tanto aos estudos de intermidialidade, quanto
também para a bagagem pessoal que fora apresentada. A escolha se deu pela obra
Jogos Vorazes, um romance literário fictício, originalmente constituído por três
volumes, enquanto sua adaptação às telas realizada em quatro filmes. Já o
desenvolvimento deste trabalho, abrange como recorte tanto o primeiro volume
quanto sua adaptação cinematográfica, que são obras fechadas em si, e a vasta
materialidade contida em torno delas – seja como audiolivro, videojogo, internet etc.
Cada uma dessas materializações conta com suas próprias configurações
estéticas e simbólicas, espaço de convergência e ressignificação de seu ato
interpretativo, no qual atualizam para um público fruidor contemporâneo o repertório
de regimes totalitários, sendo pertinente ressaltar a existência de uma ambiência
nazista ressignificada, desta forma permeando uma conexão com a realidade de
modo mais amplo.
E além, esta se formulou tendo em mente a constante preocupação que uma
produção da indústria cultural – portanto de massivo consumo e circulação – e que
se apresenta com grande influência ao seu público consumidor, pudesse banalizar e
glamorizar toda uma iconografia do regime nazista. Ainda mais levando-se em conta
o contexto atual, onde após décadas de pujança, abateu-se uma sequência de
crises de âmbito mundial, historicamente terreno fértil para o aumento das
polarizações nos mais distintos posicionamentos – vislumbrado atualmente tanto no
Brasil, quanto em várias nações pelo mundo –, preocupantemente notável os de
cunho antidemocrático, nacionalista, xenofóbico ou racista.
Para que haja sustentação ao repertório de elementos constituintes desta
pesquisa, por sua pluralidade, diversos autores serão consultados sem prevalência
de nenhum, pois cada um possui sua devida importância:
 No que tange a intermidialidade, que se relacionará através da
totalidade dos elementos propostos neste trabalho, sejam
iconográficos, de roteiro, cenografia – formada pela inter-relação da
iluminação, sonorização e especialmente arquitetura – juntamente
com o figurino – formada pela totalidade dos trajes cênicos,
indumentária e acessórios – imprescindíveis para expressar a melhor
15

ambientação e comunicação que uma produção no porte de Jogos


Vorazes se propõe atingir. Dentre os diversos interlocutores,
destacam-se Clüver (2006; 2007, 2011), Gumbrecht (1998a; 1998b;
2003; 2010), Müller A. (2012), Müller J. (2012), Paech (2011),
Rajewsky (2005; 2012) e Verstraete (2010).
 Sobre as questões relativas a poder, controle, opressão, vigilância e
coerção, bem como pelo uso de uma estética característica ao
totalitarismo e ao nazismo, serão traçadas especialmente com auxílio
de Arendt (2012), Barsam (1975), Foucault (2010), Lenharo (2000) e
Sontag (1981).
 E em se tratando diretamente da obra, é imprescindível tanto a autora
Collins (2008, 2010), o livro sobre os bastidores da produção do filme
por Egan (2012), e as análises de Henthorne (2012), Frankel (2012,
2013), bem como das diversas materialidades da obra.
Apesar da amplitude de Jogos Vorazes, nesse processo se fez necessário
buscar outras obras que possam ser usadas como eixos de relação paralelos, seja
por compartilhem pertinentes características, como mesmo gênero, ou por se
apresentarem como possíveis referenciais, porque passaram por processo
semelhante: surgindo como obra literária e sendo transposta para o cinema.
Essas relações ajudam a compreender as preocupações deste trabalho com
a iminência de violência real, e a sua “verossimilhança” pela violência simbólica
encontrada na obra. Mas também busca demonstrar que a ressonância entre
design, comunicação e intermidialidade permeiam uma conexão com a realidade de
forma ampla, portanto, constituindo fundamentais ferramentas de observação de
nosso mundo material – em suas diversas instâncias, sejam políticas, econômicas,
sociais, artísticas ou midiáticas.
Assim, esta introdução tem por objetivo apenas iniciar o diálogo desta
pesquisa, tendo no próximo capítulo a apresentação de sua fundamentação teórico-
metodológico, de modo aprofundado e delimitado.
Meu espírito. Isso é uma novidade. Não sei exatamente o que
significa, mas indica que eu sou uma lutadora.
De uma maneira mais ou menos corajosa.
Jogos Vorazes

Onde o medo está presente, a sabedoria não pode estar.


Lucius Lactantius
conselheiro do Império Romano
17

1 REFERENCIAIS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Nesta breve passagem introdutória deste capítulo, busca-se resumir parte da


história da civilização ocidental, que durante a maior parte de sua existência
cristianizada, teve seu pensamento fundamentado em um ideal absolutista, portanto,
se apresentando como uma verdade plena. A sociedade, simultaneamente refletor e
reflexo, se apresentava rigidamente hierarquizada, organizada em estamentos ou
castas, estratificação que basicamente impossibilita a mobilidade social.
Seu apogeu se dá na modernidade, na formação dos grandes impérios
coloniais europeus, onde se levava “a única religião verdadeira”, onde a terra girava
ao redor do sol e o tempo era imutável. No entanto, as primeiras mudanças nesse
posicionamento se deram ainda nesse período, com o surgimento da prensa móvel.
É especialmente ao fim desse – tanto nos movimentos denominados de revoluções
burguesas quanto na corrente do pensamento intelectual denominada iluminismo –
que se apresentam as mudanças de tal forma a resultar no início da idade
contemporânea, marcado por meio da revolução francesa.
Nesse período, colônias puderam se emancipar, repúblicas e democracias
começaram a se formar, e assentou-se o capitalismo – no qual se estruturou uma
sociedade de classes, com a possibilidade de mobilidade social. Mas é justamente
esse capitalismo galgado na revolução industrial, ao mesmo tempo que permitiria
essa mobilidade também mantinha forte rigidez do passado.
Se por um lado as mudanças nas fronteiras eram constantes, por outro eram
realizadas por rotas rígidas, feitas a ferro e fogo, percorridas rapidamente por trens e
navios a vapor, um modo diferente do que era possível por diligências a cavalo ou
velas das naus. Isso também permitiu padronizações, tanto do tempo quanto da
própria produção (MÜLLER, A., 2012): antes, de tradição artesanal especializada,
que primava pela qualidade; depois, para a linha de montagem fixa e seriada,
inicialmente com funcionários sem habilitação, que primavam por metas.
Tendo como lema um mundo próspero por meio da produção industrial, o
“design teve o seu papel nessa reconfiguração da vida social, contribuindo para
projetar a cultura material e visual da época” (DENIS, 2000, p. 66). E indo além:

Para quem entendia a tecnologia e a indústria como forças com o


potencial de gerar uma organização social mais perfeita, nada mais
18

lúcido do que a opção por formas e construções identificadas com o


progresso industrial. Após décadas, e até séculos, de resistência ao
avanço do industrialismo por questões de sensibilidade artística — ou
seja, por achar feia e repugnante a sociedade industrial — surgia um
ideário que apresentava a máquina e as suas decorrências na vida
não como coisas que precisavam ser escondidas ou suavizadas, mas
como o próprio fundamento de uma nova estética. Ao abraçarem
abertamente as formas mecânicas, os movimentos de vanguarda
artística franqueavam ao industrialismo uma respeitabilidade e
prestígio social que até então lhe tinham faltado. (DENIS, 2000, pp.
115-116).

É justamente nessa época, misto de rigidez e mobilidade, que o


entendimento científico do séc. XIX se desenvolve notavelmente, destacando-se: o
surgimento da psicologia, da psicanálise e da sociologia; na medicina surge a teoria
dos germes, vacinas e esterilização e pasteurização; pela biologia, o conceito de
seleção natural; na química, as teorias atômicas, a tabela periódica e a descoberta
da radioatividade; na física, a termodinâmica, eletromagnetismo, além das bases da
física quântica que culminariam com as teorias da relatividade no início do séc. XX.
Mas além destes, em um misto entre aparatos técnicos e desenvolvimento científico,
é que ocorre o avanço mais palpável ao fim das fronteiras – são avanços que
proporcionam o telégrafo, o rádio, o telefone, bem como a fotografia e o cinema –
pois em instantes seus efeitos cruzam continentes e invadem os lares.
Mas é durante todo o correr do séc. XX que esse pensamento absolutista
derroca – seja de forma trágica, nas mãos de líderes totalitários, pela qual sua
arrogância se mostrava ilimitada e sem fronteiras definidas; seja por meio da
globalização; ou ainda pela condição pós-moderna – culminando com a revolução
digital. Em um movimento aparentemente sem volta, essa abordagem continua e se
fortalece em pleno séc. XXI, se espalhando por outras culturas, como ocorrido com a
Primavera Árabe, no findar de residuais governos ditatoriais. Importante notar que
todos esses acontecimentos foram impulsionados pelos meios de comunicação.
Ao se pensar em mídia como campo de estudo, teremos mais de cem anos
de inúmeras pesquisas, dos mais variados olhares, vertentes e escolas – para citar
algumas, tem-se desde da Escola de Chicago, passando pela Escola de Frankfurt,
pela Escola Canadense, bem como dos Estudos de Recepção, bem como pelos
Estudos Culturais, entre tantos outros – cada uma dando mais um passo na
compreensão da área. Para esta pesquisa, entende-se que o movimento atual mais
19

representativo seja o Media Turn alemão, que fundamenta os estudos da


intermidialidade.
Ao se valer da intermidialidade para verificar as relações entre diversas
instâncias midiáticas da obra Jogos Vorazes, entende-se como sendo um viés
compatível com o paradigma contemporâneo. Mas por ser uma área de estudo
recente (MÜLLER, J., 2012), para o seu correto entendimento é fundamental
percorrer uma linha explicativa nos moldes historicistas – portanto, para a
compreensão da intermidialidade, é preciso antes compreender o media turn
alemão; mas para tanto, antes ainda é preciso conhecer a fundamentação desse,
proveniente da proposição crítica elaborada por Gumbrecht (1998), conhecida como
campo não-hermenêutico; que por si só, precisa da compreensão do campo
hermenêutico.
Figura 1 A ordem de pesquisa

(Fonte: Elaborado pelo autor)

1.1 Do espírito hermenêutico até a forma como materialidade1

Mas em verdade, o que seria a hermenêutica? A introdução do termo ao


português advém diretamente do francês herméneutique, apresentando os
significados de: busca pelo exato sentido de um texto; interpretação em sentido

1
É importante esclarecer que, pela variedade bibliográfica, optou-se por conduzir sempre que
possível, as citações em seu original – com grifos, erros e diferenças de ortografia – reproduzidos
fielmente, sem a necessidade de se utilizar sic, proporcionando maior fluidez na leitura. Outro fator a
observar, é o uso de livros eletrônicos (e-books), os quais possuem marcações feitas por
posicionamento e não por página – por indefinição da ABNT, optou-se por usar “pos.”, ex.: (fulano,
ano, pos. 0001).
20

teológico; e interpretação do que é simbólico (HOUAISS, 2009; SCHMIDT, 2014). A


versão latina de hermenêutica seria interpretatio, justamente a raiz da já existente
palavra interpretação. Sendo um ato interpretativo, é possível presumir que se
encontra presente desde o momento que os seres humanos, imersos na linguagem,
começaram a se comunicar, de modo inerente, sem sistematização. Portanto,
hermenêutica entende-se como uma forma de tentar encontrar sentido nas relações
comunicacionais.
Antes de dar continuidade, é preciso dedicar certa atenção ao citado
vocábulo relação, presente na raiz etimológica dos processos a serem denominados
comunicação2. Assim, a “comunicação é um ato que se faz no tempo e no espaço,
mas cujo sentido está na relação, porque a relação de comunicação parte do desejo
e da necessidade de se comunicar com o outro” (PERUZZOLO, 2006, p. 44),
definição que se apresenta arraigada na questão hermenêutica. A esta, é importante
entender o seu funcionamento para que apresente relevante a esta pesquisa.

1.1.1 O campo hermenêutico

Para Gumbrecht (1998a; 1998b), usar a denominação campo hermenêutico


proporciona uma abrangência maior, objetivando não excluir os pressupostos
hermenêuticos prévios ao séc. XVIII, anteriores a sua institucionalização por meio da
academia. É importante compreender que historicamente, seu paradigma se
apresenta indissociável da religião3 – entendida como o intercâmbio entre o divino
com a criatura humana – tendo em hermenêutica:

uma transliteração modificada do verbo grego “hermeneuein”, que


significa expressar em voz alta, explicar ou interpretar, e traduzir.
Costumava-se relacionar etimologicamente a palavra “hermenêutica”
ao deus Hermes, que expressava os desejos dos deuses para os
seres humanos, mas hoje questionamos esta conexão etimológica.
Mas ela ainda é um bom recurso heurístico. (SCHMIDT, 2014, p. 18).

2
Seja do latim communicatio ou communicare, cuja raiz de ambos é communis, que por si tem sua
raiz em cum moenia munis, com sentido original de “por diante de”, “pôr em comum”, “partilhar”,
“estabelecer relação”, seja entre seres ou objeto cultural. (PERUZZOLO, 2006; HOUAISS, 2009;
MARCONDES FILHO, 2014).
3
Esta se apresenta tanto nas vertentes monoteístas quanto politeístas, onde o divino influencia
diretamente o destino humano das mais variadas formas, através do tempo – seja na antiguidade
clássica por meio das musas, trazedoras da inspiração dos deuses aos homens; através dos oráculos
e videntes; bem como por anjos, avatares dos mais diversos ou até mesmo intervenções diretas.
21

Sendo assim, desde sua origem grega se apresenta arraigada a questão


religiosa, como mensagens sagradas oriunda dos deuses. Desta forma, sua adoção
pela filosofia clássica geralmente levava a formas alegóricas, característica que se
manteve durante o período medieval, onde tornou-se o método de interpretação dos
textos filosóficos e religiosos – especialmente da Bíblia –, tendo em São Agostinho4
importante representante, ao apresentar critérios e sugestões que até hoje são
especialmente válidas no âmbito dos estudos teológicos.
Com essas circunstâncias, o campo se formulou ao redor da seguinte
proposição: no plano divino tudo já se encontra concebido, pois existe em plenitude
absoluta, posicionamento oposto ao do plano material, onde tudo é possibilidade.
Diferente das outras existências presentes no mundo, a humana se encontra entre
os dois planos, ocorrendo simultaneamente entre o divino e o mundano, devido a ser
possuidor de uma ligação: o espírito – entendido como o sopro criador da divindade,
presente no cerne de cada pessoa. É por meio dele que ocorre a troca entre a
expressão5 divina, que é plena e perfeita, para com o humano, ser detentor de um
corpo material limitado, finito, não sendo capaz de manifestar essa totalidade,
fazendo-a sempre de modo incompleto e imperfeito, não passando de mera
possibilidade do original sublime. Este seria o caminho da expressão.
Sendo assim, a existência no plano superior de uma manifestação tal, que
venha a tomar forma por alguma pessoa, esse resultante terreno se apresenta como
cópia imperfeita, não passando de mera possibilidade da plenitude, devido às ditas
limitações mundanas. Justamente por causa disso, ao se entender que toda
expressão é incompleta, sua compreensão por outros também o será. Deste modo,
toda a relação entre humanos, entendida como ato comunicacional, sempre se
apresentará insuficiente. Para mitigar essa limitação, é preciso percorrer justamente
o caminho contrário, pois o sentido se dá no plano divino.

4
Agostinho de Hipona ou simplesmente Santo Agostinho (354 a 430), foi um dos mais importantes
teólogos e filósofos dos primeiros anos do cristianismo.
5
No entendimento desta pesquisa, compreende-se por expressão toda possível manifestação de
criação, seja ela textual, gestual, verbal, bem como a qualquer construto, técnica e arte.
22

Assim, ao se encontrar limitada no plano material, a expressão se apresenta


incompleta quando interpelada pelo humano, que precisa preencher as lacunas o
melhor possível, para que a troca realizada por meio do espírito, possibilite à
manifestação mundana encontrar no divino sua contraparte em completude, a fim de
o sentido se formar por inteiro. Deste modo, torna a relação comunicacional entre
humanos suficiente. Este seria o caminho da interpretação.

Figura 2 Hermenêutica – caminho da expressão e da interpretação

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Deste modo, a necessidade da interpretação nasce da insuficiência


intrínseca à toda expressão, o que torna o paradigma hermenêutico inseparável do
par expressão-interpretação. Em síntese, tem-se que:

O campo hermenêutico produz o pressuposto de que os significantes


da superfície material do mundo nunca são suficientes para expressar
toda a verdade presente na sua profundidade espiritual, e, portanto,
estabelece uma constante demanda de interpretação como um ato
que compensa as deficiências da expressão. (GUMBRECHT, 1998b,
p. 13).

Em Gumbrecht (1998a) e em Felinto (2001) encontram-se essas premissas


do campo hermenêutico, apresentadas de forma prática e sintética como quatro
fundamentos, conforme quadro abaixo:
23

Premissas fundamentais do campo hermenêutico


Primeira premissa O sentido consiste numa atividade do sujeito e não dos
objetos. A tarefa de atribuir sentido aos objetos cabe ao
sujeito
Segunda premissa A possibilidade de distinção radical entre o corpo e o espírito,
onde o espírito é o que de fato importa à comunicação e à
auto-referência humana
Terceira premissa O espírito conduz o sentido
Quarta premissa O corpo serve apenas de instrumento que articula ou oculta o
sentido, sendo um instrumento secundário, cuja criação cabe
sempre ao espírito
(Fonte: Elaborado pelo autor, com base em Gumbrecht [1998a] e em Felinto [2001])

É preciso fazer um esclarecimento sobre o termo espírito: por tempos, a


maioria dos estudos do campo hermenêutico se deram em regiões de língua
germânica, em especial onde atualmente se denomina por Alemanha. Nesta, a
palavra geist possui a ambivalência de, tanto significar espírito quanto mente6. Este
fato é importante para o entendimento apropriado do que está sendo proposto.
Dito isso, diversas teorias parciais foram desenvolvidas através dos tempos,
mas somente com Schleiermacher7 no findar do séc. XVIII, que estas são reunidas
em uma única disciplina, inserindo a hermenêutica definitivamente no campo da
filosofia, ao entender que ela não era meramente um processo criativo e subjetivo,
mas também cabível de regras metodológicas. Com esse posicionamento,
Schleiermacher é reconhecido como o pai da hermenêutica atual. Ainda assim, é
preciso esclarecer que, em Schleiermacher, o termo expressão refere-se aos textos,
especialmente às sagradas escrituras e filosofias com desdobramentos teológicos, e
a interpretação recairia perante estes, objetivando alcançar uma dimensão que
permita resgatar a plenitude da interioridade espiritual que estes textos possuíam.
Sendo assim, entende-se que para ele, geist seria essencialmente metafísico, sendo
a materialidade um mero arremedo que não apresenta importância. Portanto,
Schleiermacher exclui a materialidade.

6
É a alemã geist a raiz da palavra inglesa ghost. Nesse contexto, o real entendimento de ghost se
refere a mente adormecida de uma pessoa viva, em vez do entendimento popular de fantasma ou
espírito de um morto.
7
Friedrich Schleiermacher (1768 a 1834), foi um pastor, teólogo e filósofo alemão, bem como um
proeminente acadêmico de sua época.
24

Figura 3 Hermenêutica de Schleiermacher

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Estudioso de Schleiermacher, Dilthey8 torna-se o fundador da hermenêutica


acadêmica, ao validá-la enquanto metodologia – sendo o primeiro sistematizador da
Geisteswissenschaften9, comumente denominada por Ciências Humanas – e
ampliando seu alcance “de expressões linguísticas para todas as expressões dos
seres humanos” (SCHMIDT, 2014, p. 48). Mas ainda assim, sua formulação se
mantém na estrutura textual, sendo cada uma dessas expressões tratadas como um
texto (música-texto, pintura-texto etc.), e com isso, a interpretação seria uma
compensação pela expressão insuficiente dessas múltiplas formas textuais. No seu
posicionamento, geist poderia ser tanto metafísico quanto material – ora espírito, ora
mente –, mas ainda assim se mantendo o paradigma que “toda e qualquer condição
material é apenas um elemento secundário, tanto no ato de expressão quanto no de
interpretação” (GUMBRECHT, 1998a, p. 140). Sendo assim, Dilthey limita a
materialidade.

8
Wilhelm Dilthey (1833 a 1911) foi um influente polímato alemão, atuando como filósofo, psicólogo,
historiador, sociólogo e pedagogo.
9
Devido a comentada ambiguidade da palavra, em alemão Geisteswissenschaften tanto pode ser
literalmente traduzida como “as ciências do espírito”, quanto “as ciências da mente”, dando origem as
Ciências Humanas (línguas lusófonas), Les Sciences Humaines (línguas francófonas) e The
Humanities (línguas anglófonas).
25

Figura 4 Hermenêutica de Dilthey

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Já em Heidegger10, a interpretação é ato puramente humano, do ser que em


si mesmo compreende e interpreta o que lhe é exposto, a exemplo de sua vida
cotidiana – por meio da autointerpretação e autocompreensão, o qual denominava
hermenêutica da facticidade. Nela, se apresentam formulações acerca da totalidade,
temporalidade e referencialidade, e questionamentos sobre estar-no-mundo e o
estar-na-verdade (GUMBRECHT, 1998a). Em Heidegger, sendo inseparável do
objeto, o sujeito é tanto expressão quanto interpretação, sendo capaz de captar a
totalidade, e com isso, o geist não seria espírito, mas sim, mente. Sua hermenêutica
se torna universal ao não mais compreender as expressões como variações
textuais, mas sim na totalidade de suas possíveis formulações inatas (SCHMIDT,
2014), seja como gesto, fala, escrita, ou a vastidão das elaborações técnicas e
artísticas. Deste modo, além da hermenêutica de Heidegger incluir a materialidade,
todos os objetos são representações da consciência. Para Gumbrecht (1998a), em
Heidegger se encontra a apoteose da hermenêutica.

10
Martin Heidegger (1889 a 1976) foi um filósofo alemão, considerado um dos mais importantes
pensadores do séc. XX.
26

Figura 5 Hermenêutica de Heidegger

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Sendo assim, como exemplo de hermenêutica e materialidade – ou relações


de significâncias entre os objetos e o ser-no-mundo, como a análise da
existencialidade da existência –, Heidegger se utiliza de um martelo e seu martelar:
“Quanto menos simplesmente olhamos para a coisa chamada martelo, e quanto
mais o usamos ativamente, mais original se torna nossa relação com ele, e mais o
encontramos, sem disfarces, como o que ele é" (HEIDEGGER, 2005, p. 110). Assim,
o ser-no-mundo:

revela coisas úteis, os outros e a si mesmo em termos da totalidade


de relevância. Desta forma, podemos dizer que as coisas têm um
significado. Mas falando estritamente, o que é compreendido não é o
significado, e sim os seres, ou o ser. Eu compreendo o martelo em
sua utilidade, quer dizer, para martelar, que é um de seus modos de
ser. Na compreensão, eu compreendo alguma coisa, o martelo, como
alguma coisa: a ferramenta necessária para pregar o prego.
(SCHMIDT, 2014, p. 110).

Com isso, põe-se apresentado o paradigma hermenêutico, no qual se busca


uma verdade absoluta, a referenciação exata por meio da totalidade do sentido.
Seus pressupostos se mostram como fronteiras bem delimitadas que buscam uma
hegemônica estabilidade, condizentes com o pensamento moderno da época de
suas formulações.
Mas em tempos pós-modernos, dentre os questionamentos que buscam se
afastar de sua anterioridade, essa busca por um sentido absoluto não se sustenta.
Dentre o conjunto de circunstâncias que caracterizam essa condição, essa busca é
substituída pela indagação sobre como os sentidos se constituem, além de
27

primarem pela absoluta ausência de uma formulação hegemônica e estável. Desse


modo:

o questionamento radicalizou-se: não mais procuramos identificar o


sentido, para logo resgatá-lo; porém, indagamos das condições de
possibilidade de emergência das estruturas de sentido. Preocupação
que se afasta da situação moderna, testemunhando, pelo contrário, o
surgimento de um conjunto de circunstâncias que caracterizam a
condição pós-moderna. (GUMBRECHT, 1998a, p. 147)

Com isso, pelos anos de 1980, começa a tomar forma pelos ambientes
acadêmicos alemães uma virada no pensamento vigente, levando muitos
germanistas e filósofos a se aproximarem dos estudos da Comunicação (MÜLLER,
A., 2012). Uma destas mudanças ocorre com a proposição do campo não-
hermenêutico.

1.1.2 A materialidade da comunicação

Ao sugerir a constituição do campo não-hermenêutico, Gumbrecht objetiva


uma sistematização teórica no qual a busca por uma verdade, totalidade ou
referenciação exata do sentido, não é a preocupação fundamental, mas sim “a
possibilidade de tematizar o significante sem necessariamente associá-lo ao
significado” (GUMBRECHT, 1998a, p. 145). As formulações do campo baseiam-se
em três pressupostos, conforme quadro abaixo:
Premissas fundamentais do campo não-hermenêutico
Forma A passagem da substância do conteúdo/expressão para à
forma do conteúdo/expressão, pressuposto no qual todo
objeto se constitui por meio da diferença entre sua referência
externa e interna.
Acoplagem As condições que proporcionam essa passagem,
pressuposto ao qual, na interação do corpo com um objeto
são criadas novos estados e ritmos próprio, antes mesmo
que se forme qualquer sentido.
Simultaneidade O momento que ocorre essa passagem, por meio de
relações de feedback simultâneas, pressuposto que altera os
referenciais de espaço-tempo, por não estarem mais
vinculados a alguma temporalidade, causalidade ou
sequencialidade.
(Fonte: Elaborado pelo autor)
28

Com isso, o que Gumbrecht propõe é que, no campo não hermenêutico não
há mais a primazia nem do espírito, nem da mente – ao humano não cabe mais um
posicionamento que o apresente como superior em comparação às expressões.
Neste posicionamento, é dada especial importância à forma do ser humano – ou
seja, à sua inata existência física, possuidora de materialidade e que está em um
fluxo contínuo de relação com outras formas possuidoras de distintas
materialidades, as quais simultaneamente influenciam e são influenciadas, não
podendo mais serem entendidas como um ser fechado e imune ao que lhe é
externo. Portanto, por mais que ao humano ainda caiba a função de atribuir o
sentido à totalidade das expressões, este não é o único condutor do sentido, sendo
de igual maneira influenciado pelas relações de acoplagem que possuem com essas
expressões, deste modo, não sendo isentos a elas. Assim, se caracterizaria “pela
convergência no que diz respeito à problematização do ato interpretativo.
Convergência capaz de associar pontos de vista sem dúvida distintos”
(GUMBRECHT, 1998a, p. 145).
Dito de outro modo, toda a relação humana entendida como ato
comunicacional, exige a presença de um suporte material para que ocorra. Este
suporte material influencia essa relação e, até certo ponto, determina a estruturação
da mensagem comunicacional, independentemente de sua interpretação. Portanto,
as materialidades da comunicação “são todos os fenômenos e condições que
contribuem para a produção de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido”
(GUMBRECHT, 2010, p. 28), o que aponta a necessidade de não apenas buscar
interpretar uma mensagem, mas de compreender como essa mensagem foi
construída. Constituída diante do ambiente cultural e material pós-moderno11, devido
às características apresentadas, comumente se tornou reconhecida como a teoria
das materialidades da comunicação.

A teoria das materialidades da comunicação não se impõe como um


substitutivo ao paradigma hermenêutico, mas como uma perspectiva
alternativa, que questiona a primazia conferida ao sentido e ao
espírito na tradição intelectual do Ocidente. (FELINTO, 2001, p. 8).

11
Conforme afirmativa de Gumbrecht (1998a) e Felinto (2001). Indo além, conforme este último, deve
se ter o cuidado de rotulá-la aparte dos seguintes sentidos pós-modernos: nem no de declarar o fim
da interpretação em substituição por algum outro paradigma, nem no que busca uma teorização
rigorosa dos fenômenos da dita pós-modernidade, o que, em verdade, seria a simples troca de um
sistema totalizante por outro – posicionamento oposto do proposto pelo campo não hermenêutico.
29

Nesta teoria, sendo o ser humano um importante referencial, as relações do


seu corpo com os objetos são fundamentais, pois a cada acoplagem com uma
materialidade bem como às variadas tecnologias, são proporcionados diferentes
pensares.

Não é verdade, por exemplo, que a transição do uso da máquina de


escrever para o computador exige do usuário muito mais do que uma
acomodação automática a uma técnica diferente de registro? Não se
trata somente de uma técnica exterior ao processo cognitivo, pois,
assim como sabemos, por experiência própria, que o emprego do
computador favorece o surgimento de formas inéditas de raciocínio, o
mesmo se passou com a introdução de novas formas de
comunicação no passado. E o pleno entendimento dessas formas,
assim como das modificações provocadas pelo seu advento,
demanda uma atenção renovada à materialidade dos meios de
comunicação. (GUMBRECHT, 1998a, p. 18)

Reiterando isso, a relação de acoplagem com os objetos é um fator


determinante que afeta “ritmos corporais, configuração do espaço onde se situa o
aparato tecnológico e estruturação de seus mecanismos de interface” (FELINTO;
ANDRADE, 2005, p. 81).

Isto apenas significa que as conseqüências sociais e pessoais de


qualquer meio — ou seja, de qualquer uma das extensões de nós
mesmos — constituem o resultado do novo estalão introduzido em
nossas vidas por uma nova tecnologia ou extensão de nós mesmos.
(McLUHAN, 2002, p. 20).

Com isso, é pertinente ilustrar essa proposição com uma analogia citada por
Gumbrecht (1998a) e repetida por Müller A. (2012), referente às relações com os
aparatos disponíveis à época de Nietzsche 12, e no quanto estas podem ter lhe
influenciado, especialmente a máquina de escrever com a qual trabalhava, em um
momento em que se encontrava com sérias dificuldades visuais. Nietzsche foi o
mais notável usuário da máquina de escrever neerlandesa Malling-Hansen

12
Dentre a miríade de exemplos possíveis, destacam-se o acesso aos bem estabelecidos livros,
jornais, navios e trens, a moda, arquitetura e mobiliário da época, e aos incipientes telégrafo,
fotografia, gramofone, iluminação (a vela ou gás), bem como citada máquinas de escrever.
30

Schreibkugel13 – inusitado modelo esférico, de construção sólida, que foi escolhido


especialmente por ser leve e portátil para os padrões da época (EBERWEIN, 2005).

Figura 6 Imagem da Schreibkugel

(Fonte: Sítio Malling-Hansen.org, s/d)

A acoplagem ocorrida entre ele e essa máquina, pode ter influenciado seu
modo de pensar, resultante do movimento corporal imposto devido ao seu formato
arredondado, bem como das dificuldades com a mesma 14. Como um exemplo mais
direto dessa relação, Nietzsche chegou a ponto de escrever “Schreibkugel ist ein
Ding gleich mir: von Eisen Und doch leicht zu verdrehn zumal auf Reisen. Geduld
und Takt muss reichlich man besitzen Und feine Fingerchen, uns zu benuetzen” 15
(EBERWEIN, 2005, p. 12).
Mas não é preciso ir tão longe para encontrar analogia semelhante. A
escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, ao explicar porque abriu mão de usar
computador na criação de um de seus livros, comentou: “Tentei ser moderna, mas
não deu. É sensual a relação que tenho com minha máquina de escrever".

13
Em alemão, essa palavra quer dizer literalmente “bola de escrever”.
14
Toda a controversa relação de Nietzsche com sua máquina de escrever pode ser conferida no livro
Nietzches Schreibkugel, de Dieter Eberwein, sendo narrada de modo investigativo, enquanto ocorre o
processo de restauração da máquina, pertencente ao Das Goethe und Schiller Archiv, da Alemanha.
15
Tradução do autor: A bola de escrever é uma coisa como eu: feito de ferro e, ainda assim,
facilmente retorcido pelas jornadas. Para nosso uso, tanto quanto bons dedos, paciência e tato são
abundantemente necessários.
31

Figura 7 Relação de acoplagem - Nietzsche e Lygia Fagundes Telles

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Tendo isso em vista, é perceptível que um mesmo conteúdo, como uma


música, reproduzida pelos aparatos dominantes de cada época – vide na época de
Nietsche, por disco de cera a ser tocado em gramofone; já à época de Lygia
Fagundes Telles, do disco de vinil para toca-discos, passando pelo CD dos
aparelhos três em um, e chegando ao mp3 dos tocadores portáteis – produzem
diferentes performances, o que acarretam em variadas experiências estéticas e
sensoriais, e até mesmo ideológicas e políticas (MARCONDES FILHO, 2014).
Portanto, “the extension of any one sense alters the way we think and act — the way
we perceive the world. When these ratios change, men change” 16 (McLUHAN, 2001,
p. 41).
O que não está tão perceptível é que, nessa relação entre corpo e objeto –
acoplagem que geralmente se revela como extensão do corpo – que proporcionam
diferentes pensares, se podem ampliar capacidades inatas, de igual modo também
podem restringi-las. Esse aviso é trazido por Flusser ao apresentar sua teoria sobre
as imagens técnicas e a caixa preta, se valendo do exemplo do fotógrafo:

O fotógrafo profissional parece levar o seu aparelho a fazer imagens


segundo a intenção deliberada para a qual o fotógrafo se decidiu.
Análise mais atenta do processo fotográfico revelará, no entanto, que
o gesto do fotógrafo se desenvolve por assim dizer no “interior” do
programa do seu aparelho. Pode fotografar apenas imagens que
constam do programa do seu aparelho. Por certo, o aparelho faz o
que o fotógrafo quer que faça, mas o fotógrafo pode apenas querer o
que o aparelho pode fazer. De maneira que não apenas o gesto mas
a própria intenção do fotógrafo são programados. Todas as imagens
que o fotógrafo produz são, em tese, futuráveis para quem calculou o
programa do aparelho. São imagens “prováveis”. (FLUSSER, 2008, p.
33-34).

16
Tradução do autor: “a extensão de qualquer um dos sentidos altera a maneira como pensamos e
agimos – o modo como percebemos o mundo. Quando estas relações mudam, os homens mudam”.
32

Para que essa relação entre materialidades não se engesse, propõe-se a


quem possa interessar, a difícil tarefa de ir além de ser um funcionário (o simples
usuário, na terminologia flusseriana) de modo a desafiar a programação dos
aparatos. Sendo assim, deve-se conhecer o seu funcionamento aprofundadamente,
sendo capaz de fazer com que o aparelho realize aquilo que não foi programado
(FLUSSER, 2008). Se levado em questão que “o animal constrói somente seguindo
a medida e as necessidades da espécie a que pertence, enquanto o homem é capaz
de construir de acordo com as medidas de qualquer espécie” (DE MASI, 2000, p.
29), justamente cabe a este não se limitar por suas próprias extensões.

1.2 A mídia pelo turn alemão

A essa mudança no pensamento acadêmico alemão, caminho aberto por


esse novo paradigma gerado pelos estudos das materialidades da comunicação 17,
elaborou-se toda uma nova estruturação relativa aos estudos de mídia, e por isso
mesmo acabou por ser reconhecido como o media turn alemão.
Em se tratando do Brasil, a palavra mídia é relativamente recente, pois
apesar de sua raiz provir do latim, língua do qual o português se origina, sua adoção
no país ocorreu somente após percorrer um caminho maior e indireto: devido a
influência cultural, financeira, comercial e tecnológica proveniente da grande
expansão dos EUA, sendo um aportuguesamento advindo da língua inglesa, onde o
termo possui longa tradição. No caso brasileiro, ela foi introduzida inicialmente por
meio do vocabulário publicitário estadunidense, como forma reduzida de um novo
valor semântico inexistente no original latino, o de mass media, inicialmente sendo
traduzida como meios de comunicação de massa, para posteriormente surgir
propriamente como um substantivo (HOUAISS, 2009; MARCONDES FILHO, 2014).
Tradicionalmente, seu emprego no país ocorre com dois sentidos:
a) o primeiro a surgir, conforme acima citado, foi o de meios de comunicação
de massa, entendido como:

todas as instituições da sociedade que se servem de meios técnicos


de reprodução para a difusão da comunicação. Consideram-se aqui,
principalmente, livros, revistas, jornais produzidos de forma impressa,

17
Em seu livro “Produção da Presença” (2010), Gumbrecht conta detalhadamente essa mudança,
citando muitos dos eventos acadêmicos que nortearam essa virada do pensamento alemão.
33

mas também processos de reprodução fotográfica ou eletrônica de


qualquer tipo, na medida em que fabriquem produtos em grande
quantidade a um público indeterminado. Também a difusão de
comunicação pelo rádio faz parte desse conceito, na medida em que
for acessível a todos e não sirva apenas para manter a conexão
telefônica entre participantes individuais. (LUHMANN, 2005, pp. 16-
17).

b) de entendimento mais recente, também adquiriu o sentido de suporte


físico para gravação e transmissão, seja de arquivos analógicos quanto de digitais
(MÜLLER, A., 2012), especialmente popularizada no Brasil nos anos de 1990.
Mas apesar do entendimento de mídia se encontrar amplamente difundido
em nossa sociedade, devido a sua elevada polissemia, não a exime de apresentar
controvérsias e despertar acaloradas críticas, contribuindo para limitações ou até
mesmo imprecisões, situação que se apresenta desde sua introdução pela década
de 1960 até hoje. Adalberto Müller (2012) expõe de modo pertinente essas
oscilações de compreensão, proporcionadas por exemplo, quando em 1969, Décio
Pignatari optou por traduzir understanding media de McLuhan por meios de
comunicação, ou ainda em 2005, quando Ciro Marcondes Filho escolheu traduzir
Die realität der Massenmedien de Luhmann, por A realidade dos meios de
comunicação, após criticar enfaticamente no prefácio a adoção do termo mídia. Ou,
como entender pelo viés mcluhaniano que o termo inglês media, ou ainda pelo
entendimento luhmanniano, que o termo alemão massenmedien, possam se referir
apenas a meios de comunicação?
Em verdade, tanto no Brasil quanto em Portugal, é um termo que se
apresenta como um problema linguístico. Como previamente citado, possui raiz na
expressão latina media, plural de medium, possuindo os significados de meio, meio
condutor, instrumento mediador, centro, espaço intermediário, ligação entre dois
extremos e suporte onde reverberam sinais (FARIA, 1962; HOUAISS, 2009;
MARCONDES FILHO, 2014). É digno de nota que, a língua latina se apresenta com
plurais irregulares, característica não frequente no português contemporâneo (ex.:
mato [tipo de vegetação] e mata [que tem muito mato]), tendo como forma geral do
plural o acréscimo da consoante S ao fim de palavras (ex.: pé para pés). Mas nas
línguas germânicas, essa característica é amplamente presente, como no alemão
(ex.: fuß [pé] para Füße [pés]) e inglês (ex.: foot [pé] para feet [pés]), não
34

apresentando estranhamento a adoção de media e medium, diferentemente do que


poderia acontecer na língua portuguesa, ainda mais por sua introdução tardia no
Brasil.
Portugal fez a opção de tratar a palavra como latina, possuindo
questionamentos sobre manter media ou aportuguesar para média. Já o Brasil fez o
aportuguesamento fonético e gráfico de media por via do inglês norte-americano,
onde sua pronúncia soa aproximadamente como mídia18, possuindo como plural
mídias. Mas esses não são casos isolados, pois também ocorre no alemão, onde
medien é o plural germanizado do latim medium. Enfim, ao se utilizar do termo
mídia, se está abrangendo categorias diversas e inerentemente interligadas.

Por isso, acredito na riqueza semântica do termo mídia em português,


uma vez que a palavra pode significar várias coisas: 1) a mídia = os
meios de comunicação de massa; 2) a mídia = o suporte, o meio; 3)
as mídias = os diferentes veículos de comunicação; 4) as mídias = os
diferentes suportes ou meios, inclusive os de transporte, transmissão
e processamento. (MÜLLER, A., 2012, p. 125).

Figura 8 Caminho do termo mídia brasileiro: Latim > alemão > inglês > português

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Com base nos pressupostos apresentados, para esta pesquisa fica evidente
que a adoção do termo mídia não acarreta deméritos, sendo a forma utilizada no
decorrer deste trabalho, à exceção de citações estrangeiras. Ainda assim, devido a
sua elevada polissemia se manter, se faz necessário apresentar seu conceito
conforme aqui será utilizado, por meio de embasamento proveniente do media turn
alemão.

18
Conforme o Alfabeto Fonético Internacional, a pronúncia inglesa de media é identificado como
[’miːdɪə].
35

1.2.1 Um outro olhar para as mídias

Após serem estabelecidos os pressupostos da materialidade da


comunicação, não demorou para que, na sequência, esse desenrolar se debruçasse
nos estudos de mídia propriamente, pois como comenta Rajewsky (2012) as
definições e distinções sobre (e entre) mídias, depende do contexto histórico, ao
qual se está inserido.
Muitas das críticas direcionadas à McLuhan se apoiam em torno da sua
ampla definição do que poderia ser mídia. Críticas também surgem à falta de
sistematização que permita distinguir entre meio (mídia) e veículo: a exemplo do
rádio, que seria o veículo por onde são geradas ondas sonoras, sendo o ar o meio
(mídia) pelas quais essas são propagadas; ou também quanto ao cinema, este
sendo o veículo enquanto a luz é o meio (mídia), (MARCONDES FILHO, 2014), com
isso, mídia tenderia a ser transparente. Para McLuhan, devido a essa transparência,
em vez de percebermos as mídias, percebemos seu conteúdo, sendo a este que
dedicamos atenção.
Mas ao apresentar um posicionamento posterior, McLuhan diz ter
descoberto que “o conteúdo do meio é antes de tudo seu usuário. Aquele que fala
francês é o conteúdo da língua francesa, aquele que assiste televisão é o conteúdo
da televisão etc.” (L’EXPRESS, 2011, p. 02-03). De certa forma, isso torna o
questionamento sobre amplitude e distinção irrelevante, pois com isso, McLuham
abre caminho para o pressuposto de que, a compreensão sobre o que é mídia
depende de um posicionamento humano, ao reforçar a condição de que “all media
are extensions of some human faculty — psychic or physical”19 (McLUHAN, 2001, p.
26).
E, com isso, o conceito de mídia se apresenta inerentemente atrelado à luz
dos conceitos de cognição, informação, comunicação e cultura (MÜLLER, A., 2012),
o posicionamento defendido pelo media turn alemão, o qual assume -se como sendo
a definição inicial dessa virada no pensamento, as formulações propostas em 1988
por três acadêmicos alemães – Rainer Bohn, Eggo Müller e Rainer Ruppert. Para
estes, mídia seria tudo aquilo que transmite para humanos e entre humanos, um
signo (ou uma combinação de signos), com o auxílio de transmissores apropriados,

19
Tradução do autor: “Todas as mídias são extensões de alguma capacidade humana – psíquica ou
física”.
36

cruzando tanto distâncias espaciais quanto temporais (CLÜVER, 2006; 2007; 2011).
Essa definição se apresenta muito próxima a formulação de Flusser, quando
pergunta “Was ist ein Medium? Medien sind Strukturen in denen Codes
funktionieren”20 (FLUSSER, 1998, p. 271).Desse modo, como método apropriado à
busca por sentido, apresenta-se muito mais atrelado a semiótica, campo de estudo
pós-moderno se comparado ao pensamento hermenêutico, já citado como moderno.
E quando se fala “para e entre humanos”, não se está voltando ao paradigma
hermenêutico, mas sim reiterando o campo não-hermenêutico, no qual a
interpretação ocorre nas pessoas, mas não é conduzida só por elas, mas sim por
suas relações de acoplagem.
Para ilustrar essa mudança de perspectiva trazida pelo media turn alemão,
deve se ater ao seguinte posicionamento: todo suporte material deve ser entendido
como meio (do alemão mittel), podendo ser livremente acoplado; mas a partir do
momento em que este meio é percebido como suporte ou caminho para um signo,
ele se configura como mídia (do alemão medium). Com isso, o que cabe a ser
observado é que, a importância recai não mais na questão de algo ser ou não mídia,
mas sim o quanto ela é percebida e entendida como tal, o que ocorre pelo viés de
algum observador humano21, pois “mídias não são objetos, mas sim condições ou
possibilidades de formação de seus processos bem como da observação desses”
(PAECH, 2011, p.14).

Figura 9 Observador x Meio x Mídia

(Fonte: Elaborado pelo autor)

20
Tradução do autor: “O que é uma mídia? Mídias são estruturas onde os códigos funcionam”.
21
Por observador, entende-se por uma pessoa que assiste ativamente com argúcia, formulando juízo
de valor, influenciado por um determinado conjunto de possibilidades e convenções de uma época,
diferentemente do espectador, aquele que assiste passivamente a algo (CRARY, 2012). O
observador busca um sentido, o espectador repete um sentido.
37

Sendo assim, presume-se não haver desmerecimento nem atrito com as


abordagens sobre meio/mídia apresentadas por McLuhan. Com este pressuposto,
grande parte da produção humana, incluindo o próprio homem como indivíduo
socializado, pode ser entendido como mídia. Em verdade, é preciso atentar que, por
esse viés, a materialidade do corpo humano se apresenta como a mídia primordial –
um substrato biológico que, pelas práticas socioculturais históricas, é
simultaneamente influenciado e influenciador, sendo objeto central para o qual as
dinâmicas de acoplamentos entre meios e mídias são direcionadas (PEREIRA,
2006). Com isso, afirma-se:

a plausibilidade de se tomar o corpo como o primeiro e fundamental


meio de comunicação, especialmente quando se evoca contextos
específicos da historia da humanidade como aqueles referidos 'as
culturas orais. Dentro desta perspectiva, o corpo é o suporte
fundamental para as formas de comunicação presenciais, que
requerem linguagens tais como a fala e os gestos. O corpo, nesse
sentido, é a primeira mídia (no sentido de meio de comunicação),
condicionando à sua materialidade e aos seus limites percepto-
cognitivos as mensagens que através dele são expressas. (FELINTO;
ANDRADE, 2005, p. 89).

Com esse posicionamento, também se observa a presença de uma


característica tão naturalmente humana, refletida na relação entre meio e mídia: a de
não existirem verdades e concepções absolutas. Portanto, não deve existir
entendimento absoluto de que algo é somente um meio ou mídia, pois estes se
valem do posicionamento tomado pelo observador. Por exemplo, um certo objeto
para um mesmo observador, em momentos distintos pode ter entendimento diverso,
tanto percebido como mídia em um tempo, quanto meio em um outro. O mesmo
ocorre com observadores diferentes, ao se posicionarem em um mesmo momento
para um mesmo objeto. O que permite indagar sobre a existência de uma gradação
de midialidade.
38

Figura 10 Nível de midialidade

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Neste momento, se mostra pertinente a presença de exemplos.


Primeiramente, tome-se um livro em uma estante: ele será um suporte material
como mídia (alto grau de midialidade e baixo grau como meio), quando uma certa
pessoa o observar como um objeto rico em conteúdo para ser absorvido ele será um
suporte material como meio (baixo grau de midialidade e alto grau como meio),
quando uma certa pessoa o observar como um objeto para ser usado como apoio
para pé de mesa; ele será tanto um quanto outro (igual grau de midialidade e meio),
quando uma certa pessoa o observar como um objeto rico em conteúdo que não o
interessa, não o consumindo.

Figura 11 Exemplo do livro

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Para um segundo exemplo, tome-se uma pintura em tela, emoldurada e


disposta em uma parede. Para um observador, esse conjunto se apresenta como
uma mídia; para um outro, a moldura é apenas um objeto de armação (meio), e só o
quadro (mídia) importa; já outro crê que a tela é apenas um substrato (meio), sendo
a relevância depositada na pintura (mídia); e há ainda aquele que entende todo o
conjunto apenas como um objeto (meio) que deve ser transportado, guarnecido ou
limpo.
39

Figura 12 Exemplo do quadro

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Este exemplo é pertinente, na medida que traz à tona o seguinte


questionamento: é possível que uma mídia também seja uma arte? Uma abordagem
mais sensata, em vez disso, questionaria como uma arte pode não ser mídia, pois
com os pressupostos até aqui apresentados, é inegável que muitas das mídias – ou
suportes para signos – possam se apresentar plenamente como expressões
artísticas. Inclusive, Clüver apresenta como relevante nesse contexto, uma das
definições presentes no dicionário de inglês Merriam-Webster sobre mídia22 (no
caso, medium), o qual a entende como sendo “a mode of artistic expression or
communication”23 (CLÜVER, 2007, p. 30). Com isso, entende-se que: a) Nem todo
meio é mídia, mas toda mídia é um meio; b) Nenhum meio é arte e nem toda mídia é
arte; c) Mas toda arte é uma mídia. E de igual maneira como ocorre uma gradação
entre meio e mídia, se permite indagar sobre a existência de uma gradação entre
mídia e arte.
Figura 13 Nível entre mídia e arte

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Isso se torna melhor compreendido se, em vez de uma quadro, se valer de


uma sequência de quadros – uma produção cinematográfica: desse modo, um filme

22
Tal verbete pode ser conferido por meio do seguinte sítio: <http://www.merriam-
webster.com/dictionary/medium>.
23
Tradução do autor: “um modo de expressão artística ou de comunicação.”
40

pode ser entendido tanto como mídia quanto arte, e conforme o observador, pode
ser visto ou mais como uma construção artística, ou como uma construção midiática;
mas de igual modo, um filme também pode ser vislumbrado como uma compilação
(PAECH, 2011) ou um cluster (PETHŐ, 2010) de outras mídias e artes, sendo o
somatório das relações entre eles, a constituinte do filme em si.
Figura 14 Nível do filme - entre mídia e arte

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Com isso, o tradicional emprego do termo mídia no país se mostra


insuficiente perante o alargamento de seu alcance. Se antes o entendimento era
apenas como meios de comunicação de massa, agora se inclui a primazia dos
suportes físicos (aparatos técnicos ou não) por meio dos quais os signos são
produzidos, como “o corpo humano; tinta, pincel, tela; mármore, madeira; máquina
fotográfica; televisor; piano, flauta, bateria; voz; máquina de escrever; gravador;
computador; papel, pergaminho; tecidos; palco; luz etc.” (CLÜVER, 2011, p. 09),
sem ignorar os suportes que são tanto compilações de outras mídias quanto arte,
como “dance, music, electronic music, painting, sculpture, architecture, video,
speech, typography, writing, tattooing” 24 (CLÜVER, 2007, p. 30) e tantas mais.

Once “medium” instead of “art” has become accepted as the basic


category for the interdisciplinary discourse, the interrelationship of the
various media is conceived of as “intermediality.” This is how this
research area now understands the object of its investigations, rather
than as “the interrelations of the arts”.25 (CLÜVER, 2007, p. 30).

24
Tradução do autor: “dança, música, música eletrônica, pintura, escultura, arquitetura, vídeo, fala,
tipografia, escrita, tatuagem”.
25
Tradução do autor: “Uma vez que "mídia" em vez de "arte" se tornou aceito como a categoria
básica para o discurso interdisciplinar, a inter-relação das várias mídias é compreendida como
"intermedialidade." Esta é a forma como esta área de pesquisa agora entende o objeto das suas
investigações, em vez de "inter-relações das artes".
41

É por meio dessa mudança de perspectiva, que as questões sobre mídia


trazidas pelo media turn alemão culminam nos estudos de intermidialidade,
elemento norteador desta pesquisa. Se até agora foram observadas questões sobre
meio-mídia-arte e suas relações de acoplagem de forma individual, é por meio da
intermidialidade que se observam essas questões em um viés mais realista, onde
não se apresentam como estruturas isoladas, mas sim correlacionadas.

1.3 O entre lugar da intermidialidade

Foi em meados da década de 1960 que o multiartista Dick Higgins26 adotou


o termo intermedia para descrever sua produção artística, se valendo do termo
cunhado em 1812 pelo poeta Samuel Taylor Coleridge27, em sentido bastante
contemporâneo: “para definir obras que estão conceitualmente entre mídias que já
são conhecidas” (HIGGINS, 2012, p. 46). Já a sua introdução na língua alemã como
intermedialität se deu por um artigo escrito por Hansen-Löve28 (SCHRÖETER, 2011,
p. 2), sobre a relação entre palavras e imagens na arte moderna Russa, publicado
no ano de 1983 – justamente a década e o tipo de questionamento que aflorava no
media turn alemão, sendo, desde então, amplamente adotado pelo “léxico técnico-
científico das principais línguas ocidentais” (MENDES, 2011, p. 03), como no francês
intermédialité, o espanhol intermedialidad, no italiano intermedialità, e trazida ao
Brasil como intermídia e intermidialidade29.
Assim como ocorre com mídia, intermídia tem sua raiz no latim, no qual o
próprio termo latino inter refere-se a: entre; no interior de dois; no espaço de; relação
recíproca30 (HOUAISS, 2009; MARCONDES FILHO, 2014). Com isso, a própria

26
Dick Higgins (1938 a 1998) foi um compositor, poeta, tipógrafo e teórico inglês, sendo um dos
primeiros integrantes do significante movimento artístico Fluxus.
27
Samuel Taylor Coleridge (1772 a 1834), foi um poeta, crítico e ensaísta inglês, um dos fundadores
do romantismo na Inglaterra.
28
Prof. Dr. Aage Hansen-Löve é um acadêmico alemão, especialista em filologia eslava na
Universidade Ludwig Maximilian de Munique.
29
Conforme explicação anterior, relativo a escolha pela adoção do termo mídia, esta pesquisa optou
pela continuidade desse uso – portanto se usará intermídia (em vez de intermedia) e intermidialidade
(em vez de intermedialidade). Porém, em citações – muitas estrangeiras –, ambas formulações se
encontram presentes.
30
É digno de nota que, no português, apesar de amplamente adotado o prefixo “inter”, este possui
como contraparte aportuguesada o prefixo “entre”, trazendo os sentidos de interposição e
reciprocidade. Portanto, poderia se pensar no uso do termo como entremedialidade.
42

“etimologia do termo ‘intermidialidade’ nos traz de volta ao jogo de ‘estar no entre-


lugar’, um jogo com vários valores ou parâmetros em termos de materialidades,
formatos, ou gêneros e significados” (MÜLLER, J., 2012, p. 83), constituindo-se da
relação entre os diversos meios e produtos midiáticos.
Esse posicionamento é distinto do pensamento que, ainda hoje, se encontra
institucionalizado, mesmo tendo sido formulado durante o Renascimento: o
entendimento no qual se deveria categorizar e dividir cada expressão como
elemento distinto. Nesse olhar, cada ciência, mídia, arte etc. pertence a um
“universo próprio”, de regras e fronteiras bem estabelecidas, no qual só poderiam se
apresentar (ou existir) puras – só é pintura se for constituída de tinta sobre tela;
esculturas são rígidas e não pintadas; música é música, teatro é teatro etc. –
possuindo enfim, uma abordagem essencialmente mecanicista que, apesar de
perdurar até os dias de hoje, gradativamente foi se enfraquecendo (HIGGINS, 2012).
O surgimento da Ópera, logo após o término do período renascentista,
poderia ser entendido como um exemplo desse enfraquecimento – em verdade,
quase uma cisão nesse pensamento – pois se apresenta como uma perfeita união
entre teatro e música, sendo “one of the many areas that would not be adequately
covered by the standard practices of any of the traditional single arts disciplines” 31
(CLÜVER, 2007, p. 24). Mas sua vanguarda artística logo se pragmatizou, criando
em torno de si seu próprio universo de fronteiras estritamente delimitadas, se
adequando ao pensamento da época.
Esse posicionamento se apresenta especialmente datado, se levado em
consideração que a própria cultura é resultante das trocas e transmissões entre as
mais variadas tradições e inovações, por meio de interações contínuas. Para
Lehtonen (2001), a cultura se apresenta como multimodal – entendida como as
práticas sociais que se realizam por mais de um código, o que caracteriza as formas
simbólicas humanas. Com isso:

All symbolic forms are multimodal by nature, which means that they
simultaneously utilize several material-semiotic resources. However,
as such, multimodality always characterises one medium at a time.

31
Tradução do autor: “uma das muitas áreas que não seriam adequadamente englobada pelo estalão
de qualquer uma das conservadoras disciplinas das artes individuais”.
43

Intermediality, again, is about the relationships between multimodal


media.32 (LEHTONEN, 2001, p. 75).

Mas esse enfraquecimento culminou com as mudanças no pensamento


vigente, ocorridas no séc. XX, dentre elas os avanços técnico-científicos,
particularmente após a revolução digital, que permitiram assentar o seu
posicionamento pós-moderno, ao entender que cada meio, mídia e arte, não se
apresentam como expressões puras e mônadas, mas sim, de um modo muito mais
plausível, ao compreendê-las como estruturas correlacionadas, interdependentes e
em contínuo diálogo, gerando constantes ressignificações mútuas, nos mais
variados níveis.
Ademais, esse século trouxe uma mudança no pensamento por meio de
conceitos como da teoria da relatividade, que tornou ultrapassada a abordagem
essencialmente mecanicista do pensamento científico. E para além das paredes dos
centros de pesquisas de física quântica, o media turn alemão se apresenta correlato
ao pensamento relativista, pelo qual observadores diferentes oferecem visões
perfeitamente plausíveis, ainda que díspares, de um mesmo efeito. Portanto,

Quase todas essas formas de expressão e comunicação estão


institucionalizadas isoladamente; as disciplinas a elas dedicadas
desenvolveram seus próprios métodos considerando os materiais (e
“mídias”, num outro sentido da palavra) dos objetos dos quais elas se
ocupam e as funções culturais e sociais; além disso, todas elas têm
consciência de sua própria identidade. Enquanto os teóricos das
mídias, na sua maioria, concordam que eles trabalham com formas
mistas, nas quais elementos verbais, visuais, auditivos, cinéticos e
performativos agem conjuntamente, as disciplinas dedicadas às artes
tradicionais, freqüentemente, têm dado pouca atenção a essas
formas mistas que surgem em seu âmbito e não desenvolveram
quaisquer métodos adequados que lhes fizessem justiça – até que
elas se tornaram um objeto de estudo importante para os Estudos
Interartes. O fenômeno dessas formas mistas também é denominado,
no uso corrente alemão, “intermidialidade”. (CLÜVER, 2006, p. 19).

32
Tradução do autor: “Todas as formas simbólicas são multimodais por natureza, o que significa que
utilizam simultaneamente vários recursos semiótico-materiais. No entanto, como tal, multimodalidade
sempre caracteriza uma mídia de cada vez. Intermedialidade, novamente, é sobre as relações entre
mídias multimodais”.
44

Figura 15 Relação observador > meio > mídia > arte > intermídia

(Fonte: Elaborado pelo autor)

O que se apresenta em jogo na intermidialidade é o “estudo dos diferentes


níveis de materialidade implicados na constituição de objectos, sujeitos, instituições,
comunidades, que só uma análise das relações pode evidenciar” (MENDES, 2011,
p. 3). Com esse pressuposto, observa-se então que, a questão chave da
intermidialidade se dá nas relações – distintamente reconhecíveis pelo observador –
entre mídias (entendida como um tipo específico de meio) e entre artes (entendida
como um tipo específico de mídia), em um processo pelo qual efetuam-se
cruzamentos e inter-relações que as transformam mutuamente. Isto acaba borrando
suas delimitações originais e convencionadas, de tal modo que proporcionam
possibilidades e entendimentos originais, como criar tanto uma nova mídia quanto
nova arte (VERSTRAETE, 2010).
Em sua vanguarda característica, Benjamin antevê este posicionamento em
passagens de seu célebre texto sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte,
como quando comenta “se o jornal ilustrado estava virtualmente oculto na litografia,
também na fotografia está o filme sonoro” (BENJAMIN, 2008, p. 3), que o aproxima
da posição de Jenkins, ao afirmar que uma mídia surgida não desaparece, só
modificam-se os veículos ou modos de distribuição, pois “palavras impressas não
eliminaram as palavras faladas” (JENKINS, 2009, p. 41). E indo além, Benjamin
também comenta sobre quando, à sua época, os meios técnicos atingem

um nível tal que começara a tornar objecto seu, não só a totalidade


das obras de arte provenientes de épocas anteriores, e a submeter os
seus efeitos às modificações mais profundas, como também a
conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos.
(BENJAMIN, 2008, p. 3).
45

O que à primeira vista, apresenta-se de modo complexo, é mais facilmente


vislumbrado ao se valer da premissa que, a materialidade do corpo humano se
apresenta como a primeira mídia: esta não se apresenta como uma concepção
imaculada, completamente isolada de fatores externos, sempre se apresentando
inalterada. Muito pelo contrário, uma pessoa-mídia não somente é o resultante de
outras duas pessoas-mídia (seus pais), como também o é pelo somatório de todas
as relações de acoplagem com outras pessoas-mídia e objetos-mídia, bem como
dos meios, através do tempo de sua existência. Portanto, isso se dá através de uma
interdependência em contínuo diálogo, gerando constantes hibridizações e
ressignificações mútuas, nos mais variados níveis. E assim o é com cada mídia 33.

1.3.1 Um termo guarda-chuva

O que fora acima apresentado, pode ser definido como o sentido mais
amplo, portanto mais abrangente da intermidialidade, o que a mantém
genealogicamente próximo dos conceitos de interdisciplinaridade,
multidisciplinaridade e transdisciplinaridade.
Mas é preciso esclarecer que este conceito não deve ser entendido como
uma solução mágica, na qual basta haver alguma relação entre mídias, dizer
intermidialidade e tudo se explica. Em verdade, em seu viés mais estrito, deve ser
entendida desde o início como um conceito guarda-chuva, englobando uma
variedade de estudos que partilham uma abordagem crítica semelhante, o que a
posiciona diante dos mais variados campos de pesquisa, não só nos estudos de
mídia, mas nos literários, de cinema, na sociologia, história da arte, entre outros,
proporcionando as mais diversas abordagens e diversidade de autores referenciais.
Com isso, a primeira, que acabou guiando muitas das formulações iniciais
do campo, foi a intertextualidade, proposta por Julia Kristeva ao fim da década de
1960; a essa se somam multimidialidade; plurimidialidade; transmidialidade;
mixmídia; convergência; hibridização; fusão; remediação; tradução; transcriação;
adaptação etc. (RAJEWSKY, 2005; MENDES, 2011; MÜLLER, A., 2012).

33
Como anteriormente apontado sobre mídia, seus estudos se restringem aos acoplamentos que
tenham o humano como observador, pois ao se embasar no transmitir e interpretar signos, excluem-
se tanto os outros animais (CLÜVER, 2011) quanto o desenvolvimento de inteligência artificial, por
ainda se encontrarem em um estágio tanto incipiente quanto insipiente – questão que pode ser
revista em um futuro, conforme se avançam pesquisas e se mudam referenciais.
46

Figura 16 Intermidialidade como conceito guarda-chuva

(Fonte: Elaborado pelo autor)

A intermidialidade se apresenta como uma forma de interligar todos esses


conceitos, que compartilha muitas de suas definições ou ações. Mas, quais seriam
as diferenças entre esses conceitos? Seriam:

the various media overtly visible within a work, if so which ones (this is
sometimes called multimediality)? Or does one medium dominate over
the other (as is the case in adaptations)? Are the mixtures extensively
present, or do we only discern fleeting moments? Are they intended or
unexpected effects? Are the various media harmoniously integrated or
do they alter and transform each other (in some cases one medium
may even begin to imitate the other). Are the crossovers
institutionalized (as a genre, for instance opera), or radically hybrid? 34
(VERSTRAETE, 2010, pp. 10-11).

Primeiramente, é possível que as diferenças entre intermidial, multimidial,


plurimidial, mixmidial e transmidial sejam “a matter of differences in the degrees and
scales of intermediality manifested in particular cases” 35 (VERSTRAETE, 2010, p.
10), que na visão de Clüver (2006; 2007) se diferenciariam pelo tipo de relação – na

34
Tradução do autor: “as várias mídias abertamente visíveis em uma obra, e em caso afirmativo quais
(às vezes denominado multimidialidade)? Ou será que uma mídia domina outra (como no caso de
adaptações)? Estariam as misturas amplamente presentes, ou só discernimos momentos fugazes?
São eles resultados intencionais ou inesperados? Estariam as diversas mídias harmoniosamente
integradas ou elas alteram e transformam umas as outras (em alguns casos, uma mídia pode até
começar a imitar outra). Seriam os cruzamentos institucionalizados (como gênero, a exemplo da
ópera), ou radicalmente híbridos?
35
Tradução do autor: “uma questão de variação nos graus e escalas da intermedialidade,
manifestada em casos particulares”.
47

intermídia é união/fusão; na multimídia é justaposição; a mixmídia é combinação; e


na transmídia a transposição. Abaixo, explicar-se-ão as mais pertinentes a esta
pesquisa.
As relações de multimidialidade ou plurimidialidade36, compõe-se de
elementos complexos – mídias diversas, que por si só são autossuficientes – em
uma coesa interdependência, que se justapõe. Os exemplos são dos mais diversos,
englobando revistas, canções, teatro, ópera, cinema etc. (CLÜVER, 2007; 2011). De
modo semelhante ocorre com as relações mixmídia, mas seus elementos não
possuem coerência ou autossuficiência fora do contexto de sua combinação. Dentre
os inúmeros exemplos, têm-se cartazes publicitários e histórias em quadrinhos.
Interessante perceber que a “ópera, enquanto modelo textual, é multimídia;
enquanto encenação e apresentação, é uma mescla de elementos multimídias e
mixmídias” (CLÜVER, 2006, p. 19).
A intertextualidade, oriunda dos estudos literários e com uma raiz
hermenêutica, em sua essência se apresenta como a “condição segundo a qual um
texto não pode ser compreendido a não ser a partir de outros textos e contextos”
(OLLIVIER, 2012, p. 363), pois não é possível que se crie ou encontre um texto
como uma expressão pura. Portanto, um texto sempre faz referência a outro texto.
Já o seu viés pelo media turn deve ser entendido como uma reorientação do eixo de
pesquisa (MÜLLER, J., 2012), no qual “these ‘other texts’ are not, nor is that ‘textual
knowledge’, always and necessarily derived from the same medium”37 (LEHTONEN,
2001, p. 75). Com isso, a relação entre textos de modo a originar novas expressões,
se apresenta plural – podendo ser tanto oriundo de romances, poemas, músicas,
publicidade etc. quanto a resultá-los.
Na convergência das mídias, tem-se o deslocamento do conteúdo de uma
mídia para outra, onde seu conteúdo é replicado. Portanto, a mesma história é
contada de várias formas, em várias mídias distintas. Ainda assim, é preciso reiterar
a totalidade da convergência que “ocorre dentro dos cérebros de consumidores
individuais e em suas interações sociais com outros” (JENKINS, 2009, p. 30). Como

36
Em Clüver é apresentada uma certa diferenciação entre ambas: “enquanto ‘plurimidialidade’ se
refere a presença de várias mídias dentro de uma mídia como o cinema ou a opera, chamamos de
‘multimidialidade’ a presença de mídias diferentes dentro de um texto individual” (CLÜVER, 2011, p.
15).
37
Tradução do autor: “nem estes ‘outros textos’, nem seus ‘contextos’, são sempre e
necessariamente derivados da mesma mídia”.
48

exemplo, basicamente a maioria das produções atuais podem se enquadrar, pois um


livro passa às telas, desses ao DVD e BluRay, vira streaming38 etc.
Já a transmidialidade é uma forma de convergência das mídias, focada na
expansão do conteúdo através de múltiplas plataformas midiáticas, onde cada parte
individualmente contribui para apreensão do conjunto, ampliando a experiência do
observador, entendido também como consumidor. Não é o mesmo conteúdo
replicado, mas sim expansões desse conteúdo. E deste modo, “cada acesso à
franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do
game, e vice-versa. Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia
como um todo” (JENKINS, 2009, p. 138). A saga Star Wars e a trilogia Matrix são
exemplos notórios, ao começarem como filme, se expandindo para livros, histórias
em quadrinhos, animações, videojogos etc.
A tradução possui entendimento universal, compreendido como a
transposição de um idioma para outro, buscando restituir um significado original de
um no outro. Devido a “a book, for example, is not meaning and materiality—but
meaning and pages, characters, a cover, (very often) pictures, impressions of touch,
impressions of smell, and more” 39 (GUMBRECHT, 2003, p. 177), essa tradução no
contexto da intermidialidade, se apresenta em seu sentido mais amplo: pela
transposição entre suas mídias. Como isso vai além de uma literalidade – pois é
preciso transpor estruturas, ritmos etc. –, a tradução, em seu processo de
“interpretar, representar e traduzir são modos de transcriar” (PINTO NETO, 2012, p.
411), na concepção de Haroldo de Campos. Portanto, a transcriação40 é justamente
uma tradução criativa, e que nesse contexto dos processos intermidiáticos, se
apresenta como sinônimo de adaptação.
Agora, tanto hibridização (hibridismo), bem como fusão, quanto colagens, se
apresentam como sinônimos dos processos intermidiáticos, de difícil distinção entre
multi- pluri- mix- mídia, mas de terminologia igualmente válida e que agem “como
uma subcategoria da “intermidialidade” (MÜLLER, J., 2012, p. 86). Em especial, a

38
O streaming, ou fluxo de mídia, é uma forma de transmissão digital de dados por demanda, como o
proporcionado pelos serviços de internet Youtube.com e Netflix.
39
Tradução do autor: “um livro, por exemplo, não é sentido e materialidade – mas sentido e páginas,
personagens, uma capa, (muito frequentemente) imagens, vestígios de tatilidade, vestígios de cheiro,
e mais”.
40
Transcriação é a justaposição entre as palavras inglesas translation e creation, originalmente
formando transcreation.
49

ideia do híbrido possui um impacto significativo em McLuhan, o qual caracteriza


como um cruzamento, interpenetração ou encontro entre mídias, que “constitui um
momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma nova” (McLUHAN, 2002, p.
75). Portanto, suas afirmações também fundamentam o que viriam a ser os estudos
sobre intermidialidade.
No conceito de remediação é preciso uma atenção especial, pois o
entendimento literal dessa palavra, tanto no português (datada do séc. XV) quanto
no inglês (inclusa no séc. XVIII) são traduções literais do termo latino remed(ium,
iare), com os sentidos primários de “remédio, curar, reparar”, e secundários
(somente em português) de “aliviar falta ou dificuldade”, e “prover, abastecer,
fornecer” (FARIA, 1962; HOUAISS, 2009; OXFORD, 2015). Já o sentido
apresentado por Bolter e Grusin em seu livro Remediation (2000) é o de re-
media(tion) – onde re (prefixo de repetição) media (o substantivo mídia) tion (sufixo
de ação) – que em aproximação gramatical brasileira, seria a “ação de mediar
novamente”, mas que pela definição adotada por esta pesquisa, seria melhor usar o
termo remidiar e remidiação, ou por proximidade lexical, se valer de remidiatizar41,
evitando confusão semântica.
Enfim, apesar de ser norteado pelas mudanças trazidas pelo ambiente
digital, o conceito de remediação trazido pelos autores é “the representation of one
medium in another”42 (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 45), e além, afirmam que “all
mediation is remediation” 43 (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 55) pois,

ao apropriar-se de conteúdos e formas de media anteriores, ou de


outros media, cada dispositivo retrabalha, reedita, recria ou readapta
esses conteúdos e formas, ajustando-as suas capacidades próprias:
o cinema “remediou” a fotografia, a música e o teatro, como a
fotografia tinha “remediado” a pintura obrigando-a a afastar-se da
mimesis mais ou menos naturalista; o teatro pode “remediar” o vídeo,
a música, a performance, as “belas-artes” e o cinema. As artes
cénicas, o cinema e a televisão “remediaram” conteúdos e formas da
banda desenhada, das literaturas “maiores” e “menores”, do mesmo
modo que artes e culturas eruditas “remediaram” artes e culturas
populares, e vice-versa, e que jogos de computadores “remediaram”
sagas míticas ou arquetipais e epopeias. (MENDES, 2011, p. 16).

41
Portanto, no decorrer desta pesquisa, quando aparecer o uso de remediar e remediação, se deve
compreender nesse sentido atrelado a mídia – o processo pelo qual ocorre uma transformação, uma
nova mídia.
42
Tradução do autor: “a representação de uma mídia em outra”.
43
Tradução do autor: “toda mediação (midiação) é uma remediação (remidiação)”.
50

Com isso, remediação se apresenta como “a particular kind of intermedial


relationship”44 (RAJEWSKY, 2005, p. 49), ou até mesmo, como ocorre com a
hibridização, ser uma outra denominação para o mesmo processo.
É pertinente observar que, a cada uma dessas abordagens, diversos
(sub)fenômenos intermidiáticos se apresentam atrelados, como:

transposition d’art, filmic writing, ekphrasis, musicalization of literature,


as well as such phenomena as film adaptations of literary works,
“novelizations,” visual poetry, illuminated manuscripts, Sound Art,
opera, comics, multimedia shows, hyperfiction, multimedial computer
“texts” or installations, etc.45 (RAJEWSKY, 2005, p. 50).

Em busca de ordenar essas relações de intermidialidade, Gumbrecht propõe


que o conceito pode ser classificado em dois grandes grupos, aos quais denomina
level of transposition (nível de transposição) e level of interference (nível de
interferência):

“Level of transposition” would refer to the classical question of how


certain motifs, meanings, or plots undergo transformations as they
become articulated in different media: in books or on the stage, in
films or in TV-features. (…) The “level of interference,” in contrast,
would deal with those cases where the dimension of meaning is in a
complex relationship with not just one but with several dimensions of
materiality at the same time.46 (GUMBRECHT, 2003, pp. 176-177).

Já Rajewsky (2005; 2012) e Clüver (2006; 2007) propõe classificá-los pelo


menos em três grupos básicos, no qual todos esses fenômenos, de algum modo,
seriam englobados:

44
Tradução do autor: “uma variedade particular de relação intermidial”.
45
Tradução do autor: “transposição de arte, escrita fílmica, écfrase, musicalização da literatura, tanto
quanto fenômenos como adaptações cinematográficas de obras literárias, novelizações, poesia
visual, iluminuras, arte sonora, ópera, história em quadrinhos, espectáculos multimídia, hiperficção,
‘textos’ multimídia computacionais ou instalações, etc”.
46
Tradução do autor: “’Nível de transposição’ remete a clássica questão de como determinados
temas, propósitos, ou enredos sofrem transformações à medida que forem articuladas em diferentes
mídias: em livros ou no palco, em filmes ou produções televisivas. [...] O "nível de interferência", em
contraste, iria lidar com aqueles casos onde a dimensão do significado está em uma complexa
relação com não apenas um, mas com várias dimensões da materialidade, ao mesmo tempo”.
51

Classificação por Rajewsky Classificação por Clüver


Transposição entre mídias Transformação de uma mídia em outra
Combinação entre mídias Combinação (fusão) de mídias
Referencialização entre mídias Relações gerais entre mídias
(Fonte: Elaborado pelo autor)

Abaixo se apresentam as definições conforme proposto por Rajewsky:


A transposição intermidiática ocorre quando mídias são transformadas ou
transpostas para outra mídia, com isso há uma mídia fonte, inicial, que norteará a
nova mídia formada. Como exemplos, as categorias de adaptação, tradução,
transcriação, transmídia e remediação, ocorrendo como adaptações fílmicas de
textos literários, adaptações literárias de filmes, modelizações etc.
Por combinação intermidiática, entende-se a intermidialidade como um
conceito comunicativo semiótico, baseado na combinação de ao menos duas mídias
distintas em sua materialidade, que contribuem na constituição e no sentido, ao levar
a formação de um novo e autônomo gênero de arte ou mídia. Como exemplos, as
categorias de multimídia, plurimídia, mixmídia, hibridização, fusão e remediação, se
apresentando como ópera, filme, teatro, performances, iluminuras, instalações
artísticas sonoras ou computadorizadas, histórias em quadrinhos etc.
Já na referenciação intermidiática, também se apresenta como um conceito
comunicativo semiótico, mas que se vale das especificidades de uma única mídia,
que virá a referenciar uma outra mídia distinta, tendo como resultante uma relação
parcial ou total com o seu referencial. Portanto, por definição, somente uma mídia
está materialmente presente, que tematiza, evoca ou imita elementos e estruturas
da mídia referenciada. Ela pode ocorrer em todas as categorias intermidiáticas, e
pelos mais diversos fenômenos, se apresentando, por exemplo, em textos literários
que evocam ou imitam técnicas fílmicas, ou referenciam diretamente a um filme ou
gênero fílmico; também em filmes que referenciam a uma pintura, ou uma pintura
que o faz de uma fotografia; além de écfrase, musicalização da literatura etc.
52

É preciso levar em consideração, reforçando a não existência de fronteira


delimitadas, que essas relações certamente preenchem os critérios de mais de uma
das categorias, até mesmo de todas – como se verificará, no caso do objeto desta
pesquisa.

As films, for instance, film adaptations can be classified in the


category of media combination; as adaptations of literary works, they
can be classified in the category of medial transposition; and if they
make specific, concrete references to a prior literary text, these
strategies can be classified as intermedial references.47 (RAJEWSKY,
2005, p. 53).

Neste ponto, cabe uma observação sutil, mas pertinente, especialmente


perceptível em mídias (áudio)visuais, como em filmes, pinturas, fotografias,
videojogos etc. nos quais a representação de uma mídia em outra, por exemplo, a
presença de uma pintura em um filme, “will not contain the painting as such, but the
formulation of its media qualities in the form of its representation in the other
medium”48 (PAECH, 2011, p. 15). Um dos exemplos mais palpáveis seria a obra La
trahison des images (em português, A Traição das Imagens), pintura célebre de
Magritte49. Nela, um cachimbo pintado de forma realista é acompanhado pelo
enunciado, também pintado, Ceci n'est pas une pipe (em português, Isto não é um
cachimbo), fazendo ao observador indagar que aquilo que se frui, não é em verdade,
o que diz ser.
Essa é uma pintura que quebra o conceito da “quarta parede”, e a cada vez
que se apresenta reproduzida, possui novas materialidades, que proporcionam
distintos acoplamentos, em uma relação de intermidialidade. Como apresentado
nesta pesquisa, ela é: um impresso em papel, oriunda de sua versão digital inserida
em um processador de texto, que por si, é a inserção de uma cópia digitalizada de
uma fotografia da pintura original, reprodução em meio fotossensível por exposição

47
Tradução do autor: “Como filmes, por exemplo, adaptações cinematográficas podem ser
classificadas na categoria de combinação intermidiática; como adaptações de obras literárias, podem
ser classificados na categoria de transposição midiática; e se fazem referências específicas e
concretas a um texto literário anterior, essas estratégias podem ser classificadas como referências
intermidiáticas”.
48
Tradução do autor: “não conterá a pintura como tal, mas a formulação das suas qualidades midiáis,
sob a forma da sua representação em outro meio”.
49
René Magritte (1898 a 1967) foi um renomado pintor surrealista belga, conhecido por suas imagens
instigantes.
53

à pintura original, que por si só, possui outros níveis artístico-midiáticos (conforme
demonstrado anteriormente pelo exemplo do quadro).

Figura 17 A Traição das Imagens de Magritte

(Fonte: Wikiart.org)

Para Clüver (2006), nessas ocorrências, não são relevantes


questionamentos sobre uma fidelidade a mídia original, pois de fato, uma nova
instância não substitui o original – o que é relevante, isso sim, são indagações do
quanto a intermidialidade influencia no observador a recepção tanto da mídia original
quanto da mídia procedente.
Com isso, intermidialidade pode ser entendida tanto como uma condição
fundamental, quanto uma categoria para análises críticas das configurações
midiáticas (RAJEWSKY, 2005) e que abrange um complexo sistema para análise
dos elementos envolvidos – a relação estabelecida entre mídias –, sendo uma
escolha pertinente para esta pesquisa.

1.4 Desdobramento teórico

É por meio dessa fundamentação teórica apresentada, que se obtém as


bases fundamentais para a produção deste trabalho, tendo no entendimento de
Mendes que, “trabalhar na área das intermedialidades significa sobretudo investigar”
(2011, p. 18). Continuando no pensamento desse autor, as pesquisas em
intermidialidade envolvem cada vez mais criativos, como designers.
54

Para Jost (apud MÜLLER, A., 2012) existem três possibilidades de


pesquisas intermidiáticas: a relação entre as mídias, a relação entre as mídias de
massa, e a migração das artes para as mídias de massa. Como visto, sendo a
ausência de fronteiras rígidas um dos pressupostos da intermidialidade, esta
pesquisa acaba por englobar ambas as possibilidades, em maior ou menor grau, ao
relacionar a passagem de uma obra literária em livro para uma obra cinematográfica,
os quais:

Tanto para os estudos de literatura quanto para os de cinema,


interessa compreender os processos de mutação, transformação,
transferência, tradução, adaptação, citação, hibridação entre as duas
mídias, e ainda em relação a outras mídias. Entender de que modo
ambas (literatura e cinema) representam (ou deixam de representar)
a realidade, ou se auto-representam, a partir de suas relações.
(MÜLLER, A., 2012, p. 173).

Justamente esta é a busca desta pesquisa, a se realizar por meio dos


procedimentos de análise da intermidialidade presentes na obra Jogos Vorazes, não
se limitando apenas às relações ocorridas pela passagem da materialidade livro
para a materialidade filme, mas sim entendendo cada uma dessas mídias também
como uma compilação ou arcabouço, que contém outras mídias e expressões
artísticas.
Figura 18 compilação ou arcabouço de mídias e expressões artísticas

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Portanto, apesar da “most mainstream theoretical writings […] treat film as a


monomedial entity, without taking into account its intermedial aspects even in newer
55

works”50 (PETHŐ, 2010, p. 46) e de fazer “much more sense to observe and to
describe film as a compilation of media (instead of a piece of art or text)”51 (PAECH,
2011, p. 13), não se pode esquecer que o mesmo entendimento também deve ser
aplicado ao livro.
Mas para esse entendimento, não se pode esquecer de outro pressuposto
apresentado – o entendimento da necessidade de haver um referencial – o
observador – para que a atribuição de sentido seja feita. Com isso, o desdobramento
teórico dessa pesquisa ocorre pelo viés do seu autor, por meio de inúmeros
acoplamentos, abrangendo posicionamentos que podem estar de acordo ou não
com outros observadores – especialmente por ser uma área de estudo recente,
considerada ainda como um Suchbegriff – um conceito de investigação ou em
andamento (MÜLLER, J., 2012), se apresentando como:

um eixo de pesquisa cujo objetivo não será a constituição de uma


meta-teoria ou taxonomia de todos os sistemas de mídias, mas irá
envolver estudos históricos meticulosos de processos intermidiáticos
paradigmáticos ou encontros em níveis diferentes em relação as
modalidades especificas a serem diferenciadas em categorias
“materiais”, “sensoriais”, “espaço-temporais” e “semióticas”.
(MÜLLER, J., 2012, p. 84).

Nesse sentido, é preciso ter cuidado para que, assim como fora criticado o
amplo posicionamento de McLuhan, ao se valer dos estudos da Intermidialidade, a
amplitude do conceito permitiria uma vasta gama de possibilidades de pesquisa e
análises, mas que na mão de um observador leviano, em primeira instância
basicamente qualquer coisa poderia ser definida como mídia. Como comenta Müller,
“não sou a favor de uma pan-intermidialização de todos os fenômenos sociais,
como, por exemplo, rotular os movimentos de migração como intermidialidade”
(MÜLLER, J., 2012, p. 86). A solução para essa questão é se valer de uma
coerência contextual à pesquisa (e ao seu objeto), para que essa inclusive se torne
plausível.
A esta pesquisa, poderia se valer de um recorte mais limitado, entendendo
apenas as relações da transposição entre a materialidade livro e cinematográfica de

50
Tradução do autor: “maioria dos escritos teóricos tradicionais [...] trata o filme como uma entidade
monomidial, sem levar em conta os seus aspectos intermidiais, mesmo em trabalhos mais recentes”.
51
Tradução do autor: “muito mais sentido observar e descrever o filme como uma compilação de
mídia (em vez de uma peça de arte ou texto)”.
56

Jogos Vorazes. Mas esta pesquisa também possui o entendimento dessas


materialidades como compilações, ampliando a esfera de atuação de ambas: o livro
como matriz principal a toda uma gama de materialidades que lhe são diretamente
dependentes (áudiolivro, as traduções e os jogos de tabuleiro); bem como o filme
como matriz principal a toda gama de materialidades que lhe são diretamente
dependentes (videojogo e internet). E, em um último nível desse recorte, as
possíveis referências a outras obras e mídias, contidas tanto no livro quanto no
filme. Este é um recorte amplo, mas que se mantém ao contexto da pesquisa – que,
caso não fosse respeitado, poderia seguir ad infinitum, perdendo sua relevância.
São justamente nessas referências a outras mídias que se apresenta um
segundo objetivo desta pesquisa: entender que a relação entre mídias também
envolve críticas à nossa sociedade, pois a “intermidialidade também teria de incluir
as dimensões das funções sociais dos processos intermidiáticos e esta dimensão
terá de ser relacionada as interações entre as séries culturais e tecnológicas da
paisagem midiática” (MÜLLER, J., 2012, p. 86). E, reiterando essas dimensões
sociais, a intermidialidade possui imbricações políticas, se apresentando como
processos dinâmicos que possuem historicidade (SCHRÖTER, 2010; MÜLLER, J.,
2012).

I would like to argue that the ingredients of intermediality are not only
discerned in the features of an artistic multimedial and interdisciplinar
creativity, but also in the production of a (micro)political sensibility and
in the application of an innovative philosophical conceptuality and
interactivity. Intermediality reconfigures three former separated cultural
domains—established in the 19th century—of the arts, politics and
science, especially philosophy— enhancing an experience of the in-
between and a sensibility for tensional differences.52 (OOSTERLING,
2003, p. 30).

A principal referência que Jogos Vorazes faz seria ao Império Romano, fato
tratado abertamente pela autora e amplamente reiterado pela totalidade das citações
à obra. Mas ainda assim, por meio dos processos intermidiáticos nas materialidades

52
Tradução do autor: “Gostaria de argumentar que, os ingredientes da intermidialidade não são
apenas discernidos nos aspectos de uma criatividade artística multimidial e interdisciplinar, mas
também na produção de uma sensibilidade (micro)política e na aplicação de um inovador conceito
filosófico e interativo. Intermedialidade reconfigura três domínios culturais anteriormente separados,
estabelecidos no século XIX – das artes, política e ciências, especialmente filosofia – reforçando uma
experiência do entre-lugar e uma sensibilidade para diferenças de tensão”.
57

envolvidas, percebeu-se uma ampla presença de um outro elemento referencial – da


Alemanha nazista. Essa percepção comumente entendida como clima, atmosfera ou
ambiente (CANDIDO, 1976; GIL, 2005), é uma certa impressão que determinada
obra apresenta:

Existem diferenças, por vezes bastantes sutis, que permitem


diferenciá-las: o clima é mais geral que a atmosfera, ou que o
ambiente, e também mais estável. Fala-se de um clima de terror, por
exemplo, para caracterizar um espaço-tempo determinado. Além
disso, o clima está em primeiro plano, quer dizer que a sua presença
é sempre explícita e fundamental. O ambiente, também é geral mas é
secundário; é como um elemento de cenário porque não é
indispensável para o espaço dramático. Por exemplo, o som ambiente
serve para preencher o espaço da imagem fílmica, oferecendo
informações sobre o espaço sonoro geral da acção, sendo
perfeitamente dispensáveis, se fosse necessário. A atmosfera está
sempre no primeiro plano, mesmo quando está pontualmente
localizada no espaço. Por exemplo, quando uma pessoa com imenso
charme se exprime no meio de uma sala cheia de gente sisuda, a
atmosfera liberta será logo tão forte como o clima geral. (GIL, 2005, p.
141).

Mas levando-se em conta o que está sendo tratado no correr deste capítulo
– especialmente em ser imprescindível a existência do observador –, é pertinente
perceber que tanto clima, atmosfera ou ambiente se apresentam como impressões
unilateralmente impostas de fora-para-dentro, e que pela ocorrência da relação
intermidiática, quando uma mídia entra em relação com o observador (também
mídia), a impressão gerada cria uma contra-impressão nesse observador, nos mais
variados graus e de dentro-para-fora – a esse fenômeno, propõe-se adotar o
entendimento proposto por Gumbrecht, o qual denomina-o de Stimmung53.

O que essas metáforas de "clima" e de “atmosfera” partilham com a


palavra Stimmung – cuja raiz etimológica é Stimme, palavra alemã
que significa "voz" - é que todas sugerem a presença de um toque
material, tipicamente um toque muito leve, sobre o corpo de alguém
ou alguma coisa que (a) percebe. Clima, sons, música, todos têm
sobre nós um impacto material, embora invisível. Stimmung implica
uma sensação associada a certos sentimentos internos ou íntimos”.
Toni Morrison descreveu esse aspecto de Stimmung através do
paradoxo de “ser tocado como que desde dentro”. (GUMBRECHT,
2014, p. 42).

53
Para constar, Stimmung é singular, enquanto seu plural é Stimmungen.
58

Portanto, essa outra presença referencial, que se mostra perceptível por


meio dos vestígios na comunicação entre os suportes artístico-midiáticos envolvidos,
são ressonâncias do nazismo. Ao observador-autor desta pesquisa, ela se fez
notável de tal forma, que se assume a adoção do termo proposto por Adalberto
Müller (2013): o uso de ambiência para se referir a Stimmung. Com isso, esta
pesquisa também busca encontrar ambiências nazistas ressignificadas contidas nas
relações intermidiáticas em questão.
Mesmo sendo objeto de estudo há muitos anos, a estética nazista ainda
cabe como pesquisa relevante, tanto devido ao viés dos estudos da Intermidialidade
– que permeiam uma conexão com a realidade de forma ampla, sendo instrumento
fundamental de observação da sociedade –, quanto por meio da atualização para
um público fruidor contemporâneo, do repertório de um regime totalitário nos moldes
do nazismo, por meio das materializações da obra Jogos Vorazes, ainda mais se
levado em questão o surpreendentemente desconhecimento por parte de muitos
jovens sobre esse período:

As this cataclysmic event further fades in time, there is a very real


threat that kids will become ignorant of Nazi crimes. The evidence of
such ignorance takes many insidious forms, including the increasingly
popular and flagrant abuse and reapplication of Nazi-inspired
iconography (...)54. (HELLER, 2008 p. 131).

Esse fato se apresenta mesmo sendo um dos períodos mais bem


documentados da história. E para além desse desvanecimento, apesar da
dificuldade em se estabelecer um regime totalitário, especialmente por ser um
objetivo demasiadamente ambicioso, é sabido que em tempos de crise, ideologias
populistas e nacionalistas afloram com força (PINSKY, 2013), como pode ser notado
após a Primeira Guerra Mundial, onde “uma onda antidemocrática e pró-ditatorial de
movimentos totalitários e semitotalitários varreu a Europa: da Itália disseminaram-se
movimentos fascistas para quase todos os países da Europa central e oriental”
(ARENDT, 2012, p. 436-437). Movimento semelhante pode ser percebido

54
Tradução do autor: “Enquanto este evento cataclísmico se desvanece no tempo, há uma ameaça
muito real de que as crianças se tornem ignorantes sobre os crimes nazistas. A evidência de tal
ignorância se apresenta ardilosamente de diversas formas, incluindo o aumento de popularidade e
flagrante abuso e reaplicação da iconografia de inspiração nazista [...]”.
59

especialmente após a crise financeira de 2008, tanto novamente na Europa quanto


no Brasil.
E portanto, deve-se olhar com atenção às criações que possam banalizar e
glamorizar toda uma iconografia de regimes totalitários, no caso, o regime nazista.

1.4.1 Muito além do Cinema

Ao se tratar da adaptação cinematográfica, diversas questões envolvidas


precisam ser definidas, para evitar equívocos. Apesar de adaptações de livros se
embasarem no texto original, esta acaba por se tornar secundária, sendo criada uma
nova matriz principal que toda gama de materialidades audiovisuais lhe são
diretamente dependentes – o roteiro (adaptado) ou screenplay. A intermidialidade se
encontra no entre-lugar do texto original com o roteiro.
À parte de comparações qualitativas que sempre acompanham adaptações,
tem-se que a estrutura do roteiro é elaborada de um modo fortemente audiovisual,
pensado no que a audiência pode ver e ouvir por meio dos aparatos técnicos
disponíveis ao qual a produção audiovisual será reproduzida. Sendo assim, toda a
gama envolvida na passagem para o audiovisual possibilita condições anteriormente
inatingíveis, proporcionando uma nova realidade material, onde é possível que tudo
se potencialize.
Figura 19 A intermidialidade como entre-lugar perante texto e roteiro

(Fonte: Elaborado pelo autor)

E na atual conjunta das materialidades disponíveis, entende-se que se valer


apenas do entendimento de adaptação cinematográfica como cinema fosse
demasiadamente restritivo. Mas, e se a opção adotada fosse pela definição de
Paech para filme? Para este autor, filme “is almost everything that is offered as a
video, analogously or digitally. Film can be downloaded from the Internet as a feature
60

or short film, for example, with YouTube”55 (PAECH, 2011, p. 08), consequentemente
encarado como “almost everything that meets us as a moving audio-visual
representation at any time and at every place” 56 (PAECH, 2011, p. 08). Isso vai ao
encontro das palavras de Parente e Pethő: para o primeiro, a Forma Cinema não
deixa de ser uma idealização romantizada, pois “nem sempre há sala, que a sala
nem sempre é escura, que o projetor nem sempre está escondido, que o filme nem
sempre é projetado [...], nem sempre o filme conta uma história” (PARENTE, 2007,
p. 05); já para a segunda, essa concepção clássica de filme “has acquired a
historical status, it has become a medium mainly preserved by film archives”57
(PETHŐ, 2010, p. 47).
Sendo assim, o filme não se trata mais da película projetada em um
ambiente construído exclusivamente para isso, adquirindo uma notável amplitude –
e por que não, liberdade –, sendo uma metáfora para quaisquer imagens em
movimento, presentes inclusive como videojogos e publicidade.

Traditional movie theatre experience has been replaced by a cinema


based on new digital technologies in order to provide an overwhelming
multi-sensory experience. Home video systems, interactive 3D
computer games, or even mobile phones or advertising screens
installed on streets or underground stations have become media for
our daily consumption of moving images.58 (PETHŐ, 2010, p. 47).

Ao se considerar isto, percebe-se que as imagens em movimento não estão


mais presentes apenas nas salas de cinema, passando a ocupar um novo espaço
público (MENDES, 2011).

Whenever we focus on one aspect of a medium (and its relationships


of remediation with other media), we must remember to include its
other aspects in our discourse. In the case of film, for example, when

55
Tradução do autor: “Filme é quase tudo o que é oferecido como vídeo, analógico ou digitalmente.
Filme pode ser baixado da internet como um longa ou curta-metragem, por exemplo, pelo YouTube”.
56
Tradução do autor: “quase tudo que se apresenta como uma representação audiovisual em
movimento, de qualquer época e lugar”.
57
Tradução do autor: “adquiriu uma condição histórica, ao se tornar uma mídia preservada sobretudo
por arquivos fílmicos”.
58
Tradução do autor: “A experiência de cinema tradicional foi substituída por um cinema baseado nas
novas tecnologias digitais, a fim de proporcionar uma experiência multissensorial irresistível. Sistemas
de entretenimento doméstico, jogos de computador interativos e 3D, ou até mesmo telefones
celulares ou telas de publicidade instaladas em ruas ou estações de metrô, tornaram-se mídias para
o nosso consumo diário de imagens em movimento”.
61

we look at what happens on the screen (in a darkened theater), we


can see how film refashions the definitions of immediacy that were
offered by stage drama, photography, and painting. However, when
the film ends, the lights come on, and we stroll back into the lobby of,
say, a suburban mall theater, we recognize that the process of
remediation is not over. We are confronted with all sorts of images
(posters, computer games, and videoscreens), as well as social and
economic artifacts (the choice of films offered and the pricing strategy
for tickets and refreshments). These do not simply provide context for
the film itself; they take part in the constitution of the medium of film as
we understand it in the United States today.59 (BOLTER; GRUSIN,
2000, p. 67).

Sendo assim, acredita-se que para uma melhor visualização, o termo


apropriado seja tela, que carrega essa pluralidade intermidiática presente no atual
fluxo de conteúdo, que se mostra dos mais diversos modos e por meio de múltiplas
plataformas. Apesar do elemento principal deste grupo/capítulo ser a adaptação
cinematográfica de Jogos Vorazes – que irá conduzir todas as demais
materialidades da obra, por conseguinte, suas relações, estas principalmente se
darão por meio de telas: filme (cinema comum; cinema IMAX; DVD; Blu-Ray;
televisão aberta e fechada; streaming em smart TV, computador, tablet ou celular),
videojogos, internet (redes sociais, sítios). Se levado em consideração que, o
entendimento por tela pode abranger o de uma superfície onde se reproduz alguma
imagem (projeção, video wall, grafite, pintura, impressão em geral), pode-se
expandir esse conjunto para a maioria dos materiais de divulgação dependentes do
roteiro cinematográfico. Com isso, entende-se que “o cinema passou a ser apenas
uma parte dessa nova experiência cinemática” (MENDES, 2011, p. 53).
Entendimento que vai ao encontro do que se entende por convergência,
previamente tratada e ao qual se reitera como sendo o

59
Tradução do autor: “Quando focamos em um aspecto de uma mídia (e seus relacionamentos de
remediação com outras mídias), devemos lembrar de incluir seus outros aspectos em nosso discurso.
No caso do filme, por exemplo, quando olhamos para o que acontece na tela (em um cinema escuro),
percebe-se como o filme remodela as definições de imediatismo apresentadas no teatro, fotografia e
pintura. No entanto, quando o filme termina, as luzes se acendem e retornamos para o saguão,
digamos, do cinema de um shopping do subúrbio, reconhecemos que o processo de remediação não
acabou. Somos confrontados com todos os tipos de imagens (cartazes, jogos de computador e
vídeos), bem como artefatos sociais e econômicos (a escolha pelos filmes a ofertar, bem como a
estratégia de preços para ingressos e bebidas). Estas não apenas fornecem contexto ao filme em si;
eles se constituem como parte da mídia filme, como nós a entendemos hoje nos EUA”.
62

fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à


cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento
migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase
qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que
desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir
transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais,
dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando.
(JENKINS, 2009, p. 29).

Consequentemente, é nesse processo de transposição para as telas que


intermidialidade e convergência se apresentam mais palpáveis.

1.4.2 Metodologia

Com tudo que fora tratado, esta pesquisa se formula por meio de um estudo
teórico-empírico de natureza qualitativa, sendo elaborado através de pesquisa
bibliográfico-documental, mediante análises imagéticas, audiovisuais e textuais –
como livros, filmes, videojogos, revistas, artigos, sítios da internet e redes sociais –
construindo os dados por observação.
Como característica de uma pesquisa qualitativa, tenta-se compreender a
totalidade do fenômeno, analisando informações de uma forma organizada, mas
intuitiva, preceitos não muito distantes da rotina diária do profissional de design, que
fundamentalmente se utiliza de um raciocínio abdutivo (que imagina que algo
poderia existir) para elaboração de suas ações, mesmo que durante o processo se
utilize do raciocínio indutivo para encontrar padrões, e dedutivo para entregar
respostas. Os “raciocínios indutivo e dedutivo são perfeitos para tarefas de natureza
"algorítmica", que têm fórmulas conhecidas, mas são inadequados para tarefas
"heurísticas", que lidam com mistérios” (NEUMEIER, 2010, p. 39).
Também serão providas reconstruções das interações em ordem
cronológica e historicista. Portanto, as análises aqui contidas ocorrem na ordem em
que cada uma das materialidades da obra se constituíram, se apresentando como o
modus operandi que permeia esta pesquisa, mesmo entre métodos e
categorizações.
O estudo ocorre em torno da análise do corpus proposto, a obra Jogos
Vorazes, em três grandes materializações distintas, para estudo através do campo
da Intermidialidade. Temos então:
63

 O romance Jogos Vorazes, obra literária escrita por Suzanne Collins,


publicado no Brasil pela editora Rocco em 2010;
 O filme Jogos Vorazes (2012), dirigido por Gary Ross e produzido pela
Lionsgate;
 E os sítios oficiais de divulgação “TheCapitol.pn” e “CapitolCouture.pn”.
Além da obtenção bibliográfica em livros teóricos, periódicos e documentos,
formulando os fundamentais de pressupostos a esta pesquisa, há ainda a obtenção
dos dados pelo estudo da referida obra em si – livro, filme e sítios da internet –, não
apenas buscando suas relações, convergências e divergências, mas servindo de
guia na busca por outros dados. Estes se darão pela obtenção de imagens de
divulgação, imagens de produção, catálogos, revistas, notícias (online e off-line),
vídeos (online e off-line).
Além desses, será feita uma contraposição entre a obra em questão e outras
que lhe proporcionam forte referencial, além de compartilharem semelhante
transposição intermidiática – de livro para cinema. Com isso, aqui serão
especialmente referidas Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), 1984 (George
Orwell), Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), O Senhor das Moscas (William Golding) e
Battle Royalle (Koushun Takami).
Os dados são selecionados, coletados e separados conforme as categorias
a seguir, observando que cada coluna tem como referencial principal, a sua coluna
anterior:
Livro Filme Websites Atualização
1. Enredo 1. Enredo 1. Referenciação Referenciação
2. Narrativa 2. Narrativa (visual) 2. Iconografia Iconografia
(textual) 3. Referenciação 3.1. Cenografia: Apropriação
3. Referenciação 4. Iconografia  Iluminação
4. Ilustração da 5.1. Cenografia:  Sonorização
Capa  Iluminação  Arquitetura
 Sonorização 3.2. Trajes Cênicos:
 Arquitetura  Figurino
5.2. Trajes Cênicos:  Indumentária
 Figurino  Acessórios
 Indumentária
 Acessórios
(Fonte: Elaborado pelo autor)
64

Como iconografia, se objetiva reconhecer o repertório de imagens que


fundamentam a obra, levando-se a reconhecer suas linhas, traços, formas, ângulos,
cores, enfim, os elementos constituintes de seu simbolismo.
Relativo a questão da narrativa textual, busca-se definir o foco narrativo (1º
ou 3º pessoa); protagonista, antagonista e coadjuvante; o narrador (se narrador-
personagem ou narrador-observador), bem como tempo e espaço. Estes servem de
contraponto aos elementos de narrativa visual, em que ainda se somam os planos,
ângulos e movimentos de câmera, bem como a composição de imagem e sua
edição.
Entende-se que as referenciações ocorrem da seguinte forma: livro por si,
aliado as declarações da própria autora. Do filme, se dará em sua relação com o
livro, a iconografia estabelecida, suas artes conceituais, e elementos históricos. Já
as referenciações dos websites se apresentam como relação mais ligadas ao filme,
juntamente a possíveis elementos históricos. Somente após esses passos, é
possível fazer correlações com a cenografia e trajes cênicos, e que são de grande
importância para o entendimento da intermidialidade proposta.
No que tange a atualização, esta é resultante das outras categorias, tendo
como item diferencial “apropriação”, entendida como a relação de transposição para
ações da vida real, dos elementos fictícios da obra, pelo público fruidor.

1.4.3 Estado da arte

E antes de partir para a pesquisa propriamente, durante a fase de obtenção


de dados, também se fez a busca pelo estado da arte relativo ao objeto de estudo,
se valendo dos termos Jogos Vorazes ou do original Hunger Games, através do
banco de dados de periódicos Ebsco e Science Direct. As buscas internacionais
resultaram em:
 Quatro artigos estadunidenses da área da saúde, que se utilizam da
expressão para tratar de questões relacionadas à fome, miséria e distúrbios
alimentares que afetam a sociedade;
 Um artigo estadunidense da área biológica, referente ao comportamento
animal extremo em época de escassez de alimentos;
 Um artigo também dos EUA, sobre a fome como instrumento de engenharia
social, abrangendo desde o séc. XVIII até a atualidade;
65

 Publicações indexadas, mas não acadêmicas, em jornais cristãos, variando


de pequenas notas a reportagens completas, sobre a obra e sua adaptação
cinematográfica;
 Um artigo acadêmico estadunidense, sobre a relação entre a literatura,
alfabetização, tecnologia e o engajamento dos adolescentes pela obra Jogos
Vorazes;
 Artigo britânico, que faz um paralelo ao uso contemporâneo de crianças como
soldados em guerras modernas, com uma parte dedicada a obra Jogos
Vorazes.
Além dessa busca, no Brasil foram encontrados três artigos diretamente
relacionados à obra: dois pela área da Comunicação (Intercom Jr.), tratando dos
signos e construção de imagem na obra; e um pela área da Linguística, sobre a
representação dos pássaros na obra. Além disso, sabe-se de uma outra dissertação
(no presente momento, em andamento) no mestrado em Comunicação da Unisinos
– RS, sobre as questões de gênero em Jogos Vorazes.
E não se pode deixar de mencionar o lançamento de livros sobre o tema, em
quase sua totalidade guias ou almanaques, tendência que geralmente acompanha
produções de sucesso, sem nenhum viés acadêmico.
O que se percebeu é que, apesar de regimes totalitários serem objeto de
estudo há anos, em especial os relacionados à estética nazista, sua presença em
Jogos Vorazes se encontra basicamente ignorada pelas análises prévias da obra em
questão, situação que permite somar relevância a esta pesquisa.
Na arena lembre-se de quem é seu verdadeiro inimigo.
Jogos Vorazes

As utopias são sonhos de libertação coletiva que,


na vigília, revelam-se pesadelos.
John Gray
filósofo britânico
67

2. A CONSTRUÇÃO DE JOGOS VORAZES:


ou As primeiras conexões com a Intermidialidade

Neste capítulo, apresenta-se um panorama geral da primeira materialização


do objeto desta pesquisa – a obra literária Jogos Vorazes –, inicialmente pela
apresentação do seu enredo, e posteriormente contextualizando sua concepção e os
elementos que a compõe e que são pertinentes a este trabalho, como seu gênero,
sua referenciação aos regimes totalitários, em especial ao nazismo.

2.1. O enredo da obra

A história se passa em uma indeterminada época futura, onde outrora fora a


América do Norte, arrasada por inúmeros desastres, especialmente a elevação no
nível dos mares, que engoliu grandes quantias de terra, originando uma guerra
brutal pelo pouco que havia restado. Das cinzas resultantes de outrora, ergueu-se
Panem, nação onde os conceitos de democracia e liberdade não existem. Em seu
lugar tem-se uma divisão radical das classes sociais, onde uma minoria dominante
impõe uma ditadura a uma massa dominada, se valendo de altíssima tecnologia,
totalmente embasada na vigilância, monitoramento, opressão e coerção. O elemento
principal desse controle se dá mediante um sistema de doutrinação nos moldes de
punição e recompensa, na forma do reality show Jogos Vorazes.
Panem é formada por uma poderosa cidade central, a resplandecente
Capital, onde a elite minoritária vive em opulência, se entregando a todos os tipos de
extravagâncias e consumismo. Entendem a si mesmos como espécie superior na
hierarquia da sociedade, enquanto o resto da população, mesmo majoritária, não
passa de uma massa servil, inferior, ridicularizada, domada e controlada, vivendo ao
redor da capital em doze distritos em absoluto atraso e miséria, quer seja de um
ponto de vista social, quanto econômico ou político – mas especialmente por meio
da fome.
A cada um destes doze distritos cabe uma função específica em servir e
suprir a Capital – é possível dizer que cada distrito está classificado em ordem de
sua condição socioeconômica, sendo os cinco primeiros possuidores de melhor
condição, e os últimos as piores entre os demais distritos: o primeiro fornece pedras
preciosas e produz artigos de luxo; o segundo produz e fornece armamentos para a
68

força de segurança de Panem; o terceiro distrito é responsável por produtos


eletrônicos e mecânicos; o quarto distrito é produtor de pescados; já o quinto distrito
é responsável pelas pesquisas genéticas, bem como é o atual maior produtor de
energia de Panem; o sexto distrito é responsável pelos meios de transporte; o
sétimo é especializado em madeira e na produção de papel; o oitavo é o fornecedor
têxtil, encarregado da produção de tecidos e produz os uniformes da força de
segurança de Panem; o nono distrito é especializado em grãos; o décimo cuida da
pecuária; o décimo primeiro é responsável pela agricultura e o o décimo segundo
distrito é responsável pela extração de carvão. Não é permitida interação,
informação e comunicação entre os distritos além das fornecidas oficialmente pela
Capital, sendo que todas as áreas fronteiriças são delimitadas por cercas elétricas, e
por meio da presença constante da força de segurança – os Pacificadores.
Denomina-se por Jogos Vorazes um evento de proporções épicas,
televisionado para toda a nação, criado a fim de lembrar à população do poder da
Capital, e evitar a reincidência de insubordinações, como o ocorrido nos Dias
Escuros: um levante malsucedido dos distritos, encabeçado pelo 13º – responsável
pela energia nuclear – totalmente obliterado ao fim da rebelião. Com isso, foi
estabelecido o Tratado da Traição entre a vitoriosa Capital e os derrotados distritos,
que garante a paz por meio de novas leis e a criação dos Jogos. Deste modo, ficou
instituído que anualmente, cada um dos doze distritos restantes deve oferecer à
Capital um menino e uma menina com idades entre 12 e 18 anos, no que é
denominado Dia da Colheita. Assim, esses jovens conhecidos como Tributos, serão
apresentados como celebridades, submetidos a uma avaliação do seu potencial
pelos organizadores do espetáculo, gerando apostas e possíveis patrocínios. Ao fim,
são levados para uma vasta arena a céu aberto, um ambiente totalmente controlado
pelos organizadores dos jogos – seja a temperatura, condições atmosféricas, bioma,
animais etc. –, podendo conter qualquer coisa, e no qual, por várias semanas os
competidores deverão se digladiar até a morte, sendo que somente o último tributo
restante será o vencedor.
O uso da palavra vorazes60 para nomear o jogo é uma lembrança do estado
de fome perpétua que a massa servil é propositadamente mantida, sendo mais um
meio facilitador de controle. A escolha dos tributos é por meio de sorteio aleatório,

60
No original Hunger, que em uma de suas traduções possíveis, é definida como a condição de fome
crônica.
69

sendo obrigatório o nome de todos em idade para se candidatar. Mas o jogo possui
uma regra sórdida: cada candidato pode optar por adicionar o nome mais vezes ao
sorteio em troca de tésseras61, que permitem um escasso suprimento anual extra de
grãos e óleo. Quanto mais vezes se coloca o nome no sorteio, mais suprimentos se
ganha, porém maior é a chance de ser sorteado. E para piorar, essa adição é
cumulativa, chegando a casos em que um dos personagens, aos 18 anos, possui
seu nome quarenta e duas vezes na lista para o sorteio – ou como é chamado na
obra, para a colheita.
Portanto, não basta a população dos distritos viverem despojadas de
recursos em troca de migalhas. Ainda são vitimados ao seu nível mais básico: de se
desfazerem de seus filhos, para o entretenimento dos cidadãos da Capital, bem
como dos próprios distritos, alienados e famintos. Essa alienação ainda possui outro
nível, no qual os distritos de melhor condição possuem uma orientação mais positiva
em relação aos Jogos Vorazes, criando tributos de carreira. Ou seja, nestes distritos
ganhar os jogos é considerada a mais alta honraria, não sendo incomum crianças
serem treinadas para participarem, prontamente se voluntariando 62 como tributo.
Nesse contexto que é narrada a luta do tributo feminino do Distrito 12 –
Katniss Everdeen, de dezesseis anos – contra os representantes dos outros
distritos, alguns dos quais treinaram a vida inteira para esse momento. E ao fim, o
distrito vencedor recebe prêmios e melhorias, principalmente o aumento na provisão
de alimentos até a próxima edição da competição, inclusive com a inclusão de
açúcar, enquanto ao jogador vencedor é dado o direito de uma vida luxuosa sob a
benção da Capital.

61
Tabuinha (de osso, marfim ou outro material) que, na Roma antiga, servia como bilhete de voto,
bilhete de entrada de teatro ou como senha, bem como poderia servir como placa de identificação
para objetos e escravos.
62
A protagonista que possuía seu nome vinte vezes na lista para o sorteio, acaba por ingressar aos
Jogos ao se voluntariar no lugar da irmã, de apenas 12 anos. Esta fora sorteada justamente em sua
primeira vez, possivelmente não tendo chance alguma no evento. Tal atitude, raríssima entre os
distritos mais pobres, causou comoção, mas que entre outros fatores, garantiu patrocínios.
70

2.2. A origem dos Jogos

A estadunidense Suzanne Collins começou sua carreira profissional em


1991, como roteirista para programas televisivos infantis, para redes como Warner
Bros, Nickelodeon e PBS. Alguns desses programas foram exibidos no Brasil, tanto
em canais de televisão fechados quanto abertos. Dentre os abertos, destaca-se O
Pequeno Urso (Little Bear, 1995-2003) pela TV Cultura, e Clarissa Sabe Tudo
(Clarissa Explains It All, 1991-1994) pelo SBT, Bandeirantes e Rede Globo.

Figura 20 Suzanne Collins e Gregor O Guerreiro da Superfície

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens dos sítios IMDB e editora Record)

Aos poucos, seu interesse por atingir públicos mais velhos foi aumentando,
instigando-a a escrever seu primeiro livro, Gregor - O Guerreiro da Superfície
(Gregor the Overlander), um romance infanto-juvenil inspirado na história de Alice no
País das Maravilhas. Lançado originalmente pela editora Scholastic (e no Brasil pela
Galera Record), atingiu tamanho sucesso, que acabou por se tornar uma série de
cinco livros – As Crônicas do Subterrâneo (The Underland Chronicles, 2003-2008).

In The Underland Chronicles (as the Gregor books came to be


known), Collins had created a complex society that exploded into war.
Her readers were mostly in middle school, but she had written
genocide and biological weapons into these books. She had killed off
71

beloved characters to explore the cost and the emotional fallout of


war. (EGAN, 2012, p. 08).63

Estavam plantadas as sementes para o que seria sua próxima saga,


inclusive dando continuidade à busca por atingir públicos mais velhos, pensado
agora para se destinar a jovens adultos.
A obra Jogos Vorazes surge intermidiática por natureza, desde sua
concepção. Seu primeiro vislumbre se deu enquanto Collins, olhando televisão tarde
da noite, estava alternando entre canais – em um estava passando um reality show,
e noutro um noticiário cobrindo a Guerra do Iraque (2003-2011). Portanto, em um
canal, jovens testavam seus limites para entreter uma audiência, enquanto que no
outro, jovens estavam arriscando suas vidas ao lutar pelo seu país. Nesse momento,
a distinção entre os programas pareceu inexistir (EGAN, 2012).
Este acontecimento não parece tão estranho, se levado em consideração
que, especialmente desde as transmissões da Guerra do Golfo (1990-1991), a mídia
estadunidense tende a apresentar suas guerras como uma narrativa emocionante e
épica, recheada de ação, aventura e conflitos dramáticos: “[...] a Guerra do Golfo foi
apresentada como um filme de guerra com começo, meio e fim. [...] as semanas que
se sucederam foram pródigas em emoções, altos e baixos, surpresas e um roteiro
riquíssimo” (KELLNER, 2001, p. 270).
Mas as inspirações iniciais para a criação da obra vão muito além dos
momentos passados em frente à televisão. Conforme afirmações da autora,
encontram-se na raiz da saga: o filme épico Spartacus (Stanley Kubrick, 1960), um
dos seus filmes favoritos; sua paixão de infância pela mitologia, especialmente a
lenda grega de Teseu e o Minotauro; e acima de tudo, as histórias de guerra que
ouviu enquanto criança de seu pai – um especialista militar das Forças Aéreas dos
EUA, bem como historiador e doutor em ciências políticas, que serviu no Vietnam
quando Collins tinha seis anos.

The Collins family visited many battlefields, and Collins’s father never
shied away from telling his kids what had happened there. He told

63
Tradução do autor: “Em As Crônicas do Subterrâneo (como os livros de Gregor vieram a ser
conhecidos), Collins criou uma sociedade complexa que irrompeu em guerra. Mesmo seus leitores
sendo principalmente do ensino médio, nestes livros ela escreveu sobre genocídio e armas
biológicas. Matou personagens amados para demonstrar o custo e as conseqüências emocionais da
guerra.”
72

them what led to the battle, what happened in the battle, and what its
consequences were for the real people who fought in it and the
citizens whose futures depended on its outcome. (EGAN, 2012, p.
09).64

Também é pertinente notar que, nesse momento, o mundo vinha em um


crescente de notícias decorrentes de desastres naturais de grandes proporções,
como do enorme terremoto seguido de tsunami na Ásia/Oceano Índico (2004) e dos
efeitos devastadores do furacão Katrina (2005). Aliado a isso, em ressonância com o
imaginário popular sobre a elevação do nível dos mares, repetido frequentemente
durante anos, de inúmeras formas e mídias, e agravada nos últimos tempos em
decorrência dos alarmantes efeitos do aquecimento global iminente, provavelmente
se somaram e influenciaram sua criação.
Com a remediação desses elementos – reality shows televisivos, noticiários
tanto televisivos quanto de periódicos, filmes, lendas e histórias orais e escritas –,
pretende-se vislumbrar o quanto é perceptiva a influência que, a situação material
usada para a construção de discursos, portanto a materialidade de cada um, exerce
em torno do pensamento e da produção intelectual. Nesse ponto, é interessante se
valer novamente do questionamento, quase uma parábola, pelo qual:

o pensamento de Nietzsche poderia ter sido influenciado pela forma


da máquina de escrever com a qual trabalhava, isto é, o filósofo teria
sido influenciado pelo movimento corporal imposto pelo formato
arredondado na máquina de escrever. (GUMBRECHT, 1998, pp. 145-
146).

Afere-se com isso que, de igual forma o pensamento de Collins é


influenciado pela conexão, ou se valendo da terminologia de Gumbrecht (1998) – a
relação de acoplagem com os objetos. Com isso, pode-se avaliar que as relações
com os aparatos disponíveis à época de Nietzsche65 são diferentes das que a autora
de Jogos Vorazes teve, seja com as revisões contemporâneas dos mesmos

64
Tradução do autor: “A família Collins visitou muitos campos de batalha, e o pai de Collins nunca
evitou de contar aos seus filhos o que tinha acontecido lá. Contou-lhes sobre o que levou à batalha,
que aconteceu na batalha, e quais as reais consequências para as pessoas reais que nela lutaram, e
aos cidadãos cujos futuros dependiam de seu resultado.”
65
Dentre a miríade de exemplos possíveis, destacam-se o acesso aos bem estabelecidos livros,
jornais, navios e trens, a moda, arquitetura e mobiliário da época, e aos incipientes telégrafo,
fotografia, gramofone, iluminação (a vela ou gás), além da já citada máquinas de escrever.
73

elementos, seja com a inserção de outros completamente novos 66. O mesmo pode
ser dito sobre grande parte das obras referenciais que embasaram o
desenvolvimento de Jogos Vorazes67.

Figura 21 Relação de acoplagem Collins x Nietzsche

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Com a convergência destas ideias, numa descrição de três páginas e meia


contendo uma visão geral dos Jogos, em 2006 Collins entregou uma proposta
prontamente aceita à Scholastic, a editora de suas obras anteriores. Apesar de
inicialmente não ser planejada como uma trilogia, assim que completou o
planejamento mental do primeiro livro, Collins percebeu que a história não poderia
ser concluída somente daquele jeito, sem maiores repercussões. Ainda assim, este
foi todo estruturado para ser uma obra fechada em si, uma proteção mercadológica
caso a reação não fosse positiva como o esperado.
A autora segue à risca os elementos narrativos reconhecidos por Campbell 68
como “a jornada do herói", um padrão narrativo básico que se tornou popular entre
roteiristas.

66
As modificações na velocidade, seja do deslocamento por meio de aviões e automóveis, bem como
da informação, presente através do rádio, televisão, cinema, telefone, computadores, internet, etc.,
sem ignorar a importante presença da iluminação elétrica.
67
Sendo assim, não é cabível tentar abranger uma totalidade das materialidades envolvidas nessa
criação, mas naquelas que forem perceptíveis, suas relações serão analisadas, ao nível da
intermidialidade.
74

Figura 22 A jornada do herói / jornada do escritor

(Fonte: Sítio Homo Literatus, 2015)

São 17 estágios (ou 12 estágios pela adaptação mais enxuta de Vogler69),


agrupada em três grandes etapas: a Partida-Separação; a Descida-Iniciação-
Penetração e o Retorno. Estas estão exatamente presentes em Jogos Vorazes, com
sua semelhante divisão em três grandes partes de 9 capítulos, totalizando 27: “Os
Tributos” vão do 1º ao 9º; “Os Jogos” vão do 10º ao 18º; “Os Vitoriosos” vão do 19º
ao 27º.

A Jornada do Herói não é uma invenção, mas uma observação. É o


reconhecimento de um belo modelo, um conjunto de princípios que
governa a condução da vida e o mundo da narrativa (...). A Jornada
do Herói é um padrão que parece se estender em várias dimensões,
descrevendo mais do que uma realidade. Ele descreve de maneira
acurada, entre outras coisas, o processo de efetuar uma jornada, as
partes funcionais necessárias de uma história, as alegrias e os
desesperos de ser um escritor, e a passagem de uma alma pela vida.
(VOGLER, 2006, p. 11).

68
Joseph Campbell (1904-1987) foi um mitólogo estadunidense. Ele descreveu em seu livro "O Herói
de Mil faces" (1949), que as mais variadas culturas compartilham um padrão narrativo básico
realizada pelos seus mais diversos heróis míticos, estruturado em uma jornada.
69
Christopher Vogler é um produtor e roteirista de Hollywood, famoso por ter adaptado a obra de
Campbell para um modelo mais apropriado para roteiristas, em seu livro A jornada do escritor.
75

Deste modo, reforçam-se elementos de verossimilhança, necessários


mesmo no contexto ficcional, de modo a garantir familiaridade ao público, para uma
adequada fruição através da credibilidade do enredo. Dando continuidade, é
perceptivo que o enredo seja apresentado em sequências cronológicas (começo no
primeiro terço; meio no segundo terço; e fim no terceiro terço), maioritariamente em
tempo cronológico, em linguagem natural e transparente, sendo que o desfecho de
cada capítulo tende a criar algum nível de clímax, instigando a continuação de sua
fruição.
Apesar de tentar manter o estilo de escrita de seus livros anteriores (terceira
pessoa, tempo passado), Collins afirma que desde os primeiros rascunhos a escrita
convergia para outro modo (em primeira pessoa, tempo presente), como se a
personagem insistisse por contar a história por si mesma (EGAN, 2012).
A estrutura e o ritmo da narrativa presente em Jogos Vorazes também
facilita que seja transposta através de múltiplas plataformas de mídia, portanto, não
somente é intermidiática em sua origem, como é fonte de intermidialidade, sendo
naturalmente transmídia. Para isso, além de possuir uma história bem elaborada e
um bom personagem, é decisivo que tenha uma eficiente construção de universo,
fato presente na obra:

Cada vez mais, as narrativas estão se tornando a arte da construção


de universos, à medida que os artistas criam ambientes atraentes que
não podem ser completamente explorados ou esgotados em uma
única obra, ou mesmo em uma única mídia. O universo é maior do
que o filme, maior, até, do que franquia – já que as especulações e
elaborações dos fãs também expandem o universo em várias
direções. (JENKINS, 2009, pp. 161-162).

Ao apresentar um futuro constituído após acontecimentos catastróficos, que


acarretaram o colapso da civilização como a conhecemos, a obra poderia ser
enquadrada como romance de ficção pós-apocalíptica, mas como os temas
principais giram em torno de questões políticas, socioeconômicas e culturais – na
apresentação de um regime totalitário controlador e opressor, respaldado por meio
do espetáculo midiático, da severa desigualdade de classes e da iminente fome
extrema –, estes espelham problemas, discussões e medos presentes na
contemporaneidade atual, o que enquadra a obra como um romance de ficção
distópico.
76

E a partir deste momento, o resto é história, literalmente: a obra literária


Jogos Vorazes (The Hunger Games, no original) foi lançada originalmente em 2008
nos EUA; em 2009 foi transposta para audiolivro; em 2010 foi traduzida e publicada
no Brasil pela editora Rocco; e em 2012 tomou outra proporção ao ser adaptada
para o cinema, bem como ser transposta a todos os elementos constituintes do
merchandising que cerca uma produção desse porte, como internet e jogos, cada
uma dessas materializações contando com configurações estéticas e simbólicas
próprias.

2.3. Buscando a utopia

Mas o que seria uma distopia? Para esse entendimento, é necessário


começar pelo seu elemento chave, um outro conceito que é o de utopia.
Desde a aurora da humanidade, uma constante é ontologicamente universal:
o ser humano busca melhorar sua condição vigente a partir do moldar do seu meio
material. Em outras palavras, é inerente ao ser humano a busca por melhorar a
condição de sua existência, seja estas necessidades fisiológicas ou psicológicas,
estando presente em todas as suas técnicas, nos seus construtos e em cada um dos
avanços realizados.
Esta busca, no imaginário comum a todo sujeito, é o que comumente se
denomina por utopia – emergindo deste imaginário em referência a um passado
ideal, no permear de um presente ideal, ou ainda na busca de um futuro ideal.
Esteve presente nas sociedades clássicas inicialmente como mitos de uma anterior
Era de Ouro, onde a existência era virtude, pureza e harmonia 70. Posteriormente
estes ideais foram transpostos para uma vida após a morte – o paraíso (religiões
abraâmicas), Campos Elísios (mitologia grega), Campos Abençoados (mitologia
romana), Valhala (mitologia germânica). Depois tornaram-se terras distantes, sendo
Atlântida um poderoso arquétipo da sociedade idealizada (CLAEYS, 2013).
Apesar de ser um conceito que fortemente influencia a vida social como um
todo, desde as artes, passando pela religião, chegando a ciência e alcançando a
política, Adauto Novaes, ao citar a definição de utopia do sociólogo Norbert Elias, no
qual esta seria “uma representação imaginária de soluções, desejáveis ou
indesejáveis, segundo o caso, de um problema” (NOVAES, 2015, p. 16), poderia

70
Na mitologia grega, essa era termina com Pandora liberando os males ao mundo.
77

muito bem estar se referindo às profissões da cultura de projetos, a área de atuação


comumente de engenheiros, arquitetos, urbanistas e designers (VASSÃO, 2010).
Não obstante, a busca pela utopia é fator presente em todas as grandes
revoluções sociais. Nos nacionalismos era encarada como o objetivo a ser
alcançado por modo de mudanças políticas e sociais, e por suas características, o
design era mais do que bem visto para alcançar esta aspiração, pois gradativamente
a partir do fim do séc. XIX, o campo do design passou a ser visto “como uma área
fértil para a aplicação de medidas reformistas” surgindo as primeiras propostas de
“fazer uso do design como agente de transformação” (DENIS, 2000, p. 68).
Entretanto, esta busca por utopias nas grandes revoluções do séc. XX
culminou no surgimento de regimes totalitários, no qual profissionais criativos como
designers, arquitetos, artistas, cineastas, comunicadores etc. acabaram por
favorecer distopias – tendo no nazismo alemão alguns dos exemplos de uso mais
contundentes. Portanto essa busca constante pela utopia, encarada como a grande
salvação para as mudanças políticas e sociais almejadas, se mostra frágil e
facilmente deturpável.
De forma dicotômica, o incrível progresso tecnológico atual, ao mesmo
tempo que aumenta tanto a qualidade quanto a expectativa de vida humana (e de
outras espécies selecionadas, que convém à humana), é capaz de gerar
simultaneamente modos de aniquilar todas as formas de vida, seja através de armas
de destruição em massa quanto por irreversíveis danos ao maior de nossos meios
materiais – o ecossistema, que acabou por se tornar um tema recorrente em muitas
obras de ficção atuais.

Utopia e ficção científica empurram os limites do horizonte temporal


até o nível do impensável, do não-formulável. Contradizendo o que
existe agora, elas falam primeiramente do que não existe, mas que
poderia existir em um futuro distante, em um lugar indeterminado.
Nesse sentido, utopia e ficção científica constituem poderosos
reguladores do pensamento antecipador e da inventividade, forçando-
nos a romper nossos quadros tradicionais de referência e a imaginar
outra coisa do amanhã se o amanhã for radicalmente diferente de
hoje. (BOUTINET, 2002, p. 75).

Indo além, não é só na atualidade que ocorre a união coesa entre ficção e
utopia. Em verdade, esta união está presente nos primórdios do próprio conceito de
utopia: acredita-se que este tenha sido escrito pela primeira vez por Platão, em sua
78

obra A república, aproximadamente em 360 a.C. (OLIVEIRA, 2008), ao elaborar,


dentre outras exposições, a idílica cidade de Calípole (Kallipolis, a cidade bela). Mas
sua primeira materialização como palavra propriamente dita, tem sua origem na obra
homônima de 1516 de Thomas More. Ao batizar por Utopia seu livro sobre uma ilha
imaginária com sistema sociopolítico ideal, no qual sociedade civil e Estado
convivem em perfeita harmonia, estava sendo ao mesmo tempo irônico e
provocativo.
Ao se valer do advérbio grego de negação “u” e da palavra grega de lugar
“tópos”, objetivava significá-la como “não lugar”, ou ainda “sem chão”, podendo ser
entendida como a ausência de um lugar ao qual o homem poderia parar (FLUSSER,
2008). Sobre o sufixo “ia”, é provável que fora adotado apenas para reforçar a
designação de nação, pois é de uso comum no latim para formação de nomes de
países (como em Britânia, Germânia, Itália etc.).
Portanto era a descrição de um uma nação não existente, duplamente
fictícia: por ser idealista e por ser uma invenção. O próprio autor, ao final do seu
relato, comenta: “Contudo, devo confessar que há muita coisa na República de
Utopia que eu desejaria ver imitada em nossas cidades – coisa que mais desejo do
que espero” (MORE, 2004, p. 132). E mesmo assim, acabou se tornando a
denominação comum para o conceito.

2.4. O encontro da distopia

Mas como é possível que a busca por utopias possa acabar levando a
distopias? Porque uma certa ambiguidade se faz presente no conceito. O diplomata
e escritor João Almino ao prefaciar uma das edições do livro Utopia, faz um
pertinente apontamento:

Apesar das ressalvas que fez sobre as instituições da Utopia, talvez


More não tivesse idéia de que estava também criando uma distopia,
uma utopia negativa, ao imaginar aquela ilha. O inferno, como a
Utopia, está cheio de boas intenções. Muito já se comentou sobre a
organização totalitária de uma sociedade que se quer transparente
para si mesma e onde não há divisão entre o público e o privado. Mas
distopia existe também nesta ordem internacional unidimensional,
unilateral, em que as regras são impostas por um só ordenador do
mundo, auto-suficiente e todo poderoso intérprete do bem, que se crê
detentor dos valores da civilização. (MORE, 2004, p. XXXIII).
79

Não somente, esta ambiguidade pode ser encontrada também em Platão:

A ideia de que o utopismo continha sementes do totalitarismo esteve


implícita na crítica de Aristóteles à República de Platão. De acordo
com Karl Popper, vários aspectos das teorias de Marx podem ser
retraçados até Platão. Suas esperanças por uma sociedade melhor
envolviam um desejo por perfeição. E ambos acreditavam que a
população deveria ser forçada, não importando o meio necessário, a
se submeter à busca desse ideal. (CLAYES, 2013, p. 175)

Distopia é o contrário da utopia, uma "utopia negativa” ou antiutopia. O


conceito se configurou no séc. XIX, inicialmente recebendo a designação de
“cacotopia” pelo filósofo britânico Jeremy Bentham, e posteriormente “distopia" pelo
também filósofo britânico John Stuart Mill (OLIVEIRA, 2008). Em distopia, a partícula
“dis” significa dificuldade, dor, privação, infelicidade, portanto devendo ser entendida
como um lugar no qual tudo é desagradável ou ruim.
Sendo assim, ao se constatar que utopia é lugar nenhum, e distopia é lugar
ruim, é desconcertante perceber que a segunda realmente se opõe à primeira no
sentido de ser a única possível de existir. Dito de outra forma, a utopia é um objetivo
sempre a se alcançar, e a distopia é o objetivo que sempre se alcança.
É um conceito presente no imaginário popular, sendo comumente utilizado
em obras de ficção científica, designando um lugar, uma sociedade fictícia
indesejável, onde as tensões são aplacadas por meio de violência e/ou controle
social, entendidas como uma ideologia de subjugação ou doutrinação, característica
comumente encontrado no âmbito do sistema político de regimes totalitários.
O totalitarismo deve ser entendido como o sistema político pelo qual o
Estado – geralmente mantido por um único partido controlado por um ditador ou uma
oligarquia autocrática – busca legitimar-se ao não reconhecer:

limites à sua autoridade e se esforça para regulamentar todos os


aspectos da vida pública e privada, sempre que possível. [...] Os
regimes ou movimentos totalitários mantêm o poder político através
de uma propaganda abrangente divulgada através dos meios de
comunicação controlados pelo Estado, um partido único que é muitas
vezes marcado por culto de personalidade, o controle sobre a
economia, a regulação e restrição da expressão, a vigilância em
massa e o disseminado uso do terrorismo de Estado. (OUTHWAITE;
BOTTOMORE, 1996, pp. 771-772).
80

E de um modo muito bem articulado, esses regimes fazem uso de


expressões estéticas na forma de cultura de massa, utilizando de forma peculiar a
indústria cultural e toda sua produção. Portanto ao limitar o livre pensamento, ao
basicamente eliminar a vida privada, vigiar intensamente e punir impiedosamente,
um estado totalitário rompe o equilíbrio entre liberdade e segurança, buscando
desesperadamente controlar a manutenção do seu governo. A premissa desses
regimes sempre fora o de realizar ideais utópicos, mas como está no cerne do
conceito, esse tipo de governo ao fim acaba por desgovernar-se, vindo a realizar
ideais distópicos.
Ainda para Outhwaite e Bottomore (1996), as obras de ficção apresentariam
os mais contundentes exemplos dos regimes totalitários, citando dentre essas obras
Admirável Mundo Novo (de Aldous Huxley, publicado em 1932) e 1984 (de George
Orwell, publicado em 1949), romances reconhecidos como cânones do gênero. E é
pertinente notar que o lançamento e procura de obras com este cunho tendem a
aumentar consideravelmente em épocas conturbadas.
Se tomada apenas como referência as produções literárias, possivelmente a
época mais prolífera na produção distópica tenha sido entre os anos de 1930 e
1960, relacionado ao medo de Estados aos moldes comunistas e fascistas, bem
como à ocorrência de Guerras Mundiais. Destes temores originaram-se as obras
citadas acima, bem como outras tão cânones quanto, dentre elas: Fahrenheit 451
(Ray Bradbury, 1950) e O Senhor das Moscas (William Golding, 1954).
Dos anos 1960 até 2000 houve uma considerável diminuição de
lançamentos do gênero, possivelmente por grande parte do mundo se encontrar em
estado de paz forçado, decorrência da Guerra Fria. Apesar dos temores desta, seu
foco acabou nos questionamentos sobre os avanços tecnológicos, na política
neoliberal e nos problemas ambientais, com proeminência de autores como Philip K.
Dick e William Gibson.
Mas a partir dos anos 2000 ocorre um novo aumento na produção e
consumo de obras do gênero, tornando-o tão popular quanto há 60 anos. É reflexo
direto das angústias provenientes dos ataques de 11 de setembro de 2001, da
denominada Guerra ao Terror, do consumismo e do agravamento dos problemas
ambientais (FRANKEL, 2013). Entre os diversos lançamentos Jogos Vorazes se
destaca, sendo um dos mais notáveis exemplos deste recente retorno do gênero a
81

invadir o mercado. A grande diferença trazida por essa nova geração de distopias é
o seu direcionamento, agora para um público mais jovem.
Figura 23 Produção distópica através dos tempos

(Fonte: Sítio Good Reads, 2012)

A produção distópica até então, ao extrapolar criticamente os aspectos do


presente, com alarmantes tons de presságio, mostra o quão terrível as coisas
podem se tornar – e estas tendem a não oferecer nem finais felizes, nem qualquer
sugestão de como se realizar alguma mudança social favorável. Se é possível
assumir que a produção distópica até então fora destinada a um público mais adulto,
é neste ponto que está seu diferencial para com a produção atual, pois o mesmo
não é necessariamente verdade nas distopias destinada a um público “jovem-
adulto”.
Henthorne (2012) sugere que a literatura distópica escrita para jovens
adultos não apenas ajuda a preparar os leitores para um mundo cada vez mais
sombrio e pessimista, mas também os faz considerar uma possível forma de evitá-lo.
Como parte do crescimento, é importante para jovens leitores que equilibrem o
desespero com esperança, para que possam amadurecer e promover mudanças,
pois:
82

At the core of dystopias is a very human question: how people really


behave. Especially as teenagers, children are beginning to see that
the world is not all that has been promised. The best dystopias ask the
essential questions: Why is this so? Does it need to be so? And who
says this must be so? Through dystopias, children can begin to
experience what it means to be human in the twenty-first century, with
all the despair – and hope – that this implies. 71 (KIRK, 2011).

Portanto, a distopia presente em obras para jovens adultos oferece mais do


que apenas um conto de advertência sobre um futuro que deve ser evitado, mas
proporciona uma esperança, de que ainda é possível evitá-la ou revertê-la. Nas
palavras da própria Suzanne Collins:

Telling a story in a futuristic world gives you this freedom to explore


things that bother you in contemporary times. So, in the case of the
Hunger Games, issues like the vast discrepancy of wealth, the power
of television and how it's used to influence our lives, the possibility that
the government could use hunger as a weapon, and then first and
foremost to me, the issue of war (drew me to writing Science fiction)72.
(FRANKEL, 2012, pos. 1803).

Neste caso, a “utopia dessas distopias” propõe que sua fruição cause
alguma mudança de posicionamento para com o que já está acontecendo com o
mundo, visivelmente presente nos noticiários e informes globais. A percepção de
que a natureza de nossa sociedade é mais delicada do que se supõe, permitiria
atitudes mais ativas e menos apáticas. Neste ponto se tornam muito pertinentes, e
estranhamente atuais, os questionamentos sobre a Alemanha de 1945 feitas por
Gumbrecht:

enquanto se tornavam visíveis os contornos do novo mundo, as


pessoas pareciam estranhamente alheias às tensões que davam

71
Tradução do autor: “No cerne das distopias há uma questão demasiadamente humana: como as
pessoas realmente se comportam. Especialmente enquanto adolescentes, crianças começam a ver
que o mundo não é tudo o que foi prometido. As melhores distopias levantam perguntas essenciais:
Por que isso acontece? Precisa ser assim? E quem disse que isso deve ser assim? Por meio de
distopias, crianças podem começar a experimentar o que significa ser humano no século XXI, com
todo a aflição – e esperança – que isto implica.”
72
Tradução do autor: “Contar uma história em um mundo futurista lhe dá essa liberdade para explorar
as coisas que o incomodam em tempos contemporâneos. Assim, no caso de Jogos Vorazes,
questões como a grande discrepância de riqueza, o poder da televisão e como ele é usado para
influenciar nossas vidas, a possibilidade de que o governo poderia usar a fome como uma arma, e,
mais importante para mim, a questão da guerra (me atraiu para escrever ficção científica)”.
83

forma aos seus gestos. [...] Será que este “como se" está relacionado
com a nossa impressão, hoje, de que certos gestos parecem
deslocados, desajustados do ambiente em que ocorreram? Ou será
este "como se” uma fórmula aproximada (mesmo se inadequada) da
combinação de impotência e cinismo que assinalava o próprio
momento e o modo como era vivenciado? (GUMBRECHT, 2014, p.
20).

Portanto, apesar dos exemplos mais perfeitos (utópicos) de totalitarismo


serem encontrados em obras ficcionais, ainda assim, seu maior paralelo e único
factível que se possa fazer, é com a realidade (distópico).

2.5. Uma presença nazista

São diversos os paralelos presentes no enredo de Jogos Vorazes que


remetem a correlatos reais, sendo possível traçar vestígios da opulência na corte
francesa de Luís XIV, da exploração e dominação no imperialismo britânico e da
segregação no apartheid sul-africano. E indo além, dentre possíveis associações,
destacam-se duas: as referenciações à antiguidade clássica, especialmente ao
Império Romano; e aos regimes totalitários ocorridos no decorrer do século XX.
Adotando-se o referencial de Arendt (2012), apenas o nazismo e o stalinismo podem
ser considerados realmente regimes totalitários, pois apresentam objetivos tão
demasiadamente ambiciosos, que às restantes não passaram de ditaduras 73.
É justamente nessa ambiciosa busca por constituir um regime totalitário, que
a relação entre ficção e não-ficção se apresenta difusa, pois suas ideologias ignoram
as relações estabelecidas, escolhendo elementos que mais se adequam as suas
pretensões, o que não estranhamente, parecem propor uma outra realidade, como
um excerto do existente, que ao fim se parece muito mais com uma ficção. E o
principal modo de transformar essa ficção em não-ficção é se valer da indústria
cultural, especialmente da propaganda:

Sua arte consiste em usar e, ao mesmo tempo, transcender o que há


de real, de experiência demonstrável na ficção escolhida,

73
“Contudo, nem mesmo Mussolini, embora useiro da expressão ‘Estado totalitário’, tentou
estabelecer um regime inteiramente totalitário, contentando-se com a ditadura unipartidária.”
(ARENDT, 2012, p. 437)
84

generalizando tudo num artifício que passa a estar definitivamente


fora de qualquer controle possível por parte do indivíduo. Com tais
generalizações, a propaganda totalitária cria um mundo fictício capaz
de competir com o mundo real, cuja principal desvantagem é não ser
lógico, coerente e organizado. (ARENDT, 2012, p. 496-497).

Em verdade, para esses regimes, toda forma de expressão era cabível de se


tornar propaganda, com destaque às artes e técnicas que pudessem se valer da
produção industrial. Assim, se configurou um ambiente dos mais propícios e
envolventes na atuação de profissionais de áreas criativas, como os designers – com
isso, “em alguns países do mundo, o design começou a se transformar nessa época
em um instrumento de planejamento estatal propriamente dito” (DENIS, 2000, p.
140). Com isso, o design – entendido como atividade de concepção criativa, que
transforma situações existentes em situações preferidas (NEUMEIER, 2010) –
começa a ser visto como elemento aglutinador de mudanças sociais. No caso do
nazismo foram estabelecidas verdadeiras políticas de Estado para estética, de modo
a promulgar sua ideologia, orientando a maioria, senão todos os aspectos da vida
pública e privada – no que Foucault denominaria uma sociedade de normalização.

Existe urna tendência histórica no design a reduzir as questões éticas


a questões estéticas, o que é fruto geralmente de uma análise
insuficiente dos problemas a serem resolvidos. Contudo, certa ou
errada, é importante registrar a longevidade do fascínio exercido pela
ideologia do design como panacéia moral e social. Somente assim é
possível entender a veemência que tem marcado os debates
históricos em torno de opções de estilo e de estética. Na sociedade
industrial tardia, mais do que nunca, as pessoas parecem creditar às
formas exteriores geradas pelo design e pela moda o poder de
transmitir verdades profundas sobre a identidade e a natureza de
cada um. (DENIS, 2000, p. 77).

O mundo fictício de Panem, segue exatamente essa premissa, sendo o


ápice de sua propaganda justamente o programa televisivo Jogos Vorazes.
Mas ainda assim, cabe um questionamento: apesar das semelhanças que os
enquadram como únicos regimes propriamente totalitários, o que difere o nazismo
do stalinismo para que se tenha optado por um dos dois regimes?
85

2.5.1. Nazismo ou stalinismo

No decorrer desta pesquisa em questão, apresentar-se-á embasamentos


que corroboram a proposição de que, dentre os dois regimes totalitários possíveis, o
que apresenta o maior paralelo com a obra em questão, é justamente o governo
promovido pela Alemanha nazista (1933 a 1945). Toda a carga simbólica e estética
envolvida, transposta por meio de obras públicas monumentais, padronização de
símbolos e uniformes, culto à personalidade, celebrações nacionais, memoriais etc.
associado ao eficiente emprego das mídias de massa, estendeu o alcance do
público para muito além do número de espectadores presentes – cartazes, discurso
de rádio, cinema, enfim como já fora dito, tudo é cabível de se tornar propaganda,
inclusive o denominado “maior espetáculo da terra”: as Olimpíadas (GUMBRECHT,
1998). E todos esses elementos encontram paralelo na obra em questão – sendo o
maior espetáculo agora representado pelos Jogos Vorazes.
Mas sendo mais específico, o nazismo74 se apresenta como uma ofensiva
burguesa, espécie de contrarrevolução perante o avanço do que seria uma
revolução do proletariado, proposta pelo regime stalinista (DEBORD, 2013). Deste
modo, defende a ideologia burguesa75 por meio da manutenção do capitalismo,
reforçando o senso comum e conservador de família, propriedade, ordem moral,
nação etc. Ainda assim, ela se apresenta como “a forma mais custosa da
manutenção da ordem capitalista” (DEBORD, 2013, p. 75).
Em uma analogia simplista sobre posicionamento político, seria como um
embate entre a extrema direita (nazismo) contra a extrema esquerda (stalinismo).
Este viés está presente em Jogos Vorazes onde uma classe burguesa (não operária
ou camponesa), impõe seu domínio sobre uma massa servil (basicamente operária
ou rural).
Também é preciso diferenciar o posicionamento totalitário e normalizador de
ambos os governos:

No fascismo, mesmo na Alemanha nazista, as pessoas podiam


sobreviver, manter a aparência de uma vida cotidiana “normal”, se

74
O nazismo Alemão possui raiz no fascismo Italiano, não sendo incomum o uso da designação nazi-
fascismo para se referir a ambas doutrinas políticas.
75
Na sociedade capitalista, entendida como as ideias da classe burguesa, que em determinado
momento histórico, obteve predominância sobre as outras classes, e se articula de modo a manter
essa posição (MARX; ENGELS, 1998).
86

não se envolvessem em nenhuma atividade política de oposição (e, é


claro, se não tivesse origem judaica...); já no stalinismo do fim da
década de 1930, ninguém estava seguro, todo mundo podia ser
denunciado de uma hora para a outra, ser preso e morto como
traidor. Em outras palavras, a "irracionalidade” do nazismo estava
“condensada” no antissemitismo, em sua crença na conspiração
judaica, ao passo que a “irracionalidade" stalinista perpassava todo o
corpo social. Por essa razão, os investigadores nazistas ainda
buscavam provas e traços de atividade efetiva contra o regime,
enquanto os investigadores stalinistas se envolviam em invenções
claras e inequívocas (inventavam conspirações e sabotagens etc.).
(ZIZEK, 2013, p. 92).

Na obra ficcional se apresenta semelhante representação – mas é preciso


explicitar que a massa dominada se apresenta basicamente análoga ao judeu, tendo
nos distritos de Jogos Vorazes uma mescla entre campos de concentração e guetos,
diferenciando-os dos gulags russos. Em resumo, os guetos e os distritos de Jogos
Vorazes compartilham as seguintes características:

Guetos Distritos
Regiões urbanas onde judeus eram Comunidades urbanas à parte da
alocados, de maneira degradante; Capital, onde cidadão são alocados,
geralmente de maneira degradante
Geralmente cercadas, proporcionando Sempre cercadas, proporcionando
isolamento de outras comunidades e isolamento de outros distritos e seus
grupos judaicos; cidadãos;
Alimentação providenciada pelos Alimentação providenciada pela Capital,
nazistas, insuficiente para todos, insuficiente para todos, causando grave
causando grave carência alimentar; carência alimentar;
Comum aos confinados executarem O objetivo dos “residentes” é
trabalhos forçados; produzirem suprimentos para a Capital;
Proibição de escolas – mas era Existem escolas, mas seu papel é
frequente aulas clandestinas. instrumental.
(Fonte: Elaborado pelo autor)

Reiterando essas semelhanças, ficção e realidade compartilham o terrível


tratamento de dominação, antes de qualquer aniquilação física:

em um processo tortuoso de humilhação física e mental, os nazistas


primeiro destituíam os judeus de sua dignidade humana, reduzindo-os
a um nível sub-humano, e só então os matavam. Desse modo,
reconheciam implicitamente a humanidade dos judeus: embora
87

afirmassem que os judeus eram de fato ratos ou vermes, primeiro


tinham de reduzi-los brutalmente a essa condição. [...] Outra prova é
dada pela multiplicidade de práticas que só pioravam as coisas: as
bandas tocando enquanto os judeus marchavam para as câmaras de
gás ou para o trabalho, a famigerada inscrição “Arbeit macht frei!” [O
trabalho liberta] na entrada de Auschwitz etc. (ZIZEK, 2013, p. 50).

Essa busca incessante em reduzir a humanidade do subjugado, se


apresenta na obra em questão em todo o processo de despojamento que os
moradores dos distritos são vitimados, tendo como uma deturpada “solução final”
desenvolvida pela Capital, a possível destinação de seus filhos para o
entretenimento de vida ou morte denominado Jogos Vorazes.
Para finalizar a questão do porquê da escolha ao nazismo em detrimento ao
stalinismo, voltar-se-á a questão criativa: a produção oficial stalinista se propunha a
uma moralidade utópica, se apresentando totalmente assexual e casta;
diferentemente da produção nazista, que buscava uma utopia estética, no qual se
incluía a perfeição física, e consequentemente uma eroticidade idílica, que de modo
ideal pudesse ser usado como energia benéfica a toda a comunidade (SONTAG,
1981). Na panacéia que envolve o espetáculo televisionado de Jogos Vorazes, se
enaltece os atributos dos participantes, inclusive beleza e carisma, e a insinuação de
uma relação apaixonada entre os protagonistas, com a transmissão de momentos
mais cálidos, proporcionando fidelização da audiência que se reverte em patrocínios.

2.5.2. Revivalismo, retrocipação e presentificação

Ainda assim, existem outros elementos imprescindíveis que aproximam a


obra de um paralelo ao regime nazista. Um das características chave dos regimes
totalitários e extremamente presente no nazismo alemão, é o referenciar de uma
anterioridade – propriedade que pode ser entendida tanto pelo conceito de
revivalismo, caracterizado pela intenção de reviver ou restaurar estilos, formas e
ideias que pertencem a um passado representativo de suas raízes (OUTHWAITE;
BOTTOMORE, 1996); quanto pelo de retrocipação, presente no retrofuturismo como
o “entendimento de considerar o futuro do ponto de vista do passado, de reencenar,
de reproduzir, de reativar o futuro tal como o passado podia imaginá-lo” (DURING,
2013, p. 212); ou ainda pelo conceito de presentificação, entendido como “as
88

técnicas que produzem a sensação (ou melhor, a ilusão) de que os mundos do


passado podem tornar-se de novo tangíveis” (GUMBRECHT, 2010, p. 123), mas não
por meio de “recuperar o sentido dos eventos passados, mas permitir que sejam re-
vividos, re-apresentados (e não representados)” (FELINTO; ANDRADE, 2005, p. 83).
No caso da Alemanha nazista, essa anterioridade aparece visivelmente
representada por elementos da mitologia nórdica, das cruzadas medievais, mas
especialmente do Império Romano, ou mais precisamente: do Sacro Império
Romano-Germânico, considerado o primeiro reich.

Para muitos, o futuro da nação residia na restauração do Santo


Império da Nação Alemã, o Primeiro Reich, tal qual existira na Idade
Média. Diante do imobilismo, causado pelo medo da revolução liberal
e nacional, vivido na Alemanha da Restauração (1815-1848), o velho
império romano (medieval, alemão) surgia como a resposta possível
aos anseios nacionais. Talvez a única resposta possível, para as
elites restauradoras, de se chegar a um arremedo de Estado nacional
sem dissolver a sociedade de privilégios ainda existente na
Alemanha. (DA SILVA, 2009, p. 229).

Portanto, conforme se apresenta no decorrer desta pesquisa, aceitar como


foi amplamente divulgado – que o Império Romano é o grande referencial presente
em Jogos Vorazes – seria ignorar os elementos que se apresentam no correr deste
trabalho. O que se está a propor, é que na construção desse mundo ficcional,
especialmente em sua transposição cinematográfica, há primariamente uma
presentificação da Alemanha nazista, que por si só, já presentificava o Império
Romano – a presentificação é uma remediação do passado. Assim, o nazismo se
apresenta no entre-lugar, um meio termo entre um passado romano real e um futuro
fictício possível.

Historical memory benefits those who want to take the future into their
hands, take control over the active shaping of those cognitive
structures and frameworks of public discourse which determine the
consensual sphere of everyday values, conducts and morals. It is
these institutionalized spheres of identity-formation that the Nazi
regime corrupted, making it into the realm of narcissistic identification,
89

using history to capture the national irrational and myth.76 (GYŐRI,


2010, p. 175).

Com isso, primeiramente a antiguidade romana e contemporaneamente a


Alemanha nazista, se apresentam como modelos cognitivos, o que propicia suas
apropriações pela indústria cultural, de modo a reinseri-las nos mais variados
produtos artístico-midiáticos, tanto para manter ou criticar o status quo (DA SILVA,
2009).
Outra característica a proporcionar paralelo, reforça a busca por reviver uma
origem passada e mítica. Ao inaugurar uma modalidade política galgada em
referenciais heroicos e trágicos, o fascismo, portanto o nazismo, proporciona “uma
ressurreição violenta do mito, que exige a participação em uma comunidade definida
por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo
tecnicamente equipado” (DEBORD, 2013, p. 75). A essa forma de governo, a guerra
se apresenta como elemento agregador:

Hitler referia-se freqüentemente à necessidade da guerra, oscilando


do ponto de vista mítico ao do estrategista militar. Afirmava ser a
guerra "eterna", “cotidiana", “vida" — “um estado original" —, e toda
sua concepção de política se apoiava sobre a necessidade histórica
de assegurar ao povo alemão seu espaço vital. Como o espaço vital
sempre fora conservado ou conquistado pela luta, não via outra
alternativa senão fazer uso “defensivo" da guerra, que seria o
“objetivo derradeiro da política”. (LENHARO, 2006, p. 75).

Mesmo após todo o desenrolar da Segunda Guerra Mundial, esse


pensamento voltado para a guerra se encontra igualmente presente – oculto em
momentos de opulência e manifesto em épocas de crise, comumente por meio dos
movimentos nacionalistas:

a intensidade do nacionalismo, do racismo, da glorificação da


violência e do militarismo, evidentes durante a Guerra do Golfo, foi
reação ao aumento da pobreza e da insegurança, algo semelhante à
situação da Alemanha nazista [...]. As demonstrações favoráveis à

76
Tradução do autor: “Memória histórica beneficia aqueles que querem ter o futuro em suas mãos,
tomar o controle sobre o ativo moldar daquelas estruturas cognitivas e frameworks do discurso
público, que determina a consensual esfera dos valores diários, condutas e morais. São essas
esferas institucionalizadas de formação identitária que o regime nazista corrompeu, transformando-a
em um reino de identificação narcisista, usando a história para capturar o irracional e mítico nacional”.
90

guerra pareciam oferecer mecanismos por meio dos quais as pessoas


podiam fugir à impotência e superar (temporariamente) a
insegurança. (Boggs apud KELLNER, 2001, p. 282).

É nesse ponto que o antissemitismo nazista se aproxima da segregação


existente em Jogos Vorazes. São vários os fatores que culminaram no
antissemitismo extremo nazista – historicamente, a aversão se dá ao judaísmo, por
ser uma religião externa presente no interior de uma religião cristã (PINSKY, 2013;
LLOSA, 2013). Volta-se aqui a falar de fronteiras bem delimitadas: após a conversão
de Roma para o cristianismo, consequentemente o continente europeu como um
todo foi convertido para a mesma religião. No conturbado porvir de todos os reinos e
nações europeias, apenas um elemento se mantinha – a religião. Quando as
fronteiras europeias aumentavam, expandia o cristianismo; se porventura diminuíam,
retraía o cristianismo, pois o que vinha de fora sempre possuía outra religião. A
máxima “ou se é como Roma ou se é um bárbaro” se tornou o leitmotiv que orienta
até hoje preconceitos muito além do antissemitismo.
Exemplificando: no comum entendimento do pensamento europeu e
prontamente mimetizado na américa, primariamente se possui um elo com a terra do
qual se era nativo, e por meio dela ser cristão. Assim, se era inglês e cristão, italiano
e cristão, alemão e cristão etc. Já no entendimento judeu essa questão se inverte,
primeiramente possuindo elo com seu deus e religião, para depois pertencer a
alguma nacionalidade – resultante da busca por uma terra prometida e
constantemente negada. Assim, se era judeu e inglês, judeu e italiano, judeu e
alemão etc. Isso permitiu ver (e ainda vê) os semitas como um corpo estranho
(externo), que não compartilham a mesma noção de fronteiras físicas e espirituais,
mas que crescem em seu recôndito e se espalham. Como resultante, desencadeia-
se o dito arcaísmo, repleto de um nacionalismo preconceituoso e xenofóbico
(PINSKY, 2013).

A imagem dos judeus, tanto do ponto de vista linguístico como


cognitivo, sofreu transformações: de grupo religioso, passaram a ser
interpretados como nação e associação políticas de cunho
corporativo. Procurando definir o perigo da configuração de uma
“identidade judaica” – incentivada pelo processo de emancipação dos
judeus na Europa —, os anti-semitas alemães optaram por interpretá-
los como constituintes de uma “raça nociva”, conceito reforçado pela
idéia de malignitude: “o judeu" (der Jude) era o oposto do modelo
91

ideal de alemão puro. Fosse como raça, religião, nação ou grupo


político, o judeu era representado como símbolo da corrosão cultural,
econômica, moral, política. Enfim, era sempre visto como um corpo
estranho na Alemanha: um Fremdkörper. (PINSKY, 2013, p. 110).

É preciso entender que nesse pressuposto, enquadram-se como alvo tanto


os ciganos e islâmicos, quanto aos refugiados (como na crise retratada atualmente)
e até mesmo imigrantes. Ao somar-se a isso uma deturpada ordem hierárquica,
fundamentada no código genético, abre-se para uma eugenia, no qual a ignorância e
o ódio abrangeriam também negros, índios, deficientes, homossexuais etc.
De certo modo, esse é o quadro apresentado na obra em questão: apesar
de não haver nenhuma menção direta à religião, fica estabelecido que a origem da
nação de Panem se dá após uma sucessão de desastres onde antigamente era a
América do Norte, como “as secas, as tempestades, os incêndios, a elevação no
nível dos mares que engoliu uma grande quantidade de terra, a guerra brutal pelo
pouco que havia restado” (COLLINS, 2010, p. 24). Fica implícito que essa sucessão
de eventos seria resultante de um aquecimento global extremo, conforme alardeado
pelas piores previsões, com resultados catastróficos tanto econômicos, sociais e
culturais – e com isso, ser possível imaginar um deslocamento maciço de refugiados
do clima, migrando para as terras resultantes (ARROW, 2012).
Ao se atentar, como descrito no livro, das caracterizações dos moradores
dos distritos – aos do Distrito 12 é característico possuírem “cabelos lisos e pretos,
pele morena, ambos temos até os mesmos olhos cinzentos” (COLLINS, 2010, p. 14)
ou aparentarem deslocadas quando possuidores de cabelos louros e olhos azuis; já
no Distrito 11 é comumente de peles e olhos escuros (COLLINS, 2010) – é possível
aferir características raciais distintas do que se tem estabelecido como o padrão
norte-americano, esse atrelado aos moradores da Capital. Assim, os moradores dos
distritos seriam descendentes diretos de outras nações e etnias, que tentaram
migrar escapar à decorada climática, ao final se tornando alvo da segregação,
entendidos numa mescla de classe e raça inferior, ultrajantemente subjugados.
92

Figura 24 Identificação dos candidatos a Tributos no filme Jogos Vorazes: visível DNA, molécula e genoma

(Fonte: JOGOS, 2012)

É pelo constante temor dessa ocorrência, ou da iminência desse tipo de


guerra, é que a autora Suzanne Collins formulou o enredo do seu livro, citando em
uma entrevista que:

One of the reasons it's important for me to write about war is I really
think that the concept of war, the specifics of war, the nature of war,
the ethical ambiguities of war are introduced too late to children...if the
whole concept of war were introduced to kids at an earlier age, we
would have better dialogues going on about it, and we would have a
fuller understanding.77 (FRANKEL, 2012, pos. 1835).

Justamente, Jogos Vorazes se apresenta como resultante de um pós-guerra,


no qual um tratado – não de paz, mas sim de traição – se estabeleceu, mantendo
uma pseudo paz embasada no poder, que pelo viés de Foucault (2010), encontra
reflexos tanto do esquema contrato-opressão, quanto do esquema guerra-repressão,
com maior ênfase neste último – que se baseia na oposição entre luta e submissão,
reflexo e expressão de um poder político para guerra.

E, se é verdade que o poder político para a guerra, faz reinar ou tenta


fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para
suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que
se manifestou na batalha final da guerra. O poder político, nessa

77
Tradução do autor: “Uma das razões que me é importante escrever sobre guerra é que, eu
realmente penso que o conceito de guerra, as especificidades da guerra, a natureza da guerra, as
ambiguidades éticas da guerra, são introduzidas muito tarde às crianças... Se todo o conceito de
guerra fosse apresentado aos jovens de uma menor idade, teríamos melhores diálogos sobre o tema,
além de um entendimento mais completo”.
93

hipótese, teria como função reinserir perpetuamente essa relação de


força, mediante uma espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas
instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos
corpos de uns e de outros. (FOUCAULT, 2010, p. 15).

Portanto, ao identificar essas imbricações e inter-relações, presentes entre


Jogos Vorazes e o nazismo, permite uma maior tangibilidade da intermidialidade
proposta neste trabalho.
Esperança é a única coisa mais forte que o medo.
Um pouco de esperança é eficaz, muita esperança é perigoso.
Faíscas são boas enquanto são contidas.
Jogos Vorazes

Quanto maior o medo na população,


mais fácil é impor um regime autoritário sobre ela.
Manuel Castells
sociólogo espanhol.
95

3 A INTERMIDIALIDADE ENQUANTO TEXTO:


ou A busca por uma ambiência nazista ressignificada

Muitos dos elementos presentes nas produções contemporâneas estão no


imaginário popular, tendo sofrido recorrentes processos intermidiáticos através dos
séculos, remediados por meio de lendas, folclores e arte. É um processo que
adquire outra dimensão perante a introdução de cada novo meio, técnica ou
tecnologia, especialmente a partir do surgimento dos meios de produção e
distribuição de massa, mas sobretudo após o surgimento dos meios digitais. E Jogos
Vorazes segue este mesmo preceito: são diversos os elementos que foram
transpostos, adaptados, combinados, recriados, referenciados etc. E nem poderia
ser diferente, se adotarmos que tudo é um remix78.
Figura 25 Elementos básicos da criatividade – Everything is a Remix.

(Fonte: Sítio Everything is a Remix, 2015)

Neste capítulo, buscar-se-á compreender as ressignificações entre os


elementos presentes na obra, tendo o livro como matriz principal, que converge por
toda uma gama de materialidades – portanto, se apresentando como diversas
mídias distintas – mas que são diretamente dependentes do texto original. Cada
uma conta com configurações estéticas e simbólicas próprias, espaço de
convergências e ressignificações.

78
Parafraseando título e conceito do popular documentário online Everything is a Remix, por Kirby
Ferguson. Disponível em http://everythingisaremix.info/.
96

Até o presente momento, os trabalhos que buscaram analisar a obra,


seguiram à risca as declarações da própria autora, ao admitir que Jogos Vorazes se
fundamenta no Império Romano. Isto é indubitavelmente verdadeiro durante a
fruição da obra, em diversos momentos sendo facilmente perceptivo, noutros nem
tanto.
Reafirmar esta característica já amplamente comprovada não é o objetivo
desta pesquisa. Mas sim, a partir dela, propor e demonstrar a existência de uma
ambiência nazista ressignificada presente na obra, percebida de modos distintos em
cada uma de suas materializações, buscando consonâncias, ressonâncias e
dissonâncias em suas diversas transposições.

3.1 De livro em livro

Aqui será analisada com mais detalhes a intermidialidade contida no livro


Jogos Vorazes, estabelecendo os vínculos que possam conter perante outras obras
literárias que, não somente compartilham elementos, como servem de referência
para a obra. Em sua raiz estão contidos elementos greco-romanos, utopistas e
distópicos. Terão especial atenção as obras deste último, especialmente as que,
assim como Jogos Vorazes, também possuam versões cinematográficas: neste
recorte, se encaixam os cânones romances distópicos Admirável Mundo Novo (de
Aldous Huxley, publicado em 1932), 1984 (de George Orwell, publicado em 1949) e
Fahrenheit 451 (de Ray Bradbury, publicado em 1953). Mantendo os devidos
cuidados, também se correlaciona com O Senhor das Moscas (de William Golding,
publicado em 1954) e com a obra mais contemporânea Battle Royalle (de Koushun
Takami, publicado em 1999), conceituado romance japonês.
Se tomado Jogos Vorazes como um todo – portanto a saga contendo seus
três livros – tanto a história quanto o personagem referencial seria Spartacus,
escravo romano levado a se tornar gladiador, vindo a incitar uma rebelião contra
seus opressores, que acabou por se tornar uma guerra. O mesmo ocorre com a
protagonista Katniss (FRANKEL, 2013; EGAN, 2012). Como previamente citado, o
filme que narra essa história é um dos seus favoritos.
Ainda assim, muito do enredo base que constitui o cerne de Jogos Vorazes
– especialmente no primeiro livro – vem do mito Grego de Teseu e o Minotauro. Em
resumo, o rei de Creta impôs como parte dos termos de rendição a Atenas, uma
97

punição por seus atos, que consistia em que periodicamente lhe fosse enviado
jovens como tributos – sete rapazes e sete moças –, onde seriam postos em um
labirinto para que fossem vitimados pela criatura Minotauro. Isto só acabaria após
Teseu se oferecer como tributo e derrotar o monstro.

Even as a kid, I could appreciate how ruthless this was. Crete was
sending a very clear message: “Mess with us and we’ll do something
worse than kill you. We’ll kill your children.” And the thing is, it was
allowed; the parents sat by powerless to stop it.79 (COLLINS, 2010).

Em Jogos Vorazes temos a intertextualidade desses elementos, sendo Creta


e seu rei a remediação da Capital e seu presidente; os jovens tributos análogos aos
dos distritos; o labirinto é a arena; Katniss ao se oferecer como tributo recria um
Teseu contemporâneo.
Figura 26 Teseu e o Minotauro (detalhe de vaso grego, 440-430 AC)

(Fonte: Sítio Wikimedia Commons, 2007)

Outra raiz na mitologia clássica, é o vínculo da protagonista com o arquétipo


da deusa greco-romana Ártemis/Diana. Aparece como indiferente ao amor, e ao
mesmo tempo que é protetora, pode ser implacável, possuindo um temperamento

79
Tradução do autor: “Mesmo enquanto criança, pude perceber o quão cruel era isso. Creta estava
enviando uma mensagem muito clara: ‘Mexa conosco e nós vamos fazer algo pior do que matá-lo.
Nós vamos matar seus filhos.’ E o fato é que era permitido; seus pais incapazes de interromper isso”.
98

arisco. Exímia no arco e flecha, e por consequência sendo grande caçadora, movia-
se com facilidade por entre florestas e colinas, por efeito, sendo este considerado o
seu portfólio de atuação, bem como o de protetora da vida feminina. Especialmente
em seu viés romano, assegurava os nascimentos, provia a sucessão dos reis, bem
como era protetora dos escravos (CHEVALIER, 1986). Tanto no primeiro livro,
quanto na saga como um todo, esta é a base da personalidade de Katniss.
Figura 27 Diana por Augustus Saint-Gaudens (1893)

(Fonte: Sítio do The Metropolitan Museum of Art, s/d)

Em se tratando dos elementos romanos utilizados, em sua maioria são


releituras das peças de Shakespeare com esta temática, que por si só, já são livre-
adaptações das histórias originais. Todos os personagens da Capital 80 possuem
seus nomes e especialmente motif recorrentes dessas peças romanas, o que
proporcionam interessantes ecos nessas transposições. Por exemplo, a peça Julio
César (1599) apresenta seis personagens que estão presentes no primeiro livro de
Jogos Vorazes – Cinna, Portia, Flavius, Cato, Claudius e o próprio Caesar. Já o
presidente de Panem, Coriolanus Snow, encontra sua contraparte em outra peça:
Coriolano (1605), que apresenta esse personagem como uma figura completamente
desprezível, existindo apenas para aterrorizar os cidadãos, motif presente na versão

80
Alguns dos tributos carreiristas, portanto dos distritos mais próximos e favoráveis a Capital, também
possuem nomes romanos, talvez como forma de homenageá-la ou de inserção social.
99

de Collins (FRANKEL de 2012). Em Jogos Vorazes, a Capital é a transposição da


frivolidade e violência do Império Romano. Mas também temos reminiscências de
Romeu e Julieta (1597), nos instantes finais da transmissão dos Jogos.
Acredita-se ser possível ilustrar a criação de Jogos Vorazes por meio da
analogia a uma construção (residencial): sua fundação se dá no mito grego, e sua
estrutura erigida nos moldes romanos. Em sentido lato, semelhante ao caminho
percorrido pela civilização ocidental – no qual ainda hoje suas reminiscências
perduram, seja em referências, embasamentos ou produções. Mas a cobertura
dessa construção seria por meio da utopia/distopia.
Não é incomum às obras que tratam sobre a existência de um lugar fictício
ideal, retratarem suas localizações como sendo, de certo modo, remotas ou isoladas
– seria esse um simbolismo de que utopias não são disponíveis facilmente ou para
qualquer um? Se sim, seria o oposto do que ocorre com as distopias, geralmente
encontradas amplamente difundidas por todos os cantos e regiões possíveis.
Muitos desses isolamentos fictícios se dão na forma de ilhas: tanto em
Utopia (More, 1516), quanto a Cidade do Sol (Thommaso Campanella, 1602),
Christianopolis (Johannes Valentinus Andreä, 1619) e Nova Atlântida (Francis
Bacon, 1626). Se considerados como pertencentes ao utopismo, ao menos em sub-
gênero, esse fato se reflete até mesmo em Robinson Crusoé (Daniel Defoe, 1719) e
As Viagens de Gulliver (Jonathan Swift, 1726) (CLAEYS, 2013).
Figura 28 Frontispício do livro Utopia, apresentando a ilha-nação e seu alfabeto

(Fonte: CLAEYS, 2013)


100

Mas Jogos Vorazes se passa na nação de Panem, que de modo incomum


para uma distopia, é descrita como sendo isolada, nos moldes de uma ilha-
continente – característica pertencente contemporaneamente a Austrália. Do que
sobrou do restante do mundo, nada se sabe, nem é cogitado, nem questionado.
Ainda assim, ao se levar em consideração que Panem está estruturada em uma
opulenta Capital que controla 12 distritos subdesenvolvidos e isolados entre si, esta
pode ser entendida como uma espécie de utopia rodeada por distopias, e que a
única forma de adentrá-la não é de um modo nada fácil, nem é para qualquer um:
somente sendo sorteado como participante dos Jogos Vorazes. Isto reitera o que já
fora exposto, de que toda utopia traz consigo uma antiutopia.

Figura 29 Edições atuais de Utopia e 1984

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios das editoras Martin Claret e Cia. das Letras)

É justamente no que tange as distopias que a intermidialidade se torna


especialmente evidente em Jogos Vorazes: nas reminiscências das obras 1984 e O
Senhor das Moscas – que a autora já revelou publicamente estarem entre os seus
livros preferidos –, bem como na intertextualidade presente nas outras obras aqui
referidas.
Se em Jogos Vorazes o controle é pela miséria e fome, em 1984 ele se dá
pela simplificação extrema da língua, que foi reduzida, modificada e condensada até
virar a novilíngua, uma forma de engenharia linguística pela qual é possível doutrinar
101

o pensamento das massas trabalhadoras (proles), entretidas por uma dieta de


trabalho pesado, jogos e diversões baratas. Um mundo sombrio, cinza e depressivo
definido pela onipresença do líder Grande Irmão (uma figura messiânica ao estilo de
Hitler, ou o Presidente de Panem), e por constante submissão ritualística e devoção
escrava ao Estado. A vigilância é constante por meio das Teletelas, e desvios são
evitados pela ubíqua Polícia do Pensamento, tendo a individualidade cruelmente
reprimida. Semelhantemente ocorre em Jogos Vorazes, apenas que essa repressão
se dá por meio de uma força tarefa de nome mais irônico: os Pacificadores.
Já em Fahrenheit 451, de modo semelhante, a escrita foi reduzida a um
papel meramente instrumental, pois seu objetivo é apenas permitir o acesso ao
entretenimento, seja para ler o manual técnico do equipamento de TV ou da sua
programação. Portanto a nação não é de analfabetos – igualmente em Jogos
Vorazes, onde os residentes dos distritos vão à escola. De igual modo, seu papel é
instrumental voltado para o trabalho ou como forte aparato de doutrina ideológica da
Capital. Conforme descreve Katniss, a protagonista de Jogos Vorazes:

De algum modo, quase tudo na escola acaba se relacionando com


carvão. Além de leitura básica e matemática, grande parte de nosso
ensino remete ao carvão — exceto a palestra semanal sobre a
história de Panem. E não passa de conversa mole sobre o que
devemos à Capital. Sei que deve haver muito mais coisas do que o
que nos é ensinado. Deve haver algum relato real do que aconteceu
durante a rebelião. Mas não passo muito tempo pensando nisso. Seja
lá qual for a verdade, não vejo como ela me ajudará a colocar comida
na mesa. (COLLINS, 2010, p. 49).

Mas diferentemente de 1984, em Fahrenheit 451 e em Admirável Mundo


Novo, o mundo é repleto de resplandecência, com veículos voadores, televisores
enormes, drogas reconfortantes, abundância de roupas extravagantes, bem como o
recorrente emprego de cirurgias reparadoras – e assim o é em Jogos Vorazes, mas
no que tange a Capital de Panem. Novamente pela descrição da protagonista:

O trem finalmente começa a diminuir a velocidade, e, de repente,


luzes brilhantes inundam o compartimento. Não conseguimos evitar.
Peeta e eu corremos para a janela para ver o que só conhecíamos
pela televisão. A Capital, a cidade que governa Panem. As câmeras
não mentiram a respeito da grandiosidade do local. Se tanto, elas não
chegaram a captar a magnificência dos edifícios esplendorosos num
arco-íris de matizes que se projeta em direção ao céu, os carros
102

cintilantes que passam pelas avenidas de calçadas largas, as


pessoas vestidas de modo esquisito, com penteados bizarros e rostos
pintados que nunca deixaram de fazer uma refeição. Todas as cores
parecem artificiais, os rosas intensos demais, os verdes muito
brilhantes, os amarelos dolorosos demais aos olhos, como as balas
redondas e duras que nunca temos condições de comprar nas
lojinhas de doce do Distrito 12. (COLLINS, 2010, p. 67).

Em 1984 a função da guerra não é outra que manter o poder das classes
altas, limitando o acesso à educação, à cultura e aos bens materiais das classes
baixas, impedindo-os que acumulem cultura e riqueza e se tornem uma ameaça às
classes superiores. De modo semelhante isto ocorre em Jogos Vorazes, no que
Foucault denomina esquema guerra-repressão, que se baseia na oposição entre luta
e submissão, reflexo e expressão de um poder político para guerra.

E, se é verdade que o poder político para a guerra, faz reinar ou tenta


fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para
suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que
se manifestou na batalha final da guerra. O poder político, nessa
hipótese, teria como função reinserir perpetuamente essa relação de
força, mediante uma espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas
instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos
corpos de uns e de outros. (FOUCAULT, 2010, p. 15).

Outros paralelos ainda se fazem presentes em Admirável Mundo Novo, no


qual ou se é nativo do Estado, ostensivamente civilizado, ou se é um selvagem,
vivendo à margem. A civilização é rigidamente dividida em castas, não havendo
direito reprodutivo algum, pois a reprodução é uma linha de montagem estendida
aos humanos, feita em laboratório e com aperfeiçoamento genético. Isso aliado a
engenharia social garantem uma classe governante privilegiada e um reservatório
vasto de mão de obra, condicionada em uma vida de maravilhas, entretida por sexo
constante, rituais com drogas (entre elas, uma que elimina preocupações
mundanas), cinema imersivo de massa e consumismo desenfreado. Enfim, por meio
da manipulação comportamental atrelada a um capitalismo selvagem, no qual
imperam a uniformidade, o materialismo hedonista e ausência de religião outra que
não seja o próprio consumo.
103

Isto pressuposto, pode-se vislumbrar que em Jogos Vorazes temos a


atualização de 1984 – especialmente no que tange a massa servil moradora dos
distritos – bem como de Admirável Mundo Novo – no que se relaciona com a elite
moradora da Capital. Em todas, o forte uso da tecnologia, em especial a engenharia
(linguística, eugênica, genética), e de igual modo não há referência alguma a uma
religião específica, apenas ritualizações.
Figura 30 Edições atuais de Admirável mundo novo e Fahrenheit 451

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio da editora Biblioteca Azul)

Mas se nos anos em que foram desenvolvidos 1984 e Admirável Mundo


Novo, a sociedade ocidental sofria a influência da existência dos regimes totalitários,
já durante Fahrenheit 451 possuía influências de novas materialidades fornecidas
pela indústria cultural proeminente. Conforme cita Manoel da Costa Pinto 81, no
prefácio de uma das edições de Fahrenheit 451:

É difícil avaliar o quanto essa descrição de um mundo assolado pela


indústria do entretenimento soava caricatural quando Bradbury
publicou Fahrenheit 451. Atualmente, porém, nenhum leitor do
romance terá dificuldade em ver nesse quadro desolador um
instantâneo de nossa realidade mais cotidiana. Os monitores de
televisão, onipresentes nesse livro, podem ter sido inspirados no

81
Manoel da Costa Pinto é jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada, sendo autor,
tradutor e editor, e atualmente é colunista de um jornal de grande circulação.
104

Grande Irmão de Orwell; hoje, ironicamente, se parecem mais com os


reality shows. (BRADBURY, 2012, pos. 175)

Esta citação esboça coerentemente o caminho possivelmente percorrido por


Collins para elaborar sua história, que dentre outras obras, buscou elementos em
1984, referenciou Fahrenheit 451, e mimetizou os programas denominados reality
shows, bem como o fascínio que atualmente proporcionam. Em verdade, não se
pode ignorar que no enredo do livro, Jogos Vorazes é a denominação de um reality
show extremo, e que porventura acabou por nomear o trabalho de Collins.
Seguindo por este caminho, e em uma ressignificação mais contemporânea,
recentemente não faltaram comparações entre as obras Battle Royale e Jogos
Vorazes, inclusive com acusações de que Suzanne Collins plagiou a história de
Koushun Takami. Na obra, o governo japonês, agora a totalitária República da
Grande Ásia Oriental, organiza anualmente uma disputa de vida ou morte, no qual
seleciona aleatoriamente uma turma escolar ginasial com todos os seus 42 alunos
adolescentes, confinando-os em uma ilha remota e deserta, onde precisam matar
uns aos outros até que reste apenas o vencedor – e único sobrevivente – que
retornará como heroi nacional, com direito a uma boa pensão vitalícia do governo.
Nesse evento não televisionado, os adolescentes são obrigados a usar colares de
metal que explodirão suas cabeças caso tentem tirar, fugir, ou adentrar em
perímetros proibidos, pois a ilha inteira é dividida em quadrantes que com o passar
do tempo vão se tornando proibidos, obrigando os participantes a constantemente
se movimentarem para não morrer, mas que em contrapartida facilitam os
encontros/combates entre si. Outra regra é da obrigatoriedade da morte de alguém a
cada 24 horas, ou todos serão eliminados. Tudo isso simplesmente para que a
nação aprenda que não é possível confiar uns nos outros e, por conseguinte, não é
possível ser subversivo e organizar revoluções.
Apesar de o ponto de partida ser exatamente o mesmo – jovens obrigados a
matar uns aos outros como parte de um jogo – o foco das duas obras é bem distinto.
Jogos Vorazes acaba sendo muito mais um questionamento, uma crítica política e
social da sociedade de consumo atual. Já Battle Royale o questionamento é
psicológico, levando ao extremo as angústias, paixões, amizades e antagonismos
presentes no ensino médio.
105

Jogos Vorazes não só apresenta uma situação extrema no qual jovens


famintos precisam matar uns aos outros, como também a expande para além de
suas famílias: sua comunidade depende do vitorioso, pois uma das premiações – o
aumento dos insumos distribuídos para cada família do distrito vencedor –
amenizaria as mazelas dos moradores. Já em Battle Royale esses jovens, bem
como suas famílias, estão em perfeitas condições e possivelmente se conhecem a
vários anos, tendo que se matar uns aos outros puramente por doutrinação social.
Figura 31 Edições atuais de Battle Royale e O senhor das moscas

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios das editoras Globo Livros e Leya)

Indubitavelmente, o denominador comum entre Battle Royale e Jogos


Vorazes é a obra O Senhor das Moscas. Nele, tanto se encontra um estudo
deliberado da adolescência e sua selvageria – foco de Battle Royale – quanto na
relação entre Estado (civilização) e seu papel na formação do ser humano
sociabilizado – foco de Jogos Vorazes. É contado em O Senhor das Moscas a
história de um grupo de estudantes, todos garotos pré-adolescentes finamente
educados, que sobrevivem a um acidente aéreo no qual todos os adultos perecem,
largados a própria sorte em uma ilha paradisíaca e deserta do Pacífico. Inicialmente
tudo é alegria, pois não há compromissos, só “férias tropicais”, só que para
sobreviverem – conseguir alimentos, se proteger do clima, bem como tentar avisar
possíveis equipes de busca – é preciso manter tarefas e estabelecer objetivos. Mas
106

longe da civilização, gradativamente vão desenvolvendo paranoias e se voltando


apenas à caça e às brincadeiras – soluções fáceis e de satisfação imediata – se
aproximando da barbárie e selvageria. Ao sobrar apenas o “comandante” a manter
intacta suas convicções e civilização, se torna um pária que deve ser eliminado.
Embora a sua premissa pareça simples, a obra traça uma análise profunda da
civilização, seu papel na formação de ser humano, bem como da natureza humana.
Uma característica que não pode ser deixada de lado, é referente à
narrativa: tanto Admirável Mundo Novo, 1984, Fahrenheit 451, O Senhor das
Moscas, quanto Battle Royale, apresentam uma narrativa em terceira pessoa. Já
Utopia, Robinson Crusoé e As Viagens de Gulliver são apresentados em primeira
pessoa. É justamente este o caso de Jogos Vorazes, que curiosamente, mais uma
vez se assemelha às obras utópicas, no lugar de seguir os cânones distópicos,
novamente reiterando que o primeiro é a raiz do segundo.
Deste modo, ao trazer uma narrativa em primeira pessoa, o livro põe seu
leitor somente na posição da protagonista, sendo apresentado ao enredo pelo seu
olhar – o que se sabe é o que ela vê, presume e vivencia, posicionamento análogo a
condição humana –, e consequentemente, proporciona um stimmung claustrofóbico
perante a realidade da obra. Mas, ao mesmo tempo reforça a empatia ao
personagem, pois "we learn her intimate thoughts and get to know her as a person” 82
(BOOTH, 2015, p. 144). Esta empatia é intensificada não só em momentos de
provação, mas no decorrer daquela variação tipicamente humana frente às
(a)diversidades diárias, sejam sentimentos de resignação ou subversão, bem como
de impotência ou resiliência. Portanto, o leitor se encontra praticamente na cabeça
da personagem Katniss, não demorando muito para que se identifique com uma ou
várias de suas atitudes ou características, pois a protagonista não possui contornos
definidos e definitivos, mas sim difusos, por ser uma adolescente na construção do
seu ser, muito próximo do público alvo da obra. Com tudo isto, tem-se que a força da
obra se apresenta por meio da personagem.
Dando continuidade, já se direcionando para a finalização desta parte do
estudo, em todas as obras distópicas apresentadas, à exceção de O Senhor das
Moscas, a vigilância do governo é extremamente invasiva. Deste modo, tudo que
está sendo apresentado só é possível no que Foucault denominaria uma sociedade

82
Tradução do autor: “aprendemos seus pensamentos íntimos e a conhecê-la como pessoa”.
107

de normalização (FOUCAULT, 2010), o mesmo tipo de sociedade que permitiu a


ascensão do nazismo.
Com tudo isso, percebe-se que em Jogos Vorazes ocorre a busca e a
remediação de elementos especialmente constituintes da literatura distópica, tanto
as que referenciam um regime de governo autocrático, ditatorial e totalitário, bem
como das que tratam da alienação do povo. Muitos desses elementos já estão no
imaginário popular, por se fazerem presentes repetidamente, pelos mais variados
meios e formas. Mas quanto aos elementos que realmente possam ser
referenciados ao nazismo?
Realmente o livro é bem contido em descrições que possam proporcionar
um paralelo direto, mas é repleto de ambiguidades, estas permitindo associações
que podem ser atreladas ao nazismo, mas não exclusivamente. De fato, sendo a
obra feita por uma estadunidense, reflete as preocupações perante os rumos de sua
própria terra natal, apresentando uma fictícia deturpação futura dos EUA, que
explora um dos maiores temores da nação – o fim das emendas constitucionais
relacionadas aos direitos civis, dentre elas: liberdade de expressão; posse de armas;
contra o abuso do Estado e erradicação da escravidão. Há tempos estes temores
proporcionam campo fértil para as mais diversas produções, assim como o foram no
caso de Jogos Vorazes, sendo tanto uma resposta ao passado quanto ao presente:
“after the September 11th attacks, namely extrajudicial arrests and detainments,
cruel and unusual punishment, indifference to civilian deaths, and the manipulation of
events for political reasons83” (HENTHORNE, 2012, p. 121).
Mas ao apresentar um regime análogo ao totalitário, volta-se ao
posicionamento defendido por Arendt, de que, ou se está referenciando o stalinismo
ou o nazismo. E se, durante o correr do texto, não se observa assertivamente qual
regime se está a refletir, poderia começar a desvanecer qualquer dúvida na
presença de um importante elemento, até este momento ignorado: a arte da capa.
Mas será que a partir da análise desta, será possível vislumbrar uma
existente ambiência nazista na obra? Seria este elemento o desencadeador de sua
transposição estética para as telas?

83
Tradução do autor: “após os ataques de 11 de setembro, aconteceram detenções e custódias
extrajudiciais, punição cruel e não usual, indiferença perante mortes civis, bem como manipulação de
eventos por razões políticas”.
108

3.2 Das páginas à capa

O mercado editorial é uma área muito profícua para designers, possuidor de


certa glamourização para estes, pois sua abrangência proporciona um campo
enorme de possibilidades e visibilidade. No que tange o design de livros, é uma das
áreas definidoras do campo do design gráfico, carregando em si uma nostálgica
responsabilidade.
Na maioria das vezes, o primeiro contato que se tem com um livro é por
meio de sua capa, podendo ser fator preponderante na aquisição deste como
produto, independente do conteúdo.

Lugar de todas as preocupações de marketing, a capa constitui antes


de mais nada um dos espaços determinantes em que se estabelece o
pacto da leitura. Ela transmite informações que permitem apreender o
tipo de discurso, o estilo de ilustração, o gênero... situando assim o
leitor numa certa expectativa. (LINDEN, 2011, p. 57).

Portanto, a capa deve ser entendida como uma embalagem, mas não deve
ser projetada apenas para proteger seu conteúdo, informar sobre seu conteúdo, ou
apenas incitar seu consumo. A capa deve ser uma extensão deste, transmitindo ao
leitor indicações do que está por vir, evitando ao máximo levá-lo a uma pista falsa.
Sendo um elemento extratextual, se apresenta como um conjunto de
elementos, dos quais imagem e tipografia são indissociáveis, obedecendo “a
qualquer tipo de vínculo texto-imagem, com suas relações de redundância,
complementaridade ou contradição” (LINDEN, 2011, p. 58).
Tudo isto está presente na capa do primeiro volume de Jogos Vorazes –
mais especificamente a norte-americana, na qual a brasileira é fiel adaptação. Sua
iconografia se tornou tão marcante, que acabou por virar o referencial para todas as
outras materialidades imagéticas e fílmicas, bem como proporcionar um paralelo
direto ao nazismo.
109

Figura 32 Capa original norte-americana e brasileira

Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios das editoras Scholastic e Rocco)

Pondo-se no lugar de um incauto leitor em busca de alguma novidade, em


meio a uma livraria, é possível ter sua atenção rapidamente tomada, pois em meio a
miríade de livros multicoloridos ornamentados, deparar-se-á com esta capa que se
sobressai justamente pelo minimalismo, com o predominante do preto perante os
outros elementos, parecendo carregar alguma ideologia militar.
Isto se deve pela justaposição dos seus elementos: a tipografia utilizada, de
linhas e formas puras, geometricamente construída, apresenta um estilo de uso
recorrente em materiais de cunho militar, especialmente propagandas de guerra; a
predominância do preto pode ser associada a opressão ou algum segredo; de modo
sutil, em uma gradação do preto, há a presença de elementos visuais assemelhados
ao rastreio de um alvo; e este, por fim, é a imagem de um pássaro, ou mais
precisamente, o que parece ser uma insígnia militar, em cor dourada, se opondo ao
resto da capa – com suas asas tende a ser livre, por ser iluminado, tente a possuir
um conhecimento que não deveria ter, capaz de quebrar com a escuridão reinante, e
por ser uma insígnia deve ser um guerreiro.
Sendo assim, pelas disposições anímicas, a este incauto leitor, é aferível
imaginar que se trata de algum livro sobre guerra e espionagem, talvez ambientada
na Guerra Fria. Sem ainda ter lido a sinopse, só lhe resta desvendar uma coisa: o
110

título, pois “ao orientar a leitura, num primeiro momento, o título antecipa
necessariamente o conteúdo” (LINDEN, 2011, p. 58). Considerando os elementos
anteriores, pode ser associado a movimentos militares estratégicos, ou até mesmo
relacionado a algum tipo de videojogo, tendo a palavra Vorazes o sentido figurativo
de cobiça ou ambição84.
Esta breve análise semiótica serve para mostrar que a capa é rica em
remediações, mesmo para quem não sabe nada de seu enredo, sendo bem-
sucedida como embalagem, pois insinua e incita sobre seu conteúdo. No momento
que se tem acesso a sinopse do livro, estas suposições se modificam, se adequando
ao que está sendo proposto, pois ao fim não levou a nenhuma pista falsa.
Mas e quanto ao paralelo com o nazismo presente na arte da capa? Para
esse desdobramento, é preciso que seja analisado com mais atenção a imagem do
pássaro, encontrando seus pontos de consonância intermidiáticos. E o primeiro
ocorre incontestavelmente com a autora da obra:

No último instante, eu me lembro do broche dourado de Madge. Pela


primeira vez, dou uma boa olhada nele. Parece até que alguém
confeccionou um pequeno pássaro dourado e depois prendeu um
anel em volta dele. O pássaro está preso ao anel somente pelas
pontas das asas. De repente, eu o identifico: um tordo. (COLLINS,
2010, pp. 49-50).

Portanto, esta é a descrição contida em Jogos Vorazes do elemento de


suma importância para o enredo: o broche usado pela personagem principal. E
realmente, ele não se parece muito com o encontrado na capa do romance. Tem-se
que, entre a transposição dessa descrição literária para uma representação visual,
essa referência sofreu uma expressiva ressignificação. Curiosamente, o mesmo não
ocorre na arte da capa para a edição lançada simultaneamente no Reino Unido.

84
Em inglês essa ambiguidade não acontece, pois: a) Hunger é a recorrente falta de alimento, que
causa doenças, podendo levar a morte, geralmente utilizada para um coletivo; b) Hungry é a fome
momentânea diária, e que possui o sentido figurado de ambição e cobiça.
111

Figura 33 Capa original do Reino Unido e detalhe da imagem mostrando o broche

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio da editora Scholastic Uk)

O artista que fez a ilustração para a versão da capa no Reino Unido – o


ilustrador Jason Chan85 – transpôs de modo muito fiel a descrição da autora sobre o
broche. Além do simbolismo do antigo espírito de luta do distrito 12 presente no
próprio livro, esta ilustração reforça a ideia de não subjugação, pois apesar de
envolto e um anel, voa plenamente, como se não houvesse grilhões suficientes, pois
em posição assemelhada a uma fênix, está sempre pronta a renascer das chamas
de sua existência anterior.
Em verdade, toda a capa foi projetada de modo diferente da versão para o
mercado norte-americano86. A explicação desta diferença é muito simples: apesar do
lançamento simultâneo, a equipe criativa de cada uma das edições era diferente,
sendo uma baseada na editora Scholastic de Nova Iorque, e outra na editora
Scholastic de Londres.
O conceito britânico para a capa é muito diferente do conceito utilizado no
mercado norte-americano, apesar de muito criativo – coordenado pelo diretor de
criação Andrew Biscomb, possui um recorte localizado no centro da capa, que por

85
Jason Chan é um célebre artista conceitual de São Francisco, atuando no mercado editorial, de
filmes e especialmente para jogos. Seu portfolio pode ser acessado em: www.jasonchanart.com/
86
Neste ponto, entendido como o lançamento simultâneo nos EUA e no Canadá, excluindo-se o
México.
112

ser reversível, permite que se queira enfatizar a protagonista Katniss ou seu


companheiro Peeta, objetivando atrair tanto o público masculino quanto feminino.
Denominada Boy/Girl Edition, apesar de compartilhar o clima de perseguição, tensão
e opressão totalitária da versão norte-americana, aparenta ser destinada para um
público mais juvenil que o jovem-adulto originalmente destinado. Para remediar isso,
não tardou para uma nova edição, denominada Original, fosse lançada. E para a
época do lançamento do primeiro filme, outra edição foi lançada, denominada
Classic, ao utilizar a arte norte-americana.
Portanto, assume-se que a capa canônica é a versão elaborada pela equipe
criativa da Scholastic de Nova Iorque. Ainda assim, o que levou a essa equipe
elaborar a arte do broche de modo não fiel a descrição do livro?
Normalmente, na elaboração artística para o mercado editorial, recebe-se
um briefing contendo elementos gerais do enredo, bem como sua atmosfera e
público alvo, e a descrição detalhada dos elementos importantes a serem
elaborados. Isso muitas vezes envolve equipes que trabalham à distância, muito
longe uns dos outros, e sem nunca terem se conhecido pessoalmente. Este é um
caso típico do mercado atual, e provavelmente o que aconteceu com a equipe da
versão para o Reino Unido, e seu artista Jason Chan – que mora na costa oeste dos
EUA e recebeu o briefing vindo da Inglaterra, sobre uma literatura produzida na
costa leste dos EUA. Justamente esse não foi o caso da versão norte-americana.
A equipe por trás de Jogos Vorazes era coordenada por Elizabeth B. Parisi,
diretora de criação da Scholastic de Nova Iorque, que justamente foi a responsável
pela As Crônicas do Subterrâneo, a previamente citada série anterior de Suzanne
Collins, que por sinal, reside a apenas 120km da sede da Scholastic. Portanto, é
presente a existência de uma cumplicidade muito maior. Mas indo além, o artista
escolhido para a arte da capa – o ilustrador Tim O’Brien87 – é justamente casado
com Elizabeth Parisi.
Conforme Parisi comentou em uma entrevista, não era como se ela fosse a
chefe, mas sim uma colaboração (WEICHSELBAUM, 2012). Com isso, é possível
especular que, diferente de apenas um briefing, Parisi tinha conhecimento de toda a
obra, da sua disposição anímica, das motivações dos personagens, bem como de

87
Tim O’Brien é um renomado ilustrador novaiorquino, professor na University of the Arts em
Philadelphia e no Pratt Institute no Brooklyn. Seu portfolio pode ser acessado em:
www.obrienillustration.com/
113

toda a crítica e carga política que a obra implicava. E com isso, proveu ao marido
recursos muito além do usual, permitindo ir além de uma adaptação literal – que já
era carregado de simbolismos –, sendo recriado como um elemento rico de outras
cargas simbólicas, antes não imaginada, portanto sofrendo expressiva
ressignificação.
Figura 34 Variações da arte do broche

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio do artista Tim O’Brien)

Nesses estudos é possível perceber desde a eliminação do anel


circundante, da inclusão de uma flecha, de um arco e até mesmo uma corrente, bem
como de um posicionamento que permite outras ligaduras com o dito anel. Mas ao
fim, não é apenas um broche que representa um passado de luta do distrito 12:

Is the bird landing, or taking flight? Is it hunting, or fleeing? Helpful or


defiant? How can grace and aggression, freedom and disobedience,
tension and escape, strength and vigilance, be embodied so
seamlessly in one imaginary bird? Can it be both beautiful and lethal?
Is it, in fact, Katniss Everdeen, the heroine of these young-adult
novels?88 (ROSENBERG, 2012).

88
Tradução do autor: “O pássaro está pousando ou voando? Está caçando ou fugindo? Prestativo ou
desafiador? Como pode a graça e agressão, liberdade e desobediência, tensão e fuga, resistência e
114

Portanto, em sua transposição como ilustração, o broche se tornou sim, a


corporificação da própria essência da protagonista Katniss. Mas ainda é passível de
uma última ressignificação.
Com toda a bagagem de O’Brien como professor e ilustrador – reconhecido
por seus retratos e capas de temas políticos –, aliado a todo feedback promovido por
sua esposa Parisi sobre a obra, é perfeitamente plausível crer que este tenha
buscado se utilizar de referenciais militares, e em se tratando de regimes totalitários,
o campo prolífero para referenciais é durante o período da Segunda Guerra.
Novamente, podem ser apenas ressonâncias presentes no imaginário comum, que
constituem a fonte de todas as inspirações e referências, mas o resultado não é um
simples broche, mas sim uma insígnia militar. Indo além, seu resultado final
apresenta muitas semelhanças aos utilizados pela força aérea da Alemanha nazista,
a Luftwaffe, em especial o destinado aos seus operadores de rádio e artilharia,
criado em 1935.
Figura 35 Broches da força aérea nazista e detalhe do broche dos operadores de rádio e artilharia nazista

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio Wehrmacht-Awards)

The badge was oval shaped and slightly vaulted surrounded by a


silvered wreath composed of laurel and oak leaves with a swastika on
the base. […] The old silver oxidized eagle is fixed to the wreath by

vigilância, serem tão perfeitamente encarnado em um pássaro imaginário? Pode ser simultaneamente
bonito e letal? Seria ele, na verdade, Katniss Everdeen, a heroína dos romances jovens-adultos?”
115

two small round rivets. The eagle clutched in its claws two crossed
lighting bolts […]89. (CALERO; BIANCHI, 2007).

Se, por liberdade criativa, for considerado que a cor escura predominante da
capa possa fazer alusão a um tecido, este poderia muito bem ser do uniforme da
força aérea alemã, em especial a Luftwaffe Panzer-Division Hermann Göring,
(Divisão Panzer Hermann Göring da Força Aérea), possuidora de uniformes
especiais pretos, totalmente distintos das outras divisões aéreas, e semelhante a
Waffen-SS, o braço armado do partido nazista (DAVIS, 1980).
Figura 36 Arte da Capa, broche oficial do livro, broche da força aérea nazista

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios da editora Rocco, Fanpop e Wehrmacht-Awards)

Isto corroboraria com a escolha da tipografia utilizada na capa, ao possuir


raiz no Construtivismo Russo, que influenciou diversos estilos, dentre eles a Nova
Tipografia alemã (neue typographie), possuidora de um design funcional,
objetivando passar uma mensagem da maneira mais rápida e eficiente, em oposição
a clássica tipografia gótica alemã, denominada pelo governo nazista de Volk (povo).
Inicialmente acusada de antialemã e bolchevique, devido a sua raiz russa, logo
acabou sendo adotada por seu alto grau de eficiência. Seu criador Jan Tschichold 90
(1902-1974), após abandonar o estilo, escreveu por volta de 1946, que a sua
tipografia “se ajusta à inclinação alemã para o absoluto. Sua vontade militar de
controlar e a pretensão ao poder absoluto refletem os temíveis componentes do

89
Tradução do autor: “Esta insígnia, um distintivo levemente oval e abobadado, rodeado por uma
grinalda aludindo a folhas de louro e carvalho, com uma suástica na base. Uma águia prateada se
encontra fixada pelas suas asas. A águia tem em suas garras dois raios cruzados”.
90
Jan Tschichold foi um proeminente tipógrafo, designer gráfico, professor e escritor. É considerado
uma das maiores referências para a tipografia do século XX.
116

caráter alemão [que] desencadearam o poder de Hitler e a Segunda Guerra Mundial”


(MEGGS; PURVIS, 2009, p. 420).
Até o presente momento, não foram encontrados dados que possam
confirmar o uso dessas referências pela equipe criativa, mas é passível arguir que a
ambiência alcançada – tanto da versão norte-americana quanto do Reino Unido -
remetem a algum tipo de militarismo. Ainda assim, acredita-se ser digno de nota o
lançamento da obra na Alemanha, em 2009, portanto no ano seguinte aos
lançamentos originais.
O projeto gráfico da edição é completamente diferente do que fora proposto
até então: a capa não possui semelhança iconográfica, sendo resumidamente uma
fotomontagem com um rosto de uma jovem, que fixa o olhar ao leitor por entre folhas
manchadas com sangue fresco. Sua tipografia utilizada segue uma linha clássica,
com fonte serifada. E, inclusive o nome do livro não é o mesmo – Die tribute von
Panem (Os tributos de Panem) –, sendo próxima a ideia inicialmente proposta por
Collins: The Tribute of District Twelve (Os tributos do Distrito Doze). Esta remediação
talvez seja um resultado mais ao gosto do mercado local, pois é sabido que a
Alemanha (e seu povo) é extremamente zelosa e sensível a qualquer material que
possa aludir ao nazismo, podendo inclusive levar a uma prisão sumária.
Figura 37 Capa da edição alemã de Jogos Vorazes

(Fonte: Sítio Book Riot, 2013)


117

3.3 Dos textos à narração

Mas a obra de Collins não se manteve por muito tempo presa apenas às
condições midiáticas do livro físico. Em dezembro de 2008, pela mesma editora do
livro foi lançado o audiobook de Jogos Vorazes, que nesta nova materialidade
proporciona uma outra relação possível com a história.
Um audiobook, ou audiolivro no Brasil, basicamente consiste na gravação da
leitura de um texto para futura reprodução. Sua existência sempre fora dependente
dos aparatos técnicos de captação, gravação e reprodução disponíveis, possuindo
possibilidades e configurações distintas em cada época.
Estando presente desde o início da tecnologia, mas não passando de mera
tentativa com o fonógrafo de cilindro. Foi ganhando viabilidade conforme a
capacidade de armazenamento de cada mídia foi se ampliando, passando para os
discos, os cassetes e até chegar ao digital atual.
Concomitantemente a isso, esta condição acompanha a miniaturização dos
aparatos, permitindo relações de acoplagem distintas, passando de uma audição
coletiva em ambiente fechado, para individual em qualquer ambiente – sendo assim,
fornecendo novas possibilidades de produção de sentido.

Figura 38 Evolução dos aparatos de reprodução

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios Flickr e Pinterest)

Existe ainda o audiodrama, uma versão mais elaborada do audiolivro, que


alcança um outro patamar de imersão e ambientação, pois a dramatização é
auxiliada com a adição de músicas e efeitos sonoros. Com a denominação de
radionovela, foi muito popular no ápice da era do rádio, durante a qual sua técnica
se maturou. Apesar de mais dispendioso que o audiolivro, ainda assim possui um
custo muito mais baixo que uma produção para as telas.
118

A percepção parabólica – no qual o ouvinte se encontra parcialmente


dedicado a fruição, em ambiente inadequado – de um audiolivro é plenamente
possível, podendo escutá-lo à medida que se faz outras tarefas, sendo muito comum
durante deslocamentos. Já o audiodrama mesmo pode não ser tão fácil, exigindo
uma percepção elíptica – entendida como a qual o ouvinte se encontra totalmente
dedicado a fruição, em ambiente adequado – pois sua imersão proposta exige mais
da cognição, desviando importante nível de atenção para sua fruição (CROOK,
1999). Mas com certeza, o ouvinte em sua fruição, se apresenta como uma espécie
de testemunha descorporificada dos acontecimentos narrados, sendo uma ponte
entre o ficcional, a consciência e o mundo real.
Sendo assim, que para o mercado o audiolivro seja mais interessante, pois é
de um consumo mais dinâmico e de investimento menor. No Brasil, apesar de
antigo, o mercado ainda engatinha, enquanto que nos EUA é um mercado maduro e
de crescimento constante.
O audiolivro de Jogos Vorazes91 contém a leitura integral da obra, possuindo
pouco mais de onze horas de duração, totalmente narrada pela atriz Carolyn
McCormick92. Dizer que, a relação intermidiática ocorrida entre a passagem literal do
livro para o livro narrado se resume à transposição, é ignorar o fato do corpo como
mídia – seja na (re)produção de signos, subjetividades e práticas culturais
(FELINTO; ANDRADE, 2005).
Com isso, quer se dizer que, mesmo que seja uma leitura integral da obra, e
certos elementos sejam transpostos do livro para o áudio, ele não será mais o livro
propriamente dito, seja por sua condição física, seja pela atuação da atriz, que
transforma a estrutura original por meio de sua representação. Neste ponto, tem-se
também uma fusão de um texto com uma performance (CLÜVER, 2007; PETHŐ,
2010; PAECH, 2011).

91
Em verdade, seria o audiobook de The Hunger Games, pois se trata da versão original em inglês,
até o momento sem tradução para o português.
92
Atriz de televisão, cinema e teatro, mais conhecida por atuar no seriado estadunidense Law &
Order, além de emprestar sua voz em 28 audiolivros, em sua maioria do gênero policial. Site oficial:
http://www.carolynmccormick.com/ .
119

Figura 39 Processo da Intermidialidade no Audiolivro

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Na parte de questionamentos sobre a qualidade do trabalho, é notável a


articulação das palavras, em um ritmo e clareza que ajudam em muito a sua fruição,
facilitando nas situações de percepção parabólica. Portanto, é uma narração muito
cuidadosa à prosa, e por não ser um audiodrama, é mais sutil em sua dramatização.
Isto é muito visível ao se pôr em paralelo com a própria autora, que fez a leitura de
um excerto de 5 minutos do capítulo 1193, o exato momento do início dos Jogos.
No mesmo tempo, ambas leem exatamente o mesmo trecho, mas de modo
completamente diferente. Collins não possui a mesma clareza, dicção e controle de
respiração, mas sua leitura transmite tamanha dramaticidade, angústia e vivacidade,
talvez só encontrada em seus leitores mais inspirados. Mas essa intensidade exige
uma percepção elíptica, o que acredito reforçar a questão mercadológica
previamente comentada.
Ainda assim, McCormick representa os diversos personagens – inclusive os
masculinos –, com alterações vocais embasada nas descrições presentes no livro
(quando existem), bem como as modifica conforme a situação (medo, raiva etc.). Por
exemplo, o personagem Haymitch Abernathy, treinador do distrito 12, é um notável
beberrão de meia idade, sendo sempre apresentado com uma voz inebriada. Já os
personagens da Capital se assemelham a descrição de Collins, especialmente na
representação da personagem Effie Trinket:

Por que essa gente fala com uma voz tão aguda? Por que suas bocas
quase não se abrem quando eles falam? Por que o fim das sentenças
sempre tem um tom acentuado, como se estivessem fazendo uma
pergunta? Vogais esquisitas, palavras abreviadas, e sempre a letra S
sibilando... (COLLINS, 2010, p. 69).

Ao se valer desta fusão entre a literalidade do texto e a representação da


atriz, essa adaptação se torna única, mas o que não a exclui de comparação para

93
Disponível em: <http://www.scholastic.com/thehungergames/videos/chapter-11-audio.htm>
120

com outras remediações que ocorra à obra Jogos Vorazes, especialmente por estar,
assim como o termo intermidialidade, no entre-lugar em relação ao livro e filme.

3.4 Do original à tradução

Com o sucesso alcançado pelo livro (e pela trilogia como um todo), seria
mais do que esperado que o mesmo fosse traduzido para outras línguas. Como já foi
mencionado, em 2009 foi lançado na Alemanha (Die Tribute von Panem), bem como
na Espanha (Los Juegos del Hambre), Portugal (Os Jogos da Fome), e assim por
diante, até que em 2010 foi a vez do Brasil, em um total de 26 línguas diferentes
nesse mesmo ano.
Figura 40 Capas de Portugal, Espanha, Grécia, China e Holanda

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio Book Riot)

A questão da tradução é um elemento muito importante, que não pode


passar despercebido da análise intermidiática – mesmo que, em um sentido mais
abrangente, não haja mudança de mídia, pois tem-se a mesma obra, na mesma
materialidade, da mesma forma: o romance impresso no formato de livro. Reiterando
o que fora apresentado no capítulo 1, entende-se a tradução também como uma
referenciação, e tem-se que:

Nos casos das referências intramidiáticas o referenciar acontece no


domínio de uma única mídia e, consequentemente, não envolve
qualquer tipo de diferença midiática. Daí o fenômeno das referências
intramidiáticas não trazer consigo o cruzamento de fronteiras entre as
mídias. Alternativamente, no caso das referências intermidiáticas uma
diferença midiática está em jogo; mais precisamente, um diferença
midiática que não se pode apagar. O que se verifica, então, é uma
aproximação (relativamente pronunciada, apesar de assintomática)
da mídia a que a obra se refere; a atualização ou realização do outro
sistema midiático não se efetiva. (RAJEWSKY, 2012, p. 68).
121

Portanto, em um recorte mais restrito, pode se aferir que a tradução seria um


referenciar intramidiático, pois é um fato universal que nem todos falam a mesma
língua ou são bilíngues ou plurilíngues. Mas, caso um outro observador considere
que o texto em si – entendido como um conjunto de elementos gráficos, dispostos
em uma ordem estabelecida por regras gramaticais de uma determinada língua, de
modo a transmitir uma combinação de signos e símbolos – também é uma mídia,
pode se aferir a tradução também como um referenciar intermidiático. Desta forma,
sua importância se dá por permitir o “ingresso em uma obra que de outro modo seria
opaca e impenetrável, mas uma vez que o ingresso foi feito não é mais necessário
tocar na intermidialidade da obra” (HIGGINS, 2012, p. 49), reforçando seu sentido de
entre-lugar: entre a obra original e a obra traduzida.
Deve-se notar que nesse olhar mais aproximado, configuram-se como
mídias a prensa, o papel, a tinta, a tipografia, o texto (CLÜVER, 2007), que ao se
somarem formam a compilação de mídias compreendida como livro. Portanto o livro,
nessa aproximação, não pode ser entendido como monomidiático. E assim como no
subcapítulo anterior, deve se voltar para a questão que o elemento principal da
tradução se dá no corpo como mídia, na corporificação do profissional responsável:
o tradutor.
Na tradução ocorre um espelhamento – mesmo que parcial – da obra
original: o livro original chega ao tradutor – este o traduz por reexperiência –
tornando-o livro novamente. Entende-se por reexperiência:

quando eu tenho diante de mim a obra criativa de um artista que me


orienta na reexperiência que ele pretende. O historiador não pode
realmente experimentar o passado, mas precisa, interpretativamente,
compreender os documentos escritos, os fatos históricos, as
motivações dos atores principais, e assim por diante, para apresentá-
los de forma que, quando lermos seu relato, sejamos capazes de
reexperimentar o evento e seu significado como o historiador
pretende. (SCHMIDT, 2014, p. 71).
122

Portanto é um processo de interpretação, reinterpretação e adaptação, que


ocorre não somente com o texto literário, mas com todos os elementos semióticos
presentes na obra.

Figura 41 A tradução como processo de espelhamento

(Fonte: Elaborado pelo autor)

No fim, a tradução vai depender dos contextos, convenções e práticas


culturais no qual o tradutor está imerso. A seguir, encontram-se algumas situações
que neste processo, aconteceram modificações que modificaram o sentido original,
fornecendo outra experiência de fruição.

3.4.1. O título original The Hunger Games

Reiterando o que já fora comentado anteriormente, o título no Brasil carrega


uma ambiguidade não existente no original, bem como não ocorre na versão de
Portugal. Hunger é a condição de fome crônica, onde a recorrente falta de alimento
causa comprometimento cógnito e físico, favorecendo o aparecimento de doenças,
bem como podendo levar à morte. Seu uso comum é no coletivo. Portanto aqui, o
foco se encontra na condição dos moradores e tributos dos distritos.
Vorazes, por outro lado, apresenta o sentido daquele que devora, de difícil
saciação, e por extensão de sentido, comilão e glutão. Já no sentido figurado, é
aquele que é destrutivo, e que tem forte cobiça ou ambição. Portanto aqui, o foco se
encontra na condição da Capital e dos organizadores dos Jogos.
Já a escolha em Portugal por Fome, carrega o mesmo sentido do original.
Talvez a escolha brasileira tenha sido feita mais pela sonoridade e impacto do que
pelo sentido exato.
123

3.4.2. O pássaro do broche

Esta com certeza não foi uma tarefa fácil, ainda mais para que esta não
perca a força do simbolismo existente. No enredo, o pássaro que ostenta a imagem
no broche da protagonista é da espécie fictícia Mockingjay, sendo o cruzamento de
um outro pássaro fictício, o Jabberjay com um Mockingbird, espécie real. Na
tradução, respectivamente um Tordo, cruzamento de um Gaio Tagarela com um
outro Tordo.

Esses pássaros são engraçados e a ideia funciona como um tapa na


cara da Capital. Durante a rebelião, a Capital criou animais
geneticamente modificados para serem usados como arma. O termo
usual para eles era bestantes, que às vezes era substituído por
bestas, simplesmente. Um deles era um pássaro especial, conhecido
como gaio tagarela, que tinha a habilidade de memorizar e repetir
conversas humanas em sua totalidade. Eram pássaros que
retornavam ao lar, exclusivamente machos, e que eram lançados nas
regiões em que se sabia que os inimigos da Capital estavam
escondidos. Depois que os pássaros juntavam as palavras, eles
voavam de volta aos centros para que o conteúdo fosse gravado.
Demorou um tempo até que as pessoas se dessem conta do que
estava acontecendo nos distritos, de como conversas particulares
estavam sendo transmitidas. Aí, é claro, os rebeldes começaram a
fornecer à Capital as mais diversas mentiras, e essa era a piada.
Então, os centros foram fechados e os pássaros foram abandonados
na natureza para morrer. Só que eles não morreram. Ao contrário, os
gaios tagarelas cruzaram com fêmeas de tordos, criando uma nova
espécie que podia reproduzir não só os cantos dos pássaros como
também as melodias humanas. Eles haviam perdido a habilidade de
enunciar palavras, mas ainda conseguiam imitar os timbres vocais
dos humanos, do trinado agudo de uma criança aos tons mais graves
de um homem adulto. (COLLINS, 2010, p. 50).

O Jabberjay – muito bem traduzido como Gaio Tagarela – sendo Jay


realmente o Gaio, da família dos corvos e gralhas, tão colorido e brilhante quanto
barulhento. Nos EUA também é gíria para alguém incessantemente tagarela. Já
Jabber significa falar rapidamente quase que ininteligível. Mas esse nome também
pode ser uma alusão ao poema Jabberwocky, de Lewis Carroll, e traduzido como
Jaguadarte por Augusto de Campos. Carroll acreditava em realçar o significado por
meio da combinação de palavras, criando um jogo de palavras fantasioso –
exatamente o que ocorre nas nomeações dos pássaros de Jogos Vorazes.
124

O Mockingbird – de tradução exata como Tordo: é uma espécie real, da


família dos sabiás, e que já englobou o rouxinol e a cotovia. É capaz de imitar sons
de alguns animais, significado esse do Mocking – palavra mais utilizada de forma
jocosa. A espécie mais comum nos EUA possui seu nome científico de Mimus
polyglottos, que em grego significa literalmente Imitador de muitas línguas.
O Mockingjay é mantido como Tordo, apesar de haver liberdade para uma
adaptação nos moldes de “Gaio Imitador”. No original, manter o Mocking reforçaria o
ar de ironia, de contestação presente no pássaro – por isso, o broche traz consigo o
peso do desafio ao poder da Capital. Ainda assim, a escolha por manter o Tordo
buscaria não se afastar das seguintes alusões: da escolha por essa espécie de
pássaros estar ligada ao romance To Kill a Mockingbird (O sol é para todos, de
Harper Lee, 1960), que aborda temas como a questão das desigualdades raciais, de
classe e da perda da inocência – similar ao que ocorre em Jogos Vorazes. É
possível ainda associar novamente com a peça Romeu e Julieta, que em dado
momento os personagens estão conversando sobre o pássaro que ouvem ser uma
cotovia ou rouxinol, indicando o momento da separação ou não dos amantes. Assim
como em Romeu e Julieta, em Jogos Vorazes o casal é conhecido como “os
amantes desafortunados”.

3.4.3. A garota quente

Apelido que a protagonista recebe devido ao seu traje, para a primeira


aparição em público – o desfile dos tributos nos 74º Jogos Vorazes (COLLINS, 2008,
2010). No original, the girl who was on fire, que além de significar literalmente A
garota em chamas, em Inglês o termo on fire possui sentido figurado de “alguém que
está com tudo”, sendo alguém que não pode ser detido – reforçando o simbolismo
da protagonista. O mesmo sentido não é alcançado em português, ainda que em
incomum derivação, possa aludir a ímpeto e entusiasmo. Mas a escolha por a garota
quente, ou literalmente the hot girl em inglês, para ambas as línguas possui
conotação sensual e sexual, completamente oposto da personagem. O tradutor
percebeu essa mudança de significado, tanto que nos outros livros da série, adotou
o A garota em chamas.
125

3.4.4. De clavas a porretes

Outros elementos que sofreram pequenas ressignificações podem não trazer


grandes mudanças simbólicas à obra, mas é interessante notar como ainda assim
estas ocorrem. Por exemplo, na descrição de algumas armas, seu significado
original pode passar por ressignificações inesperadas: na tradução, utilizou-se
“clavas com pregos nas pontas” (COLLINS, 2010, p. 46) para se referir a “horrible
spiked maces” (COLLINS, 2008, pos. 400), bem como a porretes para se referir a
clubs (COLLINS, 2008).
Uma clava (club) está entre as armas mais simples e antigas, originária de
tempos pré-históricos. É um bastão feito de material sólido, geralmente madeira,
com uma das extremidades mais grossa, podendo haver adição de pontas afiadas
de qualquer material. No imaginário popular está associada à imagem de povos
primitivos. Na mitologia greco-romana, o semideus Hércules/Héracles se valia de
uma clava em suas façanhas.
Já uma maça (mace) é uma evolução da clava, após o domínio do metal.
Consiste em um cabo de metal, ou madeira geralmente reforçada com metal,
contendo em uma de suas extremidades uma cabeça protuberante e pesada,
comumente de metal, frequentemente contendo tachões ou arestas para ajudar a
penetração da armadura e infligir maior dano.
Uma maça estrela (spiked mace ou mornigstar), possui sua cabeça
preenchida por longas e afiadas pontas, sendo de origem medieval e
particularmente popular na Alemanha, conhecida como morgenstern (estrela
vespertina), denominação adotada pela língua inglesa.
Os diversos tipos de maça foram muito usados por quase todos os exércitos,
tendo especial tradição na cavalaria medieval, mas notavelmente não era usada
pelos exércitos romanos, devido à natureza do estilo de luta de sua infantaria, que
envolvia uma complexa formação totalmente dependente do trabalho em equipe, se
valendo do pilum (lança), gladius (espada curta) e scuta (grande escudo).
Já um porrete, é a denominação genérica de qualquer pedaço de madeira
grande o suficiente que possa ser usado para golpear, contendo o mínimo de
elaboração possível.
126

Figura 42 Clava; Hércules e sua clava; Maça; Maça Estrela

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios Dreamstime stock, Wikipedia e Weapons Universe)

Toda essa reexperiência ocorrida no processo de referenciação pela


tradução, demonstra o quanto no processo intermidiático ocorrem ressignificações
nos mais variados níveis. Estas podem ir desde este caso – que para alguns pode
passar despercebido, enquanto para outros pode apresentar uma mudança na
ambientação e dramatização da cena no imaginário do leitor –, quanto a mudanças
significativas no contexto e simbolismo. Dentre a miríade de possibilidades
intermidiáticas, estas são algumas das remediações presentes na obra Jogos
Vorazes, enquanto na alçada da materialidade do livro, como mídia principal.

3.5 Do jogo no papel ao papel no jogo

Ainda sob a égide do livro, não se pode deixar de mencionar uma última
transposição ocorrida pela obra, antes de toda as mudanças e amplitudes que
acompanham a passagem para as telas: em 2010 foi lançado o jogo de tabuleiro
Hunger Games Training Days, por ocasião da publicação do último livro da trilogia –
entretanto, ele é totalmente ambientado no primeiro livro, motivo pelo qual está
sendo analisado aqui.
127

Apesar de, em momento posterior haver um estudo mais aprofundado sobre


a questão dos jogos presente na obra, não se pode deixar de lado que a estrutura
da obra Jogos Vorazes se apresenta totalmente oportuna para o mercado de jogos –
sejam digitais ou analógicos. É justamente neste último que se enquadra esta
análise, que reforça o caráter transmidiático da obra original.
Fora os antiquíssimos xadrez, damas, gamão e correlatos, os jogos de
tabuleiro contemporâneos não são novidade no mercado, sendo que no Brasil é
quase uma unanimidade já se ter jogado Banco Imobiliário, War e afins. Mas até
pouco tempo, este era basicamente o resumo do mercado nacional, incipiente e
atrasado se comparado com o resto do mundo. Em vez de estagnar ou regredir
como no Brasil, seu crescimento fora constante tanto na Europa quando nos EUA,
sendo o fator determinante uma evolução em sua estrutura:

But beyond their popularity, board games have also increased in


complexity—more strategic games like Settlers of Catan have joined
perennial favorites like Monopoly and Scrabble at the table. These
complex board games—usually involving more strategy than luck and
deeper player investment in the game’s play mechanics, narratives,
and rules—were once associated with geek subcultures, but are now
becoming more mainstream94. (BOOTH, 2015, p. 01).

O jogo de tabuleiro Training Days não foca nos Jogos Vorazes propriamente
dito, mas se aproveita de uma parte da narrativa que permite muito mais
desenvolvimento: como o próprio nome diz, o tempo de treinamento preparativo para
enfrentar os Jogos. Podendo ser jogado entre dois a seis jogadores, cada um
escolhe encarnar um Tributo dos diversos Distritos de Panem, cada qual com
diferentes habilidades, podendo se aliar entre si para melhor suas capacidades e
facilitar superar os desafios. Cada vitória traz mais reconhecimento por parte dos
Realizadores dos Jogos, e ao fim da partida, ganha o jogador com a maior
aprovação (BOOTH, 2015).

94
Tradução do autor: “Mas além da sua popularidade, jogos de tabuleiro também aumentaram em
complexidade — mais jogos estratégicos como de Colonizadores de Catan juntaram-se aos eternos
favoritos das mesas, como Monopólio e Scrabble. Estes jogos de tabuleiro complexos — geralmente
envolvendo mais estratégia que sorte, bem como uma maior tempo e esforço pelo jogador nas
mecânicas, narrativas e regras do jogo — o que outrora fora associado com a subcultura geek, agora
se tornam mais mainstream”.
128

Com relação a obra original, este jogo permite aprofundar personagens e


contextos, pois de modo assemelhado ao do teatro, o jogo de tabuleiro acontece na
presença do aqui e agora, por meio da interação entre jogadores, que acabam
agindo como performers através do role-playing de seus personagens, ao mesmo
tempo que proporcionam a construção de uma outra narrativa.

Figura 43 Jogo de tabuleiro The Hunger Games Training Days, primeira edição 2010; segunda edição, 2012.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio WizKids)

Se como afirma o designer de jogos Raph Koster, os jogos podem usar


padrões estéticos de personagem, da história e tema para criar significado, refletindo
a cultura (BOOTH, 2015, p. 03). Desta forma se apresentam como legítimas formas
de expressão humana, refletindo normas e crenças da sociedade além de
proporcionarem outras relações e percepções à experiência humana, sendo
inegável que jogos também sejam mídia (FLANAGAN, 2009), pois são “one of
several artifacts of material culture used to trace social practices and beliefs”95
(FLANAGAN, 2009, p. 67).

Today, our “media life” is becoming more and more inundated with
multiple media outlets, and board games are reflecting this multimedia
experience. One important facet of board game culture is a rise in the
number of licensed board games, or those based on extant media
products. Although not a new phenomenon in and of itself (e.g.,
boardgamegeek features an 1882 game based on Lewis Carroll’s
Alice in Wonderland created by Sir John Tenniel), the licensing of
board games today reveals a heightened complexity just as the media

95
Tradução do autor: “um dos diversos artefatos da cultura material usado para rastrear as crenças e
práticas sociais”.
129

environment itself has become more complex.96 (BOOTH, 2015, p.


02).

Figura 44 Processo da Intermidialidade no jogo de tabuleiro

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Como transposição midiática não somente do texto original, mas do livro


como um todo, a intermidialidade presente nessa adaptação atinge diversas
camadas, passando pela do corpo – tanto dos games designers, na concepção da
mecânica do jogo; passando pelos artistas envolvidos na concepção visual; bem
como pelos jogadores no ocorrer do ato de jogar – e em toda a nova materialidade
presente na obra. Interessante perceber que, quando do lançamento do filme,
fizeram uma segunda edição, toda re-estilizada seguindo o padrão apresentado pelo
filme, portanto passando por mais uma série de adaptações, em um novo processo
intermidiático.

3.6 Fechando o livro

Em tudo o que fora tratado neste capítulo 3, objetivou-se verificar por meio
da obra Jogos Vorazes, como a intermidialidade se apresenta em suas diversas
materialidades, enquanto atreladas ao texto como elemento primordial.
Sendo assim, é possível descrever este capítulo como pertencente a um
grande grupo, no qual todos os elementos apresentados na distinção de suas

96
Tradução do autor: “Hoje, nossa “vida midiatizada” tornar-se cada vez mais inundada por vários
meios de comunicação, e jogos de tabuleiro estão refletindo esta experiência multimídia. Uma faceta
importante da cultura do jogo de tabuleiro é um aumento do número de jogos de tabuleiro licenciados,
ou aqueles baseados em produtos de outras mídias. Embora não seja um fenômeno novo em si (por
exemplo, boardgamegeek informa um jogo de 1882, criado por Sir John Tenniel, baseado em Alice no
país das maravilhas), atualmente o licenciamento de jogos de tabuleiro revela uma complexidade
elevada, tal como o próprio ambiente midiático tornou-se mais complexo”.
130

materialidades – sejam textuais, sonoras ou visuais –, estão atrelados ao texto inicial


escrito por Suzane Collins, portanto seu principal referencial.
Isto iria ao encontro dos conceitos apresentados pela área dos Estudos
Literários, possuidora de um conceito ampliado de texto, no qual “text can be any
given unit of symbolic discourse which has a relatively stable form” 97 (LEHTONEN,
2001, p. 82). Inclusive Gumbrecht reforça essa compreensão, ao apresentar um
posicionamento duradouro nas humanidades, o qual entende que todo objeto de
pesquisa poder ser compreendido como texto

Regardless of whether they opted, in a more tradition-oriented style,


for “hermeneutics” or, with more modernist ambitions, for “semiotics,”
all scholars in humanities, during the 1970s and 1980s, shared the—
hardly ever mentioned—premise that whatever object they would
consider worthy of their attention had to be dealt with as a “text.” This
premise had generated the subsequent expectation that the different
parts making up the objects/texts in question referred to each other
within the rules of one or the other “grammar,” a grammar whose
understanding would allow the observer to decipher the very
objects/texts in question as surfaces, and that all these surfaces would
ultimately yield some meaning. Music or food, behavior or painting,
machine or plant—there was nothing, in the heydays of intertextuality,
that did not look like a text to us, a text that, based on a grammar,
would carry a meaning.98 (GUMBRECHT, 2003, p. 173).

Dando continuidade a este conceito, o mesmo autor exemplifica ser possível


poder se estudar música como texto, comida como texto e até mesmo
comportamento como texto. Tamanha é esta abrangência, que a distinção de seus
meios se resumiria em diferenças textuais. Reforçando esta visão, Clüver comenta
essa existência totalitária do texto, ao indicar que:

97
Tradução do autor: “texto pode ser qualquer unidade do discurso simbólico que tem uma forma
relativamente estável”.
98
Tradução do autor: “Independentemente da opção, seja em um estilo mais tradicional
"hermenêutico", ou de ambições mais modernistas "semióticas", todos os estudiosos das ciências
humanas, durante a década de 1970 e 1980, compartilharam a — raramente mencionada —
premissa de que qualquer objeto que considerassem dignos de atenção, teria que ser tratada como
um "texto". Esta premissa gerou a subsequente expectativa de que, as diferentes partes que
compõem os objetos/textos em questão, referem-se uns aos outros dentro das regras de uma ou
outra "gramática," uma gramática cujo entendimento permitiria ao observador decifrar os ditos
objetos/textos como superfícies, e que todas estas superfícies enfim, produziriam algum significado.
Música ou comida, comportamento ou pintura, máquina ou planta — não havia nada, nos tempos
áureos da intertextualidade, que não se parecia com um texto para nós, um texto que, baseada em
uma gramática, conteria um significado”.
131

sobretudo entre semioticistas, uma obra de arte é entendida como


uma estrutura sígnica – geralmente complexa –, o que faz com que
tais objetos sejam denominados “textos”, independente do sistema
sígnico a que pertençam. Portanto, um balé, um soneto, um desenho,
uma sonata, um filme e uma catedral, todos figuram como “textos”
que se “lêem”; o mesmo se pode dizer de selos postais, uma
procissão litúrgica e uma propaganda na televisão. Contra essa
ampliação do conceito de “texto” na perspectiva semiótica foi
levantada a objeção de que ela conduziria a uma supervalorização do
modelo lingüístico, especialmente em associação ao ato de “ler” (em
sentido expressamente metafórico). (CLÜVER, 2006, p. 15).

Desta forma, os estudos do entrecruzamento entre o limiar de um texto com


outro já receberam diversas denominações, mas as mais contemporâneas –
intertextualidade e paratextualidade – têm entre si uma equivalência em
conceituação. Entende-se por paratextualidade como sendo um limiar da literatura,
que se apresenta como um entre-lugar em relação ao que é interior e o que é
exterior ao texto, pois:

a paratextual discourse is not just part of a book but also part of the
unique practices that encourage interaction with a book […] that
paratexts exist in the space between text, audience, and the industry.
[…] In other words, paratexts help us understand the larger
connections between elements of the contemporary media
environment.99 (BOOTH, 2015, p. 05).

Este autor ainda apresenta como exemplos de paratextualidade a capa de


um livro – que mesmo fazendo parte do livro, ainda assim se apresenta
demasiadamente diferente do seu conteúdo –, ou ainda o trailer de algum filme –
que mesmo apresentando elementos do filme, ainda assim não é o filme –, bem
como a miríade de produtos licenciados.
Com isso, se afere que seu conceito realmente não difere do de
intertextualidade, o qual também pode ser entendida como uma “referência a todos
os tipos de texto; e uma forma condensada de dizer que entre os ‘intertextos’ de

99
Tradução do autor: “um discurso paratextual não é apenas parte de um livro, mas também parte
das práticas que incentivam a interação com um livro [...] paratextos existem no espaço entre o texto,
a audiência e a indústria. […] Em outras palavras, paratextos nos ajudam a entender as conexões
maiores entre os elementos do contemporâneo ambiente midiático”.
132

qualquer texto (em qualquer mídia) sempre há referências (citações e alusões) a


aspectos e textos em outras mídias” (CLÜVER, 2011, p. 17).
Esta totalização referente a visão dos Estudos Literários prosseguiu
enquanto a área detinha a vanguarda desses estudos, mas no momento que
passaram a ser pesquisados pelos Estudos Interartes ou ainda pelo campo da
Comunicação, esta radicalização textual precisou ser revista. Com isso, Clüver
comenta que, tamanha extensão dada ao texto não passa de um costume
passageiro, até que o termo se torne conceito neutro, e que doravante a
intertextualidade significar-se-á intermidialidade (CLÜVER, 2006; 2011).

Nesse sentido, a noção de intermidialidade teve que superar as


restrições dos estudos literários e reorientar o eixo das pesquisas
para interações e interferências entre diferentes mídias audiovisuais e
não apenas literárias. Desta maneira, o enfoque recaiu sobre
questões de materialidades e de produção de sentido, sobre
características dos processos intermidiáticos e funções sociais.
(MÜLLER, 2012b, p. 85)

Sendo assim, não somente a “intermidialidade retira a literatura do


especificamente literário, traz a literatura para viver-com” (JUSTINO, 2015, p. 33),
bem como enuncia não haver primazia de nenhuma mídia e arte sobre a outra,
entendendo suas existências mediante as características e peculiaridades existentes
em cada uma, portanto na materialidade que possuem e as distinguem. E ainda
assim, por mais que literatura é literatura, cinema é cinema etc. estas não devem ser
entendidas como possuidoras de fronteiras plenamente delimitadas e
intransponíveis, “de maneira que a construtividade das concepções de mídia e
especialmente o caráter de construto das delimitações midiáticas configuram, em
parte, relativos” (RAJEWSKY, 2012, p. 70).
Este capítulo se encerra justamente com o fim da primazia do texto, ao abrir
caminho para um outro grande grupo, no qual o referencial é a transposição para as
telas, não mais o texto inicial.
Você não esquece o rosto da pessoa
que representou sua última esperança.
Jogos Vorazes

O bárbaro é aquele que não reconhece


a plena humanidade dos outros.
Tzvetan Todorov
filósofo búlgaro
134

4. A INTERMIDIALIDADE ENQUANTO TELA:


ou Ao encontro de uma ambiência nazista ressignificada

O recorte do que será apresentado neste capítulo focar-se-á na adaptação


cinematográfica, mas também discutirá o videojogo oriundo desta. Já no que se
refere à internet, para uma melhor integração será tratado no próximo capítulo, que
é um complemento deste. Também neste recorte, apesar de poderem ser citados,
não serão analisados tanto o trailer quanto a miríade de peças de divulgação da
adaptação cinematográfica, dentre elas pôsteres, banners, outdoors etc. – estes,
apesar de serem formas populares de narrativa promocional, se configuram como
materiais de divulgação, e não propriamente como um produto de consumo.
Conjuntamente a tudo isso, sendo o livro bem mais contido e ambíguo em
descrições que possam proporcionar um paralelo direto ao nazismo, neste capítulo
continua a busca pela ocorrência dessa ambiência que, por meio de sua
transposição para as telas, possui uma probabilidade maior de se apresentar, seja
pelo roteiro ou pela forte presença do seu referencial estético presente por meio da
cenografia, do figurino, enquadramento, montagem e até mesmo atuação.
Apesar da obra original ser a grande motivadora para que haja o interesse
em produzir uma versão cinematográfica, no momento da sua passagem para um
outro sistema de produção midiático – com regras, necessidades e estruturas
próprias –, o livro acaba por se tornar uma referência à parte. Portanto, o segundo
grupo toma por primordial o roteiro (ou screenplay) adaptado para sua iminente
transposição audiovisual, que acaba por se tornar o novo texto principal, onde a tudo
se referenciará.

4.1. Os bastidores da produção cinematográfica

Apesar de todo o histórico de Suzanne Collins para o mercado televisivo,


aliado a toda a estruturação que desenvolveu para Jogos Vorazes, de inegáveis
características transmídia, que facilitam sua transposição para as mais diversas
mídias, ampliando seu horizonte mercadológico – pois é preciso que “sejamos
claros: há fortes motivações econômicas por trás da narrativa transmídia, [...]
interesse em integrar entretenimento e marketing, em criar fortes ligações
135

emocionais e usá-las para aumentar as vendas” (JENKINS, 2009, p. 148) –, ainda


assim a autora se mostrou reticente e preocupada com uma possível transposição
para as telas, conforme revelou em uma entrevista:

When you go to see the movie, you’ll be a part of the audience in the
theater, but will you feel like part of the Hunger Games audience as
well? Will you actively be rooting for certain tributes to live or die? Or
will you distance yourself from the experience? How much will you be
caught up in the Capitol’s Game?100 (EGAN, 2012, p. 150).

Não há como ter certeza se, ao criar a obra, Collins estava simplesmente
escrevendo uma história para ser lida, ou uma história para ser contada pelo maior
número de formas possíveis. Há certeza apenas acerca da autora possuir um receio
sobre essa transposição, mas que acabou por ser derrubada – se não pela questão
financeira, pelo menos por curiosidade, conforme a autora revelou na mesma
entrevista: “I can’t even answer that question for myself yet, but I’m really intrigued by
it”101 (EGAN, 2012, p. 150).
Este questionamento foi trazido à tona, porque a obra proporcionou uma
situação incomum: enquanto propiciava comentários entusiasmados em jornais,
revistas e pela internet, simultaneamente se tornando um sucesso de vendas, Jogos
Vorazes atraiu o interesse comercial de Hollywood, portanto, atraiu o desejo em
produzir sua transposição para as telas – mais precisamente uma adaptação
cinematográfica. Até aí, nada de mais. O incomum é que, de igual maneira, atraiu
profissionais que não estavam interessados somente pelo retorno financeiro que a
obra poderia proporcionar, e que buscaram se envolver motivados pela natureza dos
questionamentos propostos pela história. Este fato poderia ser descrito como uma
transcrição romanceada vinda da equipe de relações públicas ou marketing do
estúdio, não fosse o posicionamento público de diversos dos envolvidos ativamente
na elaboração, como a produtora, o diretor e alguns dos atores, que corroboram
isso.

100
Tradução do autor: “Quando se vai assistir o filme, se fará parte do público na sala de cinema, mas
se sentirá também como parte da audiência dos Jogos Vorazes? Vai ativamente torcer para que
determinados tributos vivam ou morram? Ou se manterá distante durante a apreciação? O quanto
será envolvido no Jogo da Capital?”.
101
Tradução do autor: “Ainda nem mesmo posso responder a essa pergunta para mim mesma, mas
estou realmente intrigada por ela”.
136

É de pleno conhecimento que uma produção cinematográfica hollywoodiana


necessita de investimento na casa dos milhões, tendo considerável aplicação de
recursos em marketing e sendo meticulosamente planejada para obter um retorno
mínimo. Deste modo, antes do aval para uma produção desse tipo, ela passa pela
avaliação das equipes de marketing, vendas internacionais, bem como do
entretenimento caseiro. É um mercado que objetiva o retorno do que fora investido,
preferencialmente com lucro. Mas, ao mesmo tempo, a produção cinematográfica de
Jogos Vorazes foi desenvolvida com uma aura tanto de filme independente quanto
de “filme do diretor”.
Por exemplo, no caso da produtora Nina Jacobson – proprietária da Color
Force Productions e anteriormente executiva da Disney102 –, recebeu o livro de um
colaborador logo após o lançamento deste, sendo arrebatada pela obra. Ela
conseguiu os direitos de produção depois de uma acirrada competição, após se
comprometer com que a prioridade seria por uma versão ética do filme, prometendo
fazer tudo ao seu alcance para proteger a integridade da obra de Suzanne Collins –
fora o fato de possuírem um amigo em comum, que interveio em seu favor. Após se
encontrar com vários estúdios para negociar qual seria o responsável, a Lionsgate
se apresentou para Jacobson como sendo a ideal para manter sua promessa
(EGAN, 2012).
Já no que tange à direção, conforme entrevista para a revista The Hollywood
Reporter (2012), é digno de nota que foi o próprio Gary Ross quem se candidatou à
direção e roteiro do filme, por se surpreender com a obra: “I hadn’t seen a piece of
material that touched the culture and moved me the same way in a very long time” 103.
Jacobson estava produzindo um filme em Londres, e Ross cruzou o oceano até lá
somente para apresentar sua concepção, que, na opinião dela, havia compreendido
a natureza da história, além de possuir “great ideas for the movie visually” 104 (EGAN,
2012, p. 15).

102
Nina Jacobson foi encarregada de filmes como O Sexto Sentido (1999), e das franquias Crônicas
de Nárnia (2005-2008) e Piratas do Caribe (2003-2007), dentre outros.
103
Tradução do autor: “Fazia muito tempo que não tinha contato com um material que mexesse tanto
com a nossa cultura quanto comigo mesmo".
104
Tradução do autor: “grandes ideias visuais para o filme”.
137

Este fato se torna ainda mais contundente ao descobrir que Gary Ross, além
de profissional indicado ao Oscar 105 e reconhecido no meio como um dos mais bem-
conceituados e bem pagos Script Doctors106 de Hollywood, tendo roteirizado todos
os filmes que dirigiu, se candidatou a um filme que lhe ofereceria um pagamento
entre 3 e 4 milhões de dólares, que além de ser considerado uma bagatela para os
padrões de Hollywood, é um valor que facilmente ganharia sem precisar se afastar
do conforto de seu lar e família, pelo prazo que uma produção dessas exige – tudo
por acreditar no potencial da obra.
Como outro exemplo, pode-se citar Donald Sutherland, veterano ator com
mais de cinquenta anos de expressiva atuação, que comunicou por carta à
Lionsgate sua intensão de interpretar o presidente de Panem, comentando que:

though the part that I play is, in the first book, small, the film can be so
significant in reaching young people and teaching them how to deal
with the oligarchy of the privileged, the hegemony of capitalism, it is a
revolutionary piece of work. I’m thrilled with it.107 (EGAN, 2012, p. 30).

E essa conjuntura de elementos se manteve durante todo o percurso do


desenvolvimento do filme, inclusive na elaboração do roteiro. Collins, sendo ela
mesma roteirista, desenvolveu a primeira versão, posteriormente revisada pelo
roteirista e também diretor Billy Ray, adequando-a aos moldes hollywoodianos, para
com isso se iniciarem as buscas por um diretor. Após o acerto com Ross, não
somente como diretor, mas como não poderia ser diferente, também como roteirista,
a história sofreu não somente uma adequação à visão deste, como passou a operar
em uma inusitada parceria (intermidiática) a quatro mãos, entre a autora Collins e
Ross. O diretor comentou de sua boa relação com todos que adaptou,

but with Suzanne it was very special because we ended up actual


collaborators. It wasn’t just that she was involved – it’s that we
became a writing team. We were always talking, we had a good

105
Gary Ross foi indicado ao Oscar como roteirista por Quero ser Grande (1988) e Dave, presidente
por um dia (1993); e como diretor por Seabiscuit, alma de herói (2003).
106
Script Doctors são profissionais consultores especializados em roteiros, contratados por uma
produtora para apontar problemas estruturais, lapidando ou reescrevendo um roteiro em qualquer um
de seus aspectos, seja na estrutura, diálogos, caracterização etc.
107
Tradução do autor: “embora a parte em que atuo seja pequena no primeiro livro, o filme pode ser
muito significativo ao atingir os jovens e ensiná-los como lidar com a oligarquia dos privilegiados, a
hegemonia do capitalismo, pois é uma obra revolucionária. Estou empolgado com isso”.
138

relationship, but then she came to LA in person. I got her thoughts on


the script, and her thoughts were so good that we began writing
together before we even realized it. It was important to me that she be
involved, and it felt so natural and spontaneous that it was a wonderful
thing.108 (EGAN, 2012, p. 16).

Observa-se que a autora não perdeu o controle de sua própria obra, quando
permitiu sua adaptação para o cinema. Com isso, as alterações, adaptações,
releituras, enfim, a transformação ocorrida na história pela passagem do texto para o
roteiro, e deste para as telas, passaram pelo seu crivo. Sendo assim, não é apenas
uma transposição da obra original, mas apresenta inclusive uma maturação da
própria autora para com sua obra, possibilitando aparar algumas arestas que a
incomodavam. Ao fim, o roteiro seria uma versão 2.0 do texto original e tão oficial
quanto.

4.1.1. Diferença entre o romance e o roteiro

Romance e roteiro possuem vantagens e desvantagens entre si.


Habitualmente o romance permite uma completa liberdade de exploração, enquanto
o roteiro deve se ater ao que possa ser eficientemente transposto para o
audiovisual. As mudanças mais frequentes se referem ao tempo e à narrativa,
exatamente o caso de Jogo Vorazes.
Com relação à narrativa, no capítulo três fora discutido sobre o livro
apresentar a narrativa em primeira pessoa. Mas na versão cinematográfica, se
apresenta em terceira pessoa – como decorrência disso, tem-se uma espécie de
“efeito gangorra”: se por um lado o livro oferece a liberdade de uma imersão irrestrita
aos pensamentos da protagonista Katniss, por outro se retém preso ao stimmung
proporcionado pelo olhar dela perante o mundo. Já de modo completamente oposto,
no filme se encontra limitada a empatia e imersão perante a protagonista, mas em

108
Tradução do autor: “Mas com Suzanne foi muito especial, porque acabamos realmente como
colaboradores. Não era apenas como se ela estivesse envolvida – é que nos tornamos uma equipe
de roteiristas. Estávamos sempre dialogando, tivemos um bom relacionamento, mas então ela veio
pessoalmente em LA. Eu obtive suas ideias sobre o roteiro, e estas eram tão boas que começamos a
escrever juntos antes mesmo de nós percebermos isso. Era importante para mim que ela estivesse
envolvida, e isso ocorreu tão natural e espontâneo que foi um acontecimento maravilhoso”.
139

compensação, o enredo é apresentado por toda uma gama de personagens e


situações externas à protagonista, ampliando a relação com o universo da obra.
Portanto, fazendo uma analogia com o posicionamento de uma câmera, no
livro essa estaria posicionada de forma análoga ao restritivo olhar da protagonista,
enquanto no filme essa câmera não possui restrições, sendo basicamente onisciente
e onipresente, apesar de totalmente impotente. Esta mudança permite ao
observador posicionamentos impossíveis para a protagonista, flanando entre
cenários e personagens nos mais diversos ângulos. Com isso, este modo traz mais
força à ambientação, além de permitir que se aprofunde em outras partes da
história, ao apresentar cenas inexistentes no livro, como a de “Haymitch’s
determination to charm the sponsors, Seneca Crane and President Snow planning
their strategy. We even see Haymitch approach Crane to suggest the star-crossed
lovers concept”109 (FRANKEL, 2013, pos. 2639).

Livro Filme
Primeira pessoa Terceira pessoa
Sabe-se o que a protagonista vê, Posicionamento quase onisciente
presume e vivencia. e onipresente.
Força maior na persona Força maior na ambientação
(Fonte: Elaborado pelo autor)

Já na questão do tempo, não é possível transpor toda a gama de elementos


contidos em um romance para um filme de duas horas, vide o audiolivro de Jogos
Vorazes, que em sua narração integral possuía mais de onze horas de duração.
Com isso, diversos elementos precisaram ser suprimidos, e nem todos os
personagens foram transpostos para as telas, enquanto outros com pouca ou
nenhuma presença no livro, mas de grande relevância para a trama, foram
adicionados. Apesar de Booth achar que a Katniss do livro “reveals more of her past
(and dreams of her future) than does the Katniss in The Hunger Games film” 110
(BOOTH, 2015, p. 148), sua transposição ao cinema tenta contornar essa situação

109
Tradução do autor: “determinação de Haymitch para encantar os patrocinadores, Seneca Crane e
Presidente Snow planejando suas estratégias. Nós até vemos Haymitch abordando Crane para
sugerir a ideia dos amantes desafortunados”.
110
Tradução do autor: “revela mais do seu passado (e sonhos para o futuro) que a Katniss do filme
Jogos Vorazes”.
140

ao apresentar alguns flashbacks ausentes de diálogos, o que acabou por valorizar a


história filmada.

Figura 45 Comparação da linha de tempo entre livro e filme

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Mas de fato, no livro não há a ocorrência declarada da passagem de tempo,


apesar da duração de todos os eventos ser facilmente mensurável. Já no filme, a
sensação de passagem de tempo é mais rápida e menor. Mesmo a mensuração em
dias para ambas ser a mesma até o início dos Jogos – 8 dias –, é depois que ocorre
uma diferença significativa: no romance, ao total são 31 dias corridos desde a
colheita até o retorno ao distrito, sendo 17 dias propriamente de Jogos Vorazes. No
filme não há como mensurar precisamente a totalidade do tempo, mas os Jogos
propriamente ocorrem na metade do tempo. Poderia se especular um máximo de 20
dias, ainda assim, com uma sensação final de bem menos tempo. Isto se reflete
tanto no dinamismo da direção e montagem proposta, como na eliminação de
algumas mazelas, pois o filme é bem mais contido nos sofrimentos aos quais os
tributos são expostos.

A survival story makes a great book, but often a lousy movie, so most
of the survival and starvation are shortened: Katniss doesn’t struggle
with dehydration all alone in the forest because that would film
tediously. She only gets one night partnered with Rue and two with
141

Peeta, speeding up the drama and cutting much of their struggle to


find food. Any hunger or lack of supplies is only mentioned twice. 111
(FRANKEL, 2013, pos. 2714).

Dito de um modo mais contundentemente relacionado à intermidialidade,


pode-se afirmar que todas estas mudanças se devem às peculiaridades de cada
uma dessas mídias, pois de igual maneira que a cinematização da literatura nunca
será um livro, a romancização de uma cinematografia jamais será um filme. Ainda
assim, ambas carregam nesta transposição elementos de sua mídia original, seja
por meio de elementos de linguagem, estilo, narrativa etc. (PAECH, 2011).

4.2. A busca por meio das materialidades de referenciais nazistas

Após seu encontro com a produtora em Londres, o próximo passo de Ross


foi apresentar sua proposta para a Lionsgate. Valendo-se de possuir filhos
adolescentes aficionados na obra, Ross os entrevistou sobre o livro, bem como a
vários dos amigos de seus filhos, transformando o material em um curta-
documentário. Também preparou uma equipe de artistas conceituais para elaborar
graficamente sua visão de Jogos Vorazes. A então presidente de produção da
Lionsgate, Allison Shearmur, se surpreendeu com esse primeiro encontro com Ross:

he came to Lionsgate to convince us he was the right director for the


film. Many directors were interested, but he blew us away with his
presentation. He’d made a documentary to show us — interviews with
friends of his teenage children, talking about what The Hunger Games
meant to them. He showed examples of the filmmaking style he’d
want to use to tell Katniss’s story. He even brought artwork to show
what he imagined the film could look like. It was an electric
presentation.112 (EGAN, 2012, p. 16).

111
Tradução do autor: Uma história de sobrevivência a intempéries faz um grande livro, mas muitas
vezes um filme ruim, então a maior parte da luta pela adversidade e fome foram encurtados: Katniss
não luta contra a desidratação sozinha na floresta, porque isso seria tedioso. Sua parceria com Rue
só dura uma noite e duas com Peeta, acelerando o drama e diminuindo grande parte do seu esforço
para encontrar comida. Qualquer fome ou falta de suprimentos é mencionada apenas duas vezes”.
112
Tradução do autor: “ele veio a Lionsgate para nos convencer de que era o diretor certo para o
filme. Muitos diretores estavam interessados, mas ele nos surpreendeu com a sua apresentação. Ele
fez um documentário para nos mostrar - entrevistas com amigos de seus filhos adolescentes, falando
sobre o que Jogos Vorazes lhes significava. Ele mostrou exemplos do estilo de filmagem que gostaria
142

Nesse encontro que durou aproximadamente duas horas, ele expôs sua
visão com o auxílio de vasta quantidade de imagens, não só as conceituais que
mandou elaborar, mas imagens que se tornaram referências de um tempo, como do
pintor alemão Max Beckmann (The Hollywood Reporter, 2012). Muitas das obras de
Beckmann (1884-1950) refletiam a brutalidade do nazismo bem como a agonia da
Europa na primeira metade do século XX.

Figura 46 Tríptico Abfahrt (Partida, 1932-5), por Max Beckmann.

(Fonte: Bild-Kunst, Bonn 2015)

Apesar da impossibilidade de ter acesso ao real conteúdo dessa


apresentação, tendo como único indicador a obra de Beckmann, é possível
especular que, após sua leitura de Jogos Vorazes, Ross se apercebeu de que a
realidade ficcional do livro se dava próximo à da era nazista. Não cabe nesta
pesquisa tentar aferir motivos pessoais que o levaram a esse vislumbre, sendo
cabível apenas especular que, devido ao nazismo ter sido um regime de governo
totalitário que fora minuciosamente e extensivamente documentado, acabou por se
tornar um importante referencial.

de usar para contar a história de Katniss. Até mesmo trouxe imagens para demonstrar como
imaginara a aparência do filme. Foi uma apresentação empolgante”.
143

Desde os momentos mais primários no processo de preparação do filme, o


diretor e o designer de produção Phil Messina acordaram sobre a aparência do
universo de Jogos Vorazes. Sobre a Capital, mesmo com as descrições do livro não
passando do que já fora citado no capítulo 3.1 deste estudo, ambos a vislumbraram
como a encarnação do poder, força e autoridade. Estas qualidades não se
apresentam por meio de enormes arranha-céus cintilantes e futurísticos, mas sim
por uma vasta horizontalidade e espaço, pontuada por construções extremamente
maciças (EGAN, 2012). Nos extras do Blu-ray são referências citadas a cidade
tibetana de Lhasa, a União Soviética como um todo e a Praça Vermelha de Moscou,
a Praça da Paz Celestial de Pequim, o Portão de Brandenburgo de Berlim e a
Champs-Élysées de Paris.

Figura 47 Lhasa no Tibete; Praça Vermelha em Moscou; Praça da Paz Celestial em Pequim; Portão de
Brandenburgo em Berlim; Champs-Élysées em Paris

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio buscador Google Images)

Além destes, também são citados como referenciais estadunidenses os


gigantescos pavilhões da Chrysler, Ford e General Motors, construídos para as
feiras mundiais ocorridas no país, na década de 1930. Este é um referencial que
beira o irônico, pois estas exposições apresentam como os EUA do passado
idealizavam o seu futuro utópico, reapropriado pelo filme para apresentar o seu
futuro distópico. Isto descreve bem o conceito de duplo circuito presente no
retrofuturismo, no qual se vai “do passado em direção ao futuro e do futuro em
direção ao passado. Passadização do futuro, futurização do passado” (DURING,
2013, p. 218).
144

Figura 48 Cartões postais dos pavilhões da Chrysler e Ford, ambas da Feira Mundial de Chicago (1933) e da
General Motors para a Feira Mundial de Nova Iorque (1939).

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios Chicago Postcard Museum.org; MCNY.org)

Em parte devido aos acontecimentos decorrentes da Grande Depressão, é


característica desta década de 1930 uma arquitetura financiada por governos ou
poderosas instituições, com o objetivo não somente de fomentar empregos, mas
especialmente para promover uma reconstrução da identidade nacional, portanto de
pertencimento à nação – esse estilo é conhecido como monumentalista estatal
(ROSENTHAL, 2002) ou neoclássico monumental (LENHARO, 2006), sendo
especialmente adotado pelos regimes totalitários da época. Em se tratando do
nazismo, para Hitler essa arquitetura tanto “deveria expressar a grandeza de um
regime, de uma época, de um povo, de uma raça” (LENHARO, 2006, p. 48), quanto
poderia também criá-los.
A denominação monumental vai além da forma e função, significando tanto a
escala das construções quanto a grandiosidade da sua representação. Este
transmitiria “a spirit of vastness, solidity, immobility, sobriety, and was meant to stand
for centuries”113 (ROSENTHAL, 2002, p. 404), justamente as características que a
produção do filme optou por adotar, mas também sendo justamente o estilo

113
Tradução do autor: “um espírito de vastidão, solidez, imobilidade, sobriedade, sendo concebido
para permanecer por séculos”.
145

arquitetônico característico da Alemanha nazista. Hitler repudiava o modernismo,


promovendo o retorno a um (pseudo) classicismo, tendo essa arquitetura solidificado
a união entre o ditador e o arquiteto oficial do governo nazista, autor da teoria sobre
o valor das ruínas.

A arquitetura moderna, por sua técnica, e pelos materiais


empregados, não inspiraria os sentimentos de orgulho e de heroísmo
que deveriam ser repassados às gerações futuras. Lembrando-se das
construções greco-romanas, Speer preconizava a utilização de
materiais capazes de resistir ao desgaste causado pelo tempo.
Somente a pedra e o tijolo poderiam levar a construções que não
deveriam ser pensadas em função do ano 1940, nem mesmo do ano
2000, mas que deveriam se erigir, semelhantes às catedrais do
passado, até os milênios futuros, conforme declarou Hitler. Mesmo
que o nazismo fosse reduzido ao silêncio, suas construções haveriam
de falar por si e continuar a espantar os homens por muitos milênios.
(LENHARO, 2006, p. 49).

Ainda assim, com todas estas similaridades, interessa notar que em nenhum
momento é citada publicamente alguma referencialidade direta ao regime nazista –
no Blu-Ray ainda se encontram citações ao Fascismo, bem como à já citada União
Soviética. Vale lembrar que, após o colapso da Alemanha nazista, o estilo
monumentalista estatal se tornou uma das bases da arquitetura brutalista 114, muito
difundida no restante do mundo, como nos EUA, Brasil, Inglaterra, Japão etc. mas
especialmente, sendo este o estilo arquitetônico característico da União Soviética
Comunista, do qual comumente se baseiam as alusões ao regime.
Como se pode observar, da materialidade como livro até chegar à
materialidade do filme, se percorre um vasto caminho de possibilidades
intermidiáticas. Até o momento, dentre os inúmeros graus e escalas das
manifestações intermidiáticas possíveis, esta pesquisa optou por atribuir como
pertinente a passagem do livro para o roteiro da autora, deste para o roteiro do
estúdio e após, ao roteiro do diretor/autora. Seguindo a estes, se apresentam os
diversos referenciais que formulam a visualidade cinematográfica – estes também
entendidos como mídias.

114
Este termo tem origens no frânces brut (natural, não refinado), derivado do emprego dado pelo
arquiteto Le Corbusier ao termo béton brut, ao designar o concreto utilizado sem transformações,
portanto mais natural, primitivo e bruto.
146

Figura 49 Exemplo de intermidialidade no filme

Fonte: Elaborado pelo autor)

Desde o início – seja este entendido como a origem do cinema, ou como


sendo o começo de um projeto cinematográfico –, o filme “has always been a hybrid
intermedial construction on its technical as well as its aesthetic level” 115 (PAECH,
2011, p. 15). Com isto, reafirma-se o posicionamento de que um filme deve ser
entendido não apenas como um construto (mono) midiático em si mesmo, mas
especialmente deve ser compreendido como uma compilação de outras mídias
(PAECH, 2011), ou um cluster, entendido como “multiple layering of different images
or image elements, resulting in a spatial density” 116 (PETHŐ, 2010, p. 61).
São exatamente as relações intermidiáticas destas camadas que agora
serão exploradas, para um melhor vislumbre da intermidialidade presente na versão
cinematográfica de Jogos Vorazes, bem como do referencial nazista, seja por meio
da cenografia – formada pela inter-relação da iluminação, sonorização e
especialmente arquitetura – e do figurino – formada pela totalidade dos trajes
cênicos, indumentária e acessórios – portanto, estes também entendidos como
mídias.

115
Tradução do autor: “tem sido sempre uma construção intermedial híbrida, tanto em nível técnico
quanto em estético”.
116
Tradução do autor: “disposição em múltiplas camadas de diferentes imagens ou elementos de
imagem, resultando em uma densidade espacial”.
147

4.3. A materialidade cinematográfica da Capital

É o contexto que define a arquitetura, o mobiliário e os objetos que serão


utilizados em uma produção cinematográfica. Estes não falam por si só, mas
produzem significado por meio das relações que apresentam entre si, entre o
espaço ao redor e entre os atores – quando da presença destes (HOWARD, 2015).
É justamente esse contexto que será tratado nesta seção, ao apresentar elementos
que referenciam uma anterioridade – quer seja a admitida alusão ao Império
Romano presente no livro, quer seja pela Alemanha nazista, conforme propõe este
trabalho, especialmente a partir da transposição cinematográfica.
Conforme explicitado no segundo capítulo, esse referenciar de uma
anterioridade pode ser entendido tanto pelo conceito de revivalismo, quanto pelo de
retrocipação, ou ainda pelo conceito de presentificação, e se apresentam repletos de
possibilidades intermidiáticas, ao proporcionarem uma ambiência por meio da
relação entre os elementos Romanos e nazistas, presentes na essência de ambas
as acepções da obra. Portanto, se propriamente embasados e contextualizados, são
capazes de transmitir uma importante verossimilhança, pois:

no entretenimento, especialmente quando a história é contada de


forma ficcional, nem tudo pode ser ficcional. O leitor/espectador
precisa ser colocado na situação de constituir muito rapidamente uma
memória adaptada à narrativa, talhada especialmente para ela, e isso
ele só poderá fazer se detalhes que lhe são familiares forem
fornecidos juntos e suficientemente, nas imagens ou textos.
(LUHMANN, 2005, p. 96).

É com esse pressuposto que o diretor Gary Ross, o designer de produção


Phil Messina e a supervisora dos efeitos visuais Sheena Duggal, começaram a
coordenar as equipes de arte do filme, inicialmente artistas conceituais para as
definições, posteriormente passadas para o restante das equipes de execução, de
modo a desenvolver a ambientação e atmosfera do filme, com base nos referenciais
pesquisados.
148

Ao se verificar as artes conceituais para a Capital, percebe-se que esses


foram seguidos à exatidão, por meio de representações de uma arquitetura
monumentalista, com construções predominantemente baixas e maciças, além de
uma urbanidade que preza pela horizontalidade. Levada em consideração apenas
as imagens utilizadas na seção anterior deste trabalho, estão mais pronunciáveis as
referências à Lhasa e ao pavilhão da Chrysler, bem como possíveis elementos
romanos, característica que permeia o enredo do livro.

Figura 50 Artes Conceituais de Jogos Vorazes. Por Marcus Collins, Tim Flattery, Tim Flattery e Chris Stoski.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios dos respectivos artistas)

Nas imagens acima, além da predominância do estilo arquitetônico proposto,


é interessante notar que há a presença de algumas flâmulas vermelhas atuando
como adornos. De igual maneira, o mesmo se repete no próximo conjunto de
imagens conceituais, mas indo além, também apresentam de forma bem
pronunciada a representação da águia, seja como frontispício, como escultura ou
como símbolo heráldico, presente tanto nessas flâmulas quanto em dosséis.
149

Figura 51 Artes Conceituais de Jogos Vorazes. Por Paul Christopher e a última por Laurent Ben-Mimoun

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios dos respectivos artistas)

Apesar das supressões já citadas, ao se tratar essas artes conceituais de


um modo figurado, como sendo elementos pertencentes a uma fórmula matemática,
poderia se desenvolver o seguinte cálculo: ao se somar a presença do regime
totalitário, mais da arquitetura monumentalista, mais flâmulas vermelhas e águias,
resultaria em uma quantia considerável de similaridades encontradas durante o
regime nazista maior do que com qualquer outro referencial.
Não sendo o bastante, vai-se além. Ao se observar uma das modelagens
urbanísticas digitais usadas como conceito para a Capital, é muito pertinente
perceber o quanto o artista remediou não somente o projeto de Speer para a
Welthauptstadt Germania (Germânia, a Capital do Mundo), como uma de suas fotos
mais icônicas. Ambas apresentam o mesmo posicionamento para captura (foto no
caso da maquete, rasterização no caso da modelagem digital): mesmo
enquadramento, plano (grande plano geral), ângulo (frontal) e angulação (plongée
ou picado). Também há uma correlação direta entre a disposição de elementos que,
não apenas são semelhantes em algum grau, mas se encontram posicionados
relativamente no mesmo lugar um do outro. Somente com a comparação deste
material, já se teria conteúdo para uma análise aprofundada da intermidialidade
presente, e em se tratando da busca por uma ambiência nazista, é mais um ponto a
se considerar.
150

Figura 52 A Esquerda: maquete da Germânia por Albert Speer; a direita: modelagem da Capital por Tim Flattery

Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios Arrête ton Char e Tim Flattery)

Figura 53 Paralelo entre enquadramento, plano, ângulo e angulação e elementos

Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios Arrête ton Char e Tim Flattery)

Continuando ainda a se valer tanto da maquete quanto da modelagem, é


digno de nota mais duas referências. A primeira é com relação a grande avenida que
se estende de alto a baixo, que encontra paralelo em ambas: esta, no projeto de
Speer, é denominada Prachtallee (Avenida dos Esplendores) não tendo por objetivo
servir para o fluxo de automóveis, mas justamente para os desfiles do Reich;
justamente a função do seu análogo em Jogos Vorazes, denominada Avenida dos
Tributos. Essa referência não se dá apenas em relação similaridade da existência e
função da avenida, mas também, devido a ocorrência de grandes espetáculos serem
151

elementos chave presente nos governos totalitários, seja na Alemanha nazista, seja
na Capital de Panem.

A chave da organização dos grandes espetáculos era converter a


própria multidão em peça essencial dessa mesma organização. Nas
paradas e desfiles pelas ruas ou nas manifestações de massa,
estáticas, em praças públicas, a multidão se emocionava de maneira
contagiante, participando ativamente da produção de uma energia
que carregava consigo após os espetáculos, redistribuindo-a no dia-a-
dia, para escapar à monotonia de sua existência e prolongar a
dramatização da vida cotidiana. (LENHARO, 2006, pp. 39-40).

A segunda referência está relacionada com a estrutura existente no extremo


superior da dita Avenida dos Esplendores, onde se encontra um gigantesco domo
denominado Volkshalle (Salão do Povo), idealizada pelo próprio Hitler, que caso
chegasse a ser construído, seria o maior ambiente coberto já erigido pela
humanidade, reflexo desmedido de uma distopia totalitária, “espécies de super
utopias sem promessa de emancipação, como nos casos [...] dos projetos
grandiloquentes de Albert Speer para o III Reich” (WISNIK, 2015, p. 86), um regime
que fazia da política um espetáculo.

Figura 54 Volkshalle de Adolf Hitler e Albert Speer.

(Fonte: Deutsches Bundesarchiv, s/d)

Nota-se que a mesma estrutura não possui paralelo na modelagem


apresentada, que apesar de bem próxima do obtido na versão final da produção
cinematográfica, esta não passou de uma arte conceitual referencial. Mas ao se
deparar com a montagem final da cidade em imagens do próprio filme finalizado,
152

surpreendentemente um domo similar foi remediado, fazendo agora parte da Capital


ao fim da Avenida dos Tributos, em uma localização análoga a encontrada na
maquete de Speer, conforme mostrado na próxima imagem.
Figura 55 A Capital de Jogos Vorazes: Avenida dos Tributos, com domo ao fundo.

(Fonte: JOGOS, 2012)

Com o que fora apresentado até o momento, é possível afirmar que, relativo
a arquitetura da Capital, se mostra pertinente afirmar a existência de um referencial
estético do monumentalismo da Alemanha nazista, perceptível por meio da
intermidialidade. Mas além destes, ainda é preciso averiguar outros elementos para
afirmar se realmente há uma ambiência nazista ressignificada na transposição
cinematográfica de Jogos Vorazes.
Sendo assim, do que fora apresentado pelas artes conceituais e que
também se encontram presentes no filme, estão as flâmulas e dosséis vermelhos,
com a insígnia representativa da Capital em dourado. A cor vermelha carrega as
mais imemoriais simbologias, sendo para muitos povos a cor primordial, estando
atrelada à vida: estando presente, seja como fogo ou sangue, provém a vida;
estando ausente, provém a morte, ou fim da vida.
Em sua ambivalência, se apresenta atrelado aos mais diversos sentidos,
desde juventude, riqueza, sagrado, paixão e amor (CHEVALIER, 1986), elementos
que qualquer forma de poder gostaria de estar associado. Sendo assim, não é de
surpreender que em Roma, vermelho tenha sido “el color de los generales, de la
nobleza, de los patricios: se convirtió en consecuencia en el de los emperadores” 117

117
Tradução do autor: “a cor dos generais, da nobreza, os patrícios: consequentemente se converteu
na cor dos imperadores”.
153

(CHEVALIER, 1986, p. 889), referencial que, em Jogos Vorazes, é perfeitamente


análogo com a Capital, seu povo e governante.

Figura 56 Reunião do Partido Nazista – arquitetura monumental do Zeppelinfeld com presença de estandarte e
dosséis vermelhos, durante apresentação da Liga das Garotas Alemãs, 1938.

(Fonte: Sítio Rare Historical Photos, 2014)

Mas há uma correlação dessa cor que se sobressai especialmente na


presença de governos totalitários: a relação do vermelho com os festejos populares,
particularmente àqueles ligados à primavera. Além, se admitido o paralelo entre
Jogos Vorazes e a Alemanha nazista, esta correlação aprofunda a questão
previamente discutida da palavra "tributo", atrelada à mitologia de Teseu. Tributo
geralmente descreve um pagamento proferido por um vassalo ao seu senhor, mas
que também carrega desde tempos imemoriais, a característica de ser uma
oferenda, um sacrifício, pode se aludir à Alemanha nazista, rica em simbolismos.
Assim como em Triunfo da Vontade,

os camponeses apresentam a Hitler os frutos da colheita. Uma cena


sem sentido? Não, na verdade, ela representa a reconstituição das
tradições pagãs ligadas aos ciclos do planeta. A Terra oferece o
sustento das populações na forma do alimento que fertiliza e faz
crescer. Os deuses que cuidam das estações, da chuva, do sol, da
própria fertilidade da terra, enfim, merecem um agradecimento. E as
comunidades humanas, desde o Neolítico, oferecem a esses deuses
frutos da primeira colheita. A tradição germânica, perdida com a
ascensão do Cristianismo é agora retomada. Os muitos deuses
pagãos são incorporados agora pelo Übermensch, o super-homem
nietzschiano. Aquele, que no início do documentário, chega dos céus
trazendo esperança, recebe as oferendas de seus crentes.
(BARBOSA, 2013).
154

Pois é exatamente isso que ocorre: os “tributos” não passam de crianças,


portanto frutos da primeira “colheita”, como é denominado o sorteio, para serem
oferecidos àqueles “deuses” que detém o poder sobre a comida e sua vida: a elite
de Panem. Já para essa elite, não passa de um evento esportivo, uma celebração
nacional apresentada como um reality show, no qual há torcida pelos seus favoritos.
Portanto, se para essa elite tudo não passa de entretenimento, é natural surgir um
sistema de patrocínio, um modo de interatividade que permite aos espectadores da
Capital por meio de “dádivas” (outra alusão mística) – presentes enviados a um
tributo durante o evento, de modo a poder ajudá-lo, como comida, armas, remédios
e etc. – aumentando as chances de sobrevivência, ou até mesmo de vitória, de um
tributo. Por isso os tributos precisam impressionar o público, seja por seu vigor físico,
habilidade, carisma ou popularidade, se destacando o máximo possível entre seus
pares.
Já no que tange a união do vermelho com o dourado, “éste constituye el
símbolo esencial de la fuerza vital. Encarna el ardor y la belleza, la fuerza impulsiva
y generosa, el eros libre y triunfante. Encarna también las virtudes guerreras” 118
(CHEVALIER, 1986, p. 889), sendo, portanto, novamente análogo a todos os valores
que o governo da Capital de Panem objetiva manifestar. Mas essa dupla entre
vermelho e dourado não está repleta de simbolismos somente pela combinação de
suas cores, mas também pelos elementos que o adornam: o símbolo heráldico da
águia envolto por uma láurea.
A láurea, coroa de loros ou coroa cívica, em sua origem está atrelada a
“inmortalidad adquirida por la victoria. Por esto su follaje sirve: para coronar a los
héroes, a los genios y a los sabios. Árbol apolíneo, significa también las condiciones
espirituales de la victoria, la sabiduría unida al heroísmo” 119 (CHEVALIER, 1986, p.
630). Se encontra presente nos jogos da antiguidade clássica, tanto gregos quanto
romanos, mas se tornou especialmente adotada por Roma como símbolo de vitória,
tanto espiritual quanto marcial, sendo ofertada como distinção a um comandante que
retornava em triunfo apoteótico.

118
Tradução do autor: “este constitui o símbolo essencial da força vital. Encarna entusiasmo e beleza,
força impulsiva e generosidade, o eros livre e triunfante. Também incorpora as virtudes guerreiras”.
119
Tradução do autor: “imortalidade adquirida pela vitória. Portanto seus adornos servem: para coroar
heróis, gênios e sábios. Árvore apolínea, também representa as condições espirituais da vitória, a
sabedoria unida ao heroísmo”.
155

Já de modo semelhante à cor vermelha, a representação da águia é das


mais antigas e presente nos mais variados povos até a atualidade. Na antiguidade
clássica, a águia era intimamente atrelada ao pai criador e viril, portanto aos deuses
supremos – Zeus para os Gregos, Júpiter para os Romanos e Odin para as tribos
Germânicas. Especialmente para Roma, se tornou representativo símbolo de poder
e força: denominada Aquila, era importantíssima não somente para as forças
militares – sendo o estandarte que representava as legiões desde sua República –,
como também simbolizava seu império, do Senatus Populusque Romanus (ou
SPQR) até o medieval Sacro Império Romano-Germânico (CHEVALIER, 1986).

El águila es el ave soberana, el equivalente en el cielo del león sobre


la tierra. Las cúspides de las columnas, de los obeliscos, de los ejes
del mundo, son coronados a veces con un águila: simboliza la
potencia más elevada, la soberanía, el genio, el heroísmo, y todo
estado transcendente. De manera muy general, es el símbolo de la
ascensión social o espiritual, de una comunicación com el cielo, que
le confiere un poder excepcional y la mantiene elevada en las
alturas.120 (CHEVALIER, p. 63).

Figura 57 Águia envolta em láurea: representativa de Panem, e a representativa da Capital

(Fonte: Elaborado pelo autor Elaborado pelo autor, com imagens do sítio The Hunger Games Wikia)

São todas características representativas, que se destinam a ilustrar e


transmitir as tradições e valores desejados de um Estado. Mas ainda assim é
pertinente notar que, muitos símbolos e ideais carregam em si o próprio

120
Tradução do autor: “A águia é a ave soberana, a equivalente dos ares ao leão da terra. É o topo
das colunas, dos obeliscos, os donos do mundo, às vezes, são coroados com uma águia: simboliza o
poder mais elevado, a soberania, o gênio, o heroísmo, e toda condição transcendente. De modo
geral, é o símbolo da ascensão social ou espiritual, de comunicação com o céu, que confere poder
excepcional e mantém elevado nas alturas”.
156

antagonismo – assim como ocorre nas utopias, que possuem distopias latentes, o
mesmo não é diferente com a águia: na reversão dos ideais dessa ave, se apresenta
uma rapina, cruel captora, sendo a perversão do poder, atrelada a soberba e
opressão (CHEVALIER ,1986). Portanto, se símbolos estatais são valores
solidificados da cultura política, usar esse suntuoso pássaro pode transmitir dos
mais altos ideais, bem como a sua deturpação reflete justamente o que ocorre em
ditaduras. Ao fim, com o poder constituído em Panem pela Capital, ocorre
exatamente essa inversão, de igual maneira como ocorreu na Alemanha nazista.
A preponderância do vermelho combinado com elementos em dourado, teve
seu uso muito atrelado às revoluções sociais populares a partir do séc. XIX, sendo
especialmente ligado aos regimes políticos comunistas (em verdade, totalitários,
ditatoriais ou autoritários) do séc. XX, motivo pelo qual, atualmente se encontra em
reduzidíssimo uso. Já o uso da láurea também teve reduzida amplitude, mas
manteve inalterada sua importância, enquanto que a aplicação da águia se manteve
igualmente forte através das eras.

Figura 58 Ligação histórica da águia: Império Romano, Alemanha, EUA e da fictícia Panem.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios Wikipedia; State.gov; The Hunger Games Wikia)

Caso faça-se uma linha de tempo atrelada a estes elementos, notar-se-á a


ligação histórica direta destes simbolismos da Antiguidade Clássica (VIII a.C. a 476)
– da Grécia para a República Romana, destes para o Império Romano, daí para
Império Romano do Ocidente –, percorrendo a idade média – com o Sacro Império
Romano-Germânico (962 a 1806) – até chegar à idade contemporânea – com o
Império Alemão (1871 a 1918), a República de Weimar (1919 a 1933), deste para a
Alemanha nazista (1933 a 1945), e a atual República Federal da Alemanha (1949-).
Como pode ser visto pela imagem, que resumidamente apresenta esta linha
em sequência, vê-se nos extremos tanto a iconografia representativa do Império
Romano quanto de Panem, sendo visível a referenciação que Jogos Vorazes faz do
original romano, nitidamente uma atualização estética para a contemporaneidade. Já
157

ao centro encontram-se as águias representativas da Alemanha e dos EUA, que


neste ponto, acabam por carregar limitada semelhança, inclusive entre si. Pelas
linhas que as interligam se atribui a referenciação proposta pela obra original (linha
superior), bem como por esta pesquisa (linha inferior).
Com relação a linha superior, é pertinente averiguar que, tendo a autora
descrito a ocorrência de Jogos Vorazes na américa do Norte, e sendo ela mesma
estadunidense, o uso da águia também seria uma outra alusão à sua nação. Para
corroborar a isso, a própria adoção da águia pelo governo dos EUA se deve a busca
por referenciar o Império Romano, mas com um pássaro nativo – a águia careca –,
mas não sendo o único símbolo romano ou de outros grandes impérios antigos,
usados oficialmente pelo governo. Tendo seu uso tanto como Escudo de Armas
quanto O Grande Selo dos EUA, possui a seguinte descrição:

The most prominent feature is the American bald eagle supporting the
shield, or escutcheon, which is composed of 13 red and white stripes,
representing the original States, and a blue top which unites the shield
and represents Congress. The motto, E Pluribus Unum (Out of many,
one), alludes to this union. The olive branch and 13 arrows denote the
power of peace and war, which is exclusively vested in Congress. The
constellation of stars denotes a new State taking its place and rank
among other sovereign powers.121 (U.S. Department of State, 2003, p.
15).

Neste ponto, o que parece fechar o circuito – EUA referencia o Império


Romano; Panem referencia os EUA ao referenciar o Império Romano – pode
parecer uma conclusão precipitada, se for levada em questão nessa equação a linha
de tempo inferior, que desenvolve o pensamento defendido por este trabalho, do
qual o principal referencial seja a Alemanha nazista.
Atualmente denominada Bundesadler (águia federal ou águia da união), é o
símbolo oficial nacional da República Federal da Alemanha, mas que fora usada
previamente por longa data: sofrendo sutis modificações através do tempo,
descende diretamente dos escudos de armas do Sacro Império Romano-Germânico,

121
Tradução do autor: “A característica mais proeminente é a águia-careca Americana apoiando um
escudo ou brasão, composto de 13 listras vermelhas e brancas, representando os estados originais, e
uma parte superior azul que une o escudo e representa Congresso. O lema, E Pluribus Unum (entre
muitos, um), alude a essa união. O ramo de oliveira e as treze flechas denotam o poder da paz e da
guerra, que é exclusivamente possuido pelo Congresso. A constelação de estrelas denota um novo
Estado a tomar o seu lugar e posição entre outros poderes soberanos”.
158

adotada como brasão pelos reis prussianos, soberanos do Império Alemão, sendo
utilizada até a República de Weimar – devido a esse histórico, era denominada
Reichsadler (águia do reino ou águia imperial). Quando da ascensão do nazismo,
sofreu grande reestilização, abandonada ao fim desse governo que infamou tantos
símbolos, como a palavra Reich, retornando a uma representação mais histórica da
águia, bem como renomeada para sua atual denominação.
Figura 59 Símbolos do Império Alemão; República de Weimar; Nazismo; e República Federal da Alemanha.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio Wikipedia)

Mas o ponto a que se quer chegar, é justamente referente a reestilização


desse símbolo nacional pela Alemanha nazista. Na figura 10 é perceptível a gradual
simplificação dos seus traços através do tempo, todos mantendo uma identidade
visual que as correlacionam – a exceção da era nazista. Esta, ao quebrar padrões,
(re) introduzir elementos, e apresentar políticas voltadas para a estética de modo
ímpar, adequa a Reichsadler ao seu governo expansionista que almejava recriar o
mundo: seguindo avançado grau de minimalismo, especialmente adequado para sua
reprodução em massa, bem como nas mais variadas técnicas, materiais e
superfícies.
Figura 60 Águia representativa da Capital e a Reichsadler

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios The Hunger Games Wikia; The National WWII Museum)

Se colocados lado a lado, tanto o símbolo heráldico da Capital quanto a


Reichsadler nazista, encontram consonâncias: ambos seguem um estilo minimalista
159

iconográfico, se apresentando em seu esplendor – suas asas completamente


abertas –, assim como as duas possuem láureas, em ramos pela primeira e numa
guirlanda pela segunda. Na Capital, esses ramos saem do pequeno círculo aos pés
da águia, tendo no seu interior a simbolização de quem detém o poder – um C
coroado. Já no nazismo, diretamente atrelado aos seus pés a própria guirlanda
forma igual círculo, onde se encontra a suástica – representativo do partido que
manda, o Partido nazista. É pertinente observar que toda essa configuração estética
reforça o aspecto militar tanto da capa do livro quanto do broche do tordo.
Em se tratando de dissonâncias, parece estar relacionado ao contexto do
uso, pois a versão fictícia se apresenta limitada apenas na heráldica representativa
da Capital, enquanto a Alemã foi concebida para englobar o maior número de usos
possíveis. Por fim, é possível especular que a heráldica representativa de Panem, a
nação como um todo, poderia descender do caminho referencial Roma-EUA (a linha
superior da imagem 58), enquanto a representação da Capital descenderia de
Roma-Alemanha (a linha inferior da mesma imagem) 122.
Para finalizar esta parte, tem se que, para Foucault não há sociedade mais
universalmente regulamentadora, disciplinar e previdenciária do que a da Alemanha
nazista, entendida como uma sociedade de normalização, exercida por meio do
poder sobre a vida e das formas de governança que a ela estão atreladas
(FOUCAULT, 2010). Toda a sua iconografia possuía algum manual contendo seu
modus operandi, incomum para a época, como no abrangente livro
Organisationsbuch der NSDAP (literalmente Livro de Organização do Partido
Nazista, 1937), no qual não apenas tratava da organização estrutural do partido,
mas apresentando cada setor como possuidor de um logotipo próprio, com suas
respectivas insígnias, estandartes, uniformes, equipamentos, inclusive organização
de acampamentos e quarteis, e por fim, contendo tabelas para verificar o quanto
alguém seria ariano, mestiço ou judeu. Essa ambiência normalizadora também
existe em Jogos Vorazes, mas se apresenta com semelhante abrangência ao

122
Apenas como observação, apesar de parecer haver correlação direta entre as flechas da águia de
Panem com as flechas da águia dos EUA, se observar com mais atenção, esta parece se desfazer: a
águia estadunidense possui treze flechas que também representam os estados fundadores da nação,
enquanto as oito flechas de Panem parecem não possuir valor simbólico algum além de representar a
guerra, pois nessa ficção também são doze distritos (previamente treze). Mas algumas
representações da Aquila romana apresentavam flechas ou raios de números variados, o que poderia
ser uma correlação mais acurada.
160

nazismo somente perante sua transposição ao visual, que desenvolveu elementos


inexistentes no correr do livro.
Esse controle estético, onde tudo possui um logotipo específico parece ser
particularmente emulado pela adaptação cinematográfica, onde até mesmo cada um
dos doze distritos possui sua iconografia referencial, cuidadosamente mantendo a
integridade da identidade visual do todo. De forma especulativa, há inclusive uma
consonância entre a representação do distrito 9 com a RAD (Reichsarbeitsdienst),
organização para o qual jovens de ambos os sexos prestavam trabalho compulsório
ao Reich, sendo um preparatório para o exército.
Figura 61 Iconografia dos 12 distritos e semelhanças entre o 9 e o RAD.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios TheCapitol.pn; Time.com; Organisationsbuch, 1937)

Por meio dessa presentificação, além de se mostrar mais um exemplo de


relação intermidiática por meio de materialidades distintas, também galga mais um
passo no posicionamento desta pesquisa frente a presença de uma ambiência
nazista ressignificada na obra. Mas alguns dos elementos mais representativos da
161

adaptação cinematográfica de Jogos Vorazes ocorrem nos moldes dos filmes de


propaganda nazistas Triunfo da Vontade, Olimpíadas e Mocidade Olímpica.

4.4. O triunfo, a vontade e a materialidade

Apesar de todas as supressões acerca do uso do nazismo como referencial


para o desenvolvimento da adaptação cinematográfica, para corroborar com o que
está sendo proposto nesta pesquisa, não se pode ignorar que algumas das cenas
mais emblemáticas da transposição de Jogos Vorazes para as telas ocorre nos
moldes de dois dos mais importantes referenciais do regime totalitário nazistas,
documentados em audiovisual: são eles os filmes Triunfo da Vontade (Triumph des
Willens, 1935) – que documentou em 1934 o congresso Nacional do Partido nazista,
em Nuremberg – Olimpíadas e Mocidade Olímpica (Olympia, 1938) – documentando
os Jogos Olímpicos do verão de 1936, em plena Berlim nazista.
Tanto Triunfo quanto Olimpíadas são resultantes da perfeita união entre a
técnica cinematográfica de Leni Riefenstahl (1902-2003), com a grandiosidade
arquitetônica de Albert Speer (1905-1981), alcançando um novo patamar no que
tange propaganda e realização estética (LENHARO, 2006), sendo remediadas em
Jogos Vorazes, tanto pela utilização de planos de câmera que criam uma exaltação
à Capital, à imponência da sua arquitetura, quanto a celebração da magnificência de
seu povo123.
Essa influência já se encontrava presente em muitas das artes conceituais
previamente mostradas, mas que se torna especialmente tangível o grau de
intermidialidade presente em duas cenas: primeiro, a apresentação dos tributos por
meio de um desfile; e em segundo, durante um vídeo institucional da Capital,
antecipando o sorteio desses tributos. Mas antes mesmo dessa ocorrência, a
intermidialidade acontece primariamente em outro nível, presente na própria
adaptação do texto original para a tela do filme. Pela narração da protagonista, tem-
se a descrição da primeira cena citada, a do desfile:

123
Novamente, neste ponto é preciso se ater ao observador: caso se valha de um recorte mais
estrito, sendo ambas produções cinematográficas poderia se aferir como uma relação intramidiática.
O viés aqui apresentado é de um recorte mais amplo, de viés intermidiático: por exemplo, considera-
se que um filme em preto e branco é uma mídia com características próprias em sua materialidade e
que são distintas do filme colorido, portanto ambas seriam mídias diferentes; também se considera
que filmes são compilações de mídias, e o que se está observando são variadas materialidades
artísticos-midiáticos; e também se assume artes conceituais e referenciais.
162

A cerimônia de abertura está para começar. Pares de tributos estão


sendo colocados dentro de carruagens puxadas por grupos de quatro
cavalos. Os nossos são pretos como carvões. Os animais são tão
bem treinados que não há nenhuma necessidade de alguém segurar
suas rédeas. [...] A música de abertura começa. É fácil ouvi-la, já que
é tocada a todo o volume na Capital. Portas gigantescas se abrem,
revelando ruas cheias de gente. A viagem dura mais ou menos vinte
minutos e acaba no Círculo da Cidade, onde vão nos dar as boas-
vindas, tocar o hino e nos acompanhar até o Centro de Treinamento,
que será nossa casa/prisão até o começo dos Jogos. (COLLINS,
2010, pp. 76-77).

Com base nesse excerto da obra original, é possível traçar algumas


argumentações distintas quando ela vira a cena do desfile dos tributos 124.
Primeiramente, reitera-se a passagem de tempo, que no filme ocorre em não mais
que dois minutos, dez vezes mais rápido que o descrito no livro – mas que
curiosamente, coincide com a duração média da leitura deste trecho no livro.
A questão dos veículos do desfile dos tributos: no livro original em inglês, o
termo utilizado é chariot, literalmente significando biga – um veículo de duas rodas
de tração animal, geralmente dois cavalos, muito comum na Antiguidade Clássica,
especialmente usada em Roma para esportes e cerimônias – enquanto que na
tradução brasileira ficou carruagem, derivação mais exata de carriage – um veículo
de número variado de rodas, geralmente quatro, e também movido por tração animal
de número variado, frequentemente cavalos. Portanto, novamente são visíveis os
efeitos da intermidialidade presente, seja pela autora em mais uma transposição da
iconografia romana, seja da sua adaptação para a nossa língua pelo tradutor. Mas
certa modificação também ocorre na sua transposição para as telas, que se utiliza
de dois cavalos em vez desse veículo ser puxado por quatro cavalos, como no livro
– o que na Roma antiga seria precisamente denominada por Quadriga, geralmente
associada ao simbolismo do triunfo.

124
Para fins deste trabalho, entende-se esta cena como a ocorrência entre os tempos 31min06s e
34min28s do filme.
163

Com relação às citadas músicas125 de abertura do desfile e hino, no filme ela


foi amalgamada em uma única, se tornando o leitmotiv representativo da Capital.
Sendo composta pela banda de rock Arcade Fire, com arranjo de James Newton
Howard126, é denominada Horn of Plenty, que em português pode ser traduzido
literalmente como Chifre da Abundância, mas sendo mais correto como Cornucópia.
Portando, no momento do desfile ela se apresenta como sendo diegética. Nos extras
do Blu-Ray, é comentado que essa música evocaria sensações que a produção
precisava transmitir, sendo tanto arrepiante, grande, triunfante, quanto leve e
estranha, enfim, um hino fascista (JOGOS, 2012).
Corroborando a isso, a Rising Sun Pictures – empresa responsável por mais
de 200 tomadas de efeitos visuais para o filme, e principal responsável pelos
renderings127 da Capital – declarou que, o diretor Gary Ross e a supervisora de
efeitos visuais Sheena Duggal deixaram bem clara sua intenção em usar referências
reais para sua composição (RSP, 2012). E justamente nessa cena do desfile dos
tributos, é que se evoca por meio da constituinte de elementos estéticos existentes,
toda uma iconografia que se tornou histórica.
Portanto, a coesa união proporcionada pela arquitetura monumental
enfeitada por flâmulas e dosseis vermelhos e preenchida por uma massa humana,
somada a eficiente filmagem, mediante posicionamento que proporcionam ângulos e
profundidade de campo, valorizam a grandiosidade do espetáculo. Esta sequência
foi construída para emular algumas das cenas de Triunfo da Vontade, mas
especialmente transmitir o stimmung que o congresso do partido nazista em
Nuremberg evocava.

125
Neste ponto, é preciso abrir um parêntesis: toda a produção musical ficou a cargo de oscarizado
produtor T-Bone Burnett, sendo desenvolvido dois álbuns – um com a trilha sonora musical
(soundtrack), contendo 16 músicas por artistas contemporâneos; e outro com a trilha sonora musical
original (score) composta por James Newton Howard, contendo 18 músicas.
126
James Newton Howard é um renomado polivalente músico estadunidense – sendo também
compositor, maestro e produtor musical –, ganhador de importantes prêmios da indústria, como
Emmy e Grammy, além de diversas indicações ao Oscar. Curiosamente, é o compositor de todos os
filmes do diretor M. Night Shyamalan.
127
Processo por meio digital, que consiste em interpretar modelos de dados em forma de imagens,
geralmente foto-realistas, se valendo de complexo uso geométrico, ponto de vista, textura,
iluminação, luz e sombra.
164

Figura 62 Triunfo da Vontade e Jogos Vorazes

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos filmes: Triunfo da Vontade, 1935; Jogos Vorazes, 2012)

Mais específico ainda, no exato momento em que as bigas se posicionam


perante o Círculo da Cidade, para receberem as boas vindas do líder de Panem,
tem-se não só elementos, mas uma evidente transposição de uma das cenas de
Triunfo da Vontade, presente no ato final a se passar no quarto dia do congresso,
parte do documentário que provavelmente apresenta as suas mais memoráveis
imagens.
É neste ponto128 que o filme mais se atém: nele, Hitler acompanhado por
Heinrich Himmler (líder da SS) e Viktor Lutze (líder da SA) percorrem um longo
caminho, ladeados por mais de 150 mil membros do partido (em sua maioria tropas
da SA e SS), até se posicionarem de fronte a um memorial da Primeira Guerra
Mundial, para prestar homenagem – ao som de uma música diegética. Depois
começam os discursos de Hitler e os desfiles dos membros do partido.

128
No vídeo utilizado como referência para este trabalho, disponível no sítio de transmissão Youtube,
esta cena começa em exatos 1h05min20s. Por meio deste endereço, é possível acessar no exato
instante: <https://youtu.be/nX1tJ0R6Qfs?t=1h5m20s>.
165

Figura 63 Jogos Vorazes x Triunfo da Vontade

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos filmes: Triunfo da Vontade, 1935; Jogos Vorazes, 2012)

Com isso, é perceptível um paralelo entre o corredor formado pela


disposição da multidão a observar aqueles que ali cruzam – no livro descrito como
ruas cheias de gente, enquanto que no filme os comentaristas falam em mais de
cem mil pessoas presentes. Se na obra de Riefenstahl-Speer nos é apresentado por
angulações simétricas, travellings e tomadas inferiores que ascendem e reforçam as
dimensões colossais do evento (LENHARO, 2006), o mesmo ocorre com Jogos
Vorazes.
166

Figura 64 Paralelo entre Triunfo da Vontade e Jogos Vorazes.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos filmes: Triunfo da Vontade, 1935; Jogos Vorazes, 2012)

Sendo recorrente em todos os impérios e civilizações expansionistas, tão


marcante na Antiguidade Clássica quanto nos governos totalitários do séc. XX, estão
refletidas nas produções de Riefenstahl-Speer a celebração de uma sociedade onde
a concepção heroica de vida é o elemento unificador da cultura popular. Nela ocorre
a exaltação à habilidade física, coragem e força, onde o sucesso no combate,
portanto a celebração da vitória, é expressa pelo entusiasmo das multidões. Não
seria diferente com Jogos Vorazes, ao apresentar as remediações de Olimpíadas e
Mocidade Olímpica no momento em que os tributos são apresentados,
desenvolvendo todo um ar de tragédia heroica e romântica, inspirada na mitologia
guerreira nórdica, exaltando esses jovens gladiadores (LENHARO, 2006), uma
compreensão de mundo que para “the Nazi leaders seems like Valhalla, a place
apart, surrounded by clouds and mist, peopled by heroes, and ruled from above by
gods”129 (BARSAM, 1975, p. 27).

129
Tradução do autor: “O mundo dos líderes nazistas se assemelha a Valhalla, um lugar à parte,
rodeada por nuvens e névoa, povoada por heróis, e governada do além por deuses”.
167

Actually it is the controlled marriage of fiction and reality that results in


film epics, depictions of larger-than-life heroism and action-packed
drama dressed up to appeal audiences looking for high production
values. This cinema turns history into spectacle, just like the cinema of
Nazi Germany which turns spectacle into history.130 (GYŐRI, 2010, p.
170).

Figura 65 Desfile dos tributos em Jogos Vorazes

(Fonte: JOGOS, 2012)

Esse stimmung esteve presente em toda a comunicação visual construída


em torno das Olimpíadas de 1936, ambiência notavelmente transposta no vídeo
institucional131 que a Capital apresenta a todos os distritos, prenunciando o sorteio
dos tributos. Nos fragmentos visíveis, se observam jovens portando escudos, lanças
e espadas, em iluminação, sobreposições e posturas heroicas. Já em uma versão
levemente distinta mas completa132, disponibilizada online, percebe-se uma
linguagem mais televisiva que cinematográfica, em uma mescla das iconografias
presentes em campanhas publicitárias contemporâneas, imagens clássicas de
guerra e destruição, bem como de propaganda totalitária.

130
Tradução do autor: “Em verdade, é o casamento controlado entre ficção e realidade que resulta
em filmes épicos, representações memoráveis de heroísmo e intensa de drama, montada de modo a
atrair um público ávido por produções de grande orçamento. Este cinema transforma história em
espetáculo, assim como o cinema da Alemanha Nazista que transformava espetáculo em história.
131
Para fins deste trabalho, entende-se esta cena como os fragmentos apresentados entre os tempos
12min45s a 14min00s do filme.
132
Mas está disponível no sítio de transmissão Youtube, uma versão inteira deste fictício vídeo
institucional, com duração de 1min30s. Seu endereço é <https://youtu.be/RZ6y98meKeU>.
168

É assim que o nazismo vai reutilizar toda uma mitologia popular, e


quase medieval, para fazer o racismo de Estado funcionar numa
paisagem ideológico-mítica que se aproxima daquela das lutas
populares que puderam, em dado momento, sustentar e permitir a
formulação do tema da luta das raças. (FOUCAULT, 2010, p. 69).

Figura 66 Cartaz das Olimpíadas de 1936; frames de Olímpia; e frames do vídeo institucional da Capital.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio The Telegraph e capturas dos filmes: Olimpíadas e Mocidade
Olímpica, 1938; Jogos Vorazes, 2012)

Se hipoteticamente tivéssemos um mesmo observador presente na diegese,


ou seja, no universo particular de cada obra – seja em Triunfo, Olimpíadas ou Jogos
–, como um personagem a vivenciar ambos os eventos, este possivelmente
perceberia que a equipe de filmagem de Riefenstahl-Speer está tão imbricada no
ambiente que passa despercebida, enquanto que o desfile dos Tributos é construído
de um modo a transparecer que a filmagem e retransmissão são ubíquos, ao ponto
de serem transparentes.

A estética totalitária é essencialmente pública, e nas formas


destinadas ao mercado privado repete os elementos do discurso
público: é um comportamento que o indivíduo adota antes de tudo em
relação ao outro que, como ele próprio, é um espectador, mas
também o controlador. Antes de tudo é gesticulação, é grito que são
produzidos em função dos outros. Quanto maior o público, maior a
169

legitimação do evento. Já antes da invasiva presença da televisão,


estas linguagens entram na prática quotidiana, assim como a gráfica
publicitária, sugerindo mudanças na recepção das formas artísticas
tradicionais, tão profundas quanto aquelas impostas às linguagens
pelas vanguardas. (BORTULUCCE, 2008, p. 15).

Nesse ponto, o grande líder dos Jogos Vorazes também está presente, mas
contrariamente não gesticula nem grita, sendo contido, calmo e frio, como se reflexo
do sobrenome do próprio personagem, o Presidente Snow – literalmente traduzido
como neve, precipitação que se apresenta somente em condições muito frias, que
aparece sem se anunciar, podendo proporcionar tanto um belo espetáculo quanto
uma terrível tormenta. As reações acaloradas e eufóricas são proporcionadas pelo
público, em reação não somente ao evento, mas a todo o aparato que envolve esse
espetáculo midiático, apresentado nos moldes de um reality show.
Se em cenas de Olimpíadas e Mocidade Olímpica são mostradas figuras
que se esforçam em busca do êxtase da vitória, ovacionadas pelos presentes nas
arquibancadas, “all under the still gaze of the benign Super-Spectator, Hitler, whose
presence in the stadium consecrates this effort”133 (SONTAG, 1981, p. 87), o mesmo
ocorre em Jogos Vorazes, em que os tributos cruzam a avenida, aclamados pelo
público, sob o atento olhar do Presidente Snow, cortês cavalheiro que gentilmente
deseja a todos, o melhor dos votos. Sendo assim, a seu modo a obra também
referencia a autoridade máxima nazista com a de Panem, tanto no livro quanto no
filme.
Para Foucault (2010), ao vincular e deslumbrar, ao subjugar valorizando
obrigações e intensificando o brilho da sua força, temos presente os três eixos do
discurso histórico – o genealógico, a função de memorização e o de circulação de
exemplos – narrando a grandeza dos acontecimentos ou dos homens do passado,
se valendo de rituais e lendas, para se referenciar e influenciar um valor ao
presente, buscando eternizá-lo.

133
Tradução do autor: “tudo sob o impacível e atento olhar do benevolente Super-Espectator, Hitler,
cuja presença no estádio consagra este esforço”.
170

4.4.1. Paralelos, referenciações e especulações

O que está sendo proposto neste ponto da pesquisa, a existência de


diversos paralelos entre a versão cinematográfica de Jogos Vorazes e a produção
documental de Leni Riefenstahl com a arquitetura de Albert Speer, por mais lógicas
e viáveis que possam parecer, são apenas recortes de diversos fragmentos de
informação, não sendo claramente afirmadas por nenhuma das partes envolvidas,
portanto, não se encontrando completamente aparte da especulação 134.
É preciso reiterar que, sendo Triunfo da Vontade, Olimpíadas e Mocidade
Olímpica possivelmente os maiores documentários já feitos (SONTAG, 1981), devido
às suas inegáveis qualidades, muitas das suas técnicas foram adotadas como
padrão pela indústria do cinema, além de se tornarem referenciais estéticos. Isto
permitiu que sucessivamente fossem absorvidos pelo imaginário coletivo e
reinseridos nas mais diversas produções – por vezes de modo intuitivo, outras de
modo sutil, e em outras de modo bem pronunciado.

From the part of film history this approach has benefited from the
ideology of so called contemporary “revisionist” […] also envisages the
history of cinema not as a linear progress in time, but as a set of
paradigms that can be re-visited and refashioned (like the “cinema of
attractions” that characterized early cinema and that proved to be a
paradigm the elements of which persist not only in the avant-garde or
several Hollywood genres, but can be “reloaded” into a number of
other film types along the history of film or even newer media, like
video blogging)135. (PETHŐ, 2010, p. 55).

Com isto, se afirma que é uma característica presente no cerne do cinema,


que produções sejam revisitadas através do tempo, e consequentemente

134
É importante que este termo seja entendido de modo ambíguo, na totalidade de suas acepções:
não somente com o entendimento popular de "conjectura sem base de fatos concretos", mas tanto
pelo latim specùlo(átum,áre), entendido como "observar, estudar com atenção, teorizar",
quanto do latim speculáris, entendido como "proveniente do espelho, aquilo que reflete".
135
Tradução do autor: “Da parte da história do cinema, esta abordagem tem se beneficiado da
ideologia contemporaneamente denominada "revisionista" [...] que também prevê a história do cinema
não como um progresso linear no tempo, mas como um conjunto de paradigmas que pode ser
revisitada e remodelada (como no "cinema de atrações" que caracterizara o primórdio do cinema, e
que provou ser um paradigma cujos elementos persistem não só na vanguarda ou vários gêneros de
Hollywood, mas pode ser "recarregado" em uma série de outros tipos de filme ao longo da história do
cinema ou até mesmo em mídias mais recentes, como blogues de vídeo)”.
171

remodeladas de algum modo – pois obras cinematográficas sempre se dão de modo


coletivo, tanto no seu desenvolvimento quanto na sua fruição.

Toda imagem produzida se insere necessariamente na correnteza


das imagens de determinada sociedade, porque toda imagem é
resultado de codificação simbólica fundada sobre código
estabelecido. Por certo: determinada imagem pode propor símbolos
novos, mas estes serão decifráveis apenas contra o fundo
“redundante” do código estabelecido. Imagem desligada da tradição
seria indecifrável, seria “ruído". Mas, ao inserir-se na correnteza da
tradição, toda imagem propele por sua vez a tradição rumo a novas
imagens. Isto é: toda imagem contribui para que a mundivisão da
sociedade se altere. (FLUSSER, 2008, p. 23).

Figura 67 Star Wars Episode IV; O Rei Leão; Gladiador, Star Wars Episode VII

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios: Star Wars Wikia; Lion King Wikia; Youtube; Slashfilm)

Notoriamente oposto ao posicionamento defendido por Susan Sontag, a qual


“nobody making films today alludes to Riefenstahl” 136 (SONTAG, 1981, p. 95),
Triunfo e Olimpíadas influenciam até hoje as mais variadas criações, sendo referidas
tanto na transposição cinematográfica de Jogos Vorazes (aqui defendido), bem
como em outras tantas obras, tendo como exemplos notório os Episódios IV (1977)
e VII (2015) da saga Star Wars, O Rei Leão (1994) e Gladiador (2000).
Sabendo-se disto, que Jogos Vorazes reinsere uma iconografia presente nas
obras da dupla Riefenstahl-Speer – seja de forma planejada ou intuitiva –, e
tomando como recorte Triunfo da Vontade, é possível ampliar essa

136
Tradução do autor: “ninguém fazendo filmes hoje em dia referencia Riefenstahl”.
172

referencialização, pressupondo paralelos com mais elementos, caso se assuma um


viés em tom mais especulativo.
Deste modo, é perceptível que ambas as obras não possuam voz
narrativa137, além de possuírem um início muito similar: ambas começam com uma
música externa a diegese, passando por rápida informação da produção, para logo
em seguida serem apresentados textos explicativos, nas cores brancas sobrepostas
a um fundo negro. Se em Triunfo “does open with a written text heralding the rally as
the redemptive culmination of German history” 138 (SONTAG, 1981, p. 83), em Jogos
inicia também com a redenção da história de Panem, sendo para ambos, resultante
de um pós-guerra. Mas na obra de Riefenstahl-Speer a história se torna encenação,
enquanto na obra de Ross-Collins a história (fictícia) se torna reality show.
Ainda, se Triunfo da Vontade “is divided into parts or movements, each
linked to the others by narrative and by theme and motif; and each section of the film
has a different style”139 (BARSAM, 1975, p. 30), o mesmo ocorre em Jogos Vorazes,
sendo a diferença de estilo perceptiva não só referente a cada uma das suas seções
– no Distrito 12 tem uma estética e modo de narrativa, na Capital se apresenta outra,
e durante os Jogos propriamente, uma mescla das duas anteriores – bem como
relativo ao personagem que está sendo enfatizado em cena.
Por essa busca referencial, é possível notar várias escolhas fílmicas
semelhantes: ao se valer de “overpopulated wide shots of massed figures alternating
with close-ups that isolate a single passion, a single perfect submission” 140
(SONTAG, 1981, p. 87) poderia facilmente estar se referindo sobre a cena do Desfile
dos Tributos, mas em verdade, a citação trata do Triunfo da Vontade; se em Jogos
Vorazes há uma busca por movimento e urgência, em Triunfo da Vontade esta
busca também guiou sua filmagem, pois Riefenstahl abominava a imobilidade dos
cinejornais da época, “providing kinetic, cinematic energy to essentially static

137
Não deve ser entendida como voz narrativa o que ocorre na versão dublada de Jogos Vorazes: a
existência de uma pseudonarração que traduz todos os textos originários do inglês.
138
Tradução do autor: “ele abre com um texto escrito, anunciando o congresso como o apogeu
redentor da história Alemã”.
139
Tradução do autor: “é dividido em partes ou movimentos, cada um ligado ao outro pela narrativa e
por tema e assunto principal; e cada secção da película apresente um estilo diferente”.
140
Tradução do autor: “amplas tomadas do superpovoamento de figuras aglomeradas, alternadas por
close-ups que isolam uma paixão individual, uma perfeita sujeição individual”.
173

events”141 (BARSAM, 1975, p. 24); mas também é perceptiva a questão da


alternância entre movimento e planos fechados, pois “through visual movement and
variety, we are involved in the speeches; moreover, we are compelled by the close-
ups to look at the speaker”142 (BARSAM, 1975, p. 29).
Também é interessante observar que, em determinado momento do discurso
de Hitler, é citado que uma sombra negra caiu sobre o partido, referindo-se aos
acontecimentos de um passado-recente, que trouxeram instabilidade ao nazismo e
culminaram no expurgo denominado Noite das facas Longas. Já em Jogos Vorazes,
é citado os Dias Escuros, alusão ao levante dos distritos contra a Capital, ocorrido
no passado e que desestabilizou a nação, levando a guerra e a criação dos jogos.
Portanto, presença de semelhante simbolismo para situações próximas.
Mas acima de tudo, se Triunfo da Vontade “succeeds in fusing politics with
art”143 (BARSAM, 1975, p. 68), esse também é o maior intuito de Jogos Vorazes,
almejado desde o princípio enquanto livro.

4.4.2. O Zeitgeist

Mesmo tendo decorrido em torno de 80 anos do lançamento de ambas as


obras, Triunfo da Vontade e Olimpíadas e Mocidade Olímpica, as mesmas ainda se
colocam como forte referencial para produções contemporâneas. Portanto, acredita-
se ser pertinente fazer um paralelo com relação a Jogos Vorazes, mas neste ponto,
relativo a materialidade de ambas.

Concomitantemente, todavia, nós devemos levar em conta que


qualquer pratica cultural ou artística vai depender de, e ser
determinada por, sua midialidade e materialidade, de maneira que a
construtividade das concepções de mídia e especialmente o caráter
de construto das delimitações midiáticas configuram, em parte,
relativos. (RAJEWSKY, 2012, p. 70).

Ao se estudar as materialidades da comunicação, entendida como a


exigência de haver um suporte material para que a comunicação se efetive, busca-

141
Tradução do autor: “fornecendo movimento, energia cinematográfica para eventos essencialmente
estáticos”.
142
Tradução do autor: “Através do movimento visual e variedade, somos envoltos nos discursos; além
disso, somos forçados pelos close-ups [...]”.
143
Tradução do autor: “é bem-sucedido em fundir política com arte”.
174

se apreender como os aspectos materiais desses meios influenciam a produção de


sentido (FELINTO, 2001; PEREIRA, 2006). Portanto, é por buscar

saber como os diferentes meios — as diferentes “materialidades” —


de comunicação afetariam o sentido que transportavam. Já não
acreditávamos que um complexo de sentido pudesse estar separado
da sua medialidade, isto é, da diferença de aspecto entre uma página
impressa, a tela de um computador ou uma mensagem eletrônica.
(GUMBRECHT, 2010, p. 32).

Com relação a intermidialidade presente na materialidade do filme, apesar


da disponibilidade em filmar totalmente com equipamentos plenamente digitais, a
produção de Jogos Vorazes optou por utilizar inteiramente a película. Isso reforçaria
uma ligação ontológica entre as imagens captadas com sua “pre-cinematic reality
(what has been in front of the camera during the shooting) and only the intention
towards the filmed reality causes a differentiation of document or fiction” 144 (PAECH,
2011, p. 17). Mas essa similaridade com as produções de Riefenstahl não se
sustenta por muito tempo, pois apesar de filmado em película, fora convertido em
digital para pós-produção, o que permite uma manipulação sem igual em
comparação ao que estava disponível no tempo de Triunfo e Olimpíadas. Se, com a
utilização da película, ainda é mantida uma relação mimética com sua base material
original, esta plenamente se modifica durante sua transposição para o digital, sendo
agora intermediada por algoritmos (PAECH, 2011). Entretanto, o que se perde da
relação original, se ganha em possiblidade de manipulação, distribuição e
reprodução, abrindo possibilidades sem precedentes à época de Triunfo da Vontade.
Mas enquanto em Triunfo tudo realmente existiu – construído, ocupado,
filmado e editado –, diversas cenas de Jogos Vorazes foram basicamente virtuais –
ou tiveram diversas intervenções desenvolvidas com efeitos visuais. Devido a
proporção e complexidade de algumas cenas, tornava-se impossível filmar
plenamente em locações ou com atores reais, mas inteiramente viáveis de serem
ampliadas e compostas digitalmente, ação que podia ser realizada após o término
das filmagens.

144
Tradução do autor: " realidade pré-cinematográfica (o que havia em frente da câmera durante as
filmagens) e apenas a intenção perante a realidade filmada causa a diferenciação entre documentário
ou ficção".
175

Tomando-se como exemplo, toda a sequência do desfile dos tributos: para a


massa de pessoas que lá estão assistindo, além de atores filmados em fundo azul
para algumas fileiras e cenas de perto, foram utilizados softwares que simulam
multidão. Para os tributos, os atores estavam em bigas construídas e puxadas por
cavalos reais, mas filmados uma biga por vez em um percurso com fundo verde.
Alguns elementos do cenário também foram construídos individualmente, e
compostos digitalmente, para proporcionar a ilusão do todo (EGAN, 2012; RSP,
2012).
Figura 68 Composição por efeitos visuais em Jogos Vorazes

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio Rising Sun Pictures)

Sendo o livro bastante sutil em suas descrições, presume-se existir uma


maior liberdade na adaptação cinematográfica pela equipe criativa. Mas é
interessante perceber que, nos poucos momentos em que o texto se estende – seja
insinuando possíveis trajes ou quaisquer outros elementos mais definidos para sua
transposição às telas – a adaptação não o segue, sendo uma constante no filme.
Um exemplo é com relação ao número de cavalos que puxam as bigas, seja no
momento da Colheita, ao descrever a representante da Capital para efetuar o sorteio
no Distrito 12, a personagem Effie Trinket “com seus assustadores dentes brancos,
cabelos cor-de-rosa e um primaveril vestido verde” (COLLINS, 2010, p. 24). São
diversos os motivos para isso, seja ajustamento financeiro ou técnico, mas relativo a
176

esta situação do vestido, o mais provável é a sua adequação para um melhor


contraste com o cenário, também de modo a reforçar que aquele personagem é
externo àquele lugar. Portanto, são características que se apresentam na
transposição entre cada mídia, no processo intermidiático.
Figura 69 Personagem Effie Trinket durante a Colheita

(Fonte: JOGOS, 2012)

Com relação ao número de profissionais envolvidos na equipe técnica de


ambas as obras, também é possível averiguar essa diferença. Apesar do número ser
impreciso com relação à equipe envolvida em Triunfo da Vontade – para Lenharo
(2006) foram 135 pessoas, em Barsam (1975) eram 172, e para o sítio IMDB (s/d)
seriam 120, sendo quase que na totalidade envolvida na captura de imagens:

including 16 cameramen and 16 camera assistants, under the


direction of Sepp Allgeier. The camera crew used 30 cameras145, and
they were backed up by a team of 29 newsreel cameramen who were
assigned to obtain supplementary footage. The cameramen were
dressed as SA men, so that they would not stand out in the crowd. 146
(BARSAM, 1975, p. 24).

Apesar de instruções em comum, basicamente cada cinegrafista foi seu


próprio diretor, tendo a liberdade de escolher o que e como filmar, consistindo

145
Diferentemente da imprecisão acerca do número de profissionais envolvidos, todas as fontes
pesquisadas são unânimes com relação ao montante de câmeras usadas.
146
Tradução do autor: “incluindo 16 cinegrafistas e 16 assistentes de câmera, sob a direção de Sepp
Allgeier. A equipe de filmagem usou 30 câmeras, e eles eram suportados por uma equipe de 29
cinegrafistas de cinejornal, designados para filmagens complementares. Os cinegrafistas foram
vestidos como homens da SA, de modo a não se destacarem na multidão”.
177

essencialmente em “filmar o que puder, montar o que der”, pois qualquer escopo do
filme realmente só aconteceu na edição, tarefa que Riefenstahl tomou
exclusivamente para si, por aproximadamente cinco meses. Tanto esse método
quanto o montante de cinegrafistas – que permitiu filmagens em quase todos os
ângulos possíveis –, é basicamente impraticável nos dias atuais, sendo reflexo de
um momento histórico que permitiu carta branca para sua produção, reforçando sua
aura artística de execução artesanal. Triunfo da Vontade foi financiado pela UFA
(Universum Film-Aktien Gesellschaft), da época não apenas a maior companhia
cinematográfica alemã, como uma das maiores do mundo, simpáticas ao nazismo,
mas não sobre seu controle (BARSAM, 1975).

Toda a magia e a comunhão mística entre o Führer e as massas e a


solidariedade entre soldados e trabalhadores são passadas neste
filme notável. Dupla grandeza de espetáculo, do evento em si e do
próprio filme, que refaz e amplia a dimensão daquele. (LENHARO,
2006, p. 59).

Figura 70 Por trás das câmeras: Riefenstahl em 1934 e Ross em 2011

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios: Kultur-online; IMDB)

Atualmente, por mais que o cinema seja uma arte, também é uma indústria,
onde tudo precisa ser muito bem planejado em relação a tempo e dinheiro, antes de
sua execução. Apesar de ambos pertencerem a gêneros muito diferentes – o que
torna injustificado uma comparação direta – o número médio de profissionais
envolvidos em uma produção hollywoodiana fica em torno de 588 (FOLLOWS,
2014), sendo que em Jogos Vorazes esses números saltou para mais de mil,
tendência em produções com muitos efeitos visuais, mesmo sendo financiado por
um estúdio de cinema menor, a Lionsgate.
178

O que se deve levar em consideração, é a configuração única utilizada para


documentar o congresso, que na comparação, em Jogos Vorazes (e muitas das
produções contemporâneas) possuem uma equipe de filmagem muito mais enxuta:
uma unidade principal, coordenada pelo diretor Gary Ross e uma segunda unidade,
com o diretor assistente Steven Soderbergh 147, cada uma contando com diretor de
fotografia e assistente, operador e dois assistentes de câmera “a”; operador e dois
assistentes de câmera “b” e operador e dois assistentes de câmera “c”, além de
unidade de imagens aéreas.
Foram utilizados três modelos de câmera 35mm, da conceituada marca
alemã Arri – Arriflex 235 (hand), Arricam LT (lite) e Arricam ST (studio), todas aliadas
a um conjunto variado de lentes Zeiss Ultra Prime, Angenieux Optimo e Canon. São
câmeras de película movida à motor, proporcionando precisas imagens coloridas no
formato cinemascope – 2.39:1 (ou 21:9), o padrão widescreen cinematográfico após
1953 –, bem como reconhecidas pela excelência na sincronia entre som multicanal e
a imagem capturada.
Já em Triunfo da Vontade, foi usado o formato fullscreen – 1.37:1 (ou 4:3), o
padrão dos filmes sonoros até 1953 – existindo a limitação de se obterem somente
imagens em preto e branco, e de som monofônico. Apesar de não se ter encontrado
indicações sobre os equipamentos utilizados, sabe-se que foram usadas câmeras de
películas movidas manualmente, que proporcionavam problemas de sincronização,
seja do som, da música ou até mesmo das imagens de tantas câmeras, devido a
variações da velocidade de captura. Isto acarretou uma inusitada situação: a própria
Riefenstahl conduziu a orquestra para sincronizar o tempo da música com algumas
cenas (BARSAM, 1975). Em várias câmeras foram usadas lentes teleobjetivas, que
modificam a profundidade de campo, causando um certo achatamento desta, ao
mesmo tempo que ampliam os objetos que estão mais ao fundo, com resultados
excepcionais em conjunto com a arquitetura monumental de Speer.

147
Steven Soderbergh é um renomado diretor, vencedor de inúmeros prêmios, inclusive Oscar.
Amigo de longa data de Gary Ross, aceitando ser seu diretor assistente, seu único trabalho como
diretor de uma segunda unidade.
179

Figura 71 Distância focal: super grande angular; normal; teleobjetiva média; super teleobjetiva.

(Fonte: Sítio Expert Photography, s/d)

Levando em consideração a época de cada produção, em 1934 a sala de


exibição de um filme merecia a denominação de teatro, pois juntamente com peças
teatrais, o cinema era o único meio de ver produções audiovisuais, sendo um
ambiente prestigiado socialmente. Mas além, não se ia ao cinema apenas em busca
de entretenimento, pois com os cinejornais se obtinha informação de modo único até
então. Em suas possibilidades, o cinema reinava sozinho. Para um regime político
como o nazismo, seu uso era essencial, tanto que durante sua duração, noventa e
seis longas-metragens foram providenciados pelo Ministério de Propaganda
(LENHARO, 2006), tanto que o impacto político e ideológico proporcionado pela sua
eficiente propaganda, como Triunfo da Vontade proporcionou, é de difícil reprise por
qualquer produção atual148.

A própria concepção de propaganda de Hitler se confundia com


militarismo. Para ele, a propaganda devia funcionar como a artilharia
antes da infantaria numa guerra de trincheiras. A propaganda teria de
quebrar a principal linha de defesa do inimigo antes que o exército
avançasse. (LENHARO, 2006, p. 55).

148
Apesar de objetivos diferentes, como correlato próximo em proporcionar tamanha comoção, seja a
transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos (1938), de Orson Welles.
180

Atualmente o cinema nem reina, nem está sozinho. Cada vez menos sua
experiência de teatro, dando lugar ao ambiente de consumo dos shoppings centers
e sua experiência multiplex (multiple movie theater complex – onde são dispostas
diversas salas menores de cinema), o que reina é o entretenimento. Para fazer
frente à internet, videojogos e televisão antes inexistentes, as produções (e salas) de
cinema investem em projeções 3D, 4DX, Extreme Digital, IMAX, além de som
multicanal – não só estéreo, mas surroundsound ou ambisound. Mas se seu impacto
não pode ser comparado com o que já foi no passado, ainda assim é capaz de
mobilizar multidões e incitar paixões.
E para finalizar, durante os doze anos do regime nazista, foram produzidos
1.350 longa metragens dos mais variados estilos (LENHARO, 2006), enquanto que
somente em 2012 foram produzidos por Hollywood 677 longas-metragens (MPAA,
2013). Em custo de produção, Triunfo da Vontade foi considerado um filme muito
barato, custando 280 mil marcos alemães, aproximadamente 110 mil dólares
americanos em 1934 (BARSAM, 1975), o que atualizado para valores atuais, seria
em torno de US$ 1.5 milhões. Semelhança compartilhada com Jogos Vorazes, que
foi elaborado com um orçamento limitado, inicialmente esperado na casa dos US$
60 milhões, mas conforme o planejamento foi meticulosamente elaborado, este valor
seria negligente para uma produção com meses de filmagens em locações, além de
1200 tomadas de efeitos visuais. Com readequação no roteiro coordenada pelo
diretor, em conformidade com as necessidades de uma produção enxuta, ficou em
pouco mais de US$ 90 milhões, mas que após subsídios fechou em US$ 78 milhões
– considerado um valor baixo para uma produção que se propõe apresentar uma
história épica (THE HOLLYWOOD REPORTER, 2012). Além desses valores, dados
não oficiais estimam que a campanha de marketing para a divulgação do filme, teria
consumido um montante de aproximadamente US$ 45 milhões.
Ao interpor essas obras, percebe-se o quanto ambas estão atreladas ao
zeitgeist, ou espírito do tempo, compreendido como o entendimento intelectual e
cultural de uma determinada época. A busca por uma legitimação embasada em um
referencial histórico passado, bem como a união entre povo e governo, está
intimamente relacionada tanto com o real nazismo quanto a ficcional Panem. É a
somatória dessas referencialidades, união entre ficção e realidade, que
proporcionam verossimilhança e promovem uma bem-sucedida adaptação.
181

4.4.3. A narrativa da caixa preta

O que fora tratado nesta seção, manteve ênfase nos elementos que
corroboram o posicionamento desta pesquisa, acerca de uma ambiência nazista
presente em Jogos Vorazes, em sua maioria, por meio dos elementos cenográficos.
Apesar de estar se referindo ao uso cênico do teatro, as palavras de Howard
também podem ser utilizadas para descrever a importância da cenografia no
cinema, ao afirmar que o objetivo desta seria de:

criar imagens visuais que cativem o espectador teatral. Um


frequentador de uma galeria de arte tem a liberdade de se mover
lenta ou rapidamente de pintura a pintura, dependendo do seu
interesse pessoal. As exposições são estáticas e não mudam. No
teatro, o espectador é estático, e o palco está mudando
constantemente suas imagens visuais mediante uma combinação de
cor e composição. (HOWARD, 2015, p. 125).

E diferentemente do teatro, no qual não há um intermediário entre o


desempenho artístico do ator e seu público, o cinema envolve toda uma miríade
técnico-midiática para transmitir esse desempenho. Esta ocorre perante câmeras, e
depende da direção e montagem para ser transmitida com o mínimo de ruído
possível, podendo ter como resultante, ampliação ou mitigação de sua atuação.

Não se espera do equipamento que transmite ao público a actuação


do actor de cinema, que respeite essa acção na sua totalidade. Sob a
direcção do operador de câmara, esse equipamento toma
constantemente posição perante essa mesma actuação. [...] Por essa
razão, o público assume a atitude de um apreciador que não é
perturbado pelo actor, uma vez que não tem qualquer contacto
pessoal com ele. A identificação do público com o actor só sucede na
medida em que aquele se identifica com o equipamento. (BENJAMIN,
2008, p. 10).

As palavras de Benjamin remetem à concepção trazida posteriormente por


Flusser (2008), o das imagens-técnicas proporcionadas pelas caixas-pretas – estas
aqui entendidas como os aparatos envolvidos na produção cinematográfica, seja no
processo de gravação, seja no de reprodução, que apresentam imagens prováveis
de acidentes programados, portanto, denominadas imagens-técnicas. E é por meio
destas que se constitui a narrativa cinematográfica.
182

Com isso, é importante perceber a forma encontrada para transpor a


narrativa em primeira pessoa do livro, para a terceira pessoa (ou câmera objetiva) do
filme, de modo a obter uma experiência dramática semelhante. Se o livro apresenta
uma visão íntima e claustrofóbica através da protagonista, a adaptação
cinematográfica tentou representar essa sensação por meio dos seguintes recursos
cinematográficos: apesar da existência de cortes rápidos em câmera subjetiva, a
grande totalidade das cenas é em objetiva, em maior parte concentradas ao redor de
Katniss. Ainda, se nessas cenas a ênfase é essencialmente nela, para externalizar
os seus dramas internos, há uma busca em manter seu ponto de vista, bem como
um frequente uso de plano fechado (close-up) e primeiríssimo plano (big close-up),
aliado a técnica de filmagem em handheld ou câmera-trêmula.

Ross had a clear sense of the way he wanted to shoot the film, and it
was different from any approach he’d taken in his previous movies.
“One of the things that’s most important here is to convey the
immediacy, the first-person point of view that the book has. The
cinematic style has to reflect that. So in this movie I got to shoot in a
way that I’d never shot before — more urgent, more personal. I
needed to give the audience that incredibly immediate sense that
they’re not watching this girl — they are this girl.149 (EGAN, 2012, p.
136).

Já nas cenas em que a ênfase não é exatamente na protagonista, ou a


ênfase é na Capital e seus personagens, o método de filmagem é bem mais
tradicional, inclusive com o uso de steadicam ou estabilizadora de imagem.
Por fim, é na composição da sequência de cenas pela montagem, que todos
os elementos vão ser editados em um corpo fílmico coeso, constituindo o filme
acabado. A edição de Jogos Vorazes reforça o que fora buscado durante todo o
processo de filmagem, apresentando cortes rápidos nas partes em que há uma
busca por transmitir essa urgência, enquanto que na presença de cenas mais
tradicionais, há até mesmo tomadas contemplativas.

149
Tradução do autor: “Ross tinha uma noção clara da forma que queria filmar, e era diferente de
qualquer abordagem que já tivesse tomado em seus filmes anteriores. ‘Uma das coisas mais
importantes aqui é transmitir a urgência, o ponto de vista em primeira-pessoa que o livro tem. O estilo
cinematográfico tem que refletir isso. Portanto, neste filme quis filmar de uma forma que nunca tinha
filmado antes – mais urgente, mais individual. Eu precisava dar a audiência aquele extremo senso de
urgência de que não estão assistindo essa menina – eles são essa menina’”.
183

4.5. A materialidade cinematográfica do Distrito 12

Mas não é somente com a Capital que se apresentam ressignificações que


referenciam ao nazismo, encontrando-as também nos Distritos. Devido tanto ao livro
quanto a cinematografia se focarem no Distrito 12 (com rápido vislumbre do 11 pelo
filme), será neste que esta pesquisa ater-se-á.
No livro é citado que esse distrito se situa “na região conhecida como
Montes Apalaches. Havia centenas de anos já se retirava carvão daqui. Foi por isso
que nossos mineiros precisam escavar tão fundo” (COLLINS, 2010, p. 49). E
realmente, os últimos 150 anos têm sido de ininterrupta exploração do carvão,
contido nessa região montanhosa que abrange treze estados dos EUA, país onde
mais da metade da geração de eletricidade tem origem carvoeira – mas essa grande
produção não impede que a região seja uma das mais pobres do país, onde até 60%
das famílias vivem abaixo da linha da pobreza (O'HARE, 2013). Não à toa, o próprio
Distrito 12 se apresenta como o mais miserável de toda a Panem.
Figura 72 Região dos Apalaches: Distrito Mill, Pittsburgh (1940); moradoras de Pine Mountain, Kentuch (1934).

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio Appalachian Voices.org)

Inclusive os nativos dos Apalaches foram estereotipados como culturalmente


atrasados, rudes e violentos. Coincidentemente, a maioria desses nativos são
melungeons, denominação dada a um grupo multirracial formado pelo mestiçar entre
184

“freed slaves (some biracial), Latino settlers (from Spain, Portugal, or ports in the
Caribbean), Native Americans, and Anglo/white settlers” 150 (ARROW, 2012, p. 28),
contendo, em geral, cabelos e olhos escuros e pele bronzeada – características
compartilhadas pelos moradores do Distrito 12 no livro, mas com ressalvas no filme.
Nessa condição de uma ficção que se apropria da realidade, o designer de
produção Phil Messina afirma que buscaram representar uma iconografia própria do
minerador, especialmente dos próprios Apalaches, “but then we added little bits and
pieces, things that would have survived through the decades. We were careful not to
make it feel like they were living in the Depression era — there was an allusion to
that, but we added more modern elements, too”151 (EGAN, 2012, p. 46). Ao se
verificar as artes conceituais do Distrito 12, é perceptível esse referencial, tanto pela
arquitetura, silos e maquinário, quanto pelo tom cromático.

Figura 73 Artes Conceituais de Jogos Vorazes – Distrito 12. Por Joanna Bush.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio de Joanna Bush)

Ao citar apenas o período da grande depressão (de 1929 até meados da


Segunda Guerra Mundial), apresenta-se mais uma possível supressão ao nazismo
como referencial. Não se pode ignorar que essa época é contemporânea à
ascensão do partido nazista ao governo alemão, compartilhando semelhante
zeitgeist. Em se tratando de referencial, o mais importante se encontra no figurino:

A linguagem das roupas e dos materiais revela o país, a classe social,


a idade e o gosto. A capacidade de isolar essas características define
a cena da peça e oferece ao ator indícios para construir e sustentar
uma sugestão que, ao longo do progresso da peça, torna-se um fato.

150
Tradução do autor: “escravos libertos (alguns bi-raciais), colonos latinos (proveniente da Espanha,
Portugal ou Caribe), nativos americanos e colonos anglo-caucasianos”.
151
Tradução do autor: “mas então adicionamos pequenos fragmentos, coisas que teriam sobrevivido
por décadas. Fomos cuidadosos em não fazer parecer que estavam vivendo na era da grande
depressão – existe uma alusão a ela, mas adicionamos mais elementos modernos, também”.
185

Ela oferece ao público as ideias do ator, do diretor e das palavras do


texto nos termos mais concretos. A cor pode assumir significados e
implicações distintas de acordo com o caráter da peça e a capacidade
do ator de utilizar o figurino criativamente. Um exemplo é considerar o
quão diferente a cor preta pode ser quando exposta a contextos
distintos. (HOWARD, 2015, p. 198).

Apesar de voltado para o teatro, é um posicionamento igualmente válido


para o cinema e completamente pertinente ao filme de Jogos Vorazes. Judianna
Makovsky, figurinista da produção, comenta que “the districts were going to be a
very limited palette. Since District Twelve is for mining, we decided to go with a lot of
gray, not like a sepia-toned film, though - a sort of blue-gray”152 (EGAN, 2012, p. 90),
e somando-se a isso, a opção por cabelos muito simples.
Figura 74 Os candidatos a tributos do Distrito 12.

(Fonte: JOGOS, 2012)

Em todas as cenas do Distrito 12 se vislumbram essas referências, mas é


durante a cena da colheita – onde jovens se apresentam para o sorteio dos Jogos,
acompanhados de familiares –, para além de toda carga dramática e atuação dos
atores e figurantes envolvidos, que se encontram mais remediações do nazismo.
Além da questão eugênica (conforme visto no capítulo 2), onde se apresenta
uma identificação genética dos candidatos a Tributos – situação inexistente no livro,
mas presente no filme –, o posicionamento desses jovens, em fila, tendo moças de
um lado e rapazes de outro, com olhares angustiados, e especialmente devido a

152
Tradução do autor: “os distritos iriam ter uma paleta muito limitada. Já que o Distrito 12 é para
mineração, decidimos ir com muito cinza, mas não como um filme em tons sépia – e sim em um tipo
de cinza-azulado”.
186

caracterização de seu vestuário, apresentam um stimmung de uma triagem prévia


ao transporte de judeus aos campos de concentração e/ou extermínio – em sua
maioria ocorrida por meio de trens. E como os Tributos são transportados de seus
distritos? Igualmente, por trens.
Figura 75 Auschwitz - recebimento e triagem de judeus

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio The World Holocaust Remembrance Center)

Conforme visto na figura 72, não seria incomum as moradoras dos


Apalaches usarem trajes antiquados para os padrões da época de 1934, enquanto
que os apresentados na produção cinematográfica se mantinham contemporâneos a
esse padrão – e consequentemente, comum ao usado por europeus, dentre eles, os
judeus.
Figura 76 Vestuário dos Tributos femininos

(Fonte: JOGOS, 2012)

O figurino do filme se apresenta como perfeito exemplo do como a moda


também é comunicação de poder, uma mídia detentora de valor de troca simbólico,
187

ao se realizar no plano do uso de signos, e passível de discriminante de classe


(DEBORD, 1997).

Sendo uma das mais evidentes marcas de status social e de gênero -


útil, portanto, para manter ou subverter fronteiras simbólicas -, o
vestuário constitui uma indicação de como as pessoas, em diferentes
épocas, veem sua posição nas estruturas sociais e negociam as
fronteiras de status. (CRANE, 2006, p. 21).

Portanto, é facilmente observável nessa cena dos Jogos Vorazes, o quanto


essa massa servil, que vive em péssimas condições de vida, se apresenta
basicamente desprovida de valor de troca simbólico – representativo fiel de sua
miséria. Já por outro lado, a elite da Capital alcançou um grau de estetização do
cotidiano, no qual esse valor de troca é puro excesso, tendo sua realidade
verdadeiramente transformada em imagem – representativo compatível com sua
plena opulência.
Figura 77 Figurino da Capital

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio The Hunger Games Wikia)

Ao se refletir sobre a relação dos valores hegemônicos, a representatividade


da moda do séc. XIX era masculina, enquanto que no séc. XX fora mista, com
relação ao séc. XXI e além não há uma certeza, mas se escolheu por representar a
moda futura da Capital como uma continuação exacerbada desse viés, que “realça
as escolhas de vestuário do dândi tradicional, ao enfatizar aspectos da identidade
masculina inaceitáveis para valores hegemônicos masculinos tradicionais” (CRANE,
2006, p. 464).
188

Figura 78 Moda masculina da Capital - anúncios publicitários fictícios com personagens do filme

(Fonte: Sítio Ace Show Biz, 2012)

Portanto, o vestuário da elite da Capital parece ter saído direto das


passarelas para as ruas, uma moda que permeia o experimental, o exagero, o kitsch
e o ridículo (para os padrões atuais). Mas formas de moda mais pronunciáveis:

sempre tiveram um aspecto ridículo que contribui para a errônea


suposição de que nem a moda nem as roupas têm importância social.
Por conseguinte, o significado do vestuário, quer como instrumento
de realce de si mesmo, quer como forma de controle social por parte
de organizações públicas e privadas, tende a ser ignorado. (CRANE,
2006, p. 135).

O próprio kitsch – em sua terminologia alemã, possivelmente oriunda do


verbo verkitschen, informalmente um produto de baixo valor ou de liquidação – que
se caracteriza pelo exagero, o melodrama, o sensacionalismo, se apresenta como
uma apropriação burguesa da arte, atrelada às possibilidades técnicas de
reprodução em massa, ao mesmo tempo que se procura manter o status de uma
arte maior153, encarnando valores da tradição cultural (DETUE, 2012).
Se levado em consideração que o kitsch é contemporâneo do romantismo,
repercutido em grande parte desse movimento, é possível que “l’héritage romantique
de la ‘pseudo-littérature’ totalitaire s’explique de façon décisive par la médiation du

153
Arte maior é sinônimo de belas-artes ou artes-criativas, que a distingue das artes-decorativas,
essas gradativamente integradas ao design.
189

phénomène kitsch apparu dans le sillage du romantisme”154 (DETUE, 2012, p. 03),


ou ainda, conforme afirma Schröter, sendo o kitsch genuinamente intermidiático, por
sua grande abrangência possui “an ideological tranquilizing and controlling function –
in fact, ‘thought control’” 155 (SCHRÖTER, 2010, p. 118) – não à toa, Hitler foi o maior
apoiador do kitsch. O totalitarismo nazista seria resultante dessa mistura entre o
exagero e a padronização.

Hitler tinha um dom quase misterioso para a propaganda visual.


Quando ascendeu no cenário político alemão, a suástica foi adotada
como símbolo do partido nazista. Os uniformes, que consistiam em
camisas marrons com braçadeiras vermelhas portando uma suástica
negra num círculo branco, começaram a aparecer em toda a
Alemanha à medida que o partido nazista crescia em força e
contingente. (MEGGS; PURVIS, 2009, p. 358).

Portanto, se valeu tanto quanto fora possível dos mais diversos e talentosos
profissionais criativos de sua época – em se tratando do universo da moda, pode-se
citar Hugo Boss, renomado empresário do ramo e fornecedor oficial do governo
nazista.
Na mesma linha, sendo “vista como espaço de ostentação do poder
econômico das elites, a moda foi concebida como uma esfera de reconstrução das
fronteiras sociais” (CRANE, 2006, p. 10), e na obra sendo mais uma das inúmeras
fronteiras delimitadas – sua diferença com o que fora acometido aos judeus perante
ao nazismo, que foram desprovidos de todos os seus bens, colocados a viver em
guetos ou campos de concentração e/ou extermínio, se dá apenas por ser uma
remediação ficcional.

4.5.1. Pele olivada

Mas ao se olhar mais atentamente, não é apenas nos vestuários, mas


também na aparência dos atores e figurantes, que não condiz nem com a
miscigenação proposta originalmente na obra quanto com a encontrada na própria

154
Tradução do autor: “O legado romantico da “pseudo-literatura” totalitária se explica de modo
decisivo através da mediação do fenômeno kitsch, ermerço desse romantismo”.
155
Tradução do autor: “Uma tranquilizante e controladora função ideológica – de fato, ‘controle do
pensar’”.
190

região. Em sua maioria, são crianças caucasianas, muitas de cabelos claros – em


verdade, não parece haver miscigenação ou ela é mínima.
Aqui se faz pertinente retornar à descrição pela autora, da aparência tanto
da protagonista quanto da maioria das famílias: cabelos lisos e pretos, olhos
cinzentos e pele morena. No amplo aspecto tonal de pele, essa descrição – no
original olive skin ou azeitonada – se refere a um tom moreno, caramelo ou
acobreado, presente tanto em caucasianos quanto em mulatos ou negros claros,
comumente entendida como típica do entorno do mar mediterrâneo:

Consider the history of discrimination against the Irish, Italians, and


Jews. For example [who are now recognized as “white” in 21st-
century America] Italians, Jews, and Slavs were considered non-white
in popular political discourse of the late 19th and early 20th century
[due to their olive skin], and this discourse grew very influential in the
anti-immigration movement, leading eventually, in the 1920s, to
severe restrictions against entry of supposedly “non-white” groups to
this country. I think we call these groups an ethnicity and not a race
now, because those categories have actually changed.156 (FREUND
apud ARROW, 2012, p. 31).

Mas contrariando esse fato, as audições para os papeis de maior relevância


à trama provocaram polêmica, ao se limitarem a requisitar somente atores
caucasianos. Jeniffer Lawrence, atriz escolhida para interpretar a protagonista, é
caucasiana e naturalmente loira. Para o mercado cinematográfico não há problema
nisso, sendo comum em suas produções a manipulação das características físicas
dos atores. Nas palavras de Nina Jacobson, produtora do filme:

But I think a book adaptation doesn’t have to be just like the book, it
has to feel like the book. That’s what you want. You want to get the
feeling from the movie that you got from the book, and you want the
characters to evoke the characters that you fell in love with. And so it
was really a matter of looking for the essence of each character in
each actor, knowing we can manipulate hair color, we can manipulate

156
Tradução do autor: “Considere a história da discriminação contra irlandeses, italianos e judeus.
Por exemplo [que agora são reconhecidos como ”brancos” nos EUA do séc. XXI] italianos, judeus e
eslavos que eram considerados não-brancos no popular discurso político do fim do séc. XIX e início
do séc. XX [devido a sua pele azeitonada], discurso esse que cresceu muito influente ao movimento
anti-imigração, levando eventualmente, nos anos de 1920, à severas restrições contra a entrada de
grupos supostamente “não-brancos” a este país. Penso que chamamos esses grupos de etnicidade e
não de raça agora, porque essas categorias em verdade, mudaram”.
191

a lot of things, but we can’t really change somebody’s essence.157


(EGAN, 2012, p. 17).

Figura 79 Jeniffer Lawrence não caracterizada e caracterizada, exemplo de pessoa azeitonada

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios Film-Book; The Hunger Games Wikia; Zimbio)

A parte da inquestionável qualidade artística de todos os envolvidos, ainda


assim, em uma indústria como a de Hollywood, na qual o termo caucasiano se refere
invariavelmente à tez branca, limitar a audição a esse espectro tonal, especialmente
na representação de personagens multiétnicos, reflete a reduzida gama de
oportunidades que o mercado oferece a atores naturalmente com essas
compleições – se somando a leva de protestos e críticas a um racismo velado do
mercado cinematográfico norte-americano158.

157
Tradução do autor: “Mas penso que a adaptação de um livro não tem de ser como o livro, mas sim
transparecer como o livro. Isso é o que se quer. Você quer ter a mesma sensação com o filme que
obteve do livro, e você quer que os personagens evoquem as características que lhe apaixonaram. E
assim por diante, seria realmente é uma questão de procurar pela essência de cada personagem em
cada ator, sabendo que podemos manipular a cor do cabelo, podemos manipular um monte de
coisas, mas não podemos realmente mudar a essência de alguém”.
158
O sítio racebending.com se apresenta como uma pertinente fonte sobre a questão racial nos EUA.
Com relação as audições para o filme, fizeram um clipagem com diversos posicionamentos
publicados em grandes meios de comunicação, acessíveis em:
<http://www.racebending.com/v4/featured/media-takes-note-of-the-hunger-games-casting/>.
192

É pertinente perceber que nas primeiras imagens de divulgação da


personagem na adaptação cinematográfica, a atriz era apresentada como detentora
de uma pele bronzeada, mais latina, condizente com uma caracterização eficiente,
além de reafirmar as palavras da produtora – aparência se altera, talento não. Mas
essa característica, seja trazida por maquiagem e iluminação, simplesmente
desapareceu na versão final da produção, não passando da tintura preta no cabelo,
não passando de uma caucasiana de cabelos castanhos, em nada lembrando uma
miscigenação.
Figura 80 primeiras imagens de divulgação Jeniffer Lawrence caracterizada como Katniss

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens da revista Entertainment Weekly, 2011)

O corpo entendido como mídia é ambiente dos mais diversos signos,


apresentando inúmeras condições ou possibilidades, desde simples coincidências,
que em uma leitura superficial passaria despercebido – como o caso do ator Stanley
Tucci, intérprete do apresentador Caesar Flickerman, que estava muito bronzeado
por recém voltar de férias, detalhe impensado pela equipe de produção, mas que
prontamente fora adotado para reforçar a caracterização do personagem (EGAN,
2012) –, até complexas projeções da ideologia dominante. Antes do media turn
alemão, Morin (1980) já dizia que o rosto tornara-se mídia, além de comentar que
“sendo o rosto espelho da alma, e a própria alma espelho do mundo” ao ser
transposto para as telas, este “vê muito mais que a alma na alma: vê o mundo na
193

raiz da alma” (MORIN, 1980, p. 132). Com isso, no corpo e em seu vestuário, ambas
mídias presentes na compleição da grande mídia cinema, se apresentam questões
referentes tanto ao racismo ficcional, passando pelo racismo histórico, quanto ao
racismo velado contemporâneo.

A obra de ficção é uma pilha radioactiva de projecções-identificações.


E o produto objectivado (em situações, acontecimentos, personagens,
actores), reificado (numa obra de arte) dos “devaneios” e da
“subjectividade” dos seus autores. Projecção de projecções,
cristalização de identificações [...]. (MORIN, 1980, p. 120).

Na transposição do livro para as telas, modifica-se a questão atribuída ao


preconceito e subjugação: o livro apresenta uma questão muito mais voltada a
discriminação racial, por descrever os habitantes dos distritos em sua maioria como
mestiços ou negros. Os poucos que seriam caucasianos (euro-americano), ou
possuíam melhores condições de vida ou seriam nativos dos distritos mais ricos, por
conseguinte, mais próximo a elite da Capital, que em si, não são descritos para além
de suas extravagâncias.

Figura 81 Os tributos da 74ª edição dos Jogos Vorazes

(Fonte: Sítio The Hunger Games Wikia, 2014)


194

Já no filme, os habitantes dos distritos se apresentam nas mais variadas


raças (mas igualmente sem mestiçagem), como latinos, asiáticos e indianos etc.,
bem como caucasianos. E na elite da Capital se encontra a mesma variedade, o que
permite aferir a presença de uma deturpada questão de classe – a não ser que se
leve em consideração a existência de uma nacionalidade histórica da Capital, em
comparativo com os dos distritos, que seriam exclusivamente de migrantes, o que
novamente reduziria a uma questão racial.
À parte disso, o que se pode realmente aferir é que as convicções de um
grupo impostas a outros, na forma de ideologias, fazem parte:

de um sistema de dominação que serve para aumentar a opressão ao


legitimar forças e instituições que reprimem e oprimem. Em si mesma,
constitui um sistema de abstrações e distinções em campos como
sexo, raça e classe, de tal modo que constrói divisões ideológicas
entre homens e mulheres, entre as “classes melhores” e “as classes
mais baixas”, entre brancos e negros, entre “nós” e “eles”, etc.
Constrói divisões entre comportamento “próprio” e “impróprio”,
enquanto erige em cada um desses domínios uma hierarquia que
justifique a dominação de um sexo, uma raça e uma classe sobre os
outros em virtude de sua alegada superioridade ou da ordem natural
das coisas. (KELLNER, 2001, p. 84).

4.5.2. Nominatas

E para concluir com os Tributos, é apropriado levantar uma questão acerca


dos nomes dos personagens. Enquanto os residentes da Capital referenciam o
Império Romano em seus nomes (conforme tratado no capítulo 3), os moradores
dos distritos possuem as mais diversas variações, sendo os dos Distritos 12 e 11
mais voltados à natureza. Frankel (2012, 2013) seguida por Henthorne (2012) tratam
de esmiuçar as nomenclaturas de cada personagem, tanto da Capital quando dos
distritos.
Mas aqui, destaca-se uma característica que não fora aferida por nenhum
desses trabalhos: do quanto os nomes Peeta (o Tributo masculino contraparte da
protagonista) e Haymitch (o treinador de ambos os Tributos do Distrito 12) se
apresentam homófonos a nomes alemães.
Em alemão (assim como em inglês), o nome Pedro é Peter, mas sua
pronúncia é exatamente “pita” ou como sua contraparte ficcional, Peeta. Já Haymitch
(de pronúncia semelhante a “ráimitch”) possui uma construção bem característica
195

alemã, e especialmente semelhante ao do líder da SS Heinrich Himmler (de


pronúncia assemelhada a “ráimritch”). No contexto do que está sendo proposto por
esta pesquisa, esse stimmung se torna pertinente.

4.6. Pão e circo

A questão do espetáculo em Jogos Vorazes se apresenta nas mais variadas


camadas e possibilidades, podendo ser divididos em dois grandes grupos
referenciais: o não-ficcional e o ficcional.
O não-ficcional abrangeria os elementos externos à diegese da obra,
apresentada como um produto midiático em si, especialmente em sua transposição
cinematográfica, bem como no referenciar de elementos e fatos reais. Já o ficcional
abrangeria os elementos presentes na diegese da obra, por meio das
consequências e desenrolares próprios desse universo fantasioso. No universo de
Panem, os Jogos Vorazes se apresentam como um evento televisionado, uma fusão
entre gladiatura, olimpíadas e reality show.
Com isso, em ambas instâncias não se poderia deixar de mencionar seu
viés como espetáculo. Pela amplitude da obra em análise, se mostra viável utilizar
tanto a clássica teoria de uma sociedade do espetáculo por Debord (2013) quanto o
seu revisitar mais recente de uma civilização do espetáculo por Llosa (2013); bem
como revisões mais contemporâneas, como a concepção do hiperespetáculo
(SILVA, 2007), ou ainda do espetáculo político-midiático (WEBER, 2011).
Assim, tanto na diegese da trama quanto externa a ela, o espetáculo se
apresenta simultaneamente como resultado e projeto do modo de produção
existente, que reflete o discurso do sistema dominante de poder em vigência, e se
apresentando de inúmeras formas:

tomado sob o aspecto restrito dos “meios de comunicação de massa”,


que são sua manifestação superficial mais esmagadora, dá a
impressão de invadir a sociedade como simples instrumentação, tal
instrumentação nada tem de neutra: ela convém ao automovimento
total da sociedade. Se as necessidades sociais da época na qual se
desenvolvem essas técnicas só podem encontrar satisfação com sua
mediação. Se a administração dessa sociedade e qualquer contato
entre os homens só se podem exercer por intermédio dessa força de
comunicação instantânea, é porque essa “comunicação” é
essencialmente unilateral. (DEBORD, 2013, p. 20-21).
196

Essa civilização do espetáculo é o resultante de um mundo dominado em


todas as instâncias pela economia, tendo como principal produção o entretenimento,
característica inerente ao humano e plenamente legítima, mas que alçado a primeira
instância de valores, não se apresenta sem consequências, como “banalização da
cultura, generalização da frivolidade e, no campo da informação, a proliferação do
jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo” (LLOSA, 2013, p. 30).
Só que o espetáculo, seja como sociedade ou como civilização, se baseia no
olhar do humano como espectador – indivíduo que abdica de seu protagonismo em
troca da contemplação de um outro idealizado, esse sendo capaz de realizações
extraordinárias merecedora de fama, lhe sendo tão diferentemente distinto que
jamais poderia ser capaz de igualá-lo (SILVA, 2007). Mas o mesmo não pode ser
afirmado na era do hiperespetáculo – entendida não como a eliminação do
espetáculo, mas justamente sua aceleração:

No hiperespetáculo, a contemplação continua. Mas é uma


contemplação de si mesmo em um outro, em princípio, plenamente
alcançável, semelhante ou igual ao contemplador. Na era das
celebridades, época da “democracia radical”, em que todos devem ter
direito ao sucesso, os famosos simulam uma superioridade fictícia.
São tantos mais adorados quanto menos se diferenciam realmente
dos fãs. A identificação deve ser total e reversível. Cada um deve
poder se imaginar no lugar da estrela ou do objeto da sua admiração
e aspirar à condição de famoso. Não há mais alteridade verdadeira.
(SILVA, 2007, p. 31).

Dito isso, a força da obra Jogos Vorazes reside justamente em permear por
essas diversas instâncias conceituais, seja como ficção ou não; como produto
econômico ou resultante do poder dominante; seja entretenimento ou crítica à
frivolidade atual; ou ainda como objeto de admiração inalcançável de fãs
espectadores ou de aspiração incondicional de fãs observadores. E assim,

quando um acontecimento – programado ou inusitado – é


suficientemente poderoso para provocar impactos na vida dos
indivíduos e na sociedade, ele se impõe aos meios de comunicação
de massa e atrai as instituições políticas e essa convergência permite
identificar a existência de um espetáculo hibridizado entre a política e
a mídia (espetáculo político-midiático) [...]. (WEBER, 2011, p. 190).
197

Assim, dentre esses possíveis vieses passíveis de observação da obra,


todos encontram como denominador comum, seja pelo evento, seja pelo título, a
questão dos jogos: vão desde os jogos de poder, guerra e política, até o espetáculo
como entretenimento propriamente.
Como já visto, se apresenta imbricada na obra diversos simbolismos e
referenciais, mas ao se atentar que a nação fictícia onde a história se passa –
Panem – em latim significa pão, e a isso juntar a questão dos jogos e da fome, bem
como todos os outros elementos romanos, tem-se a presentificação da política
panem et circenses ludos, ou pão e jogos circenses, popularmente conhecida como
a política do pão e circo – torna-se algo simbólico.
É exatamente este o grande traço político desse governo ditatorial: para os
cidadãos da Capital, têm-se o circo; e para a grande maioria dos moradores dos
distritos, têm-se o pão. E assim como em Roma, ou você é um cidadão que veria o
espetáculo, ou um escravo obrigado a participar do espetáculo. Por assim dizer, esta
é uma perturbadora deturpação do jogar, pois em uma de suas definições, tem-se
que:

o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de


certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras
livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de
um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e
de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana”.
(HUIZINGA, 2010, p. 33).

Plenamente voluntário é a última definição que se poderia utilizar para


descrever o que acontece no enredo dessa obra. E qual era o maior espetáculo de
pão e circo, se não o confronto entre gladiadores?
O “circo” (do latim circus – literalmente círculo) era algum grande anfiteatro
da Roma antiga, contendo camarotes e arquibancadas, onde se realizavam
espetáculos públicos. Em seu centro se encontrava a “arena” (do latim arenae –
basicamente areia), solo por onde “gladiadores” (do latim gladiactor, literalmente o
usuário da espada curta gládio, por derivação, espadachim) “jogavam” (em latim,
ludus – jogo, divertimento ou recreação). O objetivo dessa competição lúdica era
oferecer ao público um exemplo da ética militar romana, no qual, tanto uma boa luta
quanto uma boa morte, poderiam inspirar admiração e aclamação popular.
198

Basicamente os mesmos elementos foram remediados na obra ficcional – e que,


guardadas as devidas proporções, se encontram presentes até hoje.
No decorrer de toda a história humana, sempre houvera a escravização de
povos vencidos frente aos seus vencedores, tendo como zeitgeist, o pensamento
dominante de seu tempo, o entendimento de que ninguém achava que os seres
humanos eram iguais por natureza. A este pensamento, não há nenhum problema
com dominação, escravidão, genocídios etc. Assim, a vida do gladiador (escravo)
não vale nada – apenas suas ações como entretenimento.
Essa forma de poder sofreu um revés durante o séc. XVIII, com o advento
do pensamento iluminista, dentre os quais se propõe que todos os humanos são
iguais por natureza. Com isso, há uma constante valoração à vida, resultando aos
eventos desportivos (do francês desport, entendido como “recreação, passatempo,
lazer”) contemporâneos, que além de primarem pela igualdade à parte de credo, cor
e nacionalidade, prezam por garantir a integridade humana. As Olimpíadas se
apresentam como o maior exemplo de espetáculo com esse ideal.
Mas mesmo em uma sociedade com esses princípios, se originam
deturpações:

Então, nessa tecnologia de poder que tem como objeto e como


objetivo a vida (e que me parece um dos traços fundamentais da
tecnologia do poder desde o século XIX), como vai se exercer o
direito de matar e a função do assassínio, se é verdade que o poder
de soberania recua cada vez mais e que, ao contrário, avança cada
vez mais o biopoder disciplinar ou regulamentador? Como um poder
como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de
aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas
possibilidades, de desviar seus acidentes, ou então de compensar
suas deficiências? Como, nessas condições, é possível, para um
poder político, matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar,
dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos mas
mesmo seus próprios cidadãos? Como esse poder que tem
essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como
exercer o poder da morte, como exercer a função da morte, num
sistema político centrado no biopoder? (FOUCAULT, 2010, p. 214).

A resposta está na invenção do racismo, que por meio da eugenia tentava


cientificamente explicar a superioridade de um frente a outro, muito bem resumida
na célebre frase “todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que
outros” (ORWELL, 2007, p. 106). Dentre os tantos atos praticados em nome desse
199

pensamento retrógrado, cita-se no séc. XIX as leis de segregação racial nos EUA, e
no séc. XX, o holocausto judeu pelos nazistas, o apartheid sul-africano, entre tantos
outros genocídios que ocorreram ou estão a acontecer pelo mundo.
Em meio ao turbilhão atual, onde convivem tanto o pensamento
contemporâneo condenatório acerca da desigualdade racial, quanto o pensamento
retrógrado que ainda o defende, ainda se encontra dominante entre os governos a
existência de direitos civis, com a prevalência do entendimento da igualdade entre
todos os humanos. Mas mesmo nesse entendimento, não é incomum a transposição
para os esportes contemporâneos do espetáculo romano, em especial gladiatórios,
com estrutura basicamente inalterada: acontecem em grandes anfiteatros, em sua
maioria redondos, contendo camarotes e arquibancadas, sendo geralmente
denominados estádios - mas muitas vezes nomeados de arenas; e neles, em geral,
se pratica um jogo; além das reminiscências no linguajar cotidiano, que mesmo no
futebol, não é incomum o uso dos termos “combate”, “mata-mata”, “eliminação”, até
mesmo chamando os desportistas de “guerreiros” e “gladiadores”.
Evidentemente, são nos esportes realmente de combate que se encontram
as maiores semelhanças, como luta greco-romana, boxe, MMA (do inglês mixed
martial arts, ou artes marciais mistas), esgrima etc. mas todos objetivam manter o
bem-estar do desportista. Porém, o entretenimento institucionalizado e espetaculoso
ainda vigente, que mais se equipara aos antigos jogos públicos entre gladiadores –
onde ainda se encontra vigente o direito sobre a vida e a morte dos competidores –
se apresenta na forma da tourada159. Não à toa, esse entretenimento alçado à arte
(tauromaquia), na Espanha no séc. XIX e começo do XX fora denominada de política
de pan y toros ou “pão e touros”.

159
O animal humano, no decorrer de sua história, tendeu a posicionar os outros animais como
inferiores, à exceção de recentes e ainda limitadas entidades como o PeTA (People for the Ethical
Treatment of Animals, em português Pessoas pelo Tratamento ético dos Animais).
200

4.6.1. Reality show

Em uma sociedade de cultura midiática performática, repleta de cenários,


personagens e enredos (VILLAÇA, 2010), tem-se no início deste séc. XXI, o
fortalecimento de uma outra forma de espetáculo que movimenta massas:

na banalização lúdica da cultura imperante, em que o valor supremo é


agora divertir-se e divertir, acima de qualquer outra forma de
conhecimento ou ideal. [...] E haverá algo mais divertido que espiar a
intimidade do próximo, surpreender um ministro ou um parlamentar
de cuecas, investigar os desvios sexuais de um juiz, comprovar que
chafurda no lodo quem era visto como respeitável e exemplar?
(LLOSA, 2013, pp. 123-124).

À parte de produções noticiosas sensacionalistas, sejam essas televisivas,


radiofônicas, impressas ou online, a maior forma de expiar os outros se apresenta
no formato dos reality shows, gênero de atração de massa que “de forma nem
sempre assumida, cruzam as fronteiras da informação e do entretenimento, do
drama e do documentário, da ficção e da realidade” (MATEUS, 2012, p. 236). Em
sua maioria, os reality shows são programas televisivos, mas que aliados à saliência
do cotidiano proporcionado pela internet, se apresentam como a produção televisiva
ideal “para a era da Internet – feito para ser discutido, dissecado, debatido, previsto
e criticado” (JENKINS, 2009, p. 54).
Possuindo uma diversidade de temas e subgêneros, bem como uma
multiplicidade de formatos (MATEUS, 2012), dentre os quais os de maior clamor
popular são os que apresentam o formato de competição, portanto, sendo um
entretenimento em forma de jogo:

Também o jogo é um tipo de duplicação da realidade, no qual a


realidade tomada como jogo é separada da realidade normal, sem
que esta última precise ser negada. Cria-se uma segunda realidade
que respeita algumas condições determinadas, e, com base nessa
perspectiva, a forma habitual de levar a vida aparece então como
sendo a realidade real. Para a constituição de um jogo é necessária
de antemão uma limitação previsível do tempo. Jogos são episódios.
Não se trata de passagem para uma outra forma de levar a vida. As
pessoas ocupam-se com eles apenas temporariamente, sem
desprezarem outras possibilidades e sem se livrarem de outros
encargos. (LUHMANN, 2005, p 93-94).
201

É nessa duplicidade que os competidores sofrem o julgamento da sua


audiência, ação através do qual o próprio público reitera seus valores ao presenciar
uma quantidade contínua de dilemas éticos e morais (JENKINS, 2009), através do
decorrer do programa, que em geral segue um mesmo padrão estrutural:

Todo reality show começa com um elenco maior do que o público


consegue assimilar, e a maioria desse elenco fica relativamente
pouco tempo no ar. Entretanto, à medida que o processo de seleção
ocorre, certos personagens surgem como favoritos do público, e um
bom produtor antevê os interesses e os recompensa, oferecendo a
esses personagens mais tempo no ar. Os espectadores deixam de
ver os personagens como tipos genéricos e passam a pensar neles
como indivíduos específicos. Os espectadores passam a conhecer os
candidatos, sua personalidade, suas motivações para competir, seu
passado e, em alguns casos, membros de sua família. (JENKINS,
2009, p. 118).

Se valendo da observação diegética, portanto do viés ficcional da obra


Jogos Vorazes, se apresenta exatamente como esse tipo de espetáculo massivo.
Apesar de publicamente não declarado, é provável que o reality show que
influenciou a criação da obra pela autora (discutido no capítulo 2), e maior sucesso à
época, tenha sido Survivor160 (Sobrevivente em português). Nele:

16 competidores, divididos em equipes, ou “tribos”, são levados a


uma área isolada (geralmente uma ilha) e devem enfrentar os
desafios impostos pelos produtores do programa. No decorrer da
série, os competidores vão sendo eliminados, um a um, até que reste
apenas um sobrevivente – o ganhador de U$$ 1 milhão. (JENKINS,
2009, p. 48).

Evidentemente, Jogos Vorazes remedia um Survival, de modo extremo e


deturpado, a serviço da propaganda de um governo autocrático – portanto, um
espetáculo político midiático – que abrange cerimônias e desfiles, pela qual a elite
ansiosamente aguarda cada nova edição do anual evento, para poder se rejubilar
torcendo, apostando e até mesmo patrocinando os participantes que mais lhe
agradam durante o jogo. No livro fica claro que os Tributos sabem que são peças de
um show que proporciona a alta exposição de seus participantes, a possibilidade de

160
Produzido pelo canal de televisão estadunidense CBS, possuindo versão brasileira denominada
No Limite, transmitido pelo canal de televisão Rede Globo, considerado o primeiro programa do
gênero realizado no país.
202

patrocínios e o favorecimento do público: em um certo momento o treinador


Haymitch diz à protagonista Katniss: “Isso aqui é um grande espetáculo. O que
importa é como você é percebida. [...] Qual vocês acham que vai receber mais
patrocinadores?” (COLLINS, 2010, p. 149); enquanto em outro, a própria
protagonista, como que compactuando com o show, pensa: “Solto as mãos e levanto
o rosto na direção do luar, de modo a garantir que as câmeras tenham uma
excelente tomada” (COLLINS, 2010, p. 266); ou ainda, quando a mesma Katniss se
pega pensando no seu distrito:

Os ânimos devem estar exaltados no Distrito 12. É muito raro termos


alguém por quem torcer nesse ponto dos Jogos. Certamente as
pessoas estão entusiasmadas comigo e com Peeta, especialmente
agora que estamos juntos. Se eu fechar os olhos, consigo imaginá-los
gritando para as telas de televisão, incentivando-nos. (COLLINS,
2010, p. 300).

É um espetáculo tão planejado que, até mesmo acontecimentos que


ocorrem na arena, durante a competição, são meticulosamente alterados ou
situações estimuladas, conforme necessidade ou bel prazer dos organizadores, para
que, sendo um jogo com regras muito bem definidas, não resulte em possíveis
surpresas ao Estado, ao mesmo tempo que se apresenta surpreendente e intenso a
sua audiência.

Nos jogos sociais, em que participam muitos parceiros, isso ocorre à


medida que as pessoas se orientam segundo as regras do jogo,
presentes na mente das pessoas quando identificam o próprio
comportamento e o comportamento do outro (dentro do jogo) como
apropriados ao jogo. Tanto o comportamento concordante quanto o
que contraria as regras fazem parte do jogo, mas o que contraria só
continua a fazer parte à medida que puder ser corrigido chamando-se
a atenção. (LUHMANN, 2005, p 94-95).

Desse modo, ao se levar em consideração que, no entretenimento ficcional


nem tudo deve ser ficcional (LUHMANN, 2005), chega-se a um posicionamento
externo à diegese, o viés não-ficcional da obra Jogos Vorazes, onde seu público
fruidor:

precisa ser colocado na situação de constituir muito rapidamente uma


memória adaptada à narrativa, talhada especialmente para ela, e isso
203

ele só poderá fazer se detalhes que lhe são familiares forem


fornecidos juntos e suficientemente, nas imagens ou textos.
(LUHMANN, 2005, p 96).

Assim, se o uso do cinema pelo regime nazista foi de uma força


propagandística sem igual, fica a indagação do que um regime nos mesmos moldes
poderia fazer, ao se valer dos aparatos técnicos atuais para propagar sua ideologia,
bem como compelir as massas por meio desse espetáculo político midiático em
forma de reality show, através das suas inúmeras instâncias: desde a sujeição
alienada e a Colheita; passando pela glamourização dos participantes e sua
apresentação por meio de desfile e talk show, com trajes representativos de seu
distrito; chegando ao evento em si, que é uma competição esportiva – em realidade,
reconhecido por reproduzir os maiores e mais passionais acontecimentos da cultura.
Ao ressignificar essa possibilidade, a obra remedia tanto o reality show atual
quanto os espetáculos políticos midiáticos nazistas, sejam os comícios desse
governo ou sua olimpíada, que associavam “a coreografia política às características
plásticas da fotografia e à participação emotiva ao evento esportivo podem ser
considerados como a realização mais completa desta estética” (BORTULUCCE,
2008, p. 15). Por si só, a grandiosidade desses eventos os tornam fenômenos
intermidiáticos.

The most complex events of all times (though with a history that goes
back to antiquity) are the opening ceremonies of the Olympic Games,
which engage all the traditional theatrical and ceremonial media
including light shows and fireworks and rely heavily on modern
technologies. Though usually not directly using video effects, they are
essentially staged for the cameras, because the activities of the
hundreds of performers, the thousands of spectators filling the
stadium, and the athletes moving into the arena behind the flags of the
participating nations, as well as the ceremonies of raising the flag and
lighting the torch, are simultaneously recorded and broadcast to a
multilingual audience of many millions around the globe according to
carefully planned strategies (though not as painstakingly arranged and
controlled as Leni Riefenstahl’s Triumph des Willens or her film of the
Berlin Olympics of 1936, both given final shape after the conclusion of
the events).161 (CLÜVER, 2007, p. 28).

161
Tradução do autor: “Os eventos mais complexos de todos os tempos (embora com uma história
que remonta à antiguidade) são as cerimônias de abertura dos Jogos Olímpicos, que envolvem toda
204

Como visto, os Jogos Vorazes se enquadram perfeitamente nesta categoria,


no qual serve para o governo autocrático estrategicamente manter seu poder e
imagem, quanto possuindo “qualidade suficiente para gerar comoção social, ser
rentável do ponto de vista simbólico, político e econômico e gerar repercussão e
imagem pública” (WEBER, 2011, p. 190), seja tanto como ficção quanto não ficção.
Por mais que o exemplo de competição mostrado na obra possa ser
considerado um absurdo impraticável para os padrões atuais, guardadas as devidas
proporções, ele não soa tão irreal assim. Ao se ater novamente à inspiração inicial
da obra, enquanto a autora mudava de canal (apresentado no capítulo 2), mas agora
sobre a questão da transmissão da Guerra do Iraque, é pertinente o posicionamento
de Dupuy (2015), sobre a diminuição da empatia por meio de “teleguerras”, tanto
das massivas transmissões desde a Guerra do Golfo até os atuais ataques a
distância por meio de drones – que proporcionam total abstração a essa relação de
atacante versus vítima.

“O caráter inverossímil da situação é de tirar completamente o fôlego.


No instante mesmo em que o mundo se torna apocalíptico, e isso por
nossa culpa, ele oferece a imagem de um paraíso habitado por
assassinos sem maldade e por vítimas sem ódio. Em lugar algum há
traços de maldade, há somente escombros. [...] A guerra por
televiolência que virá será a guerra mais despida de ódio que jamais
existiu na história [...] essa ausência de ódio será a ausência de ódio
mais inumana que jamais existiu; ausência de ódio e ausência de
escrúpulo serão a mesma coisa”. (DUPUY, 2015, p. 90-91).

É essa alienação que prepara o caminho da guerra-repressão, aliada a


existência de uma sociedade de normalização e extremamente disciplinar como a do
regime nazista – uma sociedade que generalizou absolutamente o velho direito
soberano de matar.

a mídia teatral e cerimonial tradicional, que inclui espectáculos de luz e pirotecnia e dependem
fortemente de tecnologias modernas. Embora geralmente não se valendo diretamente de efeitos de
vídeo, eles são essencialmente encenados para as câmeras, porque as atividades das centenas de
artistas, os milhares de espectadores que enchem o estádio, e os atletas que se deslocam para a
arena atrás das bandeiras dos países participantes, bem como as cerimônias de hasteamento da
bandeira e do acender da pira, é simultaneamente gravado e transmitido para uma audiência
multilingue de muitos milhões ao redor do mundo, de acordo com estratégias cuidadosamente
planejadas (embora não tão meticulosamente organizadas e controladas como por Leni Riefenstahl,
em seu Triunfo da Vontade ou o filme dos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, ambas tendo forma
final após a conclusão dos eventos)”.
205

4.7. A tela como um videojogo voraz

E para finalizar este capítulo, dando continuidade no âmbito do


entretenimento como jogo, já se encontrava em Huizinga, em seu tratado sobre o
ludus como elemento ubíquo nas realizações humanas, definições que tomadas pelo
referencial do media turn alemão, enquadram perfeitamente o jogo como mídia. Por
exemplo, logo nas primeiras páginas de seu livro Homo Ludens, antes mesmo de
qualquer conceituação, ele já apresenta que “no jogo existe alguma coisa ‘em jogo’
que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação.
Todo jogo significa alguma coisa” (HUIZINGA, 2010, p. 05).
Mas se até então, para se ter alguma experiência no universo de Jogos
Vorazes por meio de um jogo, o que se tinha a disposição como produto oficial era
somente sua versão de tabuleiro, têm-se com o lançamento do videojogo uma outra
possibilidade. Mas enquanto o primeiro, ao seu próprio modo “remind us of our face-
to-face past, and recall a type of pre-digital ludism where we all circle around the
‘campfire’ of the game board”162 (BOOTH, 2015, p. 02), esta nova materialidade
acaba por apresentar uma experiência oposta, sendo basicamente individual.
Disponível pouco antes do lançamento do filme nos cinemas
estadunidenses, o jogo The Hunger Games: Girl on Fire foi liberado gratuitamente
pelos estúdios Lionsgate, como um aplicativo oficial para os dispositivos móveis da
Apple, sendo entendido como um advergame – termo que é a fusão das palavras
advertising e videogame, ou em bom português jogo publicitário.

Figura 82 Pepsi Invaders

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio 8-bit Central)

162
Tradução do autor: “nos lembram de nosso passado cara-à-cara, e recupera um tipo de ludismo
pré-digital, onde nos reuníamos em torno da "fogueira" do jogo de tabuleiro”.
206

Esta categoria, tanto de marketing quanto de videojogo, não é nenhuma


novidade surgida em tempos de internet, sendo observável desde a geração de
consoles Atari – um exemplo notório, foi o caso do jogo desenvolvido para a Coca-
Cola nos moldes do sucesso Space Invaders, o Pepsi Invaders (1983), no qual o
jogador deve repelir uma invasão dos alienígenas Pepsi.
Objetivando divulgar o filme, na época do seu lançamento permitia também
usar sua interface para se assistir ao trailer, comprar ingressos e baixar toques
temáticos para celular. Atualmente, pelo jogo é possível comprar o filme (DVD, Blu-
ray ou streaming) e sua trilha sonora, bem como acessar os diversos sítios oficiais
que promovem a saga como um todo.
Foi desenvolvido por uma conceituada equipe dos jogos indie163,
encabeçada pelos estadunidenses Adam Saltsman (designer de videojogos),
contando também com os estadunidenses Mark Johns (programador de videojogos)
e Danny Baranowsky (compositor de videojogos), e o holandês Paul Veer (animador
e pixel artist). Mantém um aspecto retrofuturista, com sua estética no estilo pixel-
art164 aliada a trilha sonora que mistura eletrônico com orquestral – portanto
elementos presentes nos melhores moldes da geração 16bits165.
O jogo segue à risca o estilo runner/survival ou correr e sobreviver, modo
pelo qual o personagem do jogador avança continuamente através do cenário, com
o objetivo de se manter vivo o máximo de tempo possível, tendo uma simplificada
opção de controle e ações, resumindo-se geralmente em pular, atacar ou executar
ações especiais. Este estilo alcança efetivo sucesso em plataformas móveis e com
jogadores casuais. Um dos expoentes de maior sucesso contemporâneo desse
estilo, é o jogo anterior de Saltsman: Canabalt (2009). É inegável que The Hunger
Games: Girl on Fire se fundamenta em Canabalt, mas indo além de ser apenas uma
reestilização, sendo um pouco mais complexo e possuindo final.

163
Videojogos independentes, comumente referidos como indie games, não possuem o apoio
financeiro de nenhuma editora de jogos. Podem ser criados desde por um único indivíduo, como por
pequenas equipes, sendo geralmente focado em inovações.
164
Pixel-art é um estilo de arte digital, na qual imagens são criadas ou editadas tendo em vista o
elemento mais básico pelo qual uma imagem é constituída em um sistema computacional: os pixels.
Muito utilizado para referenciar a estética dos videojogos de 8bits e 16bits.
165
Os consoles de videojogos são categorizados em gerações, conforme a evolução de sua
capacidade computacional, sendo o Atari pertencente a segunda geração, os aparelhos de 16bits à
quarta geração, sendo que atualmente se apresenta a oitava geração.
207

Figura 83 Canabalt

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio Canabalt.com)

Sendo assim, encarnando a protagonista Katniss Everdeen, os jogadores


devem guiar a personagem arqueira no decorrer de apenas duas fases, enfrentando
os perigos que a Capital espalha, começando na floresta até chegar ao Distrito 12,
contando somente com o arco e flecha para atacar, e a agilidade da personagem
para se esquivar. Com deslocamento automático para a direita, basicamente o
jogador deve se atentar para duas coisas: atacar inimigos, ou trocar entre
plataformas superiores e inferiores, para evitar o ataque destes. Ao fim, o jogo
objetiva apresentar um pequeno episódio ocorrido logo antes dos eventos do
primeiro livro/filme – mas sem entregar a trama de ambos –, entrecortadas por
rápidos elementos cinemáticos 166 (ou cutscenes) sem a presença de diálogos.

166
Cinemática, animação ou cutscene, são cenas não interativas de um jogo, podendo ser usada
para inúmeros situações, mas geralmente envolve trazer uma outra carga emocional ou dramatização
a um dado momento do jogo, se valendo para isso, de elementos cinematográficos, como
movimentos de câmera diversos do apresentado no restante do jogo.
208

Figura 84 The Hunger Games: Girl on Fire

(Fonte: Elaborado pelo autor, com captura de imagens do videojogo)

Com esta primeira transposição para as telas, é inegável que Jogos Vorazes
alcançou um outro patamar de convergência, especialmente no que tange a relação
desta com o consumo, pois na convergência “toda história importante é contada,
toda marca é vendida e todo consumidor é cortejado por múltiplas plataformas de
mídia” (JENKINS, 2009, p. 29). Sendo assim, neste quesito, muito bem-sucedida.
Mas nos moldes de Jenkins, ainda assim ela falha no quesito da
transmidialidade:

Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas


plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira
distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia,
cada meio faz o que faz de melhor- a fim de que uma história possa
ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e
quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou
experimentado como atração de um parque de diversões. Cada
acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário
ver o filme para gostar do game, e vice-versa. Cada produto
determinado é um ponto de acesso à franquia como um todo.
(JENKINS, 2009, p. 138).
209

Figura 85 The Hunger Games: Girl on Fire

(Fonte: Elaborado pelo autor, com captura de imagens do videojogo)

Ao ser transposta para este videojogo em especial, não há realmente


contribuição alguma para o todo, e especialmente, este videojogo nem de longe
apresenta o que de melhor essa mídia é capaz. Além do mais, pelo livro seguir o
padrão narrativo da jornada do herói, parte considerável do processo de adaptação
do seu roteiro para outras mídias considera-se realizado, já sendo meio caminho
para uma adaptação para as telas.

Hoje, muitos guias para roteiristas falam sobre “a jornada do herói",


popularizando as ideias de Campbell, e designers de games são, do
mesmo modo, aconselhados a sequenciar as tarefas que seus
protagonistas devem desempenhar em provações físicas e espirituais
semelhantes. A familiaridade do público com essa estrutura básica de
enredo permite aos roteiristas omitir sequências transicionais ou
expositivas, jogando-nos direto no centro da ação. (JENKINS, 2009,
p. 173).

Se o livro Jogos Vorazes possui um ritmo e dinâmica que, nas palavras de


Stephen King, tornam a obra “as addictive (and as violently simple) as playing one of
210

those shoot-it-if-it-moves videogames”167 (apud EGAN, 2012, p. 14), sua


transposição não poderia se dar de uma forma tão aquém de suas possibilidades.
Com um universo tão rico quanto o de Jogos Vorazes, esta materialização não
fornece uma experiência além da superficialidade de ser um rápido e casual
advergame, não passando de ser um link para o filme.
E mesmo assim, com todas essas lacunas, como é possível que este
videojogo seja rico no processo intermidiático? Porque nele estão contidas diversas
camadas de transformação midiática no seu processo de adaptação. Ambas
possuem inter-relações entre suas respectivas mídias – relação intramedial –, bem
como possuem inter-relações umas com as outras – por transposição, combinação
e/ou referenciação –, de modo que este processo intermidiático produza tanto uma
representação de uma na outra, quanto a transformação em algo novo (RAJEWSKY,
2005; 2012). Este videojogo referencia a obra literária, transpõe a versão
cinematográfica e combina elementos de outros jogos.

Figura 86 Referencia o livro, transpõe o filme e combina elementos de outros videojogos

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Em se tratando da transposição cinematográfica, é digno de nota que este


videojogo, apesar de naturalmente adequado à materialidade dos dispositivos
móveis, sendo especificamente desenvolvido para a proporção dessas telas – no
tradicional formato fullscreen (4:3), menos retangular se comparado ao formato
usual do cinema, tanto o widescreen (16:9) quanto ao cinemascope (21:9) –,
percebe-se que durante o jogar, há uma tentativa de remediar a atmosfera do
cinema, ao exibir faixas pretas no topo e na base da imagem referenciando sua
proporção de tela. Mas é especialmente quando aparecem as cutscenes que o jogo

167
Tradução do autor: “tão viciante (e tão violentamente simples) quanto jogar um desses videojogos
de ‘atire-no-que-se-mexer’”.
211

tematiza o filme, momento em que as duas mídias encontram sua maior


proximidade:
1) primeiro, por não haverem interações com o jogador nesses momentos;
2) segundo, por serem nessas ocasiões em que a construção visual do
filme possui sua transposição mais notável a nível de videojogo;
3) terceiro, ao hibridizar a proporção exata do cinemascope cinematográfico
(21:9), têm-se os maiores paralelos com o stimmung do estar no cinema
assistindo ao filme.
Figura 87 Formatos de imagem

(Fonte: Elaborado pelo autor)

Ainda assim, com o que fora apresentado aqui, é perceptível o quanto esta
transposição enquanto videojogo para as telas deixa a desejar, não possuindo
sequer correspondência com o conceito intrínseco que carrega o nome da obra
original, seja no inglês The Hunger Games, seja na tradução brasileira Jogos
Vorazes: o videojogo não traz menção à fome (Hunger) nem aos jogos (Games)
propriamente; talvez no sentido de voraz, ele possua uma pretensão de qualidade –
que enquanto jogo, não passou de presunção, sendo somente vislumbrado pelo seu
viés publicitário.
Uma vez na arena,
o resto do mundo se torna distante.
Jogos Vorazes

Fascismo deve ser justamente


chamado de corporativismo.
Benito Mussolini
político italiano.
213

5. A INTERMIDIALIDADE ENQUANTO MERCADO:


ou O consumo ressignificado em Jogos Vorazes

Este capítulo continua tratando da adaptação cinematográfica de Jogos


Vorazes, mas focado em sua relação com o consumo, não da obra em si, mas dos
produtos dela derivados, tendo como direcionamento principal o fã. Esses produtos
são tanto provenientes do seu merchandising oficial, fortemente relacionado a
ampliar a relação da obra com o seu público alvo, quanto extraoficiais, reflexos do
impacto momentâneo da obra na sociedade de consumo, proporcionando inclusive
novas adequações do mercado. Assim, tanto a obra quanto a relação dos fãs para
com ela, se apresentam simultaneamente como mantenedores de uma ideologia
ainda dominante, quanto questionadora da mesma.
Em dados, somente como literatura, Jogos Vorazes já vendeu mais de 50
milhões de cópias pelo mundo, sendo que no Brasil já ultrapassou a marca de meio
milhão de exemplares. Já o primeiro filme atraiu aproximadamente 1,9 milhão de
espectadores aos cinemas brasileiros (NIELSEN, 2012; VEJA, 2012). Seu custo de
produção total de US$ 78 milhões se pagou com 884% de lucro, arrecadando mais
de US$ 407 milhões nos EUA, além dos US$ 283 milhões arrecadados no resto do
mundo (THE HOLLYWOOD REPORTER, 2012). Esses dados não contabilizam a
venda de DVDs nem Blu-Rays, sendo o segundo mais vendido de 2012 (NIELSEN,
2012).
A última obra de tamanho clamor entre jovens havia sido Crepúsculo, do
qual predominava o público feminino. Em vez disso, Jogos Vorazes atrai na mesma
medida ambos os sexos. Não que lhe seja pré-requisito, mas tamanha amplitude
provavelmente só tenha sido possível (além das inegáveis qualidades da obra),
devido à grande força econômico-midiática da indústria cultural envolvida. Com isso,
as oportunidades de monetização e merchandising se apresentaram abundantes.
Enquanto grandes estúdios tendem a se afastar das ações de marketing
mais tradicionais, a Lionsgate as abraçou, distribuindo 80 mil pôsteres, anunciando
em três mil outdoors e abrigos de ônibus, além de 50 capas de revistas. Mas o
elemento principal da campanha se deu online, construída ao redor de um ano em
torno das plataformas de conteúdo de maior audiência do público jovem. Portanto
foram criadas e atualizadas assiduamente contas no Facebook, Twitter e Instagram;
214

um canal do YouTube; um blog no Tumblr; um sítio oficial; videojogos para


dispositivos móveis; além da transmissão ao vivo da premiere do filme pelo portal
Yahoo (BARNES, 2012).
Justamente essa é a lógica por traz da extensão de uma marca, que se
baseia na utilização de múltiplos contatos com seu consumidor em potencial,
sustentado pelo impacto emocional de sua acoplagem:

A experiência não deve ser contida em uma única plataforma de


mídia, mas deve estender-se ao maior número possível delas. A
extensão de marca baseia-se no interesse do público em determinado
conteúdo, para associá-lo repetidamente a uma marca. (JENKINS,
2009, p. 106).

Dados não oficiais estimam que, para a divulgação do filme, somente nos
EUA foi investido aproximadamente US$ 45 milhões. Para se ter uma ideia da
amplitude durante a campanha de divulgação, somente durante as primeiras 24
horas do lançamento do primeiro trailer já haviam sido realizadas 8 milhões de
visualizações, viralizando através do Twitter, se tornando número um nos trending
topics168 mundiais. E como não podia ser diferente, todo esse alvoroço em torno do
filme também alavancou a venda dos livros.

The function of trailers and websites is undergoing a change in at least


two essential areas. Instead of merely describing the film’s story,
encouraging us to go and see the film, they contribute to it in different
ways. Rather than presenting something ready-made for the passive
theatre viewer, they ask the spectator to immerse himself in materials
from different media platforms.169 (WIK, 2010, p. 78).

Sendo a formação da identidade contemporânea cada vez mais atrelada ao


consumo e mediação proporcionados pelas mídias de massa (KELLNER, 2001), o

168
Trending topics ou assuntos em relevância, seria uma medição pela rede social Twitter sobre os
assuntos que estão sendo comentados massivamente, seja simultaneamente ou em um curto período
de tempo.
169
Tradução do autor: “A função dos trailers e sítios da internet é proporcionar uma mudança em pelo
menos duas áreas essenciais. Em vez de simplesmente descreverem a história do filme,
encorajando-nos a ir ver o filme, eles contribuem para isso de diferentes maneiras. Ao invés de
apresentar algo já pronto para o espectador, eles convidam o observador a mergulhar em elementos
de diferentes plataformas de mídia”.
215

observar desse clamor popular entre o público jovem, revela um pertinente


instrumento de observação da sociedade, pois

O consumo ajuda a construir identidades dentro da sociedade, e a


aquisição de produtos se dá em função de algo que se busca,
prevalecendo não apenas a sua aplicação, mas o seu sentido. O
homem, historicamente, estabelece relações subjetivas com os
objetos, e as mercadorias se tornam parte integrante de sua
comunicação com o mundo, compondo sua imagem. O consumo
ajuda a ler as relações sociais [...]. Todos os bens são portadores de
significado, mas nenhum o é por si mesmo. (VILLAÇA, 2010, p. 58).

Portanto, nas relações de acoplagem estabelecidas entre esses produtos


midiáticos e seus consumidores, entendidos como fãs, pode se constatar o quanto
estes participam do universo ficcional da obra, sendo afetados por suas narrativas e
as reinserindo em seu próprio dia a dia.

5.1. Consumo licenciado

Em parceria com o portal de vendas online cafepress.com, foi elaborada a


loja oficial de Jogos Vorazes, contendo aproximadamente cinco mil produtos à
venda. Essa loja segue basicamente os moldes de um comércio eletrônico
tradicional, vendendo pôsteres, pingentes, camisetas, chaveiros, bottons, porta-
celular, relógio, maleta, marcadores de páginas, roupa de cama etc. Sua maior
diferenciação está na possiblidade de que fãs desenvolvam alguns dos produtos e
ponham à venda. Somente a venda do pingente gerou uma receita de mais de US$
15 milhões durante o primeiro filme.
Figura 88 Merchandising tradicional de Jogos Vorazes – produtos licenciados.

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens do sítio CafePress.com)


216

Mas os fãs querem mais do que apenas mercadorias derivadas: eles querem
encarnar os personagens – se “representamos um papel na vida, não só perante os
outros, mas também (e sobretudo) perante nós próprios” (MORIN, 1980, p. 112), é
passível de que, em algum momento, esse público consumidor tente incluir ao seu
dia-a-dia a inspiração que a obra lhe causou, ao se reapropriar dessa narrativa – ato
que se pode denominar projecções-identificações imaginárias (MORIN, 1980).
Portanto, tamanho envolvimento pessoal e emocional – tanto com a obra,
quanto com outro fã, ou ainda uma comunidade de admiradores da obra –, abriga
uma parte significante da própria identidade na experiência de ser fã e que essas
interações podem ser imensamente gratificantes, pois:

associar-se a outros fãs é descobrir que as escolhas que se fez na


construção do próprio projeto de vida não são inteiramente
idiossincráticas. É descobrir que a trajetória de vida que se escolheu
coincide significativamente com trajetórias de vida de outros, de tal
maneira que certos aspectos do self - incluindo em alguns casos, os
próprios desejos e sentimentos mais íntimos – podem ser
compartilhados com outros sem nenhuma vergonha. (THOMPSON,
1998, p. 195).

Nada melhor para isso do que a moda, pois não é de hoje que o cinema
influencia a moda, bem como é inspirada por ela. Para o Diretor de Marketing da
Lionsgate, Tim Palen, “no mundo de Jogos Vorazes, uma das formas que a Capital
define a si mesmo é através da moda” (BARNES, 2012). É aí que mora a grande
jogada da campanha de divulgação do filme: por meio dos sítios da internet
“TheCapitol.pn” e do tumblr “CapitolCouture.pn”.
O sítio “TheCapitol.pn”, foi construído com todos os elementos para simular
um portal oficial de uma nação, como se não fosse ficcional. Para aumentar essa
verossimilhança, foi utilizada uma extensão com código oficial de abreviação de
nações totalmente ficcional “pn”, representando que esse sítio é oriundo da nação
de Panam170. Neste sítio, para se ter uma experiência completa, o usuário deve se
registrar como sendo um cidadão de Panem (por meio de uma conta na rede social
Facebook ou Twitter). Após completar esse processo torna-se cidadão de um dos

170
Todos os domínios oficiais de qualquer nação possuem como extensão final seu código de
abreviação internacional – no Brasil é usado .br, nos EUA é .us – sendo isto denominado domínio de
primeiro nível ou TLD (top level domain).
217

distritos, recebendo uma carteira de identidade digital ficcional, como se fosse


verdadeiro morador da nação.
Esse sítio da internet, também totalmente disponível em português, se
apresenta como perfeito exemplo institucional de como um governo totalitário, nos
moldes do nazismo, poderia se valer dos meios de comunicação atuais. Elaborado
de modo muito realista, alardeia a propaganda e o status quo desse regime,
contendo elementos como “Aprovado pelo Ministério de Informação da Capital”,
vídeos da TV oficial da capital, textos de união e coesão, discursos etc. Com isso,
mais de 800 mil pessoas se registraram e receberam sua identidade durante o
primeiro filme (BARNES, 2012).
Figura 89 Sítio da internet “TheCapitol.pn”

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens do sítio TheCapitol.pn)

Ao mesmo tempo, o sítio “CapitolCouture.pn” se tornou a plataforma perfeita


da Lionsgate, permitindo não apenas um lugar para divulgação dos produtos de
seus parceiros, mas um lugar onde atrelá-los. Seu desenvolvimento minimizou a
necessidade de os fãs recorrerem a outros sítios, com isso, aumentando a imersão
com o ambiente da história, bem como a fidelização da marca. Capitol Couture é
mais que um portal pseudo-fictício de moda – a moda da Capital –, se tornando uma
experiência incomparável para ambos fãs da franquia e obcecados por moda, onde
o fruto de parcerias com diversos estilistas conceituados são apresentados. É
218

pseudo-fictício porque suas criações começaram a ser realmente comercializadas,


como coleções cápsulas oficiais.
Figura 90 Sítio tumblr “CapitolCouture.pn”

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens do sítio CapitolCouture.pn)

Um dos fundamentos das estratégias do marketing é trabalhar em cima da


oferta e demanda, pois “as empresas devem medir não apenas quantas pessoas
desejam seu produto, mas também quantas efetivamente estão dispostas e aptas a
adquiri-lo” (KOTLER; KELLER, 2006, p. 33 – grifo no original). Ao se valer do
conceito de limitar a oferta para tirar vantagem de uma demanda que tende a
crescer, se adapta perfeitamente ao conceito do mercado da moda de “Coleção
Cápsula”, tendência que vem se firmando anualmente, impulsionando as vendas
para um público imediatista e consumista. Uma coleção cápsula é a denominação
dada a uma coleção composta por um número básico de peças, muitas vezes
lançadas em ocasiões especiais e por meio de inovadoras colaborações – no caso
em questão, o sucesso do filme Jogos Vorazes.
Os produtos ofertados são luxuosos, baseados no vestuário do filme, entre
casacos, vestidos, joias, calçados e roupas de ginástica, assinadas por marcas
consagradas como as britânicas Alexander McQueen, Unconditional e Lucas Hugh,
o designer holandês Jan Taminiau e da mestra joalheira dinamarquesa Maria Black,
entre outros. Os valores também não são para todos os bolsos, podendo facilmente
passar de US$ 1200, conforme o produto e sua exclusividade.
A coleção Capitol Couture por Net-A-Porter, varejista global de comércio
eletrônico de moda luxuosa, é composta por 19 peças baseadas no vestuário do
filme, entre casacos, vestidos, joias e roupas de ginástica. É vendido exclusivamente
219

através do site da varejista a preços que variam de US$ 95 à US$ 1288 dólares. Já
a marca Lucas Hugh, especializada em roupas esportiva femininas de luxo vende
exatamente o mesmo vestuário de treino dos personagens do filme. São calças,
jaquetas, tops entre outras, feitas de tecidos leves e maleáveis, com bolsos
estrategicamente escondidos e áreas de ventilação, detalhes que, em vez de
facilitarem o combate fictício, existem para facilitar o “combate” presente na
realidade dos seus fãs, como a ida à academia.
As joias também não foram deixadas de lado, ficando a cargo de Maria
Black, que desenvolveu anéis, braceletes, brincos e algemas de orelha e colares em
ouro, prata oxidada entre outros materiais valiosos, a preços que variam entre US$
135 a US$ 400.
Figura 91 Sítio tumblr “CapitolCouture.pn” e produtos Maria Black

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens do sítio CapitolCouture.pn)

Ao fim da campanha de divulgação do primeiro filme, a Lionsgate fechou um


contrato de exclusividade com a CoverGirl, braço da gigante Procter & Gamble,
especializada em maquiagem. A coleção Capitol é uma linha especial de
maquiagem com kits representativos para cada um dos doze distritos, consistindo
em rímel, gloss, esmaltes e adesivos para unhas. Até mesmo os cílios postiços
utilizados no filme são comercializados, como os realizados pela inglesa Paperself,
especializada em cílios de papel reciclado, inspirados na arte do corte de papel
chinês e nas rendas francesas do século XIX.
220

Figura 92 Produtos Jogos Vorazes pela CoverGirl

Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens do sítio CoverGirl.com)

Assim, a aquisição desses produtos se baseiam na identificação do fã


consumidor com a obra (CRANE, 2006). Esses produtos criam uma camada
adicional de beleza à narrativa, proporcionando inspiração para os fãs.

E o que se vende hoje, mais que o produto, é a sua narrativa. Não só


os sentidos contidos nas mensagens publicitárias variam de acordo
com o público a ser atingido, mas também a sua complexidade.
Quanto mais sofisticado o produto, menos óbvio é o discurso
publicitário que vai exigir uma decodificação mais elaborada do
consumidor. Sobretudo quando se trata de produtos de luxo. Não
adianta, por exemplo, a pessoa comprar uma bolsa de uma grife
muito sofisticada se não souber portar essa bolsa. O comprador tem
que ter esse capital cultural corporal para usar o produto, para dar
sentido ao que ele representa. Dessa forma, o campo do consumo,
através da moda e da publicidade, refletiria a identidade do homem
contemporâneo, que passa a ser interpretado pela sociedade não só
de acordo com seu poder aquisitivo, mas também pelo seu nível
cultural e sensibilidade para captar o significado do produto que
ostenta. Vivemos em uma sociedade em que o lugar de cada um
depende do olhar dos outros; portanto, a sedução estética que
conseguimos exercer (graças a nós e aos objetos que nos cercam)
torna-se crucial. (VILLAÇA, 2010, p. 56).

Toda essa miríade de produtos tem tudo para continuar vendendo muito, se
depender da pesquisa realizada pela consultoria internacional Exponential
221

Interactive Inc. que analisou o comportamento dos fãs da obra Jogos Vorazes, entre
o lançamento do primeiro e do segundo filme. A metodologia utilizada foi a coleta e
análise de um tráfego de 2 bilhões de dados diários, do comportamento online de
milhares de fãs da obra Jogos Vorazes – em torno de 46.200 fãs do Reino Unido,
141.075 fãs dos EUA e 12.466 da Austrália. Como visto, é sabido do enorme
sucesso do filme, especialmente com seu jovem público fiel, ávido para consumir
produtos relacionados. A pesquisa deixou claro que estes fãs adoram comprar
acessórios de vestuário online. Em comparação com a média mundial dos usuários
de internet, os fãs estadunidenses se mostraram 21 vezes mais propensos, os
australianos 10 vezes mais, e os britânicos seis vezes mais. Também confirmaram
que para fãs da obra, os produtos de beleza encabeçam as listas de compras. Em
comparação com o usuário comum da internet, esse dado é 20 vezes maior nos
EUA, 14 vezes maior no Reino Unido e nove vezes na Austrália. Basicamente
metade dos fãs de Jogos Vorazes são do sexo masculino, o que refletiu em quase
todas as categorias dos dados obtidos, demonstrando que estes são consumidores
tão ávidos por produtos quanto o público feminino, mas sem possuírem a mesma
variação de produtos à disposição. Também se destacou interesses parentais, seja
por roupas, utensílios e produtos infantis (MCINTOSH, 2013).

5.2. Consumo derivado

Um outro fator muito significante sobre a influência da obra Jogos Vorazes


no mercado se dá indiretamente. Por exemplo, a academia estadunidense New York
Sports Club desenvolveu um circuito de treinamento inspirado no próprio filme. A
ideia é praticar como os personagens do filme, e os bem-sucedidos recebem como
recompensa inclusive um pingente igual ao da protagonista (GLAMOUR, 2013).
Também a gigante dos tecidos Lycra incluiu em seu catálogo de referência Moda
Praia Verão 2015 releituras de obras do cinema, dentre elas Jogos Vorazes, como
fonte de inspiração para suas cores, estampas, estilos e designs (SINDITEXTIL,
2014). Ao definir seu produto baseado em Jogos Vorazes, a empresa acredita que:

A mistura do mundo dos esportes e fitness na praia está cada vez


mais forte e é uma das tendências mais comerciais da estação. Este
mix traz uma cara futurista à moda praia, com tops hiper trabalhados.
As estampas são fractais e com um toque do futuro. Tecidos com
aspecto mais tecnológico ganham destaque. (LYCRA, 2013).
222

Mas a maior influência está ocorrendo em uma quebra de paradigma do


mercado de consumo. Por muito tempo foi tido como regra que o protagonismo
feminino não gera o mesmo retorno financeiro quanto o masculino, adquiridos
especialmente por meio do merchandising de brinquedos. Este assunto gera
acaloradas discussões, seja no mercado de videojogos ou de histórias em
quadrinhos. Kellner (2001) cita a “Rambomania” como exemplo do merchandising
tradicional da década de 1980, onde a profusão de produtos se apresentava
essencialmente voltado a um público masculino. E como reflexo, encontra-se bem
visível duas situações distintas: a diferenciação bem delimitada de produtos entre os
gêneros masculino e feminino; e a dificuldade em retratar protagonistas mulheres,
em sua maioria não passando de adaptações do arquétipo masculino "travestido",
não representando e nem ocasionando uma identificação para o público feminino.
Mas esta visão não reflete a realidade da sociedade atual, onde diariamente
os gêneros alcançam um novo patamar em busca da igualdade, onde o
protagonismo feminino existe, seja como CEOs e chefes de estado, ou como chefes
de família. O público está mudando, o mercado se adaptando e consequentemente
esta identificação também. E a obra Jogos Vorazes é uma das expoentes atuais
desta mudança conceitual sobre o protagonismo feminino, gerando inclusive uma
“Katnissmania”, aludindo a Kellner.
Para Stout e Harris (2014), as heroínas das meninas estão mudando
rapidamente, estão abandonando as bonecas como brinquedo preferido, e para
muitas dessas meninas a mudança culminou com a chegada de Katniss,
protagonista de Jogos Vorazes. A indústria está lutando para não ficar para trás,
comercializando uma linha mais competitiva de brinquedos e armas para meninas –
inspiradas em heroínas guerreiras como a protagonista do filme. Se, conforme
afirma Kellner, “as cenas paleossimbólicas 171 de Rambo podem penetrar em nosso
espírito, levando-nos a fazer musculação, tiro ao alvo e, talvez, agir de modo
violento” (KELLNER, 2001, p. 142), um filme com uma protagonista feminina
eficiente, poderia muito bem servir para que jovens mulheres não se vejam como
submissas ou secundárias como em uma sociedade patriarcal, mas sim como

171
A formulação de Kellner sobre paleossimbólicos (primeiramente trazida por Habermas), consiste
em elementos veiculados pela mídia que, seja por seu impacto ou por sua repetição, acabam por
criar fortes resíduos no imaginário comum, podendo “influenciar diretamente o comportamento,
criando modelos de ação, moda e estilo” (KELLNER, 2001, p. 142), muitas vezes servindo para
manter a ideologia vigente.
223

protagonistas de suas vidas, de igual relevância que os homens, em uma cultura


sem fronteiras delimitadas.
Seguindo esse pensamento, é interessante perceber que a obra também
aqueceu o mercado de arquearia172, o popularizando principalmente entre as
garotas, com fornecedores de equipamentos esportivos afirmando grande aumento
nas vendas desde a estreia do filme. Para a CEO da USA Archery o crescimento
após o filme pegou a maioria de surpresa (HOOD, 2013). O Los Angeles Times
relata que as vendas de equipamentos aumentaram mais de 20% em 2011, de
acordo com a Archery Trade Association, a organização dos fabricantes, varejistas,
distribuidores, representantes comerciais de arquearia (HSU, 2012). Já o United
States Olympic Committee, o comitê olímpico estadunidense, viu seus associados
passarem de 4.185 em 2011 para 8.589 em 2013 – um crescimento de 105% em
dois anos. Crescimento considerável também ocorrera nos clubes de arquearia bem
como na participação em torneios (USA ARCHERY, 2013).
Figura 93 Katniss Barbie, arquearia infantil e armas de brinquedo para meninas

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens dos sítios The Barbie Collection.com; NYTimes.com; Hasbro.com)

172
Esta ascenção é especialmente estimulada por uma onda de filmes de grande sucesso com
protagonistas arqueiros, começando por Legolas (Trilogia O Senhor dos Anéis, 2001-2003),
passando por Avatar (2009) e filmes inspirados na mitologia grega – Percy Jackson e o Ladrão De
Raios (2010), Imortais (2011) e Duelo de Titãs (2010) – e mais recentemente pela animação Valente
(2012) e o filme Os Vingadores (2012). Mas é possível que o maior responsável seja a obra Jogos
Vorazes, inclusive devido a sua literatura.
224

Levado em consideração o informal teste de Bechdel, criado em 1987 como


uma maneira de medir se os personagens femininos da indústria cultural se
apresentam como relevantes à trama ou servem apenas de alegoria – consistindo
em três regras simples e interdependentes – 1º) que na obra possua ao menos duas
personagens femininas; 2º) que elas falem entre si; 3º) sobre algo que não sejam
homens – é possível afirmar que Jogos Vorazes173 passa com louvor, reforçando o
porquê da personagem Katniss ter alcançado tamanha representatividade como
referencial feminino. Mas também por meio dessas simples regras, é possível
verificar a disparidade na representação de gêneros na indústria do entretenimento
atual.
Figura 94 Infográficos sobre representatividade de gênero e raça no mercado de cinema

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens dos sítios da Superinteressante e A2ad)

Reiterando esse fato, a edição 331 da revista Superinteressante (2014)


apresentou um pertinente infográfico que resume bem diversas das discrepâncias
entre homens e mulheres na indústria cinematográfica hollywoodiana – no qual o
teste de Bechdel apenas serve de indicativo. Com semelhante objetivo, a agência
especializada em análise de dados A2ad, disponibilizou um infográfico174 sobre a

173
Contendo atualmente mais de 6500 filmes analisados em sua base de dados, no qual Jogos
Vorazes é citado como aprovado com louvor. Se encontra disponível em:
<http://bechdeltest.com/view/3138/the_hunger_games/>.
174
O estudo completo pode ser encontrado no site da agência, disponível no seguinte endereço
eletrônico: < http://www.a2ad.com.br/blog/infografico-da-a2ad-comprova-como-hollywood-ainda-
deixa-a-diversidade-de-lado/>.
225

representatividade nas produções cinematográficas de Hollywood. Em ambos, é


possível averiguar o quanto gênero e raça são mal representados nesse mercado,
como na enorme diferença na quantidade de protagonismos, bem como em
diferenças salariais, além de evidenciar uma maior sexualização dos personagens
femininos (relativo a conteúdo explicitamente sexual ou com nudez) em comparação
com os homens.

5.3. Saudações reapropriadas

Outra ressignificação presente se refere a apropriação de um dos elementos


mais conhecidos: a saudação nazista (Hitlergruß), na qual se estende o braço direito
com a mão espalmada, sendo presentificação das supostas saudações romanas
(saluto romano) ocorridas durante cerimônias de coroação dos césares. Mas em
Jogos Vorazes esse gesto se apresenta pelo braço esquerdo estendido, mostrando
a mão com os três dedos do meio em riste. No romance é explicado como sendo um
antigo e raro gesto usado pelo Distrito 12, geralmente em funerais, com significado
de agradecimento, admiração e despedida de quem se ama (COLLINS, 2012). É
preciso ressaltar que, ao fim tanto do primeiro livro quanto do filme, que este
simbolismo se modifica, tornando-se símbolo de oposição, luta e revolução –
lembrando que em sua origem, o partido nazista era de oposição, que objetivava
revolucionar a Alemanha por meio do retorno à tradição, reconstruindo um passado
de glórias.
Figura 95 Saudação nazista e saudação de Jogos Vorazes.

(Fonte: Elaborado pelo autor com imagens do sítio The Telegraph; e capturas do filme: Jogos Vorazes, 2012)
226

Apesar de, com todas as reminiscências nazistas apresentadas no decorrer


deste trabalho proporcionar a esta ressignificação um parecer plausível, ainda assim
é possível que ela seja uma remediação tanto do Símbolo do Escotismo quando da
Saudação do Escoteiro. O Símbolo do Escotismo se constitui de “raising your right
hand, palm to the front, thumb resting on the nail of the little finger, and the other
fingers upright, pointing upwards. The three fingers remind a Scout of the three parts
of the Scout Promise”175 (BADEN-POWELL, 1956, p. 26). Quando posto junto a
testa, se apresenta como a Saudação. Pertinente também é seu entendimento de
quando saudar: “Scouts will always salute as a token of respect, at the hoisting of the
Flag; at the playing of the National Anthem; to the uncased National Colours; to
Scout Flags, when carried ceremonially; and to all funerals” 176 (BADEN-POWELL,
1956, p. 27). Portanto, as significações de agradecimento, admiração e despedida
presentes em Jogos Vorazes, de certa forma também estão presentes no escotismo.

Figura 96 Saudação e Símbolo do Escotismo.

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens do sítio Norman Rockwell Museum.org)

Por ser simples e impactante, é interessante notar o fascínio que este tipo de
simbolismo exerce no público, seja durante a Alemanha nazista, seja pelos
escoteiros – ou contemporaneamente pelos fãs da obra, questão que se reflete
através de sua rápida apropriação, pois foi noticiada seu uso desde por jovens

175
Tradução do autor: “levantar a mão direita, palma para a frente, polegar descansando sobre a
unha do dedo mínimo, e os outros dedos na posição vertical, apontando para cima. Os três dedos
lembram ao Escoteiro das três partes de sua Promessa de Escoteiro”.
176
Tradução do autor: “Escoteros sempre saúdam como um sinal de respeito, no hasteamento da
Bandeira; ao tocar do hino nacional; no desembalar das cores nacionais; às bandeiras Escotistas,
quando de cerimonial; e a todos os funerais”.
227

torcedores norte-americanos em uma partida oficial da liga de basquete norte-


americana (HEFA, 2014), até nos recentemente protestos tailandeses contra o golpe
militar ocorrido no país, sendo introduzido pelos jovens mas também apropriado
pelos mais velhos. Nesse processo intermidiático, é nítida a:

contribuição especial do segmento “Entretenimento” para a produção


geral de realidade. O entretenimento possibilita uma autoinserção do
mundo representado. Um segunda questão é se essa manobra
realiza-se de forma que a pessoa possa estar satisfeita consigo
mesma e com o mundo. Permanece igualmente aberta a questão se
a pessoa identifica-se com as características da trama ou registra
diferenças. Aquilo que é oferecido como entretenimento não vale para
sempre para ninguém; contudo, há suficientes indícios (que não se
encontrariam nem nas notícias nem na publicidade) para se trabalhar
a própria “identidade”. (LUHMANN, 2005, p 109).

Figura 97 Apropriação por jovens dos EUA; protestos na Tailândia e Hong-Kong.

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens dos sítios: People.com; NYTimes.com; IBTimes.co)

Conforme noticiado pelo The Bangkok Post “Having banned public protests,
Thailand’s military faces a new challenge: how to treat citizens who make a three-
fingered salute, a sign of resistance borrowed by opponents of last month’s coup
228

from “The Hunger Games”177 (MACKEY, 2014). Já o New York Post noticiou que
“Thailand’s military rulers said they are monitoring a new form of silent resistance to
the coup — a three-fingered salute borrowed from ‘The Hunger Games’ — and will
arrest those in large groups who ignore warnings to lower their arms”178 (AP, 2014).
Também fora reportado pelo jornal inglês International Business Times sobre a
mesma ressignificação em protestos pró-democracia na cidade chinesa de Hong
Kong (SIM, 2014).

5.4. Acoplagem racista

Conforme já apresentado, houve questionamentos acerca da limitação


exigida para as audições, de apenas atores caucasianos para os papeis de maior
relevância à obra – reflexo da indústria cinematográfica que ainda se encontra
atrasada em se adequar a representatividade da sociedade contemporânea. De
maneira diametralmente oposta, vinda não mais dessa indústria nem do mercado, se
apresentou surpreendente o posicionamento justamente do público consumidor da
obra – em verdade, uma parcela desses.
Conforme surgiam notícias sobre a produção do filme, diversos
posicionamentos discriminatórios foram se tornando públicos – tanto por meio de
sítios e fóruns de internet, quanto por meio de mídias sociais –, referente a
escalação de atores negros na adaptação. A rede social Twitter se apresentou
emblemática nesse contexto, pois em sua maioria, os comentários estavam
atrelados às identidades reais dos usuários. Surgiram tantas opiniões que um site foi
criado para expor esses posicionamentos 179, de modo a servir de contraponto e
demonstrar o quanto são ofensivos. Abaixo, seguem alguns:
 Awkward moment when Rue is some black girl and not the little
blonde innocent girl you picture.180

177
Tradução do autor: “tendo banido protestos públicos, os militares da Tailândia enfrentam um novo
desafio: como lidar com cidadãos que fazem a saudação dos três dedos em riste como sinal de
resistência ao golpe”.
178
Tradução do autor: “os governantes militares da Tailândia estão monitorando uma nova forma de
resistência silenciosa ao golpe – uma saudação de três dedos retirada de “Jogos Vorazes” – e vai
prender aqueles em grandes grupos que ignoram os avisos para baixarem os braços”.
179
O site, que se encontra ativo, é: http://hungergamestweets.tumblr.com/
180
Tradução do autor: “Aquele momento constrangedor quando Rue é alguma garota negra e não a
menininha inocente e loira que você imaginou”.
229

 some ugly little girl with nappy add hair. Pissed me off. She was
supposed to be cute and at least remind her of Prim! 181
 Kk call me racist but when I found out rue was black her death wasn’t
as sad.182
São páginas e páginas de capturas de postagens com o mesmo sentido,
repleta de termos pejorativos, no qual esses fãs – em sua maioria jovens, dos mais
variados tons de pele, incluindo tez preta – não compreenderam o porquê de
escolherem atores negros para o papel dos personagens Cinna, Rue e Thresh.
De fato, a descrição de Cinna se atém ao mínimo, apresentando-o como
“normal” e sem afetações – o oposto do restante dos moradores da Capital. Sua
aparência se resume em um homem jovem, de cabelo castanho e corte rente.
Assim, poderia ser representado por qualquer ator 183.
Figura 98 Imagem da adaptação cinematográfica dos personagens Rue e Thresh

(Fonte: Elaborado pelo autor, sobre imagens do sítio The Hunger Games Wikia)

Já sobre Rue e Thresh, a autora foi relativamente explícita em suas


descrições. Rue é apresentada como tendo “a pele e os olhos escuros, mas fora
isso, é bem parecida com Prim no tamanho e no jeito” (COLLINS, 2010, p. 53),
enquanto que Thresh “tem a mesma pele escura de Rue, mas a semelhança para

181
Tradução do autor: “Alguma menininha feia com cabelo pixaim. Me irritei. Ela deveria ser bonita e
pelo menos lembrá-la da Prim!”
182
Tradução do autor: “Kk me chame de racista, mas quando descobri que Rue era negra, sua morte
não pareceu tão triste”.
183
Como já fora apresentado, a opção por mostrar que os moradores da Capital também são
formados pelas mais variadas raças, modificando parte da crítica original da obra enquanto livro.
230

por aí” (COLLINS, 2010, p. 138) 184. Portanto, ambos possuem tez preta, ou como a
autora afirmou em uma entrevista, são afro-americanos (VALBY, 2011).
E mesmo com essa descrição presente no livro, é surpreendente o
posicionamento desses fãs. Nos exemplos em questão, beira o absurdo a opinião
que associa a cor da tez de uma criança a perda de seu aspecto de inocência; ou
por ela não ser caucasiana, também não ser bonita (ao mesmo tempo que deprecia
seu tipo de cabelo); ou ainda não se importar com a morte de alguém devido a sua
cor.
E com isso, tantos possíveis questionamentos podem ser levantados, dentre
os quais: estariam esses leitores de Jogos Vorazes tão alienados pelo (hiper)
espetáculo, absortos na relação cotidiana ao outro que lhe é diferente, que já se
encontram diminutos em empatia, a ponto de apresentarem uma relação de
acoplagem superficial com a obra, tanto ignorando descrições presentes na obra
original, quanto todo o contexto que a mesma apresenta, justamente sobre
preconceito e opressão? Ou ainda, se esse público justamente não é exatamente o
resultante do temor que a autora Suzanne Collins buscou exorcizar com sua obra?

184
No original em inglês, Rue é descrita como tendo “dark brown skin and eyes” (COLLINS, 2010,
pos. 469), enquanto Thresh possui “the same dark skin as Rue” (COLLINS, 2010, pos. 1264).
Há jogos muito piores que esse.
Jogos Vorazes

Graças ao liberalismo, a vida do homem não é mais solitária,


medíocre, desagradável, brutal e curta – também é cara.
Evgeny Morozov
pesquisador bielorusso
232

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ideia inicial desta pesquisa ocorreu durante a relação de acoplagem com a


versão cinematográfica de Jogos Vorazes, antes mesmo de ter contato com a
versão original literária. Por não pertencer mais a faixa etária principal que a obra se
destinava, e refutar a proporção tanto do enaltecimento dos fãs quanto do seu
merchandising, levou-se mais de ano para dar literalmente uma chance –
possivelmente por falta de outras opções – à fruição da obra.
Apesar de apresentar interessantes questões sobre espetáculo midiático na
forma de reality show a surpresa se deu pelas reminiscências do nazismo. O
pensamento inicial fora justamente o de se estar observando um futuro fictício,
baseado em uma linha de tempo pela qual a Alemanha nazista teria vencido a
Segunda Guerra Mundial – bagagem fornecida pelo contato com obras como O
homem do Castelo Alto (de Philip K. Dick, publicado em 1962) e Terra Pátria (de
Robert Harris, publicado em 1992). Com isso, apresentam-se ressonâncias que
muito me interessam, se mostrando pertinente um estudo sobre a busca dessas
reminiscências ressignificadas.

6.1. Considerações sobre a intermidialidade apresentada

Para tanto, optou-se por se valer dos estudos da intermidialidade, que por
suas características, permitem investigar “ora no universo teórico [...], ora em
aplicações e estudos de casos” (MENDES, 2011, p. 18). Essa investigação se
constituiu tanto pelas ressonâncias quanto por meio das reminiscências encontradas
nas mídias – sejam estes construtos, dispositivos, extensões do homem, ou o
próprio homem. Com isso, ao se valer da intermidialidade, que para Arvidson seria
“the discipline underlying any conceivable study of cultural artefacts”185 (ARVIDSON,
2007, p. 14), além de se estar estudando a relação entre as mídias, também se está
estudando a cultura.
Considerado um campo recente e, no qual seu conceito se apresenta ainda
em investigação (MÜLLER, J., 2012), buscou-se formular este trabalho, dentre os
diversos entendimentos sobre uma pesquisa de mestrado, pelo viés que o

185
Tradução do autor: “a disciplina basilar a qualquer estudo concebível de artefactos culturais”.
233

compreende como o apresentar do conhecimento existente, de modo a contribuir e


mostrar domínio da área. Portanto, no capítulo 1, construiu-se um referencial teórico
de modo historicista para a compreensão do que vem a ser a intermidialidade –
conhecendo sua fundamentação, desenvolvimento e abrangência –, bem como a
metodologia usada para a construção deste estudo.
Mas o que inicialmente se apresentou apenas como uma busca pelas
remediações presentes na obra, logo se transformou em um segundo pensamento:
a preocupação de que a verossimilhança da violência simbólica encontrada em uma
obra, capaz de movimentar massas, inclusive pelo consumo de produtos
relacionados direta ou indiretamente à obra, pudesse tratar um tema tão delicado
quanto o nazismo, de forma banalizada e a ponto de glamorizar a iconografia desse
regime. Isso refletiria uma iminência de violência real, especialmente presente em
épocas de crise: a do aumento de um pensamento retrógrado proeminente em
movimentos fascistas, como os que deram origem ao nazismo. Se o primeiro
pensamento soava interessante, esse segundo se apresenta perturbador, em um
stimmung que remetia aos desdobramentos do filme alemão A Onda (de Dennis
Gansel, lançado em 2008).
É justamente na busca dos elementos basilares da obra, que se formulou o
capítulo 2. Além de introduzir o enredo de Jogos Vorazes, tratou-se de conceituar o
gênero da obra, que é um romance distópico, bem como o conceito de utopia, raiz
desse. Apresentaram-se motivos que inspiraram a criação da história, dentre eles, a
preocupação da autora em questionar a violência real, tão saturada e banalizada
pelos meios de comunicação. E por fim, delimitou-se a questão da ambiência nazista
presente na obra.
Apesar de não haver posicionamento público que referencie ao nazismo
como componente inspirador, no capítulo 3 buscou-se, por meio da intermidialidade
constituinte da materialidade do livro como mídia principal, corroborar com esse
objetivo. Primeiramente se apresentaram outras obras que Jogos Vorazes
referencia; para depois, em uma busca investigativa, analisar as diversas instâncias
intermidiáticas da capa e o desdobramento entre as equipes criativas; também a
transposição de livro para o audiolivro; assim como as adaptações que
acompanham traduções; bem como sua última transposição sobre o égide do livro: o
jogo de tabuleiro.
234

Dando continuidade, mas agora sobre o domínio de outra materialidade, o


capítulo 4 esmiúça a intermidialidade presente na transposição do livro para as telas,
apresentando as diferenças entre essas mídias. É nesse capítulo que se
apresentam os referenciais à existência de uma ambiência nazista ressignificada
mais contundentes, através do contrapor de artes conceituais e elementos fílmicos
com a iconografia nazista, inclusive a ponto de traçar paralelo entre cenas do filme
Jogos Vorazes com cenas das produções cinematográficas de Leni Riefenstahl,
especialmente Triunfo da Vontade. Se analisam tanto os elementos referentes a
Capital quanto ao Distrito 12, bem como a questão do espetáculo, reforçando a
relação entre a violência simbólica e a real encontrada na obra. O capítulo finda com
um breve estudo sobre o videojogo baseado na obra.
Já o capítulo 5 apresenta um olhar sobre as relações de acoplagem
estabelecidas entre os produtos midiáticos proveniente do merchandising e seus fãs
como consumidores. Através desse olhar, é possível averiguar desigualdades de
gênero no mercado, uma crescente busca pelo empoderamento feminino, bem como
um assustador posicionamento racista de muitos admiradores da obra, que parecem
não ter entendido o real valor que a obra Jogos Vorazes objetivou passar – algo
plenamente compreendido pelos fãs asiáticos, que remediaram elementos do filme
em protestos reais, a favor da democracia.
O que se observou ao longo deste trabalho, é que os estudos da
intermidialidade se apresentam como pertinente campo de pesquisa, pelo qual se
pode analisar as diferentes relações entre mídias, se mostrando valioso para o porte
de Jogos Vorazes. Ao se averiguar as acoplagens de cada uma de suas
materialidades principais – livro e filme –, estas se mostram com diferentes
características, onde ambas se apresentam como complementares da outra, tendo
faltas de uma mídia sanadas pela outra, se somando em vez de qualquer detrimento
– assim, se encontrando como uma perfeita miscigenação entre mídias.
Indo além, se levada em questão as ressonâncias encontradas entre
comunicação, design e mídia, se valer da intermidialidade nesta pesquisa se
apresentou como totalmente cabível, sendo eficiente para observação do mundo
material em suas diversas instâncias, sejam tanto midiáticas quanto artísticas,
culturais, sociais, políticas ou econômicas.
Ao fim, o temor que a obra proporcionasse uma possível banalização e
glamorização da iconografia nazista, enquanto transposição cinematográfica não se
235

confirmou. Se tomado todos os filmes e livros, essa questão fica ainda mais
perceptível – pois acaba por se desdobrar em uma história de revolução contra a
dominação de um poder opressor. Mas mesmo levado em conta somente a primeira
instância de cada uma dessas materialidades, ainda que, com todo o seu impacto
como espetáculo midiático, no contexto da obra, se apresenta tratado com o devido
respeito, mantendo inalterada toda a ideologia que lhe pertence – de poder e
opressão que subjuga o que lhe é (in) diferente.
Ainda assim, é uma preocupação pertinente, pois conforme mostrou um
estudo da Pew Foundation,

jovens estavam obtendo informação por meio das mídias de


entretenimento, em vez das mídias noticiosas (embora a pesquisa
apenas perguntasse se as mídias de entretenimento eram uma das
fontes de informação, não veículo exclusivo ou mesmo principal), e
também demonstrou que as pessoas que obtinham informação
dessas fontes eram, no geral, menos informadas sobre o mundo – ou
pelo menos capazes de se lembrar de certos fatos sobre os
candidatos – do que os consumidores do noticiário tradicional. Como
alguns se apressaram em contrapor, lembrar-se não é de modo
algum o mesmo que compreender, e muitos dos itens da Pesquisa da
Pew, como qual candidato tinha sido aprovado por Al Gore ou qual
candidato tinha cometido um erro sobre a bandeira dos confederados,
ilustravam a forma como as reportagens do noticiário com frequência
banalizavam o Processo político, ao enfocar pesquisas eleitorais,
gafes e escândalos. (JENKINS, 2009, p. 305).

Portanto, tudo depende da relação do observador e de como esse percebe a


obra. Como apresentado ao fim do capítulo anterior, diversos fãs tiveram uma
relação de acoplagem totalmente inesperada com Jogos Vorazes, exatamente
ignorando o contexto principal da obra. Mas se levada em questão a seguinte
situação: durante o tempo vigente desta pesquisa, se verificaram186: os 150 anos do
início da Guerra do Paraguai; 100 anos do início da Primeira Guerra Mundial; 75
anos do início da Segunda Guerra Mundial e 70 anos do fim da segunda guerra; 50
anos do Golpe Militar brasileiro e 30 anos do fim do regime militar brasileiro; bem
como os 25 anos da Queda do Muro de Berlim; e 20 anos do fim do Apartheid - à
exceção da Guerra do Paraguai, todos os outros eventos foram amplamente

186
Esse é um detalhe que carrega todo um tradicional simbolismo: de que números ditos redondos
carregam especial importância quando, trazidos à luz da marcação do tempo, rememoram
acontecimentos marcantes – portanto, há uma ressonância oportuna com esta pesquisa.
236

documentados, mas surpreendentemente, há um desconhecimento por parte de


muitos jovens sobre esses períodos, que aumentam brutalmente quanto maior é o
tempo decorrido desses eventos.
Isso leva diretamente a uma situação de ignorância sobre o Nazismo,
mesmo esse sendo um dos períodos mais documentados da história – quadro que
se constata quando surgem notícias como: “metade dos jovens alemães não
consideram o nazismo uma ditadura” (RTP, 2012); ou “jovens alemães
desconhecem a história da Alemanha comunista” (STONE, 2009), ou ainda quando
se planeja realizar um concurso de beleza intitulado “Miss Hitler 2014”, bastando às
candidatas serem nazistas e antissemitas para participarem (TERRA, 2014).
Figura 99 Marcas BOY London; Zara e suas questionáveis pijama para bebê e camiseta feminina

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios: Boy-London.com; wikipedia; El-Nacional.com; RT.com)

E esse fato se agrava quando marcas se apropriam dessa iconografia, e por


total desconhecimento ou alienação, as retiram de contexto – como no caso da
marca de roupas britânica Boy London, que adotou como marca a reichsadler, a
águia símbolo do Nazismo; ou ainda quando a renomada marca varejista de luxo
Zara, põe à venda um modelo de pijama para bebês, que se assemelha ao uniforme
usado pelos judeus nos campos de extermínio; ou ainda, quando a mesma varejista
237

vende uma camiseta com estampa contendo os dizeres “white is the new black” 187,
que apresenta uma ambiguidade perigosa – apesar de brincar com uma frase
comumente usada no mundo da moda, também pode ser extremamente ofensiva
devido a suas conotações potencialmente racistas.

6.2. Considerações sobre a desigualdade ressignificada

E não somente a isso, com um enredo com esse conteúdo, é pertinente


conjecturar: até que ponto, de fato, se trata de uma obra de ficção? Se, conforme
fora exposto no capítulo 2, que o totalitarismo é realmente melhor encontrado na
ficção, então também o é em comédias satíricas, como no canônico filme de Charles
Chaplin, O Grande Ditador (1940), ao parodiar Adolf Hitler com seu personagem
Adenóide Hynkel. Recentemente uma outra comédia satírica, dessa vez parodiando
ditadores contemporâneos, foi lançada: O Ditador (2012), escrita e estrelada por
Sacha Baron Cohen. Aparte de questões sobre qualidade artística, o filme também
apresenta um inesperado discurso em seus momentos finais, que traça um paralelo
sobre as vantagens de uma ditadura perante a democracia:

Por que vocês são tão anti-ditadores? Imagine se a América fosse


uma ditadura: vocês poderiam deixar 1% da população ter toda a
riqueza do país; poderiam ajudar seus amigos ricos a ficarem mais
ricos diminuindo seus impostos; e pagando fiança quando eles
apostam e perdem tudo; vocês poderiam ignorar a necessidade dos
pobres por saúde e educação; os meios de comunicação poderiam
parecer livres, mas secretamente seriam controlados por uma só
pessoa e sua família; poderiam grampear telefones e torturar
prisioneiros estrangeiros; poderiam ter eleições forjadas e mentir
sobre o porquê estão em guerra; vocês poderiam encher com um
único grupo racial as prisões, que ninguém iria reclamar; poderiam
usar a imprensa para assustar as pessoas e apoiar políticas
contrárias aos seus próprios interesses. Sei que para vocês,
americanos, isso é difícil de imaginar, mas por favor, tentem. (O
Ditador, 2012).

Construída em cima de fatos concretos, esta ironia deixa transparecer a


difusa fronteira presente atualmente entre democracia e ditadura, portanto acredita-
se que esse olhar permite uma brecha no recorte inicial da pesquisa, possibilitando

187
Tradução do autor: “branco é o novo preto”.
238

que se deixar para traz o nazismo do século XX, e avançar na comparação,


relacionando-a com os tempos atuais, na contemporaneidade do século XXI.
Se a obra Jogos Vorazes se apresenta como uma história fictícia, ela é
fortemente respaldada por acontecimentos reais, o que permite lembrar dos diversos
problemas de desigualdade existentes, que leva a um questionamento sobre o
quanto a realidade presente na obra, de certo modo já não está ocorrendo.
Atualmente a ONU estima que um total de 842 milhões de pessoas sofrem
de fome crônica. São indivíduos que não obtém regularmente alimento suficiente
para uma vida saudável e ativa. Destes, são estimadas 162 milhões de crianças com
riscos no desenvolvimento cognitivo e físico devido a esta forma constante de
desnutrição (UN, 2014). Já entre 1980 e 2010, a desigualdade econômica cresceu
em 15 dos 16 países membros da Organisation for Economic Cooperation and
Development - OECD, enquanto que os países não-membros notoriamente
possuem taxas de desigualdade maiores. Portanto, a desigualdade aumentou na
Ásia, permanece muito alta na África do Sul, mas dados sugerem que na América
Latina houve diminuição – no Brasil, a concentração de renda caiu nesse tempo,
mas ainda é elevada, pois somos a 13ª nação mais desigual mundialmente (OECD,
2014).
Figura 100 Fome e miséria na América Latina

(Fonte: The Huffington Post, 2013)

Em dados obtidos pela Federação Estadunidense do Trabalho, do total de


ganhos entre 2009 a 2012, 95% ficaram nas mãos da parcela mais rica da
239

população, estimada em 1%, e que anualmente ficam mais ricos, enquanto a renda
familiar média caiu 8% desde 2000 (TORTORA, 2013). Estes dados se tornam mais
alarmantes se vistos desta forma: “que as vinte pessoas mais ricas do mundo têm
recursos iguais aos do bilhão de pessoas mais pobres” (BAUMAN, 2015, p. 17). A
esses dados, Bauman ainda corrobora ao trazer o seguinte exemplo:

o número de bilionários nos Estados Unidos aumentou quarenta


vezes nos últimos 25 anos, até 2007, enquanto o total de riqueza dos
quatrocentos americanos mais ricos aumentou de US$ 169 bilhões
para US$ 1,5 trilhão”. Depois de 2007, durante os anos de colapso do
credito seguidos por depressão econômica e desemprego crescente,
a tendência adquiriu ritmo verdadeiramente exponencial: em vez de
atingir a todos em igual medida, como era amplamente esperado e
retratado, o flagelo se mostrou severa e tenazmente seletivo na
distribuição de seus golpes. Em 2011, o número de bilionários nos
Estados Unidos alcançou seu recorde histórico até a data, chegando
a 1.210, ao passo que sua riqueza combinada cresceu de US$ 3,5
trilhões em 2007 para US$ 4,5 trilhões em 2010. (BAUMAN, 2015, p.
16-17).

Figura 101 O uso da propaganda como crítica

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios: Cordaid.org; The Inspiration Room.com)

Com isto, ao se assistir o filme é possível que se experimente um momento


de dissonância cognitiva, sensação especialmente reforçada em uma sala de
cinema lotada: o fruidor real de uma obra ficcional está se divertindo ao assistir a
uma história que trata de uma audiência ficcional (elite da Capital), que por sua vez,
240

está assistindo e obtendo diversão a partir do assassinato de crianças, transmitido


através da mídia de massa – justamente como o cinema também o é.
De fato, não se deve comemorar a morte de nenhum dos jovens, mas a
construção da obra é de tal forma, que sua imersão permite aos observadores se
comportarem analogamente à elite da Capital, se encontrando ao final da projeção,
em vez de horrorizados, eufóricos diante de tamanho espetáculo midiático. Mas tudo
bem, pois esse efeito de catarse só ocorre por ser tratar de ficção. Ou não?
Se levado em conta somente o Brasil, um estudo realizado pelo Governo
Federal em parceria com a UNESCO, a fim de levantar um balanço do mapa da
violência no país, revela que os jovens são as maiores vítimas das mortes por armas
de fogo (WAISELFISZ, 2015). Com dados de 2012, desvela-se que o número
absoluto de jovens mortos por elas são os mais altos já registrados desde 1980, o
ano inicial da pesquisa. Do total de 42.416 óbitos por disparo em 2012, 24.882 foram
de pessoas na faixa de 15 a 29 anos, o equivalente a 59%. Já ao se comparar a
incidência de homicídios na população jovem, o estudo revela que, morreram
proporcionalmente 285% mais jovens por assassinato praticado com armas de fogo,
sendo a mais alta taxa de mortalidade verificada na faixa etária dos 19 anos.
Outra característica é a que, dessas mortes, 10.632 eram brancos e 28.946
negros – proporcionalmente 142% mais negros que brancos, uma consequência
direta da desigualdade econômica que ainda predomina no país. Segundo a
pesquisa domiciliar do IBGE de 2011, a renda média das famílias negras era de R$
1.978,30 enquanto que das famílias brancas era de R$ 3.465,30, uma diferença de
75,2%.

Em teoria, os setores e áreas mais abastadas, geralmente brancas,


têm uma dupla segurança: a pública e a privada, enquanto os menos
abastados, que vivem nas periferias, preferencialmente negros, têm
que se contentar com o mínimo de segurança que o Estado oferece.
(WAISELFISZ, 2015, p. 102).

E todos esses números se refletem na audiência da imprensa marrom, que


lota bancas de jornais ou grades televisivas, que comemora frente a linchamentos e
assassinados do que entendem com sendo “gente diferenciada”, e que no início
desta pesquisa, se encontravam inflados perante a possibilidade de redução na
241

maioridade penal. Audiência esta que entretém seu público, em uma catarse,
perante a espetacularização midiática acerca da violência presente.
E neste momento, a obra proporciona mais uma ironia: a quem se destina o
consumo do merchandising exclusivos e de luxo de Jogos Vorazes, apresentados no
capítulo anterior, se não a um público análogo a fictícia elite da Capital, e no qual a
moda reafirma seu poder e valor de troca simbólico. Na ânsia por adquirir um novo
produto, para satisfazer a necessidade que for, continua-se a manter o status quo do
consumismo atual, mesmo bombardeados por informações acerca dos problemas
sem precedentes que, tanto a produção quanto o consumo, estão ocasionando na
ecologia mundial. E a relação apresentada entre a Capital e os Distritos que não é
muito distante da relação apresentada entre os EUA e a China:

Hoje, as duas superpotências, Estados Unidos e China, são referidas


cada vez mais como Capital e trabalho. Os Estados Unidos estão se
transformando em um país de administração de planejamento,
atividades bancárias, serviços etc.. enquanto sua “classe trabalhadora
em desaparição” (com exceção dos migrantes chicanos e outros que
trabalham predominantemente no setor terciário) está ressurgindo na
China, onde uma grande parcela dos produtos dos Estados Unidos,
de brinquedos a artigos eletrônicos, é manufaturada em condições
ideais para a exploração capitalista: não há greves, a liberdade de
movimento é limitada pela força de trabalho, os salários são baixos...
Longe de ser apenas antagônica, portanto, a relação entre a China e
os Estados Unidos é também profundamente simbiótica. A ironia da
história é que a China é mais do que merecedora do título de Estado
da classe trabalhadora”: ela é o Estado da classe trabalhadora para o
capital norte-americano. (ZIZEK, 2013, p. 96).

E por mais alarmada que a grande massa consumidora fique, em um ato de


autoindulgência perante a obsessão do ter, de julgar ou ser julgado por possuir ou
não algo, não resiste ao lançamento, por exemplo, de um novo smartphone ou
calçado, mesmo sabendo que para a produção dos mesmos até mão de obra
análoga a escrava é usada.
Em caso recente brasileiro, a marca varejista Zara, voltada para a classe A,
foi novamente autuada pelo Ministério do Trabalho e Emprego brasileiro por
descumprir o Termo de Ajustamento de Conduta, firmado em 2011 para corrigir as
condições degradantes que caracterizavam trabalho escravo – especialmente de
bolivianos – na cadeia produtiva da empresa, mas também prejudicando mais de 7
242

mil trabalhadores pelas irregularidades com fornecedores, além do aumento nos


casos de acidentes de trabalho (MACIEL, 2015).
De modo semelhante, mas na vizinha nação Argentina, as marcas de
prestígio nacional Awada e Cheeky também foram acusadas de terceirizar sua
produção em oficinas clandestinas com trabalho escravo, igualmente de maioria
bolivianos. O fato tomou proporções de escândalo devido a essas empresas
pertencerem à família da primeira dama do país – a empresária Juliana Awada. O
presidente da Argentina, Maurício Macri, se limitou a comentar que “diante da falta
de trabalho, em muitos casos combinada com a imigração ilegal, existe gente que
abusa” (FIGUEIREDO, 2015). O fato mais surpreendente (e recente) é que os
envolvidos foram absolvidos pelo juiz Guillermo Montenegro, em um de seus últimos
despachos antes de ser nomeado Ministro da Justiça e Segurança do governo Macri
(LARRAQUY, 2015).
Um reality show produzido em 2014 tentou apresentar essa realidade
velada: Sweetshop188 – Deadly Fashion mostra três jovens noruegueses, blogueiros
de moda, levados ao Camboja – polo da indústria têxtil, onde são produzidas grande
parte das roupas vendidas na Noruega – para conhecer e experimentar viver sob as
mesmas condições que os trabalhadores dessa indústria.
Figura 102 Montagem sobre cenas do documentário Sweetshop – Deadly Fashion

(Fonte: sítio Coisas de Danny Hellen, 2015)

188
Sweatshop ou sweat factory – literalmente loja do suor ou fábrica do suor – é uma designação
pejorativa a uma fábrica ou oficina, especialmente na indústria do vestuário, onde os empregados
trabalham em condições precárias, para padrões brasileiros, seriam análogos à escravidão.
243

Já taiwanesa Foxconn, maior fabricante de componentes eletrônicos do


mundo, que produz todos os produtos Apple, bem como componentes para outras
gigantes como Intel, Dell, HP, Sony, Nintendo e Microsoft, já foi noticiada por
submeter seus funcionários a condições terríveis de trabalho, chamando a atenção
mundial pelos vários suicídios destes (GREENE, 2012). Inclusive foi noticiado o
protesto de 150 funcionários, que ameaçaram saltar da cobertura de uma das
fábricas, em um suicídio coletivo (JULIBONI, 2012). Mesmo sem sofrer nenhum tipo
de sanção ou retaliação, a empresa resolveu investir em solucionar esses
problemas: suas fábricas agora possuem telas de prevenção ao suicídio por salto. E
o que dizer sobre a mãe que, ao comprar para sua filha um brinquedo made in
China, como quase todos os são, encontrou meticulosamente escondida uma carta
com pedido de socorro, escrita por um funcionário da fabricante, denunciando as
péssimas condições de trabalho (JIANG, 2013).

Figura 103 Reportagem da revista Wired sobre as condições de trabalho nas fábricas da Foxconn

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios: Cnet.com; Archive Wired.com)

Mas não é só com chineses e bolivianos que ocorrem estes abusos. Na


Suíça, o verdingkinder, ou “crianças sob contrato”, foi uma prática comum realizada
desde 1850 que encontrou seu fim apenas em 1981. Nela, o governo retirou de
modo institucionalizado e legalmente, centenas de milhares de crianças de seus
pais, sob o pretexto de serem pobres e não terem condições de cuidar propriamente
de seus filhos. Apenas em um único ano da década de 1930, foram retiradas 30 mil
crianças. Esses meninos e meninas eram vendidos para fazendas e fábricas, como
244

mão de obra barata, onde trabalhavam propensos a toda forma de abuso, além das
condições já precárias de uma vida de escravidão. De forma oficial, nunca fora
decretada o fim dessa prática, que naturalmente começou a perder força a partir das
décadas de 1960 e 1970, especialmente devido a mecanização, tanto de fazendas
quanto de fábricas (PURI, 2014).
Figura 104 O verdingkinder ou “crianças sob contrato” suíço

(Fonte: sítio BBC.com, 2014)

6.3. Considerações sobre o arcaísmo fascista

Ainda assim, são inúmeros os fatores necessários para que um governo


totalitário, portanto nos moldes do Nazismo e do Stalinismo, possa ocorrer,
especialmente por ser um objetivo demasiadamente ambicioso. Mas é sabido que
em tempos de crise, ideologias populistas e nacionalistas afloram com força, como
apresentado no capítulo 1 por Arendt (2012) e Pinsky (2013) em referência ao pós
Primeira Guerra Mundial na Europa. Movimento semelhante pode ser percebido
especialmente após a crise financeira de 2008, mas que atingiu um marco digno de
nota a partir do ano de 2014, tanto na Europa quanto no Brasil.
No ano de 2014 se mostrou notável o avanço da extrema direita na União
Europeia, mais especificamente tendo pela primeira vez no Parlamento Europeu
representações de partidos com formação fascista ou neonazista. São partidos que
245

abertamente se definem como ultra-nacionalistas, racistas e xenófobos, contrários


ao integrismo dos seus países à União Europeia. Causado por diversos fatores, os
espaços para estas dinâmicas eleitorais só foram possíveis devido a brecha deixada
por níveis altíssimos de abstenção por toda a Europa, reflexo de uma apatia em
relação à política e a conjuntura econômica atual. Esses partidos espalhados por
todo continente, vem crescendo em popularidade e poder. Partidos como o
Liberdade da Holanda (anti-islâmico e imigração em geral, além de anti-União
Europeia); o Amanhecer Dourado da Grécia (fundado por um admirador de Adolf
Hitler que já negou publicamente o extermínio dos judeus); o Nacional-Democrata da
Alemanha (abertamente xenófobo, antissemita e antidemocrático) 189; bem como o
Partido Jobbik da Hungria (que surpreende por ser constituído basicamente por
homens jovens de classe média alta, dos quais muitos universitários).
É pertinente perceber que esse posicionamento ocorre concomitantemente
ao aumento do fluxo migratório para a Europa, especialmente decorrente das
guerras civis no norte da África e Oriente Médio, inicialmente provocadas pelo
movimento conhecido como Primavera Árabe. Curiosamente, fazendo um paralelo
direto com a ficção de Jogos Vorazes, observa-se que um dos maiores campos de
refugiados atuais – o Za’Atari, localizado na Jordânia – se apresenta dividido em 12
distritos nada ficcionais (PEROSA, 2016). Se essas ideologias não são mais sobre
alemães que defendem o branqueamento e a supremacia de uma raça em
detrimento de outras, ainda assim elas continuam sendo sobre a supremacia de um
grupo, seja econômico, religioso, de gênero, de raça, de etnias ou de orientação
sexual.
Em se tratando do Brasil, do ano de 2014 para cá, uma movimentação
semelhante pode ser notada durante o inflamado posicionamento dicotômico que
resumiu a nação em “coxinhas ou petralhas”, na existência de diversas
manifestações de uma massa unida pelo descontentamento, mas precária na
coesão das ideologias presentes – nesse ponto, abrindo assustadoras brechas para
aqueles que pedem a volta da ditadura militar, daqueles que querem a normalização
do como é constituída a família brasileira, do desrespeito aos praticantes das

189
Em 2008, o partido Nacional-Democrata (Nationaldemokratische Partei Deutschlands – NPD)
publicou o artigo “A África conquista a Casa Branca”, a respeito “da eleição de Barack Obama,
insistindo que uma América não branca constituía ‘uma declaração de guerra contra todos os povos
que acreditam em uma ordem social que cresceu organicamente baseada na língua e na cultura,
história e herança para ser a essência da humanidade’” (LACERDA, 2012, p. 134).
246

diversas religiões constituídas, ou de uma ojeriza contra uma onda migratória –


sendo o alvo da vez, os haitianos.
Figura 105 Manifestações em 2014, pedindo intervenção militar

(Fonte: Elaborado pelo autor, com imagens dos sítios: Rádio Guaíba; Diário Regional)

Indissociável a tudo isto, está o público fruidor da obra – uma juventude já


distante dos acontecimentos originários da sociedade nazista, muitas vezes apática
às questões sociais e políticas contemporâneas, a não ser relativo a questões
consumistas – pois para muitos, se sentir cidadão é ser cada vez mais consumidor.
Esse trabalho não busca demonstrar se esses jovens poderiam ser partidários de
um regime nos moldes do nazismo, mesmo com todo o conhecimento histórico, ao
botar em prova o vazio de identidade com o qual a juventude sofre, o consumismo
desenfreado, a ausência de objetivos coletivos e o desinteresse pela política. Salvo
outrossim, a existência de uma apropriação e transposição para o mundo real de
alguns elementos simbólicos, pelos admiradores de Jogos Vorazes.
Acredita-se que a obra faz uma forte crítica à sociedade atual,
principalmente sobre o consumo exacerbado, deturpação de valores, a ignorância
passiva e a superficialidade das relações humanas. A atual cultura globalizada pelo
capitalismo se pauta no ter/consumir. Nessa sociedade em que circula uma quantia
de informação sem precedentes, há tantas formas e atribuições de se manter
ocupado – em sua individualidade – que é comum as pessoas se tornarem alheias,
frívolas em seu relacionar frente ao bem-estar do outro, do coletivo. A obra enquanto
livro, surge como uma crítica direta a esses valores, mas a partir do momento em
que Jogos Vorazes se tornou filme, o que era objeto de crítica se tornou
"combustível" para ações de merchandising, corroborando com o que buscava
criticar.
247

O que cabe a este trabalho, após tudo que fora apresentado, é a inegável
existência de remediações presentes na obra Jogos Vorazes, tanto das diversas
relações intermidiáticas envolvendo sua mídia original – a literária – quanto para a
cinematográfica. De igual modo é possível perceber a ambiência de elementos da
estética totalitária nazista, também ressignificados quando atualizados para a
contemporaneidade.
Mas também cabe levantar o questionamento sobre a verdadeira
importância do consumo dos produtos derivados dessa obra, diante da ainda
enorme e absurda desigualdade e miserabilidade que persiste mundialmente. Bem
como um alerta perante o perigo de ideologias extremas, que espreitam em épocas
de crise.
Ao concluir este trabalho, depois dessa longa trajetória em busca de
respostas a partir da proposta inicial, entende-se que este trabalho está longe de
esgotar a obra Jogas Vorazes, rica em simbolismos, servindo como escopo inicial
para que hajam futuras pesquisas neste universo tão rico, mas até agora pouco
explorado.
E sendo a intermidialidade o estudo do entre-lugar, reflete a bagagem de
vida do autor desta pesquisa, que circula entre a cidade e a fazenda, do interior à
grande capital, da lida no campo a lida empresarial – e agora, entre a academia e o
mercado.
248

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução Iraci D. Poleti. São Paulo:


Boitempo, 2004. 144 p.

AP, Associated Press. Thai military to crack down on rebels hunger games salute.
New York Post, New York, 3 jun. 2014. Disponível em: <http://nypost.com/
2014/06/03/thai-military-to-crack-down-on-rebels-hunger-games-salute>. Acesso em:
22 jun. 2014.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo,


totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
827 p.

ARROW, V. The Panem Companion: An Unofficial Guide to Suzanne Collins' Hunger


Games. Dallas: BenBella Books, 2012. 224 p.

BADEN-POWELL, Robert. Scouting for Boys: A handbook for instruction in good


citizenship through woodcraft (Livro Eletrônico). 1956. 223 p. Disponível em:
<http://www.thedump.scoutscan.com/ebooks.html>. Acesso em: 12 fev. 2016.

BARSAM, Richard Meran. Filmguide to Triumph of the Will. London: Indiana


University Press, 1975. 82 p.

BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Tradução Renato


Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. 104 p.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. São


Paulo: Ideafixa, 2008. 21 p. Disponível em: <http://ideafixa.com/wp-content/uploads/
2008/10/texto_wbenjamim_a_arte_na_era_da_reprodutibilidade_tecnica.pdf>. Acesso
em: 17 ago. 2014.

BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding New Media.


Cambridge, MA: The MIT Press, 2000. 312 p.

BOOTH, Paul. Game Play: Paratextuality in contemporary Board Games. New York:
Bloomsbury, 2015. 264 p.

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte dos regimes totalitários do século XX:


Rússia e Alemanha. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.

BOUTINET, Jean-Pierre. Antropologia do projeto. Tradução Patrícia Chitonni


Ramos. Porto Alegre: Artmed, 2002. 318 p.

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2012.
215 p.
249

CALERO, Jacques; BIANCHI, Sebastian. Luftwaffe war and qualification badges.


Wehrmacht-Awards, 2007. Disponível em: <http://wehrmacht-awards.com/war_
badges/luftwaffe/radio_operator.htm>. Acesso em: 17 abr. 2014.

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 1976.


120 p.

CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. São Paulo: Blucher,


2008. 276 p.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Diccionario de los símbolos. Traducción


Manuel Silvar y Arturo Rodríguez. Barcelona: Herder Editorial, 1986. 1110 p.

CLAEYS, Gregory. Utopia: A história de uma ideia. Tradução Pedro Barros. São
Paulo: Sesc SP, 2013. 224 p.

CLÜVER, Claus. Intermedialidade. PÓS, Revista do Programa de Pós-graduação em


Artes da EBA/UFMG, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 8-23, nov. 2011. Disponível em:
<http://www.eba.ufmg.br/revistapos/index.php/pos/article/view/16/16>. Acesso em: 13
jun. 2015.

___________. Intermediality and Interarts Studies. In: ARVIDSON, Jens et al. (Org.).
Changing Borders: Contemporary Positions in Intermediality. Lund, Sweden:
Intermedia Studies Press, 2007. p. 19-37.

___________. Inter textus / inter artes / inter media. Tradução Elcio Loureiro
Cornelsen. Aletria, Revista de Estudos de Literatura, UFMG, v. 14, p. 11-41, jul./dez.
2006. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/
viewFile/1357/1454>. Acesso em: 26 de abril 2015.

COLLINS, Suzanne. Jogos Vorazes. Tradução Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro:


Rocco Jovens Leitores, 2010. 400 p.

___________. The Hunger Games. New York: Scholastic Press, 2008. 384 p.

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas.
Tradução Cristiana Coimbra. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. 529 p.

CRARY, Jonathan. Técnicas do Observador: visão e modernidade no século XIX.


Tradução Verrah Chamma. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. 166 p.

CROOK, Tim. Radio drama: theory and practice. New York: Routledge, 1999. 312 p.

DAVIS, Brian Leigh. German uniforms of the Third Reich 1933-1945. England:
Blandford Press, 1980. 224 p.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu.


Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. 238 p.

DE MASI, Domenico. O Ócio Criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. 328 p.


250

DETUE, Frédérik. À l’heure fatale de l’art, la critique du kitsch au XX siècle. Texto !,


v. XVII, n. 1-2, 2012.

DURING, Elie. O que é retrofuturismo? Introdução aos futuros virtuais. In: NOVAES,
Adauto (Org.). Mutações: o futuro não é mais o que era. São Paulo: Edições Sesc
SP, 2013. p. 211-231.

EBERWEIN, Pieter. Nietzsches Schreibkugel: Ein Blick auf Nietzsches


Schreibmaschinenzeit durch die Restauration der Schreibkugel (Livro Eletrônico).
Deutschland: Typoscript Verlag, 2005. 267 p. Disponível em: <http://www.malling-
hansen.org/fileadmin/schreibkugel/schreibkugel01.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2016.

EGAN, Kate. The Hunger Games: The Official Illustrated Movie Companion. New
York: Scholastic Press, 2012. 128 p.

FARIA, Ernesto (Org.). Dicionário Escolar Latino-Português. Rio de Janeiro: MEC,


1962. 1077 p.

FELINTO, Erik. Materialidades da Comunicação: por um novo lugar da matéria na


Teoria da Comunicação. Ciberlegenda, Rio de Janeiro, v. 2, n. 5, 2001. Disponível
em: <http://www.ciberlegenda.uff.br/index.php/revista/article/view/308/190>. Acesso
em: 28 abr. 2015.

FELINTO, Erick; ANDRADE, Vinicius. A vida dos objetos: um diálogo com o


pensamento da materialidade da comunicação. Contemporanea, Revista de
Comunicação e Cultura, Salvador, v. 3, n. 1, jan./jun. 2005. p. 75-94. Disponível em:
<http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom>. Acesso em: 28
ago. 2014.

FIGUEIREDO, Janaína. ONG denuncia escravidão em Buenos Aires. O Globo. Rio


de Janeiro, 10 mai. 2015. Seção Mundo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/
mundo/ong-denuncia-escravidao-em-buenos-aires-16099436#ixzz49G86tF00>.
Acesso em: 15 mai. 2015.

FLANAGAN, Mary. Critical Play: Radical Game Design. Cambridge, MA: The MIT
Press, 2009. 368 p.

FLUSSER, Vilém. Kommunikologie. Frankfurt: Fischer Taschenbuch, 1998. 368 p.

___________. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação.


Organização Rafael Cardoso. Tradução Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify,
2007. 224 p.

___________. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São


Paulo: Annablume, 2008. 210 p.

FOLLOWS, Stephen. How many people work on a Hollywood film?. Stephen Follows
Film Data and Education, London, 24 fev. 2014. Disponível em:
<https://stephenfollows.com/how-many-people-work-on-a-hollywood-film>. Acesso
em: 27 jan. 2016.
251

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina Galvão.


São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. 269 p.

FRANKEL, Valerie Estelle. Katniss the Cattail: An Unauthorized Guide to Names


and Symbols in Suzanne Collins' The Hunger Games. California: Smashwords
Edition, 2012. 104 p.

___________. The Many Faces of Katniss Everdeen: Exploring the Heroine of the
Hunger Games. Hamden, CT: Zossima Press, 2013. 178 p.

GIL, Inês. A atmosfera como figura fílmica. Actas do III Sopcom, VI Lusocom e II
Ibérico, v. 1, 2005. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/gil-ines-a-atmosfera-
como-figura-filmica.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014.

GLAMOUR. Arco, luta e força: o verdadeiro “Jogos Vorazes” existe! Revista


Glamour, São Paulo, 28 nov. 2013. Seção Lifestyle. Disponível em:
<http://revistaglamour.globo.com/Lifestyle/noticia/2013/11/arco-luta-e-forca-o-
verdadeiro-jogos-vorazes-existe.html>. Acesso em: 20 jun. 2014.

GOLDING, William. O Senhor das Moscas. Tradução Sérgio Flaksman. Rio de


Janeiro: Alfaguara, 2014. 224 p.

GREENE, Jay. Riots, suicides, and other issues in Foxconn's iPhone factories. Cnet.
Seattle, 25 set. 2012. Disponível em: <http://www.cnet.com/news/riots-suicides-and-
other-issues-in-foxconns-iphone-factories>. Acesso em: 16 mar. 2015.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Corpo e forma: ensaios para uma crítica não
hermenêutica. Tradução Heloisa Toller Gomes, João Cezar de Castro Rocha,
Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: UERJ, 1998a. 175 p.

___________. Depois de 1945: Latência como origem do presente. Tradução Ana


Isabel Soares. São Paulo: Editora Unesp, 2014. 357 p.

___________. Modernização dos sentidos. Tradução Lawrence Flores Pereira. São


Paulo: Editora 34, 1998b. 320 p.

___________. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir.


Tradução Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010. 206 p.

___________. Why Intermediality — if at all? Intermédialités: Histoire et théorie


des arts, des lettres et des techniques, Montreal, n. 2, 2003. p. 173-178. Disponível
em: <http://id.erudit.org/iderudit/1005464ar>. Acesso em: 27 março 2015.

GYŐRI, Zsolt. Waves of Memory: Cinema, Trauerarbeit and the Third Reich. Acta
Universitatis Sapientiae, Film and Media Studies: The Journal of Sapientia
Hungarian University of Transylvania. Poland: De Gruyter Open, v. 3, 2010. p. 169-
181. Disponível em: <http://www.acta.sapientia.ro/acta-film/C3/film3-12.pdf>. Acesso
em: 27 abril 2015.
252

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo – parte 1. Tradução Marcia Sá Cavalcante


Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. 325 p.

HELLER, Steven. The Swastika: a symbol beyond redemption? New York: Allworth
Press. 2008. 184 p.

HENTHORNE, Tom. Approaching the Hunger Games Trilogy: a literary and


cultural analysis. Jefferson, NC: McFarland & Company Inc., 2012. 206 p.

HIGGINS, Dick. Intermídia. In: DINIZ, Thaïs Flores Nogueira; VIEIRA, André Soares
(Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo
Horizonte: Rona Editora, FALE/UFMG, 2012. p. 41-50.

HOOD, Grace. More Girls Target Archery, Inspired By 'The Hunger Games'. National
Public Radio, 27 nov. 2013. Disponível em: <http://www.npr.org/2013/11/27/2473794
98/more-girls-target-archery-inspired-by-the-hunger-games>. Acesso em: 24 jun.
2014.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Objetiva,


2009. CD-ROM.

HOWARD, Pamela. O que é cenografia? Tradução: Carlos Szlak. São Paulo:


Edições Sesc SP, 2015. 280 p.

HSU, Tiffany. Interest in archery shoots up with 'Hunger Games' mania. Los Angeles
Times, 21 mar. 2012. Disponível em: <http://articles.latimes.com/2012/mar/21/
business/la-fi-archery-hunger-20120322>. Acesso em: 21 jun. 2014.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradução João
Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2010. 243 p.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Tradução Lino Vallandro, Vidal Serrano.
São Paulo: Globo, 2014. 314 p.

IMDB. Triunfo da Vontade, 1935. Internet Movie Database. Disponível em:


<http://www.imdb.com/title/tt0025913/?ref_=nv_sr_1>. Acesso em: 17 jan. 2016.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Tradução Susana Alexandria. São


Paulo: Aleph, 2009. 428 p.

JIANG, Steven. Chinese labor camp inmate tells of true horror of Halloween 'SOS'.
CNN, Asia, 7 nov. 2013. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/11/06/world/
asia/china-labor-camp-halloween-sos>. Acesso em: 16 mar. 2015.

JOGOS vorazes (The Hunger Games). Direção Gary Ross. EUA: Lionsgate, 2012. 1
Blu-Ray (142 min.), son., color., leg.

JULIBONI, Márcio. Foxconn enfrenta ameaça de suicídio coletivo na China.


Exame.com, São Paulo, 11 jan. 2012. Seção Negócios. Disponível em:
253

<http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/foxconn-enfrenta-ameaca-de-suicidio-
coletivo-na-china>. Acesso em: 16 mar. 2015.

JUSTINO, Luciano Barbosa. Literatura de multidão e intermidialidade: ensaios


sobre ler e escrever o presente (Livro Eletrônico). Campina Grande: EDUEPB, 2015.
256 p. Disponível em: < http://www.uepb.edu.br/ebooks/>. Acesso em: 3 dez. 2015.

KELLNER, Douglas. A Cultura da mídia - estudos culturais: identidade e política


entre o moderno e o pós-moderno. Tradução Ivone Castilho Benedetti. Bauru, SP:
EDUSC, 2001. 454 p.

KIRK, Robin. Dark materials in young adult fiction. Salon, San Francisco, 14 abr.
2011. Disponível em: <http://open.salon.com/blog/robinkirk/2011/04/14/dark_
materials_in_young_adult_fiction>. Acesso em: 27 jul. 2014.

KOTLER, Philip; KELLER, Kevin Lane. Administração de marketing: a bíblia do


marketing. Tradução Brasil Ramos Fernandes, Cláudia Freire, Mônica Rosenberg.
São Paulo: Pearson/Prentice Hall, 2006. 752 p.

LACERDA, Gabriel. Nazismo, Cinema e Direito. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier,


2012. 154 p.

LARRAQUY, Marcelo. Juliana Awada: la nueva Primera Dama, educada para sonreír.
Clarin, Buenos Aires, 22 nov. 2015. Disponível em: <http://www.clarin.com/
zona/Juliana-Awada-Primera-Dama-sonreir_0_1472253214.html>. Acesso em: 20
abr. 2016.

LEE, Marissa. Media Takes Note of “The Hunger Games” Casting.


Racebending.com, 4 mar. 2011. Disponível em: <http://www.racebending.com/v4/
featured/media-takes-note-of-the-hunger-games-casting>. Acesso em: 15 mar. 2015.

LEHTONEN, Mikko. On No Man’s Land: Theses on Intermediality. Translation


Aijaleena Ahonen, Kris Clarke. Nordicom Review 1/2001, The Journal of University
of Gothenburg. Sweden: Ulla Carlsson, 1 abr. 2001. p. 71-84. Disponível em:
<http://www.nordicom.gu.se/sites/default/files/kapitel-pdf/28_lehtonen.pdf>. Acesso
em: 24 abril 2015.

LENHARO, Alcir. Nazismo: O triunfo da vontade. São Paulo: Ática, 2006. 94 p.

L’EXPRES. Entrevista com Marshall McLuhan. Tradução Débora Fleck. Revista


da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação |
E-compós, Brasília, v.14, n.3, set./dez. 2011. p. 01-14. Disponível em:
<http://compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/view/845/609>. Acesso em: 24
mai. 2015.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Tradução Dorothée de
Bruchard. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 184 p.
254

LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso


tempo e da nossa cultura. Tradução Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
207 p.

LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução Ciro


Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005. 200 p.

LYCRA apresenta tendências Moda Praia Verão 2015. Lycra, 20 dez. 2013.
Disponível em: <http://www.lycra.com/la_po/webpage.aspx?id=609&contentid=1917
&cat=0&web=20&pg=1>. Acesso em: 22 jun. 2014.

MACIEL, Camila. Zara é autuada por não cumprir acordo para acabar com trabalho
escravo. EBC Agência Brasil, Brasília, 11 mai. 2015. Seção Direitos Humanos.
Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-05/
zara-e-autuada-por-nao-cumprir-acordo-para-acabar-com-trabalho>. Acesso em: 11
mai. 2015.

MACKEY, Robert. Thai Protesters Flash ‘Hunger Games’ Salute to Register Quiet
Dissent. The New York Times, New York, 2 jun. 2014. Disponível em: <http://www.
nytimes.com/2014/06/03/world/asia/thai-protesters-flash-hunger-games-salute-to-
register-quiet-dissent.html>. Acesso em: 22 junho 2014.

MARCONDES FILHO, Ciro (Org.). Dicionário da comunicação. São Paulo: Paulus,


2014. 450 p.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução Luis Claudio de


Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 119 p.

MATEUS, Samuel. Reality-Show: uma análise de género. Revista Comunicando, v.


1, n. 1, dez. 2012, p. 235-244. Disponível em: <http://www.revistacomunicando.
sopcom.pt>. Acesso em: 13 fev. 2016.

MCINTOSH, Cassandra. 4 controversial Hunger Games marketing choices; is


Lionsgate playing with fire? Exponential Advertising Intelligence, 18 dez. 2013.
Disponível em: <http://blog.exponential.com/2013/12/18/4-controversial-hunger-
games-marketing-choices-is-lionsgate-playing-with-fire>. Acesso em: 20 jun. 2014.

McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.


Tradução Décio Pignatari. São Paulo: Editora Cultrix, 2002. 408 p.

___________. The medium is the massage. Corte Madera, CA: Gingko Press,
2001. 160 p.

MEGGS, Philip B.; PURVIS, Alston W. História do design gráfico. Tradução Cid
Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2009. 720 p.

MENDES, João Maria. Introdução às intermedialidades. CIAC: Centro de


Investigação em Artes e Comunicação. Portugal: Universidade do Algarve, 2011.
Disponível em: <http://crossmediaplatform.ciac.pt/downloads/multimedia/texto/30/
anexos/intermedialidades.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2015.
255

MORE, Thomas. Utopia. Tradução Anah de Melo Franco. Brasília: Editora UnB,
FUNAG/IPRI, 2004. 208 p.

MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário: ensaios de antropologia.


Tradução António-Pedro Vasconcelos. Lisboa: Moraes Editores, 1980. 203 p.

MPAA. Theatrical Market Statistics Report 2012. Motion Picture Association of


America, Washington, mar. 2013. 25 p. Disponível em: <http://www.mpaa.org/wp-
content/uploads/2014/03/2012-Theatrical-Market-Statistics-Report.pdf>. Acesso em:
27 jun. 2014

MÜLLER, Adalberto. Linhas imaginárias: poesia, mídia, cinema. Porto Alegre:


Sulina, 2012. 231 p.

___________. Ambiências afetivas em Amor à Flor da Pele de W. Kar Wai. Ilha do


Desterro A Journal of English Language, Literatures in English and Cultural
Studies, Florianópolis, n. 65, p. 63-71, dez. 2013. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/desterro/article/view/2175-8026.2013n65p63/26
006>. Acesso em: 23 Abr. 2014.

MÜLLER, Jurgen. Intermidialidade como Pesquisa. In: DINIZ, Thaïs Flores Nogueira;
VIEIRA, André Soares (Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da
arte contemporânea. Belo Horizonte: Rona Editora, FALE/UFMG, 2012. p. 75-95.

NEUMEIER, Marty. A Empresa Orientada pelo Design. Tradução Felix José


Nonenmacher. Porto Alegre: Bookman, 2010. 194 p.

NIELSEN tops of 2012 entertainment. Nielsen, US, 12 dez. 2012. Disponível em:
<http://www.nielsen.com/us/en/insights/news/2012/nielsen-tops-of-2012-
entertainment.html>. Acesso em: 22 jun. 2014.

O DITADOR (The Dictator). EUA: Paramount, 2012. 1 DVD (83 min.), son., color., leg.

OECD. OECD Factbook 2014: Economic, Environmental and Social Statistics. Paris:
OECD Publishing, 6 mai. 2014. 260 p. Disponível em: <http://www.oecd-ilibrary.org/
docserver/download/3013081e.pdf?expires=1464397840&id=id&accname=guest&che
cksum=CE91B709840D908D31F3E4E355ACB1C9>. Acesso em 23 junho 2014.

O GRANDE Ditador (The Great Dictator). Direção Charles Chaplin. EUA: Continental,
1940. 1 DVD (128 min.), son., pb., leg.

O'HARE, Sean. Valley of poverty: The desperate pictures of rural America that show
1930s-style depression actually lasted until the SIXTIES. Mail Online, London, 31 jan.
2013. Disponível em: <http://www.dailymail.co.uk/news/article-2271185/Desperate-
pictures-rural-America-1930s-style-depression-actually-lasted-SIXTIES.html>. Acesso
em: 7 mar. 2016.

OLIMPÍADAS e Mocidade Olímpica (Olympia). Direção Leni Riefenstahl. Alemanha:


OlympiFilm GmbH, 1936. Parte 1: Festa das Nações (Fest der Völker). Parte 2:
256

Festa da beleza (Fest der Schönheit). Streaming (204 min.), son., pb., leg. Disponível
em: <http://youtu.be/nzmIvJMjRWE>. Acesso em: 20 de mar. 2014.

OLIVEIRA, Newton Ramos de. Comunicação num mundo distópico: small talk –
conversas vazias. In: DURÃO, Fabio Akcelrud; ZUIN, Antônio; VAZ, Alexandre
Fernadez (Org.). A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 125-138.

OLLIVIER, Bruno. As ciências da comunicação: teorias e aquisições. Tradução


Gian Bruno Grosso. São Paulo: Senac SP, 2012. 384 p.

OOSTERLING, Henk. Sens(a)ble Intermediality and Interesse: towards an ontology of


the in-between. Intermédialités: histoire et théorie des arts, des lettres et des
techniques, Montreal, n. 1, 2003. p. 29-46. Disponível em: <http://id.erudit.org/
iderudit/1005443ar>. Acesso em: 26 abril 2015.

ORWELL, George. 1984. Tradução Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. 414 p.

___________. A Revolução dos Bichos. Tradução Heitor Aquino Ferreira. São


Paulo: Companhia das Letras, 2007. 147 p.

OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social do


século XX. Consultoria Ernest Gellner, Robert Nisbet, Alain Touraine. Tradução
Eduardo Francisco Alves, Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. 970 p.

OXFORD English Dictionary: The definitive record of the English language. OED
Online. Inglaterra: Oxford University Press, 2015. Disponível em: <http://www.oed.
com>. Acesso em: 13 out. 2015.

PAECH, Joachim. Intermediate images. Acta Universitatis Sapientiae, Film and


Media Studies: The Journal of Sapientia Hungarian University of Transylvania.
Poland: De Gruyter Open, v. 9, 2014. p. 31-49. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.
1515/ausfm-2015-0002>. Acesso em: 27 abril 2015.

___________. The Intermediality of Film. Acta Universitatis Sapientiae, Film and


Media Studies: The Journal of Sapientia Hungarian University of Transylvania.
Poland: De Gruyter Open, v. 4, 2011. p. 07-21. Disponível em:
<http://www.acta.sapientia.ro/acta-film/C4/Film4-1.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2014.

PARENTE, André. Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do


dispositivo. In PENAFRIA, Manuela; MARTINS, Índia Mara (Org.). Estéticas do
Digital: Cinema e Tecnologia. Portugal: LabCom, 2007. p. 3-31.

PEREIRA, Vinícius Andrade. Reflexões sobre as materialidades dos meios:


embodiment, afetividade e sensorialidade nas dinâmicas de comunicação das novas
mídias. Revista Fronteiras - estudos midiáticos, v. 8, n. 2, 2006. p. 93-101.
Disponível em: <http://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/6123/
3298>. Acesso em: 23 abr. 2014.
257

PEROSA, Teresa. Vidas intermitentes: como vivem os refugiados sírios no maior


campo do Oriente Médio. Época. São Paulo, 04 mai. 2016. Disponível em:
<http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/05/vidas-intermitentes-como-vivem-os-
refugiados-sirios-no-maior-campo-do-oriente-medio.html>. Acesso em: 05 mai. 2016.

PERUZZOLO, Adair Caetano. A comunicação como encontro. Bauru, SP: EDUSC,


2006. 370 p.

PETHŐ, Ágnes. Intermediality in Film: A Historiography of Methodologies. Acta


Universitatis Sapientiae, Film and Media Studies: The Journal of Sapientia
Hungarian University of Transylvania. Poland: De Gruyter Open, v. 2, 2010. p. 39-72.
Disponível em: <http://www.acta.sapientia.ro/acta-film/C2/film2-3.pdf>. Acesso em: 27
abril 2015.

PINTO NETO, Moyses. Traduzir a morte de Deus: a linguagem como transcrição. In


SOUZA, Ricardo Timm et al. (Org.). Literatura e Psicanálise: encontros
contemporâneos. Porto Alegre: Dublinense, 2012. p. 399-421.

PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Faces do fanatismo. São Paulo:
Contexto, 2013. 288 p.

PURI, Kavita. Switzerland's shame: The children used as cheap farm labour. BBC
News Magazine, 29 out. 2014. Disponível em: <http://www.bbc.com/news/magazine-
29765623>. Acesso em: 10 fev. 2015.

RAJEWSKY, Irina O. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras


midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, Thaïs Flores
Nogueira; VIEIRA, André Soares (Org.). Intermidialidade e estudos interartes:
desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: Rona Editora, FALE/UFMG, 2012.
p. 51-73.

___________. Intermediality, Intertextuality, and Remediation: A Literary Perspective


on Intermediality. In: Intermédialités: histoire et théorie des arts, des lettres et
des techniques, Montreal, n. 6, 2005. p. 43-64. Disponível em:
<http://id.erudit.org/iderudit/1005505ar>. Acesso em: 28 abril 2015.

ROGERS, Kara (Org.). The 100 most influential scientists of all time: The
Britannica guide to the world’s most influential people. New York: Rosen Educational
Services/Britannica Educational Publishing, 2010. 360 p.

ROSENBERG, Amy S. Artist behind 'The Hunger Games'. Philly.com, Philadelphia,


20 mar. 2012. Disponível em: <http://articles.philly.com/2012-03-20/entertainment/
31215303_1_hunger-games-mockingjay-tim-o-brien>. Acesso em: 13 abr. 2015.

ROSENTHAL, Bernice Glatzer. New Myth, New World: From Nietzsche to Stalinism.
Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2002. 464 p.

RSP. The Hunger Games: An opulent city, a girl on fire and some ravenous “mutts”.
Rising Sun Pictures, Austrália, 2012. Disponível em: <https://rsp.com.au/the-hunger-
games-2>. Acesso em: 26 mar. 2015.
258

RTP. Metade dos jovens alemães não consideram o nazismo uma ditadura. RTP
Notícias, Portugal, 27 jun. 2012. Seção Mundo. Disponível em: <http://www.rtp.pt/
noticias/index.php?article=565927&tm=7&layout=121&visual=49>. Acesso em: 22
nov. 2014.

SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. Tradução Fábio Ribeiro. Petrópolis: Vozes,


2014. 261 p.

SCHRÖTER, Jens. Discourses and Models of Intermediality. CLCWeb: Comparative


Literature and Culture. West Lafayette: Purdue University Press, v. 13, e. 3, 2011.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.7771/1481-4374.1790>. Acesso em: 9 dez. 2014.

___________. The Politics of Intermediality. Acta Universitatis Sapientiae, Film and


Media Studies: The Journal of Sapientia Hungarian University of Transylvania.
Poland: De Gruyter Open, v. 2, 2010. p. 107-124. Disponível em:
<http://www.acta.sapientia.ro/acta-film/C2/film2-6.pdf>. Acesso em: 27 abril 2015.

SILVA, Juremir Machado da. Depois do espetáculo: reflexões sobre a tese 4 de Guy
Debord. In: GUTFREIND, Cristiane Freitas; SILVA, Juremir Machado da (Org.). Guy
Debord: antes e depois do espetáculo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. p. 31-42.

SIM, David. Hong Kong: Defiant protesters give Hunger Games' three-fingered salute
as police clear camp. International Business Times, London, 11 dez. 2014.
Disponível em: <http://www.ibtimes.co.uk/hong-kong-defiant-protesters-give-hunger-
games-three-fingered-salute-police-clear-camp-1479120>. Acesso em: 13 dez. 2014.

SINDITEXTIL. De Hitchcock a Jogos Vorazes o cinema inspira catálogos da Lycra.


Sinditextil-SP, São Paulo, 17 jan. 2014. Disponível em: <http://www.sinditextilsp.org.
br/index.php/materias/item/1205-de-hichtcock-a-jogos-vorazes-o-cinema-inspira-cat
%C3%A1logos-da-lycra>. Acesso em: 22 jun. 2014.

SONTAG, Susan. Under the Sign of Saturn. New York: Vintage Books, 1981. 206 p.

STONE, Susan. Jovens alemães desconhecem a história da Alemanha comunista.


DW.com, Bonn, 2009. Seção Alemanha. Disponível em: <http://dw.com/p/KLlh>.
Acesso em: 22 nov. 2014.

STOUT, Hilary; HARRIS, Elizabeth. Meninas têm novas heroínas e abandonam as


bonecas como brinquedo preferido. ZH Notícias, Porto Alegre, 29 mar. 2014.
Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/03/meninas-tem-
novas-heroinas-e-abandonam-as-bonecas-como-brinquedo-preferido-4460349.html>.
Acesso em: 21 jun. 2014.

STREHL, Pe. Fridolino José. Caminhos de Esperança: a trajetória da família Strehl


(um retrato da imigração alemã). Porto Alegre: Nova Prova, 1993. 97 p.

SWEATSHOP - Deadly Fashion. Direção Joakim Kleven. Noruegua: Aftenposten,


2014. Streaming (57 min.), son., cor., leg. Disponível em: <http://www.aftenposten.
no/webtv/#!/kategori/10514>. Acesso em: 22 jun. 2015.
259

TAKAMI, Koushun. Battle Royale. São Paulo: Globo, 2014. 664 p.

TERRA. Concurso de beleza online escolherá a "Miss Hitler 2014". Terra Networks,
São Paulo, 18 out. 2014. Seção Mundo. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/
mundo/europa/,0b52e1d064429410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html>. Acesso
em: 26 out. 2014.

TIMM, Octacilio B.; GONZALEZ, Eugenio (Org.). Album Ilustrado do Partido


Republicano Castilhista (Livro Eletrônico). Porto Alegre: Livraria Selbach, 1934. 880
p. CD-ROM.

THE HOLLYWOOD REPORTER. Hunger Games Exclusive. 10 fev. 2012. p. 48-53.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.


Tradução Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1998. 261 p.

TORTORA, Jackie. The Hunger Games Are Real. AFL-CIO Now, Washington, nov.
2013. Disponível em: <http://www.aflcio.org/Blog/Political-Action-Legislation/The-
Hunger-Games-Are-Real>. Acesso em 27 junho 2014.

TRIUNFO da Vontade (Triumph des Willens). Direção Leni Riefenstahl. Alemanha:


Reichspropagandaleitung der NSDAP, 1935. Streaming (114 min.), son., pb., leg.
Disponível em: <http://youtu.be/b0kwnLzFMls>. Acesso em: 17 de mar. 2014.

UN. The Millennium Development Goals Report 2014. United Nations, New York,
2014. Disponível em: <http://mdgs.un.org/unsd/mdg/Resources/Static/Products/
Progress2014/English2014.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2014.

USA ARCHERY. Archery Catching Fire Faster Than Ever Thanks To Pop Culture
Boost. Team USA, United States Olympic Committee, 19 nov. 2013. Disponível em:
<http://www.teamusa.org/News/2013/November/19/Archery-Catching-Fire-Faster-
Than-Ever-Thanks-To-Pop-Culture-Boost>. Acesso em: 21 jun. 2014.

VALBY, Karen. Team 'Hunger Games' talks: Author Suzanne Collins and director
Gary Ross on their allegiance to each other, and their actors – Exclusive.
Entertainment Weekly, New York, 7 abr. 2011. Disponível em: <http://www.ew.com/
article/2011/04/07/hunger-games-suzanne-collins-gary-ross-exclusive>. Acesso em:
28 jan. 2016

VEJA. 'Jogos Vorazes' assume a liderança na lista dos mais vendidos. Veja.com,
São Paulo, 29 mar. 2012. Seção Entretenimento. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/jogos-vorazes-lidera-lista-de-livros-mais-
vendidos-no-brasil>. Acesso em: 20 jun. 2014.

VERSTRAETE, Ginette. Intermedialities: A Brief Survey of Conceptual Key Issues.


Acta Universitatis Sapientiae, Film and Media Studies: The Journal of Sapientia
Hungarian University of Transylvania. Poland: De Gruyter Open, v. 2, 2010. p. 7-14.
Disponível em: <http://www.acta.sapientia.ro/acta-film/C2/film2-1.pdf>. Acesso em: 27
abr. 2015.
260

VILLAÇA, Nilza. Mixologias: comunicação e o consumo da cultura. São Paulo:


Estação das Letras e Cores, 2010.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores.


Tradução Ana Maria Machado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 301 p.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mortes matadas por arma de fogo: mapa da violência
2015. Brasília: Governo Federal/Unesco/Flacso Brasil, 2015. 105 p.

WEICHSELBAUM, Simone. Wings of love: ‘Hunger Games’ logo is brainchild of


Brooklyn couple. New York Daily News, New York, 12 abr. 2012. Disponível em:
<http://www.nydailynews.com/entertainment/tv-movies/wings-love-hunger-games-
logo-brainchild-brooklyn-couple-article-1.1060947>. Acesso em: 13 abr. 2015.

WISNIK, Guilherme. Projeto e destino. In NOVAES, Adauto (Org.). Mutações: o


novo espírito utópico. São Paulo: Sesc SP, 2015. p. 85-88.

ŽIŽEK, Slavoj. Alguém disse totalitarismo?: cinco intervenções no (mau) uso de


uma noção. Tradução Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2013. 184 p.
261

BIBLIOGRAFIA

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia: histórias de deuses e heróis.


Tradução David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 355p.

DETUE, Frédérik. Architecture et politique: la “cathédrale de l’avenir”, de


l’expressionnisme au nazisme. Texto !, Textes et cultures, v. XVIII, n. 3, 2013.

DUNN, George A.; MICHAUD, Nicolas (Org.). Jogos Vorazes e a Filosofia. São
Paulo: Verus Editora, 2013. 322 p.

ERLHOFF, Michael; MARSHALL, Timothy (Org.). Design Dictionary: Perspectives


on Design Terminology. Berlin: Birkhäuser, 2007. 472 p.

FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Organização


Manuel Barros da Motta. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 411-422.

GRADIM, Anabela. Comunicação e Ética: O sistema semiótico de Charles S. Peirce.


Portugal: UBIANAS, 2006. 490 p.

GRESH, Lois H. Hunger Games: a filosofia por trás dos jogos vorazes. Tradução
Cassius Madauar. São Paulo: Lua de Papel, 2012. 216 p.

LATOUR, Bruno. Um prometeu cauteloso?: Alguns passos rumo a uma filosofia do


design (com especial atenção a Peter Slotedijk). Tradução Daniel B. Portugal, Isabela
Fraga. Agitprop: Revista Brasileira de Design, São Paulo, v. 6, n. 58, Jul./Ago. 2014.

MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização e


tradução Cristina Magro, Victor Paredes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 203 p.

___________. Metadesign. 1997. Disponível em: <http://www.inteco.cl/articulos/


006>. Acesso em: 12 set. 2013.

MILLER, Laura. Fresh Hell, What’s behind the boom in dystopian fiction for young
readers?. The New Yorker, jun. 2010. Disponível em: <http://www.newyorker.com/
magazine/2010/06/14/fresh-hell-2>. Acesso em: 27 jul. 2014.

OOSTERLING, Henk. Dasein as design: or must design save the world? Translated
Laura Martz. Rotterdam: Premsela, 2009. Disponível em: <http://www.premsela.org/
sbeos/doc/file.php?nid=1673>. Acesso em: 13 abr. 2015.

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. Tradução Carlos Piovezani


Filho, Nilton Milanez. São Carlos: Claraluz, 2005. 96 p.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; CABRAL, Ricardo Pereira; MUNHOZ, Sidnei J.
(Coord.). Impérios na história. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2009. 488 p.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.


Tradução Karen Elsabe Barbosa, Regis Barbosa. Brasília: Editora UnB, 2009. 464 p.

Você também pode gostar