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Resumo
Partindo de dados colhidos numa pesquisa sobre práticas de leitura juvenis no contexto da
cultura midiatizada, os autores abordam a preferência de estudantes por leituras de mitologia,
com diversos enredos propagados e reeditados em livros e filmes, com suas extensões online.
Configura-se, assim, uma prática de leitura midiatizada, não mais restrita ao texto impresso,
mas caracterizada pelo acesso habitual aos canais de televisão a cabo e aos sites disponíveis
na Internet, mediante as novas tecnologias como Lap-Tops, Tablets e iPhones. A preferência
dos estudantes pelas narrativas de estilo épico-mitológico, incluindo suas versões para o
cinema e a Internet, é um dado interessante que instiga a reflexão dos educadores. Assim, os
autores buscam compreender esta preferência juvenil com uma análise que considera,
particularmente, o gênero mitológico e seus liames de sentido com o cotidiano dos jovens
estudantes. Da análise despontam as interações disponibilizadas pela leitura midiatizada e a
relação de sentido que se estabelece entre as obras épico-mitológicas e a condição dos jovens
contemporâneos, com seus deslocamentos de sensibilidade e de conhecimento. Em meio às
provas cotidianas e à construção de si, os jovens experimentam o tempo com intensidade e
indagam sobre o sentido do viver, mostrando-se receptivos às narrativas paradigmáticas da
mitologia, com seus dramas e heróis. De fato, os personagens das narrativas mais lidas e/ou
vistas no cinema, como Harry Potter, As crônicas de Nárnia e Senhor dos anéis, são jovens a
percorrer um caminho de provas, em processo de individuação e socialização. Assim, a
preferência dos jovens por tais narrativas pode indicar não uma mera resposta a estímulos
comerciais, mas a emissão de “sinais de si” manifestos na leitura e interação com os
personagens, nos quais se dramatizam aspectos significativos do percurso cotidiano dos
próprios jovens.
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Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Itália. Mestre em Teologia pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte. Docente do Programa de Pós-Graduação
em Teologia da PUCPR, em Curitiba. E-mail: marcialscj@hotmail.com.
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Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra em Comunicação Social
pela mesma UFMG. Pesquisadora do Observatório da Juventude da UFMG, em Belo Horizonte. E-mail:
cirlenesousa@yahoo.com.br.
ISSN 2176-1396
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Introdução
Para examinar os dados colhidos aplicamos uma abordagem qualitativa, atenta à condição
juvenil dos estudantes: jovens marcados pela heterogeneidade situacional, pelas provas
sociais em seu percurso cotidiano, com crises e buscas de sentido, na tensão entre o presente
que lhes escapa e o futuro que os desafia. Apesar de usarem aparatos de comunicação
diferentes (computadores conexos à Internet, Smart-Phones, Tablets, iPhones, etc.), todos
partilham uma mesma característica: sua relação habitual com a cultura midiática, com modos
de ler atravessados pelas novas tecnologias.
Dos dados coletados destacou-se expressivamente a preferência por contos
mitológicos, na sua forma clássica ou em formas reeditadas (cf. dados abaixo). O fato denota
a vigência das narrativas de sentido em pleno século XXI e instiga uma reflexão específica da
parte de educadores. Neste sentido, propomos nossa análise como uma contribuição.
Aproximamos analiticamente as informações sobre práticas de leitura juvenil, os enredos
preferidos pelos jovens pesquisados e arquitetura narrativa dos mitos. Para tal, nos servimos
dos estudos de Campbell (2007), cujo mapeamento dos contos mitológicos revelou sua
estrutura ternária, ao modo de um percurso exemplar com três estágios: partida, iniciação e
retorno. Deste modo, podemos compreender os mitos, basicamente, como uma lição narrada
em percurso ternário, com partida, iniciação e retorno a ser palmilhados por heróis – em sua
maioria, jovens – num processo de individuação e socialização. O percurso envolve
autoconhecimento, provas pessoais e grupais, amadurecimento e reinserção no meio social.
Enquanto lição narrada, os mitos não se prendem à factualidade estritamente cronológica,
mas tendem a comunicar exemplos de caráter e virtude, com enredos que permitem releituras
em épocas sucessivas. Daí o papel pedagógico dos mitos, reeditados ao longo dos tempos, até
seu formato recente, com criativas versões midiáticas, do cinema aos jogos online.
Na pesquisa que nos serviu de suporte, a leitura foi apresentada como tópico
relacionado às práticas culturais e de lazer, para contemplar tanto as leituras propostas pela
escola, quanto aquelas de escolha dos estudantes. À indagação “se a leitura constitui uma das
suas práticas culturais e de lazer”, os jovens responderam negativamente: da escola particular,
84,1%; da escola pública, 79,9%. Também negativa foi a resposta dada à questão “você tem
hábito de ler?”: 83,5% dos jovens da escola particular disseram não ler habitualmente;
acompanhados por 91,3% dos jovens da escola pública. Os resultados, entretanto, mudam
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com a questão assim recolocada: “o que vocês têm lido recentemente?”. Resultado: 77,2%
dos jovens da escola particular disseram estar lendo alguma obra; acompanhados de 78,5%
entre os jovens da escola pública. A aparente inconsistência desses dados resolve-se quando
os jovens ampliam as opções de leitura (escolhidas por gosto e interesse), além da leitura
escolar (proposta como exercício de disciplinas). De fato, a relação dos jovens com a leitura
alcança novos patamares de sentido e interesse, na medida em que os jovens agregam outros
aspectos deste hábito, como vemos em suas falas 3. Há leituras que respondam a perspectivas
de formação profissional: “leio jornais e revistas porque pretendo cursar Comunicação
Social”, diz a jovem Clara; leituras referidas ao entretenimento: “não gosto de ler; mas se for
revista sobre automóvel eu leio tudo, porque gosto de carros”, diz Jorge; leituras de autores
preferidos: “eu gosto de ler textos do Guimarães Rosa na página que o pessoal criou dele na
Internet”, diz Laís; leitura de fragmentos de autores, pensadores e personalidades, como
máximas e frases motivacionais: os jovens Vítor, Mirtes, Rafael e Conrado citam fragmentos
de Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Mahatma Gandhi, Nelson
Mandela. Há também leitura de canções que entretêm e fazem refletir: “acompanho a Legião
Urbana; suas músicas falam tudo do jovem, gosto de ler e refletir suas letras”, diz Conrado;
leituras que expressam percepções de identidade juvenil na relação com os pares,
acompanhadas de discussões em grupos online: Mirtes cita Senhor dos anéis, Rafael cita A
culpa é das estrelas, Lorena cita Harry Potter; leituras específicas que remetem ao gênero,
como a jovem Taís e os blogs femininos: “Adoro ler os textos escritos em sites femininos,
amo muito”, ou se referem à filiação religiosa, como o evangélico Rafael: “tenho o costume
de ler versículos e textos produzidos por meu pastor na página da igreja”, e a católica Maria:
“todo dia entro na página da Pastoral [da Crisma] e fico ali lendo as mensagens dos meus
amigos”.
Quando indagados sobre a literatura clássica, em geral, e as leituras solicitadas pela
escola, em particular, os jovens disseram “não gostar de ler”. De fato, esta resposta negativa
refere-se expressamente à literatura clássica proposta pelo currículo escolar, mantendo espaço
para outras preferências. Isto se verificou no campo de pesquisa, quando observamos estes
mesmos jovens lendo nos intervalos das aulas e na hora do recreio, tanto na escola particular,
quanto na pública: afinal, o que liam? Nestes casos, predomina o interesse pelas narrativas
mitológicas e por ficções com apelo épico: Harry Potter, Senhor dos anéis e As crônicas de
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Aqui usamos nomes fictícios, para preservar a real identidade dos jovens entrevistados.
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Nárnia, seguidos por Jogos vorazes e Saga crepúsculo. Esses dados, distribuídos segundo as
Turmas A, B e C, resultam em:
Tabela 1: preferência de leitura por turmas escolares
Leitura Turma A Turma B Turma C
Escola particular Escola particular Escola pública
O gosto desses jovens pelos enredos mitológicos se evidencia no conjunto dos dados
recolhidos em pesquisa: leitura dos respectivos volumes, audiências em televisão, frequência
ao cinema, participação em grupos temáticos online e postagens nas redes sociais. Embora se
percebam efeitos do estímulo comercial, os jovens leitores se engajam subjetiva e
coletivamente nessas narrativas, manifestando reações ao enredo, identificação com
personagens, assimilação e interpretação dos argumentos.
Isto nos leva a crer que este gosto juvenil indique a comunicação de elementos de
identidade e sentido aos jovens, perceptíveis nas similaridades e/ou conexões entre os enredos
e a condição juvenil dos próprios alunos. Tanto os livros, quanto os filmes e as séries
televisivas investem no público jovem intencionalmente, transportando para o seu horizonte
as antigas fábulas e mitos. Assim, as narrativas se fazem inteligíveis e interessantes a jovens
urbanos e rurais, de diferentes lugares sociais, que resistiriam a aprender Língua Latina, mas
repetem os encantos de Harry Potter em latim; ou que desconhecem a cosmovisão celta, mas
seguem com interesse as aventuras de elfos e magos ao lado de Pedro, Susana, Edmundo e
Lúcia (protagonistas de As crônicas de Nárnia).
Este arranjo narrativo e imagético, inspirado em fontes ancestrais, tem sido lido pelas
novas gerações, que imergem no drama por via simbólica e subjetiva, encontrando ali não só
diversão, mas uma mensagem com sentido. Nesta leitura por parte dos jovens, entram em
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travessia de diferentes estados psicoemocionais e catarse dos próprios medos; busca diária do
sentido motivador de seu percurso, para não perecer.
Considerações Finais
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“O termo português religião deriva do substantivo latino religio. Cícero e Áulio Gélio nos dizem que tanto o
nome como o particípio religens provêm do verbo relego (-ere), que significa reunir de novo, reler ou voltar a
passar sobre algo, como o pensamento, a leitura ou a palavra: ‘Os que retomam cuidadosamente e de algum
modo reúnem escrupulosamente (relegerent) todas as coisas que se referem ao culto dos deuses; tais pessoas têm
sido chamadas de religiosas, do verbo relegere’ [Sobre a natureza dos deuses II, 28, 82]” (García Bazán, 2002,
p. 43).
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mito se transmitem pela via midiática, a qual confere ao velho texto quatro características:
instantaneidade, celeridade, pluralidade e interatividade. Isto costuma dar-se por duas
operações fundamentais: a) seleção, cruzamento e recomposição dessas fábulas e mitologias,
convertidas em séries literárias, filmes e jogos que combinam peças de tradições diferentes –
algo semelhante a uma costura com linhas e peças dos tecidos/textos tradicionais; b) o
tratamento do jovem como participante da narrativa, à medida que lhe permite compreender e
reagir às mensagens, não só lendo, mas reescrevendo-as pelo uso dos diferentes recursos
disponibilizados: escolha dos textos, postagem de apreço e de críticas, interferência nos
enredos e produção de novos textos, em conexão com outros sujeitos – que é propriamente a
interação.
Por outro lado, a receptividade dessas versões por parte dos jovens não resulta apenas
de costuras e interações bem editadas, mas aponta para algo mais sutil: o lugar antropológico
e a sensibilidade dos jovens contemporâneos, que “vivem no deslocamento das demarcações e
fronteiras entre razão e imaginação, ciência e arte, natureza e artifício”, experimentando uma
espécie de “hibridização cultural entre a tradição e a modernidade, entre o culto, o popular e o
massivo” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 57).
Os livros e filmes voltam-se ao universo dos mitos e das iniciações mágicas, nas
pegadas do deslocamento de racionalidade e sensibilidade da própria juventude: nascida em
plena crise da Modernidade, a juventude contemporânea incorpora as luzes e sombras da
Religião, das Ciências e do Mercado, experimentando simultaneamente as ambiguidades e
oportunidades, os limites e as possibilidades do tempo presente. De fato, os jovens vivenciam
deslocamentos e hibridizações, cansados das análises funcionais e buscadores de sínteses
ainda em ensaio. Daí o espaço que se abre à racionalidade mítica, com suas narrativas,
mestres e sentidos. Não nos parece que isto caracterize uma re-mitologização do mundo, nem
um simples retorno ao paradigma pré-moderno por parte dos jovens, mas sim uma mudança
cultural, um trânsito de sensibilidade e de conhecimento, que os faz buscadores de uma
inteligibilidade de si e do mundo mais receptiva aos seus anseios a respeito da sociedade e do
planeta. Assim, a magia fala à Ecologia, os vilões falam à Política, os graus de iniciação falam
à Escola, as provas enfrentadas falam à Sociologia: os jovens, com suas leituras e audiências,
estão narrando-nos traços sua condição e percepções do seu estar-no-mundo.
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REFERÊNCIAS
BRAGA, José Luiz. Midiatização como processo interacional de referência. In: MÉDOLA,
Ana Sílvia; ARAÚJO, Denize Correa; BRUNO, Fernanda (Orgs.). Imagem, visibilidade e
cultura midiática. Vol. 1. Porto Alegre: Sulina, 2007, p. 141-167.
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: mitologia criativa. São Paulo: Palas Athena,
2010.
GARCÍA BAZÁN, Francisco. Aspectos incomuns do sagrado. São Paulo: Paulus, 2002.