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EDITORIAL

Estimado Leitor,

A Revista MIMESIS apresenta a primeira edição de 2021 (Volume 42, n° 1) com


trabalhos na área de Ciências Humanas e Sociais, evidenciando o seu caráter transdisci-
plinar, com um olhar mais amplo sobre as situações que afloram no contexto educativo.
Destarte, valoriza a complexidade, a tessitura articulada dos saberes e dos conhecimen-
tos, propondo a legitimação das diferentes áreas, expressas nesta edição pela Filosofia,
História, Educação, Educação Ambiental, Literatura, Comunicação e Tecnologia.

O primeiro trabalho intitulado O medievo no mundo digital: novas interfaces e possi-


bilidades, da autora Raíssa Rocha Bombini, apresenta a contribuição da tecnologia digital
em pesquisas e estudo na área medieval por meio de fundos digitais, bibliotecas on-line,
aplicativos e eventos on-line. Segundo a autora, esse movimento ganhou força recente-
mente, sobretudo com a pandemia do Covid-19, o que levou ao fechamento de bibliote-
cas, arquivos e universidades, transportando todo o acesso ao mundo virtual. Essa inclu-
são foi extremamente importante para aqueles medievalistas sem acesso aos grandes
centros internacionais.

Letícia Zafred Paiva e Flávia Cristina Bandeca Biazetto analisam a relação litera-
tura-sociedade na construção das imagens e estereótipos femininos no contexto brasi-
leiro e, também, o papel da produção lírica de literatura marginal periférica no trabalho
A construção das identidades femininas negras e periféricas nos poemas de Dinha. Para tanto,
selecionaram os textos: Poema Pouco Poema e Zero a Zero da escritora com o intuito de
verificar como se dá a construção da identidade da mulher negra e periférica. Segundo
as autoras, é necessário compreender a literatura marginal periférica não somente como
um gênero ou estilo de escrita, mas como um movimento político que visa à quebra de
paradigmas sobre as concepções de arte, literatura e imaginário coletivo na sociedade.

As autoras Isabela Scarelli Domingues e Patricia Aparecida Gonçalves de Faria,


no trabalho Rotinas de pensamento visível por meio dos memes nas aulas de língua portugue-
sa: participação e engajamento na sala de aula, discutem as metodologias ativas propostas
pelo Project Zero, atrelando o gênero textual “Meme” como recurso interdisciplinar para
a participação dos alunos nas aulas de Língua Portuguesa. Os memes exercem uma fun-
ção social ao trazerem temas do cotidiano para o debate, promovendo o pensamento
crítico e reflexivo.

Em A disciplina positiva na interação professor-aluno: interpretando aspectos verbais e


não verbais dos alunos, João Vitor Zanini Crema e Maria Laura Golfiere apresentam con-
ceitos da disciplina positiva e sua importância no contexto da interação professor-aluno
Eliane Aparecida Toledo Pinto
Editorial . MIMESIS, Bauru, v. 42, 2021.

no processo de ensino e aprendizagem, bem como introduzem possíveis estratégias e


suas contribuições para a prática em sala de aula, frente a comportamentos verbais e não
verbais, que os alunos comumente apresentam.

O princípio republicano de soberania popular, revolucionário no século XVIII de


Rousseau, e que persiste contemporaneamente nas obras de Habermas, é o objeto da
pesquisa A soberania popular, entre Habermas e Rousseau. Wellington Anselmo Martins
procura as origens éticas e filosóficas da democracia a partir dos valores modernos e
progressistas de “liberdade, igualdade e fraternidade”, sob a justificativa de que tais no-
ções não se restringem à Revolução Francesa, de 1789, mas que ainda legitimam os Di-
reitos Humanos, pós-1948, até hoje.

Angélica Pall Oriani e Mirella Muniz Grillo analisam a história da Formação de


professores primários no curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do
Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-SP, entre 1954 e 1968. Segundo as autoras, a FAFIL con-
tribuiu de forma intensa para a formação de professores na região Noroeste paulista,
tendo não somente destinado docentes para o ensino primário, mas, também, para ou-
tros níveis de ensino e para cargos de gestão educacional.

Por meio de um mapeamento da produção científica, as autoras Julia Dantas Mar-


tins Baunilia, Maria Luisa Marques da Silva Amorim e Juliana Vechetti Mantovani Cava-
lante analisaram como a escolarização do estudante com transtorno do espectro autista
tem sido abordada na literatura científica, nos anos de 2014 a 2019 (A escolarização do
estudante com transtorno do espectro autista: registros da produção científica). As pesquisas
que discutem a escolarização do estudante autista foram desenvolvidas em universida-
des públicas. Segundo as autoras, tonar-se necessário intensificar os estudos sobre o en-
sino e a escolarização de estudantes com Transtornos do Espectro Autista, assim como
sobre sua trajetória escolar.

No artigo Estudo de caso: percurso histórico – investigativo sobre o DNA físico – terri-
torial de algumas cidades brasileiras, Rafaela Bianchi investiga e analisa momentos espe-
cíficos de relevância da história do urbanismo no Brasil, partindo da seguinte questão:
Quais contribuições para a prática e estudo do ordenamento e planejamento territorial
a experiência brasileira pode oferecer? A autora constrói uma linha cronológica que ex-
põe, de maneira pragmática, algumas das mais variadas experiências brasileiras no cam-
po do Urbanismo, sendo analisados os municípios de Paraty, Aracaju, Goiânia, Curitiba
e Brasília. E conclui que as questões socioeconômicas, físicas e políticas interferem no
processo de construção do cenário urbano que se dá ao longo de grandes períodos.

Ednan Gomes de Souza e Ana Paula Rodrigues, no texto Campanha #1KISS1DO-


NATION: estratégias de comunicação empresarial nas redes sociais em tempos de pandemia
Eliane Aparecida Toledo Pinto
Editorial . MIMESIS, Bauru, v. 42, 2021.

analisam as estratégias de comunicação empresarial que vêm sendo utilizadas nas redes
sociais, em especial ao que se refere à Doritos Rainbow, por meio do Projeto #1KISS-
1DONATION. Também verificam se tais estratégias consolidaram seu valor de mercado
junto ao seu público externo, principalmente os ligados à comunidade LGBTQIAP+, se
houve enfraquecimento do valor de mercado ou se a Doritos não foi afetada, de forma
positiva ou negativa, ao explicitar apoio à causa da diversidade sexual e de gênero.

O trabalho Compreensão do conceito de cadeia alimentar a partir de uma problemáti-


ca atual do alto Rio Batalha: ataques de onça-parda (Puma concolor) traz a análise do proces-
so de ensino e aprendizagem de estudantes do 5º ano da escola EMEF Professora Jacyra
Motta Mendes sobre cadeia alimentar, tendo como exemplo a problemática de ataques a
animais domésticos pela onça-parda. Os autores Lívia Martins Lupino, Flávia Innocenti, ,

Adriano Evandir Marchello e Guilherme do Amaral Carneiro evidenciam a importância


da cadeia alimentar e da conservação de animais silvestres aos estudantes e constatam
um aprendizado significativo sobre a temática.

As autoras Maria de Lourdes Spazziani e Nijima Novello Rumenos em Perfil de vi-


sitantes e conscientização socioambiental em unidades de conservação investigaram o perfil,
os motivos e as perspectivas de 62 visitantes em um parque nacional (PN), situado no
estado do Rio de Janeiro, e possíveis limitações e contribuições para a formação da cons-
ciência ambiental. Os parques nacionais no país, além de abrigarem e contribuírem para
a biodiversidade e conservação da vida em seu estado natural, são espaços que possibili-
tam a promoção e a reaproximação da conscientização das populações atuais no contato
com a natureza, em especial pelo Ecoturismo.

Finalizando a edição, temos três resenhas, a primeira é de João Vitor Olímpio que
apresenta a obra No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África, organizado por
Jean-Loup Amselle e Elikia M’Bokolo, faz parte de uma coletânea intitulada “Coleção
África e Africanos”, formada por três livros. O objetivo principal dessa trilogia é trazer
ao mercado brasileiro uma produção atualizada sobre a temática, visando atender aos
interesses do público em geral, que tem se mostrado ávido por conhecer o continente
africano, repleto de histórias, povos e culturas. Esta obra é recomendada para estudan-
tes de História e para todos aqueles interessados em uma abordagem crítica e renovada
da história da África.

Mariana Martinez apresenta a resenha da obra Mulheres Intelectuais na Idade Mé-


dia, com o subtítulo Entre a Medicina, a História, a Poesia, a Dramaturgia, a Filosofia, a Teo-
logia e a Mística, elaborada pelos historiadores Marcos Roberto Nunes Costa e Rafael Ferreira
Costa, que apresentam personalidades femininas participativas e importantes no âmbito
Eliane Aparecida Toledo Pinto
Editorial . MIMESIS, Bauru, v. 42, 2021.

intelectual durante a Idade Média – e até mesmo em momentos anteriores e posteriores


ao período de enfoque.

A terceira e última resenha, realizada por Gelson Teodoro de Souza Junior e Thia-
go Casavechia de Assis, do livro intitulado Um maravilhoso imaginário: cartografia e lite-
ratura na baixa Idade Média e no Renascimento, do historiador Leonardo Meliani Vello-
so, nos faz embarcar numa viagem para conhecer o imaginário dos povos que viveram no
medievo.

Desejo a você, estimado leitor, um deleite desta edição.

Eliane Aparecida Toledo Pinto


Editora
O MEDIEVO NO MUNDO DIGITAL: NOVAS INTERFACES E
POSSIBILIDADES
THE MEDIEVAL IN THE DIGITAL WORLD: NEW INTERFACES AND
POSSIBILITIES
Raíssa Rocha Bombini1
1
Doutoranda em História da Ciência. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
rabombini@gmail.com

Data de envio: 23/12/2021


Data de aceite: 15/02/2021

RESUMO
O estudo na área de medieval sempre apresentou grandes obstáculos para aque-
les pesquisadores que não tinham acesso físico aos principais centros de pesquisa ame-
ricanos e europeus, cujos arquivos, bibliotecas e eventos têm sido muito importantes
para os medievalistas. Contudo, o grande trabalho de digitalização de documentos e li-
vros, desde os anos 90, vem possibilitando a um público mais amplo o acesso remoto a
manuscritos e bibliografias. Além disso, novas interfaces de aplicativos surgiram na úl-
tima década, trazendo o medievo cada vez mais para o mundo digital. O presente artigo
se propõe a demonstrar como a tecnologia digital vem contribuindo com a pesquisa de
medievalistas, por meio de fundos digitais, bibliotecas on-line, aplicativos e, ainda mais
recentemente, de eventos on-line. 

Palavras-chave: Idade Média. Tecnologia digital. Manuscritos.

ABSTRACT
Medieval studies have always posed major obstacles for those researchers who
did not have physical access to the principal American and European research centers,
whose archives, libraries, and events have been essential for medievalists. However, sin-
ce the 1990s, the great work of digitizing documents and books has enabled a large au-
dience to have remote access to manuscripts and bibliographies. Moreover, new apps
have emerged in the past decade, bringing the medieval area to the digital world. This
article aims to demonstrate how digital technology has contributed to the research of
medievalists through digital databases, online libraries, apps, and, more recently, online
events.

Keywords: Middle Ages. Digital technologies. Manuscripts.

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 1-13, 2021.

INTRODUÇÃO
Presenciou-se na última década um importante movimento mundial que busca
disponibilizar na World Wide Web e em aplicativos – para notebooks, tablets e smartphones
– uma grande quantidade de livros, artigos, documentos, videoaulas e conferências de
diversas áreas do conhecimento. Apesar de essa iniciativa se propor a alcançar a todos
indistintamente, o acesso beneficia, principalmente, estudiosos e pesquisadores que não
teriam acesso a tamanho conteúdo de outra forma.

Esse movimento ganhou força recentemente, sobretudo com a pandemia do Co-


vid-19, o que levou ao fechamento de bibliotecas, arquivos e universidades, transportan-
do todo o acesso ao mundo virtual. Nesse momento, mesmo aquelas pessoas que teriam
acesso físico aos laboratórios, centros de pesquisa e bibliotecas, por viverem próximas
e eles, passaram a depender dos meios digitais, como o restante do mundo. Consequen-
temente, o isolamento social tornou o propósito do meio digital algo ainda mais impor-
tante.

Nesse cenário de mudanças e novas possibilidades que o digital proporciona para


o ensino e para a pesquisa acadêmica, as Humanidades vêm se beneficiando profunda-
mente. Para o presente artigo, daremos destaque aos estudos sobre o medievo, seja em
história, história da ciência, filosofia etc. Com o movimento de disponibilização de mate-
riais na internet, a partir da criação de bibliotecas online e fundos digitais, os medievalis-
tas ganharam acesso a muitos manuscritos, livros, artigos e imagens, o que vêm transfor-
mando o ensino e a pesquisa nessa área.

Apesar da recente valorização do mundo digital, as raízes da relação entre a tec-


nologia e os estudos em Idade Média são muito mais antigas. Ainda em 1940, o padre je-
suíta Roberto Busa criou, junto à IBM nos Estados Unidos, um Index Verborum de todas as
palavras nas obras de São Tomás de Aquino e autores relacionados, totalizando cerca de
11 milhões de palavras do latim medieval (BUSA, 2004, p. xvi-xviii). Apesar desse impor-
tante evento de “computação nas humanidades”, foi com o advento da World Wide Web,
a partir dos anos 90, que os bancos de dados ganharam força, criando a possibilidade da
digitalização de manuscritos medievais e livros acadêmicos nessa área (SCHREIBMAN;
SIEMENS; UNSWORTH, 2004, p. xxiii).

Desse modo, na última década, a pesquisa na área medieval passou a ser cada vez
mais mediada pela tecnologia provinda do digital. Com o acesso (principalmente aquele
que se propõe a ser amplo e gratuito) a centenas de documentos, dos mais diversos te-
mas, as tecnologias digitais ligadas às Humanidades abrem caminho para muitos avan-
ços na comunidade acadêmica, como a realização de mais pesquisas e estudos, além de
maior divulgação científica. Na área voltada à História Medieval, isso significa mostrar
uma Idade Média rica em conhecimentos e distante do obscurantismo, uma errônea ca-
racterística que vêm sendo atribuída ao período.

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 1-13, 2021.

Esse artigo se dedica, portanto, a apresentar novas formas de inclusão da tecnolo-


gia e do digital aos estudos em Idade Média, o que tem possibilitado o desenvolvimento
de novas pesquisas e de práticas profissionais em relação à aquisição, utilização e reuti-
lização, além da preservação de conteúdos eletrônicos. Essa inclusão foi extremamente
importante para aqueles medievalistas sem acesso aos grandes centros internacionais.
Assim, as contribuições aqui trazidas são tanto de cunho teórico quanto de experiências
profissionais, abordando os seguintes tópicos: acervos digitais de manuscritos e ima-
gens, a digitalização de bibliografia específica para o estudo do medievo, a novidade dos
congressos digitais e a criação de aplicativos que auxiliam no ensino e aprendizagem.

A DIGITALIZAÇÃO DE MANUSCRITOS MEDIEVAIS


Os documentos digitalizados encontram-se majoritariamente em importantes
bases de dados pertencentes a institutos de pesquisa ou universidades, agregando
uma grande quantidade de materiais – como textos, imagens, áudios - com o propósito
de servir aos pesquisadores e estudantes. A forma de organização ou catalogação do
material disponível varia de acordo com o propósito estabelecido por cada arquivo,
podendo ser por período, por tema, por país, etc.

Atualmente, os fundos digitais de manuscritos medievais contam com diversos


projetos sendo realizados em universidades e outras instituições. É o exemplo do “Bridging
the Digital Gap”, um programa financiado pela Heritage Lottery, que atua em diversos
arquivos em todo o Reino Unido. O programa financia trainees com o objetivo de repensar
a forma como os arquivos e seus materiais devem ser trabalhados. Considera-se que “o
digital está mudando tudo sobre os arquivos, do material que precisa ser preservado
até nossos métodos de acesso aos registros. Portanto, este projeto visa atender a uma
necessidade real de trazer habilidades digitais novas para os arquivos.”1

Com essas bases, os pesquisadores, sejam eles medievalistas pós-


graduados, professores de História ou alunos da educação básica, conseguem pesquisar,
baixar e ler textos e imagens até mesmo em seus smartphones. Por isso, torna-se
fundamental que mais projetos como o supracitado sejam produzidos, financiados e
difundidos nas universidades e em arquivos de museus, bibliotecas etc.

A digitalização de manuscritos traz consigo três propósitos que serão apresenta-


dos a seguir: a conservação e preservação dos materiais, muitos dos quais já se encon-
tram frágeis pelo tempo e pelas intempéries; a revelação de características escondidas
em fólios; e a possibilidade de acesso a todos que desejam pesquisá-los.

O primeiro objetivo baseia-se no fato de que grande parte dos manuscritos mui-
tas vezes não estão bem preservados, nem completamente legíveis. Sabe-se que casos
1
O projeto “Bridging the Digital Gap project secures funding” pode ser visitado em: https://www.nationalar-
chives.gov.uk/about/news/bridging-the-digital-gap-project-secures-funding/(Acesso em: 16 jul. 2020).

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
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adversos surgem em todos os arquivos, pela má conservação ou pelo estado em que o


próprio manuscrito chegou aos arquivistas. Há muitos exemplares de manuscritos com
tinta desbotada, rasgos, mofo, manchas ou outras formas de deterioração física (BEN-
TON; GILLESPIE; SOHA, 1979, p. 40-41).

Imagem 1 – Exemplo de deterioração em manuscrito do século XIV

Fonte: Contracapa do MS Rawlinson A 273, Bodleian Library (foto da autora)

A preservação, nesse caso, funciona como uma via de mão-dupla. O manuscrito


digitalizado pode ser melhor preservado em sua materialidade, sem ser necessária a
manipulação constante para ser lido. Ao mesmo tempo, as imagens permitem que seu
conteúdo fique acessível por muito tempo e para muitas pessoas. Como a Imagem 1
mostra, a deterioração do material pode ser inevitável na maioria dos casos, mas as fotos
mantidas em bases de dados podem, ao menos, salvar parte do conhecimento que aquele
manuscrito continha.

O segundo objetivo seria de que a digitalização das páginas permita que vejamos
com mais clareza detalhes nestas. O processamento de imagens digitais pode contribuir,
por meio de diversos programas, como o de reconhecimento de padrões, a otimização de
contrastes ou a fotografia espacial emprestada pela NASA no século passado (BENTON;
GILLESPIE; SOHA, 1979, p. 40-55), a verificar a escrita, as imagens, os rascunhos, as
marginalia, os ex-libris e outras nuances escondidas em um manuscrito. Pode contribuir,
também, com o estudo de algumas das passagens mais ilegíveis de fólios, fornecendo
fac-símiles em alta resolução e ainda passíveis de download (KIERNAN, 1990, p. 20-21).

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
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O último objetivo é a ampliação do acesso. As bibliotecas e arquivos com fundos


digitais disponíveis na internet permitem que um público muito maior tenha acesso a
materiais de pesquisa. Os manuscritos digitalizados e dispostos em bases on-line podem
ser acessados em escolas, bibliotecas públicas, locais de trabalho e nas residências (RY-
DBERG-COX, 2006, p. 1).

Uma das principais bibliotecas europeias com acervo de manuscritos medievais


digitalizados é a British Library, fisicamente localizada em Londres, mas amplamente digi-
tal. A British Library contém inúmeros documentos disponíveis ao público, entre eles 150
manuscritos científicos da coleção Harley e 400 manuscritos da Polonsky Foundation:
England and France Project, que cuida da digitalização dessa biblioteca e da Bibliothèque
Nationale de France. A sessão “Digitised Manuscripts”2 contém não apenas manuscritos di-
gitalizados em alta resolução, mas também iluminuras medievais e renascentistas3.

Um pesquisador buscando, por exemplo, manuscritos com o tema “Cristo”


(“Christ”), entre os anos 500 e 1500 d.C., que tradicionalmente compreendem a Idade
Média, encontraria 439 exemplares para consultar, estudar e analisar. No mais, encon-
traria informações importantes de metadata para a busca de textos similares (língua,
autor, ano, obras etc.), além de 622 páginas de iluminuras em diversos manuscritos que
possam ter alguma relação com a imagem de Cristo. Todo esse conteúdo citado está in-
teiramente disponível – em inglês - para consulta on-line gratuita.

Mais antiga que a British Library online, a Bibliothèque nationale de France (BnF)
contém uma plataforma de fundos digitais que teve seu início ainda em 1992. Com as
primeiras digitalizações, abriu em 1997 um primeiro modelo de website: a Gallica4, cuja
coleção também é muito importante para a pesquisa de manuscritos medievais.

A Biblioteca contém em seu acervo exemplares de iluminuras carolíngia, grandes


textos literários da Idade Média (como os romances da Távola Redonda, Roman de la Rose,
obras de Froissart ou de Christine de Pizan etc.), belos manuscritos de pintura árabes,
além de manuscritos turcos e persas, entre muitos outros. Os materiais são catalogados
por data, por autor, por título, por gênero, pelo tipo de escrita, pelo tipo de encadernação
e pela decoração ou iluminação5.

2
http://www.bl.uk/manuscripts/.
3
https://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/welcome.htm.
4
https://gallica.bnf.fr/html/und/manuscrits/manuscrits?mode=desktop.
5
Informações encontradas no website da Gallica, “A propos de Manuscrits”, disponível em: https://gallica.
bnf.fr/html/und/manuscrits/manuscrits?mode=desktop. (Acesso em: 16 jul. 2020).

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 1-13, 2021.

Imagem 2 – Interface de manuscrito carolíngio na Gallica

Fonte: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b550056550/f1.item.zoom

Ainda outras bases de manuscritos digitalizados que podemos citar aqui são a Bi-
blioteca Digital Hispánica6, a Biblioteca Apostolica Vaticana7, a Digital Scriptorium8, a E-CO-
DICES - Virtual Manuscript Library of Switzerland9 e a Biblioteca Digital Mundial10. Há, por
fim, outras bases de iluminuras além daquela mencionada na British Library11, que tam-
bém são de grande utilidade aos pesquisadores que trabalham com imagens medievais,
tal como a Enluminures12 e a The Warburg Institute Iconographic Database13.

A DISPONIBILIZAÇÃO ON-LINE DE DOCUMENTOS, LIVROS E ARTIGOS


Ainda no campo das fontes primárias, uma biblioteca digital gratuita muito útil
para a pesquisa em medieval é a “The Latin Library”, que contém uma seção destinada

6
http://www.bne.es/es/Catalogos/BibliotecaDigitalHispanica/Inicio/index.html.
7
https://www.vaticanlibrary.va/.
8
A base Digital Scriptorium é um consórcio de bibliotecas e museus americanos que buscam fornecer aces-
so online gratuito às suas coleções de manuscritos antigos e medievais. Compreende uma variedade de
instituições, de grandes universidades a pequenas bibliotecas públicas e museus privados com coleções
de diversos tamanhos e temas. Vide https://digital-scriptorium.org/.
9
A E-CODICES fornece acesso gratuito a todos os manuscritos medievais e modernos da Suíça por meio
de uma biblioteca virtual. Até o momento em que este artigo foi escrito, a biblioteca virtual continha 2539
manuscritos de 97 coleções diferentes, mas continua sendo atualizada e ampliada. Vide https://www.eco-
dices.ch/en.
10
A World Digital Library, ou Biblioteca Digital Mundial, em sua versão em português, é uma biblioteca digital
projetada pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos e pela UNESCO em parceria com mais 31 ou-
tras instituições de vários países. https://www.wdl.org/pt/.
11
https://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/welcome.htm.
12
http://www.enluminures.culture.fr/documentation/enlumine/fr/.
13
https://iconographic.warburg.sas.ac.uk/vpc/VPC_search/main_page.php.

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 1-13, 2021.

a obras medievais em língua latina (“Medieval Latin”)14 e outra seção destinada a obras
latinas cristãs (“Christian Latin”)15. Ao contrário dos fundos digitais de manuscritos, as
obras aqui são apresentadas transcritas, em texto corrente, não havendo imagens dos
manuscritos originais de onde foram tiradas.

Entre as obras disponíveis estão a Philosophia Mundi de Guilherme, de Conches


(1080 - c. 1154), o Tractatus de Origine, Natura, Iiure et Mutationibus Monetarum, de Nico-
laus Oresmius (c. 1320 - 1382) e os Etymologiarum, de Isidoro de Sevilha (c. 560 - 636).

Apesar de ser uma fonte útil de pesquisa, a The Latin library contém limitações.
Conforme explicado pelo próprio site:

Os textos não se destinam a fins de pesquisa nem como substitutos de


edições críticas. (...) Os textos são apresentados apenas para facilitar a
leitura online ou para download para uso pessoal ou educacional. Ne-
nhum auxílio morfológico ou de vocabulário é apresentado com os tex-
tos.16

As fontes primárias não são, contudo, as únicas obras disponíveis na World Wide
Web. Seja pela digitalização de grandes coleções pertencentes a bibliotecas ou por inicia-
tivas individuais, que compreendem algumas poucas obras, os medievalistas atualmente
conseguem ter acesso a milhares de livros e artigos que compõem as fontes secundárias
para as pesquisas nessa área.

Algumas databases mais gerais que contêm livros, artigos e referências bibliográ-
ficas com temáticas medievais, podendo ser consultadas por alunos e pesquisadores, são
o Internet Archive17 e o Jstor18, em inglês, e a Scielo19 e o Portal de Periódicos CAPES/MEC20,
em português. No entanto, deve-se atentar ao fato de que parte do material fornecido
nessas bases deve ser comprado para ser acessado.

Para uma bibliografia mais especializada, por exemplo, no campo da história da


medicina medieval, vale ressaltar a excelente biblioteca digital da Wellcome Library21,
cujo acervo é composto de livros e imagens visando a formar um recurso documental
que reflita os contextos culturais e históricos da saúde e da medicina. Há cerca de 400
materiais na área do medievo, entre livros, manuscritos, iluminuras e pinturas para con-

14
http://www.thelatinlibrary.com/medieval.html.
15
http://www.thelatinlibrary.com/christian.html.
16
Informação retirada da seção “Sobre os textos” da plataforma The Latin Library, disponível em: https://
www.thelatinlibrary.com/about.html (acessado em 01 de novembro de 2020).
17
https://archive.org/.
18
https://www.jstor.org/.
19
https://scielo.org/.
20
https://www-periodicos-capes-gov-br.ezl.periodicos.capes.gov.br/index.php?.
21
https://wellcomecollection.org/works.

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 1-13, 2021.

sulta online, sendo possível, também, o download gratuito.

Como um exemplo de uma iniciativa individual, destaca-se a versão online do


famoso Dizionario di Abbreviature Latini, em sua edição italiana de 1912, composto por
Adriano Cappelli22. A digitalização e disponibilização na forma de um índice foi feita pela
Faculdade de História da Universidade Estadual de Moscou, fazendo parte da platafor-
ma dessa instituição. Abreviaturas latinas eram formas abreviadas de se escrever deter-
minadas palavras nos libelli, a fim de se economizar os fólios. São constantemente encon-
tradas em manuscritos medievais, dificultando a leitura e compreensão do texto. Essa
grande obra de Adriano Cappelli foi composta para conter as principais abreviaturas
encontradas nos manuscritos, disponibilizadas alfabeticamente como em um dicionário.
Sua consulta permite a fácil identificação de muitas palavras.

O MEDIEVAL DIGITAL EM TERRAS BRASILEIRAS


Dentro da proposta de disponibilização de manuscritos digitalizados e de bibliotecas
online com bibliografia especializada em Idade Média, sabemos que a maior parte do conteú-
do viabilizado na internet, conforme visto até aqui, traz consigo a necessidade do domínio da
língua inglesa para um maior aproveitamento do material. Contudo, o campo da produção de
bibliografia em língua portuguesa cresce a cada dia, principalmente por meio da criação de
inúmeras revistas científicas que publicam trabalhos em formato on-line, facilitando a pes-
quisa e atingindo um maior número de estudantes brasileiros.

Alguns exemplos de revistas científicas sobre o medievo atualmente em circulação


são: a revista Signum23, pertencente à Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM);
a revista Brathair24, de estudos Celtas e Germânicos, sediada na Universidade Estadual do
Maranhão (UEMA); a revista Roda da Fortuna25, registrada junto à Biblioteca de Catalunya
(Barcelona, Espanha); e a revista Medievalis26, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Li-
teratura da Idade Média (NIELIM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para
aqueles que buscam uma bibliografia especializada na história da ciência voltada ao medie-
vo, há artigos na revista Circumscribere: International Journal for the History of Science27, publi-
cada pelo Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (CESIMA), da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP).

O CESIMA, além de publicar artigos na área do medievo, é também um caso brasilei-


ro de biblioteca online e arquivo de manuscritos disponíveis gratuitamente dentro de sua

22
http://www.hist.msu.ru/Departments/Medieval/Cappelli/.
23
http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum.
24
https://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair/index.
25
https://www.revistarodadafortuna.com/.
26
http://medievalis.nielim.com/ojs/index.php/medievalis.
27
https://revistas.pucsp.br/index.php/circumhc/index.

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 1-13, 2021.

Biblioteca online Cesima Digital28, sendo de grande importância para muitos pesquisadores.

O Cesima Digital foi uma das primeiras bibliotecas online do país e conta hoje com
milhares de obras digitalizadas, formando um grande repositório de documentos essen-
ciais para pesquisas sobre a história da ciência e da tecnologia. Essa base contém mate-
riais raros, antigos e, muitas vezes, de exemplar único. Dentre esses, estão manuscritos
medievais árabes e latinos, em alta resolução. Vale ressaltar, igualmente, que a Biblio-
teca Cesima Digital também fornece a possibilidade de download gratuito de suas obras,
com a necessidade apenas de um pequeno cadastro. Além disso, está em expansão para
acolher todo o riquíssimo acervo que permanece guardado no próprio CESIMA (ALFON-
SO-GOLDFARB; WAISSE; FERRAZ, 2018).

A proposta da Biblioteca Cesima Digital, considerando-se o conteúdo deste artigo,


é descrita da seguinte forma:

A digitalização de obras desse e de outros acervos, disponibiliza aos


pesquisadores e estudantes de História da Ciência, fontes originais
que, de outra forma, em sua grande maioria, seriam acessíveis apenas
em bibliotecas no exterior. Pensando nessa Biblioteca Virtual de forma
mais ampla, não poderia faltar uma via que trouxesse esses documentos
através da internet para os membros associados ao centro. Aliás, a in-
ternet tem-se tornado um auxiliar precioso na realização de pesquisas,
ao disponibilizar on-line, catálogos de bibliotecas, arquivos e centros de
documentação, ou ainda sites de interesse para a História da Ciência, o
que facilita a localização de documentos para posterior solicitação, digi-
talização e incorporação ao acervo.29

Sua importância, no entanto, vai além da disponibilização de materiais essenciais
aos estudiosos em História da Ciência. Ela se propõe a estudar a própria organização do
conhecimento, os obstáculos da era digital e da classificação de documentos nesse meio.
Para isso, mantém diálogo aberto com estudiosos de outras partes do Brasil, dos Estados
Unidos e da Europa, num ciclo de intercâmbios para busca de novidades na área das Hu-
manidades Digitais30.

A CRIAÇÃO DE APLICATIVOS
Os estudiosos também podem contar, atualmente, com aplicativos para smartpho-
nes e tablets que contribuem com o ensino e a pesquisa na área da Idade Média. É o caso,
por exemplo, do Medieval Handwriting App31, disponível para iOS, desenvolvido pela Uni-
28
http://cesimadigital.pucsp.br/.
29
Informações encontradas no website da Biblioteca Cesima Digital, disponível em: http://cesimadigital.
pucsp.br/ (Acesso em: 16 jul. 2020).
30
Vide, por exemplo, o Projeto Research Coordination Network (RCN), desenvolvido com vários centros ao
redor do mundo, entre eles o CESIMA/PUC-SP, disponível em: https://digitalhps.org/node/184
31
A explicação sobre o aplicativo pode ser encontrada em https://ims.leeds.ac.uk/online-resources/tea-
ching-resources/.

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
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versidade de Leeds, no Reino Unido. O objetivo é proporcionar a prática da transcrição


de uma ampla variedade de escritas medievais, do século XII ao final do século XV, con-
tribuindo, assim, com o estudo da paleografia latina.

Imagem 3 – Interface do aplicativo Handwriting App

Fonte: Handwriting App (imagem do próprio aplicativo)

Ainda que o aplicativo não seja um tutorial sobre a paleografia na Europa Oci-
dental medieval, torna-se muito útil para a aprendizagem das escritas latinas por ensi-
nar com a prática. Os usuários podem examinar 26 manuscritos selecionados, ampliar
palavras individuais, tentar a transcrição e receber feedback imediato. Opcionalmente,
eles podem ainda comparar sua transcrição com uma transcrição completa já oferecida
pelo próprio aplicativo. As transcrições do usuário podem ser salvas e reabertas, além de
acessadas por outros aplicativos.

CONGRESSOS DIGITAIS
Antes da pandemia de Covid-19, esse tópico era uma novidade que estava timida-
mente aparecendo em pouquíssimos grupos ao redor do mundo. Contudo, com o cenário
de isolamento, os eventos digitais (congressos, palestras, webnários, ciclos de estudos
etc) tiveram um aumento significante em todas as áreas do conhecimento. Ao que nos in-
teressa aqui, esses eventos ajudaram os medievalistas a se encontrarem e deram a opor-
tunidade para muitos participarem das redes de troca de conhecimento.

Ainda que fossem raros antes de 2020, esses eventos – que acontecem totalmen-
te on-line, sem qualquer necessidade de presença física – já permitiam que pesquisado-
res e professores de todo o mundo pudessem participar de algumas das discussões que

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 1-13, 2021.

acontecem nos centros europeus e americanos, sendo necessário apenas o acesso à in-
ternet.

Foi o caso, por exemplo, do primeiro Digital Medieval Congress 2019 (DMC 2019)32,
organizado pelo NUME - Gruppo di Ricerca sul Medioevo Latino. Esse congresso, que acon-
teceu em 31 de Outubro de 2019 em uma plataforma digital chamada Numet33, foi um
dos pioneiros com essa proposta, até então, de vanguarda.

O tema escolhido para a primeira edição do DMC 2019 foi o Meio Ambiente, em
seu sentido mais amplo. Foram consideradas contribuições que investigassem o proble-
ma da relação entre o homem medieval e o ambiente em que ele viveu, a maneira como
esse foi percebido, imaginado e transformado, com especial atenção ao problema de sua
representação mental e ao impacto que essa representação teve sobre aspectos especí-
ficos da cultura europeia medieval.34 O congresso ainda buscou ampliar para mais áreas
as possíveis contribuições de temas. Para além da história, eram aceitas contribuições
em filosofia, política, literatura, arte, arqueologia, cultura material e novas tecnologias
aplicadas aos estudos medievais.

Na ocasião, ainda havia alguns fatores que dificultavam um maior acesso, ou ain-
da, um acesso mais democrático ao evento. No caso do DMC 2019, aos palestrantes se-
lecionados era requisitada uma taxa de inscrição de 30 euros. Além disso, os palestran-
tes que ainda não fossem membros do NUME teriam que se registrar na Associação, com
uma taxa extra de 20 euros.

Dessa forma, além da questão da língua, as taxas de inscrição com valores altos
(dada a conversão da moeda estrangeira) dificultariam ainda mais o acesso aos eventos
internacionais. Ainda assim, a proposta já era inovadora e muito importante com sua tí-
mida abertura para o mundo.
Contudo, após a chegada da pandemia do Covid-19, esse tipo de evento passou
de uma novidade pouco conhecida para a “nova realidade”, ou seja, era a única forma de
se fazer um congresso. A partir daí, vivenciamos uma explosão de eventos online.

Um dos mais importantes na área de medieval é o International Medieval Congress


(IMC) da Universidade de Leeds. O IMC fornece um fórum interdisciplinar para com-
partilhar ideias relacionadas a todos os aspectos da Idade Média. Desde a sua criação
em 1994, reúne pesquisadores de diferentes países, origens e disciplinas, oferecendo
oportunidades de networking. Ao proporcionar espaços para socialização, busca promo-
ver uma comunidade acadêmica mais integrada. É organizado e administrado pelo Insti-
tuto de Estudos Medievais da Universidade de Leeds, geralmente ocorrendo no campus
principal da Universidade. Como a maior conferência acadêmica do gênero na Europa, o

32
https://www.nuovomedioevo.it/2019/06/17/digital-medieval-congress-2019/.
33
https://www.numet.it/.
34
Essas diretrizes estão presentes na página do congresso: https://www.nuovomedioevo.it/2019/06/17/
digital-medieval-congress-2019/

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IMC costuma atrair mais de 2.700 medievalistas de todo o mundo. Também abriga uma
grande variedade de shows, exposições e excursões, abertos a delegados e ao público.

O Virtual IMC 2020 foi a primeira incursão no mundo da conferência virtual desse
evento. Ele contou com mais de 500 palestrantes em 5 dias, além de exposições virtuais,
feiras de livros e artesanato, entre outras possibilidades virtuais. Vale ressaltar que não
apenas as mesas de congressos passaram a ocorrer na WEB, mas também a venda de
livros, que geralmente acompanha tais eventos, passou, igualmente, a ser feita on-line.
Por exemplo, os muitos editores que normalmente exibem em Leeds durante o Interna-
tional Medieval Congress 2020 realizaram as vendas pelo website https://arc-humanities.
org/products/.

Muitas palestras, debates e eventos em Idade Média passaram a ocorrer de forma


online também no Brasil, possibilitando que medievalistas de todo país se conectassem e
expandissem seus contatos para além dos grupos de pesquisa. Um exemplo foi o III Ciclo
de Debates de História Antiga e Medieval: política, religião e poder, ocorrido em novembro
de 2020, sediado pelo Laboratório de História Antiga e Medieval da Universidade Fede-
ral do Piauí (LABHAM) em parceria com os grupos Mnemosyne (UEMA), o Laboratório de
Experiências Religiosas (LHER - UFRJ) e o grupo de pesquisa História e Culturas Religiosas
(UFPI).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa e o ensino nas Ciências Humanas vêm agregando, progressivamente,
mudanças que ocorrem desde o século passado no âmbito digital. Com isso, importantes
transformações foram vistas na última década com a adesão de processos tecnológicos
ao estudo das humanidades, criando novas possibilidades de acesso e incluindo mais
pesquisadores. Todas as possibilidades levantadas nesse artigo são claros exemplos de
como novas linguagens e novas tecnologias vêm possibilitando o estudo e a pesquisa na
área medieval.

Espera-se que essa tendência mundial de disponibilização de manuscritos, livros,


artigos, aulas, congressos etc na World Wide Web continue sendo prioridade das univer-
sidades e bibliotecas americanas e europeias, para que um acesso mais democrático ao
medievo aconteça. Dessa forma, aqueles que encontram tantas dificuldades para de-
senvolverem suas pesquisas em Idade Média, ou para a estudarem, seja no Brasil ou em
outras partes desfavorecidas do mundo, poderiam ter melhores oportunidades, contri-
buindo ainda mais com as redes de conhecimento científico.

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BOMBINI, Raíssa Rocha. O Medievo No Mundo Digital:
Novas Interfaces E Possibilidades. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 1-13, 2021.

AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da CAPES (Cód. de Financiamento 001).

REFERÊNCIAS

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for organization of knowledge and their role in the development of databases for his-
tory of science. Circumscribere, v. 21, p. 1-12, 2018.

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of Arnald of Villanova. Scriptorium, v. 33, n. 1, p. 40-55, 1979.

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Susan; SIEMENS, Ray; UNSWORTH, John. A Companion to Digital Humanities. Mal-
den, Oxford e Carlton: Blackwell, 2004.

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MENS, Ray; UNSWORTH, John. A Companion to Digital Humanities. Malden, Oxford e
Carlton: Blackwell, 2004.

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Linguistic Computing: Special Issue on Computers and Medieval Studies, v. 6, p. 20-
27, 1991.

RYDBERG-COX, Jeffrey A. Digital Libraries and the Challenges of Digital Humanities.


Oxford: Chandos Publishing, 2006.

SCHREIBMAN, Susan; SIEMENS, Ray; UNSWORTH, John. The Digital Humanities and
Humanities Computing: An Introduction. In: SCHREIBMAN, Susan; SIEMENS, Ray;
UNSWORTH, John. A Companion to Digital Humanities. Malden, Oxford e Carlton:
Blackwell, 2004.

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A CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NEGRAS E
PERIFÉRICAS NOS POEMAS DE DINHA
THE CONSTRUCTION OF BLACK AND PERIPHERAL FEMALE IDENTITIES IN
DINHA’S POEMS
Letícia Zafred Paiva1; Flávia Cristina Bandeca Biazetto2
Graduanda em Letras – Português e Inglês pelo Centro Universitário Sagrado Coração (Unisagrado)
1

2
Doutora em Letras. Professora do curso de Letras – Português e Inglês do Centro Universitário
Sagrado (Unisagrado)
Data de envio: 30/04/2021
Data de aceite: 26/05/2021

RESUMO
O presente artigo analisa a relação literatura-sociedade na construção das ima-
gens e estereótipos femininos no contexto brasileiro e, também, o papel da produção líri-
ca de literatura marginal periférica. Para isso, foi selecionado um corpus composto pelos
textos Poema Pouco Poema e Zero a Zero da escritora Dinha, a qual nasceu no Ceará em
1978 e reside em São Paulo desde 1979. A escolha da autora se dá pela sua importân-
cia não só no cenário da literatura marginal periférica, mas também por sua trajetória e
atuação política por meio da arte. Tendo isso em vista, o estudo considerou tanto dados
bibliográficos sobre literatura de autoria feminina e teorias feministas quanto a obra li-
terária, com o intuito de verificar como se dá a construção da identidade da mulher negra
e periférica nas obras da autora. Tal metodologia não atrela obra e biografia, mas não
descarta pontos de contato entre ambas e o trabalho de efabular da Literatura. A partir
desse percurso interpretativo, foi possível verificar que ao negar a concepção branca e
elitista de uma feminilidade frágil e passiva, Dinha expõe outras facetas do que é o ser
mulher. Assim, por meio de diálogos com outras escritoras negras e produções que ul-
trapassam a esfera da literatura, a autora utiliza da oralidade para tratar das questões
coletivas que assombram as mulheres negras e a população periférica.

Palavras-chave: Identidade. Sociedade. Literatura marginal periférica. Mulheres negras.

ABSTRACT
This article analyzes the literature-society relationship in the construction of fe-
male images and stereotypes in the Brazilian context and, also, the role of the lyrical pro-
duction of peripheral marginal literature. For this, a corpus was composed of the selec-
ted texts Poema Pouco Poema and Zero a Zero by the writer Dinha, she was born in Ceará
in 1978 and has been living in São Paulo since 1979. The choice of the author is due to
her importance in the peripheral marginal literature scene and her trajectory and poli-
tical performance through art. With this in mind, the study considered both bibliogra-
phic data on female authored literature, feminist theories and the literary work to verify
how black and peripheral women’s identity used constructed in the author’s works. Such

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PAIVA, Letícia Zafred e BIAZETTO, Flávia C. Bandeca . A CONSTRUÇÃO
DAS IDENTIDADES FEMININAS NEGRAS E PERIFÉRICAS NOS
POEMAS DE DINHA. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 14-21. 2021.

methodology does not link work and biography, but it does not rule out contact points
between both and the work of literature. From this interpretative path, it was possible
to verify that by denying the white and elitist conception of fragile and passive femini-
nity, Dinha exposes other facets of what it is to be a woman. Thus, through dialogues
with other black writers and productions beyond the sphere of literature, the author
uses orality to address the collective issues that haunt black women and the peripheral
population.

Keywords: Identity. Society. Peripheral marginal literature. Black women.

INTRODUÇÃO
A literatura pode ser entendida não só como plurissignificativa, confluindo ima-
gem e linguagem literária, mas também a partir de uma prática discursiva que apresenta,
em diferentes níveis e perspectivas, representações da sociedade tanto pela concisão
dos poemas, quanto pelas diferentes formas de narrar. Nesse sentido, é possível pensar
no papel dessa arte no processo de construção de identidade dos seres humanos, já que
possui o poder de reforçar ou romper com as imagens de controle socialmente delimita-
das.

Segundo Candido (2006), a relação entre literatura e sociedade é mais complexa


do que parece. Para o autor, é necessário demarcar aspectos que constituem as influên-
cias sociais exercidas tanto no escritor como em seu leitor e os divide em três: a estru-
tura social, os valores e ideologias e, por fim, as técnicas de comunicação. Portanto, o
momento de produção é permeado pela intersecção desses fatores: “[...]pois: a) o artista,
sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões da sua época,
b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio.”
(CANDIDO, 2006, p.30).

O crítico, ao analisar como os paradigmas sociais estão presentes na literatura,


pontua duas formas de produção artística, a agregação e a segregação. Tais conceitos
nos são válidos para questionarmos o padrão branco e ocidental que constitui cânone
literário, inerentes à primeira noção, na qual se busca identificar tendências e agregar
produções similares. Já a segunda, visa elaborar novas formas de configuração social,
evidenciando rupturas no cânone.

Em razão disso, a Literatura Marginal Periférica pode ser observada a partir da


arte de segregação. Pois, segundo Eble (2015), esse movimento surge da insuficiência do
cânone literário não só em representar as vivências periféricas e minoritárias para além
dos olhares elitistas e estereotipados, como também em acolher as produções artísticas
que divergem da tradição estabelecida até o momento. Para isso, os escritores periféri-
cos utilizam de um olhar documental, seja para realizar uma denúncia ou simplesmente
narrar o cotidiano daquele meio.

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PAIVA, Letícia Zafred e BIAZETTO, Flávia C. Bandeca . A CONSTRUÇÃO
DAS IDENTIDADES FEMININAS NEGRAS E PERIFÉRICAS NOS
POEMAS DE DINHA. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 14-21. 2021.

Nesse sentido, a escritora Dinha é um grande nome dentro da literatura periférica


e suas possibilidades de rupturas. Durante sua trajetória, expôs que a importância do pa-
pel da literatura e da escrita em sua vida vieram de um desejo de existir no mundo como
indivíduo e sobreviver. Nascida no Ceará em 1978 e residindo em São Paulo desde 1979,
a autora encontra na escrita uma forma de salvar a ela e aos seus pares de um Estado
genocida, conforme a própria denuncia em sua obra. Por isso, seu trabalho é permeado
pela intersecção de temas como gênero, negritude, periferia, genocídio, luta de classes,
família e amor; o afeto é revolucionário e potente nas obras da poeta.

Portanto, por meio de uma pesquisa de cunho qualitativo de revisão de literatura


e análise de texto, o presente artigo busca discutir a construção das identidades femini-
nas na literatura marginal periférica, sobretudo nos poemas de Dinha. Tal movimento, ao
se diferenciar não só pela busca de temáticas fora do eixo canônico, mas também pela
construção de novas identidades que fujam dos estereótipos presentes na tradição ca-
nonizada brasileira, torna-se relevante para o avanço do debate.

A UNIVERSALIZAÇÃO DA FIGURA FEMININA E SUA REPRESENTAÇÃO


Publicado originalmente em 1991, O mito da beleza, de Naomi Wolf, inicia a dis-
cussão sobre a condição das mulheres na sociedade ocidental traçando um panorama
geral das duas primeiras ondas do feminismo e suas consequências. A escritora revela
que após a luta pelo direito ao voto, a qual caracteriza a primeira onda, a intensificação
da opressão pautada nos padrões de comportamento entendidos como obrigatoriamen-
te femininos surge na tentativa de abafar o movimento insurgente. Assim, a segunda
onda é marcada pela reivindicação do poder de escolha para essas mulheres que não
aceitavam mais a mística feminina, como denominou a autora. Tal nomenclatura corres-
ponde aos ideais de uma feminilidade frágil, maternal e subserviente.

É importante ressaltar que embora Naomi pontue alguns dos rótulos destinados
às donas de casa de classe média na sociedade estadunidense, ainda há em seu discurso
e nas próprias fases do movimento feminista uma narrativa única em torno dos estereó-
tipos de feminilidade. Nesse contexto, Angela Davis traz uma crítica à essa universaliza-
ção e situa a condição da mulher negra escravizada:
[...] Na propaganda vigente, “mulher” se tornou sinônimo de “mãe” e
“dona de casa”, termos que carregavam a marca fatal da inferioridade.
Mas, entra as mulheres negras escravas, esse vocabulário não se fazia
presente. Os arranjos econômicos da escravidão contradiziam os papéis
sexuais hierárquicos incorporados na nova ideologia. Em consequência
disso, as relações homem-mulher no interior da comunidade escrava
não podiam corresponder aos padrões da ideologia dominante. (DAVIS,
2016, p.25)

Segundo Alves (2002), os autores brasileiros do século XIX no período de ascen-

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DAS IDENTIDADES FEMININAS NEGRAS E PERIFÉRICAS NOS
POEMAS DE DINHA. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 14-21. 2021.

são da burguesia ajudaram a construir, consolidar e disseminar três modelos do ideal


feminino: a mulher-anjo; a mulher-sedução e a mulher-demônio. A primeira relaciona-se
fortemente com os rótulos de pureza, castidade, delicadeza e beleza representados por
uma mulher branca e preferivelmente loira. Já a segunda, é responsável pela perpetua-
ção da narrativa da mulher que utiliza de seus “atributos femininos” para manipular os
homens. Embora a mulher-demônio fosse excluída da sociedade por retratar a tentação
e a liberdade sexual das prostitutas da época, há ainda um abismo entre essas categorias
criadas para mulheres brancas e as designadas às mulheres negras, pois:
Na situação do Brasil, com tipos étnicos diferentes houve uma adapta-
ção, embora os escritores dessem preferência por personagens brancas.
Uma maneira de ilustrar este pensamento está bem claro no romance de
Alencar, O Guarani, no qual a personagem principal é a loura e virginal
Ceci em oposição à morena brasileira, Isabel, que tem por destino a mor-
te, antes de concretizar qualquer vínculo com o amado. (ALVES, 2002, p.
88)

Porém, a presença de uma única abordagem sobre as questões de gênero não é


restrita à produção de autoria masculina. Ao observar a literatura de autoria feminina
crescente no final do século XIX, tem-se a repetição das temáticas em torno da mística
feminina universal (ALVES, 2002). No entanto, influenciadas pelas primeiras ondas do
feminismo branco ocidental, as autoras estudadas por Alves, como Sônia Coutinho, Pa-
trícia Bins e Lya Luft vão criticar o padrão de comportamento estabelecido e construir a
própria identidade feminina, abordando também as dimensões psicológicas da mulher:
[...] Outras especificidades de seus textos são despreocupação com a
descrição da beleza física e do comportamento das personagens femini-
nas, preferindo expressar os conflitos pelos quais conflituam o interior
da personagem. [...] Também não é demais dizer que enquanto os roman-
ces românticos procuraram focalizar os impedimentos e rituais do na-
moro e o seu desfecho se fazia com a união do casal, na mesma época, as
escritoras justamente construíam seus enredos, a partir do casamento,
explorando os desajustes e conflitos das protagonistas dentro da rela-
ção. (ALVES, 2002, p.94-95)

Para exemplificar as diferenças entre essas mulheres não só nas agendas políti-
cas, como na imagem construída socialmente, Lélia Gonzalez (1983, p.224) discute as
experiências de mulheres e homens negros na diáspora no continente americano para
denunciar o pensamento hegemônico. Para isso, a autora expõe três estereótipos sobre
a figura da mulher negra na sociedade brasileira. A mulata e a doméstica são duas faces
da mesma herança escravocrata, mas enquanto a primeira é animalizada, fetichizada, hi-
persexualizada e vendida como o ideal carnavalesco, a segunda representa a servidão
imposta da época colonial. Já a mãe preta surge como forma de apagar a resistência e
a insubmissão das mulheres negras, transformando-as em acolhedoras e condescen-
dentes. Desse modo, Lélia contrapõe, por exemplo, a figura da fragilidade marcada até
mesmo pela expressão popular “sexo frágil”, que no âmbito da análise do discurso é dire-

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DAS IDENTIDADES FEMININAS NEGRAS E PERIFÉRICAS NOS
POEMAS DE DINHA. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 14-21. 2021.

cionada a todas as mulheres, mas na prática está falando apenas de um grupo específico.

Em diálogo com a obra da intelectual brasileira, Angela Davis continua sua análise
demonstrando como as particularidades do racismo, do capitalismo e do sexismo mol-
dam a construção da mulher negra enquanto sujeito, pois “As mulheres não eram “femi-
ninas” demais para o trabalho nas minas de carvão e nas fundições de ferro, tampouco
para o corte de lenha e a abertura de valas.” (DAVIS, 2016, p.22-23). A autora cita ain-
da as diversas formas de resistência protagonizadas por elas, dando ênfase no papel da
educação, da leitura e da escrita no processo de luta pela liberdade.

Esta breve explanação sobre teorias que exploram a representação das mulheres
negras nos permite levantar alguns questionamentos acerca do corpus estudado, pois
Dinha também aborda a interseccionalidade de raça, classe e gênero que age sobre o
papel social das mulheres negras brasileiras. É possível pensar ainda sobre a motivação
de Dinha ao optar por evidenciar a condição marginalizada imposta às mulheres negras
trabalhadoras em nossa sociedade e o porquê de escolher retratar a família periférica e
negra. Tais reflexões serão abordadas a seguir, dialogando as análises dos poemas com a
teoria apresentada.

A MULHER NEGRA NA PERSPECTIVA DE DINHA


Retomando o pensamento de Antonio Candido (2006), a relação entre os fatores
sociais e o autor está exposta à medida que, como analisado por Davis, a escritora Dinha
constrói uma identidade feminina combativa, a exemplo do trecho do poema Zero a Zero
“Repondo a morte com vida / Repondo Ricardo a Ricardo / Rivaldo a Rivaldo / dobrando
os soldados / perpetuando a ira / e a lira.”, há o foco na lírica, ou seja, na arte da escrita
como mais uma forma de resistir.

O trecho ainda permite a reflexão sobre o papel da mulher negra na construção e


manutenção de sua família, uma vez que nesse poema Dinha busca expor uma situação
muito comum nas favelas do Brasil: a brutalidade policial e como ela afeta essas famílias
majoritariamente negras dentro das periferias. Vale ressaltar que esse papel familiar se
difere do imposto às mulheres brancas, uma vez que Dinha não limita as mulheres negras
à maternidade, retratando-as inclusive como trabalhadoras. Além disso, Dinha subverte
a idealização da maternidade, pois demonstra que para essas mulheres criar seus filhos é
um afronte ao Estado, que os quer mortos desde a colonização. A discussão sobre a dis-
tinção das expectativas em relação ao feminino também é colocada em pauta por Davis:
É verdade que a vida doméstica tinha uma imensa importância na vida
social de escravas e escravos, já que lhes propiciava o único espaço em
que podiam vivenciar verdadeiramente suas experiências como seres
humanos. Por isso – e porque assim como seus companheiros, também
eram trabalhadoras –, as mulheres negras não eram diminuídas por suas
funções domésticas, tal como acontecia com as mulheres brancas [...]
(DAVIS, 2016, p.29)

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PAIVA, Letícia Zafred e BIAZETTO, Flávia C. Bandeca . A CONSTRUÇÃO
DAS IDENTIDADES FEMININAS NEGRAS E PERIFÉRICAS NOS
POEMAS DE DINHA. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 14-21. 2021.

Em virtude disso, as categorias de influência por estrutura social e por ideologia


propostas por Candido (2006, p.30) estão representadas, por exemplo, na afirmação
“Somos negras”, a qual dá início a outro texto de Dinha, Poema Pouco Poema. Além disso,
observando também a marca da assonância do “a” tônico em seus versos, pode-se pensar
que a escritora busca ressaltar e construir a imagem da importância do feminino negro
não só na construção de seu poema, mas de toda a sociedade. É o que ocorre em trechos
como “Estamos em muitos lugares / Na motorista do ônibus que nos leva e nos traz pelas
veias da cidade.” (DINHA, 2015, p.17)

Outro ponto a ser observado no trecho é a utilização da metáfora “veias da cida-


de” para falar sobre o caminho que esse ônibus percorre, o que possibilita a leitura de
que assim como o sangue que corre pelas veias é crucial para os seres humanos, essas
trabalhadoras dentro dos ônibus por essas ruas também são essenciais para a sociedade,
valorizando e colocando em evidência a classe trabalhadora

Ao continuar o poema listando os empregos ocupados em específico por essas


mulheres, já que a autora faz questão de ressaltar “Na atendente de telemarketing. / Na
caixa de supermercado. / Na empregada doméstica / Na escritora esquecida [...]” (DI-
NHA, 2015, p.17), Dinha parece demarcar que essas são as posições ocupadas pela clas-
se trabalhadora, a qual sustenta esse país “ainda que não se saiba” (DINHA, 2015, p.17).
Tal movimento pode conversar com a imagem anterior criada pelas veias da cidade, pois
assim como o sangue ajuda a sustentar o corpo, essas trabalhadoras ocupando diversas
posições essenciais também ajudam a manter o funcionamento da sociedade como um
todo. Há ainda uma possível crítica ao cânone literário em si, marcada pela denúncia do
mercado editorial e do ambiente acadêmico que esquecem dessa escritora e trabalhado-
ra. Mais uma vez, Dinha expõe sua capacidade de olhar para o todo, perceber e nomear
as estruturas de exclusão vigentes em nossa sociedade.

Já a influência por meio das técnicas de comunicação (CANDIDO, 2006, p.30),


pode ser observada nessa obra pelo diálogo entre o movimento Hip Hop, que por sua
vez compartilha de uma estrutura marcada pela oralidade. Ao longo do texto Poema Pou-
co Poema, a poeta trabalha temas como gênero; o estereótipo da criminalidade imposto
às pessoas negras; a relação entre classe e raça na sociedade brasileira e a negação da
branquitude ao reconhecer o papel e a importância da população negra no país, como o
exposto no trecho:
No feminino e no masculino. / Estamos em muitos lugares / Pouco valo-
rizados. / Mas isso não dói em nada. / O chato é ter que ouvir os trouxas
ruminando espasmos: / Três pretos lhe roubaram. / Logo, / pretos são
safados. (DINHA, 2015, p.17-18)

Tal postura dialoga com o proposto no documentário AmarElo, do rapper Emicida,


o qual expõe a relevância da cultura preta para a história brasileira e sobretudo para a
cidade de São Paulo. As produções também dialogam entre si pela construção do eu líri-
co como um “nós” bem demarcado enquanto espaço de resistência; memórias ancestrais

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PAIVA, Letícia Zafred e BIAZETTO, Flávia C. Bandeca . A CONSTRUÇÃO
DAS IDENTIDADES FEMININAS NEGRAS E PERIFÉRICAS NOS
POEMAS DE DINHA. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 14-21. 2021.

de luta e a importância das mulheres e pessoas negras para a sociedade e para a defesa
das periferias. Logo, pode-se inferir que ao optar em estabelecer diálogos com a tradi-
ção oral, a poeta valoriza sua origem negra, visto que a cultura afro-brasileira valoriza as
marcas de oralidade.

Assim, ao contrário da autoria feminina do final do século XIX, Dinha expõe o co-
tidiano por meio de um olhar feminino e periférico, que não só experiencia a narrativa na
pele, mas também utiliza dela como ferramenta para criar uma estrutura literária dife-
renciada. A autora também evidencia a atuação social e a subjetividade da mulher negra,
a qual é representada como sujeito agente na sociedade e em sua família, sendo respon-
sável pelo trabalho, criação dos filhos e resistência política. Além disso, ao mesmo tempo
em que denuncia o descaso com as trabalhadoras, Dinha exalta a importância delas para
toda a sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando as análises realizadas sobre a representação das mulheres na tra-
dição brasileira em diferentes períodos, percebe-se que a literatura é permeada pelo
contexto político e pelos debates que regem a sociedade na qual está inserida. Nesse
sentido, conforme o movimento feminista solidifica suas bases e aperfeiçoa seus méto-
dos de análise e referenciais teóricos, surgem as críticas de cunho racial, econômico e
mais adiante, de sexualidade, as quais resultam na transformação dos indivíduos e de
suas produções artísticas.

Por isso, é necessário compreender a literatura marginal periférica não somente


como um gênero ou estilo de escrita, mas como um movimento político que visa a quebra
de paradigmas sobre as concepções de arte, literatura e imaginário coletivo em nossa
sociedade. As obras periféricas e suas análises em uma perspectiva crítica que não des-
considere o contexto de produção, mas tampouco o adote como único fator para a atri-
buição de um juízo de valor, contribuem para avançar o debate.

Assim, ao romper com as noções do feminismo hegemônico e da universalização


da figura feminina, Dinha constrói novos parâmetros para a identidade das mulheres ne-
gras no Brasil contemporâneo. Tal movimento é possível não só pelo domínio das técni-
cas líricas e da leitura crítica de mundo, mas também por conta da estrutura da Literatura
Marginal Periférica, a qual busca criar práticas para a humanização e politização dos in-
divíduos negros, periféricos e marginalizados socialmente.

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PAIVA, Letícia Zafred e BIAZETTO, Flávia C. Bandeca . A CONSTRUÇÃO
DAS IDENTIDADES FEMININAS NEGRAS E PERIFÉRICAS NOS
POEMAS DE DINHA. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 14-21. 2021.

REFERÊNCIAS
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FERREIRA, Sílvia Lúcia; NASCIMENTO, Enilda Rosendo (org.). Imagens da mulher na
cultura contemporânea. Salvador: NEIM/ UFBA, 2002. Coleção Bahianas. v. 7, p. 85-98.
Disponível em: http://www.neim.ufba.br/wp/wp-content/uploads/2013/11/imagens.
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CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul,
2006.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 22-29.

EBLE, Taís Aline; LAMAR, A. R. A literatura marginal/periférica: cultura híbrida, con-


tra hegemônica e a identidade cultural periférica. Revista Especiaria (UESC), v. 16, p.
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GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais
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br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20
L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf.
Acesso em: 14 abr. 2021

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mu-
lheres. 15ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.

21
ROTINAS DE PENSAMENTO VISÍVEL POR MEIO DOS MEMES NAS
AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: PARTICIPAÇÃO E ENGAJAMENTO
NA SALA DE AULA1
ROUTINES OF VISIBLE THINKING THROUGH MEMES IN PORTUGUESE
LANGUAGE CLASSES: PARTICIPATION AND ENGAGEMENT IN THE
CLASSROOM
Isabela Scarelli Domingues1; Patricia Aparecida Gonçalves de Faria2
1
Graduanda em Letras – Português e Inglês pelo Centro Universitário Sagrado Coração (Unisagrado) -
Bauru – São Paulo – Brasil – email: belascarelli@gmail.com.
2
Doutora em Letras e Professora da graduação em Letras - Português e Inglês pelo Centro Universitário
Sagrado Coração (Unisagrado) - Bauru – São Paulo – Brasil – email: patricia_faria09@yahoo.com.br

Data de envio: 04/01/2021


Data de aceite: 28/02/2021

RESUMO
A utilização de tecnologias tem gerado transformações no âmbito educacional.
Embora seu uso tenha aumentado em sala de aula com os slides e pesquisas na internet,
as práticas pedagógicas continuam seguindo o modelo tradicional. Essa situação se in-
tensifica nas aulas de Língua Portuguesa, sendo necessárias medidas para que haja mais
atividades que explorem as novas práticas sociais do uso da linguagem. Nesse sentido, a
presente discussão aborda os memes, de forma a relacionar teoria e prática, tornando as
aulas de Língua Portuguesa mais dinâmicas e interativas. Para isto, as rotinas de pensa-
mento visível, defendidas pelo Project Zero da Universidade de Harvard, funcionam como
metodologia do professor, de maneira que possa engajar e encorajar os alunos a exerce-
rem o pensamento crítico, desenvolverem habilidades de interpretação, leitura, escrita,
reflexão e apresentarem autonomia em sala de aula, por meio dos memes.

Palavras-chave: Língua Portuguesa. Metodologias Ativas. Memes. Rotinas de Pensa-


mento.

ABSTRACT
The use of technologies has caused changes in the educational field. Although their use
has increased in the classroom with slides and searches on the internet, pedagogical
practices continue to follow the traditional model. This situation is intensified in
Portuguese language classes, and actions are needed to provide more activities to
explore the new social practices of language use. In this sense, the present discussion
addresses memes, associating theory with practice, making Portuguese language classes
more dynamic and interactive. Visible thinking routines, advocated by Project Zero at
1
Pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPQ.

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DOMINGUES, Isabela Scarelli; FARIA, Patrícia A. Gonçalves. Rotinas
de Pensamento Visível por Meio dos Memes nas Aulas de Língua
Portuguesa: Participação e Engajamento na Sala de Aula. MIMESIS,
Bauru, v. 42, n. 1, p. 22-31. 2021.

Harvard University, work as a methodology for teachers, allowing them, through memes,
to engage and encourage students to exercise critical thinking; develop interpretation,
reading, writing, and reflection skills; and have autonomy in the classroom.

Keywords: Portuguese language. Active Methodologies. Memes. Thought Routines.

INTRODUÇÃO
O ensino de Língua Portuguesa é tão complexo e abrangente, que é comum sur-
girem desafios em sala de aula que deixam professores perdidos e sem saber por onde
começarem seu trabalho. Por conta disso, muitas vezes, a perspectiva de estudo de pala-
vras e frases descontextualizadas, aulas mecanizadas e focadas em memorização, além
dos monólogos do professor, infelizmente ainda são características da educação brasilei-
ra nas aulas de língua materna.

Diante disso, o objetivo principal do ensino da linguagem, que é o de promovê-


-la como instrumento de interação social, é minimizado por tal concepção. Logo, muitos
pesquisadores da atualidade debruçam-se sobre tais problemas, com o objetivo de bus-
car soluções para que as aulas de Língua Portuguesa sejam significativas e que cumpram
sua função social.

Consequentemente, o quadro do insucesso escolar é desesperador, pois segun-


do notícia publicada no site G1 em 2019, a maioria dos estudantes saem do ensino mé-
dio com defasagem na disciplina de Língua Portuguesa, pois 7 em cada 10 estudantes
(70,9%) possuem o nível de aprendizagem baixo, logo, os avanços para mudar tal reali-
dade é lento e desafiador. Tal estatística amplifica a ideia de que a Língua Portuguesa é
muito difícil de aprender, podendo até ser um contribuinte para a evasão escolar.

Com base neste cenário, faz-se necessária uma mudança nas metodologias dos
professores do ensino de línguas das escolas, promovendo um maior engajamento e in-
teresse por parte dos alunos e a valorização da criatividade do docente em propor ativi-
dades de aprendizagem ativa que fazem parte da realidade do estudante, incentivando a
recriação de atividades didáticas e a organização de ambientes diversos.

O aprendizado, com base nas metodologias ativas, se dá a partir da participação


integral do aluno que pesquisa, compartilha conhecimento com os colegas, debate, toma
atitudes, analisa situações, reflete e, consequentemente, resolve problemas com criati-
vidade.

A partir desta concepção, surge nos Estados Unidos, o Project Zero, fundado pelo
filósofo Nelson Goodman na Harvard Graduate School of Education em 1967, que visa a
compreensão da aprendizagem nas artes e por meio delas. Fundindo teoria e prática, há
a investigação sobre a complexidade dos potenciais humanos - inteligência, compreen-

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DOMINGUES, Isabela Scarelli; FARIA, Patrícia A. Gonçalves. Rotinas
de Pensamento Visível por Meio dos Memes nas Aulas de Língua
Portuguesa: Participação e Engajamento na Sala de Aula. MIMESIS,
Bauru, v. 42, n. 1, p. 22-31. 2021.

são, pensamento, criatividade, pensamento interdisciplinar e intercultural, ética - e a ex-


ploração das formas sustentáveis de apoiá-los em contextos múltiplos e diversos.

A “Caixa de Ferramentas”, um recurso desenvolvido pelo projeto, destaca rotinas


de pensamento organizadas por categorias que servem como base para atividades que
desenvolvem diversas habilidades, além de serem metodologias ativas capazes de enga-
jar alunos, a fim de contribuir para sua formação crítica e autônoma.

Nesse sentido, os processos de ensino-aprendizagem nas aulas de Língua Portu-


guesa precisam se adequar às novas demandas. Em outras palavras, deve-se criar ati-
vidades didáticas que incluam textos que se aproximem do contexto social dos alunos,
visando a sua formação como sujeito autônomo e crítico. Nesse âmbito, os ambientes
virtuais se tornam aliados dessas novas estratégias de ensino, sendo utilizadas com um
propósito e inseridas em um contexto, ou seja, a internet deixa de ser uma distração em
sala de aula e passa a ser um potencializador no desenvolvimento dos estudantes.

Assim, os gêneros discursivos são uma proposta para se entender os diferentes


discursos que circulam na sociedade. Um dos gêneros que os meios digitais têm destaca-
do e difundido, é o meme, que para Silva, Francelino e Melo (2017, p. 178) “configura-se
como um gênero discursivo”. Por ser algo que faz parte do cotidiano dos alunos, a utili-
zação desse gênero auxilia no engajamento da participação e atenção dos discentes às
aulas.

Dessa forma, o objetivo do presente corpus é discutir as metodologias ativas pro-


postas pelo Project Zero, atrelando o gênero textual meme como recurso interdiscipli-
nar que promova a participação dos alunos nas aulas de Língua Portuguesa. Tal transfor-
mação da didática das aulas, justifica-se pela necessidade de engajamento, conquista de
interesse e melhora da aprendizagem dos estudantes.

LINGUAGEM E MEMES: PRODUÇÃO E REPLICAÇÃO DA CIBERCULTURA


No que tange o ensino de Língua Portuguesa no cenário atual do ensino médio,
percebe-se um bloqueio ainda maior tanto por parte dos estudantes, pelas aulas serem
apenas de decoreba de regras, como também dos professores, que encontram dificulda-
des de serem inovadores da didática desta área. Para Irandé Antunes, da Universidade
Estadual do Ceará (2007), é preciso ir além das definições, para descobrir, por exemplo,
a função dos substantivos e pronomes na introdução e na manutenção do tema ou do
enredo, ou seja, é necessário deixar as frases soltas de lado e focar nos sentidos.

Em concordância com Saussure (1969, p.17), a linguagem é “multiforme e heteró-


clita”; está “a cavaleiro de diferentes domínios”; é, “ao mesmo tempo, física, fisiológica e
psíquica”; “pertence (...) ao domínio individual e ao domínio social”. Por isso, confina com
diferentes campos do saber, não só das ciências humanas, mas também das ciências exa-

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DOMINGUES, Isabela Scarelli; FARIA, Patrícia A. Gonçalves. Rotinas
de Pensamento Visível por Meio dos Memes nas Aulas de Língua
Portuguesa: Participação e Engajamento na Sala de Aula. MIMESIS,
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tas e biológicas. Daí revela-se o caráter interdisciplinar da língua, podendo ser explorada
em todas as disciplinas, abrangendo várias habilidades e competências.

O ensino das aulas de português, como defende Avelar (2017), deve priorizar ati-
vidades em que o aluno tenha contato com práticas que incentive e desperte curiosidade
em formular hipóteses, estabelecer generalizações, desenvolver testes de verificação e
pôr à prova visões tradicionais e conservadoras por meio da abordagem gramatical.

O texto, portanto, passa a ser um importante fator de compreensão do outro, pois


é por meio dele que o sujeito se coloca no discurso e debate ideias, expõe opiniões, for-
ma-se e transforma-se além de ampliar seu conhecimento de mundo. Nas palavras de
Bakhtin (1999, p.15): “A língua é, como para Saussure, um fato social, cuja existência se
funda nas necessidades da comunicação”. A partir disso, justifica-se a importância da
interação social em sala de aula por meio de atividades em pares e grupos, pois além de
aprenderem uns com os outros, há o aprimoramento da habilidade de solucionar confli-
tos e exercitar a empatia.

Além disso, os grupos permitem que os alunos assumam papéis administrativos


dentro deles, podendo adquirirem habilidades de gestão de tempo, conferindo o senso
de pertencimento e responsabilidade, questões altamente relevantes para o exercício da
cidadania.

Assim, a leitura e a escrita devem estar em consonância com o objetivo principal


da linguagem, que é o de ser o meio de comunicação e não apenas competências que
poucos “nascem” sabendo ou não. Para isso, os gêneros textuais são aliados no processo
de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa, já que segundo Marcuschi (2002, p. 20):
[...] surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em
que se desenvolvem. Caracterizam-se muito mais por suas funções co-
municativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades
linguísticas e estruturais. São de difícil definição forma, devendo ser con-
templados em seus usos e condicionamentos sócio pragmáticos caracte-
rizados como práticas sócio discursivas.

Além disso, os gêneros textuais estão presentes em nosso cotidiano e são o prin-
cipal meio de informações que chegam até nós. Ainda mais com a internet, que virou o
principal meio de informações e até formador de opiniões da atualidade. Com ela, outros
gêneros textuais surgiram, como é o caso do meme.

Imagens com personalidades humorísticas da cultura popular, internautas que vi-


ralizam na internet, piadas satíricas, linguagem coloquial e repleta de erros ortográficos,
retratação de acontecimentos do cotidiano, podendo ser engajados politicamente, são
algumas das características desse gênero que implica uma interpretação discursiva por
parte do leitor, para que seja compreendido.

Originalmente, o termo “meme”, foi utilizado por Richard Dawkins (1979), um

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de Pensamento Visível por Meio dos Memes nas Aulas de Língua
Portuguesa: Participação e Engajamento na Sala de Aula. MIMESIS,
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zoólogo, em seu livro “The Selfish Gene”, que explica a teoria de Charles Darwin sobre
a molécula replicadora, que segundo ele, possibilitou a origem de todas as espécies por
meio dela. Para Dawkins (1979), o sintagma “meme” também é como um replicador, pois
contribui com a transmissão cultural ao propagar ideias.

Embora o uso das redes sociais seja intenso, os trabalhos acadêmicos discutem
que o potencial dos memes enquanto objetos de aprendizagem seja pouco. Porém, por
ser um gênero de linguagem simples e interativo, que interliga diversas áreas do conheci-
mento e promove a interdisciplinaridade, como destacam Ferreira (2019), Neder (2019)
e Coe (2019), os memes são uma boa proposta de metodologia ativa no ensino de Língua
Portuguesa pela possibilidade de exploração dos recursos semióticos. Em sua produção,
é necessário que os autores detenham um conhecimento prévio e a percepção de rela-
ções de intertextualidade, promovendo aos leitores, o exercício da análise interpretativa
do discurso.

Nesse sentido, Santos e Santos (2013, p. 49), postulam que:


[...] é necessária e urgente a aproximação entre os campos da Educação e
da Comunicação, assim como a compreensão de que ver, ouvir, interagir,
criar, compartilhar, é uma urgência e um dos grandes desafios para o pro-
fessor da contemporaneidade. Mudanças profundas foram provocadas
pela extensão e desenvolvimento das redes interpessoais de comunica-
ção. Cada um pode apropriar-se dos diversos formatos digitais e tornar-
-se criador, compositor, colaborador. A partir disso, é possível criar e po-
tencializar processos criativos que tenham o digital como suporte, como
é o caso das mídias digitais e das redes sociais.

Assim, em concordância com a citação acima, destaca-se a importância da inser-


ção de recursos das mídias sociais aos quais os discentes estão contextualizados, no pro-
cesso de ensino-aprendizagem, para que dessa forma, eles sejam capazes de articular
sua linguagem e refletir sobre ela, a partir de uma situação real de seu cotidiano.

Como salientam Oliveira, Porto e Alves (2019, p. 6), “os memes representam um
artefato discursivo, ideológico e semiótico complexo”, por isso, ao utilizar o meme como
objeto de aprendizagem, exige-se um olhar crítico permanente e focado na interpreta-
ção de suas diversas leituras possíveis dependentes de seu contexto.

Assim, ao considerar o meme como um recurso para a prática pedagógica nas au-
las de Língua Portuguesa, é possível trabalhar quatro habilidades que constam na Matriz
de Referência de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do ENEM, que são:
H1 - Identificar as diferentes linguagens e seus recursos expressivos
como elementos de caracterização dos sistemas de comunicação; H2 -
Recorrer aos conhecimentos sobre as linguagens dos sistemas de comu-
nicação e informação para resolver problemas sociais; H3 - Relacionar
informações geradas nos sistemas de comunicação e informação, con-
siderando a função social desses sistemas; H4 - Reconhecer posições
críticas aos usos sociais que são feitos das linguagens e dos sistemas de

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DOMINGUES, Isabela Scarelli; FARIA, Patrícia A. Gonçalves. Rotinas
de Pensamento Visível por Meio dos Memes nas Aulas de Língua
Portuguesa: Participação e Engajamento na Sala de Aula. MIMESIS,
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comunicação e informação. (BRASIL, 2015, n.p.)

Dessa forma, os professores podem tanto trabalhar memes que já existem com
os alunos a fim de contextualizar os conteúdos, promover atividades de interpretação e
reconhecimento de figuras de linguagem, classe de palavras, orações subordinadas, den-
tre outros, como também oportunizar oficinas de criação de memes baseados nos con-
teúdos estudados em sala, ancorados nas metodologias ativas e rotinas de pensamento
propostas pelo Project Zero (RICHHART et al, 2011).

METODOLOGIAS ATIVAS E AS ROTINAS DE PENSAMENTO


Considerando os interlocutores em um diálogo, logo pressupomos que a intera-
ção verbal é o instrumento do processo de aprendizado entre sujeitos ativos e protago-
nistas do próprio entendimento. Conforme pontua MOREIRA (2011), ao analisarmos a
interação social na teoria de Vygotsky, encontramos a importância da solução de pro-
blemas para o desenvolvimento cognitivo do aluno, ou seja, tal metodologia, sob orien-
tação do professor, viabiliza o compartilhamento de informações entre sujeitos. Em sua
teoria, a aprendizagem ocorre na zona de desenvolvimento proximal (ZDP), a qual se
refere a distância entre a zona de conhecimento real (capacidade autônoma de resolver
problemas) do indivíduo e a zona de desenvolvimento proximal (capacidade de resolver
problemas sob mediação).

Com base nessa perspectiva, um caminho para promover a transformação no en-


sino de Língua Portuguesa é a reflexão feita por professores sobre suas próprias pro-
postas pedagógicas com o intuito de reunir teoria e prática para que as aulas sejam mais
significativas, como a oferta de trabalhos em grupos, discussões sobre os sentidos e os
significados, pesquisas sobre problemáticas reais e propostas de intervenção. Assim, os
alunos utilizam a linguagem como forma de se posicionarem como cidadãos frente aos
problemas da comunidade, uma vez que irão interagir a fim de serem ouvidos; expres-
sando-se, portanto, a linguagem oral que também deve ser valorizada.

De acordo com as Rotinas de Pensamento no Project Zero (RICHHART et al,


2011) da Harvard University, a pesquisa Visible Thinking ou Pensamento Visível, essa
metodologia tem um duplo objetivo: por um lado, cultivar as habilidades e disposições de
pensamento dos alunos e, por outro, aprofundar a aprendizagem do conteúdo.

Dessa forma, o aluno sente-se o centro de sua aprendizagem, já que seus conhe-
cimentos são valorizados e a sua participação no processo é ativa. Com base nesse pres-
suposto, nas aulas de Língua Portuguesa, é de extrema importância que os professores
incentivem seus alunos a participarem das aulas, de maneira ativa, a partir de projetos,
dinâmicas, participação em seminários e outras formas de aprendizagem. Em síntese, de-
ve-se fugir das metodologias tradicionais, com foco na lousa e nas carteiras enfileiradas.

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DOMINGUES, Isabela Scarelli; FARIA, Patrícia A. Gonçalves. Rotinas
de Pensamento Visível por Meio dos Memes nas Aulas de Língua
Portuguesa: Participação e Engajamento na Sala de Aula. MIMESIS,
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Sendo assim, os memes são ótimas ferramentas para que se adaptem atividades
em que sejam valorizados os interesses de cada discente, podendo promover em sala
de aula, um ambiente que seja acolhedor e engajador. Paulo Freire (2011, p. 67) critica o
sistema educacional, alegando que o aluno é pressionado a pensar de forma automática,
sem flexibilidade e de modo limitado. Tal posicionamento implica em diversos malefícios
para uma aprendizagem significativa, uma vez que o aluno é visto apenas como um re-
ceptor e seu direito de fala é silenciado. Logo, para o estudioso:
A memorização mecânica do perfil do objeto não é aprendizado verda-
deiro do objeto ou do conteúdo. Neste caso, o aprendiz funciona muito
mais como paciente da transferência do objeto ou do conteúdo do que
como sujeito crítico, epistemologicamente curioso, que constrói o co-
nhecimento do objeto ou participa de sua construção (FREIRE, 2011, p.
67).

Seguindo esta perspectiva, as aulas de Língua Portuguesa devem explorar meto-


dologias em que privilegiem o pensamento visível como forma de exercitar a criticidade,
a chave de todas as habilidades que são necessárias para a resolução de conflitos. Logo,
sendo a linguagem o instrumento das ideias, ela deve ser exercitada tanto na fala, quanto
na escrita em sala de aula.

Para isso, a abordagem para tornar a Aprendizagem Visível do Instituto Singula-


ridades, promoveu um curso entre 2018 e 2019, no qual foram debatidas metodologias
sistematizadas por meio de Rotinas de Pensamento que fazem parte do Project Zero
(RICHHART, 2015; RICHHART et al 2011), bem como a eficácia do desenvolvimento de
competências: criatividade, comunicação, colaboração, (auto)avaliação, feedback e me-
tacognição por meio delas.

As Rotinas de pensamento são constituídas por estruturas de fácil memorização,


que podem ser adaptadas de acordo com os objetivos do professor, utilizada na forma-
ção de hábitos mentais de pensamentos, como: observar, buscar e raciocinar baseado
em evidências, reconhecer as próprias aprendizagens, elaborar perguntas e hipóteses,
dentre outras. Algumas das rotinas de pensamento mais significativas para o ensino de
Língua Portuguesa com a utilização de memes são:

■ Vejo/Penso/Pergunto ou Imagino: sobre um meme, descrever o que se vê, o que


se pensa sobre o que se vê e o que se imagina ou pergunta a partir do que se vê e
pensa;

■ Penso/Compartilho em pares/Compartilho em grupos: sobre uma questão que


é representada por um meme, primeiro reflete-se e registra-se individualmente;
em seguida, em duplas e/ou grupos, então, cada grupo ou dupla elege um repre-
sentante para expor a síntese para a classe;

■ Gero/Seleciono/Conecto/Elaboro: promover o registro de ideias centrais (pré-

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DOMINGUES, Isabela Scarelli; FARIA, Patrícia A. Gonçalves. Rotinas
de Pensamento Visível por Meio dos Memes nas Aulas de Língua
Portuguesa: Participação e Engajamento na Sala de Aula. MIMESIS,
Bauru, v. 42, n. 1, p. 22-31. 2021.

vias e pesquisas por meio de leitura) sobre um determinado assunto que seja re-
presentado por um meme, como Mapas Conceituais.

Dessa forma, o processo de aprendizagem passa a ser mais efetivo, significativo e


ativo, já que segundo a pesquisa do Project Zero, nomear, perceber o próprio pensamen-
to e quando ele ocorre é condição para controlá-lo e modulá-lo. A consciência sobre as
diferentes ocasiões e modos de pensar é “o afeto de todas as disposições” (RICHHART et
al 2011, p.33). Assim, todas as metodologias desenvolvem habilidades de autoavaliação,
pensamento, reflexão, debate e promovem experiências de aprendizagem diferenciadas.

Com a adaptação destas atividades inseridas a utilização dos memes, o professor


estimula a compreensão completa do assunto trabalhado, já que o aluno precisa resgatar
o discurso presente em cada meme, assim como interpretar as linguagens verbal e não
verbal presente no gênero. Além disso, cria-se uma conexão entre o que é ensinado e o
que se vive fora da escola facilitando, desta forma, a compreensão das habilidades abor-
dadas nas aulas de Língua Portuguesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, é notória a necessidade de redefinição do papel do professor como
incentivador e engajador dos alunos, no sentido de valorizar seus interesses pessoais,
bem como contextualizar suas práticas de ensino. No caso do professor de Língua Portu-
guesa, os memes são um recurso dessa prática, com o intuito de promover espaços para
oficinas/atividades de criação de memes a partir do assunto da aula. Para isso, as Rotinas
de Pensamento são ferramentas de auxílio no planejamento das aulas, bem como das
metodologias para que fiquem de acordo com os objetivos do professor.

Nesse segmento, os memes exercem uma função social ao trazerem temas do co-
tidiano para o debate, promovendo o pensamento crítico e reflexivo. Além disso, por ser
um gênero textual característico do meio digital, há também o aproveitamento de tais
ambientes virtuais, que deixam de ser concorrentes e viram aliados no processo de ensi-
no e aprendizagem, contribuindo na exploração dos recursos semióticos.

Isso posto, diante de tal perspectiva, conclui-se que a prática do professor de Lín-
gua Portuguesa deve ser pautada na construção de pontes entre o uso acadêmico e o
social da linguagem. Nesse sentido, justifica-se a utilização dos memes como tal recurso
como forma de trazer o ambiente digital, bem como os interesses dos alunos para a sala
de aula, provando que o processo de ensino e aprendizagem pode ser prazeroso, diver-
tido e significativo.

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DOMINGUES, Isabela Scarelli; FARIA, Patrícia A. Gonçalves. Rotinas
de Pensamento Visível por Meio dos Memes nas Aulas de Língua
Portuguesa: Participação e Engajamento na Sala de Aula. MIMESIS,
Bauru, v. 42, n. 1, p. 22-31. 2021.

AGRADECIMENTOS
Ao CNPQ, pelo financiamento do projeto de pesquisa intitulado: Metodologias
ativas por meio dos memes: a influência nos estudos de Língua Portuguesa, que contri-
buiu para o desenvolvimento deste artigo.

REFERÊNCIAS
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Paulo: Parábola Editorial, 2017.

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31
A DISCIPLINA POSITIVA NA INTERAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: INTERPRETANDO
ASPECTOS VERBAIS E NÃO VERBAIS DOS ALUNOS
POSITIVE DISCIPLINE IN TEACHER-STUDENT INTERACTION: INTERPRETING
VERBAL AND NON-VERBAL ASPECTS OF STUDENTS

João Vitor Zanini Crema1; Maria Laura Golfiere2


1
Advogado, Pedagogo e Especialista em História, Cultura e Poder; UNISAGRADO,
jzcrema@gmail.com
2
Tradutora, Pedagoga e Mestranda em Fonoaudiologia, Universidade de São Paulo – FOB/USP,
marialauragolfiere@usp.br

Data de envio: 04/01/2021


Data de aceite 28/02/2021
RESUMO

Especialistas em Disciplina Positiva (DP) recomendam a prática da abordagem


centrada na criança em diversas situações, de modo a compreender, através da comuni-
cação verbal ou não verbal, o que está por trás de um comportamento. O objetivo des-
ta pesquisa é apresentar conceitos a respeito da DP que justifiquem a sua importância
no contexto da interação professor-aluno no processo de ensino aprendizagem, assim
como introduzir possíveis estratégias e suas contribuições para a prática em sala de aula,
frente a comportamentos verbais e não verbais, que os alunos comumente apresentam.
Trata-se de uma pesquisa de caráter investigativo qualitativo realizada por meio de revi-
são bibliográfica.

Palavras-chave: Alunos. Disciplina Positiva. Comportamento. Estratégias Pedagógicas.

ABSTRACT

Specialists in Positive Discipline (PD) recommend the child-centered approach in


various situations to understand, through verbal or nonverbal communication, what is
behind a behavior. This paper aims to present concepts about PD that justify its impor-
tance in the context of teacher-student interaction in the teaching-learning process and
introduce possible strategies and their contributions to the practice in the classroom, in
the face of verbal and nonverbal behaviors that students commonly present. This quali-
tative investigative research is a bibliographic review.

Keywords: Students. Positive Discipline. Behavior. Pedagogical Strategies.

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CREMA, João Vitor Zanini e GOLFIERE, Maria Laura. A Disciplina
Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 35-49. 2021.

INTRODUÇÃO

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017) as primeiras


formas de interação do bebê são os movimentos e posturas do seu corpo, o olhar, o sorri-
so, o choro e outros recursos vocais, que ganham sentido com a interpretação do outro.
Quando não observados, esses aspectos que compõem comportamentos não verbais,
podem comprometer o entendimento de pais, professores e/ou cuidadores, quanto às
reais necessidades de seus filhos (as) e/ou alunos.

Dado o impacto destas “pistas” não verbais que também são uma das formas de
comunicação, a literatura que discorre e estuda a disciplina positiva recomenda a abor-
dagem centrada na criança, isto é, enfatizando a forma de abordagem em relação a crian-
ça nas mais diversas situações, de modo a compreender, através da comunicação verbal
ou não-verbal, o que está por trás de um comportamento, de uma fala ou sua ausência,
quando a criança fica em silêncio, mas que, na verdade, se bem observado, pode estar
dizendo muito.

A partir do que traz a BNCC, pode-se dizer que a visão e a interpretação do pro-
fessor para com os seus alunos são de tamanha importância, pois se o professor apurar
com maior observação as ações e os comportamentos de seus alunos, é possível que for-
mará uma nova visão a ponto de ver além do comportamento em si, mas qual o motivo
dele, seja verbal ou não.

Dado a importância e ao impacto que o tipo de ensino poder surtir na aprendiza-


gem dos alunos em geral, faz-se necessário a abordagem das habilidades socioemocio-
nais, como um complemento primordial para entender os benefícios do uso da disciplina
positiva para a interação professor-aluno.

Deste modo, no campo das habilidades socioemocionais, uma delas é essencial


para qualquer interação, qual seja: a empatia. Ao se falar em empatia, pode-se dizer que
não há uma única definição. Entretanto, seria como que um constructo multifacetado
usado para mensurar a capacidade de compartilhar e entender os pensamentos e senti-
mentos dos outros.

Ademais, alguns autores afirmam que a empatia é melhor entendida como uma
capacidade composta por vários lados diferentes que trabalham juntos. Porém, foi ado-
tado para este estudo, a definição do psicólogo Daniel Goleman (2014). Segundo ele, a
empatia é uma habilidade que se divide em três categorias:

■ Cognitiva: capacidade cognitiva de perceber, reconhecer e discriminar estados


emocionais da outra pessoa.

■ Emocional: capacidade de compartilhar os sentimentos de outra pessoa. É sinto-


nizar emocionalmente a pessoa e criar uma ressonância emocional.

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CREMA, João Vitor Zanini e GOLFIERE, Maria Laura. A Disciplina
Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 35-49. 2021.

■ Compaixão: caracteriza-se por sentimentos de calor, preocupação e cuidado com


o outro, além de uma forte motivação para melhorar o bem-estar do outro.

Diante do exposto acima, a habilidade empática pode ser considerada como a jun-
ção de uma série de fatores que podem alcançar o nível cognitivo, emocional e até mes-
mo levar a compaixão.

Neste sentido, o professor que é capaz de uma aceitação mais empática de seus
alunos, quais podem estar com medo, desanimados, ansiosos, fatores esse que estão
presentes quando se está em um ambiente diferente (ao entrar em uma nova escola
por exemplo), com pessoas diferentes e ainda mais sendo a situação de início formal do
aprender- o efeito do estabelecimento tanto de um ambiente que permita que a aprendi-
zagem aconteça quanto na conexão criada entre professor-aluno, é de suma importância
para que os alunos sintam-se capazes e em um ambiente seguro para a aprendizagem.
(ROGERS, 1978 apud GONÇALVES, 2008, p.11).

Ainda para Rogers (1978), qual acredita ser essencial, para além da compreensão
empática, outras duas atitudes que possibilitam uma facilitação da aprendizagem, quais
sejam elas: a consideração positiva incondicional (percepção que o aluno é uma pessoa
capaz de fazer o melhor possível para aprender) e a congruência do facilitador (auto per-
cepção do professor de como se sente num determinado momento da aula).

Por fim e não obstante, vale ressaltar que a “compreensão empática” é definida
por Rogers como a forma de se perceber de uma forma mais profunda o quadro interno
de referência da outra pessoa como se fosse o próprio, com os seus significados e com-
ponentes emocionais. Ou seja, quando o professor tem a capacidade de compreender as
reações e/ou comportamentos verbais ou não- verbais dos seus alunos, passa a ter uma
consciência mais sensível da maneira pela qual o processo de educação e aprendizagem
se apresenta a estes alunos e a sua realidade e então, mais uma vez, aumentam as possi-
bilidades de uma aprendizagem significativa. (ROGERS, 1985 apud GONÇALVES, 2008,
p.14)

Com isso, o presente estudo tem por objetivo discutir a respeito dos conceitos
da disciplina positiva e sua importância para a interação professor-aluno, bem como in-
troduzir possíveis estratégias e suas contribuições para a prática desta em sala de aula
frente a comportamentos verbais e não verbais que os alunos comumente apresentam.

Trata-se de um estudo de caráter investigativo qualitativo, desenvolvido por am-


pla pesquisa bibliográfica a respeito do tema considerando como palavras-chave: Disci-
plina Positiva; Comportamento; Estratégias Pedagógicas.

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CREMA, João Vitor Zanini e GOLFIERE, Maria Laura. A Disciplina
Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 35-49. 2021.

DESENVOLVIMENTO
DISCIPLINA POSITIVA E SUA IMPORTÂNCIA PARA A PRÁTICA EM SALA DE AULA
Segundo Fernandes (2018), estamos imersos em métodos sobre a disciplina que
vem sendo uma herança dos séculos passados, porém, muita coisa mudou, inclusive a
forma de ver as crianças e como elas estão crescendo precocemente, fazendo com que
elas não tenham medo da punição e de seus responsáveis.

Portanto, o autor destaca que a forma de disciplinar as crianças está sendo deba-
tida para a melhoria diária e cita a Disciplina Positiva como sendo uma nova prática que
vem ganhando força nesse assunto.

Ao estudar a origem da Disciplina Positiva, a contribuição da psicóloga e educa-


dora, Dra. Jane Nelsen, é direta, pois foi ela quem desenvolveu o conceito da disciplina
a partir das teorias dos psiquiatras Alfred Adler e Rudolf Dreikurs. Mãe de sete filhos,
Nelsen foi a pioneira nos estudos, já que há mais de 30 anos, lançou o livro “Positive Dis-
cipline”, no qual defende que as crianças têm o direito à dignidade e ao respeito, assim
como qualquer outra pessoa.

Antes de conceituar DP cabe entender o significado da palavra disciplina, que se-


gundo Fernandes (2018) é atribuída de muitas maneiras, mas grande parte das pessoas
que tem que lidar com a disciplina das crianças, logo ligam a palavra a um método puniti-
vo e pejorativo, ou seja, para uma criança ser educada, ela necessita apenas obedecer e
seguir as instruções que o adulto manda, conformando-se com a situação e seguindo um
modelo de obediência e conformidade em que quando um adulto manda fazer, a criança
deve apenas respeitar.

Porém, se pararmos para pensar, hoje em dia, as famílias têm uma forma mais
igualitária, onde homens e mulheres saem para trabalhar, os jovens estão trabalhando
em ideias inovadoras, crianças têm acessos a diversas fontes de informações. Como se
pode esperar que as crianças tenham esse exemplo grandioso de avanço dentro de sala e
não podem se sentir parte da sua própria educação?

É neste contexto que se insere a Disciplina Positiva, por ser uma filosofia pensada
de maneira a fugir da punição e da recompensa. Seu objetivo central é a formação de ci-
dadãos responsáveis, capazes de atuar em sua comunidade, cooperando uns com os ou-
tros. Educados de maneira democrática, com base em princípios, como respeito mútuo,
igualdade, responsabilidades, etc.

Ainda, segundo diferentes estudos, além de ser filosófica é um quanto prática, isto
é, trata-se de um modelo educativo composto por firmeza, afeto e empatia, que educa-
dores e pais utilizam-se com as crianças, ou seja, uma prática de educar e conduzir na
criação em seu desenvolvimento, colocando limites necessários e estabelecendo diálo-
gos e cooperação com as crianças.

Segundo Fernandes (2018), a DP é capaz de fazer as crianças pensarem o que é

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Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
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melhor a partir de opções que são oferecidas, partindo do pressuposto que não existe
apenas uma verdade, que os adultos não estão sempre corretos, mas as crianças também
são capazes de decidir o que é melhor para elas.

Para Martins (2015), no processo educativo há três elementos fundamentais: a


identidade do sujeito da educação (características próprias); a fisionomia (corpo – parte
material); e o ambiente envolvente a cada um deles, no tempo e no espaço. Portanto,
para que haja um adequado processo de ensino aprendizagem deve-se buscar a articula-
ção do educando, com as suas características próprias (possibilidades e condições para
se educar) com o ambiente em que se educa ou aprende (espaço, contexto) e com o tem-
po instituído. Pois, pode-se dizer que a reflexão formativa e a análise do destinatário na
interação do ato de educar é a corporeidade, que é o produto integral.

Conforme apresentado por Martins (2015), a corporeidade indica a essência ou


a natureza do corpo, isto é, integra tudo o que preenche o espaço e se movimenta e, si-
multaneamente, localiza o ser humano no mundo com o corpo, enquanto objetividade
(matéria) e subjetividade (alma, espírito).

Por este motivo, ainda segundo o autor, a corporeidade constitui-se nas seguintes
dimensões educativas: física (estrutura orgânico-biofísica e motora); emocional-afetiva
(instinto, pulsão, afeto); mental-espiritual (cognição, razão, pensamento, consciência); e
sociocultural e histórica (valores, hábitos, sentidos, etc.). Parece, assim, definir-se como
uma complexa dinâmica de auto-organização de uma corporeidade viva, baseada no co-
nhecimento ‘do’ e ‘sobre’ o corpo.

Ao enfocar os comportamentos, gestos e movimentos que caracterizam o “não


verbal”, de acordo com a síntese de aprendizagens disposta no item “Corpo, gestos e mo-
vimentos”, da versão final da BNCC, de 2017, pode-se listar alguns componentes ineren-
tes às aprendizagens de crianças ao desenvolver esses elementos, como apresentado na
Quadro 1.

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Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 35-49. 2021.

Quadro 1 - Campo de experiência (Corpo, gestos e movimentos) x Objetivos de aprendi-


zagem e desenvolvimentos de bebês e crianças até 5 anos e 11 meses

Faixa Etária Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento

Bebês de Movimentar as partes do corpo para exprimir corporalmente emoções,


zero a 1 ano necessidades e desejos. Experimentar as possibilidades corporais nas
e 6 meses brincadeiras e interações em ambientes acolhedores e desafiantes. Imitar
gestos e movimentos de outras crianças, adultos e animais. Participar
do cuidado do seu corpo e da promoção do seu bem-estar. Utilizar
os movimentos de preensão, encaixe e lançamento, ampliando suas
possibilidades de manuseio de diferentes materiais e objetos.
Crianças Desenvolver progressivamente as habilidades manuais, adquirindo controle
bem para desenhar, pintar, rasgar, folhear, entre outros. Apropriar-se de gestos
pequenas e movimentos de sua cultura no cuidado de si e nos jogos e brincadeiras.
(1 ano e 7 Deslocar seu corpo no espaço, orientando-se por noções como em frente,
meses a 3 atrás, no alto, embaixo, dentro, fora etc., ao se envolver em brincadeiras
anos e 11 e atividades de diferentes naturezas. Explorar formas de deslocamento
meses) no espaço (pular, saltar, dançar), combinando movimentos e seguindo
orientações. Demonstrar progressiva independência no cuidado do seu corpo.
Crianças Criar com o corpo formas diversificadas de expressão de sentimentos,
pequenas sensações e emoções, tanto nas situações do cotidiano quanto em
(4 anos a 5 brincadeiras, dança, teatro, música. Demonstrar controle e adequação do uso
anos e 11 de seu corpo em brincadeiras e jogos, escuta e reconto de histórias, atividades
meses) artísticas, entre outras possibilidades. Adotar hábitos de autocuidado
relacionados a higiene, alimentação, conforto e aparência. Criar movimentos,
gestos, olhares e mímicas em brincadeiras, jogos e atividades artísticas como
dança, teatro e música. Coordenar suas habilidades manuais no atendimento
adequado a seus interesses e necessidades em situações diversas.

Fonte: Brasil, 2017.


Na sociedade atual, diversas áreas do conhecimento têm trazido à tona a im-
portância do desenvolvimento de competências que não são cognitivas, mas socioe-
mocionais, por exemplo, a persistência, a responsabilidade, a curiosidade, a empatia e a
cooperação para o pleno desenvolvimento da pessoa, o que contribui para uma melhor
autoestima, saúde mental, gerenciamento do estresse e ajuda a desenvolver maior per-
severança e resiliência nas crianças.

Segundo Goellner (2007), o corpo é também construído pela linguagem que ape-
nas reflete o que existe. O autor considera, ainda, que filmes, músicas, revistas, livros e

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imagens, são também locais pedagógicos que estão, o tempo todo, a dizer de nós, seja
pelo o que exibem o que ocultam.

É preciso destacar que as emoções das crianças raramente são postas em pala-
vras; com muito mais frequência, são expressas sob outras formas. A chave para que pos-
samos entender seus sentimentos e assim buscarmos compreender o complexo proces-
so de aprendizagem está em nossa capacidade de interpretar canais não verbais, isto é, o
tom da voz, gestos, expressão facial e outros canais.

Diversas áreas do conhecimento abordado a importância do desenvolvimento de


competências que não são cognitivas, mas socioemocionais, por exemplo, a persistência,
a responsabilidade, a curiosidade, a empatia e a cooperação para o pleno desenvolvimen-
to da pessoa, o que contribui para uma melhor autoestima, saúde mental, gerenciamento
do estresse e ajuda a desenvolver maior perseverança e resiliência.

Para Nóbrega (2005), a compreensão do corpo como elemento acessório no pro-


cesso educativo ainda é predominante. Em seus estudos o autor busca apontar outros
caminhos de compreensão do corpo na educação, segundo uma atitude que tende a su-
perar o instrumentalismo e ampliar as referências educativas ao considerar a fenomeno-
logia do corpo e sua relação com o conhecimento, incluindo reflexões contemporâneas
sobre os processos cognitivos advindos de uma nova compreensão da percepção.

Assim, ao unirmos essas práticas, qual seja a Disciplina Positiva com a percepção
corporal das crianças, estamos estimulando-as para interagir e buscar compreender o
universo na qual elas estão inseridas. O que favorece o aprimoramento das práticas de
aprendizagem utilizadas em sala de aula e contribui para uma maior percepção da reali-
dade a qual estão inseridos e numa relação mais empática e solidária no ambiente esco-
lar.

Ao refletir acerca da importância da fenomenologia do corpo das crianças e sua


relação com a aprendizagem escolar, temos que ponderar algumas práticas utilizadas no
processo de aprendizagem, como:

a) Entender a importância de conhecer as necessidades por trás dos comportamen-


tos da criança;

b) Desenvolver o autocontrole e o autoconhecimento;

c) Repensar os padrões comportamentais;

d) Ensinar às crianças habilidades de vida sociais e intrapessoais como empatia e


segurança em si mesma;

e) Atender às crianças de forma consistente e amorosa.

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Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
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A disciplina positiva empregada na aprendizagem escolar preza nas seguintes di-


mensões educativas:

■ Física (estrutura orgânico-biofísica e motora);

■ Emocional-afetiva (instinto, pulsão, afeto);

■ Mental-espiritual (cognição, razão, pensamento, consciência); e

■ Sociocultural e histórica (valores, hábitos, sentidos).

Cabe destacar a necessidade de se refletir sobre algumas práticas diárias que


muitos pais e educadores se utilizam ao longo no desenvolvimento das crianças, para
que assim possamos responder a cinco pilares:

Primeiro, o respeito. Se desejamos que as crianças nos respeitem e respeitem


aos outros, precisamos refletir acerca de como estamos respeitando nosso semelhante.
Nossa maneira de educar e interagir, contribui para que a criança se apodere de um sen-
so de aceitação e importância? Todo ser humano busca se sentir aceito, amado e impor-
tante — especialmente as crianças que, muitas vezes, apresentam mau comportamento
por não se sentirem assim; será que ao agirmos estamos conscientes de que nossos ensi-
namentos estão sendo válidos e contribuindo para respeitar as diferenças presentes em
nossa sociedade?

Outra indagação necessária é: se estamos ajudando as crianças a desenvolver ha-


bilidades corporais e sociais para que elas possam se desenvolver em sua integralidade?
Empatia, segurança e responsabilidade ajudam a criança a descobrir o quanto ela é ca-
paz e a usar o seu poder pessoal de maneira útil, pois, conforme mencionado, no pro-
cesso educativo há três elementos fundamentais: a identidade do sujeito da educação
(características próprias); a fisionomia (corpo – parte material); e o ambiente envolvente
a cada um deles, no tempo e no espaço, que, ao incorporá-las aos poucos, educadores e
pais, favorecem o uma relação mais agradável e leve com as crianças.

A prática da disciplina no ambiente escolar nos faz pensar sobre nossa própria
personalidade, em como foi nossa infância e, como consequência, isso nos ajuda a enten-
der o que está por trás das suas reações sobre os comportamentos das crianças. Essas
reflexões são fundamentais para que aprendamos a lidar com as diferentes gerações e
hábitos ao longo das últimas décadas.

Ao analisar a maneira com que agimos diante determinados acontecimentos, é


preciso ter consciência de como nossa criação reflete diretamente em nosso futuro, uma
vez que, os primeiros anos são primordiais para o processo de desenvolvimento e cogni-
ção das crianças diante das adversidades.

Alguns educadores e pais, não sabem ou não imaginam de que seus comporta-

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Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
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mentos são reflexos de seus ensinamentos que tiveram nos seus primeiros anos de vida,
o que compromete diretamente na relação corporal e na educação de crianças, que é ou
foi criada a partir da lógica da imposição e obediência, gerando medo e não respeito.

Nos séculos XIX e XX, a escola assumiu as funções de educação, nomeadamente


as que pertenciam à comunidade e à família; a de vai deixando de ser ensinada nas es-
colas tornou-se um gênero menor, substituída, por exemplo, pela ginástica ou educação
física. (MANACORDA, 1999 apud NÓBREGA, 2005, p. 599-615)

A partir do século XIX, à educação cortesã, caça, música, dança e letras somam- se
os cuidados com o corpo e uma nova dimensão da educação, viabilizada pelas escolas de
ginástica e pelo esporte. Logo, sabe-se, por vários meios, que essa forma de lidar com as
crianças no que diz respeito a sua relação de corporeidade, traz efeitos extremamente
positivos nas relações de aprendizagem e familiares.

Para Buss-Simão (2010) é preciso problematizar a dimensão corporal das crian-


ças no que tange à constituição de suas identidades, relacionamentos e interações como
construções e heranças, tanto da natureza quanto da cultura. Entender que a ação edu-
cativa carrega consigo uma fortíssima dimensão interventiva, mesmo quando não temos
consciência disso.

Significa que educadores alinhados com propostas político-pedagógicas emanci-


patórias necessitam manter constante vigilância política e epistêmica sobre suas ações,
e assim exercitar com perseverança e sensibilidade, uma profunda reflexão em torno das
questões que atravessam as diferenças de classe, de gênero, de etnia, de nacionalidade,
de religião e de geração.

Precisa ser trazido à luz que essa filosofia busca, sobretudo de incentivar a coo-
peração, estreitar vínculo com a criança e trabalhar habilidades corporais, intrapessoais
e sociais.

A Disciplina Positiva busca preparar a criança para o mundo, e, algumas conside-


rações são pertinentes:

■ Como a gente imagina nossas crianças daqui a 15, 20 ou 30 anos?

■ De que maneira podemos contribuir para que as crianças se tornem humanos con-
fiantes, seguros, responsáveis, amorosos, independentes, etc.

A vantagem de aplicar essas estratégias é em longo prazo, uma vez que, temos
que buscar apontar outros caminhos de compreensão na relação corporeidade e educa-
ção, segundo uma atitude que busca superar o instrumentalismo e ampliar as referências
educativas, ao considerarmos a fenomenologia do corpo e sua relação com o conheci-
mento, para que então se possa ocorrer uma transformação mais profunda na educação

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Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
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escolar e na aprendizagem e desenvolvimento das crianças.

Fernandes (2018) cita que quando se trata de crianças, podemos considerá-las in-
gênuas e dependentes. Isso pode acontecer por estarem conhecendo o mundo aos pou-
cos, o que requer ajuda e apoio dos mais experientes, porém isso não quer dizer que as
crianças não tenham uma opinião e não queiram opinar no que julgam o melhor para elas.

Ainda segundo o autor, é importante compreender que a criança é um ser que vai
se basear suas atitudes no que o adulto mais próximo fizer, ou seja, os pais e/os educa-
dores. Por exemplo, se os pais são pessoas extremamente violentas, isso vai refletir na
criança tornando-o violento e qualquer problema que tiver na vida, inicialmente na es-
cola, será resolvido com violência. Não podemos cobrar uma atitude da criança que nem
os adultos em sua volta, fazem.

Muitos educadores não sabem ou não imaginam de que seus comportamentos


são reflexos de seus ensinamentos que tiveram nos seus primeiros anos de vida (e por
isto são tão importantes). A sociedade mudou e a educação segue seus novos desafios.

No cotidiano das escolas, pode-se observar que, quando os educadores não dei-
xam as crianças se expressar, assumindo o lugar da fala, muitas vezes é porque também
foram criados assim e não tivemos essa opção. Quando gritam com as crianças (o que
gera um bloqueio na criança), pode ser que estejam repetindo esse padrão da sua infân-
cia.

Logo, não se pode contar com o imediatismo sendo preciso lembrar de que esse é
um processo extremamente novo para todos. Sabe-se, por vários meios, que essa forma
de lidar com as crianças traz efeitos extremamente positivos nas relações familiares e,
especialmente, no futuro delas.

Assim, para que a disciplina positiva realmente aconteça, é necessária uma mu-
dança de postura, sabendo que a criança possui personalidade e vontades próprias e, por
isso, alguns dias serão mais desafiadores, pois, nem sempre as técnicas funcionarão, nem
mesmo uma mesma estratégia abrangerá as necessidades de cada criança. Nem sempre
nossos alunos/filhos responderão como gostaríamos, mas são nestas situações que será
preciso colocar a intervenção em prática.

ESTRATÉGIAS PARA A PRÁTICA DA DISCIPLINA POSITIVA FRENTE A


COMPORTAMENTO VERBAIS E NÃO VERBAIS

Considerando a ponta do iceberg (comportamento) e mais além, a parte submersa


a ele, que seria o que está por trás desse comportamento. A Figura 1 apresenta o quadro
dos objetivos equivocados citados por Jane Nelsen e que foram identificados por Rudolf
Dreikus.

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CREMA, João Vitor Zanini e GOLFIERE, Maria Laura. A Disciplina
Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 35-49. 2021.

Figura 1 – Atençao indevida X objetivo da Criança


Fonte: Autores, 2020 a partir de Nelsen, 2017.

Assim, de acordo com Nelsen (2017), alguns comportamentos podem se encaixar


em todos os objetivos equivocados, o não fazer a lição de casa é um bom exemplo. Se o
fato de uma criança se recusar a fazer a lição de casa fizer você ficar irritado ou preocu-
pado, o objetivo equivocado da criança é atenção indevida. Quando esse comportamen-
to fizer você sentir desafiado ou derrotado, o objetivo equivocado da criança é poder mal
dirigido. Quando esse comportamento fizer você se sentir magoado ou despontado, o
objetivo equivocado da criança é vingança. E quando esse comportamento fizer você se
sentir sem esperança, o objetivo equivocado da criança é inadequação assumida.

Logo, quando nos deparamos com alguns comportamentos por parte dos alunos,
é preciso que saibamos de que maneira lidar com as crenças desencorajadoras que ali-
mentam um comportamento anterior.

Considerando as considerações de Nelsen (2017), foi criado um quadro de alguns


dos objetivos equivocados que a autora cita em seu livro. Além disso, sugestões de como
lidar com comportamentos em diversas situações, com os alunos (as), são apresentadas
logo em seguida, em forma de frases encorajadoras.

O quadro a seguir é composto de informações inerentes aos objetivos equivo-


cados, qual apresenta algumas sugestões que convidam as crianças/alunos (as) que se
comportam de maneira indevida, a agir de uma forma mais respeitosa, incentivadora e
empoderadora.

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CREMA, João Vitor Zanini e GOLFIERE, Maria Laura. A Disciplina
Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 35-49. 2021.

Quadro 2 - Alguns dos Objetivos Equivocados

Fonte: Autores, 2020 a partir de Nelsen, 2017.

Se, por exemplo, a atenção é indevida, a criança pode estar pedindo por atenção
ou até mesmo para que nós, enquanto professores, a envolvamos em algo útil. Desta for-
ma, algumas das frases a dizer diante dessa situação e comportamento são:

■ Vamos fazer um acordo? Que tal se você se sentar e fazer sua atividade e então
podemos conversar com calma por alguns minutos depois? Na hora do intervalo é
uma boa ideia, certo?

■ Isso é importante. Por favor, lembre de dizer quando estivermos no momento de


pauta, okay?

■ Eu estou te ouvindo, mas não consigo responder até a hora do intervalo.

■ Você estaria disposto a organizar estes papéis ou aqueles lápis que estão sobre a
mesa?

A seguir relaciona-se alguns exemplos de respostas aos alunos diante de situa-


ções comortamentais de poder mal dirigido:

■ O que você entendeu sobre o nosso combinado?

■ Ok. Pelo visto você entendeu

■ Agora, me diga, por favor, qual foi o nosso combinado então?

■ Vamos fazer um combinado/negociar. Por que você não me diz o que está pensan-

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Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 35-49. 2021.

do e eu lhe digo o que penso e poderemos achar uma ótima solução para nós dois.

■ Bem, esta é uma maneira de ver as coisas. Eu vejo um pouco diferente. Quer que
eu te conte?

Figura 2 - Poder mal dirigido segundo Nelsen (2017)


Fonte: Autores, 2020.

CONCLUSÃO

A Disciplina Positiva aliada às práticas corporais das crianças na aprendizagem


escolar é uma prática enriquecedora, afinal, por meio delas, educadores e pais buscam
contribuir nas habilidades socioemocionais e no processo de aprendizagem das crianças.

Além disso, aliadas, elas corroboram na maneira de facilitar a comunicação entre


os educadores e alunos e na construção de conexões de apoio com todos os membros da
classe – independentemente do tipo de aluno – trabalhando na percepção da realidade
dos fatos que os rodeiam, a disciplina positiva junto com estímulos dos educadores nas
práticas corporais das crianças.

Para Martins (2015) ressalta que a educação no contexto de pós-modernidade,


intenta instituir códigos morais que estabelecem condutas e reprimem as possibilidades
de expressão do corpo, num distanciamento entre a aprendizagem e as vivências do su-
jeito, sendo assim, a corporeidade na aprendizagem implica uma compreensão na rela-
ção ‘corpo – aprendizagem – cultura’, através do diálogo epistemológico entre as ciências
sociais e humanas ou ciências da educação.

Na sociedade atual não há mais espaço para um contexto punitivo e pejorativo.


As crianças estão se desenvolvendo num mundo sem precedentes, em que a informação
está disponível em abundância e em crescente velocidade, o que faz com que nossa men-
talidade abandone de vez com métodos arcaicos e autoritários de educação.

A sociedade mudou e considerando as suas transformações que na maioria das

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CREMA, João Vitor Zanini e GOLFIERE, Maria Laura. A Disciplina
Positiva na Interação Professor-Aluno: Interpretando Aspectos
Verbais e Não Verbais Dos Alunos. MIMESIS, Bauru, v. 42,
n. 1, p. 35-49. 2021.

vezes acontece a partir de nós mesmos, temos a obrigação de aprender sobre o nosso
estilo de liderança e o impacto que geramos em nossos alunos, para que assim, possamos
contribuir na construção de um ambiente de aprendizagem favorável no desenvolvimen-
to das habilidades corporais, sociais e emocionais, para que as crianças sejam protago-
nistas para entender e gerenciar seus conflitos e emoções.

Precisamos abandonar métodos arcaicos e autoritários de educação. Na socie-


dade atual não mais espaço para um contexto punitivo e pejorativo, quando as crianças
obedeciam, sem reclamar, tudo o que o professor lhes pedia.

As crianças estão se desenvolvendo num mundo sem precedentes, em que a in-


formação está disponível em abundância e em crescente velocidade. Sendo assim, preci-
samos nos questionar de como esperar obediência e conformidade tempos atuais, num
cenário em que os modelos de estrutura familiar e organização trabalhista são tão dife-
rentes.

Com a prática da disciplina positiva, os educadores do Brasil ganham e muito. Ga-


nham alternativas para lidar com os comportamentos desafiadoras dos alunos e filhos
de uma forma eficiente e enriquecedora, alcançando relações mais harmoniosas e que
proporcionem aos educandos passarem por um processo de aprendizagem que valide
suas emoções e progressos.

REFERÊNCIAS
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CONSED/UNDIME, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ima-
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Médicas.

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A SOBERANIA POPULAR, ENTRE HABERMAS E ROUSSEAU

THE POPULAR SOVEREIGNTY, BETWEEN HABERMAS AND ROUSSEAU

Wellington Anselmo Martins1


Professor universitário do Centro Universitário Sagrado Coração. Mestre em Filosofia (Unesp,
1

2018). Mestre em Comunicação (Unesp, 2015). Graduado em Filosofia (Unisagrado, 2006).


wellington.martins@unisagrado.edu.br

Data de envio: 15/02/2021


Data de aceite: 28/02/2021

RESUMO
O princípio republicano de soberania popular, revolucionário no século XVIII de
Rousseau, e que persiste contemporaneamente, nas obras de Habermas, é o objeto de
pesquisa deste artigo. Em detrimento das noções hobbesianas de soberania no absolu-
tismo dos reis, esta pesquisa explora o fundamento da democracia moderna, pautada no
ideal de igualdade entre todos os cidadãos. Delimita-se, pois, especialistas como Repa
(2013), Heck (2008), Dutra (2012), Monteagudo (2007; 2013) e Oliveria (2012; 2018;
2019), principalmente, para uma aproximação desta relação entre Rousseau e Haber-
mas. Diretamente de Rousseau, o seu livro Contrato social, no capítulo VII, da parte I,
intitulado “Do soberano”, e de Habermas, a sua obra Direito e democracia, no capítulo II,
complementar, do livro II, “Da soberania do povo como processo”, constituem a base des-
ta pesquisa iniciada nos citados pesquisadores. Assim, o objetivo deste trabalho, é pro-
curar as origens éticas e filosóficas da democracia, a partir dos valores modernos e pro-
gressistas de “liberdade, igualdade e fraternidade”, sob a justificativa de que tais noções
não se restringem à Revolução Francesa, de 1789, mas que ainda legitimam os Direitos
Humanos, pós-1948, até hoje. O artigo apresentado aqui é parte integrante da disserta-
ção de mestrado em filosofia do seu autor, concluída em 2021. Trata-se, por isso, de um
trecho de um projeto de pesquisa mais amplo, que enfrenta o problema que é entender
qual a recepção de Rousseau por Habermas, a partir da hipótese de uma recepção favo-
rável, apesar das ressalvas habermasianas.

Palavras-chave: Soberania popular. Teoria da democracia. Direitos Humanos. Rousseau.


Habermas.

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MARTINS, Wellington Anselmo. A Soberania Popular,
Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
p. 52-64, 2021.

ABSTRACT
Rousseau’s republican principle of popular sovereignty, revolutionary in the 18th
century, persists contemporary in Habermas’ works and is the research object in this ar-
ticle. To the detriment of Hobbesian’s notions of sovereignty in the absolutism of kings,
this research explores the foundation of modern democracy based on the ideal of equa-
lity among all citizens. Therefore, specialists such as Repa (2013), Heck (2008), Dutra
(2012), Monteagudo (2007; 2013), and Oliveria (2012; 2018; 2019) are delimited, main-
ly to approximate this relationship between Rousseau and Habermas. Rousseau’s book
Social contract, chapter VII, part I, entitled “Of the sovereign”, and Habermas’ work Law
and democracy, chapter II, complementary to book II “Of the sovereignty of the people
as a process”, form the basis of this research, according to the authors mentioned above.
The general objective of this work is to look for the ethical and philosophical origins of
democracy, based on the modern and progressive values ​​of “freedom, equality, and fra-
ternity”. We believe such values are not restricted to the French Revolution, from 1789;
they still legitimize Human Rights, post-1948 to today. This study is part of our master’s
thesis in Philosophy, completed in 2021, i.e., part of broader research that faces the pro-
blem of understanding Rousseau’s reception by Habermas, based on the hypothesis of a
favorable reception, despite Habermas’ reservations.

Keywords: Popular sovereignty. Democracy theory. Human Rights. Rousseau. Haber-


mas.

INTRODUÇÃO
O texto que segue está inserido na área de história da filosofia, ética e filosofia
política. A sua linha específica é a filosofia política. Trata-se de um recorte do início do
trabalho de mestrado em filosofia do seu autor, produzido sob orientação do Professor
Doutor Ricardo Monteagudo – este também citado diretamente no texto que segue. O
projeto completo e sua respectiva dissertação foram concluídos no ano de 2021, pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Unesp, com o título “O Contrato
social, de Rousseau, e sua recepção no Direito e democracia, de Habermas”.

O assunto geral de interesse do autor foi a recepção do iluminismo na contem-


poraneidade, mais especificamente, os reflexos ou influência dos ideais do século XVIII
no século XX. Para tanto, adentrou-se ao tema delimitado da leitura de Rousseau por
Habermas, com o seguinte problema: Qual a recepção de Rousseau por Habermas? No-
meadamente, como o Contrato social do genebrino tem sido aproveitado no Direito e de-
mocracia do autor frankfurtiano?

Para iniciar uma resposta a este problema filosófico, propõe-se aqui analisar cen-
tralmente o conceito de soberania do povo, isto é, o valor republicano fundamental da

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MARTINS, Wellington Anselmo. A Soberania Popular,
Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
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construção moderna de democracia. A partir da procura principiológica desta sobera-


nia – revolucionária no Século das Luzes –, outras noções correlatas também se inserem
neste trabalho, a exemplo da construção filosófica dos Direitos Humanos.

Por se tratar de uma aproximação estritamente teórica do objeto delimitado,


então o método útil para esta pesquisa, a hermenêutica, segue a síntese proposta por
Goldschmidt (1963) privilegiando, assim, a busca pela compreensão semântica do “tem-
po lógico” – e deduções necessárias – dos próprios textos analisados, em detrimento de
algum “tempo histórico” que envolva biograficamente os autores e socialmente as suas
respectivas circunstâncias temporais e geográficas.

Tal empreendimento, na busca pela relação doutrinária Rousseau-Habermas1, jus-


tifica-se pela persistência da forma e ideal de Estado democrático de Direito. Ora, quer
enquanto direito ou dever ser ético, quer como tentativas históricas, factuais, ou institu-
cionalizações práticas em diversos experimentos, a república e a democracia ainda man-
têm a sua energia utópica inspirando povos mesmo neste início de terceiro milênio. Por
isso, revisitar a filosofia do tradicional genebrino enquanto se adentra à novidade que é o
pensamento habermasiano se mostra um trabalho pertinente, e mesmo necessário, para
a melhor compreensão e a promoção de valores democráticos, universais e humanistas.

Ante a tal proposta de pesquisa, levanta-se a hipótese de uma retomada crítica é


sempre mais democratizante, por Habermas, daquele legado republicano e revolucioná-
rio deixado por Rousseau. Ou seja, decerto é possível demonstrar nos textos do frank-
furtiano uma franca valorização dos princípios do direito político conforme expostos no
Contrato social; todavia, Habermas não é um mero rousseauísta, pois ele deve tanto fazer
ressalvas ao pensamento do genebrino quanto, ainda, procurar por sínteses originais en-
tre diversos autores que possam ser úteis para o entendimento e desenvolvimento da
soberania popular e dos Direitos Humanos. Enfim, o texto que segue é um breve início da
tentativa de demonstração da validade desta hipótese interpretativa.

ROUSSEAU, HABERMAS E A SOBERANIA


Habermas recepciona a soberania popular, conforme pensada no ponto alto da
modernidade. Segundo Luiz Repa, “Habermas não pretende nenhuma originalidade to-
tal para seu intento, pois já em Rousseau e Kant”, dois autores influenciados pelo Século
das Luzes, “seria possível enxergar o objetivo de pensar, a partir do conceito de autono-
mia, a interpretação mútua entre os dois princípios, direitos humanos e soberania popu-
lar” (REPA, 2013, p. 104).
1
O aprofudamento de tal relação doutrinária direta, entre Rousseau e Habermas, não encontrou espaço
neste artigo. Por isso, aqui, apresenta-se as aproximações feitas a esta relação por meio de especialistas. A
pesquisa completa, com análise das próprias fontes conceituais em Rousseau e em Habermas, está expos-
ta na referida dissertação de mestrado em filosofia (2021).

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Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
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Interno a esta mesma temática de Rousseau-Habermas, abordada por Repa, Heck


afirma:
[...] rastrear os laços entre moral e direito no universo conceitual de Du contract
social; ou, principes du droit politique (1754/1762) de J.-J. Rousseau (1712- 1778)
e tem por objeto a delimitação conceitual entre contratualismo, soberania po-
pular, ética e moral na obra do genebrino com vistas ao encaminhamento tardio
dos problemas em tela pelo filósofo alemão. (HECK, 2008, p. 3).

Por outro lado, a soberania popular, do contratualista das luzes, é lida por Haber-
mas já a partir da sua ética discursiva, ou seja, na relação entre pensadores trata-se, na
verdade, para Delamar Dutra, da “recepção habermasiana do pensamento político de
Rousseau, especialmente no que diz respeito à problemática da compatibilização entre
direitos humanos e soberania popular” (DUTRA, 2012, p. 55).

Essa análise da soberania popular com apontamentos, ainda, para efetivações


práticas em formas de governo, é focada na obra Direito e Democracia, de Habermas, mas
não desconsidera o seu processo de leitura anterior de Rousseau (1983; 2010; 2015;
2018), isto é, nos seus livros que o precedem, pois, conforme Monteagudo, “a leitura que
Habermas faz de Rousseau, em Mudança estrutural da esfera pública (1962), é levemen-
te revisada em Direito e democracia (1992)”, aspecto que não se pode descartar, já que
“essa pequena mudança, por sua vez, reestrutura toda a concepção habermasiana da po-
lítica de Rousseau” (MONTEAGUDO, 2013, p. 195).

Repa (2013, p. 103) não apenas fala de uma ‘leitura’ de Rousseau por Habermas,
mas diretamente de influência, das “influências das filosofias políticas de Rousseau [e
Kant] no pensamento habermasiano”. Todavia, além das citadas mudanças internas na
própria leitura de Rousseau por Habermas, como trabalhado por Monteagudo, ainda a
dita influência do genebrino sobre a filosofia de Habermas não se dá sem críticas e res-
salvas: “a crítica habermasiana a Rousseau [e a Kant] se deve ao projeto de radicalização
da democracia, para o qual as contribuições dos dois filósofos apresentam ainda alguns
obstáculos” (REPA, idem, ibdem).

Nesse movimento de recepção por leitura e influência, por afirmação e crítica,


Habermas insere-se em um diálogo com Rousseau, prioritariamente com o Contrato so-
cial, com vistas a reafirmar desde aqui, no final do século XX, a legitimidade da soberania
popular e sua relação com os direitos humanos e formas democráticas de governo – uma
governabilidade que, em Habermas, adquire acréscimos próprios, com a democracia de-
liberativa.

Isto é, esse universo principiológico – que vai da associação entre os homens, a


sociedade, até a soberania e, enfim, a formas práticas governamentais – integra-se nos
conceitos de razão e legitimidade no frankfurtiano, mas com a base genebrina: “Haber-
mas parte da premissa de que, em Rousseau, a autonomia da práxis legisladora contenha

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Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
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já por si uma estrutura racional” (HECK, 2008, p. 7). Neste particular, Heck ressalta que
isso distingue os contratualistas Rousseau e Locke, uma vez que no pensador inglês uma
certa “razão legitimadora” se anteciparia inclusive à própria vontade geral, isto é, à von-
tade unida do povo: os interesses essenciais e universalizáveis (deste povo) por meio da
lei.

Ora, em meio a tanto, Habermas toma por premissa a posição rousseauniana, da


legitimidade e soberania da vontade popular expressada, necessariamente, pela unida-
de e formulação discursiva, racional, do povo. Isto em detrimento, enfim, da hipótese de
Locke que, na síntese dada por Heck, “fixa os direitos do homem em um estado natural
fictício de caráter pré-político”.

Desse modo se desfazem inúmeras possíveis dificuldades interpretativas, pela


semelhança inicial do vocabulário dos contratualistas, a exemplo do “estado de nature-
za”. Tanto Locke quanto Rousseau – Hobbes, igualmente – empregam noções sob esses
termos “estado de natureza”, todavia, como salienta Heck, Habermas parte da razão e da
legitimidade de teor rousseauísta, que não enxerga os direitos fundamentais e as con-
venções originárias humanas senão na inter-relação de pessoas e discursos, isto é, na
vontade popular quando funda um povo e sua lei.

Rousseau, como Locke, também imagina o indivíduo antes do contrato social mais
elementar, como a um ser independente, mas de modo algum sem a interdependência
da convivência, ainda que em algum “estado natural”. Mas é somente na origem e ma-
nutenção legítima do “estado social” que Rousseau – e este é o ponto que interessa a
Habermas – pode compreender razão e legitimidade enquanto construtoras de institu-
cionalidades necessárias à preservação e promoção da vida e seus valores individuais e
sociais decorrentes.

Nisto Habermas partidariza-se com o genebrino, almeja como que incorporá-lo:


“Ele [Habermas] gostaria de reconstruir e incorporar Rousseau em sua própria teoria
discursiva do direito e da democracia” (DUTRA, 2012, p. 56). Analista do contratualismo,
Habermas compreende as divergências teóricas internas – no tripé Hobbes-Locke-Rou-
sseau – e desenvolve o seu pensamento essencialmente sobre o Contrato social.

Na argumentação exposta há pouco, a partir de Heck, evidenciou-se a distinção


entre Rousseau e Locke; agora, amparado em Volpato Dutra, distingue-se diretamente
Rousseau e Hobbes para, de novo, pôr a linha habermasiana ligada a Rousseau: “Entre
Hobbes e Rousseau, Habermas tem clara simpatia teórica por Rousseau” (DUTRA, 2012,
p. 56).

Enquanto no Contrato social a soberania é a vontade unida do povo, é o fim comum


da justa associação – liberté, égalité, fraternité, na síntese revolucionária –, já em Hobbes
a soberania repousa sobre os ombros de um único homem ou um pequeno grupo absolu-
tista. Tal distinção é o que Habermas não ignora nos dois contratualistas.

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Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
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Ora, e ainda não somente no contratualismo, mas ainda ao fazer opções em meio
ao século XIX, nota-se os alicerces habermasianos em Rousseau – apesar das diferenças:
Realmente, a relação entre ambos é difícil [entre Habermas e Rousseau], pois
trata-se de uma relação crítica e de aceitação. Apesar de o prefácio a Direito e
democracia declarar que Kant, e não Hegel, é o apoio do seu estudo, o nome que
realmente estrutura a obra é o de Rousseau (DUTRA, 2021, p. 56).

Não se espera de Habermas um neo-rousseauísta ou mero comentador do Con-


trato. O filósofo alemão tem a sua produção autoral em relação à democracia – como
soberania popular e encaminhamento governamental –, mas ressalta-se neste trabalho
a aceitação, mesmo que evidentemente crítica, de Rousseau e, enfim, a opção direta por
Rousseau, dentre outras premissas e propostas contratualistas ou mesmo do século XIX,
para estruturar o seu pensamento da fase do Direito e democracia.

Delimita-se especialmente o texto “A soberania do povo como processo”, na obra


Direito e democracia, ainda que este livro todo, em dois volumes, seja fundamental para
compreender a recepção habermasiana de Rousseau, tal como em diversas outras obras
ainda Habermas emprega o genebrino em sua construção conceitual: “Há três obras
importantes em que o Cidadão de Genebra aparece com papel relevante: Mudança es-
trutural da esfera pública (de 1961), Teoria da ação comunicativa (de 1981) e Direito e
democracia entre facticidade e validade (de 1992)” (MONTEAGUDO, 2013, p. 195).

Assim, é certo que, em fases distintas da sua filosofia, o frankfurtiano de segunda


geração recorre a Rousseau – e criticamente aos demais teóricos mencionados, também:
Sabemos que Habermas é pensador da segunda geração da Escola de Frankfurt
[...], deixa de lado o estilo de Adorno (seu orientador no Instituto de Pesquisa
Social de Frankfurt), mais próximo da dialética e do marxismo, e pensa a partir
de um sistema de comunicação intersubjetivo, de condições universais para a
ação comunicativa. Não se trata de uma nova linguística, mas de uma ética polí-
tica. Essa virada obriga Habermas a reavaliar o legado de Hegel e Kant e, nesse
retorno, reconhece a importância de Rousseau (MONTEAGUDO, 2013, p. 195).

Tal “ética política”, de traços prioritariamente rousseaunianos – se em compa-


ração com as citadas premissas de Hobbes e Locke –, encontra o seu último estágio no
Habermas de 1992, em Direito e democracia. Esta é a razão, então, do olhar mais demora-
do sobre delimitado excerto desta obra em detrimento das outras.

Na linha do que fora ressaltado por Dutra (2012, p. 56), acerca do reconhecimen-
to de Habermas a Kant, Monteagudo frisa que “Rousseau e Kant são mencionados como
teóricos da autonomia do indivíduo e, em ambos, Habermas vê uma intuição comum de
intersubjetividade” (2013, p. 196). Ainda que obrigatoriamente diferencie ambos, Kant
e Rousseau, ao reavaliar o legado iluminista – nisto Dutra afirmou que, entre ambos, no
Direito e democracia, a estruturação novamente vem mais de Rousseau –, Habermas nota
nos dois autores a intuição ou premissa da intersubjetividade. Aqui é que a “ética políti-
ca” habermasiana bebe para reidratar a teoria do agir comunicativo do estágio de 1992.

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Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
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Indivíduo e intersubjetividade, a pessoa e as convenções, o cidadão e a cidade, os


direitos humanos (dignidade de cada pessoa humana) e a soberania popular (expressada
pelo governo prático democrático)... Mas não apenas na obra principal de Rousseau, o
seu Contrato, pois ainda na sua literatura, como em A Nova Heloísa, na sua autobiografia,
como em Devaneios de um caminhante solitário, há uma teoria da subjetividade que pode
ser encontrada. Então, sempre inter-relacionando o íntimo e o público, desde a lingua-
gem até a política, Rousseau – e nesta premissa da intersubjetividade também Kant –,
diretamente no Contrato social, é útil a Habermas.

Ora, “de certa maneira”, neste ínterim Rousseau e Kant, “a tentativa haberma-
siana consiste em mostrar a parcialidade de cada uma dessas abordagens, enfatizando
sua possível complementaridade e reciprocidade” (REPA, 2013, p. 104). Assim, a possí-
vel intuição da intersubjetividade compartilhada em Rousseau e Kant leva, enfim, a uma
compreensão própria, possível, que Habermas almeja fazer avançar, acerca da coorigi-
nalidade “entre os direitos humanos e a soberania popular” (Idem, ibidem). E nessa linha,
afirmando a relação Rousseau-Habermas – passando, necessariamente, por Kant –, con-
forme apontado por Repa, também segue Oliveira (2012; 2018; 2019).

Em termos objetivos, o que Repa salienta aqui é a visão habermasiana da possibi-


lidade de como fazer “corrigir Kant por meio de Rousseau” e vice-versa – “Rousseau não
estava errado”, diz Kant (1998, p. 34) na sua Ideia de uma história universal de um ponto
de vista cosmopolita –, pois com isso, e nada menos, “Habermas pretende solucionar o
problema” de relação essencial, isto é, da cooriginalidade entre soberania republicana,
pautada no povo, na vontade geral de todos em função de um interesse comum, legítimo,
em favor da vida e da dignidade de cada cidadão, da sua liberdade na igualdade fraterna,
e os direitos elementares humanos, intrínsecos à consciência da subjetividade humana,
do eu pensante e irrepetível que habita cada corpo.

Em resumo, ante à tríade contratualista – Hobbes-Locke-Rousseau –, Habermas


opta estruturalmente pelas premissas do último pensador, e procura sintetizá-lo à intui-
ção útil e semelhante que encontrou em Kant para, desse modo, poder apresentar uma
doutrina condizente à república e à democracia já do final do século XX, conforme cons-
titucionalmente presente nos diversos países onde a soberania popular é a legitimação
da lei e da decisão pública – inclusive a Alemanha e a Suíça atuais, por exemplo.

Fica evidente, pois, que “Habermas tenha em alta estima o contratualismo rous-
seauniano, que considere exemplar a interação entre direito e democracia [no Contrato
social] e veja na institucionalização popular do contrato social uma antecipação da ética
discursiva” (HECK, 2008, p. 15); e em detrimento dos outros dois clássicos contratualis-
tas, “Rousseau seja visto como o fundador de um metódico procedimento de justificação,
por ser o único contratualista que faz do contrato enquanto tal o princípio da organiza-
ção política, da legislação e da justiça” (Idem, ibidem).

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MARTINS, Wellington Anselmo. A Soberania Popular,
Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
p. 52-64, 2021.

Isso une Rousseau a Habermas – ainda que tanta distância histórica e filosófica
os distanciem –, o prenúncio na obra do genebrino, e não nos britânicos Hobbes e Lo-
cke, da cara relação direito-democracia, da justificação e legitimação do bem público em
razão da própria convenção popular: a vontade geral, nos termos de Rousseau; o con-
senso, no vocábulo dado por Habermas. Como salientado, há evidentemente distância
conceitual entre ambos, mas tal compreensão de que a legitimação da lei e dos governos,
justos, carece do discurso convencional dos cidadãos diretamente interessados, isto é,
um procedimento republicano, democrático, leva Rousseau e Habermas a uma unidade
doutrinária quando de suas premissas. Em outros termos, “o problema que Habermas
considera relevante de ser tratado a partir de Rousseau é a tentativa de compatibilizar
direitos humanos e soberania popular” (DUTRA, 2012, p. 57).

O direito e a democracia ou, ainda, lei e moral, validade e facticidade... Estas são
determinações do legado moderno. Isto é, a revolução contratualista, no plano filosó-
fico – mas que encontra, igualmente, o plano histórico: na Revolução Gloriosa inglesa, na
Declaração de Independência dos EUA, na Revolução Francesa etc. – leva à dissolução
das formas de vida pré-modernas ou medievais. É para usufruir dessa herança do pensa-
mento iluminista que Habermas elege Rousseau – e depois, do século XIX, ainda Kant.

Habermas, todavia, é um frankfurtiano, mas, de modo algum, é mero seguidor da


Escola de Frankfurt; igualmente, Habermas é um modernista, porém, é um filósofo ori-
ginal, um livre pensador do século XX, por isso resumi-lo como simples continuador de
Rousseau e Kant seria desconsiderar a sua concepção de autonomia: “O que ele [Haber-
mas] quer mesmo é apresentar a sua própria solução para tal problema [a relação direi-
to-democracia], uma intenção, aliás, que ele compartilha com Rawls” (DUTRA, 2021, p.
57).

Neste intento,
Rousseau é visto [por Habermas] como um dos pais dos direitos humanos e da
soberania popular. Uma das críticas a Hobbes e Grotius é que esses filósofos
modernos tomaram o fato como direito e confundiram a força física com o de-
ver moral, ficando assim incapazes de contribuir para a formação da noção con-
temporânea de legitimidade enquanto mediação entre facticidade e validade. O
que separa o fato e o direito é propriamente o tema de Direito e democracia, de
modo que o pensamento do autor do Contrato social permite refletir. (MONTE-
AGUDO, 2013, p. 196).
Destarte, o frankfurtiano de segunda geração propõe a sua contribuição original
consonante ao subsídio prévio advindo de Rousseau: Contrato social e Direito e democra-
cia, por isso, podem ser lidos juntos. Ora, pois já foram analisados, na primeira parte des-
te trabalho, os capítulos iniciais da magnum opus do genebrino, para acentuar que, desde
os seus fundamentos, a complexidade entre fato e direito é incontornável para o contra-
tualismo de uma vontade geral – tal como, igualmente, para a democracia deliberativa
embasada em um consenso necessário.

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MARTINS, Wellington Anselmo. A Soberania Popular,
Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
p. 52-64, 2021.

Mas a pretensão teórica de Habermas com recepção de Rousseau não se alimen-


ta apenas da relação facticidade-validade, no Direito e democracia, pois o seu interesse
por reconceituar a soberania do povo no final do século XX, isto é, a democracia, também
pondera os germes acerca da esfera pública no ideário iluminista: “Em Mudança estru-
tural, Habermas analisa a formação do conceito de opinião pública para o qual a contri-
buição de Rousseau é relevante, além de ser o primeiro a empregar a expressão ‘opinion
publique’” (MONTEAGUDO, 2013, p. 106).

Ainda, igualmente nesta obra anterior ao Direito e democracia, Monteagudo res-


salta a opção por Rousseau em paralelo com Kant. Habermas, ou seja, desde antes da
década de 1990 já se inclinava por esses autores, por ver neles a “mesma concepção de
autonomia”, ainda que em Rousseau há a ênfase na “vida pública” enquanto em Kant para
a “vida subjetiva” (2013, p. 106).

O interesse persistente por compreensão e conceituação da esfera pública fica


evidente, em capítulo próprio, na fase da obra Direito e democracia. Porém, ao apontar es-
ses antecedentes teóricos da criação habermasiana, não apenas pretende-se bem com-
preender a sua inovação com a democracia deliberativa – na qual soberania popular, fato
e direito, esfera pública etc. constituem vocabulário estruturador –, mas ainda demons-
trar o aporte teórico buscado em Rousseau.

Ora, dois comentadores aqui analisados, Heck e Dutra, ressaltam a falta de de-
bate público no Contrato social, inclusive apontam para uma tradição que vê um perigo
jacobido em Rousseau ou mesmo ditatorial – nessa linha revolucionária, atentou-se nes-
te trabalho por ressaltar especificamente o caso marxista de Althusser quando da sua
interpretação dos axiomas iniciais do Contrato; ainda que tais críticas e interpretações
possíveis de Rousseau não sejam o foco desta pesquisa –, todavia, ante a Heck e a Dutra,
Repa afirma que “Habermas contraria fortemente toda a crítica dirigida a Rousseau [...]”,
uma vez que na afirmação dos direitos humanos não caberia, em si mesma, alguma exata
afirmação oposta de ditadura: “[...] Rousseau pôde estabelecer um nexo interno entre os
direitos humanos e a soberania popular” (REPA, 2013, p. 106).

Esse nexo rousseauniano entre direito e democracia, com o qual Habermas res-
ponde às críticas ao genebrino, está baseada em uma interpretação específica:
A princípio, ele [Habermas] parece ter em mente a seguinte linha de interpre-
tação. A soberania, sendo o exercício da vontade geral, não pode ser colocada
além dela. Como a vontade geral é a vontade do corpo político, e este se cons-
titui de todos os associados reunidos em um povo, o soberano nada é senão um
ser coletivo constituído por todos. Disso resulta que ninguém está fora da du-
pla relação súdito/cidadão, portanto, que ninguém está desobrigado das deci-
sões do soberano enquanto súdito. Além disso, tanto a obediência à lei como
a participação em sua autoria é feita em total igualdade, de modo que, para a
deliberação política, todos têm as mesmas condições de participação e, para a
obediência civil, a mesma igualdade de direitos e deveres. (REPA, 2013, p. 106).

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MARTINS, Wellington Anselmo. A Soberania Popular,
Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
p. 52-64, 2021.

Seguindo os Princípios do direito político, de Rousseau, absolutamente ninguém


está fora da dupla relação súdito/cidadão. Habermas interpreta assim. Por princípio, en-
tão, nem jacobinos, nem vanguardas proletárias, nem a própria figura de um legislador
– evidentemente, nenhum rei absolutista, já que este era o alvo histórico privilegiado
contra o qual Rousseau argumentou –, ninguém pode sobrepor-se legitimamente à igual-
dade de direito.

Uma vez tomada essa base interpretativa, Rousseau então não é senão o autor da
liberdade, que semeou no iluminismo os ideais de república e autolegislação incontorná-
veis para a compreensão atual de direitos humanos, tal como insubstituíveis igualmente
para a conceituação habermasiana de legítima deliberação pública.

Fica, então, nestes termos, a “vida pública”, apontada por Monteagudo, expressa
em Rousseau. Resta, pois, perguntar acerca daquela kantiana “vida subjetiva”, que fecha-
ria as escolhas teóricas elementares de Habermas.

“O conceito de autonomia kantiano seria, como dá a entender Habermas, mais


complexo que o de Rousseau” afirma Repa (2013, p. 106-107). Kant, também leitor de
Rousseau, avança no sentido de não apenas pensar o princípio republicano – uma von-
tade geral como única legitimadora do bem comum expressado na lei e efetivado por
governos também submetidos à mesma lei –, mas ainda conceituar o princípio moral da
pessoa humana (com o seu imperativo categórico ético) e, enfim, o princípio do direito
(que já prevê uma lei de validade universal).

Repa, assim, sintetiza este ponto da recepção habermasiana a Rousseau e Kant,


na contramão de qualquer leitura que aponte para uma ditadura nos axiomas do Contra-
to social.

E Habermas, então, pensa o debate público – essência da sua teoria democrática


– a partir de Rousseau: “A cláusula pétrea habermasiana, que prescreve a ocorrência de
discursos reais práticos”, que ocorram no mundo da vida mesmo, “como se fossem veícu-
los constitutivos da opinião pública deliberativa, iguala, à moda da república do genebri-
no, as condições de legitimação à respectiva constituição” (HECK, 2008, p. 06).

Em outros termos e sem esquecer a base kantiana, Habermas almeja a sobera-


nia que emana do diálogo entre pessoas capazes de um consenso útil e justo, isto é, que
entre si mesmas as pessoas interessadas formulem seus “imperativos categóricos” e de-
batam acerca dessas formulações, pois há uma “vontade geral” possível, há decisões que
efetivam o bem comum. Esta é a apropriação e reconceituação da recepção habermasia-
na de Rousseau e Kant:
A qualidade intersubjetiva ou coletiva que resulta da aplicação do princípio-dis-
cursivo (D) e do princípio de universalização (U) distingue o cognitivismo ético
habermasiano de outras tentativas de reconstrução da razão prática kantiana.
Como (U) induz, à revelia de interesses e vantagens individuais, a obtenção de

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MARTINS, Wellington Anselmo. A Soberania Popular,
Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
p. 52-64, 2021.

um interesse geral ou comum, (D) viabiliza a formação de uma vontade geral


e concretiza um resultado que equivale a uma rerrousseaunização do legado
normativo kantiano, quer dizer, a moral pós-convencional postula uma refor-
mulação do imperativo categórico de Kant. (HECK, 2008, p. 5-6).
Habermas insere o exercício permanente da livre expressão, o discurso, para
constituição intersubjetiva humana, universal, da vontade. Por isso há o que Heck deno-
minou de “re-rousseaunização” da norma kantiana em Habermas; é a síntese da vontade
geral com o imperativo categórico, norma e moral, direito e democracia – tudo em movi-
mento constante nas esferas públicas do debate e deliberações democráticas.

Assim, o frankfurtiano expressa a sua originalidade, dado que não somente elege
o republicanismo de Rousseau e o normativismo de Kant, salvando tanto a “vida públi-
ca” das leis quanto a “vida subjetiva” do universo da consciência de cada indivíduo, mas
avança. Habermas quer abarcar ambos os argumentos em um único raciocínio, isto é,
propõe um debate permanente, que pode reformular leis, que quer acompanhar as mu-
danças que podem ocorrer nos indivíduos.
Destarte, com o espaço dado a movimentos discursivos consensuais, não há inér-
cia nas vontades gerais ou nos imperativos categóricos, pois tudo precisa ser afirmado,
argumentado, posto a juízo público, ante a outras afirmações, a outros argumentos con-
trários. Enfim, a tese habermasiana vê entre Rousseau e Kant o alicerce da sua noção
de soberania popular e governo legítimo.

Habermas, ou seja, conhecedor das críticas à ética e filosofia política da moderni-


dade, contorna os déficits que encontra nos contratualistas e em Kant enquanto salva-
guarda os aspectos de “generalidade” e de “liberdade” que permeiam os autores moder-
nos:
Segundo Habermas, um dos déficts do tratamento desse assunto nos autores
mencionados [Hobbes, Rousseau e Kant] consiste em uma compreensão ina-
dequada da contribuição que a estrutura própria do direito pode desempenhar
para a resolução da tensão entre direitos humanos e soberania popular [...], não
só entre direitos humanos e soberania popular, como também entre direito e
moral. Habermas defende a tese de que o conceito de forma do direito é com-
posto por dois elementos principais, a generalidade e a liberdade. [...] Esses as-
pectos que caracterizam a forma jurídica poderiam ser vistos, de uma maneira
ou outra, operantes nas filosofias do direito de Hobbes, Kant e Rousseau. (DU-
TRA, 2012, p. 58).
Com tais termos, generalidade e liberdade, Dutra ressalta a lei legítima que emana
do povo e se inscreve no direito instituído – com aquela base da vontade geral e do impera-
tivo categórico – enquanto este mesmo direito não reina ditatorialmente sobre os motivos
de foro íntimo de cada pessoa-cidadão. A vida subjetiva fica, então, resguardada.

Enfim, Habermas é um autor enciclopédico, que procura dar conta dos melhores
princípios democráticos do contratualismo, em especial de Rousseau, junto aos acrésci-
mos já avançados por Kant – por isso, também, outros autores do século XIX, como Marx,
são revisados pelo frankfurtiano, apesar de estes já não serem objeto deste trabalho.

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MARTINS, Wellington Anselmo. A Soberania Popular,
Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
p. 52-64, 2021.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fica, assim, apresentada uma aproximação ao tema, ainda novo no meio acadêmi-
co, da relação possível entre Rousseau e Habermas. Porém, tais passos iniciais já indicam
uma recepção favorável do frankfurtiano especialmente em relação à obra Contrato so-
cial. Não sem as ressalvas apontadas, o princípio revolucionário de soberania popular em
Rousseau se mantém útil e pertinente mesmo nesta virada de milênio.

Como dito e argumentado, Habermas opta, aqui no final do século XX, pela noção
de soberania que inspirou a Revolução Francesa, de 1789, em detrimento daquela opção
hobbesiana, britânica, da soberania no absolutismo dos reis. Também o inglês John Lo-
cke, dentre os contratualistas, é secundário na estruturação da obra Direito e democracia,
se comparado ao papel exercido pelo genebrino.

Ora, toda essa análise de ética e filosofia política contemporânea tem sido expres-
sada, traduzida e desenvolvida pelos citados especialistas: Repa, Monteagudo, Heck,
Oliveira e Volpato Dutra, principalmente.

Esse caminho escolhido, pela exegese destes autores, se mostrou necessário para
se iniciar o teste da hipótese desta pesquisa, qual seja, a de que Habermas, apesar da
apropriação crítica, ainda mantem vivo o alicerce rousseauniano da soberania do povo.
Enfim, mesmo em suas propostas originais, a exemplo de a democracia deliberativa,
Habermas não descarta a energia utópica e filosófica do republicanismo do século XVIII,
este que alicerça a criação do Estado democrático de Direito.

A partir destes primeiros passos dados, pelos citados especialistas deste traba-
lho, importa agora avançar na análise da obra completa de Habermas, registrando, além
de no Direito e democracia, também em seus diversos outros livros, a forma como tem re-
cepcionado e alimentado a importância incontornável de Rousseau mesmo para o pen-
samento atual.

Parte desse avanço necessário, para a compreensão da recepção habermasiana


de Rousseau, pode ser conferida na já citada dissertação de mestrado, intitulada “O Con-
trato social, de Rousseau, e sua recepção no Direito e democracia, de Habermas” (2021),
pois este presente artigo é parte integrante dela.

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KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.


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63
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Entre Habermas e Rousseau. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1,
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. São Paulo: Edipro,


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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. São Paulo: Edipro, 2018.

64
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PRIMÁRIOS NO CURSO DE
PEDAGOGIA DA FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DO
SAGRADO CORAÇÃO (FAFIL) DE BAURU-SP (1954-1968)

TRAINING OF PRIMARY TEACHERS IN THE PEDAGOGY COURSE OF


FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DO SAGRADO CORAÇÃO
(FAFIL) OF BAURU-SP (1954-1968)

Angélica Pall Oriani1; Mirella Muniz Grillo2


1
Pós-doutora e Doutora em Educação, Professora de cursos de licenciatura e coordenadora
do curso de Pedagogia no UNISAGRADO – Bauru – SP – Brasil
angelica.oriani@unisagrado.edu.br
2
Bacharel em Design e Graduanda de Pedagogia – Bauru – SP – Brasil
mirella.muniz97@gmail.com

Data de envio: 26/04/2021


Data de aceite: 17/05/2021

RESUMO

A pesquisa, cujos resultados são apresentados neste artigo, enfocou a formação de pro-
fessores primários na região Noroeste paulista. Dialogando com o crescente investimen-
to no âmbito da história regional na pesquisa em educação, o artigo tem como objetivo
geral analisar a história da formação de professores primários a partir do curso de Peda-
gogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL), de Bau-
ru, entre 1954 e 1968. O recorte cronológico compreende o período de implantação do
curso e da abertura da primeira turma – 1954 – até o ano de formação da décima turma,
que corresponde ao ano de 1968. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram utilizados
procedimentos de localização, reunião e seleção de documentos, a partir dos quais fo-
ram elaboradas as referências bibliográficas, as quais estão organizadas, classificadas e
ordenadas a partir de categorias. Por meio da pesquisa, foi possível compreender que a
FAFIL contribuiu de forma intensa para a formação de professores na região Noroeste
paulista, tendo não somente destinado docentes para o ensino primário, mas, também,
para outros níveis de ensino e para cargos de gestão educacional. Promovendo discus-
sões teóricas e metodológicas bastante convergentes com o que circulava no debate
nacional e até mesmo mundial quanto a questões educacionais, o curso de Pedagogia
permitiu a formação de um grupo de professores muito articulado com essas discussões. 

Palavras-chave: História da formação de professores primários. Bauru. Faculdade de Fi-


losofia, Ciências e Letras. História da educação.

65
ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

ABSTRACT

The research, whose results are in this paper, focused on the training of primary teachers
in the Northwest region of São Paulo. In dialogue with the growing investment in the
scope of regional history in research in education, the article aims to analyze the history
of the training of primary teachers from the Pedagogy undergraduate course at the Fa-
culdade de Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL), from Bauru, between
1954 and 1968. The chronological cut comprises the period of implementation of the
course and opening of the first class - 1954 - until graduation of the tenth class, which
corresponds to 1968. To conduct the research, we located and selected documents from
which we prepared bibliographical references, which were organized, classified, and or-
dered according to categories. Our findings showed that it was possible to understand
that FAFIL contributed intensively to the training of teachers in the Northwest region of
São Paulo, having not only destined teachers for primary education, but also for other
levels of education and management positions. Promoting theoretical and methodolo-
gical discussions quite convergent with what was circulating in the national and even
worldwide debate on educational issues, the Pedagogy course allowed the training of a
group of teachers very articulated with such discussions.

Keywords: History of teaching training. Bauru. Faculty of Philosophy and Sciences. His-
tory of education.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta e discute resultados finais de pesquisa de iniciação científi-


ca desenvolvida entre agosto de 2019 e julho de 2020 de modo voluntário junto ao curso
de Pedagogia no Centro Universitário Sagrado Coração.

O objetivo do artigo é analisar a história da formação de professores primários na


região Noroeste paulista a partir do curso de Pedagogia da FAFIL entre 1954 e 1968. O
recorte cronológico contempla o ano da primeira turma até a formação da décima tur-
ma do curso. A escolha por acompanhar dez turmas se deveu a uma tentativa por parte
das autoras de ter um conjunto extenso de alunos formados pela instituição, assim como
buscou compreender as alterações de matrizes curriculares, conforme será abordado
adiante.

Para desenvolver a análise pretendida, consideramos a importância do curso no


espaço em que foi inserido: a cidade de Bauru em meados dos anos de 1950, assim como
a matriz curricular e a quantidade de alunos matriculados.

Para atingir o objetivo, foi desenvolvida pesquisa histórica, amparada em pes-


quisa bibliográfica e documental, executada a partir de procedimentos de localização,
seleção, recuperação, organização e análise de bibliografia e de fontes, as quais foram
consideradas fundamentais para o entendimento do objeto de pesquisa.

66
ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

A pertinência de pesquisas dessa natureza se evidencia em diálogo com o cres-


cente investimento do campo da história da educação em desenvolver pesquisas com um
recorte mais regional. Ademais, problematizar do ponto de vista histórico a contribuição
de cursos de formação de professores, enviesando o olhar para matrizes curriculares,
público atingido permite discutir os modos por meio dos quais se constituiu a profissio-
nalização docente trata-se de ação crucial para o questionamento dos modos por meio
dos quais a educação vem sendo efetivada em seus múltiplos contextos.

MÉTODO

A respeito das opções teórico-metodológicas realizadas para analisar o objeto de


pesquisa e tomando como fio condutor a história da educação, cabem alguns esclareci-
mentos. Primeiramente, o conceito de história com que trabalhamos. Dentro da pers-
pectiva assumida, história é tomada como Michel de Certeau (2002) a concebe, isto é,
como uma «operação», que envolve diferentes aspectos para a sua constituição.

Encarar a história como uma operação significou compreendê-la como a relação


entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão etc.), procedimentos de aná-
lise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz
parte da «realidade» da qual trata, e que, essa realidade pode ser apropriada «enquanto
atividade humana», «enquanto prática».
[...] a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de
práticas «científicas» e de uma escrita. Essa análise das premissas, das
quais o discurso não fala, permitirá dar contornos precisos às leis silen-
ciosas que organizam o espaço produzido como texto. (CERTEAU, 2002,
p. 66, grifos do autor).

Desse ponto de vista, a pesquisa histórica foi utilizada no âmbito da abordagem


da história cultural que, conforme indica Chartier (1991), «[...] tem por principal objecto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade
social é construída, pensada, dada a ler.» (CHARTIER, 1991, p. 16-17). Isso significa que
pensar esse objeto de pesquisa de um ponto de vista histórico exigiu um olhar sofistica-
do no sentido de apreender a maior quantidade de indícios possíveis.

Relacionar pesquisa histórica a indícios significa considerar a imprescindibilidade


das fontes documentais. Investigar a história da formação de professores primários do
curso de Pedagogia da FAFIL, portanto, só foi possível a partir de fontes documentais.
Estas são concebidas em convergência com o sentido atribuído por Le Goff (2003), ou
seja, como «documento/monumento». Neste sentido em específico, vale enfatizar a ação
do/a pesquisador/a que escolhe, delimita, classifica e analisa suas fontes documentais.
A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do
conjunto de dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um
valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua própria

67
ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

posição na sociedade da sua época e da sua organização mental, inse-


re-se numa situação inicial que é ainda menos «neutra» que a sua inter-
venção. O documento não e inócuo. É antes de mais nada, o resultado
de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época,
da sociedade que o produziram, mas também das 11 épocas sucessivas
durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais
continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (LE GOFF, 2003, p.
537-538).

No âmbito da história da educação e, especialmente a história da formação de


professores primários, conforme vem sendo desenvolvida por pesquisadores brasileiros
e particularmente paulistas, com os quais a pesquisa dialogou mais, vale destacar Nery
(2009); Carvalho (1988; 1989; 1998; 2000; 2011) Tanuri (1979; 2000); e Saviani (2009).
Para esses pesquisadores, perquirir essa temática representa enveredar pela seara dos
modelos pedagógicos desejados para os futuros/as professores/as, assim como significa
questionar as formas por meio das quais modelos de formação docente eram colocados
em prática a partir de um conjunto de decisões e dispositivos estratégicos e políticos que
visavam alcançar determinados fins (CARVALHO, 2000).

A partir do que se apresentou e tomando como fio condutor o objetivo geral e como
instrumentos de análise os pressupostos teóricos acima delineados, foi desenvolvida
pesquisa bibliográfica e documental. As etapas da pesquisa bibliográfica contaram com
a consulta a base de dados da biblioteca do Unisagrado e de outras universidades, assim
como em outras bases de dados, a saber: Scielo, bancos de teses e portal de periódicos da
CAPES.

A pesquisa documental foi realizada no acervo do NUPHIS – Núcleo de Pesquisa e


História «Gabriel Ruiz Pelegrina» no Unisagrado, que foi fundamental para a localização
de alguns documentos que permitiram certa aproximação com questões cruciais para o
entendimento do curso de Pedagogia1.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Um curso de Pedagogia para a cidade de Bauru-SP

A relação entre o crescimento demográfico e a expansão do ensino ainda é temá-

Sobre a investigação é preciso destacar que durante o processo de desenvolvimento da pesquisa docu-
1

mental, as ações de consulta presencial no NUPHIS tiveram de ser suspensas devido à pandemia de CO-
VID-19, a qual impediu que fossem levadas à frente atividades fundamentais para a coleta e recupera-
ção de documentos. Desse modo, foi possível desenvolver tais etapas apenas entre os meses de janeiro e
março de 2020, pois entre março e julho de 2020 não havia atendimento ao público no NUPHIS. Para não
impactar mais ainda o andamento da pesquisa, optamos por utilizar a documentação recuperada nesses
dois meses de pesquisa documental no NUPHIS e intensificamos a pesquisa bibliográfica visando tecer
uma análise mais sólida do que foi possível recuperar.

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

tica pouco explorada nas pesquisas históricas em educação. Os resultados das pesquisas
já desenvolvidas acerca da questão demonstram a fecundidade das investigações que,
de modo articulado e cotejado, problematizam as nuances variadas que compõem o fe-
nômeno educativo em suas proposições e concretizações (ORIANI, 2015; 2018; SOUZA,
2015).

No estado de São Paulo, por exemplo, as configurações históricas, geográficas,


econômicas fizeram com que a ocupação demográfica se direcionasse intensivamente
à região Noroeste do estado ao longo das primeiras décadas do século XX. Um
desenvolvimento tardio, como assevera Monbeig (1984), que resultou do trabalho dos
fazendeiros de café que viram nas terras ainda não exploradas deste interior um meio
de perseverar na produção deste produto que, ao final do século XIX, já havia deixado a
região do Vale do Paraíba, e se destinado à região Central do estado.

Assim, o desenvolvimento da cultura cafeeira no interior do estado de São Paulo


se intensificou nos anos iniciais do século XX e, de modo correlacionado à construção de
ferrovias, contribuiu para a ocupação territorial do «sertão paulista» e para o crescimento
demográfico nas cidades e vilas que se criaram nos arredores das ferrovias e das estações
de trem.

Em meio à expansão e ao crescimento demográfico, porém, começaram a surgir


preocupações referentes à escolarização, já que junto das famílias dos trabalhadores
enviados a esta região estavam seus filhos, crianças que precisavam ser escolarizadas.
Eram constantes as queixas dos administradores da educação a respeito de não haver
professores em número suficiente para atender às demandas por escolas.

Geralmente, os/as normalistas que se formavam nas grandes cidades não se


arriscavam a adentrar os sertões e quando o faziam, permaneciam pouco tempo,
transferindo-se rapidamente para as escolas situadas nas cidades maiores. Ademais,
até a década de 1930 havia poucas Escolas Normais Oficiais2 para formação de
professores primários no estado e nenhuma delas se situava em Bauru. Para oferecer
certa visualização, vale informar que até 1940 havia apenas 10 dessas instituições no
estado de São Paulo: duas na Capital; uma em Itapetininga; uma em Piracicaba; uma em
Campinas; uma em Guaratinguetá; uma em Pirassununga; uma em Botucatu; uma em
São Carlos; e uma em Casa Branca.

Como se observa, o modelo de formação das Escolas Normais chegava de


modo lacunar até a região Noroeste do estado e a escola mais próxima que havia para
os moradores da região se localizava em Botucatu. Como alternativa, tínhamos o
2
Escolas normais oficiais eram instituições mantidas pelo governo estadual que tinham a função de formar
professores para as escolas primárias. Além do grande prestígio que tinham como estabelecimentos ofi-
ciais e clássicos, somente os formados por essas escolas que poderiam assumir cargos em escolas também
estaduais e municipais de ensino.

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

modelo das Escolas Normais Livres, as quais eram as organizadas a partir de iniciativa
municipal ou particular e não gozavam de reconhecimento estadual no que se refere
aos seus diplomados. Desse modo, aqueles que se formassem por essas instituições
poderiam exercer a profissão docente apenas em escolas primárias particulares ou como
professores leigos3 nas escolas estaduais.

Na cidade de Bauru, a primeira instituição para formação de professores primários


foi criada em 19284; tratava-se da Escola Normal Livre Guedes de Azevedo, que era de
iniciativa municipal. Segundo Inoue (2015, p105), somente em 1945 Bauru ampliaria o
seu número de instituições, com a criação de mais uma Escola Normal Livre, a São José,
e de uma Escola Normal Oficial, o que evidencia que nesse momento a demanda por
formação de professores primários estava bastante intensa.

Desse modo, é preciso reconhecer que até a metade do século XX no município


de Bauru ainda faltavam escolas para formar professores primários para a cidade e,
também, para as cidades da região Noroeste.

No âmbito do preenchimento dessa lacuna que se destaca a criação da Faculdade


de Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração, a FAFIL. A autorização para seu fun-
cionamento se deu a partir do Decreto n.º 34.291 de 20 de outubro de 1953, por meio
do qual passaram a ser oferecidos os cursos de Pedagogia, Geografia, História, Letras
Neo-Latinas. O surgimento da instituição está vinculado à Congregação das Apóstolas
do Sagrado Coração.

De acordo com Tripoli (2003)


A sugestão de uma faculdade veio do Bispo Dom Trindade, em 1949 e,
então, no início da década de 1950, inicia-se a corrida para a instalação
da escola superior, norteada pela Irmã Arminda Sbrissia, que, à época,
vivia em São Paulo e era secretária Provincial do Instituto das Apóstolas
do Sagrado Coração de Jesus. Desse modo, em 15 de agosto de 1951, a
Congregação das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus apresentou os
primeiros documentos ao Conselho Nacional de Educação, para viabi-
lizar a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em Bauru, a
Irmã Clara Milani, diretora do Colégio São José, discutia qual seria o me-
lhor local para a instalação da faculdade e verificou que a melhor possibi-
lidade seria no prédio em que funcionava o Grupo Escolar Rodrigues de
Abreu, localizado na metade da quadra do São José. No entanto, alguns
problemas burocráticos inviabilizaram o início imediato da construção e
seria necessária a negociação com o Governo do Estado.

Somente após uma reunião ocorrida no dia 05 de setembro de 1951,


com as Apóstolas do Sagrado Coração e outros elementos do governo
3
Professores leigos eram aqueles que não tinham titulação reconhecida ou que não tinham nenhum tipo
de titulação.
4
Apenas a título de comparação, a primeira Escola Normal do estado de São Paulo – da Praça da República,
na Capital – foi criada em 1846, ou seja, 86 anos antes da primeira Escola Normal Livre de Bauru.

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

provincial, decidiu-se pela instalação da Faculdade no próprio prédio


onde funcionava o Colégio São José (p. 16).

O recebimento de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na cidade foi ce-


lebrado com bastante intensidade. Foi possível localizar recortes de jornal no NUPHIS
que atestam essa boa recepção, tal como o que apresentamos a seguir.

Figura 1 – Recorte de jornal, Diário de Bauru (1953)

Fonte: NUPHIS

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

Figura 2 – Recorte de jornal, A fé (1953)

Fonte: NUPHIS

Apesar de a leitura da primeira imagem estar um pouco prejudicada, o segundo


recorte auxilia a identificação do tom de conquista com que os jornais relatam não ape-
nas a importância da criação de um curso de ensino superior na cidade de Bauru, mas,
especialmente a sua contribuição para a região como um todo.

Tripoli (2003) desenvolveu pesquisa de iniciação científica sobre a história do cur-


so de Matemática na FAFIL e as discussões da autora sobre a história da cidade de Bauru
e sua relação com as ferrovias e com o cultivo e a produção do café são bastante perti-
nentes. A autora aponta o início da educação bauruense com o Grupo Escolar Rodrigues
de Abreu, fundado em 1938, com o objetivo de combater o analfabetismo. Assim, as rela-
ções entre o curso de formação de professores e a criação de um grupo escolar, que ofe-
recia escolarização primária se torna importante para entenderemos a criação da FAFIL.
Além disso, há que se destacar outro ponto importante: «Sob o governo de Getúlio Var-
gas; as mulheres passavam a ter seus direitos conquistados, o que, de uma maneira ou
outra, as influenciava a procurar uma formação profissional.» (TRIPOLI, 2003, p. 16)

Desta maneira, Tripolli (2003) descreve a história da formação e inauguração da


FAFIL, que oferecia os cursos de Geografia e História, Letras Neolatinas e Pedagogia, e
que «[...] recrutou elementos de grande relevo, figuras de notável cultura brasileira e cris-
tã, formando destarte uma Congregação de elevado prestígio e autoridade.» (ANUÁRIO
1954, p. 6 apud TRIPOLLI, 2003, p.18)

Além disso, a autora destaca que a década de 1960 foi marcada na história da
FAFIL pelo fato de que foi inaugurado o curso de matemática, o que mostraria o interes-
se pelas licenciaturas na instituição de ensino. Após descrever a história do município e
da instituição, a autora relata as dificuldades que o curso de matemática – que ela inves-
tiga – passou com as escassas aulas práticas e a relação estreita entre professor e aluno
decorrente do número pequeno de alunos. Apresenta em suas conclusões que

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
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(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

[...] o despertar para a necessidade da pesquisa contínua no fazer do


professor e da reflexão histórica sobre a cidade e a instituição em que
estuda, favorecendo um crescimento substancial para sua formação
profissional, educando o seu olhar de maneira crítica e contextualizada.
(TRIPOLI, 2003, p. 72)

Se pensarmos que Bauru dispunha de 66.972 habitantes de acordo com o Cen-


so de 1950 (BRASIL, 1950) e 93.980, de acordo com o Censo de 1960 (BRASIL, 1960),
podemos ter ideia do modo com que a cidade crescia em ritmo intenso nesse período.
Assim, era prestigiada a possibilidade de ter outro nível de ensino para atender aos mo-
radores da cidade seja para a formação em nível superior, seja pela possibilidade de ofe-
recer profissionais formados para os estabelecimentos de ensino primário e secundário.

Ainda a respeito da criação de um curso superior para a formação de professores


no interior do estado de São Paulo, há um elemento que precisa ser pontuado: o curso
oferecido pelas escolas normais oficiais era considerado legalmente como nível médio,
o equivalente aos cursos de ensino secundário. Assim, quando no ano de 1953 foi au-
torizada a instalação do curso de graduação em Pedagogia na FAFIL em Bauru, tem-se
não somente a possibilidade de ampliar o acesso dos moradores da região a cursos de
formação de professores primários de um modo geral, como, também, de oferecer essa
formação para professores se formarem em nível superior como curso de licenciatura e
atuarem também em outros cargos, que não apenas o ensino primário – diferentemente
do que ocorria nas escolas normais.

E a partir da documentação localizada, pode-se aventar essa contribuição. Ape-


sar de não ter sido possível recuperar documentos que ajudassem a mapear o perfil dos
estudantes das primeiras dez turmas do curso de Pedagogia, como havia sido indicado
no projeto de pesquisa apresentado ao Comitê de Iniciação Científica, devido às dificul-
dades de armazenamento desse material e utilização para fins de pesquisa, foi possível
localizar um documento intitulado Anais 1954-1964 escrito em razão da comemoração
do primeiro decênio da FAFIL que contêm informações que ajudam a identificar os locais
que alguns dos alunos de Pedagogia ocuparam após a graduação.

Desse modo, apesar de não serem informações que permitem identificar as cida-
des atendidas pela FAFIL, foi possível compreender que após terem sido formados, mui-
tos dos graduados em Pedagogia passaram a atuar em Marília, Garça e em Bauru, tam-
bém. A inserção na rede pública de ensino também se destaca, assim como a ocupação
de cargos de direção de escolas primárias, secundárias e profissionais e de orientadores
educacionais.

Outro ponto que merece destaque é o papel da congregação católica na expansão


do ensino para o interior do estado de São Paulo. Dialogando com o texto de Furtado
(2015) é possível trazer ao debate questões importantes sobre o papel das instituições
confessionais na expansão da educação.

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
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(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

Ao estudar a trajetória do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora de Ribeirão Preto,


Furtado (2015) aventa que a Congregação das Filhas de Maria Auxiliadora, no Brasil ins-
talaram sua obra educativa em cidades que tinham como base a economia cafeeira, pois
essas religiosas e, por esse motivo, criaram o colégio feminino, com ensino primário em
1918 e a inclusão do ensino Normal na década de 1940.

Sobre a expansão das instituições confessionais, Furtado (2015, p. 500) afirma:


[...] a vinda de Ordens e Congregações Religiosas para o Brasil, no século
XIX, acabou desencadeando a instalação de uma rede de colégios católi-
cos para a educação de crianças e jovens, que marcou forte presença na
educação brasileira do século XIX e início do XX. Sinaliza um movimen-
to da Igreja Católica, [...] que lançou um olhar especial sobre a família,
invadindo os lares católicos por meio da prática religiosa ocorrida nas
igrejas, nos colégios, nos orfanatos, nas creches, sendo esses os lugares
considerados preferenciais de sua ação.

Apesar de a análise de Furtado (2015) incidir sobre um colégio e a que foi reali-
zada na pesquisa de iniciação científica que subsidia este artigo sobre uma Faculdade
é possível problematizar se há pontos de convergência a respeito da disseminação dos
ideais católicos de formação humana, religiosidade. Todavia, não foram localizados do-
cumentos que permitam afirmar questões dessa natureza e, tampouco, esse era o propó-
sito da pesquisa. Porém, há um aspecto que converge entre a análise de Furtado (2015)
e a que vem sendo desenvolvida: a importância das instituições confessionais para a dis-
seminação da educação seja ela de qual nível for.

Nesse ponto, há que se ressaltar a contribuição que a FAFIL, assim como outras
instituições confessionais na disseminação da educação via criação de estabelecimentos
de ensino em cidades do interior do estado, como atesta Furtado (2015).

O Curso de Pedagogia da FAFIL

A análise da organização do curso de Pedagogia da FAFIL considera a matriz cur-


ricular e os dados estatísticos a respeito da quantidade de matriculados no período em
questão.

As matrizes curriculares do curso de Pedagogia

A partir da documentação localizada, foi possível identificar as matrizes curricu-


lares que estavam em vigência no período do recorte cronológico da pesquisa. Vale des-
tacar que a primeira matriz curricular foi possível de ser localizada a partir do boletim
acadêmico de um estudante, o qual foi compartilhado, sem identificação pela Secretaria
Acadêmica do Unisagrado (Quadro 1). Já a segunda matriz curricular estava apresenta-
da no Regimento da FAFIL, incluído no documento Anais 1954-1964 (Quadro 2).

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

Quadro 1 – Primeira matriz do curso de Pedagogia (1954)

Disciplina Duração
Introdução à Filosofia 3 anos
Introdução à Teologia 3 anos
Complementação Matemática 1 ano
História da Filosofia 3 anos
Biologia 1 ano
Sociologia 2 anos
Psicologia Educacional 2 anos
História da Educação 2 anos
Filosofia da Educação 2 anos
Estatística 1 anos
Psicologia 1 ano
Psicologia Social 1 ano
Educação Comparada 1 ano
Administração Escolar 2 anos
Testes e Métodos Educacionais 1 ano
Didática Geral 1 ano
Didática Especial 1 ano
Orientação Educacional 1 ano
Psicopatologia 1 ano
Fonte: Boletim escolar de aluno (1954-1957)

Quadro 2 – Matriz do curso de Pedagogia – adaptado à Lei de Diretrizes e Bases


da Educação Nacional (4.024/61)

Disciplinas básicas Duração


Psicologia 3 anos
Sociologia Geral e da Educação 2 anos
História da Educação 2 anos
Filosofia 2 anos
Administração Escolar 2 anos

Disciplinas Complementares Duração


Biologia 2 anos
Estatística 1 anos
Métodos e Técnicas da Pesquisa
1 anos
Pedagógica
Cultura Brasileira 1 anos

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
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(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

Cultura Religiosa 3 anos


Didática e Prática de Ensino 1 ano e meio
Optativas:

Elementos de Psicopatologia 1 ano e meio

Orientação Educacional
Fonte: Anais 1954-1964, p. 263.

Vale destacar que houve nova alteração de matriz a partir dos anos de 1970 de-
vido à publicação do Parecer n. 252, de 1969 do Conselho Federal de Educação (BRASIL,
1969), o qual implicou em mudanças importantes, já que a partir de então, o curso de
Pedagogia passaria a formar, além do docente, os “especialistas em educação”, incluindo
habilitações específicas, tais como: Orientação Educacional, Supervisão Escolar, Admi-
nistração Escolar e Inspeção Escolar. A partir de Catálogo Geral de 1973, produzido pela
Coordenadoria de Assuntos Acadêmicos da FAFIL, foi possível constatar a inclusão des-
sas habilitações. Assim, em 1973, a matriz do curso, incluía as “disciplinas e atividades
práticas” para o Ensino Normal e as habilitações específicas para “Administração Escolar
de 1º e 2º grau”, para “Orientação Educacional de 1º e 2º grau”, para “Inspeção Escolar de
1º e 2º grau” e para “Supervisão de 1º e 2º grau” (CATÁLOGO GERAL, 1973, p. 38-43).

Conforme discute Michalovicz (2015), a estrutura curricular alterada em razão


do Parecer n. 252, de 1969 implicou na fragmentação do trabalho educativo, que subdivi-
diu os fazeres pedagógicos entre os que lidavam de fato com a docência e os que ficavam
a cargo dos especialistas da educação. Tais divisões foram reforçadas por reformas edu-
cacionais posteriores e, em parte, ainda perduram no interior da escola.

De todo modo, vale destacar algumas questões importantes: a presença prepon-


derante de disciplinas que podem ser incluídas dentro de um conjunto mais teórico e
filosófico dos fundamentos da educação, tais como história da filosofia, psicologia, bio-
logia e sociologia e, em contrapartida, a pouca presença nas matrizes de disciplinas de
práticas pedagógicas, ou metodológicas. A esse respeito, vale destacar que o Decreto-
-Lei n.º 1.190, de 4 de abril de 1939, que organizar a Faculdade Nacional de Filosofia,
criou também o curso de Pedagogia, que estava organizado de modo a ter três anos de
bacharelado e mais um ano que compreendia o curso de Didática para a formação do
professor, então em três anos formava-se o bacharel e no quarto ano (Curso de Didática)
era conferido o diploma de licenciado.

Do modo com que essa matriz curricular se configurava, ela ficou conhecida como
«modelo 3+1», que foi utilizado de forma intensa na formação de professores em nível
superior. De acordo com Saviani (2008), essas matrizes tinham as seguintes disciplinas
obrigatórias:

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Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
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(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

1º ano: Complementos da matemática, história da filosofia, sociologia,


fundamentos biológicos da educação, psicologia educacional. 2º ano:
Psicologia educacional, estatística educacional, história da educação,
fundamentos sociológicos da educação, administração escolar. 3º ano:
Psicologia educacional, história da educação, administração escolar,
educação comparada, filosofia da educação. (p. 39).

Como é possível verificar, tais conteúdos estão presentes na matriz curricular da


FAFIL, com o acréscimo da disciplina «Introdução à Teologia», que se mantém durante 3
anos na primeira matriz, mas que é alterada por «Cultura Religiosa» na segunda matriz.

Ainda sobre os conteúdos considerados necessários para a formação de professo-


res há que se destacar também as reflexões de Tanuri (2000), que retoma a organização
das Escolas Normais e cita algumas características dessas instituições conforme foram
instaladas no Brasil, a partir de 1835, na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro
[...] a organização didática do curso era extremamente simples, apresen-
tando, via de regra, um ou dois professores para todas as disciplinas e
um curso de dois anos, [...] o currículo era bastante rudimentar, não ul-
trapassando o nível e o conteúdo dos estudos primários, acrescido de
rudimentar formação pedagógica, esta limitada a uma única disciplina. A
infraestrutura disponível, tanto no que se refere ao prédio, como a insta-
lação e equipamento, é objeto de constantes críticas nos documentos da
época. (TANURI, 2000, p. 65).

A autora problematiza alguns dos principais modelos de formação de professo-


res que tivemos no Brasil e conclui afirmando que a história da formação de professores
apresenta avanços e retrocessos e os modos de se compreender a educação também
ajudam a entender o que se propunha sobre a formação de professores.

Investigar as disciplinas que compunham a formação dos professores da FAFIL


ajuda a entender o modo com que a instituição dialogou com as recomendações oficiais
e o caminho que percorreu em sintonia com aquilo que havia de mais atual em matéria de
educação para propor para a formação de professores. Interessante notar o movimen-
to de diminuição das disciplinas «psicológicas» e a concomitante inclusão de disciplinas
«sociológicas» e culturais. Tal movimento pode ser um indicativo das discussões que es-
tavam permeando a formação de professores nos momentos em questão.

Os matriculados no curso de Pedagogia


A documentação localizada até o momento permitiu recuperar alguns dados es-
tatísticos relativos aos matriculados no curso de Pedagogia. Não foi possível, todavia,
recuperar de todos os anos incluídos no recorte cronológico da pesquisa. No quadro
abaixo, apresentamos a quantidade de matriculados por ano.

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
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Quadro 3 - Matriculados em Pedagogia (1954-1967)

1º ano 2º ano 3º ano 4º ano Total


1954 26 - - - 26
1955 26 20 - - 46
1956 28 22 20 - 70
1957 32 14 21 15 82
1958 32 22 12 17 83
1959 32 25 20 11 88
1960 39 24 23 17 103
1961 41 24 20 15 110
1962 25 29 17 19 90
1963 34 14 28 18 94
1967 44 -- -- -- --
Fonte: Anais 1954-1964, p. 263.

Dentre os matriculados, formaram-se pedagogos: 15, em 1957; 17, em 1958; 10,


em 1959; 17, em 1960; 14, em 1961; 19, em 1962; e 17, em 1963. Sobre os anos seguin-
tes não obtivemos informações. Se consideramos que até 1971, quando foi publicada a
Lei de Diretrizes e Bases, n. 5692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971), para assumir
cargos como professores de escolas primárias, como eram denominadas, os professores
não tinham obrigação de ter curso de graduação e apenas a formação na escola normal
já os habilitaria para o cargo, é possível apreender que mesmo quando não havia obri-
gatoriedade quanto ao curso superior de Pedagogia, a FAFIL já despontava como uma
instituição que buscava se diferenciar na região com cursos voltados para as áreas das
licenciaturas.

Desse ponto de vista, cabe problematizar o impacto de uma faculdade de Pedago-


gia para a formação de um conjunto de profissionais habilitados para o exercício docente
no nível primário no interior paulista. Ademais, como já mencionamos anteriormente,
foi possível localizar informação que permitem identificar que os egressos do curso de
Pedagogia foram aprovados em concursos públicos e ocuparam cargos não apenas no
magistério primário público, mas, também, no magistério secundário. Devem ser desta-
cadas, também, as menções a aprovações em concursos de direção de escolas e para o
cargo de orientador educacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados apresentados neste artigo contribuem para trazer ao debate a im-


portância do olhar atento e vigilante ao passado. Investigar a história da formação de
professores no Noroeste do estado de São Paulo por meio da história institucional da
FAFIL permitiu constatar a importância dessa instituição que desponta em Bauru e se
mostra como local de formação para a cidade e região.

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ORIANI, Angélica Pall e GRILLO, Mirella Muniz. A Formação de
Professores Primários no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras do Sagrado Coração (FAFIL) de Bauru-Sp
(1954-1968). MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 65-81. 2021.

Fortalecendo a região por meio de profissionais da educação formados, a FAFIL


fez circular saberes e ideias inovadoras a respeito da educação, dialogando com as ins-
truções legais e com teorias pedagógicas. A contribuição dessa instituição para a forma-
ção de professores no interior paulista é inegável e ainda cabem estudos que possam
explorar mais ainda esse aspecto inovador no que se refere à circulação de teorias e dis-
cussões que ocuparam a cena educacional.

Mediante a pesquisa de iniciação científica desenvolvida foi possível trazer à tona


algumas questões importantes relativas ao objeto de pesquisa, todavia, ainda há algu-
mas lacunas que podem contribuir para o campo de conhecimento da história da educa-
ção. Tal como a investigação acerca dos livros que compuseram a biblioteca «Cor Jesu»,
as ementas e bibliografia das disciplinas.

Ademais, vale destacar que a análise da organização curricular do curso de Peda-


gogia na FAFIL, assim como a sua contribuição para a formação de professores e outros
especialistas da educação entre os anos de 1954 e 1968 permitiu explorar: as interlocu-
ções legais entre a instituição em questão e os órgãos oficiais de educação; os saberes
considerados necessários oficialmente para a formação de professores dentro do recor-
te cronológico da pesquisa e a forma com que a instituição os efetivou a partir da matriz
curricular; e os impactos de um curso de Pedagogia no interior do estado de São Paulo
para a formação de professores de ensino primário, secundário e especialistas em edu-
cação.

Por fim, recuperar a história institucional da FAFIL e evidenciar suas contribui-


ções permite ampliar o modo com que percorremos esses espaços, redimensionando a
importância da história dessa instituição e do seu legado.

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Referências (NBR 6023). Rio de Janeiro, 2018.

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81
A ESCOLARIZAÇÃO DO ESTUDANTE COM TRANSTORNO DO
ESPECTRO AUTISTA: REGISTROS DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
THE SCHOOLARIZATION OF STUDENTS WITH AUTISTIC SPECTRUM
DISORDER: SCIENTIFIC PRODUCTION RECORDS

Julia Dantas Martins Baunilia1; Maria Luisa Marques da Silva Amorim2; Juliana
Vechetti Mantovani Cavalante3
1
Egressa do curso de Pedagogia do Centro Universitário Sagrado Coração- Bauru- São Paulo-
julia.baunilia@gmail.com
2
Egressa do curso de Pedagogia do Centro Universitário Sagrado Coração- Bauru- São Paulo-
jaluamorim72@gmail.com
3
Terapeuta Ocupacional CREFITO 3/5985 – TO,especialização em Educação Especial PUC de
Campinas,Mestrado em Educação PUC de Campinas. Doutorado em Educação Especial - UFSCar, São Carlos-
Bauru-São Paulo e docente da Area de Ciências Humanas e Sociais do Unisagrado -
tojulianamantovani@gmail.com

Data de envio: 15/10/2020


Data de aceite: 30/04/2021

RESUMO

Por meio de um mapeamento da produção científica, que consiste no estudo de


artigos já publicados, o presente trabalho tem o objetivo de analisar como a escolariza-
ção do estudante com transtorno do espectro autista tem sido abordada na literatura
científica. Nessa direção, foram analisados os periódicos da Red de Revistas Científicas
da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal – Redalyc, nos anos de 2014 a 2019. Os
resultados revelam que há pesquisas que discutem a escolarização do estudante autis-
ta e todas as identificadas foram desenvolvidas em universidades públicas. Nota-se que
ainda é necessário intensificar os estudos sobre o ensino e escolarização de estudantes
com Transtornos do Espectro Autista, assim como, sobre sua trajetória escolar.

Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista. Ensino. Escola.

ABSTRACT

By mapping the scientific production, which consists of studying articles already


published, this paper analyzes how the scientific literature has addressed the schooling
of students with Autism spectrum disorder. We analyzed the journals of the Red de Re-
vistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal – Redalyc, published from
2014 to 2019. Results demonstrate there are studies discussing the schooling of autistic
students, and those identified were carried out in public universities. Therefore, it is ne-
cessary to intensify academic studies regarding the teaching and schooling of students
with Autism spectrum disorder and their school trajectory.

Keywords: Autistic Spectrum Disorder. Teaching. School. 

82
BAUNILIA, Julia D. Martins et al. A Escolarização do Estudante
com Transtorno do Espectro Autista: Registros da Produção
Científica. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 82-91, 2021.

INTRODUÇÃO

A escolarização de estudantes público alvo da educação especial constitui uma


temática que compõe a pauta de muitos debates. Quando o Transtorno do Espectro Au-
tista é abordado, nota-se uma abrangente preocupação que vai desde o diagnóstico até
o ensino.  Assim, nota-se que ao longo do tempo, surgiram vários conceitos para explicar
suas características, um dos pioneiros nesse estudo foi Leo Kanner, o primeiro que utili-
zou o termo autista e apontou as seguintes características: inabilidade em desenvolver
relacionamentos com pessoas; atraso na aquisição da linguagem; o uso não comunicati-
vo da linguagem após o seu desenvolvimento; tendência à repetição da fala do outro; uso
reverso de pronomes; brincadeiras repetitivas e estereotipadas; insistência obsessiva na
manutenção da “mesmice”(rotinas rígidas e um padrão restrito de interesses peculiares);
falta de imaginação; boa memória mecânica; e  aparência física normal. (KANNER, 1971). 

A Constituição Federal de 1988, foi um dos marcos para a Educação Inclusiva,


reafirmou que as pessoas com alguma deficiência não podiam mais sofrer discriminação
e nem estarem submetidas a ações e práticas segregacionistas. Nessa direção, a Lei n
13.146/2015, que determina os princípios do Estatuto da Pessoa com Deficiência, firma
no Artigo 8:

Art. 8º  É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com


deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à edu-
cação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à
reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo,
ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à
dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre
outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras
normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico. (BRASIL,
2015).

O artigo acima mencionado determina o direito da pessoa com deficiência às


condições de vida dignas. Quanto à escolarização no ensino regular das pessoas com
Transtorno do Espectro Autista, destaca-se a promulgação da Lei Berenice Piana nº
12.764/12, a qual assegura o direito das pessoas com Transtorno do Espectro Autista
(BRASIL, 2012) . Contudo, mesmo com  avanços, ainda há elementos dificultadores no
ensino, expressos pela ausência do conhecimento sobre a realidade enfrentada pelas
pessoas com autismo. Algumas pesquisas apontam que é fundamental que os docentes
e as escolas tenham um embasamento científico para o desenvolvimento de ações inclu-
sivas. Destas discussões teóricas, surgem dúvidas, como: toda pessoa com autismo se
escolariza? Como suas trajetórias escolares vêm sendo abordadas? Onde?

83
BAUNILIA, Julia D. Martins et al. A Escolarização do Estudante
com Transtorno do Espectro Autista: Registros da Produção
Científica. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 82-91, 2021.

O presente artigo tem o objetivo de analisar como a escolarização do estudante


com transtorno do espectro autista tem sido abordada na literatura científica, sendo em-
basado por meio de uma revisão de literatura, que consiste em uma análise documental
sobre artigos já publicados envolvendo esse tema (SILVA; MENEZES, 2005).

Logo, o artigo foi segmentado em três momentos: as principais características do


transtorno do espectro autista, o direito de se escolarizar e a apresentação da pesquisa
realizada na base de dados da Redalyc.

MÉTODO

O presente artigo foi realizado a partir de uma revisão de literatura, os quais


foram analisados periódicos da Red de Revistas Científicas da América Latina, Caribe,
Espanha e Portugal – Redalyc, entre os anos de 2014 a 2019, cujo para o mapeamento da
produção deste artigo foram selecionados seis periódicos. O desenvolvimento do artigo
foi realizado em três tópicos, cujo primeiro tópico aborda uma breve discussão sobre o
estudo conceitual do transtorno do espectro autista; o segundo aborda os direitos que
o aluno com transtorno do espectro autista tem dentro da vida escolar; já o terceiro res-
salta como é a inclusão do aluno autista dentro das escolas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA: BREVE ESTUDO CONCEITUAL

        O Transtorno do Espectro Autista, só passou a ser considerado um quadro


clínico a partir de 1943, pelo psiquiatra Leo Kanner, o qual observou um grupo de crian-
ças com as mesmas características, de dois a oito anos de idade. Por meio desse estudo
ele pôde distinguir o quadro autista da psicose infantil e esquizofrenia. Segundo Michael
Rutter, uma das  principais características desse transtorno é a inaptidão de se desenvol-
ver em relacionamentos; retraimento do mundo em que vive; problemas na aquisição da
linguagem; repetição de uma rotina com os mesmos costumes (RUTTER, 1978).

      Segundo Ulliane (2016), os autistas são classificados conforme o grau de ne-
cessidade de apoio, sendo nomeados como: autista severo, autista moderado e autista
leve. O grau três, considerado, autista severo, apresenta problemas motores chamados
de movimentos estereotipados, sensoriais, sensibilidade exagerada, dificuldade com as
mesmices do dia a dia, são dependentes e apresentam complicações graves para se co-
municar e não expressam com frequências suas emoções, o que dificulta a compreensão
entre o autista e seu apoio. Autista moderado, grau dois, contém essas mesmas dificul-
dades, porém não são tão intensas quanto o grau três. Autista leve, grau um, tem proble-
mas com suas próprias organizações, dificuldade em comunicação, porém conseguem

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BAUNILIA, Julia D. Martins et al. A Escolarização do Estudante
com Transtorno do Espectro Autista: Registros da Produção
Científica. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 82-91, 2021.

ter uma interação social, o que dificulta na sua total independência (ULLIANE, 2016).

        Conforme as Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos


do Espectro do Autismo (TEA), o diagnóstico se dá por uma equipe multidisciplinar, a
qual adentra psicólogos, fonoaudiólogos e pedagogos, sendo especializado na educação
especial, ou um psicopedagogo. As avaliações necessárias são feitas por eles, engloban-
do entrevistas com os familiares e o portador da deficiência, exames laboratoriais, exa-
mes físicos, para assim avaliar os aspectos de comunicação, linguístico, grau de elevação
do transtorno, interação familiar e social (BRASIL, 2014).

      Para Cardoso e Françozo (2015) em pesquisa desenvolvida na  Universidade Es-


tadual de Campinas (UNICAMP) é de fundamental importância com que a criança tenha
um acompanhamento familiar, para freqüentar as terapias realizadas a fim de ajudá-los,
a saber, lidar com determinadas situações e até mesmo desenvolver relações adequadas,
pois o primeiro contato do autista vai ser sempre a família. O papel dos pais é principal
para que o portador do transtorno do espectro autista tenha êxito em suas relações, por
isso, é necessário com que os pais façam anotações sobre o comportamento dos seus
filhos para apresentá-los a equipe multidisciplinar e assim, junto trabalharem esses de-
safios para o melhor desenvolvimento do autista. (CARDOSO; FRANÇOZO, 2015)

O DIREITO DO ESTUDANTE COM AUTISMO DE SE ESCOLARIZAR      

Se escolarizar, é um direito de toda pessoa com deficiência. De acordo com o Esta-


tuto da Pessoa com Deficiência, o capítulo IV, art.27, determina que:

Art.27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sis-


tema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda
vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos
e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas caracterís-
ticas, interesses e necessidades de aprendizagem. (BRASIL, 2015).

        Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a educação escolar é um di-


reito garantido. Ofertando materiais necessários, professores qualificados, professor
apoio e instituições preparadas.  A escolarização desses alunos deve ser integrada tanto
na vida acadêmica, quanto no relacionamento entre professor e demais estudantes. A
escola deve promover um ensino para todos. Para que as práticas pedagógicas tenham
êxito na vida do estudante, é fundamental que o docente trabalhe com o aluno de acordo
com o currículo fundamentado no Plano Educacional Individualizado, com o intuito de
traçar um objetivo de aprendizagem e alcançar o desenvolvimento pleno dos estudantes
com deficiência. 

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BAUNILIA, Julia D. Martins et al. A Escolarização do Estudante
com Transtorno do Espectro Autista: Registros da Produção
Científica. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 82-91, 2021.

         As práticas devem ser de modo individualizado, de acordo com as necessidades


do seu aluno, o professor precisa fazer com que o ensino seja claro e objetivo e que cada
grau de autismo precisa de uma melhor solução educativa (CATALÃO, 2017). Portanto,
o docente precisa utilizar o método de ensino baseado na construção de conhecimentos,
a fim de proporcionar uma educação de qualidade. Porém o ensino regular da educação
brasileira,é falho, pois a nossa atual educação proporciona um ensino homogêneo, ba-
seado no método de aprendizagem onde todos os alunos aprendem da mesma maneira.

        Para que o docente tenha condições de ensino é fundamental que ele tenha
uma formação adequada, contemplando a educação especial. É necessário com que ele
reconheça as características do aluno portador do transtorno do espectro autista, para
assim, providenciar práticas eficientes e individualizadas, em vista do desenvolvimento
do seu aluno nas relações, envolvendo a aprendizagem no âmbito escolar, como relata o
Estatuto da Pessoa com Deficiência, Capítulo IV, art. 28

V - adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maxi-


mizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência,
favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em ins-
tituições de ensino. (BRASIL, 2015).

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, capítulo IV, art. 28,assegura:

 
X- adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de for-
mação inicial e continuada de professores e oferta de formação conti-
nuada para o atendimento educacional especializado. (BRASIL,2015).

 
MAPEAMENTO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

      Foram analisados os periódicos da Red de Revistas Científicas da América Lati-


na, Caribe, Espanha e Portugal – Redalyc, nos anos de 2014 a 2019.

86
BAUNILIA, Julia D. Martins et al. A Escolarização do Estudante
com Transtorno do Espectro Autista: Registros da Produção
Científica. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 82-91, 2021.

Quadro 1 – Pesquisa realizada na base de dados da Red de Revistas Científicas da Amé-


rica Latina, Caribe, Espanha e Portugal – Redalyc, nos anos de 2014 a 2019 

TÍTULO AUTORES ANO LOCAL OBJETIVO MÉTODO 

Moraes
Octavio, Ana
Julia; Alves
A inclusão do Compreender a
Evaristo, Ana Pesquisa
aluno com Universidade importância do
Luísa; Marques bibliográfica
transtorno do 2019 Federal de aluno com TEA
de Carvalho, (revisão de
espectro autista Itajubá, Brasil na Educação
Bianca; literatura)
na educação Infantil.
Fernandes
infantil Fantacini,
Renata Andrea

Identificar Estudo de
a realidade campo
O autista e Brunna  das escolas
sua inclusão Universidade (realizadas as
Stella da Silva particulares de
nas escolas Federal de entrevistas
Carvalho Lilian 2015 Teresina – PI
particulares da Santa Maria- semi-
Ferreira do e a inclusão
cidade de Teresina Brasil estruturadas,
Nascimento de crianças
– PI compostas
autistas dentro
de tal ambiente. por 19

Refletir sobre
Pesquisa bi-
A inclusão de as possibilida-
Graziele Cris- bliográfica, por
alunos com Trans- Universidade des de inclusão
tina Teodoro; meio de livros,
torno do Espectro 2016 Federal de do aluno com
Maíra Cássia políticas de edu-
Autista no Ensino Itajubá, Brasil Transtorno
Santos Godinho  cação inclusiva e
Fundamental de Espectro
artigos.
Autista

87
BAUNILIA, Julia D. Martins et al. A Escolarização do Estudante
com Transtorno do Espectro Autista: Registros da Produção
Científica. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 82-91, 2021.

Transtornos Univer- Analisar o


Globais do De- sidade desenvol- Pesquisas
Carla K. Vas- vimento e
senvolvimento Federal do bibliográficas,
ques Claudio a escolari-
e Escolariza- 2014 Rio Grande por meio de
Roberto zação dos
ção: o conhe- do Sul Por- livros, artigos,
Baptista alunos com
cimento em to Alegre, entre outros.
perspectiva Brasil transtorno
do espectro
autista

Ressaltar
Resenha do
diante de
Univer- livro Práticas
Jessica de uma resenha
sidade pedagógicas
Práticas peda- Brito de um livro a
Federal para inclusão
gógicas para importância
Rosimeire 2015 de Santa e a diversida-
a inclusão e a das práticas
Maria Orlan- Maria San- de, organiza-
diversidade pedagógi-
do ta Maria, do pelo autor
cas para a
Brasil Eugênio
inclusão e a
Cunha
diversidade

Estudar as
Análise
experiências
Associação qualitativa
A inclusão educativas
Brasileira à questão
escolar nas Marina de autistas
2015 de da inclusão
autobiografias Bialer falantes e
Psicologia escolar no
de autistas não falantes
Escolar e campo do
e de baixo
autismo.
e alto

Fonte: Elaborado pela autora. 

Os dados presentes na tabela acima correspondem a uma pesquisa realizada no


site Redalyc, onde foram selecionados seis artigos que tiveram sua publicação entre os
anos de 2014 e 2019.

     Dentre os trabalhos selecionados foi possível verificar, que o tema  central, gira

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BAUNILIA, Julia D. Martins et al. A Escolarização do Estudante
com Transtorno do Espectro Autista: Registros da Produção
Científica. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 82-91, 2021.

em torno da inclusão dos alunos com transtorno do espectro autista no âmbito escolar.
Já os objetivos, são variados, desde a reflexão relacionada à inclusão do aluno especial,
no ambiente escolar  até mesmo analisar o desenvolvimento e a escolarização dos alunos
com transtorno do espectro autista

      Na pesquisa realizada destaca-se a palavra inclusão e o processo da inclusão


nas escolas, ou seja, a escolarização desses alunos. Para Vasques e Baptista (2014), a es-
colarização deve respeitar  o sujeito  e o seu processo, pois ninguém aprende ou se de-
senvolve de maneira igual. Entende-se que para a escolarização desses alunos é neces-
sário identificar, avaliar e descrever comportamentos com a finalidade de definir planos
de ensino e metas de aprendizagem (VASQUES, 2014) e contemplar  habilidades como a
afetividade; socialização, ludicidade; linguagem, comunicação, psicomotricidade; música
e arte a fim de superar suas dificuldades. (BRITO, 2015) Brito e Orlando (2015)  afirmam
que,  para desenvolver a escolarização desses alunos é preciso um trabalho coletivo en-
tre a escola, família e sociedade. A equipe escolar precisa estar amparada pelo currículo
inclusivo que irá abranger os aspectos sociais e cognitivos, tendo como  ponto de partida,
a vida  particular dos mesmos. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

     A partir das discussões, fica evidente  o quanto há uma defasagem do ensino
brasileiro para as pessoas portadoras do transtorno do espectro autista, cujo ensino é
baseado em uma aprendizagem homogênea, a qual busca um ensino igualitário para to-
dos e que ambos aprendam da mesma maneira. A inclusão desses alunos ocorre de forma
lenta, prejudicando o seu desenvolvimento e a sua plena participação na sociedade.

O ambiente escolar é indispensável para os alunos com TEA, pois é na escola que
ele irá socializar com outros indivíduos, estimulando a interação com novos grupos so-
ciais, possibilitando assim um desenvolvimento favorável e significativo.

        O docente tem um papel muito importante na escolarização desses alunos, ele


deve analisar as dificuldades de cada aluno, a fim de superá-la, promover uma educação
que concilie a prática e a teoria ao mesmo tempo, visando a construção do conhecimento
de cada aluno. A família tem um papel fundamental no desenvolvimento desses alunos,
sendo que a maior parte do tempo, as crianças passam com elas, portanto é fundamental
que os pais acompanhem os filhos, façam sempre observações e procurem sempre traba-
lhar em conjunto com a equipe multidisciplinar.

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BAUNILIA, Julia D. Martins et al. A Escolarização do Estudante
com Transtorno do Espectro Autista: Registros da Produção
Científica. MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 82-91, 2021.

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91
ESTUDO DE CASO: PERCURSO HISTÓRICO – INVESTIGATIVO SOBRE
O DNA FÍSICO – TERRITORIAL DE ALGUMAS CIDADES BRASILEIRAS

CASE STUDY: AN INVESTIGATION ABOUT THE HISTORICAL PATH OF URBAN


DNA IN BRAZIL

Rafaela Bianchi1
1
Aluna do curso de Arquitetura e Urbanismo do Unisagrado. Artigo resultado da pesquisa
de Iniciação Científica - “Estudo de Caso: Investigação sobre o percurso Histórico do DNA
Urbano do Brasil”, desenvolvida sob a orientação da Prof.ª Ma. Tatiana Ribeiro de Carvalho.
rafabianchi7@gmail.com

Data de envio: 30/04/2021


Data de aceite: 06/06/2021

RESUMO
Desde que os primeiros portugueses chegaram ao Brasil, nosso território tem
sido palco de experimentos com relação ao ordenamento territorial. Pode-se assumir
que dadas as proporções continentais que o Brasil apresenta e a forma das nossas pai-
sagens urbanas, a experiência brasileira reúne um vasto arcabouço teórico-prático refe-
rente ao seu ordenamento territorial. No intuito de reunir, refletir, analisar e contribuir
como exemplo da experimentação adotada no Brasil, a presente pesquisa se debruça
sobre a seguinte questão: Quais contribuições para a prática e estudo do ordenamento
e planejamento territorial a experiência brasileira pode oferecer? Objetiva-se com esta
pesquisa inspirar, instigar e expor a experiência do urbanismo no Brasil de maneira a con-
tribuir com outras realidades, localidades e investigações. Por meio de pesquisa biblio-
gráfica, pesquisa em artigos, teses online e estudos de caso de algumas cidades brasilei-
ras, esta pesquisa investiga e analisa momentos específicos de relevância da história do
urbanismo no Brasil e constrói uma linha cronológica, que expõe, de maneira pragmática,
algumas das mais variadas experiências brasileiras que poderão ser acessadas e servir de
inspiração para estudos e exemplos práticos aplicados.

Palavras-chave: Ordenamento territorial. Planejamento Urbano. Urbanismo.

ABSTRACT

Since the first Portuguese people arrived in Brazil, our territory has been scenery
of experiments in relation to territorial ordering plans. It can be assumed that, given the
continental proportions that Brazil presents and the shape of our urban landscapes - be-

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cause of the action of Europeans in our territory -, the Brazilian experience gathers seve-
ral theoretical and practical frameworks of one of the aspects that involve the science of
urbanism: territorial planning. To gather, reflect, analyze, and contribute as an example
of the experimentation adopted in Brazil, the issue is: What are the contributions offe-
red by the Brazilian experience to the practice and study of territorial ordering planning?
The goal of this research is to inspire, instigate and expose the experience of urbanism
in Brazil to contribute with other realities, locations, and investigations. Through biblio-
graphic research in articles, online theses, and case studies of some Brazilian cities, this
research investigates and analyzes specific moments of relevance in the history of urba-
nism in Brazil and builds a chronological line, which exposes, in a pragmatic way, some of
the most varied Brazilian experiences that can be accessed and serve as inspiration for
the study and practical examples.

Keywords: Land use planning. Urban planning. Urbanism.

INTRODUÇÃO
Desde os primórdios da ocupação territorial pelos europeus, o Brasil experienciou
e experiencia uma série de diretrizes e tomadas de decisões no campo do ordenamento
territorial que foram moldando nossas cidades tais quais as conhecemos na atualidade.

A condição continental do Brasil, assim como a realidade econômica, política e


social, aliada às características do sítio natural, dentre outros pontos, foram fatores cru-
ciais para que fossem adotadas soluções bastante peculiares nas mais diversas localida-
des e contextos deste território.

Brasília, enquanto cidade brasileira construída – em sua totalidade planejada,


seguindo os postulados do movimento modernista – possui grande projeção nacional e
internacional por ser a única cidade no mundo que adota amplamente os preceitos urba-
nistas modernos. Esta é somente uma das cidades que compõe esse grande arcabouço
teórico-prático que serve como exemplo da experiência brasileira aplicada à esta ciência
que é o Urbanismo. Tendo o exemplo de Brasília como premissa, este trabalho considera
que outros modelos e estratégias aqui adotados podem servir tanto para o estudo da
ciência do urbanismo quanto como amostra exemplar para as experiências aqui aplica-
das.

Entretanto, antes de dar início ao assunto, se faz necessário explorar alguns con-
ceitos relevantes sobre os termos planejamento urbano, ordenamento territorial e ur-
banismo, uma vez que há uma incerteza terminológica dos termos, como salienta Rovati
(2013). O mesmo autor explica que o impasse se dá devido ao fato de que urbanistas/
planejadores desempenham múltiplas atividades que dificultam o enquadramento teó-
rico-conceitual dos termos. Sobre um desses termos, Agache (1930) define:
Urbanismo é uma ciência e uma arte e, sobretudo, uma filosofia social. Enten-

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de-se por Urbanismo o conjunto de regras aplicadas ao melhoramento da edi-


ficação, do arruamento, da circulação e do descongestionamento das artérias
públicas. É a remodelação, a extensão e o embelezamento de uma cidade leva-
dos a efeito mediante um estudo metódico da geografia humana e da topografia
urbana, sem descurar as soluções financeiras. (AGACHE, 1930, p.4; apud MO-
REIRA, 2008, p. 97).

Segundo Baratto (2020), o conceito de planejamento urbano, trata de uma ciência


que sistematiza e desenvolve a cidade, prevendo suas problemáticas e que visa contri-
buir para o desenvolvimento sustentável, econômico e social, objetivando equilibrar a
demanda de crescimento populacional com os serviços e funções da cidade.

Diante do exposto vale ainda ressaltar a definição de Souza (2010), que explica
que o urbanismo, ou desenho urbano, está incluído no planejamento urbano.

Sobre esses termos, Lima (2002) afirma que as nomenclaturas atribuídas, “urba-
nismo” e “urbanização”, foram utilizadas pela primeira vez em torno da segunda metade
do século XIX, por Ildelfonso Cerdá, conforme citado em sua obra Teoria Geral da Urba-
nização1, que trata a cidade como um organismo complexo.

A partir disso nota-se a importância do Arquiteto e Urbanista na sociedade e


na cidade, visto que a profissão serve como um intérprete das necessidades humanas.
De acordo com a Lei nº 12.378 de 31 de dezembro de 2010, que regulamenta o exercí-
cio da profissão Arquitetura e Urbanismo, e criador do CAU (Conselho de Arquitetura
e Urbanismo do Brasil), são ressaltadas, no Art. 2º, Parágrafo § 5°, as atribuições deste
profissional: Planejamento Urbano e Regional, planejamento físico-territorial, planos de
intervenção no espaço urbano, metropolitano e regional fundamentados nos sistemas
de infraestrutura, saneamento básico e ambiental, sistema viário, sinalização, tráfego e
trânsito urbano e rural, acessibilidade, gestão territorial e ambiental, parcelamento do
solo, loteamento, desmembramento, remembramento, arruamento, planejamento urba-
no, plano diretor, traçado de cidades, desenho urbano, sistema viário, tráfego e trânsito
urbano e rural, inventário urbano e regional, assentamentos humanos e requalificação
em áreas urbanas e rurais. (BRASIL, 2010)

Além disso, de acordo com o CAU, o papel do Arquiteto e Urbanista é fundamen-


tal na cidade:
Os arquitetos e urbanistas entendem que tanto a Arquitetura e o Urbanismo
como a Engenharia Civil são indispensáveis e fundamentais na construção de
uma cidade segura, inclusiva, socialmente justa e ambientalmente sustentável.
(CAU, 2016, p. 56)

Diante desses pontos de vistas há de se acordar que os termos urbanismo e pla-


1
Segundo Gonsales (2005), Cerdá cita dois conceitos principais em sua obra: a valorização da locomoção, melho-
rando a circulação das cidades, e a habitação, diminuindo a salubridade. Outros pontos importantes citados foram:
a valorização do conforto ambiental, diminuindo as ilhas de calor nas cidades, e o traçado retangular das quadras,
modificando a forma de projetar.

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nejamento urbano se referem ao estudo das cidades e ambos objetivam o mesmo fim: o
bem-estar dos seus citadinos, contemplando vários aspectos que culminam numa quali-
dade de vida adequada à vivência humana nas cidades. Neste sentido, vale salientar que
o conceito do urbanismo/planejamento surgiu juntamente com a Revolução Industrial, a
partir da alta demanda de trabalhadores rumo às cidades e dos problemas advindos da
precária condição de vida das pessoas nas cidades naquele momento.

Observa-se, assim, que na busca por uma definição do termo, Agache (1930, apud
MOREIRA, 2008) se remete ao desenho urbano, enquanto Baratto (2020) se concentra
no planejamento como estratégia, objetivo bem definido.

Conclui-se, assim, que os termos planejamento urbano e urbanismo passaram


a envolver outras questões ao longo do tempo, tais como questões sociais, políticas e
econômicas, tanto que Agache (1930 apud MOREIRA, 2008) e Baratto (2020) tratam o
urbanismo e o planejamento urbano – respectivamente – como conceitos complementa-
res e igualmente fundamentais para o desenvolvimento adequado de uma cidade.

Neste sentido, Chaves (1998 apud LACERDA, 2013), de forma pragmática, eluci-
da, através da figura 1, algumas dimensões do planejamento urbano e regional.

Figura 1 - As dimensões do planejamento urbano e regional.


Fonte: LACERDA, 2013.

Ao observar-se a figura 1, nota-se que a representação gráfica, em formato cir-


cular, tem no centro o seu objeto: espaço urbano regional. Todos os compartimentos do
círculo comunicam-se entre si, visando caracterizar a unidade do todo e constituindo
o caráter amplo de uma realidade multidimensional dessa área do conhecimento. Com
isso nota-se que tanto a ciência do urbanismo quanto a do planejamento lidam com a
transdisciplinaridade.

Segundo o dicionário Aurélio, transdisciplinar significa integrar várias discipli-


nas diferentes. (TRANSDISCIPLINAR, 2010). Desta forma, este leque de disciplinas de

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origens diferentes conflui para um único objetivo: projetar o futuro da cidade tomando
como premissa os seus problemas em suas mais variadas esferas e contextos.

Lamas (2004) aponta outras disciplinas também abarcadas pelo urbanismo. O


autor afirma que o urbanismo não é apenas um produto gerado a partir dos fatores eco-
nômicos, sociais e políticos, mas também é o “resultado de teorias e posições culturais
e estéticas dos arquitectos urbanistas” (LAMAS, 2004, p. 31), e salienta que a forma da
cidade deveria ser o resultado da produção voluntária do espaço ao afirmar: “A arquitec-
tura introduz no planejamento e no urbanismo um objeto fundamental: a construção da
FORMA DO ESPAÇO HUMANIZADO.” (LAMAS, 2004, p. 26).

Ao salientar os aspectos culturais e estéticos dos arquitetos e urbanistas, Lamas


(2004) observa que, para intervir no desenho de uma cidade, é fundamental que o arqui-
teto esteja olhando para os valores estéticos e culturais ao longo do tempo, que envol-
vem o futuro e passado, assim como o contexto do local.

Posto isso, cabe esclarecer que o planejamento físico-territorial é somente uma


das ciências que o urbanismo/planejamento urbano abarca e é exatamente pela perspec-
tiva do ordenamento do território e do desenho urbano que a presente pesquisa irá se
desenvolver.

MÉTODO
Para esta pesquisa se fez necessário um amplo estudo bibliográfico-documental,
que envolve análise em artigos, teses, dentre outras fontes de pesquisa, no intuito de
buscar uma definição para conceitos concernentes ao tema da pesquisa.

Na sequência, foram realizadas pesquisas no formato de estudos de casos acerca


das cidades escolhidas.

Vale salientar que diante do contexto atual, em detrimento do agravamento e


maiores restrições impostas devido ao SARS COV 19, não foi possível a realização das vi-
sitas in loco, sendo estas substituídas por pesquisas iconográficas no google e street view.

CRITÉRIO DE SELEÇÃO DOS ESTUDOS DE CASO E ARCO TEMPORAL

O critério de seleção das cidades analisadas como estudos de caso se deu pelas
singularidades físico-espaciais e socioeconômicas que as cidades contemplam.
Desde o início da colonização no Brasil as cidades foram se desenvolvendo de
acordo com a economia de cada época e, frente às suas condições físico-espaciais, o or-
denamento territorial refletiu tais conformações.

Para a presente pesquisa optou-se por analisar o arco temporal condicionado pe-

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las questões econômicas e políticas do país, como serão explicados nos estudos de caso.

Sposito (1988) salienta que:

O início da industrialização, entendida aqui como traço da sociedade contem-


porânea, como principal atividade econômica e principal forma através da qual
a sociedade se apropriava da natureza e a transformava, marcou de forma pro-
funda e revolucionou o próprio processo de urbanização. (SPOSITO, 1988, p.48)

Desta forma, o planejamento e a urbanização surgiram com o avanço da economia


do Brasil, saindo de um desenho ordenado, conforme as cidades europeias, e direcionan-
do para um planejamento urbano propriamente dito, almejando abarcar a quantidade de
pessoas migrando para as cidades.

Outro termo que demanda esclarecimento é ordenamento territorial. Este é a or-


ganização enquanto território, segundo Souza (2011), e antecede a formação do tecido
urbano. Em consonância com esse pensamento, Santos (2000) afirma que o território é
a base das vilas e cidades, o local onde cresce o sentimento de pertencimento, onde as
trocas materiais se dão, sendo, portanto, o local onde flui a vida humana.

Com isso em mente, se faz necessário analisar os territórios das cidades escolhi-
das para entender as primeiras decisões que organizaram e definiram os povoamentos
iniciais. Neste sentido, vale salientar que o critério de seleção das cidades se deu no sen-
tido de pontuar algumas das mais diversas formas de intervenções ocorridas no vasto
território brasileiro.

O arco temporal adotado nesta pesquisa foi condicionado pelas questões econô-
micas e políticas do país e serviu somente como norteador, estabelecendo uma relação
com os saberes e práticas de ordenamento aplicadas em cada momento específico da
história das cidades brasileiras, como segue:

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Figura 2 - Quadro das cidades

A cidade de Paraty serviu como área de escoamen-


to do ouro brasileiro para Portugal, se consolidan-
Paraty – Fundação: do como uma das vilas mais proeminentes durante
16602 o Período Colonial. De descendência europeia, pos-
sui características portuguesas em seu o traçado
“desleixado”.

A cidade de Aracaju foi escolhida por sua locali-


zação privilegiada, às margens do Rio Sergipe, que
permitia a facilidade de transporte e escoamento
Aracaju – Fundação: de açúcar. A cidade apresenta também um desenho
18553 urbano que se contrapõe ao ordenamento colonial
das cidades da época – principalmente São Cristó-
vão (antiga capital sergipana) e conta com uma ma-
lha urbana ordenada no centro da cidade e desor-
denada nas áreas periféricas.

A cidade de Goiânia foi escolhida devido a sua im-


portância histórico-geográfica: colonização do
centro do país, por ter sido projetada no período
modernista e por seguir alguns preceitos das cida-
des jardins. A malha de Goiânia possui um forma-
to pé-de-pato, com grelhas puras, anel de bosques
Goiânia – Fundação: e jardins, setorização da cidade e demarcação de
1933 eixos de circulação. A cidade foi marcada por inú-
meros imigrantes que se migraram para lá devido a
construção de Brasília. Além disso, Goiânia é consi-
derada um marco na história justamente por fazer
parte do movimento “Marcha para Oeste” e trazer
um novo conceito de projeção, com grandes jardins
e praças.

2
REIS FILHO, N. Evolução Urbana do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1968.
3
SILVA, C. H. Espaços Públicos Políticos e Urbanidade: o caso do centro da cidade de Aracaju. Tese de Doutorado.
Salvador, 2009.

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Curitiba foi selecionada por ser uma cidade funda-


da no Período colonial, que se expandiu e se carac-
Curitiba – teriza por uma mescla entre o velho e o novo. Suas
Fundação:1693 características principais são: ordenamento no tra-
çado, avenidas voltadas para o centro da cidade, ar-
borização e remodelagem das ruas.

Brasília foi escolhida por ser um marco na história


do Brasil. Um ícone de cidade planejada e desen-
volvida, centralizando o poder máximo da nação
Brasília – Fundação: brasileira e potencializando riquezas da região.
1960 Brasília segue os preceitos modernistas com rigor,
sendo tombada como Patrimônio Mundial e é tam-
bém alvo de muita discussão acerca de sua configu-
ração.

Fonte: Elaborado pela autora.

A partir desta explanação sobre as escolhas das cidades – e de uma breve descri-
ção de seus respectivos territórios – se faz necessário entender a composição do Cená-
rio Urbano.

Inicialmente, cabe destacar o significado de desenho urbano, como segue:

O desenho urbano é o trabalho de configurar os espaços tridimensionais dos


assentamentos humanos, a fim de aprimorar não somente a beleza de um lugar,
mas também de permitir uma melhor interação entre as pessoas e entre elas e
seus ambientes. (WALL, 2012, p. 16)

Pode-se assumir assim que o desenho urbano constitui o local onde a vida da so-
ciedade se dá, ou seja, os espaços construídos, que permitem a interação do meio urbano
e o homem. Essa estrutura é composta por edificações, ruas, áreas verdes, mobiliários
urbanos etc. Ao longo dos tempos, o desenho urbano, ou seja, a composição do cená-
rio da cidade, se altera de maneira dinâmica e Gouvêa (2008) explica que vários fatores,
como o econômico, influenciam na formação de um desenho urbano, além do relevo, do
solo, da hidrografia e do clima, fatores intrinsecamente ligados à configuração do local.
Para exemplificar esta questão, será realizado um breve estudo das cidades acima elen-
cadas no sentido de evidenciar a evolução das mesmas e entender seu desenho urbano.

Para entender o ordenamento territorial e o desenho urbano das cidades, é ne-


cessário entender sua composição físico-territorial. Neste sentido, Mascaro (2005) afir-
ma que o começo do traçado urbano se dá pela formação de vias, ruas ou caminhos, po-

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dendo ter inúmeros desenhos conforme sua topografia, clima e outros fatores naturais.
Em consequência do espaço físico, a escolha da malha pode assumir diversas formas:
ortogonal, radial, quadriculada etc., que constituirá o desenho das quadras, dos lotes e,
como consequência, a implantação das edificações e a infraestrutura.

Ainda sobre a composição do cenário, Abbud (2006) salienta a importância dos


três planos principais na constituição do espaço paisagístico: plano de teto, plano ver-
tical de vedação e plano de piso. Estes mesmos componentes podem ser observados na
composição do espaço construído das cidades; desta forma, o plano do piso na cidade
corresponderia a malha urbana adotada no local – que surge em detrimento de carac-
terísticas topográficas, do solo – o plano vertical, seria o plano de fachadas das quadras
– que permite identificar os usos do lote: edificações residenciais, comerciais, institucio-
nais etc. (classificação de uso e ocupação) – e por último o plano de teto, com as alturas
das edificações e a cobertura vegetal.

Diante do exposto, foi criado um padrão de análise que será utilizado para os es-
tudos de caso investigados, como explicita a figura 3. É importante salientar que os pla-
nos de teto, vertical e de piso serão analisados no tópico B.

Figura 3 - Padrão de análise para os estudos de caso

Contexto histórico e Breve análise do contexto histórico e econômico de cada


econômico cidade, investigando as razões de seu surgimento.

Formação do desenho Análise do começo do traçado urbano de cada cidade e


urbano como esse desenho foi evoluindo conforme o tempo.

Pós formação do Breve análise do impacto que o planejamento territorial


desenho urbano incial e o desenho urbano tiveram sobre as cidades.

Fonte: Elaborada pela autora.

Tem-se, a seguir, a investigação acerca da organização do planejamento e ordena-


mento territorial brasileiro, que foi organizado por ordem cronológica.

PRIMÓRDIOS DO ORDENAMENTO TERRITORIAL BRASILEIRO

O início da colonização brasileira e as intervenções pontuais ocorridas no territó-


rio se deram, segundo Holanda (1963), de forma gradativa e lenta a partir do descobri-
mento da América Latina e foi disputado por dois países europeus, Portugal e Espanha,
que almejavam implantar a cultura europeia nos países recém-descobertos de forma a

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expandir seus territórios. Neste sentido, Holanda (1963) salienta que a habitação de ci-
dades é essencialmente antinatural e que, para os colonizadores, a construção destas foi
um instrumento de dominação. Sendo assim, em seus territórios subordinados, os colo-
nizadores europeus recriaram o desenho urbano de suas nações no novo espaço. Dessa
forma, em 1494 o Tratado de Tordesilhas dividiu de forma desigual as terras que hoje
compõem o Brasil. No acordo, Portugal ficou com o domínio sobre a área litorânea, que
incluía o Brasil, e a Espanha, com a parte central da América do Sul.

No Brasil, Motta (2004) nos diz que a princípio Portugal desenvolveu um sistema
de sesmarias para a costa brasileira, visando solucionar os problemas de abastecimento
do país. Para isso, a costa brasileira foi dividida em 14 partes e seus donatários ficaram
encarregados pela sua porção territorial demarcada.

Seguindo as influências de outras nações, de acordo com Cury (2008), os donatá-


rios deram início a um possível “pré-planejamento” brasileiro.

Segundo Reis Filho (1968), o sistema de sesmarias obrigava uma administração


indireta e descentralizada, e seus donatários, os “supervisores” que cuidavam das terras,
tinham poder e responsabilidade militar e judiciária.

O território brasileiro em sua maioria foi colonizado pelos portugueses, que no


início não tinham o menor interesse em investir na terra, visto que não possuía atrativos
a serem explorados como em outras colônias. Sobre este momento, Reis Filho (1968, p.
30) salienta:

A divisão do Brasil em capitanias procurava um estímulo às inversões de capi-


tais privados, sem condições para maior sucesso nas índias. De fato, o conjunto
de concessões feitas pela Coroa aos donatários não conseguiu atrair grupos sig-
nificativos, ainda interessados no comércio com o Oriente.

Até então a Coroa não via necessidade de intervir nas sesmarias, uma vez que
eram “comandadas” por seus donatários. Todavia, segundo Cury (2008), devido à queda
do preço do açúcar no Brasil e à derrocada dos negócios em outras colônias portuguesas,
o interesse dos donatários e da Coroa entraram em desacordo. Desta forma, a Metrópo-
le, Portugal, viu a necessidade de ter um controle mais direto da Colônia.

As vilas, geralmente litorâneas, formaram-se, portanto, a partir de uma necessi-


dade social e econômica.

Os grandes proprietários de terras foram substituídos por intermediários metro-


politanos trazidos pela Coroa. Devido à esta mudança, surgiram novas camadas sociais,
dentre estas, os comerciantes.

A primeira vila oficial brasileira foi Salvador, sediada pelo Governo Geral, refletia
o ordenamento português que, diferentemente dos espanhóis, não constituía um pla-

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HISTÓRICO – INVESTIGATIVO SOBRE O DNA.
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nejamento linear e regular, seguindo assim a silhueta litorânea. Holanda (1963, p. 105)
descreve este ordenamento com precisão ao salientar:

A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental,


não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha
da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre
esse significativo abandono que exprime a palavra ‘desleixo’ (...).

Figura 4 - Planta de Salvador no séc. XVII


Fonte – REIS FILHO, 1968

Segundo Holanda (1963), os espanhóis, diferente dos portugueses, possuíam um


ordenamento territorial uniforme, optando pela criação de grandes núcleos urbanos,
o que refletiu espacialmente em cidades com traçados estruturados. As ruas não eram
modeladas a partir da silhueta da costa, mas sim de maneira retilínea, derivadas de uma
praça maior, desenho herdado dos Romanos. Isso se deu devido à razão e à lógica que os
espanhóis tinham para projetar suas cidades. (HOLANDA, 1963).

Entretanto, como frisado por Holanda (1963), essa oposição à regularidade do


traçado, foi nomeado como “desleixo” português. Cury (2008), afirma que, na verdade,
tal “desleixo” não resultou por acaso, mas sim da experiência militar portuguesa que, com
a instalação do Governo Geral, trouxe consigo uma política de segurança sobre o orde-
namento espacial, de forma a favorecer as defesas litorâneas, tornando assim a invasão
por outros países mais dificultosa.

Holanda (1963) acrescenta, ainda, que não foi apenas por essa política de segu-
rança que o ordenamento territorial se deu de forma irregular, mas também pelo desen-

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volvimento liberal que Portugal tinha. Eles não usavam da razão, conforme os espanhóis,
mas sim da rotina e da fantasia de se criar cidades conforme às situações topográficas.

Apesar de Fernández (2005, apud PRIESTER, 2015) afirmar que os espanhóis


também tiveram influência na colonização em parte das terras brasileiras, poucas cida-
des brasileiras seguiram seus preceitos.

Conclui-se, portanto, que o ordenamento territorial, ou seja, as intervenções com


propósitos urbanos, surge a partir da necessidade de organização da aglomeração dos
primeiros núcleos, como uma ação ordenada, intencional e organizada de acordo com
os saberes e valores específicos de cada nação colonizadora. Assume-se, com isso, que o
primeiro momento do ordenamento territorial brasileiro teve um caráter, ainda que de
maneira intuitiva, ordenado e condicionado pela costa ou pela intervenção do homem no
território, através da praça, demonstrando, assim, lógicas diferentes, porém salientando
os conhecimentos diferentes que tinham a respeito desta prática.

ORDENAMENTO TERRITORIAL NO PERÍODO DE 1500 A 1700

Segundo Reis Filho (1968), os núcleos urbanos brasileiros instalados no período


de 1500 e 1600 foram orientados pelo esforço dos colonos e donatários e determinados
pela Coroa portuguesa, o que deu início a uma possível urbanização brasileira.
De acordo com Cury (2008), pode-se classificar a política de colonização e urba-
nização no Brasil de dois modos: dispersão – entre séc. XVI e XVII – e a centralização – a
partir de 1650 – como explicado a seguir:

- Dispersão: a partir de 1530 os donatários iniciam uma política urbanizadora,


com estímulo indireto da Coroa.

- Centralização: Devido à queda do preço do açúcar, a Coroa se viu obrigada a


intervir na Colônia e também para compensar sua política descentralizadora adotada no
regime das Capitanias. Foi instalado o Governo Geral, que estimulou a vinda de agentes
metropolitanos e de políticas de controle das transformações espaciais.

É importante salientar que todos os períodos econômicos do Brasil desencadea-


ram e impulsionaram a formação das cidades. Neste sentido, Holanda (1963) afirma que
a partir do séc. XVII houve um aumento do fluxo migratório para o Brasil para além das
linhas litorâneas.

Com a descoberta do ouro nas Minas Gerais, foi preciso criar percursos para o
escoamento do ouro, que o transportasse para o litoral brasileiro e posteriormente para
Portugal.

Lopes (2016) nos diz que para isso foi utilizada a chamada Estrada Velha, que co-
nectava São Paulo ao Rio de Janeiro. Devido à extensão deste caminho e por questões

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estratégicas, foi desenvolvido um outro percurso, descendo até Paraty. Assim, explora-
-se Paraty como exemplo das vilas neste período.

ESTUDO DE CASO I: PARATY – RJ

A. Breve Análise do Contexto Histórico e econômico de Paraty

Fundação: 16604
Localização: extremo oeste do estado do Rio de Janeiro, próximo à divisa com o
estado de São Paulo, em uma planície sedimentar no trecho da Serra do Mar.
Segundo Lima (2010), Paraty nasceu a partir dos engenhos de açúcar. Priester
(2015) atribui a Paraty três períodos econômicos importantes: o açúcar, o ouro e o café,
que, em virtude de sua localização privilegiada, permitia ligações marítimas e térreas,
dando escoamento a esses produtos.

A fase econômica do açúcar desenvolveu-se perto das vilas, com os engenhos de


aguardente. Todavia, de acordo com Cury (2008), os períodos mais importantes para a
economia de Paraty foram o final do séc. XVII e início do séc. XVIII – com a descoberta
do ouro em Minas Gerais – e na sequência, o início do séc. XIX, com a comercialização do
café que era transportado por tropas de mulas. Essa época foi o auge de Paraty, mas por
conta da construção da linha férrea ligando São Paulo ao Rio de Janeiro, e a aprovação da
lei “Eusébio de Queirós” – proibindo definitivamente o tráfico de escravos – a cidade se
esvaziou, ficando isolada da economia do país e voltando a se reerguer quase cem anos
depois com o turismo.

B. Formação do Desenho Urbano

O traçado urbano de Paraty se desenvolveu seguindo os padrões de colonização


portuguesa e, embora essa colonização seja marcada pelo “desleixo” português, como
tratado por Holanda (1963), na verdade se tratava de uma artimanha para dificultar a en-
trada de tropas invasoras, como explicado por Cury (2008). Tal característica atribui às
ruas uma leve sinuosidade que, atrelado à falta de esquinas, tende confundir o senso de
localização dos caminhantes dificultando, portanto, uma apreensão do local pelas tropas
invasoras, como mostra a figura 5.

4
REIS FILHO, N. Evolução Urbana do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1968.

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Figura 5 - Sinuosidade das ruas do Centro Histórico de Paraty


Fonte: Acervo pessoal da autora.

O traçado desordenado de Paraty é marcado também pela situação topográfica


da cidade que favorecia, intencionalmente, o escoamento das águas pluviais proporcio-
nando assim a autolimpeza das ruas. (ANDRADE, 1995, apud PRIESTER, 2015). Esta au-
tolimpeza é também explicada por Caponero et al. (2019), que argumenta que o centro
histórico de Paraty se manteve estático desde o séc. XVIII e que as ruas da antiga vila
eram côncavas e de pedras, denominadas “pé de moleque”, para permitir a entrada da
água do mar na maré alta, fazendo assim a limpeza da cidade. Desta maneira, a questão
sanitária era resolvida com os conhecimentos prévios dos construtores da cidade. Por
esta razão, Cury (2008) afirma que Paraty é uma das cidades classificadas como plano
informal devido a suas raízes urbanísticas estarem de encontro com os moldes de orga-
nização das cidades da Idade Média.

A partir dessa formação das ruas, pode-se notar os planos verticais, ou seja, as
fachadas, que são desenhadas conforme os padrões coloniais e se apresentam com no
máximo dois pavimentos e skyline5 predominantemente contínua, como identificado na
figura 5. O plano de teto da cidade é de certa forma padronizado, uma vez que há pouca
interferência na vista do céu – vegetação esparsa em pontos específicos e edificações
com gabarito até 2 pavimentos no máximo.

Nota-se, diante do exposto, que, apesar da cidade não possuir ainda uma estrutu-
ração formal e planejada das estratégias de desenvolvimento urbano, havia nitidamente
a intenção dos portugueses em tratar as condições de esgotamento sanitário de Paraty,
como atesta Costa, et al (2003): “Paraty foi concebida como plataforma de engrenagem
entre os caminhos do mar e os caminhos da terra. Era importante que a água não fosse

5
“Os skyline ou as linhas do horizonte são como assinaturas urbanas, são a abreviatura da identidade de cada localida-
de e a possibilidade para o crescimento urbano.” (KOSTOF, 1991, apud GREGOLETTO, REIS, p. 1)

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barrada e entrasse pela cidade adentro” (COSTA et al., 2003, apud PRIESTER, 2015, p.
22). Por esta razão, as casas também ficavam dispostas e elevadas acima do nível da rua
para evitar alagamentos.

Sobre o calçamento, supõe-se que foram utilizadas as pedras no intuito de dar


suporte às mulas durante o transporte de ouro e café, evitando que essas atolassem nos
dias chuvosos. O calçamento também garantia a pureza do ar, evitando que a poeira fos-
se levantada nos dias ensolarados.

A morfologia do sítio histórico de Paraty apresenta: solo alagadiço, malha urbana


crescendo tanto no sentido ao interior da cidade como avançando para o mar. Com isso,
Cury (2008) salienta as diferentes etapas de formação da cidade ao longo do tempo.

Figura 6 - Planta esquemática do desenvolvimento de Para-


ty através das linhas da costa e localização da Igreja Nossa
Senhora das Dores
Fonte: Priester (2015, p. 41)

A figura 6 mostra a localização da Igreja Nossa Senhora da Dores na costa da ci-


dade de Paraty. Diferentemente dos espanhóis, os portugueses seguiam a costa para de-
senvolver o traçado urbano e, no caso específico de Paraty, a partir de uma igreja, que
sempre teve um efeito catalisador da atenção das pessoas. Ressalta-se, assim, que em-

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bora não houvesse muitas alternativas para dimensionamento e ordenamento dos tra-
çados e edificações, alternativas foram adotadas para surtir o mesmo efeito.

C. Pós formação do desenho urbano inicial

Assume-se, a partir da análise do estudo de caso da cidade de Paraty, que o ur-


banismo no Brasil tem em suas mais tenras manifestações (período de 1500 até 1700),
objetivos e estratégias de ordenamento e planejamento territorial bem claras baseada
nos saberes prévios de seus construtores.
Atualmente, Paraty possui o título de Patrimônio Mundial da Unesco na categoria
de sítio misto, ou seja, cultural e natural, sendo um destino turístico bastante significati-
vo no contexto nacional e isso se deve muito ao seu Desenho Urbano “desleixado”.

ORDENAMENTO TERRITORIAL NO PERÍODO DE 1800

Segundo Sales (2010), o urbanismo no Brasil se deu a partir da chegada da Família


Real por volta de 1808. De acordo com o autor, os valores modernos europeus vieram
junto com a família portuguesa. Tais conhecimentos se chocaram diretamente com os
valores brasileiros de então, e Santos (1993) se refere a esse período mais como geração
de cidades do que urbanização de fato. Mediante o crescimento econômico e a constan-
te expansão do país, segundo Medeiros (2006), a produção de novos espaços gerou uma
ansiedade moderna e Aracaju será explorada como exemplo deste momento:

ESTUDO DE CASO II: ARACAJU – SE

A. Breve Análise do Contexto Histórico e econômico de Aracaju

Fundação: 18556.
Localização: Costa nordestina do Brasil.

Segundo França (2014), uma vez que a antiga capital, São Cristóvão, não compor-
tava mais o cenário econômico e político do país, era preciso transferir a capital. Santos
(2016) afirma que forças políticas pressionaram a transferência da capital para uma ci-
dade com melhores condições territoriais, assim o escoamento do açúcar – economia do
período – seria facilitado. Segundo o mesmo autor, apesar de todos os fatores positivos
que impulsionaram a transferência da capital, foi necessária uma intervenção em Araca-
ju, uma vez que, antes de 1855, esta era apenas uma vila colonial com vielas tortuosas,
pouca infraestrutura urbana e um pequeno comércio local. A partir da transferência de
capital, Aracaju sofreu várias transformações e começou a formação de um desenho ur-
6
SILVA, C. H. Espaços Públicos Políticos e Urbanidade: o caso do centro da cidade de Aracaju. Tese de Doutorado.
Salvador, 2009.

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HISTÓRICO – INVESTIGATIVO SOBRE O DNA.
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bano definitivo.

B. Formação do Desenho Urbano

Nogueira (2004) salienta que um fator que auxiliou a implantação do novo assen-
tamento foi sua estrutura geográfica, situada em uma planície, com áreas ventiladas, fér-
teis e salubres. Porém, esta situação geográfica atrapalhou na questão do assentamento,
uma vez que as terras eram alagadiças, pantanosas, de areais e mangues. Seus níveis to-
pográficos eram muito baixos, o que acarretou essas condições físicas. Para vencer essas
questões, segundo Santos (2016), foram precisos inúmeros aterros para tornar a planí-
cie urbanisticamente construtiva.

De acordo com Medeiros (2006), a cidade se desenvolveu mediante a um dese-


nho baseado em um “tabuleiro de xadrez”, seguindo então um alinhamento dos terrenos
e quadras, que possuíam a mesma forma e medida. Esta forma, oposta ao velho modo de
projetar da cidade colonial, deixava claro a tentativa de organizar uma cidade através do
traçado urbano. (NOGUEIRA, 2004)

O suposto plano urbanístico, desenvolvido pelo poder público, gerou segregação


social, uma vez que a população deveria seguir os padrões urbanísticos impostos pelo
plano. Porém, segundo Santos (2016), a população mais pobre não tinha condições de
seguir estes parâmetros impostos, então, juntamente com o crescimento da cidade or-
denada, desenvolveu-se na periferia um agrupamento desordenado, como ilustra a figu-
ra 7.

Todavia, não podemos classificar a cidade de Aracaju como um planejamento ur-


bano, pois, segundo Medeiros (2009), o “planejamento” não pode ser julgado apenas por
suas características geométricas, mas também ser caracterizado por outros aspectos
temporais, como localização de edifícios e condições de zoneamento. E para Aracaju, o
seu “plano urbanístico” não passou apenas de uma simples demarcação de terras e for-
mas, de alinhamentos de ruas, uma vez que foram implantados serviços considerados
básicos, como água encanada, esgoto e energia elétrica apenas no início do séc. XX. Tam-
bém neste mesmo período começou o zoneamento da cidade, dividindo-a em bairros de
operários, elites, comércios e indústrias

Em relação às superfícies, o plano vertical da cidade de Aracaju segue o padrão


tradicional das cidades brasileiras a partir da setorização das edificações na malha urba-
na: edificações mais altas no centro da cidade e edificações mais baixas nas periferias.
Embora a cidade tenha sido dividida em zoneamentos, seu plano urbanístico não passou
apenas de uma demarcação de terras. Entretanto, esse padrão apenas ocorreu na parte
planejada da cidade, visto que as áreas periféricas da mesma cresceram de forma irregu-
lar, não seguindo os preceitos do “plano urbanístico”.

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HISTÓRICO – INVESTIGATIVO SOBRE O DNA.
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Figura 7 - Planta de Aracaju


Fonte: Nogueira (2004, p. 163)

O desenho urbano de Aracaju se deu através de sua forma, priorizando o embele-


zamento. Não houve preocupação com seu crescimento ininterrupto, tanto que a partir
de 1930, segundo Souza (2009), ocorreu um crescimento espontâneo da cidade, que não
seguia mais o curso do rio, mas sim as novas rodovias ali construídas. Diluiu-se, assim,
seu desenho original.

C. Pós formação do desenho urbano inicial

Atualmente, Aracaju é considerada uma cidade turística devido à suas peculiari-


dades territoriais e sua localização, privilegiada, na costa do litoral nordestino. Por mais
que a cidade tivesse um “plano urbanístico”, de acordo com Silva (2009), após a década de
1980 seu centro sofreu fortes processos de dispersão tanto espaciais quanto funcionais,
distanciando atividades importantes, como administrativas, políticas e comerciais, para
as periferias de Aracaju, não modificando a área urbana central, mas sim esvaziando-a.

ORDENAMENTO TERRITORIAL NO PERÍODO DE 1900

De acordo com Maricato (2000), no final do séc. XIX e no início do séc. XX come-
çaram várias reformas nas cidades brasileiras, pensando em condições de saneamento

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básico e embelezamento. Essas reformas não vieram apenas para se opor à feiura, mas
também para satisfazer uma elite, lançando a base de uma fase modernista no Brasil.

Segundo Mathieu e Mello (2008), a criação de estradas ferroviárias e rodoviárias


foram também fatores que colocaram o plano de interiorização em êxito. As cidades do
Centro-Oeste eram planejadas com um desenvolvimento político da época, conserva-
dor, porém inovador.

Medeiros (2006) salienta que o crescimento constante dos assentamentos a par-


tir do séc. XX fundou várias cidades, cada uma com características próprias, mas sempre
advindas da influência da industrialização. Com isso, podemos tomar como base a cidade
de Goiânia, um dos exemplos deste período:

ESTUDO DE CASO III: GOIÂNIA – GO

A. Breve Análise do Contexto Histórico e econômico de Goiânia

Fundação: 1933.

Localização: Centro-Oeste do país, em Goiás.

Segundo Mathieu e Mello (2008), nos anos de 1930 foi iniciado no Brasil a “Mar-
cha para Oeste”, uma “campanha” para incentivar o processo de interiorização do país, e
a criação de Goiânia foi o ponto central deste projeto, para tirá-la da insignificância.

Ferreira (2003) afirma que a antiga capital de Goiás, Vila Boa de Goiás, não pos-
suía localização nem terreno ideal, além da topografia desfavorável e a economia decli-
nando. Visto isso, a partir de discussões políticas notou-se que o ideal era transferir a
capital para um local que se opunha a tudo isso e trouxesse um símbolo de desenvolvi-
mento, infraestrutura, centro econômico, político e geográfico.

B. Formação do Desenho Urbano

Diferentemente de Aracaju, Goiânia, que se estabeleceu como capital em 1937,


não foi apenas projetada em sua forma, mas também em sua função.
Segundo Medeiros (2006), a mais nova capital de Goiás desenvolveu-se em um
formato de grelhas puras, um desenho de “pé-de-pato”, onde os edifícios administrativos
ficavam em uma Praça Cívica, do qual saiam 3 eixos de circulação, como observa-se na
figura 8 – mesmo modelo utilizado no desenho urbano de Versailles.

O projeto de Atílio Côrrea Lima foi inspirado nas 4 funções da cidade (habitar,
trabalhar, recriar e circular), os postulados do modernismo definidos por Le Corbusier na
Carta de Atenas7. (FERREIRA, 2003). Porém, o projeto sofreu várias alterações.
7
Segundo Galbieri (2008), a Carta de Atenas faz ponderações sobre as habitações, o trabalho, o lazer, a circulação e o
patrimônio histórico, considerando também a divisão de área da cidade, como áreas residenciais, industriais, traba-
lhistas e de lazer, propondo uma setorização e planejamento do uso e ocupação do solo.

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Figura 8 - Plano de Atílio para a cidade de Goiânia


Fonte: FERREIRA (2003)

Segundo Manso (2001, apud Costa et al, 2012), seguindo o novo modelo urbanís-
tico, a cidade foi dividida em setores de atividade (comercial, residencial, institucional,
industrial) e o plano urbanístico dividido em especificamente 5 partes: o Centro Cívico
(abrigando os edifícios públicos); o Centro Comercial (com vias e quadras de larguras
ideais para suportar o alto fluxo); áreas Urbanas e Suburbanas; Zonas Residencias (des-
tacando a segregação em subáreas mais abastadas e menos favorecidas – visto que as
classes de menor aquisição ficavam próximas às zonas industriais); e, por fim, a Zona In-
dustrial, próxima à construção de estradas de ferro. No plano urbanístico de Goiânia as
áreas verdes são bem demarcadas. A Praça Cívica, como exemplo, foi projetada acomo-
dando jardins, valorizando a circulação de carros e criando corredores de árvores que,
unidas, criam uma grande massa caracterizando, assim, o plano de teto (superfícies que
encobrem o céu) da cidade.

A partir da divisão do plano urbanístico, pode-se notar que atualmente os planos


verticais, ou seja, as fachadas (pensando especificamente nos gabaritos predominantes
– alturas das edificações – da cidade) são marcados por uma variação de edifícios com
gabarito alto (considerados neste estudo acima de 10 pavimentos) e baixo (considerado
neste de até 4 pavimentos) de maneira esparsa pelo território. Ainda sobre os planos
verticais, nota-se que, predominantemente nos grandes eixos e áreas centrais, a presen-
ça de edificações de gabarito alto é comum, enquanto os gabaritos baixos estão localiza-
dos nas periferias da cidade.

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Segundo Ferreira (2003), em 1934, o plano urbanístico de Goiânia foi posterior-


mente assumido por Jerônimo Coimbra Bueno e Armando Augusto de Godói, e assim,
passou-se a prever seu crescimento criando-se as cidades satélites e readaptando os
bosques e jardins, formando um anel em torno da mesma.

O autor salienta que Godói inspirou-se nas cidades jardins de Howard (1898)
para a concepção da nova capital ao alargar avenidas e expandir espaços verdes e espa-
ços livres. O projeto continha também divisão de setores: Centro, Norte, Sul, Setor Leste
e Setor Oeste.

Alves e Chaves (2007) argumentam que a segregação social da cidade apenas au-
mentou com o passar dos anos. As aglomerações urbanas acabaram tomando conta do
território e, a partir disso, vários loteamentos irregulares no entorno da cidade, contra-
pondo-se ao desenho original e acentuando cada vez mais a desigualdade social.

C. Pós formação do desenho urbano

Apesar de Goiânia ser uma cidade planejada, de acordo com Santos e Oliveira,
2013, a mesma convive com diversos problemas mediante ao seu crescimento. A cidade
convive com espaços periféricos que não seguem o mesmo desenho do centro, além dis-
so, esses novos espaços carecem de infraestrutura básica, de asfalto, saúde, educação,
transporte público, entre outros diversos serviços que são necessários para o desenvol-
vimento da vida humana da cidade.

ESTUDO DE CASO IV: CURITIBA – PR

A. Breve Análise do Contexto Histórico e econômico de Curitiba

Fundação: 1940

Localização: Região Sul do Brasil

Em meados de 1650, uma expedição foi formada pela Corte Portuguesa na região
de Curitiba para encontrar ouro e metais. De acordo com Peterlini (2012), a futura cida-
de se consolidava com alguns habitantes e um pequeno comércio local.

Em 1721, foram instalados os primeiros Órgãos da Coroa Portuguesa e as primei-


ras regras urbanas, entretanto, pouco se sabe sobre vida urbana colonial de Curitiba.
Pode-se notar pouquíssimas transformações no desenho urbano de Curitiba a partir de
1889, com a Proclamação da República, mas as mudanças significativas, e que transfor-
mariam a cidade de Curitiba no que é atualmente, começaram na metade do século XIX.

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B. Formação do Desenho Urbano

Apesar de Curitiba ter sido construída no período colonial e, por essa razão, ter
nascido em torno de uma igreja matriz e apresentar uma organização a partir de uma
malha urbana orgânica – seguindo os traçados topográficos, característicos do domínio
português (CAROLLO, 2002) – seu planejamento e ordenamento urbano foi concebido
em torno de 1940, pelas mãos do arquiteto francês Alfred Agache.

Carollo (2002) afirma que os primeiros avanços urbanos de Curitiba começaram


em torno do final do séc. XIX e início do séc. XX, utilizando de técnicas para solucionar
problemas comuns da época, como saneamento, circulação de pessoas e veículos e ilu-
minação. Segundo Del Rei e Siembieda (2015), a remodelagem da cidade se deu por con-
ta da explosão populacional, sendo necessário reestabelecer e implantar novos lugares,
equipamentos urbanos e serviços básicos para a população, como transporte público e
saneamento.

Carmo (2012) salienta que Curitiba, assim como muitas outras cidades brasilei-
ras, possuía uma segregação social, deixando algumas zonas sem recursos básicos. Para
melhor desenvolvimento e crescimento, a cidade demandava um plano urbanístico que
ordenasse as ruas e caminhos que, em sua maioria, apresentavam descontinuidade além
das esquinas tortuosas.

Segundo Carmo (2012), diferente de outras cidades, o plano urbanístico de Curi-


tiba não ficou apenas no papel. Devido ao seu constante crescimento populacional, foi
primordial para a cidade a aplicação do plano e a remodelagem da mesma, incluindo
construções de praças e avenidas, além do melhoramento em relação ao escoamento de
águas pluviais.

Agache, segundo Carmo (2012), elaborou um coerente traçado urbano para que
não houvesse problemas de congestionamentos e desordem das construções, além de
projetar praças e lugares onde ficariam os serviços e lazer. O sistema viário previa ave-
nidas desenhadas de modo radial, apontando sempre para o centro da cidade, sempre
arborizado, definindo seu plano de teto.

De Acordo com Del Rei e Siembieda (2015), o Plano Diretor desenvolveu “cin-
co eixos estruturais” de transporte que se irradiava do centro da cidade, direcionou a
população para as “periferias”, canalizando o crescimento populacional. As áreas verdes
eram bem planejadas, conforme o projeto urbanístico e sua execução, uma vez que cada
49m² de espaços verdes correspondia a um habitante na cidade. Segundo os mesmos
autores, o Plano Diretor foi desenvolvido juntamente ao projeto urbanístico da cidade,
porém acabou se diferenciando em alguns pontos do que era previsto no projeto de Aga-
che, no que concerne ao desenvolvimento do desenho urbano. O Plano Diretor visava o
crescimento populacional de forma radial na cidade, saindo do centro da cidade – e não

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entrando, conforme projeto – e indo para suas extremidades. O Plano Diretor visava o
gerenciamento e acompanhamento do progresso da cidade, uma vez que esta teve um
crescimento populacional muito rápido em um curto período.

O plano urbanístico da cidade se estruturou a partir de 3 pilares importantes:


transporte, sistema viário e uso do solo. Analisando-se o Skyline da cidade de Curitiba,
nota-se uma grande verticalização em áreas centrais e especificas da cidade, enquanto
ao redor predomina-se o gabarito baixo (abaixo 4 pavimentos). Desta forma percebe-se
que o plano de teto da cidade (superfícies que cobrem o céu) apresenta acentuada dispa-
ridade além de haver grandes áreas livres (onde localizam-se os parques da cidade que
não possuem uma massa vegetativa muito densa).

Em torno de 1965, o plano de Agache para Curitiba acabou ficando desatualizado


em que a empresa SERETE, com a participação de Jorge Wilheim, Arquiteto e Urbanista,
desenvolveu um novo processo de desenvolvimento da cidade, saindo da sua base de
sistema radial, no centro da cidade, e fazendo-a crescer de forma linear, em toda sua pe-
riferia. (PEICHÓ, et al, 2016)

Portanto, nota-se aqui que a cidade de Curitiba teve um ótimo desenvolvimento,


sem segregação social e seguindo os preceitos da sustentabilidade. Entretanto, com o
crescimento da população, viu-se que não era mais possível seguir os planos de Agache
para Curitiba, sendo então necessária a intervenção do desenho do sistema viário para
que a cidade pudesse acompanhar seu crescimento.

C. Pós formação do desenho urbano inicial

Atualmente, Curitiba acumula prêmios e distinções por apresentar um potencial


de crescimento homogêneo e sem segregação. A cidade, em 2020, ganhou o primeiro
lugar no ranking de urbanismo brasileiro no Connected Smart Cities, apresentando maior
homogeneidade na distribuição de saneamento básico e investindo constantemente na
educação, moradia e transporte para a população. (OLIVEIRA, 2019)

É importante salientar também que, segundo Rechia (2005), a cidade é um modelo


positivo sobre o planejamento urbano territorial, visto que contempla questões sociais,
econômicas, ecológicas, tenho uma relação entre cidade, natureza e lazer. Tudo isso se
deu por conta da gestão política-urbana de Jaime Lerner, que enfatizou essas questões
acima citadas, trazendo para Curitiba um sinônimo de cidade ideal, ecologicamente cor-
reta e de constante integração.

ESTUDO DE CASO IV: BRASÍLIA – DF

A. Breve Análise do Contexto Histórico e econômico de Brasília

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HISTÓRICO – INVESTIGATIVO SOBRE O DNA.
MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 92-123, 2021.

Fundação: 1960.

Localização: Centro-Oeste do país.

Como Goiânia, Brasília também surgiu meio a uma antiga ideia de interiorização
do país, trazendo a capital do litoral brasileiro para o Planalto Central. Brasília é também
uma cidade referência por sediar o urbanismo modernista aplicado fidedignamente em
solo brasileiro.

De acordo com Mata (2014), a transferência da sede do Governo para a região


central do país seria vantajosa, uma vez que potencializaria as riquezas naturais, centra-
lizaria as questões políticas e aumentaria a densidade demográfica, dando maior desen-
volvimento econômico, cultural e territorial ao centro do país.

Inaugurada em 1960, Brasília foi, segundo Mata (2014), uma etapa do processo
histórico do Planalto Central. É importante ressaltar que na região atual onde Brasília
está localizada já havia uma aglomeração desordenada e insipiente, o conjunto do solo
foi a junção de núcleos urbanos chamados Planaltina e Brasilândia (que foram utilizadas
como cidades satélites) com várias fazendas que já existiam ao seu redor, criando assim
um “mosaico morfológico” (KOHLSDORF, et al, 1985, apud DEL RIO, SIEMBIEDA, 2015,
p. 39).

Brasília trouxe planejamento, acessibilidade e qualidade de vida para a região,


além de uma grande projeção internacional do país. Porém, se analisarmos Brasília em
seu contexto pós-moderno, pode-se notar duas cidades diferentes, a cidade do plano-pi-
loto e as cidades satélites, excluídas do planejamento.

B. Formação do Desenho Urbano

Para o planejamento da cidade de Brasília foi aberto um concurso público e dentre


os 26 projetos apresentados o que mais se destacou foi o de Lúcio Costa. Segundo Silva
(1972), o plano consistia no desenvolvimento da cidade a partir de um traçado simples,
formando um sinal de Cruz, ou X, símbolo que representa a fixação do homem a terra.
Segundo o autor, cria-se então dois eixos perpendiculares: o eixo monumental, sentido
Leste-Oeste, onde localiza-se a área institucional; e o eixo rodoviária, sentido Norte-Sul,
formado pela Asa Sul e Asa Norte, compostas pelas superquadras residenciais, áreas co-
merciais e de lazer, com escolas, mercados, igrejas, entre outros equipamentos urbanos.
De acordo com Brito (2010), o planejamento da cidade foi um ideário urbanísti-
co, com uso predominantemente de sistemas para facilitar a circulação de veículos, por-
tanto, Lúcio Costa utilizou em seu projeto técnicas rodoviárias facilitando passagem dos
carros e permitindo tráfego contínuo. O eixo longitudinal (rodoviário) permite o fluxo
mais intenso de carros; e vias laterais, paralelas as centrais, para o tráfego local; junta-
mente a essas, outras vias foram traçadas perpendicularmente para facilitar o fluxo local
de carros. (SILVA, 1972)

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BIANCHI, Rafaela. ESTUDO DE CASO: PERCURSO
HISTÓRICO – INVESTIGATIVO SOBRE O DNA.
MIMESIS, Bauru, v. 42, n. 1, p. 92-123, 2021.

No Eixo Rodoviário encontram-se as superquadras, conceito utilizado por Lucio


Costa para facilitar a distribuição de blocos residenciais. De acordo com Silva (1972), as
quadras possuíam comprimento e largura igual e uma faixa arborizada em seu entorno e,
além disso, o gabarito era limitado, tendo no máximo 6 pavimentos sob pilotis. Nota-se,
assim, que o plano vertical (fachada) apresenta um padrão e no entorno das superqua-
dras estão posicionadas as coberturas vegetais, que se comportam como plano de teto e
permitem a permeabilidade do solo.

No Eixo Monumental está situado o setor administrativo Federal e local, cultural,


esportivo, industrial e comercial, e onde também está localizada a Praça dos Três Po-
deres, composta pelo Congresso Nacional (poder executivo), Supremo Tribunal Federal
(poder judiciário) e o Palácio do Planalto (poder legislativo). (SILVA, 1972). Aqui pode-se
notar também o plano de chão que demonstra o equilíbrio entre os poderes – formando
um desenho de triângulo na malha urbana.

Segundo Kubitschek (2000), a Catedral localiza-se na Esplanada, que possibilita


maior visibilidade do edifício.

A esplanada prossegue até o cruzamento dos dois eixos urbanísticos, Eixo Monu-
mental e Eixo Rodoviário, onde localiza-se a plataforma rodoviária, funcionando como
coração da cidade.

Figura 9: Plano Piloto de Brasília.


Fonte: NOGUEIRA (2004, p. 141)

Na parte inferior a plataforma segue uma via de mão única, seguindo de forma
espraiada até se nivelar com a rodovia, que fornece acesso a setores distintos, como co-

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HISTÓRICO – INVESTIGATIVO SOBRE O DNA.
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merciais, bancários, escritórios, entre outros. (SILVA, 1972)

Posto isso, constata-se que desde o início Brasília é organizada de maneira lógica,
objetiva e clara. Porém, de acordo com Mata (2014), apesar de Brasília ter sido planeja-
da, seu desenvolvimento também apresentou problemas, como, por exemplo, a não pre-
visão de que seus primeiros moradores seriam os construtores que ajudaram a levantar
seu Plano Piloto: os candangos.

A cidade era um “projeto para todos”. Porém, como todo planejamento, a segre-
gação de classes foi inevitável. As cidades satélites testemunham isso, através dos seus
grandes aglomerados ao redor de Brasília. Segundo Fonseca e Neto (2001, apud Mata,
2014), as cidades satélites nasceram de um projeto urbanístico, mas não de um planeja-
mento, ou seja, estavam previstas, porém não haviam sido projetadas no Plano Piloto.

De modo geral, o Plano Piloto de Brasília previa uma adaptação de territórios já


existentes no local e uma setorização da cidade. Entretanto, o Plano foi se adaptando
até atingir sua forma atual. Apesar das superquadras preverem, além de moradias, tam-
bém espaços comerciais, lazer e esportivos, a divisão dos dois eixos acaba trazendo uma
segregação à cidade e seus moradores acabam dependendo quase que exclusivamente
de transportes públicos ou particulares para se locomoverem ao decorrer do plano da
cidade.

Diante do exposto, pode-se notar que Brasília, como salientado por Ghel (2015), é
para ser vista do alto e de fora, ou seja, o espaço urbano é grande demais, nada convida-
tivo e está concentrado exclusivamente na maior escala.

C. Pós formação do desenho urbano inicial

De acordo com Menezes (2008), a cidade de Brasília sofreu várias críticas, como
a “cidade sem rua” ou rotulando-a como “feira de automóveis”. Entretanto, com o passar
dos anos, a cidade foi se desenvolvendo e sua vegetação arbórea preencheu todo o espa-
ço urbano, sombreando seus caminhos e fechando os horizontes que antigamente eram
taxados como áreas vazias, possibilitando, assim, o usufruto dos espaços livres. A cidade
é denominada como “feira de automóveis” devido à sua falta de delimitação dos espa-
ços destinados aos pedestres, prevalecendo, desta forma, as críticas, definindo a Brasília
como uma cidade para carros.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

No decorrer da pesquisa notou-se que o ordenamento territorial brasileiro na


época colonial priorizou as questões de segurança e defesa da costa brasileira, projetan-
do de forma irregular os traçados das vias e quadras, como ocorreu em Paraty.

Com o passar dos tempos, observou-se, através da análise da linha cronológica,

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uma readequação não apenas voltada às lógicas territoriais, mas preocupações no âmbi-
to social, cultural, político e econômico, que foram fatores incorporados ao desenho ur-
bano e ao planejamento territorial das cidades. O fator econômico apresentou-se como
um dos pontos mais relevantes neste contexto de atração para criação das cidades e de
sua organização.

Seja no traçado irregular de Paraty, ordenado em Aracaju ou radial em Goiânia,


a complexidade das questões que guiam e definem a forma delas, tais quais as conhece-
mos, contemplam as especificidades de cada cidade. Aracaju, Goiânia e Brasília apresen-
tam a setorização como características importantes e isso revela que tais cidades foram
construídas, tendo como pressuposto, o urbanismo modernista, que se apoia na Carta de
Atenas e que inspirou o ordenamento e planejamento territorial das duas.

Neste sentido, de acordo com Lang (2005, apud Vicente Del Rio e William Siem-
bieda, 2015), o desenho urbano das cidades brasileiras se afastava de seu perímetro ori-
ginal, tendo sempre que recorrer a espaços criados posteriormente a um planejamento
que era preciso ser “encaixado” nesse contexto. Como exemplo, podemos citar as cida-
des satélites de Brasília.

Observou-se, também através das análises dos Estudos de Caso, que apesar dos
diversos modelos e objetivos que lideraram as tomadas de decisões no campo do orde-
namento territorial no Brasil, as cidades brasileiras aqui analisadas foram se desenvol-
vendo de acordo com os saberes de cada época através de uma relação estreita com a
conformação do local. Observa-se, assim, que o campo do urbanismo, enquanto campo
do saber e prática, é vasto, complexo e que, em seu processo de atualização, demanda
revisão constante.

Outro fator observado é que as decisões sobre o território são também resultado
de expectativas que motivam e nutrem, almejando uma realidade inalcançada e comple-
xa. Isso acontece porque a cidade é um organismo vivo que se atualiza a todo momento
e, por essa razão, as mudanças no desenho da cidade sempre irão ocorrer e novos planos
e diretrizes deverão ser criados para organizar a cidade novamente diante das novas de-
mandas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatou-se, portanto, que por se tratar de uma ciência humana por natureza,
o Urbanismo – aqui entendido como todos os estudos que contemplam cidade em sua
totalidade - tal qual seu criador, o homem, tem em sua raiz mais profunda contradições,
complexidades e dinâmicas que lhe atribuem um caráter dinâmico, uma natureza vibran-
te, que se atualiza constantemente, impossibilitando, portanto, o cerceamento e defini-
ção pré-estabelecida, de qualquer forma ou natureza.

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HISTÓRICO – INVESTIGATIVO SOBRE O DNA.
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Nota-se também que fatores como questões socioeconômicas, físicas e políticas


interferem no processo de construção do cenário urbano que se dá ao longo de grandes
períodos. Desta forma, para entender a cidade, enquanto criação direta do homem, é
preciso entender mais sobre o homem, sendo esta a segunda questão mais importante
no processo de construção de um cenário urbano, ficando atrás apenas das característi-
cas físico territoriais na qual a cidade estará localizada.

Essa análise se mostrou importante no sentido de gerar reflexões, estudos e dis-


cussões acerca do espaço urbano no sentido de avançar nas proposições e conhecimen-
tos para maior entendimento conceitual e metodológico sobre a ciência do urbanismo.

O estudo do Urbanismo se mostrou volátil, rico e dinâmico, tal qual a cidade e seu
criador, o homem, em especial o arquiteto e urbanista que atua diretamente nesta área
trabalhando com equipes multidisciplinares. Notou-se, primordialmente, que a constru-
ção da realidade humana demanda e aponta para a necessidade de atualização contínua,
tanto deste campo do saber quanto do profissional que atual nesta área.

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CAMPANHA #1KISS1DONATION: ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO
EMPRESARIAL NAS REDES SOCIAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA
#1KISS1DONATION CAMPAIGN:CORPORATE SOCIAL MEDIA
COMMUNICATION STRATEGIES IN TIMES OF PANDEMIC

Ednan Gomes de Souza1;Ana Paula Rodrigues2


1
Egresso do curso de Jornalismo da Universidade do Sagrado Coração (2017), atualmente Unisagrado,
especialista em Comunicação Empresarial pelo Centro Universitário Dom Alberto (2021) e estudante da
especialização em Marketing Estratégico Digital (2021).
2
Doutora em Educação (2012); Mestre em Meio Ambiente e Sustentabilidade (2005); Especialista em Marketing
(2005), Especialista em Tutoria em EAD (2016), Especialista em Docência do Ensino Superior (2016); graduada
em Educação Física (2002) e Graduada em Administração (2016).  Diretora de Educação à Distância do Centro
Universitário Dom Alberto, ligado à Faculdade Dom Alberto Atua principalmente nas áreas de Educação à
Distância, Marketing e Gestão Empreendedora. Pertence ao banco de avaliadores do INEP desde 2018.

Data de envio: 22/02/2021
Data de aceite: 14/04/2021

RESUMO

Busca-se, no desenvolvimento deste trabalho, apresentar um modelo de pesquisa


que seja capaz de demonstrar as estratégias de comunicação que vêm sendo utilizadas
nas redes sociais, em especial ao que se refere a Doritos Rainbow, por meio do Projeto
#1KISS1DONATION. Sobre isso, não apenas aborda-se as estratégias de marketing, como
também o que conduziu a Doritos a retomar essa ideia e o seu significado para o público
LGBTQIAP+, em especial, quando o preconceito, por vezes, se sobrepõe às necessidades
das pessoas. Aspecto que faz com que o projeto apresentado pela Doritos Rainbow seja
tão significativo e que vai conduzir o trabalho à problematização e também à verifica-
ção se a empresa consegue fidelizar ou se acaba por afastar os clientes em potencial,
considerando as dificuldades apresentadas na sociedade. Para tanto, foram analisados, a
partir de uma pesquisa bibliográfica, os aspectos que demonstram a importância da pro-
paganda empresarial e o quanto tal conceito pode ser benéfico para as empresas, que,
por sua vez, trabalham interna e externamente para a construção de suas imagens e para
o desenvolvimento dos seus valores e dos valores sociais.

Palavras-chave: Estratégia de Comunicação. Marketing. LGBTQIAP+. Doritos Rainbow.


Valores Sociais.

ABSTRACT

This paper aims to present a research model that shows the communication stra-
tegies used in social networks, especially concerning the Doritos Rainbow through the

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#1KISS1DONATION Project. So, we will discuss marketing strategies and what led Dori-
tos to use this idea again, and the meaning for the LGBTQIAP+ public, especially with pre-
judice sometimes overriding people’s needs. An aspect that makes the Doritos Rainbow
project very significant and will lead this work to problematize and investigate, consi-
dering the difficulties presented in society, whether companies manage to keep fidelity
or hinder potential customers. Thus, we analyzed aspects that show the importance of
corporate advertising and how such a concept can be beneficial to companies that work
internally and externally to build their image and develop their values and social values.

Keywords: Communication Strategy. Marketing. LGBTQIAP+. Doritos Rainbow. Social


Values.

1. INTRODUÇÃO

Diante de um contexto contemporâneo em que existe a ascensão de debates liga-


dos a temas sociais, políticos e econômicos, principalmente no universo das redes sociais
digitais; marcas dos mais variados ramos de produção têm olhado com mais atenção para
as minorias sociais que formam parte o seu público. E com isso, essas empresas levantam
pautas que levam o público externo à identificação e/ou reflexão sobre muitos temas
que ainda são considerados tabus por grande parte da sociedade. Soma-se a este con-
texto um período conturbado: a pandemia da COVID-19. Nesse momento as empresas
têm tido a necessidade se adaptar e reinventar suas táticas comunicacionais, de maneira
a manter a marca em evidência e mobilizar seu público, sem ferir o isolamento social.
Desta forma, este estudo pretende entender se as estratégias de comunicação empresa-
rial no Instagram, para a campanha #1KISS1DONATION , fortaleceram o valor da marca
Doritos junto ao seu público externo. Além disso, busca-se verificar se as estratégias de
comunicação empresarial da marca consolidaram seu valor de mercado junto ao seu pú-
blico externo, principalmente os ligados a comunidade LGBTQIAP+, se houve enfraque-
cimento do valor de mercado ou se a Doritos não foi afetada, nem de forma positiva ou
negativa ao explicitar apoio a causa da diversidade sexual e de gênero. Portanto, o obje-
tivo geral do presente trabalho é analisar as estratégias de comunicação empresarial da
campanha ##1KISS1DONATION no Instagram. Além disso, esta pesquisa também pre-
tende compreender o conteúdo das publicações da campanha; relacionar as estratégias
de comunicação empresarial da campanha com o público externo, ligado à comunidade
LGBTQIAP+ ou não e avaliar a adaptação da marca na realização de uma campanha du-
rante a pandemia da COVID-19. Diante deste breve panorama, é importante analisar e
compreender quais são as estratégias de comunicação empresarial presente no conteú-
do publicações relacionadas à #1KISS1DONATION , para a construção do valor da marca
junto ao público externo, principalmente, a pautas ligadas as causas sociais.

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nas Redes Sociais em Tempos de Pandemia. MIMESIS,
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Em uma sociedade onde os elementos tecnológicos cada vez mais são utilizados,
é difícil que o desenvolvimento de ações empresariais prosperem sem que tais elemen-
tos sejam utilizados. Saber utilizar esse meio em favor do negócio, é a diferença entre o
sucesso e o fracasso em um ramo ao qual a competição é constante e não beneficia quem
não está pronto a se atualizar no que diz respeito ao que de melhor a tecnologia tem a
oferecer.

Dentro desse panorama apresentado, é necessário que a comunicação empre-


sarial também esteja atuante dentro desse propósito, em especial, pelo fato de que no
processo de diálogo existente entre as empresas e seus diferentes públicos, é necessário
que exista o espaço para que novas ideias sejam apresentadas, e também, desenvolvidas.
Nesse contexto, a utilização de tecnologias é fundamental para que as ações promovidas
funcionem, uma vez que com o adequado desenvolvimento dessas ações, não somente
novos clientes serão atraídos, como também, os atuais clientes serão fidelizados.

A ideia principal contida nessa campanha, lançada para celebrar o mês do Or-
gulho LGBT+, é proporcionar uma ação diferente do que vinha sendo desenvolvida em
uma circunstância normal, sem a existência da pandemia ocasionada pelo Coronavírus
(COVID-19). É importante observar e considerar a importância do trabalho. Sobre isso,
Kunsch (2018, pág. 14)1 mostra, que: “Pensar em comunicação estratégica remete ine-
xoravelmente ao exercício do poder presente nos processos e no exercício das negocia-
ções por parte dos atores envolvidos”. É importante que uma série de fatores sejam con-
siderados, dentre os quais, a própria dinâmica social e o quanto aquela sociedade reage
aos modelos de comunicação existentes. A problematização se apresenta ante ao que foi
observado durante o desenvolvimento da ideia: As estratégias de comunicação empre-
sarial no Instagram para a campanha #1KISS1DONATION , durante a pandemia, fortale-
ceram o valor da marca Doritos Rainbow junto ao seu público externo?

A obtenção da resposta adequada está diretamente relacionada também a uma


análise de hipóteses, que surgem em conjunto com a problematização apresentada. Ao
realizar uma análise profunda sobre o que foi apresentado, de fato, vai ser possível en-
tender de maneira clara e objetiva, se a estratégia de comunicação adotada pela Doritos
Rainbow, foi ou não eficiente ante ao propósito apresentado. O percurso metodológico
é norteado por uma pesquisa bibliográfica.

KUNSCH, M. A comunicação estratégica nas organizações contemporâneas. Lisboa: Média & Jornalismo, 2018.
1

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2. COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL NAS REDES SOCIAIS DIGITAIS

É muito importante que as Redes Sociais sejam utilizadas, uma vez que possuem
um imenso alcance a variados públicos. Sobre isso, Kunsch (2018, pág. 14)2 vai mostrar
que: “O poder que a comunicação, em suas mais variadas vertentes e tipologias, bem
como os meios massivos tradicionais e as mídias sociais da era digital exercem na socie-
dade contemporânea é uma realidade incontestável”. Se a ideia da Doritos Rainbow for
analisada de maneira superficial, é possível que as pessoas baseadas em um senso co-
mum, associem a campanha a valores que atualmente são difundidos na sociedade e que
muitas das que julgam não possuem. Ou seja, é mais comum do que se possa imaginar
que em um primeiro momento, a ação possa ser vista sob um caráter equivocado, que
está distante da verdadeira essência da ideia. Bueno (2005, pág. 12)3 vai apontar ainda
que: “De imediato, é necessário considerar que a comunicação empresarial não flui no
vazio, não se realiza à margem das organizações […]”. É necessário que se entenda que
as estratégias de comunicação empresarial não se desenvolvem à margem da empresa,
em um ato discricionário de alguém, todas as ações estão diretamente vinculadas aos
interesses empresariais.

2.1 Definição de Comunicação Empresarial

Existem muitas definições para uma infinidade de elementos na sociedade, mas


nem sempre essas definições possuem capacidade de sintetizar o que verdadeiramente
pode definir esse ou aquele elemento. Sobre isso, Bueno (2005, pág. 12)4 aponta que: “a
comunicação empresarial brasileira se apresenta, hoje, como estratégica para as organi-
zações”. Porém, é possível ver que tal definição é muito mais vaga do que objetiva, o que
conduz a um outro tipo de análise, onde durante o processo de pesquisa, foi possível ob-
servar que a Comunicação Empresarial, está muito além de apenas um ramo de trabalho,
mas sim, é uma ferramenta que é utilizada para atingir a objetivos preestabelecidos, tais
como: Fidelização de clientes, aumento de credibilidade no mercado, melhorias na ima-
gem que a empresa possui e melhorias financeiras. É importante que se considere ainda,
que assim como é possível observar na ideia desenvolvida por Oliveira, Paula e Marchiori
(2012, pág. 5)5: “A perspectiva relacional da comunicação no âmbito organizacional con-
sidera, igualmente, os diferentes atores com os quais a organização interage, que cons-
tituem o outro da relação, inserido em um contexto específico. Não é importante apenas
entender o que define a Comunicação Empresarial, mas, tudo aquilo que a constitui.
2
KUNSCH, M. A comunicação estratégica nas organizações contemporâneas. Lisboa: Média & Jornalismo, 2018.
3
BUENO, W. A comunicação empresarial estratégica: definindo os contornos de um conceito. Conexão – Comuni-
cação e Cultura, v. 4, n. 7. Caxias do Sul: UCS, 2005.
4
Id. Ibidem.
5
OLIVEIRA, I.; PAULA, M. A.; MARCHIORI, M. Um giro na concepção de estratégias comunicacionais: dimensão
relacional. República Dominicana: X Encontro do Fórum Ibero-americano de Estrategias de Comunicação, 2012.

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2.2 Sobre as Redes Sociais

É possível ver no trabalho de Oliveira e Marchiori (2019, pág. 255)6 que: “Da mes-
ma maneira que a sociedade tem sido influenciada pelos padrões midiáticos, as organi-
zações, que são movidas principalmente por regras de consumo, tem sucumbido a lógica
da mídia […]”. Essa lógica aponta para um processo de visibilidade que não é possível se
obter em um meio tradicional de divulgação de marcas, tais como, panfletos ou outdoors.

Para que essa ideia funcione, é necessário o adequado conhecimento sobre a es-
trutura das redes sociais. De acordo com o trabalho de Imme (2020), no ano de 2019,
foram registrados os seguintes resultados referentes a redes sociais, aos quais, serão
considerados apenas os principais, tendo em vista, o proposto para o trabalho:

1) Facebook: Possui 2.271,000 usuários ativos;

2) Youtube: Possui 1.900,000 usuários ativos;

3) WhatsApp: Possui 1.500,000 usuários ativos;

4) Facebook Messenger: Possui 1.300,000 usuários ativos;

6) Instagram: Possui 1.000,000 usuários ativos;

12) Twitter: Possui 326,000 usuários ativos;

É preciso que os desenvolvedores das estratégias de mercado estejam atentas


a essa questão, em especial, pelo fato de que tal como Oliveira e Marchiori (2019, pág.
256)7 apontam, “[…] ao mesmo tempo em que as redes sociais representam oportunida-
des de visibilidade e, portanto, legitimação das organizações diante de um número cada
vez maior de interlocutores, são vistas como uma ameaça […]”. Isso ocorre pelo fato de
que existem meios de negócios que estão ligados a uma antiga ideia de desenvolvimento
de suas atividades, portanto, qualquer ponto que se apresente fora dessa lógica estabe-
lecida, é vista como uma ameaça, por quem defende um outro modelo de trabalho.

Fica evidente que para o adequado funcionamento da ideia desenvolvida pela Do-
ritos Rainbow, é ideal que seja utilizado o que se apresenta como mais eficiente, que é
o Facebook e o Youtube, imaginar o Instagram como elemento para desenvolvimento
desrial.

OLIVEIRA, I.; MARCHIORI, M. Redes Sociais, Comunicação, Organizações.. São Caetano do Sul: Difusão Edi-
6

tora, 2019.
7
OLIVEIRA, I.; MARCHIORI, M. Redes Sociais, Comunicação, Organizações.. São Caetano do Sul: Difusão
Editora, 2019.

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É importante ainda, que tal como Bueno (2005, pág. 16)8 demonstra: “Para respal-
dar, com competência, um processo de tomada de decisões, é necessário muito mais do
que experiência profissional, intuição ou criatividade”. Ou seja, ainda que a ideia aponte
para o que funcione ou não funcione, devem ser considerados os contextos. Em 2019,
não havia pandemia enquanto que em 2020, sim. O que pode manter ao final do ano os
mesmos números de 2019, ou proporcionar uma reclassificação que torne o Instagram
eficiente, a depender do contexto.

2.2.1 Uma análise por meio do Instagram

Se no subtópico anterior foi apresentada uma ideia geral sobre as Redes Sociais
e sua classificação, é o momento de ser trabalhado de maneira mais específica esse con-
ceito, em especial, no que se refere ao Instagram. Oliveira e Henrique (2016)9, apontam
que: “[…] o Instagram se destaca pelo aumento no número de engajamento dos usuá-
rios, o qual os permite curtir e comentar publicações, enviar posts, seguir e ser seguido
[…]”. Ainda que tenha sido classificada em 6o lugar no Brasil em 2019, o Instagram possui
potencial para crescimento, isso explica o fato da Doritos Rainbow ter apostado nessa
Rede Social em sua campanha #1KISS1DONATION. O fato é, que mesmo com a campa-
nha sendo desenvolvida também no Instagram, observou-se que a meta estabelecida
foi batida, mas, foi sentida a falta de um maior engajamento nessa Rede Social, capaz
de ampliar ainda mais o resultado. Na página oficial da Doritos Brasil10, observam-se
poucas publicações a respeito e quando o mecanismo de busca é acionado com chave
de pesquisa #1KISS1DONATION ou Doritos Rainbow, aparecem como resultados 347 e
5.543 publicações por parte dos usuários do Instagram. Ou seja, pouco mais de 5% de
um universo de 1.000,000 de usuários dessa rede, que revela o quanto o processo de di-
vulgação da marca ainda precisa ser expandido, em especial, dentro de uma Rede Social
que tem se destacado como atraente ao público LGBTQIAP+, o que denota que resulta-
dos ainda mais positivos podem ser alcançados, dependendo para isso de uma estratégia
mais ampla nessa rede.

2.2.2 Comunicação Empresarial nas Redes Sociais

Como fator preponderante na sociedade, as Redes Sociais também são um im-


portante elemento empresarial, uma vez que são um meio eficaz de alcance a um público
8
BUENO, W. A comunicação empresarial estratégica: definindo os contornos de um conceito. Conexão – Comuni-
cação e Cultura, v. 4, n. 7. Caxias do Sul: UCS, 2005.
9
OLIVEIRA, S. A.; HENRIQUE, J. L. Índice de Maturidade das Mídias Sociais - Instrumento de Estratégia de
Marketing de Relacionamento para as Pequenas e Médias Empresas. Costa do Sauípe: ENANPAD, 2016.
10
DORITOS BRASIL. Disponível em: https://www.instagram.com/doritosbrasil/

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que nem sempre pode ser atingido pelos modelos tradicionais de propaganda. Muitas
empresas possuem setores específicos que cuidam do contato com o público e do aten-
dimento de suas demandas apresentadas. Dentro desse processo, os responsáveis pelas
relações-públicas possuem importante papel, tendo em vista, que auxiliam no desenvol-
vimento de estratégias que aproximam a empresa da sociedade, num todo.

Oliveira e Marchiori (2019, pág. 290)11 mostram que: “Entender a comunicação


como processo, principalmente, como processo informal, parece fundamental para cap-
tar a forma como os relacionamentos são delineados”. É preciso que exista o conheci-
mento da maneira pela qual a sociedade se porta na atualidade, pois, sem esse conheci-
mento, é pouco provável que alguma ação se apresente como eficiente, não importando
se isso está relacionado às minorias ou maiorias.

É importante ainda observar, que não basta apenas olhar a Comunicação Empre-
sarial sob um olhar simplista, é necessário que seja levado em consideração, tal como
Bueno (2005, pág. 12)12 demonstra, que: “Para que a comunicação empresarial seja
assumida como estratégica, haverá, pois, necessidade, de que essa condição lhe seja
favorecida pela gestão […]”. Ou seja, é necessário que todos os meios necessários ao
desenvolvimento dessa atividade sejam disponibilizados para que o trabalho seja de-
senvolvido com excelência. Muito além de apenas divulgar uma ação em alguma rede, é
necessário que o planejamento contemple estratégias adequadas e que garantam o su-
cesso da ação. Essas observações se fazem necessárias, e também, pertinentes, pelo fato
de que Bueno (2005, pág. 12)13 realiza ainda um novo alerta, uma vez que: “A intenção
ou o desejo apenas não produz a realidade”. Onde fica claro, que é necessário muito mais
do que apenas “boa vontade” não é o suficiente para que uma ideia funcione, pois, sem
o adequado planejamento, por mais impressionante que possa parecer, a ideia não vai
surtir os efeitos necessários.

3. COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL EM PROL DE QUESTÕES SOCIAIS

A Comunicação Empresarial, não pode obedecer apenas a uma ideia diretamente


ligada aos fatores financeiros, mas sim, deve também estar associada aos anseios sociais
existentes nas sociedades. Quando a Doritos Rainbow realiza uma campanha voltada
para o público LGBT+, se propõe a analisar uma parcela populacional que é muito preju-
dicada pelos preconceitos existentes, em uma sociedade, onde a capacidade profissional
não se mede pelo nível de conhecimento, mas sim, por quem se relaciona em sua intimi-
11
OLIVEIRA, I.; MARCHIORI, M. Redes Sociais, Comunicação, Organizações.. São Caetano do Sul:
Difusão Editora, 2019.
12
Id. Ibidem.
13
BUENO, W. A comunicação empresarial estratégica: definindo os contornos de um conceito. Cone-
xão – Comunicação e Cultura, v. 4, n. 7. Caxias do Sul: UCS, 2005.

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dade. Atitudes como essas, são comuns em um meio social que não sabe lidar com pes-
soas com diferentes características e objetivos.

3.1 A importância das empresas usarem a comunicação empresarial em campanhas sociais

De acordo com Kunsch (2018, pág. 22)14 vai mostrar que: “Na contemporaneida-
de as relações-públicas devem desenvolver nas organizações, sua função estratégica, o
que significa ajudar as organizações a se posicionarem perante a sociedade […]”. Nesse
sentido, observa-se que a Comunicação Empresarial possui um papel cada vez mais re-
levante nesse processo, uma vez que a necessidade das empresas se aproximarem das
questões sociais, se tornou um elemento primordial na própria relação entre empresas
e clientes.

3.2 Construção da imagem junto ao público externo

Construir uma imagem que seja positiva junto ao público é fundamental. Nesse
sentido, as empresas devem estar cientes da importância desse elemento. Observa-se
ainda dentro do trabalho de Kunsch (2013, pág. 100-117)15, que:

“No âmbito das organizações considera-se que as relações-públicas, como parte


integrante do subsistema institucional das organizações, têm como papel fundamental
cuidar dos relacionamentos públicos […]”. Construir uma imagem positiva junto ao públi-
co é fundamental e não seria diferente com a ideia desenvolvida pela Doritos Rainbow,
e por isso que nesse sentido, se observa a construção dessa imagem junto ao público
LGBT+.

3.3 Propaganda Empresarial

É possível analisar no trabalho desenvolvido por Shimp e Andrews (2013)16 que:


“O investimento em propaganda no marketing pode ser executado através de diversas
ferramentas (e.g. televisão, rádio, patrocínio, entre outras), cada qual destinada a um ob-
jetivo específico e com capacidade de alcançar públicos distintos”. Dentre esses elemen-

14
KUNSCH, M. A comunicação estratégica nas organizações contemporâneas. Lisboa: Média & Jorna-
lismo, 2018.
15
KUNSCH, M. Planejamento de Relações Públicas na Comunicação Integrada. 4. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Summus, 2003.
SHIMP, T.; ANDREWS, J. Advertising promotion and other aspects of integrated marketing communications. Cen-
16

gage Learning, 2013.

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tos que se inter-relacionam a propaganda, observa-se que as Redes Sociais se tornaram
uma realidade nesse processo e que precisam ser explorada em todo o seu potencial.
Frio (2019, pág. 182)17 vai apontar ainda que: “De modo geral, a literatura demonstra a
importância do investimento em propaganda, devido aos efeitos positivos sobre vendas,
valor da marca e do efeito positivo dessa ferramenta gerado sobre acionistas”.

Saber quando e onde investir é uma noção que precisa ser comum a todos dentro
do ramo empresarial, e somar isso às tecnologias existentes é fundamental para o suces-
so ou fracasso de um modelo de negócio ou estratégia.

4. DORITOS E A COMUNIDADE LGBTQUIAP+

A história relacionada ao Doritos, remete ao Século XX, especificamente ao ano


de 196418, quando a Alex Foods lança o salgadinho em forma de tortilhas nos Estados
Unidos, a princípio na Costa Oeste. Onde devido ao sucesso da ideia, a marca foi adqui-
rida pela Frito-Lay no ano de 1965, momento ao qual passou a ter uma distribuição bem
mais abrangente do que aquela inicial (ROSSATO, 2009). Chama a atenção, que assim
como a propaganda voltada atualmente para o Doritos Rainbow, onde se visa o público
LGBT+, o salgadinho nos anos 60, destinava-se a ser consumido pelos imigrantes latinos,
o que demonstra que a ideia era voltada a atender a uma parcela populacional. A marca
continuou o seu processo de expansão e ao longo do tempo também se internacionali-
zou.

As pessoas se acostumaram nos últimos anos a classificar a comunidade por meio


da sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) muito comum nos anos 80/90,
e em um tempo ainda mais longínquo, por volta dos meados dos anos 70/80 como GLS
(Gays, Lésbicas e Simpatizantes).

Assim como a tecnologia é uma realidade na sociedade atual, o mesmo também


se aplica a parcela populacional existente nessa comunidade, que como muitas outras,
sofreu mudanças ao longo do tempo, o que conduziu a uma extensão na sigla utilizada.
LGBTQIAP+ se tornou a sigla de: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Inter-
sexuais, Assexuais e Pansexuais.

O trabalho que a Doritos desenvolve junto ao público LGBTQIAP+, não é um tra-


balho iniciado em 2020 devido a pandemia, mas que é desenvolvido a alguns anos. Silva,
Meireles e Medeiros (2019, pág. 91)19, mostram que o objetivo da Doritos nessa ação

FRIO, R. A relação entre investimento em propaganda e o valor da firma: uma revisão sistemática e uma agenda
17

de pesquisa para futuros estudos. Porto Alegre: READ, 2019.


ROSSATO, J. História da Marca Doritos. Curitiba: Comunidade Brasileira de Design, 2009.
18

19
SILVA, E.; MEIRELES, D.; BEZERRA, J. Comunidade LGBT como protagonista publicitária: uma
Análise de Discurso da Campanha Doritos Rainbow. João Pessoa: UFPB, 2019.

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é trazer de volta antigos elementos que tanto ajudaram no crescimento da comunidade.
Sobre esse ponto, é possível observar nesse contexto que: “A ação da empresa desenvol-
vida pela agência de publicidade AlmapBBDO, resgata a bandeira iniciada por volta de
1970 com o movimento LGBT internacional, trazendo de volta as oito cores iniciais que
compõem o símbolo original […]”. Uma busca pelo passado para explicar o presente e que
muito tem contribuído para o desenvolvimento de ações em prol do público LGBTQIAP+.

O fato é, que com tudo o que ocorreu no ano de 2020 por conta da pandemia oca-
sionada pelo Coronavírus, houve a necessidade de uma mudança de estratégia, onde em
vez do modelo tradicional de doações, a Doritos opta por realizar a #1KISS1DONATION,
onde a cada beijo virtual dado, o valor de R$ 1,00 é contabilizado, objetivando que ao
final, se tenha um milhão de beijos, que serão convertidos em dinheiro a ser distribuído
em 10 instituições escolhidas e que apoiam a causa LGBTQIAP+.

5. CAMPANHA #1KISS1DONATION

É uma campanha que busca resgatar antigos valores existentes dentro da comu-
nidade LGBTQIAP+. Muito além do que uma ação publicitária, trata-se de uma ação de
resgate a própria cidadania dessa comunidade. Nesse sentido, busca-se por meio de ofe-
recer apoio a comunidade LGBT+ em um período de distanciamento social, o que acaba
por prejudicar as ações presenciais. Assim, busca-se que um engajamento do público na
campanha, que é desenvolvida por meios digitais, onde, a cada beijo virtual enviado pe-
los participantes, a Doritos Rainbow se compromete a doar R$ 1,00, Tendo como meta a
ser atingida arrecadar 1 milhão de beijos virtuais, que serão convertidos em R$ 1 milhão
a serem doados para 10 instituições LGBT+, escolhidas para serem apoiadas durante o
curso dessa campanha no ano de 2020. Sobre isso, Silva, Meireles e Medeiros (2019,
pág. 93)20 apontam em seu trabalho que: “[…] identidade de consumo, hoje, é cidadania.
É nesse contexto que vão acontecer a construção, a desconstrução ou a supressão do
valor na ação e na mensagem publicitária”. Muito além do que uma ideia existente na
Constituição Federal21, trata-se de uma realidade que faz parte e é muito importante em
nossa sociedade.

Esperar que o Estado auxilie a essas pessoas em suas necessidades, pode ser algo
que não vá acontecer e essas pessoas precisam ver que verdadeiramente a sua realidade
social pode ser alterada por meio de empresas e pessoas que as veem de maneira huma-
nizada e como importantes na sociedade, não como pessoas que nada tem a acrescentar.
Nesse sentido o valor da marca sai fortalecido, em especial, pelo seu compromisso com

20
SILVA, E.; MEIRELES, D.; BEZERRA, J. Comunidade LGBT como protagonista publicitária: uma
Análise de Discurso da Campanha Doritos Rainbow. João Pessoa: UFPB, 2019.
21
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília, STF, 2019.

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os antigos valores que ajudaram no crescimento e também no desenvolvimento da co-
munidade LGBTQIAP+ e também da Doritos.

6. CONCLUSÃO

Muito mais do que uma campanha publicitária, existem momentos em que a


sociedade precisa ser relembrada de sua essência, e dentro desse contexto, aprender
a amar e respeitar ao próximo tal como ele é um valor muito relevante, que a Doritos
Rainbow trouxe durante a pandemia com a campanha #1KISS1DONATION: mesmo com
a proibição de aglomerações, a empresa não deixou de se posicionar e reforçar seu apoio
às causas sociais ligadas às diversidades sexual e de gênero para os diferentes públicos
que atinge em suas publicações no Instagram.

Através do incentivo para a produção de conteúdo pelo público, naturalizando o


beijo, principalmente o homo afetivo, e, após alcançar a marca de um milhão de beijos
virtuais, a empresa contribuiu, financeiramente, com organizações sem-fins lucrativos
que têm seu trabalho voltado para a comunidade LGBTQIAP+.

A marca poderia realizar a doação sem a necessidade da participação do públi-


co, entretanto, para reforçar sua imagem, as estratégias de comunicação empresarial da
Doritos foram para além do que o Pink Money: incentivar o movimento contra o precon-
ceito sexual e de gênero, manter o distanciamento social em um momento pandêmico e
reforçar a afinidade que a marca alimenta junto ao seu público e às causas LGBTQIAP+.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília, STF, 2019.

BUENO, W. A comunicação empresarial estratégica: definindo os contornos de um


conceito. Conexão – Comunicação e Cultura, v. 4, n. 7. Caxias do Sul: UCS, 2005.

FERREIRA, A. Mini Aurélio: o dicionário da Língua Portuguesa. 8. ed. rev. e ampl. Rio de
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FRIO, R. A relação entre investimento em propaganda e o valor da firma: uma revisão


sistemática e uma agenda de pesquisa para futuros estudos. Porto Alegre: READ, 2019.

IMME, A. Ranking das redes sociais: as mais usadas no Brasil e no mundo, insights e
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135
PERFIL DE VISITANTES E CONSCIENTIZAÇÃO SOCIOAMBIENTAL EM
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
VISITORS PROFILE AND SOCIO-ENVIRONMENTAL AWARENESS IN
CONSERVATION UNITS

Maria de Lourdes Spazziani1; Nijima Novello Rumenos2


1
Bióloga e pedagoga de formação, mestre e doutora em educação Formação. Atualmente é
Professora Associada do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”- Unesp/Botucatu-SP – Botucatu – SP – Brasil
email: maria.spazziani@unesp.br.
2
Bióloga de formação, mestre em Educação e Doutora em Educação para a Ciência.
Atualmente é professora substituta do Instituto de Biociências da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- Unesp/Botucatu-SP – Botucatu – SP – Brasil
email: nijima.novello@unesp.br.

Data de envio: 29/04/2021


Data de aceite: 01/06/2021

RESUMO

Educação Ambiental tem sido proposta como um processo de fundamental rele-


vância para promover a conscientização das pessoas para a conservação dos ambientes
naturais, e construídos e melhoria da qualidade da vida em todas as suas diversas mani-
festações. Neste sentido, os parques nacionais (PN) no país, além de abrigarem e contri-
buírem para biodiversidade e conservação da vida em seu estado natural, precisam atuar
para promover a reaproximação e a conscientização das populações atuais no contato
com a natureza, em especial pelo Ecoturismo. Com essa perspectiva, esta pesquisa in-
vestigou o perfil, os motivos e as perspectivas de visitantes em um PN, situado no estado
do Rio de Janeiro, e possíveis limitações e contribuições para a formação da consciência
ambiental. A pesquisa de campo se deu por meio de entrevistas estruturadas com 62
visitantes. Obteve-se que, no grupo estudado, predomina o sexo feminino e 50% são mo-
radores de bairros do entorno do PN. Os dados indicam o perfil de visitação na referida
época, mas fica evidenciado a importância atribuída a esse espaço pelas comunidades do
entorno. Notam-se indícios da carência de estrutura para acolhimento, em especial para
o trabalho de conscientização proposto pelo ecoturismo e educação ambiental.

Palavras-chave: Unidades de Conservação. Educação Ambiental. Ecoturismo em áreas


naturais.

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Perfil de Visitantes e Conscientização Socioambiental em
Unidades de Conservação. MIMESIS, V.42, n.2, p. 136-156,
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ABSTRACT

Environmental Education has been proposed as a process of fundamental impor-


tance to promote people’s awareness of the conservation of natural and built environ-
ments and improve quality of life in all its manifestations. In this sense, the national parks
(NP) in the country, besides sheltering and contributing to biodiversity and conservation
of life in their natural state, need to promote the reconnection and awareness of current
populations in contact with nature, especially by ecotourism. With this perspective, this
research investigated the visitors’ profile, reasons, and perspectives of an NP located in
the state of Rio de Janeiro and possible limitations and contributions to the formation of
environmental awareness. The research was carried out through structured interviews
with 62 visitors. In the studied group, predominates women, 50% are residents of nei-
ghborhoods located around the NP. Data indicate the profile of visitors at that time, but
it is evident the importance attributed to this space by the surrounding communities.
There is evidence of a lack of structure to receive visitors, especially for the awareness
work proposed by ecotourism and environmental education.

Keywords: Conservation units. Environmental Education. Ecotourism in natural areas.

INTRODUÇÃO

A Política Nacional da Educação Ambiental de Educação Ambiental (PNEA) pro-


mulgada em 1999 e regulamentada instituída no país pelo Decreto 4281/2002 (BRASIL,
2002/2019) indica no seu inciso II do Art. 6º que para o cumprimento do estabelecido
neste Decreto, deverão ser criados, mantidos e implementados, sem prejuízo de outras
ações, programas de educação ambiental integrados:

II- às atividades de conservação da biodiversidade, de zoneamento ambiental,


de licenciamento e revisão de atividades efetivas ou potencialmente poluido-
ras, de gerenciamento de resíduos, de gerenciamento costeiro, de gestão de
recursos hídricos, de ordenamento de recursos pesqueiros, de manejo susten-
tável de recursos ambientais, de ecoturismo e melhoria de qualidade ambiental
(BRASIL, 2002/2019, s/p, grifo nosso).

Um pouco antes à implementação da PNEA, em 1992, e em paralelo às atividades


da Conferencia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, mais
conhecida com Eco 92, aconteceu o Fórum Internacional, que se constitui em um movi-
mento organizado pelas ONGs, e entre as várias ações é proposto o documento intitu-
lado “Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade
Global”, que indica a Educação Ambiental como um processo em permanente construção

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que deve estar articulado em todos as instâncias e setores da sociedade, promovendo a
formação humana no sentido da preservação da vida por meio da manutenção do equilí-
brio ecológico conquistado pela natureza em milhões de anos.

A educação ambiental para uma sustentabilidade equitativa é um processo de


aprendizagem permanente, baseado no respeito a todas as formas de vida. Tal
educação afirma valores e ações que contribuem para a transformação humana
e social e para a preservação ecológica. Ela estimula a formação de sociedades
socialmente justas e ecologicamente equilibradas, que conservem entre si a re-
lação de interdependência e diversidade. Isto requer responsabilidades indivi-
dual e coletiva no nível local, nacional e planetário (FÓRUM INTERNACIONAL
DAS ONGs, 1992, p. 193-194).

Spazziani (2002) reitera que a Educação Ambiental precisa ser compreendida


como um processo que contribua para a construção e apropriação dos conhecimentos
vigentes sobre o meio ambiente e as formas de transformá-los em prol da preservação
e conservação da natureza necessárias para garantir a vida ao planeta e, consequente-
mente, às futuras gerações. Nota-se que sobre os temas relacionados ao meio ambiente
natural, há inúmeras percepções, muitas vezes equivocadas, que impactam conceitos,
valores, procedimentos e atitudes e, em decorrência comprometendo e ameaçando a
sustentabilidade socioambiental vigente e necessária para a manutenção da vida.

Nesse contexto de crise ecológica e social, a Educação Ambiental emerge como


pressuposto para o desenvolvimento de novos valores, que considerem comportamen-
tos mais responsáveis e comprometidos com o meio ambiente.

Embora sejam várias as definições que tentam explicar a finalidade da Educa-


ção Ambiental, o fato é que sua essência se pauta na incessante busca em pro-
duzir na humanidade uma qualidade de consciência capaz de instrumentalizar
iniciativas que fomentem a congregação de atitudes voltadas à complexidade
ambiental. Portanto, defendemos processos pedagógicos que favoreçam e legi-
timem atitudes que funcionarão como determinantes na perspectiva de conso-
lidarmos práticas mais coerentes e comprometidas com a mudança de percep-
ção, consciência e práticas relacionadas ao contexto socioambiental próximo e
distante, ou seja, local e global (SPAZZIANI, 2017, p. 34).

A Educação Ambiental assim desenvolvida se configura como potencial pedagó-


gico para contribuir para a formação de novos conhecimentos e conceitos do contexto
socioambiental, assim como avançar em ações que constituam trajetórias que promo-
vam e assegurem que os grupos humanos, nas suas diversas comunidades, consigam vi-
ver e desenvolver práticas de maneira sustentável.

Dias (2004), ao se referir sobre as transformações recentes, historicamente re-


gistradas, na interação humana entre si e com o meio ambiente natural, conclui que este

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processo acelerado e globalizado, tem repercutido nas análises de cientistas do campo
sócioecológico, severas consequências para as condições de suporte do planeta, em es-
pecial, a viabilidade de sobrevivência da espécie humana. Nesse sentido, o autor ressal-
ta:

O número crescente de indivíduos que passaram a ocupar o mesmo nicho, den-


tro da biosfera, ou seja, cada vez mais as pessoas adotam os mesmos padrões de
consumo, em todo o mundo, exercendo pressões crescentes sobre uma mesma
categoria de recursos finitos ou cuja velocidade de regeneração não está sendo
observada.[...] Esse processo não poderia continuar sem que graves consequên-
cias começassem a eclodir, em maior ou menor grau, em todas as partes da terra
onde os seres humanos habitam (DIAS, 2004, p. 92).

Alinhada a estas ideias, o autor citado acima destaca o papel das mídias dominan-
tes, ao veicular com destaque a cultura americanizada para o país. Esta influência estran-
geira tem como propósito promover mudanças nas consciências padrões de consumo,
em que o ‘ter’ por meio do sucesso das condições econômicas se sobrepõe ao ´ser´ que,
em geral, é resultado dos valores e lugares sociais, políticos, culturais e ecológicos que
insere os humanos no mundo.

Importante reconhecer que a crise socioambiental é resultado do modelo e pa-


drões de desenvolvimento econômico baseado no desejo, em geral irracional, pelo lucro
obtido da mais valia sobre os outros seres humanos e sobre as demais formas de vida e
elementos que suportam a vida no planeta.

Este está atrelado à lógica do aumento da produção (em que os recursos natu-
rais são utilizados sem nenhum critério; em que o ambiente é visto como um
grande supermercado gratuito, com reposição infinita do estoque; em que se
privatiza o benefício e socializa o custo) (DIAS, 2004, p. 96).

Estas considerações apresentadas, nos indicam o grau de exploração estabele-


cido nos dois últimos séculos proveniente dos modos de interação entre ser humano e
o ambiente natural que o cerca. É um modelo de exploração baseado na apropriação de
terras e de riquezas de pequena parcela dos seres humanos, e que para isto, subjuga os
demais humanos, seres vivos e coisas do mundo.

Assim, muito longe de ser uma relação de equilíbrio e saudável, as ações huma-
nas têm se deixado predominar pela exploração dos recursos naturais e pela
intensificação de domínio nas relações entre os humanos. Esses elementos nos
levam a identificar uma crise de valores, já que o primeiro plano das atenções
deixa de ser o bem-estar e a asseguração dos direitos humanos básicos para
uma vida sadia e ao bem comum. São valores e atitudes guiados por interesses
capitalistas que, como vimos, priva os lucros e benefícios, mas socializa os de-
sastres e as catástrofes (FRANZI; SPAZZIANI, 2015, p. 252).

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Retomando Dias (2004), essa construção desastrosa das sociedades modernas
com a natureza viva e abiótica faz parte das análises do autor, em vista das condições
atuais que envolvem o aumento da fome no mundo contrariando os avanços tecnológi-
cos e científicos que garantiram o aumento da oferta de alimentos. Esta situação expõe
as condições injustas que rondam a distribuição dos bens produzidos entre os diversos
grupos humanos.

Há alimentos para todos, mas estes não são distribuídos, apodrecem nos gran-
des armazéns. Morre mais gente por excesso de comida (obesidade e seus pro-
blemas correlatos) do que por falta (DIAS, 2004, p. 247).

Entendemos que a ocupação de grandes territórios com plantios de uma só cul-


tura evidencia o modelo insustentável dominante entre nós humanos com os elementos
do meio ambiente, em especial aqueles que levaram milhares e milhares de anos para se-
rem organizados e alinhados na sistemática biológica e abiótica da vida planetária. Este
modelo, na historia recente, caminha a passos largos tendo como premissa a aquisição
de lucro, não importando se para isso for necessário desmatar, queimar e explorar os
recursos ambientais, humanos e demais formas de vida.

Logo, a educação em geral se coloca como um instrumento indispensável para


contribuir para elaboração de valores suficientes para orientar as relações dos humanos
nos sentido de aprimoramento do seu processo de humanização e com isto o estabeleci-
mento de práticas sustentáveis entre si e os demais entes que garantem a vida com toda
a complexidade necessária.

Desse modo, a Educação Ambiental, como um campo da educação, parte de uma


preocupação básica: “a de garantir um ambiente sadio para todos os homens e tipos de
vida existentes na Terra” (AB’SABER, 1991, n/p). Assim sendo:

A urgente transformação social de que trata a educação ambiental visa à supe-


ração das injustiças ambientais, da desigualdade social, da apropriação capita-
lista e funcionalista da natureza e da própria humanidade. Vivemos processos
de exclusão nos quais há uma ampla degradação ambiental socializada com uma
maioria submetida, indissociados de uma apropriação privada, dos benefícios
materiais gerados. Cumpre à educação ambiental fomentar processos que im-
pliquem o aumento do poder das maiorias hoje submetidas, de sua capacidade
de autogestão e fortalecimento de sua resistência à dominação capitalista de
sua vida (trabalho) e de seus espaços (ambiente) (SORRENTINO et al, 2005, p.
287).

A Educação Ambiental enquanto um campo da educação pode promover a forma-


ção política, com base em processos dialógicos e de valorização dos conhecimentos po-
pulares, tornando-se instrumento indispensável para a promoção e construção de novos

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valores capazes de orientar outro modelo de sociedade. Que seria uma sociedade basea-
da na justiça social e ambiental, com garantias de respeito e valorização das diversidades
e regida pela igualdade e transparência de oportunidades (SPAZZIANI, 2017).

No entanto, esse processo educativo vai se manifestar de fato, nos anos 2000,
nas diversas reformulações do Programa Nacional de Educação Ambiental (ProNEA). O
campo da Educação Ambiental vai se configurando por meio de diversas atividades edu-
cacionais que podem ser realizadas em ambientes naturais como é o caso da “interpre-
tação ambiental”, que segundo Rodrigues (2009) procura revelar significados por meio
de experiências vividas na natureza, dependendo das circunstâncias que as utilizamos.
Assim, o objetivo da interpretação ambiental não é a instrução, mas a provocação (TIL-
DEN, 2007).

Quando pensamos em interpretação ambiental em ambientes naturais, principal-


mente em parques nacionais, como é o caso do recorte deste trabalho, percebemos a ne-
cessidade de se trabalhar com as questões relativas ao turismo e mais especificamente
ao “Ecoturismo”.

Para a Sociedade Internacional de Ecoturismo (TIES) (BRASIL, 2010, p. 17) esta


atividade se constitui como “uma viagem responsável a áreas naturais, visando preser-
var o meio ambiente e promover o bem-estar da população local”.

O Ecoturismo no país emerge do movimento ambientalista, por meio de debates


que apontam premissas para a conservação do meio ambiente com a utilização de tecno-
logias sustentáveis enfocadas para atender a atividade turística. O Ecoturismo tem se
constituído numa atividade que ganha enormes desenvolturas e interesse dos gestores e
investidores brasileiros, baseando-se em modelos turísticos responsáveis e sustentável
(BRASIL, 2010).

Esse tipo de turismo no Brasil é muito comum, por ser um país exuberante com
diversos tipos de biomas e com uma enorme biodiversidade. Além disso, ele visa contri-
buir para a conservação dos ecossistemas nos moldes promissores da sustentabilidade. 

O Ecoturismo pressupõe a elevada difusão de premissas fundamentais – como


princípios e critérios que apontam que o alcance da sustentabilidade socioam-
biental está associado ao processo de planejamento participativo, com integra-
ção intersetorial e inserção da comunidade local para contemplar as necessi-
dades de infraestrutura e qualificação profissional para a gestão sustentável da
atividade (...). O Ecoturismo, por apresentar sua base de desenvolvimento na
sustentabilidade, enfatiza a importância do processo de planejamento multise-
torial participativo, em que todos os atores têm papel fundamental em todas as
fases do processo de desenvolvimento (BRASIL, 2010, p. 12 e 16).

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Além de sua potencial contribuição à preservação e conservação dos ecossiste-
mas naturais, o ecoturismo tem sido proposto como aliado do desenvolvimento das co-
munidades locais, como o chamado Turismo de Base Comunitária (TBC).

2. Turismo de Base Comunitária

De acordo com documento do Ministério do Meio Ambiente (MMA, 2006), o TBC


é um modelo de gestão da visitação protagonizado pela comunidade, o qual gera bene-
fícios coletivos e proporciona uma vivência entre as culturas, a qualidade de vida, a va-
lorização da história local, além da utilização sustentável dos recursos naturais de uma
Unidade de Conservação.

Ainda de acordo com o MMA (2018), os princípios do TBC são: 1. Conservação da


sociobiodiversidade; 2. Valorização da história e da cultura; 3. Protagonismo comunitá-
rio; 4. Equidade social; 5. Bem comum; 6. Transparência; 7. Partilha cultural; 8. Atividade
complementar; 9. Educação; 10. Dinamismo cultural e 11. Continuidade.

Para tanto, é importante que os sujeitos que realizam tal tipo de turismo estejam
conscientes das causas e consequências dos atos realizados e que sejam feitos sustenta-
velmente. Relativo a isto existe o conceito de capacidade de suporte, que representa o
calculo de um limite do número de visitantes por certo período, para não impactar o local
de forma negativa. Esse limite é importante em diversos casos nas Unidades de Conser-
vação (UC) e no entorno dela.

2.1 Ecoturismo em parques nacionais e a consciência ambiental

As comunidades residentes nas UC estão encontrando no TBC uma alternativa


de renda, uma oportunidade de valorizar a própria cultura e uma forma de integrar as
pessoas ao modo de vida local. Em uma visão mais macro, podemos perceber a impor-
tância de se manter um vínculo com o ambiente natural, pois ao longo de bilhões de anos
as diferentes formas de interação e manejo ambiental propiciaram adaptação e evolução
do ambiente e dos organismos vivos. Assim como ocorreu com os outros animais, a ca-
pacidade humana de movimento permitia satisfazer as necessidades diárias e delimitava
nossas possibilidades de adaptação ao ambiente e de evolução física e cognitiva (FELÍ-
CIO, 2017; HARARI, 2017; SANTURBANO, 2017).

Louv (2018), destaca ainda a inter-relação que existe entre a saúde do ambiente e
a saúde das pessoas, citando a importância do contato com a natureza para o desenvolvi-
mento físico e cognitivo humano e ainda para o próprio desenvolvimento e conservação
do ambiente natural. O autor relata ainda a importância das informações de primeira
mão que podem ser obtidas no livre explorar do ambiente natural, essas informações
merecem destaque porque não sofrem o filtro da cultura, podendo levar a cada ser um

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conhecimento profundo e direto sobre as verdades e leis básicas da natureza.

Nos últimos anos cresceu significativamente a demanda dos povos e comunida-


des residentes no interior ou entorno das UC federais para desenvolver atividades de
turismo, ou inserir-se efetivamente nas ações de visitação realizadas ou previstas para
essas áreas protegidas. Paralelamente, muitos gestores do Instituto Chico Mendes de
Biodiversidade (ICMBio) passaram a visualizar o envolvimento desses atores como um
importante caminho para fortalecer os programas de visitação, diversificar as ativida-
des desenvolvidas e agregar valor à experiência dos visitantes, bem como incrementar a
renda desses moradores e aproximá-los positivamente da gestão das UC, aumentando,
assim, o apoio local à estas áreas protegidas, no Brasil.

Para Araújo e Isayama (2009), o turismo pode ser definido como um fenômeno
cultural, social e espacial que incentiva as pessoas por diferentes motivos a saírem de
seu entorno habitual e visitarem outros lugares (ARAÚJO; ISAYAMA, 2009).

Para Souza (2010) o lazer é considerado como um fenômeno historicamente


constituído e por esse motivo requer ser pensado a partir de um dado contexto social,
reiterando a importância de ser compreendido enquanto uma dimensão da cultura.

Da mesma forma que o “Lazer”, o termo “Turismo” tem sido definido por muitos
pesquisadores da área de forma diferente. Para dar uma ideia de conceituações mais
abrangentes de turismo, autores como Oscar De La Torre, Fuster e Wahab, ampliaram
a conceituação de turismo ao buscar definir o que seriam os fenômenos produzidos em
consequência das viagens (SOUZA, 2010).

Souza (2010) e Barreto (2003) fazem uma crítica a essa visão do turismo com o
foco no resultado econômico, assim eles consideram que é preciso, superar essa visão e
trazer algo novo buscando os elementos essenciais.

Os parques nacionais (PN) se constituem no Brasil como importante(s) unidade(s)


de conservação da vida em seu estado natural. Apesar do país ser um dos maiores redu-
tos de biodiversidade do planeta, o crescimento urbano desordenado e a ocupação per-
versa de enormes territórios para a monocultura, nas últimas décadas, têm contribuído
para afastar a convivência das gerações mais jovens com os ecossistemas naturais. Neste
sentido, os PN vêm assumindo importante papel tanto para a conservação das espécies
e ambientes naturais, quanto para promover a reaproximação das populações atuais no
contato com a natureza. O ecoturismo entendido como “viagem responsável a áreas na-
turais, visando preservar o meio ambiente e promover o bem-estar da população local”
tem sido uma das formas de viabilizar esta importante tarefa dos PN. Assim como, pro-
mover por meio de suas estruturas naturais e de acolhimento Educação Ambiental das
populações do entorno e visitantes.

Com base nesta premissa, esta pesquisa – de cunho qualitativo - investigou o per-

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fil, os motivos e as perspectivas de visitantes em um PN situado no estado do Rio de
Janeiro e as possíveis limitações e contribuições das estruturas físicas e turísticas da uni-
dade de conservação para a formação da consciência ambiental dos visitantes do parque.

METODOLOGIA

Foi realizada uma pesquisa de campo por meio de entrevistas estruturadas com
62 visitantes de um PN situado no estado do Rio de Janeiro, no mês de janeiro de 2019.
Os dados coletados por meio de entrevistas referem-se a: cidade de residência, profis-
são, tempo de permanência na região (para morador de outra cidade ou estado), motivo
da visita, número de acompanhantes, custo da visita, preferências sobre o parque, suges-
tão de melhorias, frequência a áreas naturais. Os sujeitos foram abordados no interior
no PN, nas áreas de vivência (centro de vivência, piscina, lanchonete), em trilhas centrais
e locais próximos a cachoeiras de fácil acesso. Os entrevistadores eram oriundos do cur-
so de Ecoturismo de Base Comunitária que se realizava no referido parque nacional, na
época da pesquisa. foi realizado entre os dias 21 a 25 de janeiro de 2019, como parte do
Projeto de Pesquisa “Implantação, teste e aperfeiçoamento da ciência-cidadã para ma-
nejo e conservação nos parques nacionais serras da Bocaina e Serras dos Órgãos” finan-
ciado pelo ICMBio/CNPq e Fapesp. Esta atividade de entrevista fez parte do processo
formativo dos cursistas para atuarem em projetos de intervenção que envolvam a arti-
culação das comunidades do entorno de UCs no sentido de valorização e conservação
dos recursos naturais.

A análise dos dados foi realizada com base nos procedimentos da “Análise de Con-
teúdo” proposta por Bardin (2004) possibilitando a análise e organização dos dados e
apresentando, sempre que necessário, gráficos e tabelas.

RESULTADOS

4.1 O perfil dos visitantes do PN

Das análises dos dados obteve-se o perfil dos visitantes do parque, sendo que dos
62 entrevistados, 39 (63%) eram do sexo feminino e 23 (37%) do sexo masculino.

Quanto à faixa etária dos entrevistados, conforme nos mostram os dados da Fi-
gura 1, a maioria estava entre 31 a 40 anos. Quando totaliza os acima dos 30 anos temos
mais 70% compreendendo a fase adulta e idosa.

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Figura 1 – Gráfico referente à faixa etária dos visitantes participantes da pesquisa.

Fonte: Autoria própria.

Quanto ao local de residência, pouco mais de 50% são moradores da cidade que
abriga o PN e 40% residem em cidades que pertencem ao estado do Rio de Janeiro -
RJ. 15% vieram de outros estados do país, (Amazonas, São Paulo e Minas Gerais). Desta
forma, observa-se que a maioria das pessoas são da localidade em busca de lazer, em
especial, por se tratar de período de verão e férias, possibilitando maior número de vi-
sitas das comunidades locais, conforme dados presentes na Figura 2. O que nos leva a
refletir sobre a importância da promoção de atividades educativas de engajamento dos
frequentadores, que na busca pelo lazer tem a oportunidade de participarem de projetos
que ampliem sua formação e compromisso com qualidade socioambiental do parque e
seu entorno, tal qual o proposto pelo Ecoturismo de Base Comunitária (EcoTbc).

Figura 2 – Cidades e estados dos visitantes entrevistados.

Fonte: autoria própria.

Quanto à profissão dos visitantes, 42% dos entrevistados eram profissionais do


nível superior. Além disso, devido ao curso ter ocorrido no período de férias, justifica-se

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a expressiva presença de professores e estudantes (34%) visitando o parque (ver Figura
3). Reitera-se assim que ao se propor em UC o turismo de base comunitária, precisa-se
priorizar um
modelo de gestão da visitação protagonizado pela comunidade, gerando be-
nefícios coletivos, promovendo a vivência intercultural, a qualidade de vida, a
valorização da história e da cultura dessas populações, bem como a utilização
sustentável para fins recreativos e educativos, dos recursos da Unidade de Con-
servação (MMA, 2018).

Figura 3 – Profissões dos visitantes entrevistados.

Fonte: Autoria própria.

4.2 Dados sobre a visita ao PN

Outra pergunta realizada aos visitantes foi quanto eles gastam no parque. Pode-
-se observar na Figura 4, a seguir, que 44% preferiram não responder a questão, talvez
porque não sabiam ou não tinham calculado um valor exato. Dos entrevistados que res-
ponderam à questão 32% gastaram até R$30,00 no parque.

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Figura 4 – Valor gasto em dinheiro pelos visitantes do parque

Fonte: autoria própria.

Quando os visitantes foram questionados sobre o custo da visita ao parque, a


maioria dos entrevistados gastam seu dinheiro no parque, principalmente com ingresso,
seguidos de gastos com alimentação e estacionamento. Conforme figura 5, a seguir.

Figura 5 – Tipo de gasto dos visitantes no parque

Fonte: autoria própria.

Estes dados evidenciam que mesmo com um certo custo para realizar a visita,
existe procura das comunidades do entorno para a vivência de lazer e de turismo em
áreas naturais. Ou seja, a busca por estes equipamentos ou espaços socioambientais são
atrativos e indicam possiblidade de fortalecimento do turismo de base comunitária arre-

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gimentado em reservas ou áreas de proteção ambiental, favorecendo diferentes formas
de interação dos humanos com o ambiente que o cerca, inclusive buscando a superação
de sentimentos tão arraigados como os de exploração baseado na mais valia.

Os visitantes também foram questionados quanto ao número de pessoas que es-


tavam na respectiva visita ao parque (Figura 6), na ocasião da entrevista. A maioria dos
visitantes visitavam o parque em duplas ou trios, somando 56%, ou seja mais da metade
dos entrevistados.

Figura 6 – Quantidade de pessoas presentes na visita ao parque.

Fonte: Autoria própria.

Em relação ao tempo que permanecem na região, 53% dos entrevistados são mo-
radores da cidade sede no PN. Daqueles que vieram de outras localidades, grande parte
alegou ficar no local de 2 a 5 dias (29%), conforme Figura 7.

Figura 7 – Quantidade de dias em que os entrevistados permaneceram na região


do parque.

Fonte: autoria própria.

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Os dados revelados nas figuras 6 e 7 indicam que os visitantes de parques ou uni-


dades de conservação precisam ser compreendidos muito além do interesse financeiro
envolvido, em geral no estímulo ao ecoturismo. Segundo Araújo e Isayama (2009) é ne-
cessário ser vislumbrado como inerente à formação humana a necessidade de desloca-
mentos, por motivos diversos, em busca de outros olhares e lugares para atribuir signifi-
cado à própria vida. Quando se pensa em processos de conscientização que contribuam
para promoção e construção de valores capazes de orientar outro modelo de sociedade,
conforme destaca Spazziani (2017, p. 45), “é fundamental propiciar novas formas de in-
teração do ser humano com o meio ambiente, entre si e com os demais seres vivos”.

Os sujeitos entrevistados foram questionados sobre o motivo de estar no local, ou


seja, na cidade sede do PN, conforme Figura 8. Para melhor compreensão das respostas
agrupamos em três categorias de análises a posteriori: lazer, turismo e não respondeu.
Sendo que a maioria (80%) dos sujeitos entrevistados alegaram estar na região por mo-
tivos de “lazer”. 

Figura 8 – Gráfico referente às categorias sobre o motivo de estar no local

Fonte: autoria própria.

Em relação ao motivo atribuído pelos entrevistados para visitarem o PN, identifi-


camos quatro agrupamentos: “lazer”, “turismo”, “ecoturismo” e “outras respostas” (Figura
9). A categoria “lazer” foi a que mais apareceu com 44% de frequência (39 respostas)
e apresentou as seguintes unidades de registro: lazer; relaxar; treino; aproveitar o dia;
recreação; passear; trazer o filho na piscina; comemorar aniversário; piquenique; manhã
agradável; férias; paz espiritual; contemplação/paz; piscina.

Percebe-se que os visitantes buscam o entretenimento em áreas naturais como


forma de renovação das energias e alinhados ao desenvolvimento do ecoturismo no país.

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Esta vertente do turismo nacional foi defendida por signatários do movimento ambien-
talista, com destaque para finais da década de 1970, indicando que uma das formas de
conservação do meio ambiente pode ser alcançada pelas atividades turísticas que pro-
piciam o lazer (MMA, 2018).

Figura 9 – Gráfico referente às categorias sobre o motivo dos entrevistados


visitarem o parque.

Fonte: autoria própria.

Os sujeitos também foram questionados quanto ao que mais gostam no parque.


As respostas analisadas geraram três categorias de análises: “recursos naturais”, “in-
fraestrutura” e “interação com a natureza” (Figura 10). A categoria “recursos naturais”,
com 50% de frequência, ou 57 respostas, apresentou, como exemplo, as seguintes uni-
dades de registro: cachoeiras; mergulho; natureza; água natural; clima; paisagem; água;
preservação da natureza; árvores; queda d´água; vegetação diferentes; poços.

Figura 10 – Gráfico referente às categorias sobre o que os entrevistados


gostam no parque.

Fonte: autoria própria.

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A predominância de citações de elementos oriundos da natureza reforçam a cons-
tatação da necessidade dos seres humanos neste contato. Sendo assim, como nos apon-
ta Louv (2018) que as gerações atuais ao serem afastadas do convívio cotidiano com a
natureza podem demonstrar transtorno de déficit da natureza (TDN) rejeitando total-
mente o contato ou reiteradamente buscando restaurar este desequilíbrio oportunizan-
do momentos de desfrute em espaços naturais, como os citados pelos entrevistados. Isto
pode ser comprovado na resposta tabulada na Figura 11, quando 76% dos entrevistados
afirmaram que buscam com frequência visitas em áreas naturais.

Figura 11 – Gráfico referente à frequência de visitas dos entrevistados em áreas naturais.

Fonte: autoria própria.

Quando questionados sobre os lugares/áreas naturais que frequentavam, foram


formadas as seguintes categorias: “áreas naturais”, “regiões do país”, “região do PN”, “não
respondeu” e “não legível” (Figura 12). Para a formação da categoria “áreas naturais”, ob-
teve-se as seguintes unidades de registro, as quais apareceram em uma frequência de
48 vezes ou 77%: Clube Comary; Arandas; praia; Pedra da Gávea; Cachoeiras do Hor-
to; Pedra da Tartaruga; Lagoa; Bocaina; Itatiaia; horto; trilhas; Tijuca; chapadas; outros
parques; cachoeiras; Jardim Botânico; Tiririca; Urca; Reserva Grumari; acampamento;
parques naturais municipais e estaduais; cachoeiras do RJ; áreas naturais; atrativos na-
turais; museus amazônicos; Ibirapuera. Esta resposta dos sujeitos informam a varieda-
de de lugares que possuem forte vínculo com elementos da natureza, percorrendo des-
de formações geológicas de grande interesse e curiosidade, espaços que predominam
fauna e flora, lugares em que o elemento água se apresenta nas mais diversas formas e
composição, ou mesmo em ambientes naturais extremamente estruturados entre pela
intervenção humana. Todos eles parecem oferecer este reencontro para interação ser
humano-natureza.

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Unidades de Conservação. MIMESIS, V.42, n.2, p. 136-156,
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Figura 12 – Gráfico referente à frequência dos entrevistados sobre visitas em áreas naturais.

Fonte: autoria própria.

4.3 Proposta de melhorias para o PN

Os visitantes foram questionados sobre o que sugeriria para melhorar o PN (Figu-


ra 13), e obteve-se as unidades de análises: “infraestrutura”, “recursos naturais”, “nada”,
“não respondeu” e “não legível”.

A categoria “Infraestrutura” foi a que apareceu com uma frequência de 59 vezes


ou 70% das respostas obtidas. Alguns exemplos que formaram essa categoria são: lan-
chonete; mais duchas; sinalização; água; limpeza; alimentação; sinalização; atendimento
telefônico; atualização do folheto informativo; bebedouros; estacionamento; manuten-
ção; diminuição do valor do ingresso; manutenção de trilhas; banheiros. Ou seja, o aco-
lhimento do PN proporcionado pela intervenção humana é o que se destaca como de
maior vulnerabilidade pelos turistas e frequentadores de áreas naturais, como os sujei-
tos de nossa pesquisa. Poucas respostas indicam melhorias nos elementos da natureza e,
em geral, referem-se a condicionantes que dependem da intervenção humana, como por
exemplo, trilhas mais adequadas para caminhadas de públicos diversos.

Importante também lembrar que este PN é um dos mais antigos do país e possui
uma das melhores infraestruturas para recepção e acolhimento do turismo ecológico.
Entretanto, a perspectiva do promover um programa de visitação fundamentado nos
princípios do EcoTbc nos parece bem distante.

Os propósitos do EcoTbc para Unidades de Conservação, segundo diretrizes do


MMA (2018) deve-se levar em conta: a) Conservação da sociobiodiversidade; b) Valo-
rização da história e da cultura capaz de desencadear um processo de reconhecimento,
divulgação e valorização da história e cultura dos povos e comunidades locais e, envolver
e estimular esses atores a compartilhar e a aprofundar o conhecimento sobre aspectos
de sua história e memória coletiva. c) Protagonismo comunitário; d) Equidade social be-

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neficiando, sempre que possível, a comunidade como um todo. e) Bem comum; f) Trans-
parência sobre as informações ambientais, sociais e financeiras; g) Partilha cultural com
trocas de experiências, saberes e conhecimentos entre diferentes culturas e modos de
vida, sempre que essas oportunidades forem de interesse da comunidade; h) Ser espaço
de formação complementar, proporcionando experiências que estimulem os sentidos e a
reflexão, contribuindo para o aprendizado e para o conhecimento do patrimônio natural
e histórico-cultural existente nas UC e influenciando positivamente experiências futu-
ras; i) Dinamismo cultural e sustentabilidade favorecendo o constante retorno e conti-
nuidade de atividades ali promovidas em consonância com a realidade e as necessidades
das comunidades e da UC.

Figura 13 – Gráfico sobre o que os visitantes fariam para melhorar o PN.

Fonte: autoria própria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa de campo se deu em janeiro de 2019, período de verão e férias esco-


lares, por meio de entrevistas estruturadas com 62 visitantes da sede principal de um
PN. Esse local destaca-se pela grande importância histórica para o país, pelas amplas e
conservadas estruturas de acolhimento que ele oferece e, ainda, pelo belíssimo atrativo
cênico e de diversidade ecológica. As análises dos dados dos entrevistados indicaram os
seguintes destaques: predomínio do sexo feminino (63%); quase 70% com idade acima
de 30 anos; 50% são moradores de bairros do entorno da sede do PN.

Constatou-se também que, devido à localização do parque, uma outra parte sig-
nificativa dos entrevistados (40%) eram de cidades próximas ou pertencentes ao estado
do Rio de Janeiro. Com relação à ocupação, 40% eram profissionais do nível superior, em
especial professores e 16% eram estudantes.

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O gasto financeiro mediano dentro do PN é de USD1 7,6, principalmente com in-
gresso, alimentação e estacionamento. Os visitantes em sua grande maioria (56%) esta-
vam em duplas ou trios. Aqueles que vieram de outras cidades ou estado, informaram
um predomínio de permanência na região de 2 a 5 dias. 76% informaram que gostam e
costumam frequentar lugares com áreas naturais. O lazer foi citado por 80% dos entre-
vistados quanto ao motivo da visita à cidade que se localiza o PN e apenas 14% citaram
turismo. Entretanto, quanto ao motivo da visita ao PN, turismo e ecoturismo totaliza
quase 60%.

O contato com os “recursos naturais” é o que mais se destaca nas respostas dos
entrevistados. Entretanto, a presença da estrutura de acolhimento da sede do PN, como
a piscina natural, restaurante, trilhas, estacionamento, entre outros, também foi ressal-
tado nas respostas como elemento de visitação.

Em relação a sugestões de melhoria do PN, 70% das respostas relatam necessi-


dades na estrutura de acolhimento, destacando-se a questão das placas de sinalização
em geral e das trilhas e atividades de recepção com material informativo e educativo.
Ou seja, para além da informação tão necessária para atendimento de visitação turísti-
ca, os espaços oportunizados nas estruturas naturais e construídas do parque precisam
favorecer a consciência ambiental dos visitantes, implicando sempre que possível, em
participantes ativos no processo de conservação dos recursos naturais e divulgação dos
conhecimentos ali apreendidos.

Os dados indicam que embora o perfil dos visitantes do parque era busca pelo
lazer e aproveitamento de descanso nas férias escolares, evidencia-se a importância
atribuída pelos sujeitos a este espaço, em especial pelas comunidades do entorno. No-
tam-se indícios da carência de estrutura para acolhimento, em especial para ampliar o
trabalho de conscientização proposto pelo ecoturismo de base comunitária que poderia
contribuir enormemente para a formação e engajamento social e para a promoção da
educação ambiental crítica.

Assim como enfatizam Araújo e Isayama (2009), o turismo ao ser definido com
um fenômeno cultural, social e espacial incentiva as pessoas a saírem de seu entorno
habitual e visitarem outros lugares. Desta forma, os Parques Nacionais, podem se consti-
tuírem em redutos de aproximação da convivência das diferentes gerações com os ecos-
sistemas naturais. Neste sentido, os PN vêm assumindo importante papel tanto para a
conservação das espécies e ambientes naturais, quanto para promover a reaproxima-
ção das populações atuais no contato com a natureza. O ecoturismo entendido como
“viagem responsável a áreas naturais, visando preservar o meio ambiente e promover
o bem-estar da população local” tem sido uma das formas de viabilizar esta importante
tarefa dos PN. Assim como, promover por meio de suas estruturas naturais e de acolhi-
mento Educação Ambiental das populações do entorno e visitantes.
1
Dólar americano

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Unidades de Conservação. MIMESIS, V.42, n.2, p. 136-156,
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A Educação Ambiental pode contribuir para a formação de educadores ambien-
tais que promovam o diálogo de saberes entre os conhecimentos científicos existentes
e necessários à conservação dos ambientes naturais às realidades culturais, cognitivas e
econômicas dos contextos sociais do entorno, tal como propõe os programas de volun-
tariado no modelo da Ciência-Cidadã. Este propõe o desenvolvimento de pessoas para
realizar ações e atividades voltadas para a preservação e conservação do patrimônio na-
cional e inclui, entre eles, temas relacionados ao ecoturismo, possibilitando a adesão ao
voluntariado dos parques nacionais.

AGRADECIMENTOS

Ao Parque Nacional da Serra dos órgãos (PARNASO), Instituto Chico Mendes de


conservação da Biodiversidade (ICMBio), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).

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156
COMPREENSÃO DO CONCEITO DE CADEIA ALIMENTAR A PARTIR DE UMA
PROBLEMÁTICA ATUAL DO ALTO RIO BATALHA: ATAQUES DE ONÇA-PARDA
(Puma concolor)
UNDERSTANDING THE CONCEPT OF THE FOOD CHAIN FROM A CURRENT PROBLEM OF
THE HIGH RIVER BATALHA: ATTACKS BY PUMA (Puma concolor)

Lívia Martins Lupino1; Flávia Innocenti2; Adriano Evandir Marchello3; Guilherme do


Amaral Carneiro4.
1
Graduação em Ciências Biológicas, Unisagrado – Bauru – São Paulo – Brasil
liviia.martins@hotmail.com
2
Graduação em Ciências Biológicas, Unisagrado – São Manoel – São Paulo – Brasil
flainnocenti@hotmail.com
3
Docente do Curso de Ciências Biológicas, Unisagrado – Bauru – São Paulo – Brasil
driecologia@gmail.com
4
Doutorando, Unesp - Campus de Bauru - Bauru – São Paulo – Brasil
guiamaral.biologo@gmail.com

Data de envio: 15/04/2021


Data de aceite: 12/05/2021

RESUMO

O ensino da cadeia alimentar é um importante componente das grades curricu-


lares do Ensino Fundamental brasileiro, já que por ela é possível compreender como os
organismos se relacionam e como o fluxo de energia se altera. A onça-parda (Puma con-
color) compõe as 11 espécies presentes na fauna nativa da região da Área de Proteção
do Rio Batalha, rio que pertence à Bacia Hidrográfica do Médio Tietê Superior. Recen-
temente, esse felino tem sido visto nas áreas rurais próximas ao curso do Rio Batalha,
especialmente na região rural de Piratininga, alterando sua dieta natural para uma que
envolve animais domésticos. Com o objetivo de esclarecer a importância da harmonia na
cadeia alimentar e da conservação de animais silvestres, o presente trabalho visou sen-
sibilizar os alunos do 5º ano da escola EMEF Professora Jacyra Motta Mendes por meio
do aprendizado de cadeias alimentares em seu ciclo natural e antropizado, demonstran-
do formas de se evitar o ataque contra animais domésticos, mas deixando claro que a
eliminação da onça-parda não é a solução. O conhecimento prévio dos alunos sobre o
tema foi observado através de um primeiro questionário, antes da aula teórica. A criação
de um banner informativo sobre a onça-parda foi realizada numa atividade expositiva
no museu do Café de Piratininga, com 28 alunos. Após o desenvolvimento do trabalho
e a aplicação de um segundo questionário avaliativo, observamos uma queda na taxa de
erro com relação ao entendimento dos alunos sobre a montagem da cadeia alimentar, a
função das setas e a passagem do fluxo de energia.
Palavras-chave: Ciclo natural e antropizado. Sensibilização. Conservação. Educação
Ambiental.

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LUPINO, Lívia Martins et al. Compreensão do Conceito de
Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
MIMESIS, V.42, n.2, p. 157-170, 2021.
ABSTRACT

The teaching of the food chain is an important component of the Brazilian Ele-
mentary School curriculum since it provides an understanding of how organisms relate
to each other and how the flow of energy changes. The puma (Puma concolor) is one of
the 11 species present in the native fauna of the Protection Area of the Batalha River, a
river that belongs to the Upper and Middle Tietê River Basin. Recently, this feline ani-
mal has been seen in rural areas near the Batalha River, especially in the rural area of
Piratininga, changing its natural diet to one that involves domestic animals. To clarify the
importance of the harmony in the food chain and wild animals’ conservation, this study
aimed to raise awareness among 5th-grade students at the school EMEF Professora Ja-
cyra Motta Mendes by the study of food chains in their natural and anthropized cycle,
demonstrating ways to prevent the attack against domestic animals, but making it clear
that the elimination of the puma is not the solution. Students’ prior knowledge on the
subject was observed through a first questionnaire, applied before the theoretical les-
son. An information banner about the puma was created and used in an exhibition acti-
vity with 28 students at the Coffee Museum in Piratininga. After the development of the
study and the application of a second evaluative questionnaire, we observed a decrease
in the error rate concerning the students’ understanding of the food chain assembly, the
function of the arrows, and the passage of the energy flow.

Keywords: Natural and anthropized cycle. Awareness. Conservation. Environmental


education.

1. INTRODUÇÃO
Pertencente à Bacia Hidrográfica do Médio Tietê Superior, o Rio Batalha tem
sua nascente na Serra da Jacutinga (Município de Agudos, SP), uma formação geológica
(morros com cristas de quase 900 metros de altitude) importante como divisor de águas
do Estado de duas bacias hidrográficas; abrangendo, total ou parcialmente, os municí-
pios de Agudos, Bauru, Piratininga, Avaí, Duartina, Gália, Presidente Alves, Reginópolis
e Uru, tendo em sua extensão 167 km e desaguando no Rio Tietê (CARNEIRO, 2016;
TALAMONI, 2001).

Com o objetivo de preservar os recursos hídricos, a biodiversidade e os remanes-


centes florestais, o Conselho Estadual de Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Con-
sema) criou em 2001 pela Lei Estadual nº 10.773/2001 a Área de Proteção Ambiental
(APA) do Rio Batalha, que abrange os municípios da bacia do Rio Batalha, totalizando
252.635 hectares de área preservada, conforme é apresentado pela Secretaria do Meio
Ambiente do estado de São Paulo.

Segundo o diagnóstico apresentado pela Fundação Florestal, a fauna nativa da


região da APA do Rio Batalha contém 11 espécies de animais de pequeno a grande porte
e entre eles encontramos a onça-parda (Puma concolor), o segundo maior felino do Brasil
(APA Rio Batalha, 2018).

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Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
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Também conhecida como Suçuarana, Puma, Onça-vermelha, Leão-da-montanha
e Bodera, esse animal possui uma alta variedade de habitats e ocorre em todos os biomas
brasileiros. Com características que variam quando adultos em comprimento de 1,5 a
2,75 m, peso de 22 a 70 kg e coloração passando de marrom-acinzentado claro a mar-
rom-avermelhado escuro e com manchas mais claras na parte de baixo do corpo (Su-
mário Executivo do Plano de Ação Nacional para Conservação da Onça-Parda ICMBio,
2018).

Por fazer parte da fauna da região e ter uma área de forrageamento de aproxima-
damente 160 km², relatos sobre ataques de onças a animais domésticos nos municípios
de Piratininga e Iacanga vem se tornando mais comuns, conforme a reportagem feita por
Lígia Ligabue para o Jornal da Cidade de Bauru (https://www.jcnet.com.br/) em 2008. Já
em 2013, o município que notificou a morte de 40 animais domésticos em decorrência
dos ataques predatórios foi Marília, segundo o G1 (https://g1.globo.com/sp/bauru-ma-
rilia/). Em 2017, a reportagem de Vitor Azevedo para o Repórter Unesp (02/fev/2017)
mostrou o projeto “Quintal de Casa” que faz o monitoramento de animais selvagens na
região do Museu do Café de Piratininga , e entre diversas espécies, a periodicidade de
onças-pardas vem aumentando. Os avistamentos e incidência do animal continuam sen-
do registrados no entorno dos municípios, segundo reportagem de Bernadete Druzian
da Folha de São Paulo (27/mai/2018).

Animais como as onças-pardas que são, na maioria das vezes, o topo de uma ca-
deia alimentar, controlam as populações das espécies das quais se alimentam, impedin-
do o excesso populacional das mesmas, mantendo o equilíbrio daquela população e eli-
minando os indivíduos velhos e doentes, evitando até mesmo a propagação de doenças
que podem afetar os animais domésticos e o homem (TERBORGH, 1988; MILLER; RABI-
NOWITZ apud HOOGESTEIJN, 2010).

A cadeia alimentar é um importante tema no ensino de ciências nas escolas bra-


sileiras de Ensino Fundamental, já que é através dela que entendemos as relações entre
organismos, alimentação e o fluxo de energia de um ecossistema, já que todos necessi-
tam de energia para realizar suas atividades (LOPES; ROSSO, 2005).

Segundo Lopes (2006), em um ecossistema os componentes bióticos podem ser


divididos em autótrofos, que são aqueles organismos fotossintetizantes, e os heterótro-
fos, que são representados por organismos que obtêm sua energia se alimentando de
outros consumidores, ou seja, não produzem seu próprio alimento. Essas duas classes de
divisão dos organismos de um ecossistema são representadas por produtores, consumi-
dores e decompositores. Os produtores são os organismos autotróficos e esses servem
de alimento para os consumidores, os heterotróficos.

De acordo com Amabis e Martho (2006), o componente inicial de toda cadeia ali-
mentar, denominado produtor, é no geral um organismo fotossintetizante autotrófico,

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Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
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como algas e plantas, que utilizam fontes de carbono inorgânicas para a produção do seu
alimento, a matéria orgânica.

Os produtores ocupam o primeiro nível trófico de uma cadeia e em seguida temos


os animais herbívoros, que se alimentam desses produtores, ocupando o segundo nível
trófico e também identificados como consumidores primários. Os animais carnívoros
que eventualmente se alimentam de animais herbívoros dominam o terceiro nível trófi-
co e são classificados como consumidores secundários, mas também existem carnívoros
que se alimentam de outros animais carnívoros, e esses ocupam o quarto nível trófico e
são os consumidores terciários (LOPES; ROSSO, 2005).

Os produtores e consumidores que ocupam diversos níveis tróficos de uma ca-


deia, ao morrer, também são consumidos por fungos e bactérias, que são os denomina-
dos decompositores, que decompõem toda a matéria orgânica, reciclando os elementos
químicos que servirão como nutrientes para o crescimento de novos organismos fotos-
sintetizantes, dando início a um novo ciclo alimentar (AMABIS; MARTHO, 2006).

Nos ambientes formais de educação, que segundo Jacobucci (2008) são aqueles
locais que estão formalizados, possuem uma padronização nacional e que sejam rela-
cionados às instituições de educação básica ou de ensino superior, definidas e garanti-
das pela lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ou seja, o ambiente escolar e
seus anexos, como laboratórios e bibliotecas, o tema de cadeia alimentar normalmente é
abordado através de figuras e modelos.

Portanto, nas escolas, o tema é introduzido com imagens de situações reais que
possuem uma sequência unidirecional de transmissão de energia, classificando os níveis
tróficos e seus consumidores, formando um modelo de ensino definido como uma repre-
sentação conceitual esquemática. Essa representação contém primeiramente os vege-
tais, que são a base da cadeia terrestre, visto que estes produzem seu próprio alimento
através da energia luminosa absorvida e servem de alimento para outros animais que
não produzem seu próprio alimento, que nesse modelo aparecem seguidos de setas, as
quais indicam o fluxo de energia da cadeia alimentar (ABEGG et al., 2003).

Outra maneira de apresentar o conteúdo é com a saída dos alunos dos espaços
formais para os não formais, com visitas a centros educacionais. Para Jacobucci (2008) o
espaço não-formal pode ser dividido em duas categorias: instituições, que possuem es-
paço regulamentado e equipes técnicas que realizam as atividades locais, como museus,
e locais que não são instituições, definidos como ambientes naturais sem estruturação
institucional, como praças.

Partindo do princípio educacional e tornando-se um aliado dos espaços não-for-


mais, temos a Educação Ambiental (EA) que é uma evolução de aprendizagem de inúme-
ras linhas de conhecimento em escala local e global formando cidadãos conscientes das

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LUPINO, Lívia Martins et al. Compreensão do Conceito de
Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
MIMESIS, V.42, n.2, p. 157-170, 2021.
interações do meio em que vivemos (JACOBI, 2003 apud PEREIRA et al., 2013), o que
fortalece a relação entre a escola e a ciência (JACOBUCCI, 2008).

A EA funciona, também, como uma ferramenta de controle e prevenção de danos


ambientais. Além da sensibilização, ela fortalece o conceito de responsabilidade com-
partilhada, ampliando e intensificando a fiscalização, ao transmitir o poder de polícia à
sociedade civil, tendo em vista que o meio ambiente é um bem de uso comum e indispen-
sável à qualidade de vida (JACOBI, 2005).

Relacionando os presentes ataques das onças-pardas aos animais domésticos da


área rural dos municípios do entorno do Rio Batalha, é necessária a criação de medi-
das mitigatórias para que haja o equilíbrio entre as espécies, impedindo o surgimento de
outras adversidades que possam reduzir a harmonia daquele ecossistema (TERBORGH,
1988; MILLER; RABINOWITZ apud HOOGESTEIJN, 2010).

A resposta inicial dos proprietários de terras é quase sempre a tentativa de elimi-


nação dos predadores, mas, que segundo Hoogesteijn (2010), pode agravar os ataques
de felinos, visto que sempre há felinos adultos no território que não se alimentam de
animais domésticos, mas como dominam aquele espaço, evitam que outros indivíduos
adultos entrem e passem a se alimentar do gado.

2. MATERIAL E MÉTODOS

2.1 DESCRIÇÃO

A problemática dos ataques de onça-parda abrange diversos pontos na região do


alto do Rio Batalha. Em específico temos a Fazenda São João, onde está localizado o Mu-
seu do Café de Piratininga, que possui em seu território duas nascentes: a integral do
córrego São João e a parcial do córrego Lagoa Dourada, colaboradores importantes para
o Rio Batalha. Além de preservar os recursos hídricos, o local possui remanescentes com
áreas protegidas de Mata Atlântica e de formações florestais estacional semidecidual e
decidual, tornando-se um ambiente rico em flora e fauna (CARNEIRO, 2016).

Dentre os inúmeros projetos e atividades apresentados pelo museu, um deles


proporciona o contato do visitante com alguns animais de ali criados como: galinhas, pa-
tos, leitões e vacas. Por proporcionar a exploração de ambientes naturais e antropizados
no mesmo espaço, o conflito entre os diferentes cenários foi inevitável e a fazenda, como
outros moradores de zona rural distribuídos pela região, registrou ataques de onça-par-
da a animais domésticos. Animais esses que, apesar de não fazerem parte do alimento
natural da onça, são muito atrativos pela disponibilidade e facilidade no abate.

O município de Piratininga, onde ficam localizados o museu e a escola escolhidos

161
LUPINO, Lívia Martins et al. Compreensão do Conceito de
Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
MIMESIS, V.42, n.2, p. 157-170, 2021.
para a elaboração do projeto, segundo o último censo (IBGE 2010), tem uma população
de 12.072 habitantes sendo 1.720 moradores da zona rural. Acomodando completa-
mente a necessidade da população, a escola participante atende 662 alunos do ensino
fundamental I e anos iniciais do Ensino Fundamental EJA, com um ensino regular e com
indispensabilidade de melhora de acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB, 2019).

2.1.1 IDENTIFICANDO O CONHECIMENTO PRÉVIO DOS ALUNOS

A pesquisa e o desenvolvimento das atividades foram feitas com 28 alunos do 5°


ano do ensino fundamental da EMEF Professora Jacyra Motta Mendes. A escola está
localizada no centro do município de Piratininga no interior do estado de São Paulo.

Para a análise inicial do conhecimento dos alunos sobre cadeia alimentar e ata-
ques de onça-parda, foi aplicado um questionário com o total de 5 perguntas abertas,
que de acordo com Chaer, Diniz e Ribeiro (2012), são aquelas que possibilitam que os
alunos tenham liberdade para responder, sem influência de alguma resposta pré-estabe-
lecida, podendo utilizar a linguagem informal.

Como pontos centrais de interesse dos pesquisadores qualitativos, a entrevista


facilita identificar a maneira que o sujeito atribui os novos conhecimentos para si, levan-
do em consideração as circunstâncias e suas diversas proporções, indicando se é neces-
sária a aproximação do educador ou mesmo do pesquisador, com caráter participativo,
para direcionar essa aprendizagem, pois os alunos costumam aplicar significados coti-
dianos no processo educativo (ANDRÉ, 2013).

O questionário continha perguntas sobre o conhecimento dos alunos à onça-par-


da, se os mesmos já haviam presenciado alguma pessoa narrando o ataque do animal
selvagem a algum animal doméstico e por último, uma pergunta sobre qual o conheci-
mento de cadeia alimentar e um esquema, que foi enumerado por eles, para demons-
trar a ordem de tal cadeia. O documento foi entregue aos alunos duas semanas antes da
professora da turma iniciar o tema de cadeia alimentar, para que os alunos levassem o
questionário para a casa e respondessem juntamente com seus responsáveis.

2.1.2 CONHECENDO O CONTEÚDO

Utilizando os textos e recursos da apostila didática, a professora fez uma aula ex-
positiva demonstrativa para os alunos apontando os principais tópicos sobre o assunto
de cadeia alimentar, explicando seus componentes, níveis e também sobre como fun-
ciona o fluxo de energia, sempre buscando uma linguagem adequada com referências
cotidianas para melhor compreensão dos alunos. Como um dos exemplos para consu-
midores secundários e/ou terciários, ela falou sobre a onça-parda, qual seu ciclo natural

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LUPINO, Lívia Martins et al. Compreensão do Conceito de
Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
MIMESIS, V.42, n.2, p. 157-170, 2021.
de alimentação, depois como a interferência do homem está afetando o comportamento
desse animal em vários aspectos, tornando o ciclo antropizado cada vez mais frequente.

Para dinamizar e usar referências de um ambiente próximo, os alunos foram le-


vados até o Museu do Café de Piratininga, onde foram recebidos pelos monitores do lo-
cal que contaram um pouco da história e fundação da fazenda, quais são os trabalhos e
projetos desenvolvidos, e como a problemática dos ataques de onça tem afetado a di-
nâmica do local. Os alunos também foram levados até as trilhas de uma mata fechada
com vegetação de Mata Atlântica estacionária semidecidual, em torno do córrego, onde
puderam conhecer um habitat preservado, além de observarem marcas de unhas nas
árvores feitas pela onça-parda, afirmando a presença e a ocorrência frequente do animal
ali, vivenciando as condições naturais de um ecossistema.

Foi utilizado e apresentado um banner, como complemento da aula de cadeia ali-


mentar, que continha características da onça, relembrando seu ciclo natural de alimenta-
ção, as ameaças que ela vem sofrendo e como isso influência na sua dinâmica, quais são
as medidas preventivas que podem ser adotadas para evitar o conflito entre as espécies
e ataques aos animais domésticos e por quê é importante a conservação do animal.

2.1.3 AVALIANDO O APRENDIZADO ATRAVÉS DE QUESTIONÁRIOS

Como avaliação desse conjunto de atividades, foi aplicado um segundo ques-


tionário no mesmo formato do anterior, com outras 5 perguntas abertas, que permitiu
identificar como funciona o ciclo de energia de uma cadeia alimentar, a possibilidade de
diferenciação do ciclo natural e antropizado que incluem a onça-parda, qual ou quais
ameaças ela sofre por influência do homem, citar uma das medidas preventivas de ata-
ques de onça aos animais domésticos e por quê sua conservação é importante para o
equilíbrio do ecossistema.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

O primeiro questionário foi aplicado para os 28 alunos presentes na sala de aula,


contendo cinco questões abertas, nas quais os alunos tiveram a oportunidade de rela-
tar seu conhecimento sobre a onça-parda, se já haviam presenciado pessoas narrando
algum ataque a algum animal doméstico e também enumerar um esquema de cadeia ali-
mentar.

Na primeira questão, era questionado se o aluno conhecia a onça-parda e 100%


deles responderam que sim, o que facilitou a abordagem sobre o papel da onça na cadeia
alimentar e também sua importância na natureza.

A segunda e terceira questões, as quais indagavam se já haviam presenciado ou

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LUPINO, Lívia Martins et al. Compreensão do Conceito de
Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
MIMESIS, V.42, n.2, p. 157-170, 2021.
ouvido pessoas narrando ataques a algum animal doméstico, 53,5% dos alunos responde-
ram que já viram a onça-parda ou já ouviram pessoas relatando sobre ataques a animais
domésticos e 46,4% responderam que nunca viram e nunca ouviram relatos de ataques,
possivelmente devido a fragmentação do hábitat ou a sua diminuição, como resultado da
expansão das áreas urbanas e rurais, força os animais silvestres, como as onças, a ir em
busca de recursos alternativos à sua sobrevivência, como alimentação, reprodução ou
mesmo a dominância de outros territórios (HOOGESTEIJN, 2010).

Ao buscar novos ambientes, tentando se distanciar do meio urbano, a onça-parda


depara-se com zonas rurais que muitas vezes contém animais domésticos como, reba-
nhos de bovinos, suínos, caprinos e aves. Pensando no fato que algumas dessas espécies,
há mais de 9.000 anos, estão sendo domesticadas pelo homem, podem ter passado por
um processo de perda de comportamento anti-predador, tornando-se presas incomuns,
porém facilmente abatíveis para as onças-pardas chamadas de generalistas e oportu-
nistas quando se trata de hábitos alimentares (NOWELL; JACKSON, 1996 apud FUINI,
2016).

A quarta questão buscava saber se o tema “cadeia alimentar” já havia sido estuda-
do por eles, 89,2% das crianças responderam que estavam iniciando os estudos, 7,14%
responderam que já haviam estudado e 3,57% que não haviam estudado, resultado que
confere com os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1997, no qual o tema “Ciências
Naturais”, dividido em blocos temáticos, são estudados durante o segundo ciclo ensino
fundamental, do 4º ao 5º ano.

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), todos os esta-
dos e municípios deveriam criar seus próprios currículos, sendo criado então, o Currículo
Paulista, no qual o tema de cadeia alimentar já está inserido no 4º ano do Ensino Fun-
damental, apresentado na temática “Vida e Evolução”. O Currículo Paulista passou por
avaliações durante o ano de 2019 e será efetivamente implantado em 2020 em todas as
escolas do Estado de São Paulo.

Já em relação ao segundo questionário, aplicado com 27 alunos após a aula sobre


cadeia alimentar e a atividade prática feita no Museu do Café de Piratininga, a segunda
questão continha duas imagens, uma delas com o ciclo alimentar natural da onça-par-
da e outra com o ciclo antropizado com a presença de animais domésticos, das quais os
alunos deveriam identificar qual entre os dois ciclos de cadeia alimentar era o natural,
70,3% dos alunos assinalaram o ciclo correto, 18,5% erraram e 11,1% das respostas res-
tantes não foram possíveis de identificar. A maioria das respostas serem corretas se deve
ao fato de que os alunos, segundo Hewson e Hewson (1988), usam o conhecimento que
já possuem, seja por experiências ou por conceitos, e assimilam as informações novas
de maneira que lhes façam sentido, sendo nesse caso, o pensamento de que os felinos
não tem como hábito natural se alimentar de animais domésticos, e que isso só aconte-
ce quando há alguma perturbação em seu ambiente natural, como a diminuição de suas

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LUPINO, Lívia Martins et al. Compreensão do Conceito de
Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
MIMESIS, V.42, n.2, p. 157-170, 2021.
presas naturais.

As demais perguntas do segundo questionário aplicado, relacionadas as ameaças


e preservação da onça-parda, foram respondidas corretamente, mas de maneira particu-
lar, de acordo com o conhecimento dos alunos diante das atividades realizadas.

A quinta e última questão do primeiro questionário abordava a montagem da ca-


deia alimentar, que consistia em colocar setas na direção correta nas imagens contidas,
que envolve a direção da passagem do fluxo de energia. A mesma questão foi repetida
no segundo questionário, mas com apenas 27 alunos presentes em sala de aula, sendo
apresentados nas Figuras 1 e 2.

Figura 1 – Resultado para a questão sobre o fluxo de energia da cadeia ali-


mentar proposta no questionário 1.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2019).

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LUPINO, Lívia Martins et al. Compreensão do Conceito de
Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
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Figura 2 – Resultado para a questão sobre fluxo de energia da cadeia alimentar
proposta no questionário 2.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2019).

Após a aula teórica e atividade prática realizada no Museu do Café de Piratinin-


ga, a taxa de erro em relação ao entendimento dos alunos sobre a montagem da cadeia
alimentar, a função das setas e a passagem do fluxo de energia diminuiu de 71,4% do
primeiro para 51,8% no segundo questionário, sendo que no último, conquistou-se uma
taxa de 40,7% de acertos.

De acordo com a teoria psicoeducativa de Ausubel (1982), o indivíduo possui uma


estrutura cognitiva, que é responsável pela aquisição, armazenamento e organização de
pensamentos, ideias e experiências no seu todo, e a aprendizagem, dividida em signifi-
cativa, onde a pessoa aplica um significado as novas informações absorvidas a partir do
seu pensamento prévio e de fato assimila o assunto, ou apenas decora o conteúdo que é
esquecido logo após a avaliação, a chamada aprendizagem mecânica, na qual, não existe
relação entre a estrutura cognitiva e o novo conhecimento.

Pensando nisso, vários fatores que podem ter influenciado as respostas das ati-
vidades, como a seleção das informações que tem significado ou não para si, falta de
atenção dos alunos durante a aula ou até mesmo durante a atividade prática, questões
sociais, a não apreciação do aluno em relação ao tipo de atividade, também se conside-
ra que, segundo Da Silva, Ferreira e Vieira (2017), professores com formação específica
contribuem para que o tema seja trabalhado e entendido de uma maneira mais profunda.

De acordo com os dados do Censo Escolar de 2018, dos professores atuantes nos

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LUPINO, Lívia Martins et al. Compreensão do Conceito de
Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
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anos iniciais do ensino fundamental, 77,3% possuem grau acadêmico de licenciatura, o
percentual de professores com formação superior de licenciatura que ministram disci-
plinas na mesma área de formação é equivalente a 51,7% nos anos finais do ensino fun-
damental, o que pode limitar o ensino de diversas disciplinas.

A fim de facilitar esse processo de aprendizado, o professor deve levar em consi-


deração o conhecimento prévio dos alunos, para posteriormente ministrar as atividades
levando esse conhecimento em consideração. Partindo do pressuposto de que, assim
como os alunos, professores também constroem suas ideias e concepções de acordo
com o que vivem e conceitos a que já foram abordados, claro que, de níveis diferentes, se
reforça a necessidade de professores específicos para o ensino de Ciências (HEWSON P.,
HEWSON M., 1988; DA SILVA, FERREIRA, VIEIRA, 2017).

De outra perspectiva, também temos algumas concepções errôneas feitas por


parte dos alunos, os chamados equívocos, sejam eles constituídos a partir de algum tipo
de conhecimento prévio ou mesmo que tenham construído um pensamento cognitivo de
cadeia alimentar através de suas experiências com o mundo físico (VOSNIADOU; IOAN-
NIDES, 1998), que vão contra os fatos científicos (ALPARSLAN et al., 2003; BAHAR,
2003 apud YUCEL e ÖZKAN, 2014), não conseguindo assimilar a complexidade que exis-
te dentro de uma cadeia ou teia alimentar, tendo como exemplo, a ideia de que os animais
que estão no topo da cadeia conseguem se alimentar de todos os outros indivíduos que
estão abaixo dele (MUNSON,1994), e também que, grande parte dos alunos não tem co-
nhecimento sobre a transferência de energia entre os organismos vivos, portanto não
entendem adequadamente o fluxo de energia presente na cadeia alimentar (GRIFFITHS
e GRANT, 1985; HOGAN, 2000; ÖZKAN et al., 2004; YÖREK et al., 2010 apud YUCEL e
ÖZKAN, 2014).

Diversas técnicas para identificar as estruturas cognitivas e concepções erradas


já foram desenvolvidas, como as perguntas abertas, que possibilitam demonstrar essa
relação com a ecologia (ADENEYI, 1985; BREHM et al, 1986; BISHOP e ANDERSON,
1990 apud YUCEL e ÖZKAN, 2014).

Conforme Tekkaya (2002), antes de serem corrigidas, essas concepções errôneas


precisam ser identificadas em sua fase inicial, usando formas de avaliação, como questio-
nários ou discussões que podem ocorrer durante as aulas e atividades, possibilitando os
alunos de expressarem suas ideias.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este trabalho foi possível analisar o conhecimento prévio dos alunos com
relação à temática de cadeia alimentar, tendo como exemplo a problemática de ataques
a animais domésticos feitos pela onça-parda. Após as aulas lecionadas pela professora

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Cadeia Alimentar a Partir de Uma Problemática Atual do
Alto Rio Batalha: Ataques de Onça-Parda.
MIMESIS, V.42, n.2, p. 157-170, 2021.
em sala de aula e as atividades práticas realizadas fora do ambiente escolar, foi possível
constatar a compreensão dos alunos sobre a diferença entre a cadeia alimentar natural
e a antropizada, houve uma diminuição na taxa de erro para o fluxo de energia entre os
animais e também o aprendizado sobre as ameaças, formas de evitar os ataques, conser-
vação e importância da onça-parda em seu ambiente natural.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos primeiramente ao nosso orientador e coorientador por todo supor-


te, aprendizagem e paciência, a escola EMEF Jacyra Motta Mendes pela oportunidade
de trabalho com a educação infantil e ao Museu do Café de Piratininga pela recepção e
disponibilização do espaço físico para complementação do trabalho.

Agradecemos imensamente uma a outra, por todos os momentos vividos nesses


anos e principalmente pela dedicação e comprometimento.

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AMSELLE, J. L; M’BOKOLO, E. (Orgs.). No centro da etnia: Etnias, tribalismo e Estado
na África. RJ, Brasil, 2017.
João Vitor Olímpio[1]

A obra “No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África” faz parte de uma
coletânea intitulada “Coleção África e Africanos”, formada por três livros. O objetivo
principal dessa trilogia é trazer ao mercado brasileiro uma produção atualizada sobre a
temática, visando atender aos interesses do público em geral, que tem se mostrado ávido
por conhecer o continente africano, repleto de histórias, povos e culturas.

A obra é organizada por Jean-Loup Amselle, antropólogo e etnólogo francês, di-


retor de estudos eméritos da EHESS (École des hautes études en sciences sociales) e ex-e-
ditor-chefe dos Cahiers d’études africaines, uma revista acadêmica de acesso aberto que
aborda tópicos das ciências sociais relacionados à África, às Índias Ocidentais e à diás-
pora africana, e pelo historiador Elikia M’Bokolo, atual diretor dos Estudos na EHESS,
membro do Comitê de redação dos Cahiers d’études africaines e produtor na Radio Fran-
ce Internacional de Memória de um Continente, emissão semanal de História de África.
Conta também com outros autores de renomes quando o assunto é África, tais como
Jean-Pierre Dozon, Jean Bazin, Jean-Pierre Chrétien e Claudine Vidal.

Amselle é o responsável por cunhar o termo antropologia de conexões (a maneira


como uma sociedade se alimenta de diferentes influências) e desenvolve pesquisas so-
bre temas como etnia, identidade, cruzamentos, multiculturalismo, pós - colonialismo e
subordinatismo, além do estudo de arte africana contemporânea. “No centro da etnia”
trabalha com o conceito de que a “etnia” seria mais uma invenção colonialista, resultado
de um fenômeno de “reapropriação” cultural. O termo é muito utilizado e analisado ao
longo do texto, elaborado em sua articulação entre a história escrita e oral.

No primeiro capítulo, o autor ressalta a importância da definição do conceito de


“etnias” a partir dos espaços em que ele é analisado. Afirma que a perspectiva étnica está
no centro da antropologia e que, ao longo dos últimos anos, o entusiasmo por parte da
maioria dos antropólogos é de caráter exagerado, distante da realidade, pois foi cunhado
sob a perspectiva do colonizador. Destaca que o termo “etnias” surgiu na língua francesa
nos séculos XVI e XVII e equivalia ao de “tribo”. A aparição e as especificações tardias
dos conceitos “tribos” e “etnias” acabam gerando discussão quando analisados entre os
períodos do colonialismo e do neocolonialismo, respectivamente.

Para repensar sobre o conceito, o autor destaca a necessidade de atrelar “etnia”,


“tribo” e “espaço pré-colonial”. O espaço pré-colonial, aquele de antes da chegada dos
colonizadores, foi o período em que as sociedades locais viviam ao seu modo e longe de
serem fechadas entre si, estavam interligadas e se auto influenciavam. O espaço Pré-Co-
lonial abrangia toda uma estrutura social, como os espaços de troca (comércio), estatais

171
AMSELLE, J. M’bokolo, E. (Orgs.), No Centro das Etnias. RJ,
BRASIL, 2017 - João Vitor Olímpio

(políticos), linguísticos, religiosos e culturais. É por isso que cada comunidade local era
concebida com o efeito de uma rede de relações.

No segundo capítulo destaca-se o convite feito pelo autor do texto Jean-Pierre


Donzon para revisar a imagem da diversidade étnica e cultural africana, que correspon-
de a algo como entidades regionais, ou seja, um movimento social de referências tradi-
cionais, que com a fragilidade e incipiência dos Estados africanos, reconfigura, acima de
tudo, o espaço geopolítico. Donzon apresentar o “tribalismo” como criação da coloni-
zação europeia para caracterizar as entidades étnicas pré-coloniais, marcadas por seus
aspectos originários e espontâneos. O autor referência a tribo Bete, famosa pela arte das
máscaras Nyaba e que também esculpe estátuas elegantes, cujo estilo foi influenciado
pelos povos Guro, Yaure e Senufo.

Já no terceiro capítulo a história passa a ser mais focada em um povo conhecido


como “os Bambaras”. Segundo sua própria descrição, o autor Jean Brazin define os bam-
baras como “um conjunto heteróclito de gentes que não tem nada em comum” (p.123),
ou seja, como produto de sua própria história, diferentemente do conceito de povo ou
de nação. A etnia efetivamente resulta de uma operação preliminar de classificação, e o
autor destaca como os Bambaras foram considerados um povo feroz e bárbaro, muitas
vezes considerados como “raça conquistadora”. Chama atenção para o contexto de defi-
nição da imagem sobre os Bambaras, realizada a partir da ótica europeia de “etnólogos”
com um ideal exigente e rigoroso, cego e surdo a qualquer denominação apresentada an-
teriormente, preocupados em classificar, da melhor forma possível, o uso dos costumes
observados por eles.

O quarto capítulo escrito pelo historiador Jean Pierre Chrétien retrata a existên-
cia das etnias hutu e tutsi, em Ruanda e no Burundi, interligadas em um estranho feixe
de evidências. Essas etnias não se distinguiam pelo espaço geográfico ocupado, nem pela
língua, cultura, história. O escritor segue tratando das diferentes formas estereotipadas
construídas sobre as histórias desses dois povos. Outra parte citada por ele diz respeito
à permanência de uma “herança raciológica”, termo do século XIX deixado pelos euro-
peus no continente. Essa teoria estabelece retratos contrastados dos negros da “África
das trevas” e do misterioso Oriental que ali teria ido se aventurar. São nestas circunstân-
cias que se forjaram, naquele momento, reflexões antropológicas.

É em virtude dessa visão considerada à época como “científica” que alguns auto-
res propuseram uma reescrita de sua história contada não apenas pelos africanos, mas
também por aqueles que detinham a essência de reescrever uma verdade sobre eles. As
análises étnicas em Ruanda e Burundi vincularam-se claramente a uma interpretação
do poder dito como “tradicional”, assim concebido a partir de conceitos europeus como
raças inferiores e superiores. O autor adentra à discussão étnica dos povos, na localidade
de Ruanda e Burundi, no intento de traçar uma nova epistemologia dos fatos.

172
AMSELLE, J. M’bokolo, E. (Orgs.), No Centro das Etnias. RJ,
BRASIL, 2017 - João Vitor Olímpio

Claudine Vidal, no quinto capítulo, trata da “metafísica das etnias”, teoria que dis-
cute fatos que ocorreram em Ruanda. “É significativo que algumas formas racistas de
ódio tenham sido desenvolvidas nos meios mais capazes, em princípio, de objetivar a he-
rança do passado, e de analisar os componentes sociológicos e históricos das desigual-
dades anteriores” (p. 217).

No sexto e último capítulo é analisado a recorrência daquilo que se convencionou


chamar de “separatismo Katanga”, uma das mais importantes constantes da vida política
Zairense. M’Bokolo, autor do texto, destaca que esse momento vem desde a década de
1950, ou seja, desde o momento em que a competição política moderna foi introduzida
naquilo que era então o Congo belga. Reforça que há de haver uma longa duração, no
que se trata de etnias, estado e região. Segundo Elikia M’Bokolo, os 55 grupos distingui-
dos correspondem a realidades objetivas e subjetivas muito heterogêneas. Procura refe-
renciar em tabelas e mapas a imagem de permanência e estabilidade desse povo. Desse
modo, destaca a importância de novas reflexões sobre o racismo e a desconstrução de
uma história africana vista como rudimentar, precária e miserável, estereótipo criado ao
longo dos últimos séculos.

Esta obra é recomendada para estudantes de História e para todos aqueles inte-
ressados em uma abordagem crítica e renovada da história da África. Os textos reunidos
nesta obra, que se tornou um clássico desde sua publicação em 1985, evidenciam análi-
ses de alcance geral com estudos de casos e procuram questionar significados de concei-
tos considerados controversos a partir da situação africana. Com efeito, foi importante
repensar as noções de etnia e de tribo, cada vez mais associadas a outras noções como a
de Estado e de nação. Foi necessário repensar formas de classificação por demais esque-
máticas e reducionistas.

Este livro é essencial para entender o modo como conceitos antropológicos, o de


etnia e tribo, se agregaram à ideologia colonial na África, prestando-se a manipulações
na política de identidades dos coletivos. Não se trata de negar o conceito de etnia, mas
de recolocar o seu papel na perspectiva histórica e discutir como foi construído por ato-
res sociais que forjaram tanto o conceito como o processo identitário em um contexto
de formação dos Estados nacionais. É uma obra muito importante para a compreensão
das dinâmicas entre identidade, autoctonia, manipulações sociogênicas, Estado e nação.

[1]
Graduando em História no Centro Universitário Sagrado Coração – Unisagrado/Bauru-SP. RESENHA
Realizada para a disciplina de História da África II sob a orientação da Prof. Dra. Lourdes M G C Feitosa.

173
VELLOSO, Leonardo Meliani. Um Maravilhoso Imaginário: Cartografia e literatura na
baixa Idade Média e no Renascimento. 1 ed. Jundiaí, São Paulo, Paco editorial, 2017.

Gelson Teodoro De Souza Junior e Thiago Casavechia De Assis1

No livro Um Maravilhoso Imaginário, o historiador Leonardo Meliani Velloso nos


faz embarcar numa viagem para conhecer o imaginário dos povos que viveram no medie-
vo.

O livro é organizado em 4 capítulos, subdividido em partes. Na primeira, intitulada


Literatura de Viagens, temos a “subdivisão” - Relatos de viagem e livros de cartografia, que
reflete a respeito do conceito de literatura de viagem. Segundo o texto, este é um gênero
literário específico sobre viagens, textos, cartas e romances como a Ilíada e Odisséia, de
Homero, que contém espaços geográficos específicos como parte fundamental de seu
entendimento. Esse modelo de relato influenciou e formou a base para o imaginário dos
habitantes da Europa, Ásia e África.

Na outra, Relatos de Viagem, é tratado a importância dessas andanças para o ho-


mem da época. Seja por guerra, peregrinação religiosa ou como um mercador, era comum
que homens andassem por distâncias enormes, e isso levou ao aumento da procura por
conhecimentos geográficos. Os livros gerados a partir dessas viagens, quando escritos
por pessoas comuns, enquadram somente o cenário dessas viagens em si, enquanto os
que eram escritos pelos sábios, religiosos e eruditos, eram considerados obras relacio-
nadas à geografia. O autor também destaca o valor da escrita numa sociedade oral, visto
que aqueles que tinham seus livros eram tratados como “Autoridade”.

No Livro de Maravilhas, somos introduzidos à discussão dos termos maravilhoso


e fantástico. Para nós, maravilhoso é aquilo que nos fascina, que conseguimos encon-
trar uma resposta, enquanto o fantástico, também fascinante, não possui uma resposta
lógica, como o significado de bruxas e animais do folclore ou de mitologias. No medievo
não havia essas diferenciações, por isso os Livros de maravilhas contavam histórias fan-
tásticas que os escritores escutavam em suas viagens, como o reino de Preste João ou os
“animais” acéfalos. O autor também fala que, com o passar do tempo e com o aumento da
desconfiança, esses textos deixaram de ser reconhecidos como fontes, mas que em dias
atuais, por conta da redefinição do conceito de fontes, são usados com bastante frequên-
cia.

No segundo capítulo denominado Cartografia, tomamos conhecimento dessa arte


apresentada como uma das mais antigas e encontrada até mesmo em pinturas rupestres.
Na sequência, há uma discussão sobre a importância da cartografia para a humanidade,
1
Resenha elaborada pelos graduandos do terceiro ano de História do Centro Universitário Sagrado Cora-
ção sob a orientação da Profª Drª. Lourdes M. G. C. Feitosa.

174
VELLOSO, Leonardo Meliani. Um Maravilhoso Imaginário:
Cartografia e literatura na baixa idade média e no renascimento.
1 ed. Jundiaí, São Paulo, Paco editorial, 2017 - Gelson Teodoro
De Souza Junior e Thiago Casavechia De Assis

assim como os problemas e graças dessa arte. O mapa não é idêntico ao mundo, ele é o
reflexo de cada época e de cada sociedade; o mapa é um símbolo receptáculo do imagi-
nário. O autor enfatiza que os mapas medievais eram apresentados com representações
bíblicas e limitavam-se ao ecúmeno. Ainda ressalta a importância da cartografia para a
questão do poder, visto que conhecer o terreno, a geografia do lugar, significava ter van-
tagem sobre outras nações. Portanto, a cartografia é abordada como indispensável ao
longo da história.

Na subdivisão seguinte, Uma pequena história da cartografia, Velloso continua a


tratar das tradições da cartografia, dividindo as produções de mapas dessa época em
três áreas. A primeira é aquela que envolve os diagramas circulares, bíblicos, famosos na
Alta Idade Média. Um exemplo é o de estilo TÔ, representando cada continente como
sendo de cada um dos filhos de Noé e Jerusalém no centro e voltada para Leste, onde
estaria o paraíso. O segundo envolvia produções com maiores detalhes, situando-se en-
tre os séculos IX e XII. Distanciava-se da geografia conhecida, mas ainda tinha muitos
dos traços maravilhosos e abordava temáticas cristãs, apesar de que, mesmo em meio a
esse padrão, ainda aparecessem aqueles com temáticas mais árabe. Por último, no final
do século XII começaram a surgir os mapas marinhos, resultados dos relatos dos viajan-
tes e dos dados coletados. Eram mapas mais “geográficos”, com medidas e tamanhos que
facilitavam o manuseio e eram condizentes com as costas dos continentes. Eram usados
como base para navegação de cabotagem e, com o auxílio dos instrumentos de navega-
ção, revolucionaram o modo de viajar. O autor ainda trata do primeiro globo terrestre
chamado erdapfel já em 1492, criado pelo alemão Martin Behain. O modo religioso e ma-
ravilhoso de produção de mapas chegou ao fim com as anotações de Ptolomeu e o mapa
de Mercador, que levaram ao fim definitivo da cartografia com referências bíblicas.

Na terceira parte, Imaginário e Representação, o autor começa com uma


discussão sobre aquilo que, dentro do modelo maravilhoso, trazia terror aos medievos.
O imaginário seria aquilo que o homem personificava em sua mente acerca de determi-
nado tópico, ou seja, poderia ser fascinante ou não. Nesse ponto, ele apresenta o medo
terrível que os marinheiros e europeus tinham do mar, vendo-o como um portal para as
criaturas mais terríveis do mundo. Pelo mar é que teria vindo a peste negra, pelo mar
chegavam guerreiros para tomar as terras, pelo mar vinha o demônio. Além disso, no
mar habitavam os monstros, os mais terríveis e perversos que podiam imaginar. Nesse
ponto,Velloso apresenta quais culturas e no que cada uma delas influenciou a construção
do imaginário medieval. Tais culturas seriam, no caso, a Greco-Romana, a Germânica-Es-
candinava, a Galego-Bretã e a Judaico-Cristã.

A primeira, a Greco-Romana, é a clássica, que lhes apresentou as histórias sobre


heróis, como os escritores Homero, Hesíodo, Heródoto e Virgílio. A próxima, Germano-
-Escandinava, embora trate de dois grupos próximos cultural e religiosamente, possuía
uma diferença fundamental visto que a escandinava mantinha maior afinidade com os

175
VELLOSO, Leonardo Meliani. Um Maravilhoso Imaginário:
Cartografia e literatura na baixa idade média e no renascimento.
1 ed. Jundiaí, São Paulo, Paco editorial, 2017 - Gelson Teodoro
De Souza Junior e Thiago Casavechia De Assis

mares, ao ponto de, como dito no texto, chegar na América antes mesmos que os espa-
nhóis. Já os germânicos conservavam um sentimento maior de similaridade com a ter-
ra. A Galego-Bretã, envolvendo os celtas e os gauleses, possuíam uma cultura voltada
para o fantástico e contribuía com as histórias sobre fadas e monstros, mas também com
exemplos de fábulas sobre batalhas, como nos casos de Carlos Magno e suas batalhas
contra os Mouros, que eram representados como figuras monstruosas (VELLOSO,2017)
na região compreendida pela atual França. Isso é demonstrado nas canções francesas
escritas no decorrer da idade média como, por exemplo, a Gesto du roy, que gira em torno
de Carlos Magno e seus cavaleiros (VELLOSO, 2017, p.80).

A Judaico-Cristã, em particular os textos do antigo testamento, trouxe influên-


cia nos mapas, como dito antes dos TO, e abordava histórias sobre gigantes bem como
sobre os milagres feitos por Cristo. Todas essas culturas influenciaram na construção de
um imaginário medieval para os europeus. Os grupos orientais, que envolviam os árabes
e asiáticos, não teriam grande influência cultural sobre o imaginário europeu, segundo
Velloso, mas, de todo modo, os seus territórios eram reconhecidos como limites do mun-
do e lugares habitados pelos monstros.

Do mesmo modo que Le Goff, em Imaginário Medieval, o autor também escreve


um compilado com monstros, povos e maravilhas construídos com a noção do fantástico.
Em sequência, apresentaremos, de forma resumida, informações sobre cada um desses
monstros, e esclarecendo como se modelou o seu entendimento na atualidade.

Começamos com os gigantes. Esses seres fantásticos são presença constante em


basicamente todas as culturas, seja nórdica ou cristã. Uma das imagens fantasiosas era a
de homens que possuíam particularidades. Encontrados em ilhas espalhadas pelo mun-
do, eles eram humanos com um só pé, ou orelhas gigantes, ou acéfalos, que não tinham
cabeça, mas apresentavam uma boca em forma de ferradura no peito e tinham seus olhos
nos ombros.

Também os animais fantásticos compunham esse imaginário, dando atenção à fê-


nix, presente em diversas culturas como uma criatura de penas vermelhas que ressurge
das próprias cinzas. Outras criaturas imaginadas teriam resultado da mistura de distintos
animais reais, citados com o termo Mischwesen, palavra alemã que significa literalmen-
te mistura, o que permite a inclusão de inúmeras criaturas que entram nessa categoria,
como o Grifo (uma mescla de leão e águia), a Quimera (um ser com uma cabeça de leão e
uma de cabra, cuja cauda era uma serpente), o Monoceros (que era um ser com corpo de
cavalo, cabeça de cervo, patas de elefante e cauda de javali), a Manticora (um monstro
com corpo de leão, asas de dragão, cauda de escorpião e rosto humano) e o Cocatrice
(com corpo de réptil e cabeça e pés de galo). Os Dragões eram outra constante presentes
em todas as culturas, tendo como detalhe em comum sua ganância pelo ouro. Um fato
engraçado a se notar é que em algumas lendas eles eram inimigos de elefantes. Fora isso,
é preciso ressaltar sua presença também como um elemento marinho, associado à enor-

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VELLOSO, Leonardo Meliani. Um Maravilhoso Imaginário:
Cartografia e literatura na baixa idade média e no renascimento.
1 ed. Jundiaí, São Paulo, Paco editorial, 2017 - Gelson Teodoro
De Souza Junior e Thiago Casavechia De Assis

mes serpentes presentes em diferentes culturas. No caso da cultura cristã, na passagem


do Apocalipse, tal figura também representava o próprio Diabo.

Na sequência de suas descrições, Velloso parte para os seres metade humano e


metade animais, como o minotauro, o centauro e a sereia, sendo essa última interpreta-
da de duas formas distintas, uma voltada à figura das harpias, com corpo de mulher e asas
de águia, e a outra similar à figura clássica de sereia, com corpo de mulher e rabo de peixe.
Ele trata também dos cinocéfalo, que eram humanos que tinham a cabeça de cachorro.
Nessa parte ressalta a cultura egípcia, na qual a maioria dos deuses possuía imagens an-
tropomórficas como Anúbis e Hapi.

Cita as árvores com frutos maravilhosos, que podiam ser plantas que serviam de
fonte infinita de alimento, ou o caso da árvore do fruto proibido da Bíblia. Também é
tratado dos próprios contos europeus que tiveram influência no continente, sem a in-
fluência do exterior. O autor ainda discorre sobre os lugares fantásticos, como o rei-
no das amazonas, mulheres guerreiras que eram mercenárias e possuíam um governo
totalmente feminino, assim como Atlântida, uma cidade consumida pela fúria do deus
dos mares, Poseidon. Destaca o reino de Preste João, que foi buscado até o século XVI,
principalmente por Portugal. Esse reino era utópico, com boas terras, inúmeras riquezas
e um exército grandioso. Por fim, são apresentadas as ilhas fantásticas, como a de São
Brandão, onde os rebanhos prosperavam e as terras eram boas. Essas ilhas ficariam no
extremo oriente, ou talvez nas partes “novas”, como a América.

No último capítulo, O sentido do fantástico, Velloso volta para as fontes primárias


para que possamos entender a representação no imaginário (VELLOSO, 2017) e a pers-
pectiva dos europeus acerca do “outro”, além de destacar como cada um podia ter diver-
sas diferenças. O primeiro ponto é o de entender o outro como totalmente oposto àquilo
que eles tinham por certo; já o segundo ponto trataria da comparação que eles fazem
de si mesmos. O primeiro livro indicado como exemplo é As viagens de Jean De Mandevil-
le, dividido em três partes: Homens e mulheres, animais e plantas e os cenários. Velloso
mostra a construção do imaginário e do oposto, mesmo comparando esse título com o
outro livro de referência: o Livro Del Conocimiento.

Em As viagens de Jean de Mandeville, através da análise de Velloso, o que chama


a atenção é o cuidado que o escritor (Mendeville) tem a cada tema apresentado. Em Ho-
mens e Mulheres, Velloso disserta muito sobre a religião dos povos que Mandeville visi-
tou, como o islamismo e os Hindus. Trata também da aparência de cada povo, seja os hu-
manos tidos como “tradicionais” ou os “maravilhosos”, e ainda descreve os costumes de
cada um. Mandeville, segundo Velloso, também dá atenção ao estranhamento que essas
culturas trazem aos europeus, mas sempre respeitando suas religiões, conforme mais
próximas eram dos costumes cristãos. Uma exceção eram os Judeus, visto que o autor
os chama de “sem lar” e conta de dez comunidades que estavam presas em uma região
montanhosa pelo próprio Deus. Fala também sobre os países que visitou, como a Etiópia,

177
VELLOSO, Leonardo Meliani. Um Maravilhoso Imaginário:
Cartografia e literatura na baixa idade média e no renascimento.
1 ed. Jundiaí, São Paulo, Paco editorial, 2017 - Gelson Teodoro
De Souza Junior e Thiago Casavechia De Assis

com suas particularidades, e a Índia que, embora não seguisse o cristianismo, foi muito
bem falada, pois seguia corretamente os ensinamentos de sua religião. Também disserta
sobre os povos, realçando a importância do Reino de Cã, que era o maior e o mais rico
reino conhecido.

Na segunda parte, Velloso fala sobre os animais e as plantas presentes nos livros.
Deixa claro o costume dos escritores medievais de realizar comparações com os animais,
já comuns em suas vidas cotidianas quando desenvolvem descrições para os animais fan-
tásticos. Em relação às plantas, menciona árvores que davam tudo menos fruto. Eram
pés de galinha assada ou do mais puro mel.

Na última parte, Cenarios, Velloso continua a mostrar a relação que Mandeville


criou entre o povo e a terra que ocupavam. Enfatiza que a terra descrita como ruim e,
por consequência, também o era o povo que ali vivia. Portanto, seria normal para os que
viviam em desertos ou em terras não produtivas serem os que mais se diferenciavam,
distanciando-se dos europeus, diferente daqueles que viviam em terras de bonança, ti-
dos como bons e dispostos a partilhar, vendo-os como mais “próximos”. Assim termina a
análise da obra de Jean de Mandeville.

No Livro del conocimiento, Vellosso aborda a diferença entre este e o anterior, e


como este tinha bem menos descrições de lugares que o primeiro. Em homens e mulheres,
foca nos costumes e na religião de cada povo que ouviu ou viu, enfatizando as particulari-
dades físicas de cada um. Em animais e plantas ele quase não fala, mas nos cenários descri-
tos há um foco maior, sempre seguindo uma fórmula de apresentação: nome do país ou
reino, três cidades importantes, rios e lagos e o brasão do líder. Diferente de Mandeville,
o autor do livro não faz relação do povo com o lugar.

Na sequência, segue uma breve discussão sobre o dilema de Colombo no qual os


“outros” eram enquadrados entre igual e diferente, negativo ou positivo. Aqui ele fala
que, quanto mais distantes, religiosa e fisicamente, maior seria o julgamento negativo
dado a respeito de determinado povo.

No final do livro, o autor ressalta a importância da história, da cartografia e da


literatura de viagem e esclarece como elas marcaram e criaram o pensamento medieval
europeu em volta de alguns temas. A história cabe ao historiador.

A leitura da obra é tranquila e a linguagem usada é de fácil compreensão. Esse tex-


to traz em detalhes um assunto que envolve a imaginação daqueles que o leem. A fluidez
da escrita torna todo o momento de aprendizagem melhor. O texto é rico em detalhes
e contribuí para uma discussão em volta do imaginário e como isso molda a percepção
sobre o fantástico até os dias atuais.

178
COSTA, Marcos R. N.; COSTA, Rafael F. Mulheres Intelectuais na Idade Média. 1ª edi-
ção. Porto Alegre, editora Fi, 2019.
Mariana Martinez1

Com o subtítulo Entre a Medicina, a História, a Poesia, a Dramaturgia, a Filosofia, a


Teologia e a Mística, a obra elaborada pelos historiadores Marcos Roberto Nunes Cos-
ta e Rafael Ferreira Costa busca apresentar personalidades femininas participativas e
importantes no âmbito intelectual durante a Idade Média – e até mesmo em momentos
anteriores e posteriores ao período de enfoque.

O livro é dividido em duas partes, sendo elas, respectivamente: Escritoras religio-


sas e/ou laicas defensoras da fé cristã, e Escritoras laicas ligadas às artes liberais. No con-
texto erudito da Idade Média, tal divisão possui total coerência, visto que as principais
linhas de estudo e conhecimento da fase advém da teologia e da filosofia. Entretanto, é
indispensável ressaltar o fato de que, nos documentos referentes ao período, como os
Manuais ou Compêndios de Filosofia, ou nos Manuais de Teologia, a presença de inte-
lectuais femininas se encontra escassa. O pensamento machista e misógino – como os
autores indicam pela obra de Karine Simoni (2010), pós-doutorado pela Universidade
Federal de Santa Catarina – além de resumir a figura feminina entre a santa ou a pecado-
ra, torna-se ainda mais visível ao notarmos a tentativa de inibir o reconhecimento dessas
mulheres, bem como os poucos estudos focados em descobri-las. Os autores desses ma-
nuais ainda não aceitam a concepção de “filósofas” para certas mulheres que se afirmam
como uma.

Sendo as fontes primárias insuficientes para realizar um estudo aprofundado a


respeito dessas pensadoras – principalmente em decorrência da tentativa de negar seus
feitos e sua personalidade, visto pela carência de sua memória histórica, como indicam
Costa & Costa, que concluíram sua pesquisa “até onde os registros nos permitiram” (p.
13). Em vista disso, os autores apostam em fontes secundárias e achados arqueológicos.
Grande parte das biografias foi baseada em relatos ou menções de autores masculinos,
documentos eclesiásticos de pequenos conventos, pinturas renascentistas, artes góti-
cas e mosaicos representando determinada personagem, além de referências de autores
dos séculos XIX e XX, assim como alguns estudos mais recentes.

Mesmo assim, se comparadas às personalidades intelectuais masculinas da Idade


Média, pode-se indagar que as biografias femininas são simplistas e pouco detalhadas –
não lhes eram dadas devida importância, tampouco havia a preocupação memorial com
relação à vida e às realizações e colaborações que tais mulheres agregaram ao pensa-
mento da época. Ao longo da leitura da obra, é perceptível a imprecisão nas informações

1
Graduanda em História pela Unisagrado, 4º ano. Resenha realizada sob orientação da
prof.ª Draª Lourdes M. G. C. Feitosa.

179
COSTA, Marcos R. N.; COSTA, Rafael F. Mulheres
Intelectuais na Idade Média. 1ª edição. Porto Alegre,
editora Fi, 2019. - Mariana Martinez

coletadas sobre elas: datas, local de origem, nomes, e até mesmo sua existência torna-se
duvidosa. Especialmente na segunda parte do livro, na qual temos curandeiras, médicas
independentes, poetisas polêmicas, entre outras personalidades apresentadas como não
adequadas ao pensamento e modelo tradicional cristão do período, observa-se a tenta-
tiva, por parte dos historiadores e estudiosos deste tempo, de suprimir essas mulheres
da história, bem como seu legado. Muitas, graças aos desvios discursivos eclesiásticos,
foram consideradas, por muito tempo, personagens fictíciass.

Não à toa, os autores fazem uma forte crítica à falta de interesse aos estudos eru-
ditos e filosóficos femininos. É mencionada a autora Caroline Walker Bynum, professora
na Universidade de Columbia e professora no Instituto de Estudos Avançados de Prince-
ton, autora fundamental na introdução do conceito de gênero no estudo do cristianismo
medieval. Em seu prefácio da tradução da obra Scivias, de Hildegarda von Bengin, afirma:
“Se eu tivesse escrito esse prefácio em 1950, eu poderia ter demonstrado que a única
coisa em que as diversas escritoras da Idade Média tinham em comum era o total despre-
zo por parte dos estudos eruditos modernos” (2015, p. 10). Na introdução deste livro, os
autores mencionam uma interessante pesquisa relacionada aos estudos feitos em âmbi-
to nacional: o Banco de Dissertações e Teses do Ibcit – Instituto Brasileiro de Informação
em Ciência e Tecnologia - não possui uma sequer dissertação ou tese desenvolvida por
um Programa de Pós-graduação em filosofia no Brasil sobre uma pensadora medieval.

Graças aos esforços da historiografia, da arqueologia, do estudo das letras, entre


outras disciplinas, pode-se identificar a presença feminina intrínseca na cultura intelec-
tual da Idade Média, e a abrangência de ciências que as mesmas alcançaram. No entanto,
tal crítica a respeito dos estudos deve ser levada em conta.

Os autores também atentam o leitor à ruptura de paradigmas que permearam


tanto o pensamento comum como o campo acadêmico acerca da imobilidade e depen-
dência da mulher na Idade Média. Usando documentos notariais, Karine Simoni afirma
que muitas mulheres agiam de forma independente, e sobre a concepção clássica de que
as mulheres, de maneira geral, ficavam à sombra de uma dominância masculina, a ten-
dência é revisar esse protótipo, e a maneira mais efetiva de quebrar esses tabus é am-
pliar cada vez mais esses estudos

Quando se trata da vertente historiográfica, deve-se considerar o fato de ser uma


produção recente e é válido considerar que a historiografia moderna possui uma vasta
“gama de subespecialidades [...] já não existem nos meios acadêmicos muitos estudiosos
que acreditem na existência definitiva de “uma única maneira de ver as coisas” (BARROS,
2004)2. Costa & Costa aderiram à uma abordagem social, na qual acabam por usufruir

2
Possui doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (1999), mestrado em História pela
Universidade Federal Fluminense (1994), graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro (1993), graduação em Música (Composição Musical) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1989). Professor Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). 

180
COSTA, Marcos R. N.; COSTA, Rafael F. Mulheres
Intelectuais na Idade Média. 1ª edição. Porto Alegre,
editora Fi, 2019. - Mariana Martinez

da estilística da História Nova e analisam a classe social a que pertenciam essas mulhe-
res, onde estudaram, sua relação com a família, entre outros aspectos válidos para com-
preender o modo de vida de cada uma delas. Entretanto, levaram em conta o estudo das
mentalidades na construção do pensamento ocidental para validar a afirmação de que
suas obras e feitos de fato influenciaram nas construções de diversas áreas de estudo
até os dias atuais.

Sobre o conteúdo do livro, permito-me focar apenas em algumas personalidades


relatadas na obra, afinal, são mais de 50 biografias, algumas menos informativas que ou-
tras, exatamente pela problemática da documentação citada nos parágrafos acima. En-
tre as escritoras religiosas, ressalto Hildegard von Bingen, sendo ela a mais bem docu-
mentada e estudada até hoje.

Hildegard (1098-1179) nasceu na Alemanha, mais precisamente na região do


Vale do Rio Reno. Desde sua adolescência levava uma vida cristã; aos dezesseis anos já
havia feito seus votos, mas foi em 1141, aos quarenta e três anos, que Hildegard teve sua
primeira experiência mística/visionária. Foi a partir desse momento que decidiu iniciar
uma vida de peregrinação e pregação. Existem diversas iluminuras medievais que retra-
tam tais experiências místicas que Bingen vivenciou. Após a autorização da Igreja, ela
começou a escrever suas visões. No entanto, mesmo tão bem relatada, a vida biografada
de Hildegard apresenta controvérsias, entre elas, sua apresentação como alguém que
não tinha estudos. Os principais biógrafos relatam que sua formação coube à pequenos
conhecimentos adquiridos no mosteiro, e que suas obras são, de fato, frutos de experiên-
cias sobrenaturais.

Em contraposição, alguns historiadores afirmam que em seus escritos há um vasto


conhecimento de textos de escolas e universidades de Teologia de seu tempo; indo mais
além, afirmam não só o conhecimento bíblico, mas de autores latinos, filósofos neopla-
tônicos, além de entendimento nas áreas de medicina e farmacologia. Acredita-se que a
omissão de sua bagagem intelectual se deve à concepção da época de que a intelectua-
lidade era concedida naturalmente ao masculino, sendo o sobrenatural o responsável
pelo intelecto de Hildegard.

Vale destacar que a alemã é também autora de uma língua ignota, com mais de
mil termos – trazendo tradução latina e alemã – criados para falar de assuntos científi-
cos com palavras populares. Também foi autora de concertos musicais, oratórias e pere-
grinações. Por conta de tamanha mobilidade, foi atacada e hostilizada durante toda sua
vida, chegando a ser banida de participar de missas e da rotina no mosteiro.

Em suma, é indiscutível sua relevância no período em que viveu. Suas obras falam
sobre a articulação entre espírito, corpo, cosmo e natureza. Inovou o pensamento acer-
ca da sexualidade, defendendo o prazer no ato sexual, bem como reprovava as formas
abusivas de controle do corpo e do sexo, principalmente em relação ao feminino. Ainda
assim, é valido salientar o argumento dos autores de que Bingen não era, de modo algum,

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COSTA, Marcos R. N.; COSTA, Rafael F. Mulheres
Intelectuais na Idade Média. 1ª edição. Porto Alegre,
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um ícone feminista. Era declaradamente conservadora e jamais reivindicou qualquer


mudança ou direito para as mulheres, sempre permaneceu fiel aos dogmas impostos pela
Igreja Católica.

Apesar de toda a hostilidade que recebeu ao longo de sua trajetória, seu reco-
nhecimento póstumo é inegável. Ela é patrona do Prêmio Hildegard von Bingen, criado em
1995, para destacar jornalistas e publicitários que deram contribuições humanitárias em
sua área de atuação. Também carrega seu nome, uma escola em Rudesheim – Alemanha.
É patrona da Medalha Hildegard von Bingen para personalidades de destaque no campo da
educação sanitária mundial. Sua vida foi inspiração para o filme Vision, de 2009. Além da
existência de duas sociedades dedicadas ao estudo de sua vida e obras.

Quanto às mulheres laicas ligadas às artes liberais, seria uma difícil tarefa apro-
fundar-se sobre uma em específico, no que se deve ao fato de que suas biografias e obras
sofrerem uma brusca tentativa de apagar as suas trajetórias. Contudo, há diversos pon-
tos acerca dessas biografias que dialogam com o período medieval e podem ser levados
em conta durante o estudo do tema.

Para exemplificar essas tentativas de exclusão de mulheres da memória histórica,


podemos citar Hipátia de Alexandria (370-413 d.C.). Especialista em matemática, chegou
a ser professora e diretora da Academia de Alexandria. Dedicou-se à filosofia e inventou
alguns instrumentos direcionados à astronomia. Muitas de suas obras foram destruídas
na Biblioteca de Alexandria. Hipátia foi vítima de uma trama político-religiosa que teve
como fim sua morte planejada, além da destruição do restante de suas produções. Ape-
sar de ser pagante da intolerância religiosa, a estudiosa seria lembrada e venerada como
cientista, inclusive mencionada por Carl Sagan, em sua obra Cosmos, de 1943.

Há outros relatos de condenação por parte da Igreja a essas mulheres. Algumas


foram exiladas, como é o caso da espanhola Leonor López, autora da primeira biografia
escrita em castelhano, escrita durante o exílio. Há registros também de autoras militan-
tes como Cristiana de Pisano, que produziu diversas obras anti misóginas. Outras, foram
presas, processadas ou condenadas. Sobre essas figuras, as poucas fontes disponíveis
provêm de documentos inquisitoriais e eclesiásticos.

Em conclusão, podemos analisar, a partir da leitura dessa obra, a importância que


a mesma dispõe quanto aos estudos sobre a temática, relembrando a carência de estu-
dos voltados para as mulheres desse período. Além de servir como base para o desenvol-
vimento de outras linhas específicas de pesquisa – como a história das mulheres, história
da medicina medieval, teologia medieval – também demonstra o esforço e a capacitação
do historiador brasileiro de se aventurar em áreas pouco aprofundadas. Cabe ressaltar
que a ruptura de paradigmas estruturados pela historiografia clássica nunca é tardia o
suficiente para não a fazer, e devemos valorizar a pesquisa e, principalmente, o pesqui-
sador que vai além do discurso forjado e avalia as fontes disponíveis e o contexto social
e cultural do período. 

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COSTA, Marcos R. N.; COSTA, Rafael F. Mulheres
Intelectuais na Idade Média. 1ª edição. Porto Alegre,
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REFERÊNCIAS

BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2004.

FELLOW, Ellen M. G. Caroline Walker Bynum. American Academy, https://www.ameri-


canacademy.de/person/caroline-walker-bynum/

SIMONI, Karine. Karine Simoni. Lattes 26/10/2019.

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