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ETNOGRAFIA E EDUCAÇÃO:
RELATOS DE PESQUISA

CARMEN LÚCIA GUIMARÃES DE MATTOS


HELENA AMARAL DA FONTOURA
(ORGANIZADORAS)

APRESENTAÇÃO DR FREDERICK ERICKSON

2008
2

Etnografia e Educação: relatos de pesquisa

O livro intitulado “Etnografia e Educação: relatos de pesquisa” é uma compilação de


pesquisas etnográficas voltadas para o entendimento de questões ligadas ao tema da
educação em sentido amplo e em seus diversos aspectos: fracasso escolar, práticas de
ensino, educação especial, relação professor-aluno, violência e inclusão/exclusão
desenvolvidas por docentes, discentes e membros de grupos de pesquisas ligados à
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

O tema central do livro é a contribuição da pesquisa etnográfica para os estudos em


Educação e seus desdobramentos possíveis. As pesquisas aqui apresentadas foram
desenvolvidas em instituições públicas no Estado do Rio de Janeiro, por docentes da
UERJ e colaboradores envolvidos em projetos diversos como parte de atividades
instituicionais como teses de Doutorado, dissertações de Mestrado e trabalhos de
Iniciação Científica. A contribuição da Etnografia se dá pela possibilidade de estudar a
realidade a partir da voz dos sujeitos, permitindo aos pesquisadores uma troca genuína
de significados com os participantes ao descrever de modo significativo a realidade
estudada.

A intenção é relatar como ocorreram os trabalhos de investigação para publicizar


nossos intensos anos como pesquisadores em etnografia, podendo assim compartilhar
processos que possam ajudar outros a trilharem caminhos qualitativos, já que essa
modalidade de pesquisa ainda pode ampliar em muito os entendimentos sobre
educação em nosso país. As pesquisas apresentadas representam a contribuição do
olhar etnográfico para a compreensão de processos de ensino-aprendizagem, em
sentido amplo, e das dimensões sociais, culturais e psicológicas que permeiam o
cotidiano.

Assim, acreditamos que a proposta de organizar um livro com estudos que elegeram a
Etnografia não apenas como uma técnica de pesquisa, mas como um aporte teórico que
possibilita o desvelamento dos espaços institucionais e das dinâmicas de interação
nesses espaços, pode vir a ampliar os olhares daqueles que no seu fazer cotidiano
possam estar em um movimento constante de reflexão sobre sua prática em benefício
da sociedade brasileira que utiliza os serviços públicos.

Agradecemos o apoio da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do


Rio de Janeiro - FAPERJ, sem o qual essa publicação não seria possível.
3

Carmen Lucia Guimarães de Mattos


Helena Amaral da Fontoura
(Organizadoras)
4

FOREWORD

Frederick Erickson
University of California, Los Angeles

"Ethnography," a term put together in the nineteenth century from two


Greek words--ethnoi and graphein--means "writing about other people."
Nowadays ethnography is written about ourselves as well as about others. It
documents in detail what specific groups of people do locally in the routine
conduct of their everyday lives, and it uncovers the meaning perspectives that
those people take in the everyday actions they perform. The reason we need to
describe concretely the organization of the routine conduct of our own
everyday lives and everyday perspectives is that, as habitual action, this all
becomes so familiar to us that it is disappears from view and becomes
transparent to us. Without the reflection provided by ethnographic description-
-which shows us ourselves as in a mirror--we are only able to see a small part of
what we are doing in everyday life.
"Qualitative research" is an even broader term than ethnography.
Derived from the Latin "qualitas" it focuses on identifying kinds of things--kinds
of persons, actions, and beliefs--that are especially relevant to the meanings and
organization that are inherent in the conduct of everyday life. (The primary
question in qualitative inquiry is "what kind?" in contrast to the primary
question of quantitative inquiry is "how many?" Good social research answers
both questions--it doesn't try to skip either one).
In different settings people define kinds of things differently--in one
classroom a teacher may see a child who has trouble learning to read as the
kind of person who is trying hard, and by another teacher in a different
classroom a similar child would be seen as "lazy." A physician may see a
patient in pain as "one who is genuinely hurting" or as a "complainer." Through
qualitative research we are able to identify the systems of customary meaning
and value through which people make sense and take action in their everyday
lives. This involves not only describing what people do habitually, but
showing the structures of "common sense" that underly their everyday
conduct--their local and tacit ontologies--assumptions of "what is truly real"--that
are for the most part unstated and held outside conscious awareness.
5

Educational research has suffered from taking the familiar for granted. It
is assumed that "of course we know what teachers are, and what they do. Of
course we know what students are." Through such assumptions we overlook
the details of conduct and meaning that take place in the everyday life of
educational practice. And thus we tend to treat educational practice as a
"Black Box" -- we can see inputs to the box, in the form of resources, and we
can see outputs from the box, in the form of graduation rates and test scores,
but we don't get a clear picture of the processes inside the box that are
producing the outcomes.
The qualitative, ethnographic studies presented in this book help us get
inside the Black Box of educational practice. Through close observational
research and description the authors are able to show us the everyday practices
that produce educational outcomes. Marx said of scholarly inquiry "the
problem is not to understand the world but to change it." However, before we
can change an aspect of the world we first have to be able to see it.
Ethnography in educational settings, by making the visible the habitual conduct
of "standard operating procedures," shows us the structure points in
educational processes that need change. That is the major point of this book--to
make visible certain specific "spaces" within routine school and social practices
that can and should be changed.
6

Texto 1: Etnografias na escola: duas décadas de pesquisa sobre o fracasso escolar no


ensino fundamental
Carmen Lúcia Guimarães de MATTOS

Texto 2: Revisitando dados e refletindo sobre o uso de vídeo em etnografia


Helena Amaral da FONTOURA

Texto 3: O ensino itinerante como apoio para a inclusão de alunos com necessidades
educacionais especiais em classes regulares: uma análise etnográfica
Márcia PLESTCH; Rosana GLAT

Texto 4: Corpo: rebelde ou docilizado? Uma análise etnográfica do controle na sala


de aula
Paula Almeida de CASTRO

Texto 5: Quando a pesquisa educacional sai da escola: trajetórias acadêmicas de


adolescentes que viveram nas ruas
Cleonice PUGGIAN

Texto 6 : Arquitetura docente: visões e construções na perspectiva da etnografia dos


espaços educativos
Gianine Maria de Souza PIERRO

Texto 7: Autismo e Educação: contrato de inclusão


Sandra Cordeiro de MELO

Texto 8: Práticas de ensino e formação de professores na FFP – percepções da prática


docente
Ana Paula Carvalho NOGUEIRA; Helena Amaral da FONTOURA

Texto 9: Entre o sonho e a realidade: a refelxividade como possibilidade de despertar


Lucia de Mello MOURÃO

Texto 10: Etnografia de uma atividade de educação não formal junto a rodoviários no
exercício da cidadania das pessoas com deficiência
Rafael Croitoru AZAMOR

Texto 11: Mudança de lugar: um estilo de aula ou de ensinar? Um estudo etnográfico


nas classes de progressão no Rio de Janeiro
Tatiana Bezerra FAGUNDES; Carmen Lúcia Guimarães de MATTOS

Texto 12: Escola, espaço de exclusão? – um estudo etnográfico sobre o fracasso


escolar de alunos/as no ensino fundamental
Luis Paulo Cruz BORGES; Carmen Lúcia Guimarães de MATTOS
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ETNOGRAFIAS NA ESCOLA: DUAS DÉCADAS DE PESQUISA SOBRE O


FRACASSO ESCOLAR NO ENSINO FUNDAMENTAL

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos

Este capítulo traça a trajetória de três pesquisas desenvolvidas ao longo de duas


décadas [1989 a 2007]. Os estudos foram realizados em escolas da rede pública da
cidade do Rio de Janeiro e tiveram como objeto o fracasso escolar de alunos
multirepetentes no Ensino Fundamental. Procurou-se através da abordagem
etnográfica de pesquisa e da dialética entre teoria-prática-teoria, coleta-análise de
dados, fomentar subsídios para progredir nesses estudos e pensar o tema do fracasso.
Buscamos o significado que ganha o fracasso escolar na ótica daqueles que sofrem suas
conseqüências. Vemos que o fracasso escolar continua a ser um problema nacional,
especialmente relacionado à questão da regularização do fluxo escolar e que esse
problema tem conseqüências sócio-educacionais drásticas para os jovens brasileiros.
O fracasso escolar no Brasil tem sido alvo de pesquisas educacionais há mais de
quatro décadas (GOUVEIA 1971; BARRETO 1975, 1980; BARRETO et al. 1987; BAETA
et al. 1982; BAETA 1992; BRANDÃO 1981, 1982 e 1986; CARRAHER 1982; PATTO
1984, 1997; CARVALHO 2001b). Essas investigações buscaram uma explicação para
este fenômeno, apontando os mais variados culpados: aluno, família, escola, sistema
escolar, ambiente social, processo pedagógico e tomam como base, pressupostos
sociológicos, como as teorias do déficit cognitivo e da carência cultural. A teoria do
déficit cognitivo está associada às teorias racistas1 americanas e às ideologias do
determinismo cultural e desigualdades raciais (ERICKSON 1987; PATTO 1997), que
partem do princípio de que o aluno já nasce com uma capacidade limitada, o que vem
sendo justificado durante o processo de escolarização, quando ele tem dificuldades
com a percepção, com a memória e falta-lhe habilidades para aprender. A teoria da
carência cultural é portadora de todos os estereótipos e preconceitos sociais a respeito
dos pobres e contribui para aprofundar e concretizar profeticamente a incapacidade
deles para o sucesso escolar (PATTO 1997, p.28). Essas teorias, em sentido geral,
levaram a consolidar a crença de que a possibilidade de aprendizagem destes alunos
teria direta relação com a sua condição econômica, social e cultural.
Nos anos 80 difundiram-se a teoria da “cultura da pobreza”2, a da “da culpa da
vítima”3 (RYAN 1971) e a “da reprodução”4 (BOURDIEU & PASSERON 1975), esta

1 Os termos racistas e raça serão encontrados neste capítulo porque são utilizados predominantemente pelos teóricos
aqui referenciados, entretanto, estamos nos referindo igualmente aos termos cor e etnia, embora tenhamos consciência
das implicações derivadas do uso destes conceitos, não pretendendo aqui aprofundar a questão.
2 “Os partidários da cultura da pobreza a identificam como causa própria da pobreza continuada. Exemplos: Desde que
a cultura da pobreza passou a existir ela tende a se perpetuar. As crianças faveladas, quando atingem seus seis, sete
anos de idade, usualmente já absorveram as atitudes e valores básicos de sua subcultura. A partir de então,
8

última com maior popularidade. Tais teorias são igualmente criticadas por ignorarem
o processo dinâmico, no qual os indivíduos não estão apenas vivendo em um
determinado meio social, mas também construindo suas realidades como atores de
suas histórias no mundo. Por sua abrangência ou por seu reducionismo, não
conseguem explicar o dinamismo do processo de produção do fracasso escolar, a partir
do interior da classe social a que pertencem os alunos e da possibilidade de
transformação social e política feita pela escola (FREIRE 1966, 1970). Daí a urgência de
novos referenciais teórico-epistemológico-metodológicos, o que se tem procurado
construir em nossas pesquisas, ao longo de duas décadas. Nestas pesquisas,
consideramos o fracasso escolar de alunos e alunas multirepetentes5 com dificuldades
educacionais no Ensino Fundamental, como objeto de estudo, e tentamos avançar na
explicação, utilizando novos instrumentos e contribuindo para a discussão de novas
teorias no Brasil.
Recentes estudos sobre o fracasso escolar (ALVES; ORTIGAO e FRANCO 2007;
PATTO 2004, 2005, 2006, 2007; BRAGANÇA, 2008, MATTOS 2007b; CARVALHO 2003,
2004) apontam para a necessidade urgente de pesquisa qualitativa para aprofundar a
análise da construção do chamado ‘fracasso escolar’ nas escolas públicas brasileiras
urbanas.
O fato de que a universalização do acesso à educação básica, iniciada nos anos
70 e, somente concretizada nos anos 906, não tenha ocorrido de forma coordenada com
a qualidade dos processos de ensino e aprendizagem, tem repercutido nos baixos
resultados da avaliação do desempenho dos alunos7.

psicologicamente despreparadas, tiraram plena vantagem nas mudanças de condições ou de oportunidades de


melhoramentos que possam surgir durante suas vidas” (OSCAR, LEWIS, Cap.4, p.117, apud RYAN 1971, p.2 In
Blaming the Victim. tradução nossa).
3 “Culpar a vítima é, sem dúvida, bem diferente das ultrapassadas ideologias conservadoras. Esta, simplesmente
repudiava as vítimas como inferiores, geneticamente imperfeitas ou moralmente inaptas; a ênfase está na sua intrínseca,
até mesmo hereditária, imperfeição. Já aquela, transfere sua ênfase para a causa ambiental. Os ultrapassados
conservadores podiam fincar pé na crença querendo dizer imperfeito ou inadequado pelo caráter ou competência. A
nova ideologia atribui imperfeição e inadequabilidade à maléfica natureza da pobreza, da injustiça, à vida na favela e
dificuldades raciais. O estigma que trás a vítima, e que é responsável por ter-se tornado vítima, é um estigma adquirido,
um estigma mais de origem social que genética. Mas o estigma, a imperfeição, a inevitável diferença – apesar de
inferido no passado pelas forças ambientais – ainda está localizado dentro da vítima, em sua pele. Com tal formulação
elegante, o humanitário pode aplicar ambas as ideologias. Ele pode, a um mesmo tempo, concentrar seu interesse
caritativo nas imperfeições da vítima, condenar vagamente o estresse social e ambiental que causou tal imperfeição (nos
tempos idos), e desconsiderar o efeito continuado das forças sociais que vitimam (no agora). É uma brilhante ideologia
que justifica uma forma de ação social perversa, idealizada para mudar, não na sociedade, como seria de se esperar, mas
sim as vítimas dessa sociedade. E como resultante, uma terrível mesmice no programa que surge nesse tipo de análise.”
(RYAN 1971, tradução nossa).
4 Teoria que defende que “a educação faz, integralmente, parte da sociedade e a reproduz" (LUCKESI 1992, p. 41).
Segundo Bourdieu e Passeron (1975, p. 295), “a sociologia da educação configura seu objeto particular quando se
constitui como ciência das relações entre a reprodução cultural e a reprodução social, ou seja, no momento em que se
esforça por estabelecer a contribuição que o sistema de ensino oferece com vistas à reprodução da estrutura das relações
de força e das relações simbólicas entre as classes, contribuindo assim para a reprodução da estrutura da distribuição do
capital cultural entre as classes”.
5 Alunos e alunas que repetem o ano, série ou período curricular e que estão defasados na idade-série em dois anos ou
mais.
6 Pode se falar de uma expansão lenta, continuada e incompleta da oferta do nível inicial de educação obrigatória
definido como ensino primário de quatro séries até 1971, ensino de primeiro grau de oito séries até 1996 e ensino
fundamental de, no mínimo, oito anos, que, no entanto, em 2006, passa a ter duração de 9 anos iniciando-se aos 6 anos
de idade.
7 Ao nos referirmos aos alunos professores e estaremos igualmente nos referindo a professoras e alunas, sem distinção
de gênero.
9

Os estudantes que fracassam na escola, em sua maioria, pertencem aos


segmentos sociais mais empobrecidos dos grandes centros urbanos, como o Rio de
Janeiro. Eles têm sido marginalizados e as políticas públicas os atraem a participar de
programas de inclusão social e educacional. Desde a segunda metade da década de 90,
no contexto mais amplo de programas de redução da pobreza e de desenvolvimento
urbano8 que têm visado melhorar escolas e possibilidades educativas urbanas e
aumentar o desempenho educacional, o governo, no nível federal e estadual, tem
implementado políticas públicas e programas assistenciais9 tais como: Educação para
Todos, Bolsa-Escola, Bolsa-Família, Amigos da Escola e outros de políticas
compensatórias como as classes de progressão10, classes de aceleração, projeto especial
para adolescente 2007 – ou classes de 14 e 15 anos, e política de cotas para a
universidade.
Uma questão que se destaca aqui é como a vinculação de políticas assistenciais
e compensatórias têm relação com a realidade dessas escolas em seu dia a dia, em seus
contextos11 e as mediações que realizam, pedagogicamente, entre desigualdades sócio-
econômicas e educacionais. Ou seja, como compreender essas políticas a partir de uma
perspectiva de relações que produzem fracasso escolar, e que, portanto, em outros
termos, constituem parte de uma escola ‘que não ensina’ e que continua aprofundando
desigualdades.
Fracasso escolar: uma visão das pesquisas desenvolvidas
O interesse em tratar da problemática do fracasso escolar sob a ótica da
abordagem etnográfica tem persistido nos estudos que realizamos ao longo de duas
décadas, focalizando o fracasso de alunos e alunas multirepetentes com dificuldades
educacionais no Ensino Fundamental.

8 O Programa Comunidade Solidária foi criado em 1995 visando o atendimento da parcela da população que não
dispõe de meios para prover suas necessidades básicas, em especial, o combate à fome e à pobreza. Esse programa se
tornou referência em torno da qual se criaram outras ações como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil –
PETI- em 1996, o Programa Nacional de Garantia de Renda Mínima –PGRM- em 1997, depois desdobrado em 2001em
dois programas, o de Bolsa Escola destinado a famílias com renda per capita de meio salário mínimo com crianças entre
6 e 15 anos freqüentando escola e o de Bolsa Alimentação destinado a famílias com renda per capita de meio salário
mínimo com crianças entre 6 meses e 6 anos de idade. Essas ações governamentais no campo social compõem “uma
rede de proteção social” que têm utilizado o setor educacional para sua viabilização e projeção. Há assim uma
ampliação instrumental das funções da escola mais com um sentido simbólico que permite ao Estado dissimular e
ocultar suas ausências e omissões em relação aos direitos sociais (ALGEBAILE 2004).
9 http://www.brasil.gov.br
10 A Classe de Progressão foi criada pela Portaria da Diretora do Departamento Geral de Educação - E-DGED de nº 2 de
13 de novembro de 2001, surgiu para romper com a repetência da primeira e da segunda séries, abrindo a possibilidade
de haver avanço para etapas seguintes (terceira série), reintegrando o aluno no percurso regular. Ela é formada por
alunos de vários níveis de conhecimento, desenvolvimento, de diferentes faixas etárias (9 ou mais) e de interesses. A
Portaria nº 15 da E-DGED de 13 de novembro de 2001 estabeleceu os critérios para organização de Classes de
Progressão, dividindo-as em - Classes de Progressão I, e Classes de Progressão II, de acordo com o nível de
aproveitamento na leitura e escrita. Essas classes teriam um número de trinta alunos por turma e incluiriam até dois
alunos com necessidades especiais.
11 Contextos nos quais, no Rio de Janeiro, por exemplo, se tem conhecimento, muitas delas são localizadas em zonas de
risco e são obrigadas a fecharem suas portas de acordo com as regras do crime organizado
10

A primeira pesquisa, no período de 1989 a 199212 (MATTOS 1992), examinou o


sistema educacional bem como a política das escolas públicas e foi desenvolvida em
duas escolas, uma de zona rural do Estado do Rio de Janeiro e a outra da zona sul do
Rio, onde noventa por cento dos seus alunos vivem na Favela da Rocinha. As questões
de pesquisa foram as seguintes: 1) Como jovens de área rural e urbana, professores,
administradores escolares, políticos e legisladores definem o fracasso escolar? Estão
essas similaridades e diferenças em suas respectivas definições? 2) Qual é o saber
convencional dos educadores profissionais sobre o fracasso escolar? Como essas
crenças dão forma às soluções existentes para esses problemas? 3) Existem explicações
em relação a esses ‘jovens difíceis’ que nos informem sobre políticas educacionais
realistas e programas para este grupo? 4) Qual é a relação entre as percepções dos
participantes e as políticas educacionais designadas para abordarem a questão do
fracasso entre excluídos, evadidos e repetentes?
Uma das contribuições principais desse trabalho estava na iniciativa de incluir
os jovens como participantes primários, o que significava estudar os excluídos e
repetentes, especialmente no Brasil, dar-lhes voz e explicitar seu diálogo com outros
participantes. A importância, além desse estudo era que, ao procurar determinar as
razões do fracasso escolar, colocava em perspectiva algumas das análises alternativas e
explicações sobre o mesmo e procurava descrever parte do saber popular que
perpetuava as imagens dos estudantes que fracassam como sendo delinqüentes e
descuidados. As análises e conclusões enfatizadas no trabalho tiveram aplicações
importantes para a formação de professores. Colocando em perspectiva mais ampla,
chegou-se à conclusão sobre o fracasso escolar, sob a ótica dos jovens e de seus pais.
Elas foram discutidas com professores, diretores, supervisores e autoridades
governamentais. As análises dos diálogos entre esses participantes e os pontos de vista
apresentados gerados pelas discussões dos mesmos expressaram que: os professores e
diretores colocam os alunos fracassados no ostracismo e os expulsam da escola,
especialmente com base em sua falta de disciplina. Os pais e os alunos afirmaram que
os professores não eram interessados nos alunos e na escola e não tinham
conhecimento da matéria que ensinavam. Diziam que o governo não se importava o
suficiente para dar às escolas condições de promover a aprendizagem, e que as
autoridades nem mesmo se importavam se as crianças estavam comparecendo às aulas
ou estavam nas ruas. Afirmavam que entendiam a situação do baixo salário dos
professores, mas isso não deveria ser usado como uma desculpa para não fazerem um
bom trabalho, ou não ensinarem tudo que eles (os alunos) precisavam.

12
Realizada para fins de titulação em doutorado pela Universidade da Pensilvânia nos Estados Unidos da América e
publicada sob o título: Picturing School Failure: a study of diversity in explanations of “educational dificulties” among rural and
urban youth in Brazil. (Trabalho desenvolvido com apoio da CAPES).
11

As conclusões dos pesquisadores resultantes das observações das interações em


sala de aula centraram-se na natureza da interação como uma fonte para descobrir
práticas escolares que resultam em uma batalha silenciosa entre alunos e professores.
Estudos brasileiros (ANDRADE 1990; MEDIANO 1983; BRANDÃO 1982; BARRETO
1980) atribuíam o fracasso escolar dos estudantes à falta de consciência dos professores
sobre a cultura do aluno e a sua insensibilidade para com os problemas dos repetentes
e dos evadidos. Esses estudos argumentam que os professores atribuem o fracasso
escolar dos alunos a seu status sócio-econômico e cultural. Nossa pesquisa corroborou
com essas conclusões, entretanto, incluiu a visão dos alunos e alunas com crítica ao seu
próprio processo de fracasso e exclusão educacional.
De 1992 a 1996, a segunda pesquisa13 tomou como objeto de estudo dois grupos
de jovens fracassados (MATTOS 1992b, 1993), um de alunos com dificuldades escolares
e sujeitos à exclusão após um período de dois a cinco anos de tentativas na escola,
caracterizado como grupo ‘de dentro da escola’, e outro grupo já excluído do sistema
escolar, caracterizado como grupo ‘de fora da escola’ em que sujeitos se encontravam
em casa, no trabalho ou nas ruas. Em ambos os grupos os sujeitos demonstraram
entender claramente a natureza de seu fracasso. Eles não culpabilizaram somente a
escola, os professores, ou o sistema educacional; entendiam que o professor poderia
compreender suas dificuldades e acreditavam que a escola era um dos únicos meios
capazes de reverter o quadro de miséria em que viviam. Apesar disso, o grupo de “fora
da escola” parecia esperar por uma alternativa não institucional, pois desistiram “desse
tipo de escola” e aguardavam novas formas de aquisição do conhecimento. Ciente de
que as dificuldades para o estudo dos alunos “fora da escola” seriam maiores e mais
dispendiosas, optou-se por desenvolver a segunda pesquisa14 sobre os alunos
multirepetentes dentro da escola. Deixou-se o trabalho sobre os excluídos “meninos de
rua” para um outro momento15.
Essa pesquisa foi realizada colaborativamente com duas professoras (MATTOS
1995), com o objetivo de elaborar e analisar questões propostas por elas no sentido de
entender os mecanismos de construção do fracasso nas interações face a face em suas

13 Foi realizada como um desdobramento da primeira pesquisa, no tocante à primeira conclusão: alunos fracassados no
interior da escola. A pesquisa foi publicada sob o título: Fracasso escolar: imagens de explicações populares sobre
"dificuldades educacionais" entre jovens de áreas rural e urbana do estado do Rio de Janeiro, Relatório final INEP, MEC,
1996. Contou com fomento: 1. PROPP-UFF - n.23069.002147/91, em 12/04/91, concluído em 20/07/92, recebeu em
30/08/91 a quantia de 500.000,00, em 30/07/92 a quantia de 2.000.000,00, em 30/10/93 a quantia de 20.000,00e 2.
Convênio INEP/UFF n. 36/92, publicado no DO de 7 de Jan. 1993, pág. 185. Termo aditivo publicado no DO de 6 de
maio de 1993, p.6042. A quantia de (Cr$ 217.702.000,00) repassado a Proplan/UFF para gerenciamento em acordo
firmado em maio de 1994 (Crn$ 800,00 - oitocentos cruzeiros novos).
14 Ver MATTOS Carmen Lúcia Guimarães de Mattos et al., Fracasso Escolar: Imagens de Explicações Populares sobre
"Dificuldades Educacionais" entre Jovens de Áreas Rural e Urbana do Estado do Rio de Janeiro, Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 73, n. 174, p. 361-379, maio/ agosto,1992.
15 Para esse grupo foi desenvolvido posteriormente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro o projeto “Tecnologia
Educacional para Jovens e Adultos: enfrentando o fracasso escolar, no período de 1995/1998. Resumo publicado pelo
INEP na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 74, n.177, p.437-463, maio/ agosto, 1993.
12

salas de aula16. Na análise de interações em sala de aula destacaram-se dois aspectos: a


organização do seu espaço físico utilizado como instrumento de controle disciplinar ou
de critério avaliativo para determinar o sucesso ou o fracasso dos alunos, e a ironia
como uma estratégia aplicada pelo professor de chamar a atenção dos estudantes, mas
que em última análise dificultava a interação na sala de aula. Existia uma
interdependência entre o limite do corpo (espaço que o aluno ocupava) e a identidade
social dos alunos como membros do grupo constituído da sala de aula (bom ou mau
aluno) (MATTOS 1994a). Nessa pesquisa, identificamos práticas que assinalavam com
o estigma de maus alunos aqueles com problemas de aprendizagem. A prática didática
da ironia tinha como conseqüência diminuir a auto-estima dos alunos e desviá-los dos
conteúdos necessários para a superação de suas necessidades educacionais imediatas
que, no caso, se caracterizavam principalmente pela superação do estigma do fracasso
(MATTOS 1994b). Esse estilo acentuava a marginalização dos alunos, pois
desinteressados por esta batalha constante e, desmotivados pelo ‘silêncio’ da não
participação em sala de aula, acabavam por ‘se excluírem’ das escolas. A construção de
insucesso escolar tornou-se evidente nos relacionamentos baseados em ironia,
desrespeito e tarefas indefinidas que apenas transformavam professores e alunos em
parceiros que partilhavam conflitos em uma verdadeira batalha em sala de aula. Como
conseqüência, o aluno era conduzido a fracassar na maioria das vezes, quer por
recusar-se a tomar parte do jogo incompreensível ou por acreditar que esta relação era
a própria razão da suas dificuldades. Neste caso, uma vez que o estudante tinha sido
estigmatizado como incapaz, ele /ela era então empurrado (a) a acreditar nesta
realidade e a desempenhar o papel correspondente, mesmo que fosse só para agradar
ao professor (MATTOS e CASTRO 2005).
Os Conselhos de Classe17 foram outro locus de observação (MATTOS 2005), com
análises voltadas para o entendimento dessas instâncias avaliativas na construção do
fracasso. Características de liderança por parte da orientadora pedagógica, da diretora,
e dos grupos de professores foram utilizados de forma orquestrada para ratificar
impressões e estigmas trazidos da sala de aula e de fora dela (MATTOS 2005). Essas
impressões, valores, preconceitos foram compartilhados e ratificados, de maneira
subjetiva. Os alunos foram julgados com base em critérios pouco claros e subjetivos.

16 Foram realizadas mais de duzentas horas de gravação em áudio e vídeo, envolvendo duzentos e dez participantes,
dentre eles cinqüenta e seis (56) alunos e cento e três (103) professores, sendo dois colaboradores. Contou-se também
com a participação direta de elementos da administração estadual e municipal.
17 Oficialmente, no Estado do Rio de Janeiro, os Conselhos de Classes foram instituídos nas escolas através do parecer
1367, de 19/02/1971 do Conselho Estadual de Educação, para o ensino público e particular. Geralmente cabia ao
Serviço de Orientação Pedagógica ou Serviço de Orientação Educacional a organização dos Conselhos de Classe em
conjunto com a Direção da escola, mas, cabia ao Diretor a liderança da reunião. O Conselho de Classe era uma reunião
de professores de uma escola ou turma com múltiplos objetivos, dentre eles: avaliar o aproveitamento dos alunos e da
turma como um todo; chegar a um conhecimento do aluno; promover a integração dos professores e de outros
elementos da equipe da escola. Era no Conselho de Classe que o professor percebia sua força e autonomia em relação
aos demais membros da escola. O professor era diretamente influenciado pelas mudanças ocorridas na escola durante o
período em que estava avaliando o seu trabalho na própria escola. Essa era uma oportunidade para que o professor
refletisse sobre o seu trabalho individual e sobre a turma de modo geral.
13

Essas avaliações os levaram a encaminhamentos médicos, psicológicos e psiquiátricos,


sem que fosse possível ao aluno defender-se. O fracasso escolar construído no conselho
de classe para os alunos ali avaliados foi de natureza desumanizadora. O que se
concluiu disso foi que essa forma de avaliação tornou os alunos com dificuldades
educacionais vulneráveis às decisões do conselho, favorecendo o fracasso escolar e a
exclusão educacional dos multirepetentes e com dificuldades no conteúdo.
A terceira pesquisa18 foi concluída em agosto de 2008. O objetivo geral desta
pesquisa foi estudar a natureza do fracasso escolar e sua construção na sala de aula e
fora dela de maneira a contribuir para as políticas de inclusão escolar. O estudo
investigou também o estado da arte sobre o fracasso escolar no Estado do Rio de
Janeiro a partir de trabalhos científicos da última década, dedicando especial atenção
às pesquisas etnográficas e estatísticas que trataram do fracasso escolar como
problemática principal. E produziu ainda, cinco filmes etnográficos retratando a
realidade das salas de aulas das Classes de Progressão, dos conselhos de classes e dos
alunos em situação de risco educacional. Nesta pesquisa, em sua primeira etapa, duas
Classes de Progressão foram observadas, além dos conselhos de classe de uma escola
fundamental pública municipal (CIEP C). Esse CIEP está localizado em um bairro de
classe média na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e assiste aos estudantes que
vivem na Favela da Rocinha. Na segunda etapa da pesquisa em outra escola da cidade
do Rio de Janeiro pesquisamos uma classe de “Projeto especial para adolescente 2007”
– ou classes de 14 e 15 anos e uma outra classe de 3º segmento do 1º ciclo do Ensino
Fundamental. Na primeira escola desenvolvemos uma pesquisa etnográfica com uso
de vídeo-etnografia (PINK 2001) e microanálise (em colaboração com duas professoras
de classes de progressão) durante o ano letivo de 2006. Na segunda desenvolvemos
uma pesquisa predominantemente de observação participante, como um estudo de
caso etnográfico (em colaboração com uma professora e um professor) durante o ano
letivo de 2007. Essas pesquisas se desenvolveram num contexto de intensa
movimentação no interior das escolas e do sistema de ensino público em que se
fomentam, mais uma vez, políticas de regularização do fluxo de alunos19 nas quais se
insere a organização de Classes de Progressão que são, atualmente, objeto de muita
discussão e questionamento por pais e responsáveis pelos estudantes.
No Brasil, 10% das Escolas adotaram a proposta do Ciclo de Formação e das
Classes de Progressão como programa compensatório de combate ao fracasso escolar,

18 Imagens Etnográficas da Inclusão Escolar: o fracasso escolar na perspectiva do aluno. Relatório Final FAPERJ/
PROCIENCIA/ UERJ AGOSTO/2008
19 A análise do atendimento/freqüência escolar deve ser qualificada levando-se em conta a adequação idade-série do
sistema educacional brasileiro, no qual a educação formal completa se encontra estruturada em um mínimo de quinze
anos de estudo: oito anos para o Ensino Fundamental, três anos para o Ensino Médio e um mínimo de quatro anos para
a Educação Superior. As idades consideradas adequadas a esses níveis de ensino são, respectivamente, sete a quatorze
anos (sendo sete anos na primeira série, oito na segunda, assim por diante); quinze a dezessete anos (quinze anos no
primeiro ano do Ensino Médio, dezesseis no segundo e dezessete no terceiro); e dezoito a vinte e quatro anos
(considerando as distintas durações de cada curso).
14

sendo que no Rio de Janeiro todas as escolas da Rede Municipal de Ensino adotaram
essa proposta. Portanto, esta se tornou uma forte tendência entre as políticas de
educação pública frente às altas taxas de evasão e repetência na última década. Os
governos, com esses programas, encontraram uma “saída” para o problema do fracasso
escolar dos alunos sem, no entanto, disponibilizar recursos necessários. Ou seja, a
proposta era uma tentativa de melhorar as estatísticas de defasagem idade-série e de
exclusão escolar que, em 2007, representavam 25,7% no conjunto das séries do ensino
fundamental (IBGE, 2007). Apenas 45% dos estudantes entre 15 e 19 anos concluíram
os nove anos de escolaridade básica com as competências básicas e 22% do mesmo
grupo etário estavam fora da escola (HANUSHEK and WÖSSMANN, p.57, 2007, In
PUGGIAN, 2008).
A nova forma de organização escolar pela progressão em ciclos de formação,
nas palavras de Freitas (2004) apenas legitimou a exclusão social, através de “um
mecanismo dissimulatório de inclusão formal na escola que transmutou a exclusão escolar
objetiva (repetência, evasão) em exclusão escolar subjetiva (auto-exclusão entre ciclos, “opções”
por trilhas de progressão menos privilegiadas, trânsito formal sem domínio real)” (FREITAS
2004). Críticos à proposta da progressão, Freitas e Neubauer (2000), acreditam que a
mesma foi criada como um programa compensatório de natureza ‘inclusiva’, mas
acaba por legitimar novas formas de exclusão.
Portanto, a lógica da progressão seria avançar ou progredir o aluno de 15, 16, 17
anos de idade (defasado na série) que ainda está na segunda série e que poderia
progressivamente ir para a quarta ou quinta série. Após o professor junto com este
aluno ter trabalhado seus conhecimentos progressivamente, ou “acomodar” suas
avaliações de modo que esta tivesse sido registrada progressivamente de acordo com
desempenho do mesmo até que ele tivesse avançado em conhecimento de um modo
geral ele teria uma chance de progredir na série, dando saltos qualitativos
(FERNANDES, 2007). Dentro desta lógica, o programa de Classe de Progressão no Rio
de Janeiro, talvez tenha sido interrompido porque, sua prática foi invertida, ou seja, em
vez de promover o aluno, ela funcionou em forma de “tracking” (MEHAN, 1992) ou
alinhamento. Isso significaria reposicionar o aluno pela progressão de forma similar a
que era feita pelo sistema de reprovação uma vez que se reprovava o aluno na segunda
série (série equivalente a Classe de Progressão) e encontrávamos alunos que
“repetiam” a progressão por três, quatro e até cinco anos consecutivos.
As observações de sala de aula e os filmes etnográficos derivados das Classes
de Progressão do Ciep C nos mostraram a forma como os programas compensatórios
não têm promovido a regularização do fluxo escolar e sofrem uma “confusão
administrativo-pedagógica” onde a vítima é a criança e o jovem pertencente à Classe
de Progressão. Possivelmente uma explicação para essa “confusão” é que, a Rede de
15

Ensino em 2001, implantou as Classes de Progressão e em 2006 o programa ainda não


era compreendido pelas professoras das classes observadas por nossa equipe, assim
como os livros próprios do programa não eram utilizados (embora pudessem ser
encontrados em abundância no Departamento Regional de Ensino).
Alguns dos alunos ficavam confusos em relação à classe de pertencimento.
Quando nós perguntávamos a que classe eles pertenciam, eles respondiam - “segunda-
série”, “progressão forte”, “terceira”, “primeira”, “progressão”, “progressão fraca”.
Respostas diferentes eram dadas pela mesma criança. As respostas eram justificadas
por eles da seguinte maneira - “porque eu não sei ler nem escrever ainda”, “porque eu
só sei escrever um pouco, mas não sei ler”, “porque eu já repeti três vezes, e aqui é a
sala é dos que repetem”.
A confusão em relação à classe de progressão – progressão fraca, progressão forte,
segunda série – era evidente na fala dos alunos, mas também era percebida por nós entre
as professoras e a direção da escola. Acreditamos que, para os alunos, as aulas das
classes de progressão refletiam essa confusão. Embora as professoras fossem
consideradas competentes por nós e pela direção da escola, as turmas obtiveram fraco
desempenho. Na Classe de Progressão II, dentre os 30 alunos, 16 ficaram reprovados e
na Classe de Progressão I dentre os 30 alunos, 18 foram reprovados.
As Classes de Progressão eram consideradas pelos professores como uma classe
estigmatizada pelo fracasso escolar, na opinião dos mesmos, “uma classe extra”
significando que os alunos iam ser excluídos da escola. Para os alunos, a divisão era
simples: a Progressão I era percebida como “fraca” e representava ficar reprovado por
mais um ano; a Progressão II era “forte” e, portanto, significava a aprovação para
terceira série ao término do ano letivo. Nela, os alunos eram mais velhos (entre nove a
dezessete anos), alguns tinham condições de passar para a terceira série. Outros eram
igualmente fracos como os da outra classe, mas eram repetentes três ou mais vezes.
Nessa classe, a professora, sempre colaborando, dava informações sobre os alunos,
sobre a dinâmica da sala de aula e também sobre casos isolados que afetavam o
andamento da rotina da escola. Suas aulas eram voltadas para tarefas de Matemática e
História e as atividades de sala de aula se resumiam a essas tarefas. Os alunos, de um
modo geral, apresentavam dificuldades em resolver as tarefas o que demonstrava o
nível dos mesmos. Uma das características da interação entre os alunos era uma forma
de ajuda mútua entre eles nas resoluções das tarefas. A professora incentivava esse tipo
de colaboração. Entretanto, mesmo com ajuda, quase todas as crianças tinham
dificuldades e faziam as tarefas incompletas ou com erros.
Na pesquisa realizada na Escola 2 (Projeto de Adolescentes, em 2007) o
desempenho escolar dos alunos, em sua maioria, não alcançava o nível da classe de
alfabetização. Na Classe de Progressão I, somente dois alunos dentre os 31, da faixa
16

etária entre 11 a 16 anos, sabiam ler e escrever, com muitas dificuldades. Em outras
áreas do conhecimento, como Matemática, História, Ciências, eles eram considerados
muito fracos para o nível inicial (1º ano do Ensino Fundamental). Os demais não
atingiam os objetivos escolares para este nível, estavam no nível equivalente ao
segundo ano escolar, sendo que alguns já de idades entre 15, 16, 17 anos.
O fim da Progressão e a implantação dos Ciclos em todo o ensino fundamental
revelou que havia um enorme contingente de alunos com idade entre quatorze e
quinze anos que ainda não haviam passado do primeiro segmento, ou seja, ainda não
tinham sequer sido alfabetizados.
O encontro com esses alunos na Classe de Projeto, possibilitado pela pesquisa,
nos permitiu entender um pouco mais como essa exclusão acontece dentro do
cotidiano escolar. O Projeto que foi planejado para ajudar o aluno, oferecendo uma
maneira diferenciada de acompanhamento escolar com horário ampliado, formação
continuada para o professor, dentre outras propostas, acabou por encontrar os diversos
entraves dentro da escola, que o levaram a reproduzir as mesmas práticas já
naturalizadas no ambiente escolar, estigmatizando mais uma vez estes alunos.
Mas apesar dos problemas que esses alunos e alunas enfrentam na escola, o que
concluímos das três pesquisas realizadas é que eles continuam acreditando no poder
da educação formal para transformar suas vidas. Então, submetem-se às aulas
enfadonhas e inúteis, às múltiplas repetições de mesma série, à violência na sala de
aula, aos programas governamentais para corrigir a distorção idade /série - mas
permanecem na escola, porque ela é importante para eles. A magnitude real do
fracasso escolar pode ser expressa por uma das conclusões dessas pesquisas: aos vinte
anos, esses jovens podem não ter mais escolhas na vida. Afirmamos isso porque dos
quarenta e nove (49) jovens participantes da primeira pesquisa, pelo menos dezenove
morreram vítimas de crimes violentos. Portanto, um dos pontos mais generalizáveis
nesse trabalho é que “o fracasso escolar mata”.

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19

REVISITANDO DADOS E REFLETINDO SOBRE


O USO DE VÍDEO EM ETNOGRAFIA

Helena Amaral da Fontoura

Participar desta coletânea me permitiu revisitar os dados de minha tese


de Doutorado20 escrita há muitos anos. Ouvimos algumas vezes de Frederick
Erickson, a quem devemos a apresentação à etnografia como entendemos hoje,
que os dados de pesquisa podem e devem sempre ser revistos e que isso pode
gerar novas perspectivas para iluminar os que fazem pesquisa. Então aqui estou
frente a mais esse desafio em minha vida profissional.
Minha tese tratou do tema geral Educação Médica, mais especificamente
relação médico-paciente e as implicações desta questão na educação médica.
Utilizei, entre outros recursos da etnografia, a filmagem em vídeo das
interações médico-paciente em um hospital público no Rio de Janeiro
(FONTOURA, 1997).
Este artigo objetiva rever alguns pontos da metodologia escolhida,
buscando tratar da parte operacional do uso de vídeo, tecendo os fios com o
referencial utilizado no trabalho como um todo. Esperamos poder contribuir
para pensar como o uso de etnografia em geral e vídeo gravação em particular
pode contribuir para aprimorar a formação de profissionais que colocamos no
mercado de trabalho todos os anos e os que já estão atuando, a partir do uso
competente desse recurso na pesquisa.
Como trabalhadora na área de Educação e considerando Saúde e
Educação como contribuições complementares, discuti em minha tese de
Doutorado defendida em 1997 questões relativas à prática médica, com ênfase
na relação médico-paciente, na visão de médicos, médicas e pacientes sobre as
práticas em saúde e encaminhei reflexões sobre a prática e a educação médica.
Utilizando a pesquisa etnográfica, busquei uma perspectiva de análise dentro
do referencial construtivista21, que acredita na superação das dicotomias,
apostando numa proposta de construção contínua e mútua dos saberes.

20 “Entre falas e encontros: tecendo fios sobre a prática médica” defendida em 1997 na Escola Nacional de Saúde Pública
(ENSP/Fiocruz)
21 Segundo Becker (1993), construtivismo significa a idéia de que nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que,
especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância como algo terminado. Ele se constitui pela
interação do indivíduo com o meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais; e se
constitui por força de sua ação e não por qualquer dotação prévia, na bagagem hereditária ou no meio, de tal modo que
podemos afirmar que antes da ação não há psiquismo nem consciência, e muito menos pensamento. Freitag (1993)
afirma que o construtivismo parte do pressuposto epistemológico de que o pensamento não tem fronteiras; que ele se
20

Durante um ano eu me tornei parte das atividades diárias do hospital


onde a pesquisa se desenvolveu, principalmente observando interações médico-
paciente, mas também realizando entrevistas com vistas a saber informações
sobre percepções de papéis. Como o registro em vídeo era, à época de meu
trabalho, prática ainda não usual no Brasil, tive que lidar com questões éticas e
de privacidade. A principal questão envolveu o risco do uso de imagens que
pudessem mostrar alguns aspectos da relação que não pudessem ou não
devessem ser mostrados. Para contornar esta questão, além do consentimento
livre e informado preenchido por todos os envolvidos, dois leitores externos,
uma educadora e um médico, examinaram o material selecionado, assim como
opinaram na seleção de imagens capturadas, que sofreram um processo de
disfarce dos rostos.
Como eu percebo, a maior contribuição do meu trabalho foi a de levantar
as questões relativas à observação pelos médicos e médicas de sua própria
prática. Segundo os sujeitos da pesquisa, alguns inicialmente resistentes à
filmagem, o procedimento pode ser muito rico e instrutivo, se usado com fins
educativos e de reflexão. Alguns dos sujeitos eram também professores da
Universidade, o que foi uma interessante situação para pensarmos a função
formadora da pesquisa.
Um dos principais pontos de discussão do trabalho de pesquisa foi o de
que os processos pedagógicos a serem desenvolvidos nas faculdades de
Medicina devem buscar médicos competentes tecnicamente e conscientes de
seu papel social. A articulação necessária é a que visa o binômio ensino-prática,
ressaltando a necessidade de uma formação integral que se dê de forma
consistente.
A necessidade sentida de analisar a prática médica apontou como
fundamental a realização de um trabalho de campo que propiciasse a imersão
no cotidiano de um hospital geral público, com atendimento ambulatorial
prestado por profissionais de clínica médica e comprometidos com a atenção à
saúde pública. Além das entrevistas com médicos, médicas e pacientes, pude
observar, participativamente, a vida no hospital, gravar situações de interação e
depoimentos, gerando numerosos dados para trabalhar.
Um ponto que gostaria de destacar é que o conhecimento é
multifacetado, portanto nossas buscas têm que contemplar este aspecto. Não há

constrói, se desconstrói e se reconstrói. Construtivismo é, então, uma forma de conceber o conhecimento, sua gênese e
seu desenvolvimento e, por conseqüência, um novo modo de ver o universo, a vida e o mundo das relações sociais.
21

como encontrar respostas lineares para nossos questionamentos presentes. Esta


premissa deve nortear todos os que se aventuram pela etnografia, sabendo de
antemão que não encontrarão uma única resposta. Minha pesquisa não poderia
fugir a isso; foi um processo difícil e complexo de ser vivido, cheio de avanços e
recuos, muitas vezes desanimadores. Isto é próprio do processo de aprender a
partir das situações concretas, de procurar documentar uma realidade, que, de
acordo com a literatura a que tive acesso à época, ainda não tinha sido
documentada de forma descritiva, a partir do contexto dos participantes e
usando o recurso de filmagem em vídeo.
Na trama, trago as vozes de médicos, médicas e pacientes e suas
presenças documentadas nas consultas gravadas, comentadas relacionando aos
quadros teóricos disponíveis, à literatura e à observação participante. Na busca
das possíveis soluções para os problemas enfrentados em nossos dias pela
proposta de saúde de qualidade para todos, procurei o discurso dos
profissionais e dos pacientes, para não fazer um discurso sobre eles, bem na linha
da etnografia preconizada por Erickson (1986). Como para esse autor a
preocupação maior da etnografia é com o processo, ao estudar esse tema, o meu
interesse se concentrou em verificar como este processo se manifestava nas
atividades observadas, nos procedimentos e nas interações cotidianas. A
investigação social enquanto processo de produção e enquanto produto é, ao
mesmo tempo, uma objetivação da realidade e uma objetivação do investigador
que se torna também produto de sua própria produção.
Para Spradley (1980), a principal tarefa da etnografia é aprender/ensinar
outras formas de perceber, outros pontos de vista, descrevê-los e refletir sobre
suas possibilidades na construção do conhecimento. De acordo com Haguette
(1987), este tipo de pesquisa procura, basicamente, o significado das ações
humanas, muito mais do que sua aparência. Traz a prática de dar conta dos
passos na tomada de decisões, o que é visto como parte importante do processo
de pesquisa.
Segundo Minayo (1993), qualquer investigação social deve contemplar os
aspectos qualitativos, na medida em que lida com pessoas, seus valores, suas
histórias e experiências de vida. A abordagem etnográfica proposta por
Erickson (1986, 1992) se define como possibilitando a análise dos eventos do
ponto de vista dos atores sociais. Na visão de Erickson (1988), a coleta e a
análise de dados são mutuamente constitutivas; nessa percepção, as diferentes
22

perspectivas que alimentam a análise etnográfica precisam ser profundamente


discutidas, assim como os processos de observação e registro que embasam o
relato final. Para esse autor, quando o pesquisador leva em consideração o
conhecimento dos sujeitos da pesquisa e sua percepção sobre seu próprio poder
de transformação, aí então podemos dizer que a pesquisa pode influenciar as
necessárias transformações nas relações interpessoais e sociais.
Jordan e Yeomas (1995) propõem a criação de uma forma de relação
pedagógica, no sentido amplo, na qual o conhecimento realmente significativo e
a pesquisa de fato constituam as fundações da teoria crítica na sociedade
moderna. Para que tal fato ocorra, advogam a importância da pesquisa
etnográfica como possibilitadora de reflexões sólidas e significativas sobre os
processos interacionais na atividade médica, visando ampliar o campo de
investigação e aprimorar as formas de preparação profissional oferecidas nas
instituiçõe formadoras.
A metodologia de pesquisa etnográfica preconizada por Erickson (1986,
1992) propõe, entre outras formas, um estudo baseado em dados coletados
registrados em vídeo com objetivo de identificar nas gravações as ocasiões onde
situações de interesse possam estar registradas. Esta abordagem tem se
mostrado bastante efetiva em situações de pesquisa nas quais o simples registro
escrito não parece ser capaz de dar conta da complexidade da questão em
estudo.
Esta abordagem de pesquisa se refere a questões de contexto e não é
meramente uma descrição de procedimentos. A concepção teórica que define o
principal eixo de interesse em um estudo deste tipo é bem diferente das
concepções dualistas que pretendem explicar fenômenos por exclusão. Sendo
uma perspectiva construtivista, considera todos os aspectos de um problema
como intrinsecamente ligados, interdependentes e relacionados aos produtos.
Portanto, não se trata de definir técnicas e aplicá-las, mas sim desenvolver um
método de investigação que se alimenta da própria investigação, enriquecendo-
a e ampliando-a enquanto é enriquecido e ampliado por ela.
Neste processo, meu papel, como pesquisadora, é buscar o desvelamento
das práticas vividas, sem perder de vista a especificidade desta prática. Desta
forma, a análise das diversas visões colhidas constituiu tarefa de fôlego, depois
de prolongado período de observação e permanência no hospital geral. Isto
levou, posteriormente, a dispender considerável tempo e energia na
23

decodificação das informações, nas transcrições de fitas de áudio e de vídeo, na


definição das falas utilizadas para ampliar o entendimento, no mapeamento das
situações de interação e suas descrições, e na obra de tecer o texto relatando o
processo.
A seguir descreverei o processo por mim utilizado na coleta e análise das
informações em minha pesquisa na parte referente à utilização do vídeo,
desejando que possamos, partindo da experiência, analisar os aspectos que
possam ser de auxílio e reflexão para os que se aventuram na utilização desse
meio para fazer pesquisa. Gostaria de deixar claro, no entanto, que muitas vezes
os procedimentos se entrecruzam e não são separáveis.
Há dificuldades no uso de vídeo como instrumento de pesquisa, tanto de
ordem técnica quanto de ordem ética. Com relação à questão técnica, filmar é
uma habilidade que se aprende; podemos aos poucos, a partir da experiência, ir
organizando situações que propiciem melhores resultados de imagem e som e
maior familiaridade com o equipamento. Com relação à questão ética, temos
que seguir normas como autorização institucional, consentimento livre e
informado, assegurar aos participantes os propósitos da investigação dando a
eles liberdade de optar pela participação ou não e ter acesso ao material
produzido, assim como devemos planejar a devolução dos dados obtidos; é
desejável que a filmagem seja voluntária para evitar constrangimentos
(FONTOURA, 2001). No caso da presente pesquisa, todos os procedimentos
éticos foram seguidos.
Sobre a questão técnica, um primeiro ponto importante é a necessidade
de domínio do equipamento de vídeo como técnica além de entender o alcance
de suas possibilidades para a pesquisa na área. As inúmeras decisões que
envolvem o planejamento do registro dependem de alguns aspectos: das formas
de utilização do equipamento (como posição da câmera e do operador); do tipo
de focalização (relacionado ao objeto de pesquisa) e do tempo e ambiente
(condições e familiarização).
Segundo Spradley (1980), alguns procedimentos facilitam o uso de vídeo
como elementos de registro de dados em pesquisa. Entre eles, assistir a fita
várias vezes, selecionando os eventos principais para seus objetivos de
pesquisa, sinalizando nas transcrições, procurar um olhar mais global ao invés
de ver os eventos isoladamente.
24

O registro deve começar um pouco antes e continuar até após os eventos


terem terminado, a fim de dar tempo para que todos se familiarizem com o
equipamento presente na situação e para não perder os minutos finais que
algumas vezes podem ser preciosos; comparo a uma situação de entrevista,
quando o pesquisador agradece a participação e se prepara para desligar o
gravador e o entrevistado diz algo como ‘ não sei se é importante, mas...’ e aí faz
um depoimento importante para o que está sendo pesquisado.
Para um registro seguro é importante que se planeje a duração
aproximada da gravação; o pesquisador precisa também conhecer o espaço que
será filmado para evitar problemas durante a filmagem. Se possível observar
durante alguns dias o cotidiano do grupo, as atividades desenvolvidas e a
organização do espaço. Segundo Spradley (1980), o operador deve mover a
câmera o menos possível, pois isto ajuda a fixar a imagem na interação e
previne contra maiores distrações pela presença da filmagem durante o evento.
Isto nem sempre ocorre, devido, muitas vezes, a problemas técnicos e
operacionais, mas é um procedimento aconselhável.
Precisei me familiarizar com o equipamento, aprender a manuseá-lo,
treinar filmagens e testar a câmera antes do início das vídeo-gravações. Esses
procedimentos evitaram problemas, como uma possível perda de dados, que
poderiam acarretar prejuízos à investigação.
Como já dito, fiquei um ano indo semanalmente ao campo – um hospital
universitário de grande porte – para construir o corpus dos dados. Inicialmente
não levava a filmadora, apenas circulava no espaço e me fazia familiar. Quando
comecei a levar a máquina, vivi situações interessantes, como quando alguns
pacientes me perguntaram se eu fazia parte de uma grande rede de televisão.
Entendo que seja uma preocupação e ao mesmo tempo uma curiosidade: o que
vai ser feito das imagens registradas? qual será o uso disso?
Nesse aspecto é fundamental contar com a posição que o pesquisador
deve adotar, de informar sobre seu real papel ali; todas as vezes que fui
abordada com questões a respeito de minha presença no hospital e do uso de
vídeo gravação expliquei a quem me perguntou, de forma objetiva, os
propósitos da pesquisa e o uso que seria feito do material coletado. Se as
limitações e vantagens do uso da filmagem ficarem claros para o pesquisador,
as chances de sucesso na coleta de material são múltiplas.
25

Com relação ao planejamento das gravações, o pesquisador deve pensar


sobre o que quer registrar e a partir disso planejar os planos de gravação; se
quer pensar na interação não deve filmar apenas um dos participantes o tempo
todo. A definição prévia do recorte do fenômeno focalizado é direcionada
pela(s) pergunta(s) de partida. O tipo de focalização em um grupo de sujeitos,
ao invés de em apenas um, já indica uma orientação teórica subjacente de que,
por exemplo, o fenômeno relevante é a interação e não o comportamento
individual. Mas mesmo com todo planejamento, temos que ter claro que
filmaremos o que a câmera captar e trabalharemos com o que obtivermos. Ao
contrário de ser um espontaneísmo, essa premissa nos liberta de buscar
imagens que correspondam ao que queremos encontrar. Também mais uma vez
no melhor sentido etnográfico, analisamos o que encontramos e não
encontramos algo que buscamos previamente.
Para transcrever os registros devemos procurar descrever nos mínimos
detalhes os episódios, identificando a duração de cada um, separando-os das
impressões e observações. Para isso os vídeos devem ser assistidos inúmeras
vezes e podem ser transcritos na íntegra, o que se mostra uma tarefa de fôlego.
Para algumas transcrições pode ser procurado um auxílio externo, mas o
pesquisador pode ter que refazer parte do trabalho, pois só ele esteve presente
na cena filmada e pode, portanto, dar significado mais preciso aos fatos
registrados (FONTOURA, 2001). Mais uma vez apontamos para a importância
da observação participante e para a presença do pesquisador, o que possibilita
lembrar fatos e falas que às vezes estão inaudíveis nas gravações, assim como as
nuances de comportamento face a face e expressões faciais e corporais
importantes para a significação dos eventos a serem analisados.
A preservação do registro em vídeo permite a análise de situações de
observação, dando a este recurso tecnológico destaque de importância para se
pensar as interações sociais humanas, a sistematização das observações através
da repetição do fenômeno focalizado, a possibilidade de retornar ao mesmo de
forma a repensá-lo, elaborar e reelaborar categorias, testar hipóteses
futuramente (CARVALHO, 1996). Também permite sua utilização para análise
de questões novas, algumas até não previstas no planejamento original da
pesquisa, assim como diferentes leituras por pesquisadores de outras
orientações teóricas, podendo-se, ainda, trabalhar com micro categorias, auxiliar
na formação de profissionais, que os mesmos se vejam, se re-vejam e analisem
26

suas práticas (FONTOURA, 2001), podendo trazer uma otimização no uso do


tempo na coleta de dados e uma ampliação do tempo de reflexão.
Para buscar uma relativa fidedignidade dos fatos na pesquisa utilizando
vídeo gravação, alguns cuidados são importantes, como: fazer uma análise
repetida e exaustiva das cenas/episódios desde que se mantenham os mesmos
pressupostos teóricos explicitados no estudo (DESSEN, 1995), aprimorar a
experiência do pesquisador com as técnicas de observação, sua familiaridade
com o objeto de estudo não esquecendo as características específicas do projeto
de pesquisa.
Um procedimento que auxilia bastante é o da triangulação dos dados,
que é a obtenção de resultados através de outros instrumentos, tais como:
entrevista, questionário e a própria observação participante do pesquisador no
ambiente de pesquisa, o que foi feito no trabalho de tese que possibilitou esse
artigo.
Uma contribuição relevante é ter em mente que após a etapa de
transcrição do registro, podemos fazer um recorte dos episódios, também
direcionado pela pergunta de partida. Em seguida, selecionamos os elementos
ou aspectos com características comuns ou que se relacionam entre si,
estabelecendo assim, classificações. Utilizo em meus trabalhos a idéia de
tematização, que é a escolha das situações mais relevantes e significativas, em
geral extraídas das falas ou das imagens que mais dizem ao pesquisador de seu
assunto escolhido. O processo de tematização decorre das experiências do
pesquisador, de suas leituras e de seu foco de atenção; os mesmos dados vistos
por outro pesquisador podem gerar temas distintos pois cada um tem seu
próprio modo de enxergar o que a pesquisa mostra.
Alguns temas podem ser elencados antes da videogravação, na fase
exploratória da pesquisa, de uma forma mais geral, requerendo uma
fundamentação teórica sólida por parte do pesquisador. Já os temas derivados a
partir do registro e análise dos dados, os emergentes, são mais específicos e
mais concretos. Nada impede que sejam realizados os dois procedimentos
juntos, cotejando os temas iniciais e os derivados do trabalho de campo. O
importante é que o pesquisador relate os procedimentos aos seus leitores de
forma clara para que entendam os processos de escolha e de análise.
Na etapa de compreensão e análise dos dados, devemos estabelecer
articulações entre os dados e os referencias teóricos utilizados na pesquisa,
27

relacionando o concreto e o abstrato, o geral e o particular, a teoria e a prática.


No caso da presente pesquisa, a partir dos relatos em entrevistas com médicos e
pacientes foram sendo desvelados alguns significados e algumas pistas para
tematizar o que estava sendo dito. Aqui trago alguns exemplos de tematização,
um a partir do campo e outro a partir dos pressupostos iniciais.
Revendo as filmagens e relendo os arquivos transcritos de entrevistas e
áudio gravações, uma expressão que saiu muito em várias falas foi algo na linha
do ‘ veja bem...’ , ‘ olha aqui...’, ‘ o paciente vê...’, ‘quando o médico me ‘olha’...’,
expressões que levaram a eleger o olhar como uma das possibilidades de
análise. Nas imagens selecionadas, a direção dos olhares está sinalizada por
linhas em amarelo (no original). Foi considerada como uma melhor relação
médico-paciente aquela que apresentasse alguma significativa troca de olhares.
Outro tema, este derivado das leituras sobre expressão corporal, diz
respeito a como as posturas são registradas, atribuindo a posturas inclinadas na
direção do outro uma comunicação mais aproximada e a posturas inclinadas
para trás uma dificuldade de comunicação, pelo menos no momento do
registro. Os esquemas corporais posturais foram sinalizados em vermelho no
original.
Temos a seguir alguns exemplos de imagens capturadas de interações
em ambulatório de hospital público no Rio de Janeiro, a partir da captura de
imagens registradas em vídeo, com comentários sintéticos abaixo de cada uma.
É importante frisar que para um denso trabalho de relato de dados, as análises
das imagens observadas e selecionadas devem ser bem mais completas.

Inserir foto 1

Nessa interação, o médico parece estar se ausentando da cena, com o olhar fixo no prontuário, e
a paciente tentando ganhar espaço colocando o cotovelo na mesa. Não há contato visual. Ambos
olham para o mesmo ponto, o prontuário.

Inserir foto2

Nessa interação, há contato visual, a médica inclinada para frente, demonstrando grande
interesse no paciente; este ainda parece timidamente tentar ocupar um espaço, também
ligeiramente inclinado para frente, com o cotovelo esquerdo na mesa.
28

Inserir foto3

Na interação acima, a postura da médica sugere que ela está presente na interação; a paciente
está inclinada para frente, interessada no que a médica está dizendo.
Há contato visual.

Inserir foto4

Esta interação, com contato visual, sugere uma imagem - espelho, na qual médico e paciente
parecem estar em proximidade; os corpos paralelos e os gestos iguais.

Elencamos apenas uma pequena parte da análise de imagens, mais para


dar uma noção do procedimento do que propriamente para contar os
resultados. O propósito desse texto é justamente chamar atenção para as
possibilidades do uso de vídeo como auxiliar nos processos de pesquisa
etnográfica, e essas possibilidades são múltiplas. Como já visto, a análise de
dados em etnografia crítica é, em geral, constituída de um verdadeiro mosaico
de procedimentos como: descrição, comparação e interpretação dos eventos de
acordo com a visão de pesquisadores e com a percepção dos participantes.

Considerações finais

"A prática de pensar a prática é a melhor maneira de aprender a pensar certo.


O pensamento que ilumina a prática é por ela iluminado, tal como a prática que ilumina o
pensamento é por ele iluminada”. (Paulo Freire)

Argumenta-se freqüentemente que os resultados de pesquisa qualitativa


não podem ser generalizados para outras situações. Embora concorde com esta
premissa e não tenha pretensões de concluir com achados generalizáveis,
aponto e discuto durante o trabalho algumas das questões que afloraram,
trazendo pontos comuns, problemas e dificuldades encontrados pela grande
maioria dos que se aventuram nessa abordagem de pesquisa. Um dos pontos
cruciais é que a investigação retorne, sob forma de sugestões de melhorias, aos
que dela fizeram parte.
Se acreditamos que todas as formas de comportamento observável têm
um papel na comunicação, se vemos que tanto a estabilidade quanto a
transformação têm importância nas situações de interação e se reconhecemos a
alteridade como fator determinante na interdependência dos padrões de
29

comunicação, reconhecemos a necessidade de se fazer descrições detalhadas


dos diversos comportamentos observados. E uma das melhores formas de fazer
isso é utilizando recursos audiovisuais de gravação.
Rever e escrever sobre o processo de fazer etnografia é quase com fazer
etnografia em si. Eu sou uma educadora, trabalhando com educação de
educadores há algum tempo, e decidi aplicar minha experiência ao olhar o que
chamei de aspectos pedagógicos presentes na relação médico-paciente.
Educação e saúde podem ser vistas como partes integrantes na constituição dos
sujeitos sociais, ferramentas para que se tornem mais saudáveis e mais
equipados para lidar com a vida diária e seus desafios. Nessa interlocução, o
vídeo veio como ferramenta possibilitadora de registro que em muito fortaleceu
a pesquisa.
Quando estamos estudando um assunto, não há ponto final de chegada,
apenas conquistas parciais. O processo está sempre em construção, o que
determina os limites é a nossa capacidade de investigação e a certeza da
dinâmica ao fazer ciência, sem reduzi-la à simples experiência. O produto é
sempre temporário, resultante dos vários momentos da pesquisa, mas sua
compreensão não pode ser apenas contemplativa, deve incluir os sujeitos
envolvidos, suas questões e suas contribuições. Pesquisando, revelamos nossas
práticas, nossas crenças, nossos pensamentos, construímos conhecimento. Por
exemplo, na pesquisa de campo tivemos ocasião de ver algumas das filmagens
durante o processo e os comentários dos participantes foram sendo
incorporados à escrita do relatório final.
A investigação social é um processo de produção de conhecimento e um
produto em si, tornando a realidade mais visível e permitindo ao pesquisador
ampliar as possibilidades contidas nesta perspectiva. Os atores sociais precisam
ser envolvidos, manifestar suas opiniões, dúvidas e certezas, significados e
práticas fundamentais para a qualidade da saúde por eles/elas oferecida à
população. Assim fazendo, a pesquisa pode encontrar caminhos para um
melhor entendimento das interações que se estabelecem entre os que dela
participam.
A característica de preservação do registro obtido na pesquisa através do
tempo traz esta possibilidade de retorno ao material para repensá-lo, elaborar
categorias de análise, até mesmo em conjunto, construindo o sonho da pesquisa
colaborativa de que nos falam Fontoura e Mattos (1998). E há sempre a imensa
30

possibilidade de surgirem novas questões de pesquisa e novas alternativas


ainda não pensadas a partir das análises dos vídeos, e da construção de
modelos de atuação condizentes com a realidade vivida.

Referências

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SPRADLEY,JP. Participant observation. New York: Holt, Rinehart and Winston,
1980
31

O ENSINO ITINERANTE COMO APOIO PARA A INCLUSÃO DE


ALUNOS COM NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS EM
CLASSES REGULARES: UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA22

Márcia Denise Pletsch


Rosana Glat

Nos últimos quinze anos vem crescendo, no Brasil, o discurso em prol da


“Educação para Todos”, como parte de uma política mais ampla de inclusão
social, sob forte influência de diretrizes internacionais. Dentre os quais, destaca-
se a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em 1990 em
Jomtien, na Tailândia, e, a Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais
Especiais: Acesso e Qualidade, que originou a conhecida Declaração de Salamanca
(UNESCO, 1994). Naquela ocasião, foi reafirmado o direito à “Educação para
Todos”, bem como foi adotado o conceito de Educação Inclusiva, o qual se
globalizou e vem influenciando a elaboração de políticas públicas e práticas
educacionais praticamente em todo o mundo.
A partir da Declaração de Salamanca o significado da expressão
“necessidades especiais” foi cunhada, passando a abranger desde pessoas que
apresentam dificuldades de escolarização decorrentes de condições econômicas
e socioculturais até pessoas com todo tipo de deficiências. Em outras palavras,
alunos com necessidades educacionais especiais são aqueles que apresentam
dificuldades específicas no processo de aprendizagem, podendo necessitar de
apoio e serviços da Educação Especial durante todo ou parte do seu percurso
escolar, de forma a facilitar o seu desenvolvimento acadêmico, pessoal e
“socioemocional” (PLETSCH, 2005).
Em consonância com os preceitos estabelecidos em Salamanca, diversas
leis e diretrizes institucionais foram criadas no Brasil nos últimos anos no
sentido de estabelecer o direito social das pessoas com necessidades especiais
serem incluídas na rede regular de ensino.
Estes princípios estão reafirmados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB (Lei nº 9.394/96) e nas Diretrizes Nacionais para Educação Especial
na Educação Básica (CNE/CEB, 2001), que dispõem sobre a organização dos
sistemas de ensino e a formação de professores. Outra referência importante é a
Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (1999), que

22 Trata-se da dissertação de mestrado da primeira autora, orientada pela segunda autora. Os resultados aqui
apresentados foram parcialmente publicados na Revista UNOPAR CIENTÍFICA Ciências Humanas e Educação (2006) e
na Revista Iberoamericana de Educación (2007).
32

estabelece a “matrícula compulsória de pessoas com deficiência em escolas


regulares”. Já o Plano Nacional de Educação de 2001 fixa os objetivos e metas para
a educação de pessoas com necessidades educacionais especiais. Por fim, cabe
lembrar o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) que dispõe, em seu artigo
13, que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana”.
No entanto, como apontado por vários autores (BUENO, 2001; GLAT &
NOGUEIRA, 2002; GLAT, et. Al., 2003; RODRIGUES, 2006; PLETSCH &
FONTES, 2006), a elaboração desses dispositivos legais não garante as
condições necessárias para o seu devido cumprimento nas escolas. Tem sido
constato inúmeros fatores que obstaculizam a concretização da inclusão escolar
na prática cotidiana das escolas tais como: o número excessivo de alunos nas
salas de aula, os procedimentos inadequados de avaliação, a falta de conteúdos
e atividades adaptadas para atender os alunos com necessidades especiais, a
precária acessibilidade física de muitas escolas, a descontinuidade de
programas bem sucedidos em função de mudanças nas políticas
governamentais. A estes somam-se as barreiras culturais ou atitudinais, mais
difíceis ainda de serem removidas, como o preconceito e a estigmatização.
Entre esses aspectos uma das maiores barreira para a efetivação da
inclusão, é a inadequação da formação dos professores para o trabalho
pedagógico com as especificidades do processo ensino-aprendizagem de
crianças com necessidades educacionais especiais inseridos em classes regulares
(MICHELS, 2004; GLAT et al., 2003; PLETSCH, 2005; PLAISANCE, 2006;
RODRIGUES, 2006; DENARI, 2006; BAPTISTA, 2006; PLETSCH, 2006).
Portanto, urge que a formação de professores (tanto inicial quanto continuada)
contemple conhecimentos e vivencias que possam desencadear novas atitudes
que permitam a compreensão de situações complexas de ensino-aprendizagem
diante da diversidade.
Nessa direção, uma proposta interessante é defendida por Bueno (1999a
e 2001), segundo a qual o modelo inclusivo requereria a formação de dois tipos
de professores: a) generalistas, responsáveis pelas classes regulares e capacitados
com um mínimo de conhecimento e prática sobre a diversidade do alunado; b)
especialistas, com conhecimento em uma ou mais necessidades educacionais
especiais, que seriam responsáveis por oferecer o necessário suporte, orientação
e “formação continuada em serviço” aos professores do ensino regular, bem
33

como para atuar diretamente com alunos em classes especiais, salas de recurso
ou professor itinerante, etc (BUENO, 1999a e 2001; GLAT & NOGUEIRA, 2002;
MENDES, 2002 & 2003; PLETSCH, 2005). É oportuno lembrar que o artigo 59 da
LDBEN de 1996 reconhece a importância da formação de professores
especializados para atender pessoas com necessidades especiais, em quaisquer
modalidades de ensino23.
Pela proposta de Bueno, combinar-se-iam o trabalho do professor regular
e a atuação do professor especializado, pois o generalista teria o mínimo de
conhecimento e prática com alunos especiais, enquanto o especialista teria
conhecimento aprofundado e prática sistemática no que concerne a
necessidades educacionais específicas. A formação pedagógica do especialista
deveria ser de caráter geral, com aprofundamentos específicos que permitiriam
um atendimento especializado. Antes de tudo, portanto, seria um professor,
encarregado de auxiliar e dar apoio ao professor regular.
As linhas centrais dessa proposta constam do Plano Nacional de Educação
(MEC, 2000), que aponta a integração entre professores da Educação Especial e
da educação regular como uma das ações necessárias para efetivação da
educação inclusiva.
Entre as modalidades de atendimento especializado que dão suporte à
inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais em classes
regulares, destaca-se o Ensino Itinerante. Este serviço é constituído por um
professor que “presta assessoria às escolas [e orienta aos professores] regulares
que possuem alunos com necessidades especiais incluídos (...), [tendo] como
atribuição a produção de materiais pedagógicos necessários ao trabalho com
estes alunos. E, quando necessário, atende individualmente o aluno especial
incluído24 (SME/IHA/RJ, 1999, s/p).
Em recente pesquisa propôs-se como uma das alternativas para a
efetivação da inclusão educacional investimentos na modalidade de ensino
itinerante como suporte para rede regular com alunos incluídos (PLETSCH,
2005). A referida investigação foi realizada na Rede Pública Municipal de
Educação do Rio de Janeiro, tendo como objetivo geral analisar as

23 Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais: (...) III - professores com
especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do
ensino regular capacitados para a integração [leia-se, inclusão] desses educandos nas classes comuns (grifos da autora).
24 O professor itinerante também presta atendimento educacional domiciliar para alunos com necessidades especiais
impedidos de freqüentar a escola (temporária ou permanentemente) por limitações físicas ou estado de saúde. Porém,
aqui será considerado apenas o trabalho realizado pelo professor itinerante em escolas.
34

possibilidades e limites do ensino itinerante como alternativa facilitadora do


processo de inclusão escolar. Para isso, foi acompanhado, em um estudo do tipo
etnográfico, o trabalho de duas professoras itinerantes que atuavam em três
escolas da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Também participaram desse estudo,
demais agentes escolares — professores de classes comuns, Diretores,
Coordenadores Pedagógicos e funcionários da escola —, pais dos alunos
especiais em inseridos em classes regulares, bem como a equipe responsável
pela Educação Especial na região das três escolas.
Vale observar que o Rio de Janeiro possui a maior rede pública
municipal de Educação da América Latina, com mais de mil escolas e acima de
setecentos mil alunos matriculados. A administração desse universo escolar é
descentralizado em dez Coordenadorias Regionais de Educação (CREs)
distribuídas por todo o Município.
O órgão que administra e implementa as ações e políticas dirigidas aos
alunos com necessidades especiais é o Instituo Helena Antipoff (IHA), criado
em 1974. O IHA tem como uma de suas atribuições a formação continuada dos
professores das classes comuns que recebem alunos especiais, bem como dos
que atuam nas modalidades especializadas de atendimento direto ou de
suporte, entre essas, o ensino itinerante.
Como já mencionado, o presente estudo teve como referencial téorico-
metodológico a pesquisa do tipo etnográfico (BOGDAN & BIKLEN, 1994;
ANDRÉ, 1995; MATTOS, 2001, 2002, 2002a, 2003, 2006; PLETSCH, 2005 e
outros). Foram utilizados os seguintes procedimentos de coleta de dados: 1)
observação participante (notas de campo); 2) microanálise do contexto
(gravação em vídeo); 3) análise de documentos (legislação, relatórios dos
participantes, atas escolares e fichas de alunos); 4) entrevistas semi-estruturadas
com os sujeitos participantes (gravação em áudio). O método de interpretação
dos dados seguiu a proposição de Bardin (1977) conhecida como “análise de
conteúdo”. Trata-se, pois, de uma pesquisa qualitativa, sem qualquer pretensão
amostral e quantitativa. Os dados obtidos na pesquisa foram agrupados em três
categorias: a) formação e requisitos de seleção para o trabalho como professor
itinerante; b) relações, práticas e dificuldades vivenciadas pelo professor
itinerante; c) o ensino itinerante como suporte para a inclusão escolar.

1. Formação e seleção para o trabalho como professor itinerante


35

Conforme relatado pelos participantes, na Rede Pública Municipal de


Educação do Rio de Janeiro, não há requisito de formação inicial especializada
para trabalhar como professor itinerante. É exigido apenas que o professor
tenha sido aprovado em concurso público e faça parte do quadro do magistério
do Município. Sobre este aspecto, o depoimento a seguir é ilustrativo:

Para o ensino itinerante, primeiro a gente observa [o professor]. Eles [professores


observados] são convidados por nós. Na maioria das vezes é aquele professor que já trabalhou
conosco numa classe especial ou cujo trabalho em turma regular já conhecemos ou já tivemos
contato. (...) É lógico que, num primeiro momento, fazemos uma entrevista com esse professor
para podermos ter uma idéia do que ele pensa, do momento ele está vivendo enquanto professor.
Observamos a prática pedagógica e em que teoria essa prática se baseia respaldada. Nós também
procuramos saber o olhar dele sobre o aluno com necessidades especiais e também o que ele traz
de bagagem em relação à proposta de escola inclusiva. Ou seja, se ele tem alguma experiência,
mas não é necessário que ele tenha alguma formação específica. (...) Esse professor é
capacitado em serviço. (entrevista com a representante da equipe de Educação Especial
responsável pela seleção dos professores itinerantes) (grifo nosso) (representante
lotada na CRE integrante da Equipe de Educação Especial).

Pode-se perceber que a seleção para essa função ainda é marcadamente


subjetiva, baseada na percepção e avaliação da equipe de Educação Especial da
CRE. Mais importante do que a formação profissional, considera-se que o
futuro professor itinerante deve mostrar “interesse” e “sensibilidade” para lidar
com pessoas com necessidades especiais. É razoável afirmar que essa forma de
seleção não é exclusiva do Município do Rio de Janeiro (GLAT et. al., 2003;
PLETSCH, 2005).
Esta lacuna de formação inicial é compensada por um programa de
capacitação em serviços para os professores itinerantes, incluindo diferentes
procedimentos como seminários, reuniões, oficinas e cursos, além de
acompanhamento pela equipe da Educação Especial do IHA (MAGALHÃES,
1999). Todavia, pelos dados obtidos na presente pesquisa indicam que a
capacitação oferecida aos professores itinerantes ainda não parecer ser
suficiente para lhes permitir lidar de forma segura com as especificidades desse
alunado. Não resta dúvida de que para se levar com sucesso a proposta de
inclusão escolar, a formação continuada em serviço de professores itinerantes é
imprescindível; entretanto, a mesma deve ser contínua — e não episódica —,
mesmo para aqueles profissionais que já são especialistas.
Cabe dizer que o Ministério da Educação, em documento denominado
Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, aponta que o
36

professor itinerante deve ser um profissional especializado. Contudo, não


estabelece se tal formação deve ser prévia ao ingresso na função ou em serviço:

A itinerância é um serviço de orientação e supervisão pedagógica


desenvolvida por professores especializados que fazem visitas
periódicas às escolas para trabalhar com os alunos que apresentam
necessidades especiais e com os respectivos professores de classe
comum da rede regular de ensino (MEC/SEESP, BRASIL, 2001, p.50)
(grifo nosso).

Há uma controvérsia a respeito da necessidade de formação específica.


Alguns estudiosos rejeitam a sua necessidade, argumentando que todos os
professores deveriam saber trabalhar com as especificidades de cada aluno,
uma vez que a inclusão escolar figura como uma diretriz da política
educacional nacional (MANTOAN, 2005). Entretanto, o que pesquisas nacionais
e internacionais vêm mostrando que a iniciativa de práticas escolares inclusivas
bem sucedidas tem sido, de modo geral, oriunda e/ou com suporte da
Educação Especial (GLAT, FONTES & PLETSCH, 2006).
Outro aspecto que chamou atenção nos depoimentos das professoras
itinerantes foi a importância atribuída ao trabalho em equipe (professores de
classes comuns, coordenadores pedagógicos e professores itinerantes),
considerado indispensável para se alcançar bons resultados, não só para a
inclusão de alunos com necessidades especiais, mas para a prática pedagógica
como um todo. Em outras palavras, no caso dos participantes dessa pesquisa,
essa articulação constitui, de fato, uma oportunidade para construírem novas
possibilidades e estratégias de atuação, reflexão e experimentação. Esse
trabalho coletivo é fundamental, sobretudo para aqueles que não receberam em
sua formação inicial conhecimentos sobre as especificidades do processo
ensino-aprendizagem de crianças com necessidades educacionais especiais.

2. Relações, práticas e dificuldades vivenciadas pelo professor itinerante

A pesquisa evidenciou que o trabalho das professoras itinerantes é


diversificado, exigindo ações e atitudes diferenciadas em cada escola. As falas
abaixo ilustram a percepção geral das mesmas sobre a sua prática diária nas
escolas.

O meu cotidiano é bem desafiante, pois cada caso é um caso, ou seja, cada realidade
escolar, cada necessidade especial, cada criança que é portadora de necessidades especiais
é uma (professora itinerante A).
37

A itinerância é percorrer caminhos diversos. Todas as manhãs eu me dirijo a alguma


escola onde vou atuar junto a um aluno integrado e, em decorrência, junto à turma em
que ele está inserido e junto a todo o universo escolar onde esta criança está inserida
(professora itinerante B).

É importante assinalar que, em cada dia da semana as professoras


itinerantes, participantes desta estudo atuavam em uma escola diferente. A
professora itinerante A em 2004 lecionava em cinco escolas, meio expediente em
cada uma; enquanto a itinerante B trabalhava em sete escolas, o que não lhe
permitia estar em todas uma vez por semana. Na região onde se situavam as
escolas investigadas, durante o período de coleta de dados (2004-2005) apenas
sete professores itinerantes em exercício. Supondo que todas as 132 escolas
municipais compreendidas nesta jurisdição em tese deveriam ter alunos
especiais incluídos em classes comuns, para garantir seu atendimento, cada
professora itinerante teria que ser responsável por 18 escolas!
A entrada das professoras itinerantes nas escolas, como observado, segue
uma certa rotina. Ao chegar na escola, a itinerante passa na Direção e/ou na
Coordenação avisando de sua entrada e as cumprimenta, aproveita para deixar
a sua folha de freqüência que a Diretora assina e lhe entrega na saída da escola.
É geralmente nesse momento, quando ocorrem as conversas com a
Coordenação Pedagógica sobre os alunos especiais incluídos. Em seguida, a
professora itinerante dirige-se à sala de aula em que atua. Sobre a atuação em
sala de aula segue o depoimento:

Cada sala de aula exige um jeito diferente de chegar para que eu possa atingir aquilo que
quero, que é a aprendizagem daquele aluno que está integrado [lê-se incluído]. Até
porque não posso chegar com visões pré-estabelecidas ou receitinhas de bolo, porque na
vida não se tem receitinhas de bolo e nas escolas também não se tem. (professora
itinerante A).

Nesse sentido, o cotidiano da professora itinerante demanda uma grande


flexibilidade e implica em uma atuação variada, conforme as relações pré-
estabelecidas em cada escola, até mesmo em cada sala de aula.
Outro limite vivenciado de forma persistente pelas itinerantes é a
resistência (em maior ou menor grau, explícita ou implícita) por parte dos
professores regentes das classes comuns e dos demais profissionais escolares à
inclusão de alunos com necessidades especiais. Tal resistência se revela,
sobretudo, na dificuldade dos professores adaptarem as atividades e
38

modificarem a sua prática pedagógica, de modo a contemplar a diversidade do


alunado presente em sua sala de aula.
Mesmo assim, foi constatado que as relações estabelecidas entre as
professoras itinerantes e o conjunto de agentes escolares — coordenadores
pedagógicos, diretores, funcionários da escola e, principalmente, professores
regentes das classes onde a itinerante atuava — facilitam a inclusão de alunos
com necessidades especiais, além de melhorar a prática pedagógica com os
demais alunos. Ou seja, o suporte oferecido pelo ensino itinerante tem trazido
uma maior “segurança” aos professores, no que tange à sua atuação com alunos
especiais incluídos, apesar dos mesmos, em geral, não terem conhecimentos
específicos a respeito das peculiaridades apresentadas por essas crianças.
Merece atenção ainda, conforme as observações realizadas, a
proximidade das professoras itinerantes com as famílias dos alunos especiais. O
depoimento de uma mãe, reproduzido a seguir, sintetiza a importância da
presença da professora itinerante para a inclusão escolar de seu filho, percebida,
por sua vez, como pré-condição para a sua inclusão social:

A itinerante do meu filho o acompanha desde o ano passado em outro colégio, e ela foi
muito importante, como é até hoje. Ela auxilia a professora dele, porque está sempre
acompanhando todas as dificuldades do meu filho e o que ele consegue fazer de melhor.
Está sempre em contato comigo (mãe de aluno especial incluído em classe regular).

Portanto, as orientações e esclarecimentos oferecidos aos familiares como


parte do trabalho educacional desenvolvido pela professora itinerante,
influenciam de maneira favorável no desenvolvimento desses alunos. Ou seja, o
trabalho do professor itinerante com as famílias de alunos com necessidades
especiais ajuda a fortalecer a confiança dos pais em relação ao desempenho e
possibilidades de desenvolvimento, aprendizagem e inclusão social de seus
filhos.
3. O ensino itinerante como suporte para a inclusão escolar

O ensino itinerante é uma modalidade de suporte especializado ainda


pouco analisado no sistema educacional brasileiro. Por isso mesmo, toda
discussão a seu respeito tem, necessariamente, um caráter preliminar e
exploratório. Nessa direção serão apresentados, aqui, alguns dos limites que
esses profissionais têm enfrentado em sua atuação, e quais possibilidades
podem ser vislumbradas. Também foi foco de interesse da investigação as
39

perspectivas e as aspirações que esses professores têm em relação ao futuro de


seu trabalho e à sua contribuição para o processo da Educação Inclusiva.
De acordo com os dados obtidos, o papel do professor itinerante vai além
da prática pedagógica direto ao aluno especial incluído e as orientações dadas
aos professores na elaboração de planos de aula, conteúdos e programas de
ensino adaptados. É um trabalho que se volta para dimensões mais amplas do
contexto educacional, levando em consideração até mesmo as atitudes dos
professores da classe comum no relacionamento com os alunos e os colegas.
Muitas vezes, o professor itinerante tem de discutir com a comunidade extra-
escolar, esclarecendo e orientando os familiares de alunos com e sem
deficiência. Quando têm a oportunidade de participar das reuniões de pais,
encontram um espaço privilegiado para desmontar preconceitos e estigmas
historicamente reproduzidos em relação às pessoas com necessidades especiais.
Nos depoimentos coligidos com os profissionais das três escolas
participantes, foi significativa a referência ao professor itinerante “como um
agente de mudança e transformação”. O pressuposto subjacente a este conceito
é de que o trabalho do itinerante deva proporcionar uma nova postura de todos
os elementos da escola, envolvidos direta e indiretamente com os alunos
especiais incluídos. Esse aspecto aponta para um dos princípios fundamentais
da Educação Inclusiva, qual seja, favorecer mudanças nas práticas escolares, no
currículo, na metodologia de ensino, na avaliação e na atitude dos educadores
(BRASIL/MEC/SEESP, 2001).
Diante do exposto, pode-se afirmar que o professor itinerante desenvolve
múltiplas funções na escola, orientando e auxiliando professores, intervindo
junto aos alunos e esclarecendo a todos os membros da comunidade escolar no
que tange ao processo de inclusão.
Em síntese, com base nos pressupostos da etnografia, verificou-se que a
ação do professor itinerante, apesar das limitações, contribui para a inclusão
educacional de alunos com necessidades especiais, à medida que “tenciona”, no
interior do espaço escolar, determinadas concepções e práticas estabelecidas.
O professor itinerante desempenha diversas funções no ambiente escolar,
não se restringindo apenas às tarefas que lhe cabem formalmente. Na prática, as
professoras itinerantes que participaram desta pesquisa atuavam como agentes
de mediação, sensibilização e mobilização pró-inclusão junto ao conjunto de
personagens responsáveis pela dinâmica cotidiana das escolas. Seu trabalho,
40

portanto, não se limitava à questão pedagógica stricto sensu, mas envolvia a


esfera da cultura e dos valores constitutivos das relações intra-escolares e da
escola com a comunidade em seu entorno. Isto é muito significativo, porque
revela que a inclusão escolar ainda depende sobremaneira do esforço que o
segmento dedicado à Educação Especial desempenha. Portanto, transformar a
proposta de Educação Inclusiva numa tarefa de todos os personagens que dão
vida às relações escolares acaba sendo um dos principais papéis que o ensino
itinerante realiza.
Embora existam evidências claras a respeito da viabilidade do ensino
itinerante, também foram explicitadas uma série de dificuldades e limites
vivenciados por essas professoras. Para que a inclusão escolar seja efetivamente
viável, não basta inserir alunos com necessidades especiais nas classes comuns
do ensino regular. É preciso mudar concepções preconceituosas a respeito de
suas possibilidades e necessidades de aprendizagem, bem como possibilitar a
todos os professores conhecimentos sobre essa proposta, uma vez que, segundo
relatos colhidos, a maioria se sente insegura e pouco preparada para receber
alunos com necessidades especiais.
Finalizando, ressalta-se que a proposta de inclusão escolar de alunos com
necessidades especiais, com aproveitamento social e acadêmico, depende de
mudanças reais e significativas no quadro educacional brasileiro. Em outras
palavras, a Educação Inclusiva não pode ser analisada de forma desvinculada
da luta pela melhoria da educação brasileira como um todo, sobretudo no que
tange às redes públicas. As diferentes formas de deterioração da qualidade do
ensino público no Brasil nas últimas décadas, com raras exceções, conformam o
contexto macro no qual a política de Educação Inclusiva vem sendo
implementada. Conseqüentemente, “incluir” pessoas com necessidades
educacionais especiais num sistema submetido à forte precarização pode
significar mais uma forma de negar-lhes esse direito fundamental.
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42

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43

CORPO: REBELDE OU DOCILIZADO?


UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DO CONTROLE NA SALA DE AULA1

Paula Almeida de Castro

“A pesquisa é talvez a arte de se criar dificuldades fecundas e de criá-las para os


outros. Nos lugares onde havia coisas simples, faz-se aparecer problemas”
(BOURDIEU, 2004)

Esse trabalho teve como objetivo estudar o controle exercido pela


professora sobre os seus alunos e alunas em sala de aula, a implicação deste na
rotina pedagógica2, suas conseqüências no desempenho e avaliação dos alunos e
alunas e o aumento das condições de desigualdade em sala de aula.
Para subsidiar o entendimento da sala de aula observamos as cenas,
eventos, atos, ações e falas nos conselhos de classe compostos por professoras,
diretora, vice-diretora e coordenadora pedagógica. Esta observação possibilitou
uma visão macro da rotina escolar e dos procedimentos adotados pela professora
com seus alunos e alunas na sala de aula estudada.
“A vida de sala de aula, como a de qualquer outra situação social, não é dada a
priori, nem tomada de empréstimo a outra situação, ao contrário, é construída,
“definida e redefinida” a todo o momento, revelando e estabelecendo os contornos
de uma interação em construção. Interação enquanto (encontro) em que os
participantes, por estarem na presença imediata uns dos outros, sofrem
influência recíproca, daí negociarem ações e construírem significados dia a dia,
momento a momento” (CAJAL In COX e ASSIS-PETERSON, 2001, p.127).

Essa construção diária na sala de aula implica no estabelecimento de uma


interação que promova a inclusão dos alunos sem que para isso ocorram
interpretações pré-concebidas das capacidades dos mesmos. Nesta perspectiva a
sala de aula se configura como um espaço interacional que interfere na vida
daqueles e daquelas que dela participam. Por isso a importância de estudá-la e
voltar a ela toda vez que buscamos compreender a dinâmica que ocorre em seu
interior.
Na busca desse entendimento realizamos o estudo em um CIEP – Centro
Integrado de Educação Pública – que em seu projeto inicial visava a
implementação de escolas de horário integral no Rio de Janeiro. A idéia da
construção de escolas de horário integral esteve vinculada com uma proposta

1 Este trabalho é parte da dissertação - Controlar para quê? Uma análise etnográfica da interação entre professor
e aluno na sala de aula (2006) - orientada pela Profª Drª Carmen Lúcia Guimarães de Mattos pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Proped/UERJ).
2 “A pedagogia é um esforço deliberado para influenciar os tipos e os processos de produção de conhecimentos
e identidades em meio a determinados conjuntos de relações sociais e entre eles. Pode ser entendida como uma
prática pela qual as pessoas são incitadas a adquirir determinado “caráter moral”. Constituindo a um só tempo
atividade política e prática, tenta influir na ocorrência e nos tipos de influência. Quando se pratica pedagogia,
age-se com a intenção de criar experiências que, de determinadas maneiras, irão estruturar e desestruturar uma
série de entendimentos de nosso mundo natural e social. O que estamos enfatizando aqui é que a pedagogia é
um conceito que enfoca os processos pelos quais se produz conhecimento” (GIROUX & SIMON, In MOREIRA
& SILVA, 1995, p.97).
44

política do então governador Leonel Brizola e do vice-governador e secretário de


Estado e Cultura, Ciência e Tecnologia, Darcy Ribeiro e o projeto arquitetônico
foi desenvolvido por Oscar Niemeyer.
A escola onde realizamos o trabalho de campo tem seu funcionamento em
horário integral com atividades criadas a partir das necessidades dos alunos com
relação aos conteúdos pedagógicos. Uma dessas atividades é a recuperação
paralela, onde os alunos e alunas com rendimentos abaixo da média a
freqüentam durante o ano em horários especiais no intuito de melhorarem seu
desempenho acadêmico.
Nesse contexto a etnografia crítica de sala de aula (MATTOS, 1995)
contribuiu para que os aspectos observados convergissem para o controle dos
alunos e alunas evidenciando como as formas de atuação das professoras,
diretora e coordenadora pedagógica tanto na escola como na sala de aula não
consideram o aluno enquanto principal ator escolar. Foi possível perceber em
nosso estudo como o discurso e a prática funcionam de maneira excludente e
que, apesar dos esforços de implementação de políticas pedagógicas que visam a
criação de uma escola inclusiva, humanitária, voltada para o atendimento das
necessidades educacionais de seus alunos, há ainda uma lacuna a ser preenchida.
Lacuna esta relacionada com as formas de controle da professora sobre os alunos
e alunas.
Tais formas de controle são apresentadas nas categorias encontradas na
análise indutiva de dados sendo elas: corpo, tarefa, agressão, espaço, barulho,
tempo, problemas de aprendizagem, problemas familiares, faltas, medicalização,
violência, estigma, nota, conselho tutelar. O entrelaçamento entre as categorias e
o objeto de estudo apresentam o cotidiano escolar mediado pelo controle das
práticas escolares estruturando a dinâmica de sala de aula a partir de um espaço
de exclusão e miséria na escola.
Destacamos a categoria corpo para apresentar o controle exercido pela
professora na sala de aula a fim de docilizar e monitorar os corpos dos alunos e
alunas.
Com este trabalho acreditamos que seja possível ampliar o debate sobre
os desígnios da Educação que há tanto caminham na tentativa de oferecer
condições de superação de uma realidade excludente e desigual. A escola pública
é ainda, o espaço de construção de conhecimento que pode oferecer condições
sociais, econômicas, culturais e educacionais aos que nela acreditam.
No estudo que realizamos foi possível visualizar as instâncias tanto
psicológicas como físicas regendo o cotidiano da escola e da sala de aula. Para
definirmos o objeto de estudo foi necessário tecer considerações sobre os
45

mecanismos de vigilância, a hierarquia escolar e a estrutura física que atuam


como mecanismos de controle exercido na escola sobre os alunos e alunas.
O conceito de controle que estamos utilizando parte dos pressupostos
teóricos desenvolvidos por Foucault (1987, 1997, 1999, 2001) e aplicados nos
estudos sobre instituições. Utilizamos o referencial teórico de Goffman (2005) e
Bourdieu (2005) subsidiando a teoria que fomenta o trabalho realizado. Por
controle entendemos as estratégias utilizadas para monitorar, inspecionar e
fiscalizar. Os espaços precisam ser vigiados e controlados de acordo com padrões
normativos oriundos de uma sociedade que utiliza cada vez mais recursos
tecnológicos de vigilância, tais como câmeras, escutas e identificadores de
chamada.
O termo controle aparece na obra de Foucault (1987) para designar
mecanismos de vigilância que não servem exclusivamente para punir, mas
corrigir e prevenir. Foucault (1987) nos fala de uma “ortopedia social, para a qual
o desenvolvimento da polícia e da vigilância das populações são os instrumentos
essenciais”. Para ele o controle social não está relacionado somente com a justiça,
mas com poderes laterais que seriam as instituições psicológicas, psiquiátricas,
criminológicas, médicas, pedagógicas.
O poder disciplinar envolve o uso de instrumentos de vigilância que
atuam subliminarmente3 no cotidiano escolar. Dentre os diversos instrumentos
existentes destacamos: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame. A
aplicação de tais instrumentos e a adequação a eles ocorre o tempo todas nas
interações entre os profissionais da escola e os alunos.
“As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que
funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e
analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de
observação, de registro e de treinamento” (FOUCAULT, 1987, p. 145).

A escola não estaria relacionada apenas com a idéia de espaço para a


aprendizagem. Ela abarcaria segundo Foucault (1987):
“O ensinamento propriamente dito, a aquisição dos conhecimentos pelo próprio
exercício da atividade pedagógica, enfim uma observação recíproca e
hierarquizada. Uma relação de fiscalização, definida e regulada, está inserida na
essência da prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas
como um mecanismo que lhe é inerente e multiplica sua eficiência” (p.148).

A esta hierarquização escolar consideramos, especificamente na escola


estudada, a organização da gestão escolar. A coordenação pedagógica representa
a figura central na determinação de regras na escola, juntamente com a vice-
direção. A direção e os professores estariam no mesmo nível de tomada de

3 O conceito de subliminar tem fundamentos na psicologia. Pode-se considerar subliminar um estímulo que,
embora não seja bastante intenso para que o indivíduo tome consciência dele, atua – quando repetido – no
sentido de alcançar um efeito desejado.
46

decisão e os alunos e alunas estariam no último plano apenas se adequando às


sanções escolares. Esta hierarquia implica numa maquinaria de poder
(FOUCAULT, 2001).
“Passou-se de uma tecnologia do poder que expulsa, que exclui, que bane, que
marginaliza, que reprime, a um poder que é enfim um poder positivo, um poder
que fabrica, um poder que observa, um poder que sabe e um poder que se
multiplica a partir de seus próprios efeitos”. (p. 61).

As formas de exercício de poder para a obtenção de uma vigilância


hierarquizada estão ligadas às relações de poder em que ela implica. Se o aluno
sabe que seu comportamento está sendo avaliado pelo olhar do professor e ainda
que será considerado no seu resultado final, ele permanecerá de forma que a
professora o avalie positivamente. Foucault (1987) afirma que a vigilância assume
um papel de supervisão direta do trabalho dos subordinados pelos superiores,
assim como a execução da tarefa em sala de aula: os alunos sentam-se às mesas
ou carteiras, normalmente dispostas em fileiras, todos em função do professor.
Os alunos devem parecer alerta, ou então estar absorvidos em seu trabalho.
Entretanto na prática, isso dependerá das habilidades do professor e das
inclinações dos alunos no sentido de agirem de acordo com o que se espera deles.
A escola e a sala de aula possuem um modelo quase ideal para o exercício
da vigilância: a disposição das carteiras dos alunos e da mesa do professor é feita
de modo a proporcionar o controle pelo olhar. É um diagrama de um poder que
age pelo efeito de uma visibilidade geral (FOUCAULT, 1987). Foucault alude à
estrutura física das salas de aula para salientar os mecanismos de vigilância
utilizados. Ele explica que os velhos esquemas de encarceramento são
substituídos pelos espaços vazios, as passagens, as janelas de vidro, entre outras
formas de dar visibilidade ao interior dos ambientes fechados, como a sala de
aula.
Pela utilização de tais mecanismos a atuação escolar poderia ser
considerada como local de aplicação de um controle rígido sob todo e qualquer
desvio às normas estabelecidas que seriam: o cumprimento dos horários de saída
e chegada na escola, a obrigatoriedade de permanecer em silêncio, sentados com
“modos” e executando as tarefas.
Desse modo a escola se constituiria de:
“(...) uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das
tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser
(grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo
(atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia,
indecência).” (FOUCAULT, 1987, p.149).

A partir de tais considerações foi possível perceber a importância da


estrutura física bem como das diversas formas de vigilância presente na escola
para o exercício do controle.
47

Corpo: rebelde ou docilizado?


“Em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito
apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”
(FOUCAULT, 1987).

Em Foucault, a descoberta do corpo é tida como objeto e alvo de poder. O


corpo passa de uma noção de suplícios e de castigos para uma idéia de reforma e
disciplina. Nesse sentido, saem de cena as punições físicas e entra a disciplina
dos corpos marcada pela escolarização.
A configuração das salas de aula, desde o seu surgimento até os dias
atuais, sofreu modificações em sua estrutura física sem, contudo, abandonar seu
caráter primordial de docilizar os corpos (FOUCAULT, 1987). A disposição das
carteiras em sala de aula, filas para locomoção dos corpos, posição das mãos para
trás, cabeças baixas e posição do corpo ao sentar (sempre virados para frente) são
indícios de controle dos corpos objetivando a disciplina na sala de aula pela
individualização destes. Uma vez ordenados em fileiras e sentados, a vigilância
da professora torna-se mais eficaz, podendo ela localizar o aluno que desejar a
qualquer momento.
O controle dos corpos sugere ainda a noção de vigilância também
presente na obra de Foucault, ou seja, a organização dos corpos no espaço físico
permite a melhor visualização e, portanto o controle eficaz sobre os mesmos. Os
corpos podendo ser vistos de qualquer ângulo da sala de aula facilitam a
identificação daqueles que se encontram fora dos limites estabelecidos para eles.
O corpo como categoria surgiu em nosso trabalho na tentativa de evidenciar os
métodos coercitivos que são aplicados sobre os corpos dos alunos para a
obtenção do controle em sala de aula.
Na sala de aula estudada percebemos como a movimentação dos corpos
dos alunos e alunas, seus gestos e suas atitudes são medidos e avaliados pelo
olhar atento da professora. O “sentar com modos” é uma fala utilizada pela
professora na sala de aula na tentativa de controlá-los, sem, contudo, deixar claro
o seu objetivo sobre qual a posição a que ela estaria se referindo. “Vira para
frente” e “senta no seu lugar” são também falas utilizadas pela professora para
conter os corpos dos alunos e alunas em suas carteiras. Os alunos, a seu modo,
ora sentam ora continuam de pé, dependendo do interesse na atividade que está
sendo proposta pela professora.
Ocorre que tal investimento de controle dos corpos é interiorizado pelos
alunos e alunas ao longo do seu processo de escolarização. Sendo assim, ele sabe
que deve estar em fila, sentado na sua carteira e realizando a tarefa proposta pelo
professor.
48

Fazendo uma análise comparativa da sala de aula estudada com a obra de


Foucault podemos tecer algumas considerações relevantes para o nosso trabalho
no que se refere ao corpo. Nos estudos de Foucault (1987) encontramos uma
passagem de uma visão do corpo como alvo de punições e castigos para a de
disciplina e vigilância. Tais considerações são feitas a partir de instituições totais
(GOFFMAN, 2005) e escolas ao longo dos séculos, podendo ser trazidas para os
dias de hoje. As instituições escolares evoluíram no que se refere à estrutura física
que aprisionava e à extinção da aplicação de punições aos corpos. Contudo, tal
estrutura física e punições foram substituídas por uma forma moderna de
disciplina que seria o controle dos corpos funcionando de maneira silenciosa
internalizando normas e regras nesse corpo.
Ao lançarmos mão dos estudos de Foucault (1987) para melhor
compreendermos a sala de aula da atualidade, devemos considerar as
características intrínsecas a esta. O corpo de cada um desses sujeitos entra em um
processo de docilização / disciplinização de forma e em momentos variados e há
ainda aqueles e aquelas que resistem a este processo. A disciplinalização e a
docilização inscrevem marcas nesse corpo que o tornam investimento de poder
submetido à escolarização. Nem sempre os corpos que se pretende docilizar de
fato serão. Esses corpos que resistem são diferentes do contingente dos que se
adaptam, sem resistência, sem contestação, a esse processo promovido pela
escola (PERRENOUD 2004, GIROUX 1997). Silenciosos e obedientes os que se
docilizam e se disciplinalizam são considerados bem sucedidos.
Nossos estudos apontam que para se obter o controle dos corpos em sala
de aula a professora utiliza falas de ordem para os alunos e alunas. A
individualização dos corpos nas carteiras e a vigilância quanto a sua
movimentação indicam a postura da professora no controle da sala de aula. O
controle do corpo na sala de aula é permeado pela execução da tarefa com os
alunos e alunas sentados em suas carteiras.
Sheila: Vamos sossegar aí? Gerson (erra o nome do aluno)... vamos parar
com a necessidade de se aparecer! Vamos sentar...Eu quero vocês
sentados...
Gerson: Mas eu tô sentado...
Sheila: Felipe, você já fez sua tarefa? Senta no seu lugar!
Sheila: Olha só, não quero ninguém em pé. Senão não consigo ver. (Nesse
momento todos os alunos estão sentados)

Nos três eventos de fala destacados a professora procura manter a turma


sentada, entendendo que nos lugares destinados a eles a tarefa proposta estaria
sendo realizada. Tornou-se comum tal preocupação que mesmo estando os
alunos sentados, ela solicita que os mesmos ocupem seus lugares. A organização
dos corpos está relacionada com a ocupação do espaço físico. Os corpos devem
49

estar dispostos de forma a serem vistos e a atividade executada ser controlada


pelo olhar. Em outro evento destacado em nossas análises, a interação entre a
professora e o aluno ocorre pela retirada da cadeira do aluno que se dirigiu até
ela para olhar o livro que ela estava lendo para a turma, como parte da tarefa a
ser executada por eles.
Sheila: Marcelo, vai sentar no seu lugar.
Marcelo: Não quero sentar não.
Sheila: Você não quer ficar sentado não? Então vou tirar sua cadeira e
vou te deixar em pé até o final! Tá bom assim?
Ela arrasta a cadeira para frente da sala. Ele fica passeando pela sala.
Sheila: Mas também você vai ficar parado aí!
Ela retoma o texto e Marcelo deita no chão, colocando a mochila como
apoio.
Sheila: Marcelo, você vai parar de palhaçada ou vou ter que tirar você da
sala de aula? (agora o aluno está de joelhos e apoiado na mesa). Pega sua
cadeira! Vai lá. (o aluno não se levanta e a professora pega a cadeira)

A não submissão à ordem de sentar acarretou na retirada da cadeira e o


aluno recebendo a ordem de permanecer em sua carteira, deita no chão apoiando
a cabeça na mochila e retomando a atividade proposta. Ao sugerir que o tiraria
da sala de aula, o mesmo se apóia nos joelhos e volta a escrever sob a mesa.
Qual o sentido de tal punição? No entendimento de Sheila, o sentido
residiria no fato de que ao retirar a cadeira, o aluno permaneceu no espaço
destinado a ele. De outra forma, o mesmo aluno ao terminar suas tarefas se
levanta e fica andando pela sala.
A professora esboça preocupação com o movimento dos corpos na sala de
aula, dentro e fora da escola. Ela chama a atenção para o fato de que sentados ela
pode “controlar melhor a coisa” (palavras da professora). Os métodos utilizados
por ela denotam que o controle só é atingido por meio de punições.
Assim, as saídas da escola para passeios, como museus, exposição, não
ocorrem devido à preocupação da professora com o comportamento que os
alunos irão adotar fora dos muros da escola. Podemos ainda acrescentar que a
professora também apresentaria dificuldades de controlar os alunos pelos
métodos que comumente utiliza na sala de aula.
Qual seria o comportamento a ser seguido em circunstâncias como uma
visita a um museu? Em visitas a museus o professor ou acompanhante é o
responsável pelo acompanhamento e orientação dos alunos.
Sheila: O que as pessoas vão pensar... se forem a um museu. Eles não
sabem se comportar.

No evento destacado, a professora comenta sobre a percepção de outras


pessoas com o comportamento da turma. Se as visitas acontecem sob a orientação
50

da professora da turma, nesse caso, ela não assumiria o risco por se tratar de
alunos que ela solicita que sentem a todo o momento.
O espaço da sala de aula é ocupado pelos alunos de maneira organizada e
de acordo com a orientação da professora. Mesmo que já tenham finalizado sua
tarefa ou estejam sentados, ela solicita que eles permaneçam em suas carteiras. A
disposição dos corpos na sala de aula implica numa adequação às normas
escolares, tais como sentados e executando as tarefas propostas; o contrário é
visto como rebeldia e é punido pelos gritos de ordem, expulsão da sala de aula
ou retirada da cadeira.
A análise realizada neste trabalho permitiu visualizar as características da
prática pedagógica em sala de aula ao direcionarmos nosso olhar para a relação
professor e aluno bem como o modo como esta se estabelece baseada no controle.
Questionamo-nos sobre para que o controle era exercido na escola, procuramos
compreender a sua natureza e o seu funcionamento podendo desencadear o
sucesso ou fracasso escolar de alunos e alunas pela vigilância do espaço escolar.
Ao final entendemos que o controle ocorre para que alunos e alunas sejam
mantidos de acordo com as normas escolares instituídas para educar pelo controle.
Os estudos de Foucault (1987), Goffman (2005) e Giddens (2005)
contribuíram para o entendimento sobre a relação da estrutura física das
instituições influenciando as interações que se estabelecem em seu interior. No
interior da sala de aula foi possível perceber que o controle é uma tentativa da
professora de conter os corpos dos alunos no espaço para a realização da tarefa,
mas que este é burlado pela turma para a execução de atividades mais agradáveis
do ponto de vista deles, tais como cantar e dançar pela sala de aula.
Foi possível perceber ainda nesse estudo que o intuito dos professores de
controlar os alunos através do corpo, das agressões, do espaço, do barulho e do
tempo é feito para que a tarefa seja executada pelos mesmos. Dessa forma, as
categorias encontradas em cenas rotineiras na sala de aula estudada estão
relacionadas ao cumprimento do ofício do aluno (PERRENOUD, 1994), o que
implica, necessariamente, no seu engajamento no trabalho escolar.
Acreditamos que o aluno vai para a escola para realizar a sua tarefa.
Sendo assim, o objetivo principal da permanência na sala de aula é o trabalho
escolar, que, portanto, é controlado pela professora em suas diferentes instâncias
pelo; corpo, agressão, espaço, barulho e tempo. Por isso a ocorrência elevada de
situações relacionadas ao corpo. Para Foucault (1987) os corpos dóceis
representam essa adequação ao trabalho, no nosso caso, ao trabalho escolar.
Quanto mais controle for exercido sobre os corpos mais os alunos estarão
executando suas tarefas. As agressões verbais e físicas representam neste estudo
51

uma forma de intimidação dos corpos. Presenciamos diversas cenas onde a


professora, ora ameaça os alunos com reprovação, ora anda por entre as carteiras
batendo com a régua na mão e nas mesas. Tal comportamento se aproxima da
definição de Bourdieu (2005) de violência simbólica, que seria essa adaptação
invisível que fazemos a determinados contextos sociais.
O trabalho realizado ressalta uma preocupação, no âmbito escolar, do
controle dos alunos em detrimento da aprendizagem, fato este que sempre
acompanhou a escola desde o seu surgimento. Na sala de aula estudada tal
característica surgiu como uma espécie de pano de fundo para o entendimento
do ofício do aluno. Era mais importante para a professora cumprir as exigências
do currículo mínimo estabelecido do que criar um espaço de aprendizagem na
sala de aula.
O educar pelo controle suplanta a possibilidade de uma escola inclusiva,
no sentido, de explicar sem compreender as diferenças e fracassos daqueles que
escapam à padronização escolar, mas ainda pela incoerência entre o discurso
emancipatório e a prática pedagógica elitista. Assim, o professor ao se deparar
com a realidade das salas de aulas das escolas públicas, em destaque nesse
trabalho as escolas do Rio de Janeiro, deve não somente sentir-se parte da vida
escolar de seus alunos e alunas, mas como desempenhando um papel
fundamental na leitura de mundo desses que acreditam ser a escola o caminho
para a superação das desigualdades sociais em que vivem.

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53

Quando a pesquisa educacional sai da escola:


trajetórias acadêmicas de adolescentes que viveram nas ruas4

Cleonice Puggian

1. Pesquisa etnográfica e fracasso escolar no Brasil: enfrentando a


exclusão
Nos últimos 20 anos pesquisadores do Núcleo de Etnografia e Educação
da UERJ (NEtEdu) vêm desenvolvendo estudos etnográficos inspirados pelas
teorias críticas, que informam também a abordagem etnográfica crítica de
pesquisa de sala de aula (Mattos, 2007). Estes estudos revelaram várias
dimensões do fracasso escolar, que ainda priva crianças e adolescentes
(especialmente negros e do sexo masculino) do direito à educação no Brasil5.
Mostram que a maior parte dos alunos excluídos acabam ingressando
precocemente no mercado de trabalho, outros são recrutados pelo tráfico de
drogas, alguns envolvem-se em ações criminosas, ou acabam defendendo sua
sobrevivência vivendo nas ruas de comunidades carentes ou grandes centros
urbanos do país.
Desenvolver estudos sobre fracasso escolar como meio de defesa do
direito à educação de alunos excluídos sempre foi uma preocupação dos
pesquisadores do Núcleo de Etnografia e Educação. Sob a coordenação da Profa.
Dra. Carmen de Mattos, que investigou o fracasso escolar nas zonas urbana e
rural nas décadas de 1980 e 1990 (Mattos, 1992), conduzimos duas pesquisas:
uma analisando a pespectiva de adolescentes que viviam nas ruas sobre a escrita
em computadores (Puggian and Mattos, 1998, Puggian et al., 1998) e, outra, sobre
os processos metacognitivos de adolescentes cumprindo medidas de privação de
liberdade (Puggian and Mattos, 2000a, Puggian and Mattos, 2000b, Mattos and
Puggian, 2004). Entretanto, interessava-nos também investigar as estratégias
desenvolvidas por adolescentes que procuravam enfrentar estes processos de
exclusão, retornando à educação formal.
Descobrimos que eram raros os casos e poucos os estudos sobre o
desengajamento de adolescentes da vida nas ruas (Butler and Rizzini, 2003,
Rizzini and Butler, 2003), assim como eram pontuais as investigações sobre a
participação efetiva desses educandos em escolas da rede pública (Leite, 1998,
Wong and Balestino, 2001, Volpi, 2002). Pareceu-nos relevante, então, levar a
pesquisa educacional novamente para fora da escola, indo ao encontro dos

4 Pesquisa financiada pelo Programa Alban (European Union Programme of High Level Scholarships for Latin
America), Cambridge Overseas Trust e, posteriormente, CAPES.
5 Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), em 2005 as taxas
de evasão escolar eram de 7.5% para alunos na educação fundamental e de 15.3% para alunos no ensino médio.
54

adolescentes que desafiavam o estereótipo das vítimas do fracasso escolar através


do desenvolvimento de estratégias para o enfrentamento da exclusão sócio-
educacional. Acreditávamos que a trajetória destes alunos poderia, por um lado,
informar ações para garantir a educação dos adolescentes que haviam sido
excluídos e, para prevenir o fracasso daqueles que ainda permaneciam nas salas
de aula.
Este trabalho, portanto, pretende mostrar, através de dados etnográficos,
como adolescentes do sexo masculino, entre 12 e 17 anos, percebem suas
trajetórias acadêmicas antes, durante e depois da vivência nas ruas. As análises
de suas experiências revelam a escola como um campo de contradições, que pode
perpetuar a exclusão dos alunos das classes populares ou oferecer possibilidades
para sua transformação individual e coletiva. A experiência de alunos que
regressaram ao ensino formal, apesar de todas as dificuldades, reafirma a
centralidade da educação na construção identitária dos jovens, lembrando que
um futuro mais justo e igualitário é uma construção possível.
2. Pesquisa educacional fora da sala de aula: explorando novos
paradigmas
Em 2005 iniciamos a pesquisa entitulada ‘Entre as ruas e a escola’,
adotando as orientações da abordagem etnográfica com foco na voz e perspectiva
de adolescentes em seu processo de reaproximação com a educação formal. Os
princípios da etnografia crítica (assim como nossa própria experiência no
contexto escolar) (Erickson, 1992, Hammersley and Atkinson, 1995, Walford and
Carspecken, 2001, Madison, 2005, Mattos and Puggian, 2007) foram adaptados e
enriquecidos pelo trabalho de pesquisadores que atuavam junto a crianças e
adolescentes em situação de rua. Descobrimos, por exemplo, que investigações
desenvolvidas por O'Kane (2003), na Índia; Shanahan (2003), em Gana; Salami e
Beers (2003), na Nigéria; Butler e Rizzini (2003), no Brasil; e Beazley (2003), na
Indonésia, adotando uma abordagem participativa e centrada na criança,
também empregavam metodologias inovadoras como etnografia participativa e
visual. Ennew e Swart-Kruger (2003) sugerem que estes estudos colaboram para
a criação de um novo paradigma de pesquisa com educandos fora da escola,
alicerçado em teorias de espaço, tempo e agência, (Massey, 1994, Massey, 2005,
Santos, 2006, Elias and Jephcott, 1992, Emirbayer and Mische, 1998) destacando a
habilidade das crianças em construir sentido e subverter estruturas de poder
(James and Prout, 1990, Jenks, 1992, Jenks, 1996). Estas autoras alertam que a
mudança de paradigma não é rígida ou completa, mas indicam alternativas e
desafios para o trabalho para e com crianças que vivem nas ruas.
55

Seguindo as orientações da pesquisa etnográfica, e incoporando as


sugestões de Ennew and Swart-Kruger (2003) e outros autores, durante o
trabalho de campo utilizamos uma variedade de métodos para coleta de dados,
criando amplas oportunidades para a participação dos educandos. Por exemplo,
métodos visuais (desenhos, fotografias e vídeo) foram utilizados em combinação
com outros instrumentos, como entrevistas etnográficas e grupos focais,
procurando liberar narrativas geralmente reprimidas ou silenciadas (Smyth &
Hattam, 2002). Entre abril de 2005 e outubro de 2006 interagimos com uma média
de 85 adolescentes da ONG-Vida, 35 adolescentes da ONG-Esperança e 50
adolescentes da ONG-Renovação. Neste universo, priorizamos três grupos de
participantes: Grupo 1) adolescentes que viveram nas ruas e estavam
frequentando a escola; Grupo 2) adolescentes que estavam se desengajando ou
reengajando na dinâmica da vida nas ruas; e Grupo 3) adolescentes que foram
excluídos da escola e passavam a maior parte do seu tempo nas ruas. No total,
realizamos mais de 450 horas de observação participante (uma média de 4 horas
diárias no campo), assim como entrevistas etnográficas com mais de 50
adolescentes do sexo masculino entre 12 e 17 anos, 30 educadores e 7 diretores e
coordenadores de escolas públicas. Dados foram analisados de forma contínua
seguindo as estratégias da abordagem conhecida como grounded theory (Glaser
and Strauss, 1967).
3. A escola vista da rua: experiências educacionais de alunos
marginalizados
Logo no início da pesquisa, através de observação participante, notei que
os adolescentes que viviam nas ruas e abrigos raramente falavam sobre suas
experiências educacionais de maneira espontânea. Com efeito, crianças e
adolescentes que têm seus direitos fundamentais ameaçados queriam dialogar
sobre questões inerentes à sua realidade imediata, como entretenimento,
esportes, relacionamento com pais, parceiros, saúde, moradia, dependência
química e violência. Nessa configuração de necessidades e significados, descobri
que o retorno ao ensino formal ocupava uma posição secundária, senão terciária,
na escala de prioridades de alunos excluídos. Notei também que o
posicionamento destes adolescentes em relação às experiências acadêmicas
anteriores era, por vezes, distante e silencioso, consequência da progressiva
estigmatização causada por anos de fracasso escolar. Diálogos sobre suas
carreiras escolares implicavam rememorização de experiências negativas.
Significavam retomar uma identidade acadêmica frustada e negada.

José (14): Eu acho que eu era um péssimo aluno, mas eu dava pro gasto. Eu
sei que era um péssimo aluno porque eu só tirava nota baixa, fazia bagunça,
56

não respeita ninguém. Acho que na rua eu sou esperto, por andar sozinho,
por ter um contato… Nunca passei fome, e acho que nunca vou passar. Eu
fiquei na rua dois anos e meio, tia! Agora eu queria voltar para a escola e
arrumar um emprego.

Quando falavam de suas experiências escolares, surgiam narrativas sobre


conteúdos sem significação, sobre “problemas disciplinares”, ausências da sala
de aula e também sobre a decisão de “sair da escola”, geralmente associada com
a inabilidade de completar as atividades acadêmicas e de relacionar-se com
professores. Na narrativa destes alunos emergiam exemplos de fracasso escolar já
comuns na literatura (Mattos, 1992, Patto, 1999, Fine, 1991, Fine and Weis, 2003),
mas que ainda persistem em nossas salas de aula e na lembrança de adolescentes
excluídos.
Gabriel (17): Literatura é chato pra caramba! Parece uma cópia de português
mas é muito chato; pô eu vou lá querer de saber de Machado de Assis, é
maneiro, mas pô não entendo nada. Eu não entendo muita coisa desses
negócios, não!
Gilberto (14): Eu não prestava atenção na aula e ficava pertubando, tacando
bolinha de papel nos outros, essas coisas. Na aula eu não prestava atenção em
nada.
Bruno (15): Eu roubava carro e celular lá na Zona Sul. Eu ficava na pista e
perdia as aulas. Não consegui aprender a ler. Agora eu sinto falta porque agora
eu quero ler alguma coisa e não posso, porque eu não sei.
Fernando (14): Eu não gosto daquele professor que… Pô! Eu estou fazendo o
dever… Aí tu fala: Espera aí, professor! Eu já estou acabando! Aí ele vai lá e
apaga. Eu falei: Pô, professor! Eu estou fazendo aqui… Aí ele fala assim: Não
quero nem saber, rapaz! Copia rápido. Aí eu fico bolado. Ele tem que dar a aula
dele e deixar o aluno copiar o que ele tem que copiar. Aí eu não gosto. Aí eu fico
xingando ele. Aí ele não gosta. Aí eu junto o meu material e saio da sala de
aula. Então não assisto mais a aula.

Em alguns casos, adolescentes atribuíram sua participação inicial na


dinâmica das ruas à influência de outros alunos, como no caso de José e Marcos.
Suas narrativas revelam a porosidade da escola como espaço social e seu papel
na produção da exclusão através da socialização das crianças e adolescentes em
uma lógica de consumo que perpetua sua condição marginal na sociedade
(ZALUAR, 2005).

José (14): Na escola a maioria dos moleques... Tipo, orgulho, tipo invejava os
moleques da quarta série, da quinta série. Eles fumavam cigarro, andavam
cheios de mulher, codãozão de ouro, celular. Ai, tipo… eu invejava eles, mas eu
sabia que eles eram do tráfico. Estudava, mas era envolvido com o tráfico. Ai,
na primeira oportunidade que teve eu me envolvi. Não sabia dar tiro nem nada.
Botaram a arma na minha mão e fiquei a noite toda na atividade, ai todo o dia
eu ia pra lá, todo dia eu ia pra lá. E no fim da semana eu recebia R$ 100,00.
Marcos (16): Eu ia para a praia com os moleques que eu conheci na escola.
Depois de um tempo a gente passou a ficar por lá mesmo.
57

Notamos que todos os adolescentes entrevistados foram matriculados e


excluídos na e da escola antes mesmo de deixarem suas casas. Portanto, o
fracasso escolar precede sua ruptura com o ambiente familiar e comunitário e
persiste durante o engajamento na dinâmica da vida nas ruas. De fato, se
analisarmos as carreiras acadêmicas desses adolescentes com atenção para os
anos iniciais, verificamos, em primeiro lugar, que são raros casos de adolescentes
que tiveram acesso à educação infantil e, em segundo lugar, que vários
adolescentes, apesar de serem promovidos de série, permaneceram analfabetos,
como é o caso de Maurício que, com 15 anos, ainda sonhava em aprender a ler.
Maurício (15): O trauma da minha vida era a droga, o que eu já to
conseguindo vencer. Agora o estudo é o trauma da minha vida. Ah, tia!! Eu
não consigo aprender a ler. Quando alguém me pergunta “sabe ler?” Eu digo:
“Não!’’, “sabe escrever seu nome?”, “Eu sei mais ou menos”… É fogo!! Se eu
tivesse uma oportunidade de receber um dinheiro, eu dava meu dinheiro todo pra uma
professora me ensinar… só pra mim só, ter todo o tempo prá mim, mas só pra mim.
Carreiras acadêmicas de adolescentes como Bruno e Maurício são fruto de
um sistema educacional que opera silencionsamente a exclusão de alunos da
classe popular. Embora vários estudos tenham alertado para os efeitos negativos
da repetência, a implentação da progressão automática abre espaço para a
prevalência da avaliação informal, criando “trilhas diferenciadas de progressão
com variados momentos de terminalidade ou com a exclusão sendo feita em anos
mais elevados da estrutura escolar, quando a evasão já é tida como algo mais
natural e aceitável” (p. 159). De fato, as narrativas dos adolescentes entrevistados
revelam que dificuldades acadêmicas, já presentes nos primeiros anos de
escolarização, se agravaram durante a pré-adolescência e adolescência, quando a
maioria dos alunos em nossa amostra estavam fora do ensino fundamental, como
ilustra a tabela abaixo:

Tabela 1. Sumário do status acadêmico dos participantes da pesquisa por idade.


Situação ao final do ano letivo Idade e número de participantes
6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17

Aprovado em classes regulares 7 15 18 16 16 9 9 11 10 2 2 0


Aprovado em classes de educação de
jovens e adultos 0 0 0 0 0 0 1 0 2 8 7 3
Aprovado em programas de educação
compensatória (aceleração/progressão) 0 0 0 0 4 5 1 0 0 0 0 0
Reprovado 0 4 2 5 2 3 2 1 1 0 0 0
Abandonou sem completar a série 1 4 2 3 5 6 3 0 2 1 1 0
Ainda não havia sido matriculado 24 7 4 2 0 0 0 0 0 0 0 0
Excluído da escola 0 2 6 6 5 9 16 20 15 11 6 0
Ainda não tinham esta idade 0 0 0 0 0 0 0 0 2 10 16 29
TOTAL 32 32 32 32 32 32 32 32 32 32 32 32
Criam-se “novas geografias da desigualdade” dentro do sistema
educacional (Lipman, 2005). Conforme continuam a fracassar, alunos da classe
58

popular internalizam sentimentos de subordinação e passividade (por exemplo,


aqueles alunos sempre silenciosos e de cabeça baixa, chamados com de
“preguiçosos”) ou expressam seu descontentamento (alunos “indisciplinados” ou
que “não querem nada”). Estes comportamentos são manifestações do processo
de exclusão que afeta principalmente crianças negras, do sexo masculino e
oriundas de famílias pobres.
No Rio de Janeiro, durante a pesquisa de campo, não havia oferta de
educação formal para adolescentes que viviam nas ruas, como acontece em
outras cidades do Brasil. Adolescentes participavam esporadicamente em
atividades sócio-educacionais promovidas por organizações não-governmentais
(ONGs) e de eventos patrocinados por empresas, Estado e Prefeitura nas áreas
públicas da cidade.
Procurando compreender a natureza da educação não-fomal promovida
pelas ONGs, durante o trabalho de campo observamos as atividades de um
programa de educação social de rua. Este programa tinha uma clara
intencionalidade pedagógica, sendo influenciado pelas teorias críticas inspiradas
no trabalho de Paulo Freire. Porém, apesar da disposição de educadores,
pedagogos e psicólogos em promover oportunidades para o desenvolvimento da
consciência crítica entre crianças e adolescentes, havia limitações na quantidade
de tempo e no número de educandos que o programa era capaz de atender.
Dados revelaram que, na maioria dos casos, o desengajamento da vida nas ruas
acabava sendo um processo empreendido independentemente pelos próprios
adolescentes segundo experiências anteriores, atuais condições de vida e
visualização de possibilidades futuras para vivência em outros espaços sociais.
Era um processo baseado em sua própria agência, compreendida como
“engajamento social temporalmente situado, informado pelo passado (em seu aspecto habitual),
mas também orientado para o futuro (como uma capacidade de imaginar possibilidades
alternativas) e para o presente (como uma capacidade de contextualizar hábitos passados e projetos
futuros dentro das contingências do momento)” (Emirbayer & Mische, 1998, p. 963).

Adultos também participavam deste processo de mudança. Em primeiro


lugar forneciam informações que possibilitavam aos adolescentes situar e
reconceitualizar seu relacionamento com o espaço e tempo da rua, assim como
informações sobre seus direitos e possibilidades em outros espaços. Em segundo
lugar, a colaboração entre adolescentes educadores e profissionais (como
conselheiros, juízes, assitentes sociais e também ex-professores e amigos) também
facilitava o acesso a recursos públicos e instituições a fim de viabilizar sua
inclusão em outros espaços. Quando necessário, educadores e assistentes sociais
também mediavam a interação dos jovens com famílias e órgãos públicos,
59

advocando a favor dos seus interesses. Portanto, embora o processo de mudança


estivesse fundamentado no desejo e na iniciativa da criança e do adolescentes, ou
seja, na sua agência, ainda cabia aos responsáveis, ao Estado e à toda a sociedade
prover os recursos para possibilitar a garantia dos seus direitos, como determina
o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Programas promovidos por ONGs eram as únicas instâncias de educação
não-formal às quais adolescentes que viviam nas ruas tiveram acesso durante o
período da pesquisa. Notamos através de entrevistas com coordenadores de sete
escolas que os esforços das ONGs não eram correspondidos por práticas
inclusivas que motivassem o retorno desses alunos à escola formal. Notamos,
portanto, um afastamento entre as iniciativas no campo da educação não-formal
(educação social de rua e educação popular) e o tradicionalismo da escola básica,
especialmente em se tratando de crianças e adolescentes que vivem ou viveram
nas ruas. Ironicamente, enquanto a educação formal mantém barreiras para a
inclusão de alunos marginalizados, adolescentes excluídos continuam a acreditar
na escola como um locus de transformação e formação identitária. A escola é a
instituição privilegiada para “ser” alguém, espaço de novas relações sociais e
construções de perspectivas futuras. Adolescentes querem e valorizam o ensino
formal como via de mudança da sua condição sócio-econômica.

Gilson (16): Eu acho que a escola é boa. A gente tem que estudar pra ser alguém na
vida. Sem estudar tu vai arrumar o quê? Não vai arrumar nada! Só vida do crime, só
roubo. Fora isso, sem estudar tu não arruma nada. Estudar pra ser alguém na vida.
A gente estuda pra ser alguém na vida. Eu quero mudar de vida, tia! Começar a
estudar, trabalhar, mostrar prá minha mãe que eu tô melhorando. Agora eu decidi
voltar a estudar porque na rua não dá não, tia! Muita polícia e se descuidar você
morre. Eu roubava também… roubava as coisas.
Ronaldo (16): Pô tia! Sem neurose! Eu não estou vendo nada para o meu fututo não!
Eu vejo assim, em outubro agora eu vou fazer dezessete anos, ano que vem eu já faço
dezoito, aí que eu estou fudido! Não tenho estudo, não tenho porra nenhuma! Com
dezesseis anos na cara e encarar essa barra daí… Zoar eu zôo mesmo, mas na hora de
fazer bagulho sério, eu faço.

Em nosso grupo cerca de quatorze adolescentes foram rematriculados em


escolas da rede pública depois de viver nas ruas. Em sua maioria, estes alunos
ingressaram em cursos supletivos noturnos, indicando uma crescente
juvenilização da educação de jovens e adultos. Nota-se também uma ingresso
paralelo em cursos profissionalizantes e trabalho como aprendizes em
empresas, mas somente para aqueles com escolarização acima da sétima séria,
o que exclui muitos adolescentes que viveram nas ruas e não passaram do
primeiro segmento (4a série).

Nas escolas, gradativamente, estes adolescentes desenvolveram estratégias


para lidar com a avaliação tradicional, com o preconceito dos professores, com
60

o uso da linguagem, com a limitação do espaço, com o controle dos corpos e


até com a precariedade de condições. Ronaldo, por exemplo, adotou o silêncio
como uma forma de proteção identitária:

Ronaldo (16): Agora eu estou indo para a escola, mas eu não contei para ninguém a
minha história. Tá maluco, ficar contando pros outros a minha história. Você acha
que eu vou chegar pros outros e dizer: _ E aí! Eu fui de pista. Ta maluco! Falo não,
tia! Aí tem uma garotinha bonitinha lá que senta atrás de mim… Aí eu vou falar que
eu fui de pista, aí vagabundo vai e explana prá ela, aí ela já não vai quer mais ficar
comigo. Os professores sabem que eu fui da pista porque eu fui matriculado por um
abrigo, e que vem de abrigo é? É ladrão, é maconheiro, é de pista, é aquilo. Eles me
tratam normal, vão me tratar diferente por que? Eu sou ser humano também, né?
Mas meu comportamento na escola agora é tranqüilo. Eu não falo com ninguém na
sala, a mesma coisa do curso, eu não falo com ninguém não.
Gabriel, por outro lado, aprendeu a burlar o sistema de avaliação tradicional
com a ajuda dos colegas de classe:

Gabriel (17): Tu passa sempre pulando. Às vezes prá pular é complicado… ou tu


cola… é muito complicado! Não é que tu cole, mas tipo assim, antes da prova tu dá
uma lida ali sinistra. Senta sempre perto de uma galera que entende de alguma
matéria. Por exemplo tem um cara lá que é bom em literatura, aí você cola nele; aí tu
troca de prova. Ele faz com o lápis, eu apago e boto à caneta. Eu sei que não é certo
isso, mas quem não cola não sai da escola.
Marcos, por outro lado, buscou estratégias para superar as dificuldades da
vida no abrigo, acostumando-se a estudar com livros no colo e com barulho de
20 adolescentes que dividiam três quartos com apenas um banheiro.

Marcos (16): Eu guardo os livros debaixo do colchão porque não tem outro lugar para
guardar. Na hora de estudar eu tiro a mochila e coloco os livros no colo para fazer o
dever. De vez em quando eu não consigo fazer dever porque aqui no abrigo não dá para
estudar. Uma vez eu tinha prova… eu comecei a ler e a chorar, porque eu estava
estudando no quarto e começou aquele tumulto… Eu tive que chegar e conversar com
os adolescentes. Eu fui pro quarto e comecei a chorar. Às vezes não dá para estudar em
casa, mas assim mesmo eu procuro estudar.
A trajetória de Marcos (Quadro 1), mostra que a reaproximação de alunos
marginalizados com a escola, apesar de ser uma possibilidade real, no
contexto investigado, ocorreu mais como resultado da auto-determinação do
adolescente (e do apoio de adultos) do que por ações inclusivas do sistema de
ensino.

Quadro 1. Descrição breve da trajetória pessoal e acadêmica de Marcos, 16 anos.


61

Marcos tem 16 anos e mora em um abrigo na Zona


Sul do Rio de Janeiro. Nasceu na favela de São
Marcos e passou a maior parte da infância vivendo
em barracos de madeira e papelão, ora com a mãe,
ora com a tia e outras vezes com a avó. Marcos tinha
seis anos quando seu pai morreu vítima do
alcoolismo. Sua mãe também era alcoolátra e tinha
muitos parceiros sexuais. Marcos lembra-se de vê-la
grávida inúmeras vezes, embora apenas conhecesse
três irmãs e um irmão.
Na falta de seus pais, sempre alcoolizados ou
ausentes, Marcos vivia sob os cuidados da tia, que o
matriculou na escola aos seis anos de idade. Marcos
ia para a escola todos os dias na companhia dos seus
primos. Ele lembra que a escola era grande e tinha
SOBRE SUA EXPERIÊNCIA
um pátio ond era possível jogar futebol. Ele também
INICIAL NA ESCOLA:
lembrar que sua frequência à escola não era
Era estranho porque eu não ia motivada pelas atividades acadêmicas, mas pela
para a escola estudar. Eu ia para comida e pelas brincadeiras.
jogar futebol e comer. Eu não
participava muito das aulas. Conforme o ano acadêmico progrediu, Marcos fez
amizades com alunos mais velhos com quem passou
Sobre sua experiência a ir para a praia. No início eles iam depois das aulas,
inicial na rua:
voltando para casa à noite. Com o passar do tempo a
Assim posso dizer que por um vida nas ruas tornou-se mais interessante que a
lado... Pelo menos na minha escola e mais divertida que a vida na comunidade.
época era legal. Você tinha O chão das ruas era quase tão confortável quanto o
liberdade, você podia ir prá chão da casa onde Marcos dormia com seus irmãos e
qualquer lugar que você quisesse,
você não tinha limite. Eu tive primos. Além disso, tarde da noite, ninguém voltava
momentos muito bons porque eu para a favela com medo da violência e dos
era pequeno. Eu conseguia fazer confrontos entre traficantes e policiais. Por outro
muitas amizades com o pessoal lado, nas ruas Marcos conseguia boa comida, roupas,
que morava naquela area (Catete).
diversão, dinheiro e amizade com outras crianças da
Eles doavam roupas, alimentos,
coisas assim… Pelo fato de eu ser mesma faixa etária. No fim, os recursos materiais
abusado eu ficava implicando adquiridos nas ruas acabava excedendo o que havia
com os guardas municipais que em casa ou era oferecido na escola e na comunidade.
ficavam na praça. Aí ás vezes eles
colocavam a gente para nadar no Marcos parou de frequentar a escola sem aprender a
lago à 1:00h. da manhã. ler e escrever. No início de sua carreira nas ruas ele
apenas pedia dinheiro aos passantes, usando parter
Sobre seu próprio
comportamento: para comprar doces que eram revendidos. Tudo que
ganhava era imediatamente gasto em alimentação e
Eu era muito marrento, muito diversão. Ele aprendeu a contar e fazer contas com a
abusado, mandão e não queria ajuda de outros meninos. Quando perguntado sobre
saber de fazer nada. Eu não ia a escola ele respondeu:
pra escola, não respeitava
muito as pessoas, mas eu acho Marcos: Eu não estava interessado. Também,
que essa idéia de estar
depois que eu conheci a praia eu
querendo mudar foi só de
mim mesmo, eu nunca pensei realmente não queria ficar na escola.
em estar saindo da rua para o
Segundo ele a saída da escola foi uma decisão
abrigo, porque o primeiro que
eu fui eu fugi. Eu só fiquei na pessoal, baseada em sua falta de interesse e
ONG Esperança pelo fato de instabilidade emocional gerada pela morte
ter sido bem acolhido, de ter inesperada do pai. Marcos viveu nas ruas por quase
tido uma boa recepção na três anos, de 1997 a 1999. Então, sentindo-se cansado,
casa, uma oportunidade de
estar estudando, fazendo
um dia decidiu ir com amigos ao Conselho Tutelar.
curso, e isso conta muito. Já era tarde da noite e, acidentalmente, ele dormiu
no banco enquanto esperava o conselheiro. Quando
acordou, todos os amigos haviam ido embora e ele
62

Hoje eu fico impressionado ficou sozinho com a assistente social, que o


comigo mesmo, com a postura convenceu a ir para a Casa São Luís, um abrigo no
que eu tenho, porque
antigamente não dava pra me subúrbio do Rio de Janeiro.
aturar não. De vez em quando Este abrigo era diferente dos outros lugares onde
eu xingava minha tia, minha
avó, discutia com a minha Marcos havia passado. Logo fez amizade com a
mãe, saia de casa ia pra casa psicóloga e recebeu pleno suporte e carinho dos
da minha prima. Chegando lá educadores. Gradualmente, através de diálogo e
eu também ficava atenção individualizada, ele começou a gostar da
desrespeitando ela… Ela me
casa e decidiu ficar. Logo foi matriculado na classe
mandava de volta pra casa da
minha mãe e eu fugia de casa. de aceleração e foi alfabetizado em menos de quatro
meses. Desde então sua carreira acadêmica tem sido
Sobre a morte do irmão:
muito bem sucedida e, com frequencia é citada como
Eu estava no abrigo e de vez exemplo para outros adolescentes que vem da rua
em quando eu passava o final ou moram no abrigo.
de semana na casa da minha
tia. Chegando na favela eu Atualmente Marcos trabalha pela manhã como
encontrei meu irmão. A gente aprendiz na Petrobrás, estuda inglês três vezes por
estava andando aí vieram uns semana na Cultura Inglesa (com bolsa integral), faz
cinco rapazes e me mandaram cursos de informática duas vezes por semana e vai
sair. Eles pegaram ele,
agarraram ele, mas ele para a escola à noite. Hoje ele está no segundo ano
conseguiu sair correndo. do ensino médio.
Deram dois tiro nele. Aí ele
caiu e morreu… Eu vi tudo. Nos finais de semana ele gosta de visitar a LAN
House perto do abrigo para ler seus emails e ver o
site do Orkut. Ele também gosta de ir à praia e de
jogar basquete no Aterro do Flamengo. Como todo
jovem aprecia rap e hip-hop e ultimamente tem
desevolvido gosto pela música popular brasileira.
Na escola sua disciplina favorita é Educação Física.
No próximo ano ele pretende prestar vestibular para
Educação Física, tornando-se um profissional no
campo esportivo ou professor.

3. O que adolescentes que viveram nas ruas nos ensinam sobre educação?
Dados indicam que as escola tem encontrado grande dificuldade em lidar com
alunos excluídos que, apesar das dificuldade, precisam e querem estudar. Em
uma conversa informal, uma das diretoras entrevistadas declarou que estes
alunos são vistos como mais um “problema” a ser resolvido pela escola:

Diretora: Uma mãe não conseguiu matricular o menino aqui. Onde ela levava com
aquela ficha, de aluno que parou de estudar, que tinha ido pro morro, ela era
rejeitada. Ela não conseguiu botar ele em lugar nenhum! Então você recebe um
aluno desse e tem vontade de dizer: “Não minha senhora! Volta outro dia”. Porque
você sabe que é um problema que você tá comprando. As pessoas têm medo… Se
disser que eles estão na boca de fumo e querem ser bandidos aí não vai conseguir
matricular mesmo! Aí veio com a ordem do juizado né, pra tentar uma matricula
aqui. Infelizmente, a gente é sempre escolhido, não sei o que é isso, meu Deus do
céu! Aí sobra pra mim [matricular os alunos excluídos].
À luz do debate atual sobre a melhoria da qualidade da educação no país -
avaliada por medidas estatísticas como o IDEB e por sistemas sofisticados
como SAEB e o PISA – as trajetórias de adolescentes que vivem e viveram nas
ruas, vistas de fora da escola, revelam a persistência de processos de exclusão
e a necessidade de pensarmos coletivamente sobre alternativas para o sistema
63

de ensino. Segundo Pedro, ex-morador de rua e atualmente educador da


ONG-Vida, se quisermos promover educação de qualidade junto a
adolescentes marginalizados é preciso, como primeiro passo, aceitar e
compreender sua condição humana, resignificando o sentido da escolarização
na constituição das suas identidades (Hall and Jefferson, 1976, Hall, 1996).

Educador Pedro: Como é que você vai tirar, dez, cinco anos de rua do menino em
um mês? Tem um ditado deles que é o seguinte: você pode até tirar tirar o menor da
rua, mas nunca vai tirar a rua do menor. E é assim. Eles crescem, formam família...
Eu sou um que mantem o sentimento da criança que um dia não teve nada. Isso
nunca vai ser tirado de dentro de mim. Não adianta. Não dá. Você vai trabalhar
com outras perspectivas, mas esse é o individuo que você está trabalhando!
Afinal, talvez a diretora e vários profissionais da educação não percebam que
o “problema” vai muito além do aluno. Escolas são espaços de contradição
que continuam, por um lado, reproduzindo desigualdades sociais, mas que,
por outro lado podem, subvertendo a ordem, criar novas possibilidades para
conscientização e transformação (Fine and Weis, 2003). A narrativa dos
participantes da pesquisa mostra que as escolas têm limitado possibilidades
de construção identitária, quando deveriam expandí-las, permitindo o
surgimento de novas narrativas do “eu”, como no caso de Marcos (Smyth and
Hattam, 2004). O desafio, então, é identificar e remover as barreiras para a
inclusão dos alunos marginalizados, através de ações integradas seja no
campo político, institucional ou pedagógico (Ainscow et al., 2006). Cabe
assinaliar que a melhoria das escolas públicas passa também pela formação de
professores e pela ação de docentes que sejam reconhecidos pelo seu valor na
formação da juventude brasileira (Ludke et al., 1999). Quando a pesquisa
educacional sai da escola, também nota-se a persistência de um modelo
institucional fechado em si mesmo, que não reconhece ou pouco colabora com
outras instituições. A ação integrada junto a redes de proteção à infância e
adolescência (Barker and Rizzini, 2006) torna-se fundamental para garantir às
crianças e adolescentes acesso e permanência no ensino básico, assim como o
direito à vida. Como já sugeria Freire (1972), a revolução, ou transformação
social, ocorre entre atores em intercomunicação, que juntos atuam para a
modificar suas condições existenciais, ou seja, sua realidade. Em suma,
quando conhecemos a experiência de Marcos e outros adolescentes que
viveram nas ruas, lembramos que um futuro diferente é uma construção
possível, que devemos construir juntos.

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66

ARQUITETURA DOCENTE: VISÕES E CONSTRUÇÕES NA


PERSPECTIVA DA ETNOGRAFIA DOS ESPAÇOS EDUCATIVOS6

Gianine Maria de Souza Pierro

O movimento de aproximação entre etnografia e educação vem


desenhando um arcabouço teórico importante para a pesquisa neste
campo possibilitando espaços de discussão quanto às interfaces dos
processos de ensino e as dimensões de aprendizagens e assim
consolidando marcos de referência na área. Segundo os estudos de André
(1997) esta aproximação vem se adensando nos últimos 30 anos frente ao
crescente interesse dos pesquisadores educacionais. Este comportamento é
confirmado face ao aumento da produção de trabalhos científicos na área,
que segundo a autora evidenciam ganhos, mas também problemas e
futuras direções que esta interlocução pode construir.
Este interesse deve-se ao fato de que a abordagem antropológica
permite ultrapassar alguns limites importantes no campo da pesquisa
diferentemente de investigações que, por exemplo, trabalham com
categorias preestabelecidas ou com um grande volume de dados, exigidos
pelo tratamento estatístico, segmentando comportamentos em unidades
mensuráveis e assim colocando limites arbitrários em algo que é contínuo.
Nesse tipo de estudo, há uma supervalorização da metodologia em
detrimento da teoria atribuindo uma preocupação exagerada à
objetividade o que leva a valorizar mais o número de observações que seu
conteúdo. Estas pesquisas atendem possivelmente a aspectos da
dimensão macro do sistema educativo e se voltam para visões sistêmicas e
estruturais deste processo, mas não dão conta da sua intensidade,
organicidade e dinamicidade.
Como alternativa a abordagem antropológica voltada para a
educação busca além desta compreensão, no entendimento de Gusmão
(1997):
“revelar a complexa rede de interações que constitui a experiência
escolar diária, mostrar como se estrutura o processo de produção de
conhecimento na sala de aula e a inter-relação entre as dimensões
cultural, institucional e instrucional da prática pedagógica com

6 Este trabalho é parte da Tese de Doutorado - “Arquitetura docente no Curso de Pedagogia: Dialogando com
Ciência e Arte nas práticas de formação em estágio supervisionado e museus” (2009) - apresentada ao Programa
de Pós Graduação em Ensino em Biociências e Saúde – Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, orientada pela Profª
Drª Helena Amaral da Fontoura
67

objetivo de compreender a realidade escolar para, numa etapa posterior,


agir sobre ela, modificando-a.“

Como metodologia, esta abordagem permite fazer uso de observação


participante, que envolve observação, anotações de campo, entrevistas,
análises de documentos, histórias de vida, fotografias, gravações de forma
a compreender o contexto educacional permeado pela multiplicidade de
significados que fazem parte do universo cultural estudado pelo
pesquisador, onde as interpretações destas situações podem ou não ser
generalizáveis com base em sua sustentação teórica e em sua
plausibilidade. Os dados são considerados sempre inacabados e o
observador não pretende comprovar teorias nem fazer generalizações
estatísticas e o leitor se permite compactuar ou não destas interpretações
da realidade observada.
Entretanto o que qualifica ou desqualifica uma pesquisa para
Mattos (2005) não são as metodologias ou os procedimentos que
apresenta, mas “o que o faz é a rigorosidade, o compromisso, a relevância
científica e social, a capacidade do pesquisador em proceder e comunicar aquilo que
fez e o que resultou do seu fazer científico.” E complementando a autora
afirma que com esta abordagem busca-se mais que um design de pesquisa
propondo que a etnografia torne-se um paradigma científico de contorno
epistemológico-científico.

Segundo André (1997) a preocupação da etnografia com questões


relacionadas à cultura de grupos e indivíduos estudados chamou a
atenção dos educadores “para a necessidade de considerar as situações de sala
de aula (dimensão pessoal e interacional) em estreita conexão com a forma de
organização do trabalho pedagógico na escola (dimensão institucional) e com os
seus determinantes macro-estruturais (dimensão sociocultural)”.
Imbuídas desses propósitos direcionamos nossa atenção para as
práticas de formação de professores no curso de Pedagogia da Faculdade
de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ) para compreender a contribuição e construção de saberes
docentes na formação inicial dos licenciandos naquilo que se vive e teoriza
no interior dos cursos de pedagogia. Reconhecendo as dimensões sociais e
culturais que sustentam a realidade educativa, fomos em busca das
68

práticas que articulam as categorias - formal e não-formal na educação


vivenciadas em estágio supervisionado na interlocução com espaços
educadores numa arquitetura onde licenciandos se constroem professores.
A idéia expressa no título deste artigo instiga a desenvolver os
apontamentos das questões teóricas da pesquisa que desenvolvemos na
reflexão sobre a formação inicial docente, em especial, aquelas que
destacam a noção de cultura pelo viés da articulação entre educação
formal e não-formal. Na seqüência deste texto discutiremos, reforçando
pelos argumentos da abordagem etnográfica, o trabalho de campo e as
metodologias que aconteceram nessa investigação voltado para as
parcerias com os museus. Em seguida destacaremos algumas tendências
atuais das práticas de estágio para finalmente apresentarmos as
contribuições dessa pesquisa para a área da formação docente.

Campo, territórios e pesquisa: visões e construções

Seguindo as orientações que constroem o diálogo entre


antropologia e educação, no trabalho de campo da pesquisa, participamos
diretamente com os alunos, em diversas situações a partir das quais
mapeamos as informações e dados da pesquisa realizando várias
propostas, incluídas nas atividades de estágio, registradas em fotografia,
em diário de campo, em trabalhos e produções textuais dos alunos.
Participamos com as turmas de visitas, seminários, feiras e cursos.
Também foram aplicados questionários e levantamos das informações que
situaram e contextualizaram o perfil dos grupos de alunos da FFP e
entrevistas abertas, recurso metodológico muito utilizado em etnografia.
Blanchet e Gotman (1992) consideram que a metodologia da
entrevista consiste numa completa técnica de pesquisa porque atua ao
mesmo tempo no plano dos resultados e nos fundamento teóricos.
Segundo esses autores em função do jogo da comunicação e das interações
causadas no processo de interlocução, todo discurso produzido na
entrevista é co-produzido pelos participantes do diálogo, isto é
entrevistador e entrevistado. Para os autores a condição necessária para
que este método alcance um status científico está no reconhecimento, viés
no qual são fundados a dinâmica e os procedimentos para a entrevista.
69

As entrevistas, nesta pesquisa, aconteceram entre os meses de


março e abril de 2008, considerando o estreitamento dos vínculos
construídos ao longo do tempo com os licenciandos tanto com o tema da
pesquisa quanto com o pesquisador, trazendo tom e voz do que desejaram
declarar. Convidamos para as entrevistas o grupo de alunos que
participaram do curso do Mast. Os sujeitos entrevistados foram aqueles
que voluntariamente desejaram e se disponibilizaram a participar num
total de cinco alunos, dos quais naquele momento, dois trabalhavam como
professores depois de terem iniciado o curso de Pedagogia; um com
projetos de teatro; um aluno atuava em projeto de monitoria na faculdade
e um aluno estava estudando na faculdade sem desenvolver outra
atividade nem profissional, nem estudantil.
As entrevistas foram realizadas na própria faculdade, um espaço
familiar e reconhecido por todos os entrevistados como próprio das nossas
práticas acadêmicas. Nossa escolha privilegiou a faculdade por facilitar o
encontro com os participantes, uma vez que regularmente estão neste
local. Quanto à estrutura metodologia, por se tratar de uma pesquisa
qualitativa de cunho etnográfico, optamos em trabalhar no formato de
entrevista aberta na qual traçamos linhas de orientavam as questões sobre
as quais gostaríamos de conversar com os entrevistados, mas que
permitissem contribuir também com debates que circundam a
problemática da formação docente. Desta forma, investigando a temática
da pesquisa, a condução da entrevista focou a escolha pelo curso de
Pedagogia, a formação docente na FFP / UERJ, as práticas e vivências que
o aluno considerou como significativas para sua formação, principalmente
aquelas vivenciadas em Estágio Supervisionado, e de que maneira
perceberam a presença ou não de saberes e vivências de ciência e da arte
na sua formação.
Pelo fato de supor a conversação continuada entre informante e
pesquisador esta técnica se reveste da característica do diálogo. Esta
interlocução estabelecida entre entrevistado e entrevistador considera,
segundo Queiroz (1988), uma distinção nítida entre narrador e
pesquisador, uma vez que ambos se envolvem na situação da entrevista,
movidos por interesses diferentes. Sendo uma técnica de coleta de dados,
70

o pesquisador assume, na entrevista o lugar de dirigir esta conversação de


acordo com seus objetivos.
Inseridas nas atividades de Estágio Supervisionado, também foram
realizados, na FFP/UERJ, dinâmicas em sala de aula, com os grupos da
pesquisa, nas atividades de estágio, integradas ao processo de formação
dos alunos e aos planejamentos de curso. No trabalho com imagens foram
exploradas as articulações entre ciência e arte na dinâmica da prática
docente usando reproduções de Salvador Dali7 e através de álbum de
imagens composto por fotografias, desenhos e esquemas. O estágio
aconteceu tanto nas práticas educativas voltadas para escolas quanto nos
programas educativos em museus, através de visitas exploratórias ao
Museu de Arte Contemporânea de Niterói (Mac), ao Museu de
Astronomia e Ciências Afins (Mast), ao Museu da Vida, da Fiocruz;
Museu da Língua Portuguesa em São Paulo e ao Centro Cultural Banco do
Brasil (CCBB). Como desdobramentos, neste percurso do trabalho de
campo duas parcerias institucionais, uma com o Mac e outra com o Mast,
foram concretizadas, tendo cada parceria formato próprio de
operacionalização específica, ambas voltadas para o estágio
supervisionado.
Com um olhar observador e cuidadoso no tratamento das questões
da formação inicial de professores, no período de 2005 a 2008, seguindo as
orientações de Blanchet e Gotman (1992) quanto à observação participante,
acompanhamos diferentes turmas de alunos regularmente inscritos nos 5°,
6°, 7° e 8° períodos em Estágio Supervisionado no curso de Pedagogia da
FFP/UERJ. O acompanhamento na pesquisa desses grupos foi
determinado pela inserção em turma que favorecia a articulação entre as
instituições, faculdade e museu, de acordo com a dinâmica e concepção do
planejamento dos professores da faculdade e dos horários das instituições
e ainda em função período de conclusão e permanência dos alunos na FFP.

7 Salvador Dali, nascido maio de 1904, em Figueres, na Espanha e falecido janeiro de 1989, na mesma cidade, foi
um importante pintor catalão conhecido pelo seu trabalho surrealista. As obras de Dalí chamam atenção pela
incrível combinação de imagens bizarras, como nos sonhos, com excelente qualidade plástica.
http://www.pitoresco.com.br/universal/dali/dali.htm
71

Pudemos organizar em três momentos os grupos de referência dos


sujeitos desta pesquisa: um grupo foi composto por alunos de diferentes
turmas de Estágio Supervisionado que utilizaram parte da carga horária
no convênio entre a FFP/ UERJ e o Mac / Niterói. Este projeto teve a
duração total de dois anos, entre 2005 e 2006, durante dos quais
participaram oito alunos. Do segundo grupo participaram dezesseis
alunos acompanhados nas suas práticas e atividades que enfocavam a
articulação entre educação formal e não-formal durante quatro semestres
consecutivos, enquanto inscritos em Estágio Supervisionado I, II, III e IV,
no turno da tarde. O terceiro grupo foi composto por vinte alunos que
participaram, no primeiro semestre de 2007, de curso no Mast voltado
para licenciandos no programa educativo deste museu. A grande maioria
dos alunos esteve presente tanto nas atividades que aconteceram na FFP
como no Mast.
Esta distribuição dos grupos não foi discutida com referencial de
pesquisa. Nossa intenção foi, em participando de suas práticas de
formação docente, conhecer e compreender o olhar dos licenciandos
quanto às questões da cultura e da apropriação das práticas na sua
formação e não distinguir diferentes propostas de planejamento ou
metodologias para a formação de professores. O intervalo de tempo da
pesquisa nos fundamentou quanto ao processo do componente curricular
estágio supervisionado no curso de pedagogia.
O grupo de alunos que estagiou no Mac/Niterói apresentou como
perfil de formação acadêmica particular, já que haviam entrado na
universidade em 2002 e 2003 quando ainda era solicitado por edital a
formação de professores iniciada em nível médio, em cursos pedagógicos.
Portanto ingressaram no curso de Pedagogia para complementar e
certificar, em nível de graduação, sua profissão, tendo assim, esses oito
alunos, alguma experiência docente e idade acima de 22 anos.

Outro perfil que encontramos no levantamento dos alunos e para o


qual o curso de Pedagogia da FFP/UERJ atualmente está voltado
corresponde à situação de alunos que não necessariamente têm formação
docente em nível médio, mas que se caracterizam por terem fortes
expectativas frente às ações e práticas docentes e às demandas do processo
72

de ensino-aprendizagem, questões abordadas principalmente nas


entrevistas realizadas e registradas nesses depoimentos:

“Quando escolhia o curso era aquela insegurança. Não sabia o que fazer no vestibular,
mas queria área de humanas. Então pensei: Vou fazer isso mesmo (Pedagogia) se não for
depois eu mudo. Não sabia o que era Pedagogia. Perguntei às pessoas. Já fui me
identificando um pouco, gostando.” (Depoimento de Licenciando do 8° período do
curso de Pedagogia da FFP/UERJ realizado em entrevista)

“Até agora não tenho uma idéia formada porque optei por Pedagogia. Também pode ser
por ser mais próximo da minha casa. Eu tentei também biologia. Não tinha feito pré-
vestibular, pensei: _Vou me dedicar ao terceiro ano na escola, faço o vestibular e se não
passar, no ano que vem faço pré-vestibular e me dedico ao vestibular. Mas como passei na
Pedagogia, pensei:_ Qualquer coisa troco. Algumas pessoas têm este pensamento. Muitas
pessoas pensam assim. Só que comecei a gostar, a entender de Pedagogia e, se Deus
quiser, vou me formar.” (Depoimento de Licenciando do 8° período do curso de
Pedagogia realizado em entrevista)

A partir dos seus depoimentos nas entrevistas, entrar na


universidade pública, especificamente a FFP/UERJ8, se reveste de
conquista e alcance de objetivo de vida, nem sempre pela escolha da
carreira indicada no curso de graduação escolhido, mas principalmente
pelo resultado social que a aprovação em vestibular representa, aliado ao
fato de ser uma instituição pública. A importância e significado na
dimensão social desta conquista estão diretamente relacionados aos
projetos de vida profissional e pessoal que este fato deixa antever. Trata-se
então de propor alternativas, possibilidades a serem construídas daquela
data em relação aos próximos quatro anos, uma perspectiva de futuro.
A dimensão social que a profissionalização alcança pode ser
responsável por alguns aspectos de mobilidade social, inclusive, como é o
caso, dos alunos que estudam no curso de Pedagogia da FFP/UERJ: um
grupo heterogêneo na sua composição com sujeitos provenientes de
diferentes cidades, tanto de São Gonçalo como de Niterói e Rio de Janeiro,
mas também alunos que nasceram e moram em cidades menores ou com
características rurais na baixada fluminense, e ainda em regiões em
direção ao norte do estado do Rio de Janeiro, nas cidades de Maricá,
Tanguá e Rio Bonito, entre outras. Por outro ponto de vista esta
diversidade de origem e culturas desenha perfil diversificado de alunos

8 A caracterização desta temática foi desenvolvida na dissertação “A Humana docência em formação: cultura e
imaginário dos alunos no curso de Pedagogia da FFP / UERJ”, em 2005, no Programa de Pós Graduação em
Educação da Universidade Federal Fluminense.
73

tanto na dimensão sócio-cultural como em relação à situação econômica.


Este cenário ratifica, mais uma vez, a importância que cursar a graduação
representa para esses estudantes.
Com a globalização da economia e com a reestruturação produtiva,
segundo Kuenzer (1999), o quadro das políticas de formação docente,
inclusive no Brasil, altera-se radicalmente. Frente às mudanças conceituais
e curriculares que os cursos de formação de professores vem sofrendo ao
longo das últimas décadas, a partir das legislações e reformas curriculares,
tanto nos procedimentos dos organismos oficiais como nas bases
filosóficas e teóricas que os intelectuais da área travam, o perfil
profissional do pedagogo nem sempre está bem definido para o aluno
iniciante neste curso. A formação em Pedagogia pode não ser exatamente
a concepção que o senso comum atribui ao modelo desta formação como
uma carreira intimamente vinculada ao ensino das séries iniciais do
Ensino Fundamental.

Nas parcerias com os museus, a proposta formal com o Mac


oportunizou que durante dois anos, oito alunos participassem de
atividades no museu acompanhando as visitas de escolas e os encontros
de professores que o setor educativo do museu promoveu. Esta atuação
dos alunos foi absorvida por 1/3 da carga horária de estágio regular
desses alunos para o componente Estágio Supervisionado. Os alunos
realizaram atividades de leituras, observação, co-participação e
participação nas ações do programa educativo do museu em situações que
envolviam escolas e professores. Participaram também de algumas
atividades com o público em geral. Suas atividades foram registradas em
relatório próprio do museu. Ao final do estágio receberam documento
certificando sua participação com carga horária especificada.
Ao longo do período do estágio os alunos participantes
estabeleceram vínculos com a equipe, com o espaço e com a arte. Na
medida em que aprofundaram seu olhar, ampliaram aprendizagem e
saber e por isso mesmo, sentiram-se mais seguros e interessados. Dos oito
alunos somente dois cumpriram a carga horária mínima destinada ao
estágio, trinta horas, os outros seis ampliaram seu tempo e contato com o
museu. Aconteceu ainda a articulação deste estágio com as atividades nas
74

escolas que os alunos estagiaram em São Gonçalo organizadas em visitas


exploratórias.

Na segunda parte do estágio participei do projeto “Leitura de novos horizontes –


interação com a arte”. Durante três quartas-feiras acompanhei três turmas de 2ª série do
Centro Educacional X, com os professores: Andréia; Maria e Angela9, respectivamente
nas datas 10, 17 e 24 de agosto. Antes das visitas as professoras trabalharam em sala de
aula com os alunos, preparando-os para que pudessem fazer bom aproveitamento das
visitas. Como sugere o encontro de professores que é oferecido pelo Mac. (Fragmento de
relatório final quando da conclusão do estágio no Mac por Licenciando do 8°
período do curso de Pedagogia da FFP/UERJ)

Nesta quarta-feira ainda tivemos acesso à agenda de vistas e pudemos anotar as datas dos
próximos grupos que virão ao museu. Assim, participamos do planejamento de uma
atividade para a recepção do grupo agendado para o dia 18 de agosto, próxima quarta-
feira. Sugeri que após a chegada do grupo ao pátio e a realização do ritual da rampa,
conduzíssemos os alunos para as exposições e fizéssemos a proposta de elaboração de uma
história oral coletiva. Chegamos a um consenso sobre a exposição do Grupo Casa 7 – a
história deveria ser contada pelos alunos no centro do salão principal, após a apreciação
das obras. (Fragmento de relatório final quando da conclusão do estágio no Mac
por Licenciando do 8° período do curso de Pedagogia da FFP/UERJ)

As análises desta prática na pesquisa contribuíram nas reflexões


quanto aos rituais de aprendizagem, o foco na formação docente, as
relações e conceitos quanto à arte, ciência, aprendizagem, cultura e
educação formal e não formal. Consideramos como marca diferencial,
nesta prática de campo de pesquisa, o fato da utilização de carga horária
oficial de estágio, diferentemente das propostas de horas complementares
ou atividade extra-curricular, como também as práticas de transposição
didática vivenciadas pelos licenciandos quando da realização, com as
turmas das escolas nas quais os estágios aconteciam, às exposições no
Mac.
O trabalho de campo que aconteceu no Mast foi organizado com
parceria formal entre o museu e o curso de Pedagogia da FFP na
realização de um curso voltado para licenciandos, do qual participaram
vinte alunos, com duração de uma semana de 23 a 27 de julho de 2007 e
carga horária de 24. Estivemos presentes todo o tempo com o grupo em
todas as atividades. Nossa atenção estava centrada no grupo, suas atitudes
e interesses. Entendemos o trabalho de campo também com o caráter
participante do pesquisador, não estávamos nem excluídas nem
silenciosas, mas não conduzíamos ou estimulávamos as participações. No

9 Nome fictício respeitando a ética da não identificação dos sujeitos da pesquisa.


75

pensamento de Blanchet e Gotman (1992) “a observação participante revela


uma deontologia do lugar da antropologia na medida ou das condições sucessivas
de seu exercício iluminam os episódios implícitos ou explícitos do campo (papel de
autoridade administrativos, coloniais ou pré julgamentos teóricos e
metodológicos)” (p.42).
Também procuramos interferir o menos possível na condução das
atividades. Nossa intenção era observar, fotografar e registrar o que
aconteceria quanto ao processo dos alunos reconhecendo a perspectiva
dialética entre pesquisador e sujeitos na etnografia e a mútua afecção
recíproca da interioridade e da exterioridade nesta relação, nas
configurações que fazemos dos outros e das imagens que temos deles.
Os alunos dialogaram com alguns aspectos que caracterizam suas
lembrança e apropriações quanto aos museus. Não explicitaram a
dimensão educativa nem a relação com as instituições escolares. Também
não discutiram áreas às quais os museus poderiam se dedicar e seu caráter
interativo como espaço facilitador de construção do conhecimento.
No decorrer desta primeira atividade do curso, outra pergunta foi
lançada ao grupo: ”Porque levaria seus alunos ao museu?”. Os alunos foram
quase unânimes em responder quanto à possibilidade de estimular o
interesse de crianças e jovens sobre uma temática e ampliar conhecimento.
Essa nos parece ser uma prática fortemente definida na relação escola -
espaços culturais indicando que, de forma geral, os professores
estabelecem relação complementar daquilo que pretendem ensinar, do
saber que seus alunos precisam aprender com os saberes e aprendizagens
que buscam nos museus. Porém não identificaram como uma relação de
interatividade, de construção.
Como categorias e marcas sobre as quais voltamos nossa reflexão
nesta pesquisa, o curso no Mast desencadeou análises sobre os saberes da
ciência e da arte, as possibilidades de vivenciar e aprender desafios aos
saberes como elementos de estimular a aprendizagem e as possibilidades
de transposição didática. Destacou também a dimensão plural da
formação docente quando articulada com outros centros de produção do
conhecimento na sociedade, com ações voltadas para a educação.

O Estágio Supervisionado: um território e muitas arquiteturas


76

As práticas de estágio supervisionando em escolas são o carro chefe


dos cursos de formação de professores para os estágios que os
licenciandos dos cursos de pedagogia devem realizar. E de certa forma
não poderia deixar de ser, uma vez que o objetivo do estágio, segundo
Gonçalvez e Pimenta (1990) é uma aproximação à realidade na qual o
licenciando atuará. São as escolas as instituições por excelência para as
quais se volta o processo de ensino e por isso imprimem uma forte marca
nos cursos de formação de professores aonde seus alunos vão em busca de
experiências no campo de estágio.
Quando nos referimos às atividades práticas que licenciandos dos
cursos de pedagogia realizam, de um ponto de vista mais naturalizado,
pode-se considerar que nas escolas todo o universo desta formação está
contemplado, isto é: professores, alunos, saberes, estrutura e
procedimentos pedagógicos estão em cena e por isto mesmo, em jogo, mas
será que é suficiente? A educação é um processo que acontece nas salas de
aula, no interior das escolas somente?
As interrogações que levantamos quanto às práticas de estágio
supervisionado em cursos de pedagogia questionam se a cultura de
formação docente pode estar vinculada somente à instituição escolar.
Determinar o local de estágio voltado para a escola, por excelência, é uma
prática naturalizada, algo dado e definido a priori. Ao discutirmos
articulações entre saberes e cultura, escolas e espaços educadores,
consideramos uma outra possibilidade de ressignificar o estágio
supervisionado porque ampliado nas possibilidades de interagir e
vivenciar a produção de saberes na sociedade ao mesmo tempo em que
contextualiza a escola e seus atores – professores e alunos, na sua
cidadania ao interagirem com diferentes instituições de preservação e
construção da memória e dos saberes sociais.
Não tratamos de delimitar campos de ação ou pertencimento no
estágio, uma vez que consideramos que estes pólos, escola e espaços
educadores pressupõem um ao outro, na melhor tradição do paradigma
da complexidade de Morin (2001). O que pretendemos frente à
multiplicidade de territórios que esta pesquisa oportunizou é a tentativa
de estranhamento de algo que nos parece tão familiar ao direcionarmos
77

nossa investigação no cotidiano das relações de formação e aprendizagem


docente, na busca de um espaço intersticial desta prática no qual não se
privilegia nem a educação escolar nem a educação não-formal.
Construímos nosso foco de estudo na dimensão social e cultural que o
acesso aos saberes e bens de produção da sociedade suscitam na
concepção de democratização da educação.
Nossa opção pela etnografia como metodologia de pesquisa, foi, a
partir de um estudo de campo, aprofundar o olhar frente ao espectro das
práticas formativas docentes considerando as dimensões entre saberes,
culturas, ciência e arte margeadas no percurso do curso de Pedagogia da
FFP / UERJ compondo o cenário desta pesquisa sobre as apropriações dos
alunos das práticas de formação docente organizadas em avenidas10 onde
os licenciando percorreram se fazendo professores.
Organizadas em vias de mão dupla, essas avenidas nos permitiram
vislumbrar e nos levaram aos lugares pelos quais os alunos do curso de
Pedagogia passearam, articulando atividades, atravessando cruzamentos,
tendo como referências as aprendizagens, monumentos erguidos no
espaço - tempo do processo de sua formação docente. No seu traçado o
trabalho de campo foi sendo referido nas práticas de estágio
supervisionado e se estruturando como metodologia.
A partir de então, alguns desdobramentos aconteceram. Na medida
em que as práticas com os alunos avançaram, ergueram-se torres com
projetos de ciência e arte, educação formal e não formal e estágio
supervisionado, concebidas por estruturas e territórios da teoria e da
prática, desenhando a arquitetura docente. Habitadas por sujeitos e
instituições, por licenciandos e espaços de aprendizagens, as torres, ao
serem contextualizadas, proporcionaram a compreensão de tempo e
espaço construindo uma lógica quanto à formação de professores pensada
e vivida por seus sujeitos, alunos em formação, amparado no pensamento
de Santos (1997):
“Por tempo vamos entender o transcurso, a sucessão de eventos e a sua
trama. Por espaço vamos entender o meio, o lugar material da
possibilidade dos eventos. Por mundo entendemos a soma, que é
também a síntese de eventos e lugares. De tal modo, nossa grande

10 ‘As avenidas’ são uma metáfora construída por Edgar Morin no livro Ciência com Consciência (2001) para
abordar a condução do caminho a ser percorrido no desafio da complexidade.
78

tarefa é a de aprender a definir o presente (a escola – a formação


docente11) segundo nossa ótica.” (p. 41)

Considerações finais:

As considerações e sugestões sobre as práticas de estágio,


analisadas com base na etnografia dos espaços educativos neste texto
forneceram subsídios para a reflexão sobre as ações de formação docente
permitindo um olhar menos homogeneizador diante do fenômeno
educativo.
Como movimento e busca, esta investigação aproximou-se tanto de
conceitos e teorias no campo da educação como das práticas e exercícios
dos alunos em formação, contribuindo neste diálogo para outro desenho
de Estágio Supervisionado enquanto campo de conhecimento e por isso
recomenda-se incorporar uma nova linguagem na qual a presença dos
museus e centros culturais integrem a instância desta formação, como
necessidade e princípio frente à dimensão da apropriação social do
conhecimento artístico e científico.
O trabalho de campo possibilitou aos licenciandos configurarem a
relação teoria e prática da formação docente através das atividades
regulares de estágio curricular em escolas e nos museus, evidenciando as
formas de educar que ocorrem nos diferentes contextos institucionalizados
- prática, e os sujeitos - ação, com seus modos de agir e pensar, seus
valores, seu conhecimento, seus esquemas teóricos de leitura de mundo,
seus modos de ensinar, de se relacionar com alunos, de planejar e
desenvolver disciplinas e cursos.
Não podemos dizer que esgotamos as questões que a relação
escola-museu, educação formal e não-formal propõem. Ao contrário
buscamos esclarecer alguns pontos de encontro e levantamos
questionamentos que possam gerar desafios, tendo como foco os cursos de
formação de professores, em especial o curso de Pedagogia, reconhecendo
que a educação, prática social universalizada na sociedade, está imersa em
responsabilidade e compromisso, e nós, professores e formadores de
professores também.

11 A expressão ‘a formação docente’ foi acréscimo nosso ao texto do autor.


79

Referências Bibliográficas:
André, M D. Tendências atuais da pesquisa na escola. Campinas
Cadernos CEDES, v.18 n°43, pp. 46-57. Dez. 1997.
Blanchet A. Gotman A. L’enquête et sés méthodes: l’entretien.Paris.
Éditions Nathan. 1992
Gonçalvez, C L; Pimenta S G. Revendo o ensino de 2° Grau, propondo a
formação do professor. São Paulo. Cortez. 1990.
Gusmão, N M. Antropologia e educação: Origens de um diálogo.
Campinas Cadernos CEDES, v.18 n°43, pp. 8-25. Dez. 1997.
Mattos C. - Estudos Etnográficos da Educação: uma revisão de tendências
no Brasil. Conferência IV Fórum de Investigação Qualitativa e do III Painel
Brasileiro – Alemão de Pesquisa, Educação, Saúde e Ambiente –
Habilidades e Perspectivas. UFJJ, Juiz de Fora, 2005.
Morin E. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro. Bertrand do Brasil.
2001.
Pierro GM. A humana Docência em formação. Tese de Mestrado.
Faculdade de Educação. Universidade Federal Fluminense. 2005.
Queiroz M P. Relatos orais: do "indizível" ao "dizível". In: Von Simsom
OM. (org.). Experimentos com histórias de vida (Itália-Brasil). São Paulo:
Vértice, Editora Revista dos Tribunais, Enciclopédia Aberta de Ciências
Sociais, v.5, p.68-80.1988.
Santos M. A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção. São
Paulo. Ed. Hucitec. 2ª ed. 1997.
80

AUTISMO E EDUCAÇÃO: CONTRATO DE INCLUSÃO

Sandra Cordeiro de Melo

Este artigo aborda a relação do contrato social, estabelecido entre


família e escola na inclusão educacional de um menino com Transtorno
Autista e a sua exclusão pela quebra do contrato, a partir de uma pesquisa
de cunho etnográfico. Acompanhamos o processo inclusivo de Hélio12 em
uma escola de ensino regular. A coleta dos dados iniciou em março e
permaneceu até meados de junho de 2002, quando Hélio deixou a escola.
Nos estudos sobre a temática verificamos inúmeras tentativas das escolas
e da sociedade civil em estimular a inclusão de pessoas com necessidades
educativas especiais, nas esferas sociais. Com freqüência, assistimos ao
fracasso dessas tentativas que, ao contrário do previsto legalmente,
promovem a exclusão. No caso que ora apresentamos, após três anos de
escolarização regular, Hélio percorre o caminho inverso e ingressa no
ensino especial. O artigo demonstra como se dá a interação de Hélio com
os demais colegas de classe e, finalmente, explica a relação entre a
permanência do aluno na escola e a identificação, nas falas dos sujeitos, da
‘importância do dom’ (BOURDIEU, 1997) para educar pessoas com
necessidades especiais.
O contrato será entendido como o movimento combinado entre
escola e pais. Ele não é dito, porém é conhecido pelas contradições que
alimenta no interior das relações interacionais. Algumas escolas, não
exclusivamente aquelas que atendem pessoas com necessidades especiais,
recebem a criança e se comprometem a agir de forma amável, afetuosa e a
controlar o comportamento que possa significar o desvio das normas e das
regras de conduta socialmente estabelecidas para qualquer instituição
escolar.
Estas normas manifestam-se no comprometimento da família e da
escola em agir de acordo com o contrato silenciosamente combinado pelas
partes. De um lado está a família que confia seu filho aos cuidados da
escola sem exigir da mesma o aprendizado formal, ou melhor, o

12 Hélio, menino de doze anos, com Transtorno Autista, sujeito desta pesquisa, em processo de
inclusão por três anos em escola regular. Todos os nomes foram alterados.
81

conhecimento escolar normalmente oferecido pela instituição educacional


e esperado pela sociedade. Se a aprendizagem acontece, todos se alegram.
De outro lado, quando a instituição educacional não apresenta resultados
escolares, tudo vai bem, pois não estava mesmo no contrato...
Para Habermas (1993), contrato implica sanções. Através de um
evento ocorrido no pátio da escola, identificamos o momento em que
ocorreu a quebra do contrato por parte da escola e, como resultado, a
finalização do processo de inclusão de Hélio. O evento foi a queda sofrida
por Hélio do balanço da escola. O aluno subiu na haste mais alta do
balanço13 de onde se desequilibrou e caiu. Naquele momento, como em
outros, ele não estava sob a supervisão de nenhuma das três profissionais
que compartilhavam sua educação. A lateral esquerda de suas costas ficou
inteiramente lacerada; Hélio não foi atendido em seu ferimento pelas
professoras. Sem o pronto-socorro adequado, ele chegou em casa trazendo
em seu corpo as marcas da queda e a negligência no cuidado. Este fato
significou a quebra do contrato estabelecido - tomar conta de Hélio
durante o período escolar. A escola não conseguiu cumprir sua parte do
acordo. Por este motivo, após uma série de desentendimentos entre a
família e a comunidade escolar, Hélio deixou a escola.
Para explicara a relação trabalho-interação, Habermas utiliza os
conceitos de ‘agir instrumental’, ‘agir racional com respeito a fins’ e ‘agir
comunicativo’. Para o autor, o agir instrumental rege-se por regras
técnicas baseadas no saber empírico e define-se por estratégias que
dependem da validade de proposições empiricamente verdadeiras ou
analiticamente corretas. A escolha racional destas regras e técnicas é
regida por estratégias baseadas no saber analítico. Tais escolhas implicam
em derivação a partir de preferência.
O agir racional com respeito a fins, isto é, a forma como o agir
instrumental será realizado - neste caso, através do afeto e do controle-,
realiza objetivos definidos em condições dadas, ao passo que o agir
instrumental organiza os meios adequados ou inadequados segundo os
critérios de um controle eficaz da realidade. O agir estratégico está

13 O balanço a que nos referimos situava-se num pequeno gramado no pátio externo da escola, era muito
pequeno para uma criança de 12 anos, comportando apenas crianças de até 5 anos. Era baixo e enferrujado, com
uma das cadeiras faltando, o que o tornava desequilibrado para um dos lados. Era montado sob duas hastes
paralelas ligadas por uma série de folhas de ferro, formando uma pequena escada paralela ao chão.
82

compreendido no agir instrumental e significa a forma como se


demonstrará o afeto e se obterá o controle, só dependendo de uma
avaliação correta das possíveis alternativas do comportamento. Esta, por
sua vez, resulta exclusivamente de uma dedução feita com o auxílio de
valores e de máximas que são óbvios para todos, ou seja, a educação se dá pelo
caminho do amor. O agir comunicativo é uma interação mediada
simbolicamente, isto é, na interação escola, família e criança, regida por
normas de validade obrigatória que são construídas ou definidas pela
própria relação escola / família.
Para que esta relação possa existir, é preciso que existam regras.
Estas, às quais chamamos de ‘contrato’, se definem a partir das
expectativas de comportamento recíproco que é fortalecido por sanções. O
seu sentido se objetiva na comunicação, ou seja, a vigência do contrato é
fundamentada na intersubjetividade e no entendimento acerca das
interações e é assegurada pelo reconhecimento universal - todos os
participantes conhecem suas regras e concordam, em princípio, com as
mesmas.
A violação do contrato implica em sanções, pois no contexto da
inclusão, subentende-se que o papel principal da escola será o de cuidar e
o da família o de não cobrar resultados de ordem pedagógica. A
demonstração da falta de cuidados no trato com a criança viola regras
técnicas confirmadas e é, por si só, condenada ao abandono em virtude do
insucesso. A queda de Hélio do balanço da escola violou o contrato
estabelecido. A família, por considerar incoerente tal fenômeno, pois
entendia ser parte do contrato - a escola tinha que tomar conta e dar conta
fisicamente de Hélio - rescinde o contrato, retirando Hélio da escola.

A escola, a inclusão e a experiência em lidar com Hélio


“Eu considero que o trabalho da gente foi muito bom”.
(Cristiane, em entrevista, 17/05/2002).

Esta escola foi criada a partir do desejo de Vera, sua dona, de


‘cuidar de crianças’; segundo ela, a instituição sofria com a inadimplência
de seus alunos, fato este que inviabilizava a regularização tanto do imóvel
onde se situava, "essa casa não tem registro na prefeitura", como da escola
propriamente dita. Cerca de 50 crianças compunham o corpo de alunos da
83

escola, dispostas entre educação infantil e ensino fundamental, nos turnos


da manhã e da tarde. Duas professoras, Cristiane e Márcia, se dividiam, no
turno da manhã entre a segunda série e uma turma multisseriada da
Educação Infantil, sempre auxiliadas por Vera.
Hélio, 12 anos, fora matriculado na segunda série de ensino regular,
mas cursava de fato a turma multisseriada da Educação Infantil. O único
momento registrado em que Hélio fez atividades referentes ao currículo
da segunda série foi no primeiro dia de coleta de dados no qual ele, fora
da sala de aula de sua turma de origem, realizou, separadamente com a
professora, exercícios de montagem de palavras com alfabeto móvel e
cálculos matemáticos. Depois deste dia, Hélio somente subiu ao
pavimento superior da escola, onde se situa a sala da segunda série, uma
única vez mais. Assim, tomaremos por base a turma da Educação Infantil
onde o aluno permaneceu.
Esta turma era composta por seis crianças com uma média de 5
anos de idade. As mesas eram dispostas em dois grupos: Hélio
permanecia, na maior parte do tempo, em um, enquanto, seus colegas
permaneciam no outro. Na época em que Hélio foi matriculado, dois anos
antes, havia uma terceira professora, Elaine, que se dispôs a recebê-lo em
sua sala de aula com a assistência de Márcia. Ao final do segundo ano de
escolarização de Hélio, Elaine deixou a escola, passando a turma para
Márcia que, a partir da experiência com esta professora e com o aluno,
continuou o trabalho.
Segundo Vera, Hélio fora aceito na escola por três motivos: Elaine já
trabalhara com Educação Especial, seu desejo em ajudá-lo e sua intenção
de aprender com esta experiência:
"(...) vendo o Hélio, aquela coisa, uma ansiedade, tentando de
alguma forma ajudar o Hélio, entendeu, que é uma criança, um
menino bonito, que tu ... dá uma ... incomoda, aquela coisa que
parece que tá presa alguma coisa ali dentro, não sei como resolver,
hoje em dia ... é mais aquela necessidade de ajudar, de aprender,
pra no futuro poder ter crianças assim, entendeu". (Vera, em
entrevista, 17/05/2002).

Em seu terceiro ano nesta escola, Hélio lia fluentemente estórias de


livros infantis sem, no entanto, interpretá-las. Estas habilidades haviam
sido adquiridas antes de seu ingresso nesta instituição. Ele sabia fazer,
mecanicamente, contas de até três algarismos e, freqüentemente, escrevia e
84

desenhava os seus motivos de estereotipia - nomes e símbolos de canais de


televisão. Algumas músicas também eram cantadas de forma
estereotipada, demonstrando provocar relaxamento nas horas de
inquietação.
Sempre que pensamos a inclusão educacional de ·crianças com
necessidades educativas especiais, nos questionamos como é conduzido o
processo pedagógico. Considerado como uma caixa preta, o autismo se
apresenta a partir de seus sintomas mais reveladores: a extrema
dificuldade em estabelecer o contato afetivo e o vínculo social, as
estereotipias, a hiperatividade muitas vezes associada e os rompantes de
agressividade que podem surgir. Percebemos que, nesta escola, a
educação se deu na tentativa de driblar estes sintomas, através de ensaios
e erros, randomicamente. Eram tiros no escuro, experiências de obstinação
e paciência por parte das professoras.
Quanto às atividade pedagógicas, o quadro que encontramos ao
chegar à escola foi o de atividades dispersas, pouquíssima rotina,
tentativas de controle do comportamento por parte das professoras e das
atividades pedagógicas por elas propostas. Por outro lado, Hélio só
realizava as tarefas que tinha vontade, na hora em que estava disposto e
no lugar que lhe convinha. Sua professora dividia a tarefa de cuidar com
suas duas colegas. Desta forma, a atividade principal de Hélio pareceu ser
andar pela escola e a de suas professoras a de correr atrás dele para
convencê-lo a concentrar-se em alguma atividade – na maioria das vezes,
inferior ao seu nível intelectual - como brincar de massa de modelar,
desenhar, rasgar e colar papéis de revistas em formas geométricas. Em
entrevista realizada com Márcia, o trabalho desempenhado com Hélio
serviu como um aprendizado, uma experiência a mais:
"Uma experiência a mais que eu tive, e ele é assim... foi um contato
bom, entendeu, apesar de as barreiras que aconteceram ai... mas
valeu a pena, porque senão, acho que eu nunca ia ter contato e,
quando alguém dissesse: Ah!, Tá precisando de um professor para
classe especial. ah, eu não quero não, entendeu, não sei lá como é que
é fazer com isso. Quer dizer que eu cheguei já tendo que: ó... é pra
mim, então tá bom" (Márcia, em entrevista, 17/05/2002).

Para a professora Cristiane, que também não tinha experiência


prévia em lidar com crianças especiais, o trabalho com Hélio refletiu a
carência de estrutura da escola:
85

"Fiz um estágio quando estudava (no curso normal), eu trabalhei


em classe especial, mas não tinha autista, era um especial assim
diferente, eram·crianças que tinham dificuldade de aprendizagem tá,
coisas assim mais ou menos. Agora, com criança, com criança
especial mesmo, eu só fui trabalhar e ter contato como o Hélio, e a
gente começou assim, meio sem saber o que fazer com ele, porque a
nossa escola você já deve ter percebido que é uma escola pequena, que
tá com poucos alunos, não tem uma estrutura pra gente trabalhar
com crianças do tipo do Hélio". (Cristiane, em entrevista,
17/05/2002).

Com estes relatos, entendemos que a entrada de Hélio se deu,


principalmente, por 3 motivos: 1 - econômico - a escola sofria com a
inadimplência dos alunos; 2 –sócio-profissionais - necessidade de ajudar" de
aprender, pro futuro poder ter crianças assim e; ,3 - contingenciais – é pra mim
... então tá bom. Acompanhando a evolução da relação de trabalho entre as
professoras e Hélio, observamos momentos de altos e baixos nos quais
sentimentos de satisfação e dever cumprido se mesclavam com os de
fracasso profissional e incompreensão:
"Muitas vezes eu cheguei aqui nervosa, eu sei que não tem nada a ver
os problemas de fora com os daqui, aí, eu falei assim: Bem, eu não
quero isso pra mim, eu não sei como lidar com isso, meu Deus, eu vou
ficar maluca. porque eu falo com ele é a mesma coisa que nada, tem
hora que você fica até chateada com a mãe, porque a mãe não entende,
ah, quer saber de uma coisa, se ela não me entende eu também não
entendo ela... do jeito dela então, eu não quero mais saber disso, eu já
cheguei aqui e falei: 'Não quero mais ficar aqui, aí a Vera chegou e
falou: 'Não, não é assim!’ Eu já pensei muitas.vetes em chutar tudo,
não quero mais. Não quero mais ser professora, eu já tô de saco cheio;
não quero mais. Mas na hora é tudo nervoso, a gente fala coisas que
não tem nada a ver, depois a gente pára pra pensar e vê que não é
isso" (Márcia, em entrevista, 17/05/2002).

Participamos da evolução do projeto inclusivo, sua legislação e,


principalmente, o reconhecimento de que não somos compostos por
iguais, mas ricos em diferenças. Sabemos que para por em prática as
premissas do projeto inclusivo será preciso, inicialmente, modificar a
forma de perceber a nós mesmos. Com a concepção de necessidades
educativas especiais, formulada em Salamanca (1994) de que todos nós,
em algum momento de nossas vidas podemos experimentar necessidades
educativas especiais, e com a perspectiva da exclusão por Robert Castel
(1991) de que todos nós, em algum momento de nossas vidas passamos
por situações de exclusão, percebe-se claramente o pilar das ‘seguranças’
balançar. Não será mais possível pensar a exclusão sem que se pense na
própria. Desta mesma forma, o movimento pelo projeto inclusivo é, antes
86

de tudo, pela inclusão pessoal em uma sociedade que possamos


reconhecer como nossa.
Ao estabelecer que o atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência14 deve ser garantido preferencialmente na rede
regular de ensino (C.F, artigo, 208, inciso III combinado com LDB nº
9.394198, artigo 58), a Constituição pontuou o dever do Estado com a
Educação. As escolas respondem abrindo suas portas e cumprindo como
podem este dever que, na prática, tornou-se, delas. A responsabilidade de
educar a todas as crianças parece ter sido transferida para cada professor
ou professora em sala de aula quando em uma das carteiras apresenta-se
sentada uma criança especial. O agir pedagógico entra em discussão e
parece mostrar toda a diferença quando o que se avalia é o
desenvolvimento das habilidades que são apresentadas por cada criança
especificamente. Entendemos que esta não foi a premissa da escola com a
entrada de Hélio. No entanto, percebemos no agir pedagógico a
responsabilidade da formação através da experiência.

Os colegas de classe

Diferente da relação instaurada entre as professoras e Hélio, o


contato dos colegas da escola - e neste caso não só os da sala de aula - se
estabeleceu de forma natural. Observávamos, por parte dos alunos,
convites para brincadeira, atividades em grupo e auxílios prestados nos
quais Hélio era requisitado:

"É... aqui há uma disputa na hora do lanche, pra arrumar o lanche


do Hélio, entendeu. ‘Não, tia tem que ser eu hoje!' Eu falo: 'Não,
calma! Vão ser cada dia um que será que vai arrumar o lanche do
Hélio'. Porque senão há confusão, uma encrenca danada" (Prof.
Márcia em entrevista 17/05/02).

Por sua vez, Hélio nem sempre atendia às solicitações, mas permitia

14 Art. 3° Para os efeitos deste Decreto, considera-se: I - deficiência - toda perda ou anormalidade de uma
estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de
atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano; II·- deficiência permanente - aquela que
ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter
probabilidade de que se altere; apesar de novos tratamentos; e III - incapacidade- uma redução efetiva e
acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou
recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações
necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida. (DECRETO No
3.298, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1999. Regulamenta a lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989).
87

que estabelecessem o contato. Este fato demonstra que, no que se refere às


interações entre os seus pares, o processo de inclusão se deu a contento.

A condição de se ter o “dom"


"Ela (Márcia) diz: Eu não tenho esse dom". (Vera, em
entrevista, 17/05/2002).

Dentre as condições para se realizar o trabalho pedagógico com


uma criança com necessidades educativas especiais, observamos nas falas
que ‘ter o dom’ é de fundamental importância. Caracterizado por "uma
coisa inexplicável... é da pessoa ... é carinho, gostar, ter prazer em lidar
com este tipo de criança", o dom parece tomar o lugar da experiência,
dando uma condição inata de trabalho bem sucedido. Segundo Vera,
Eliane tinha este dom, era "toda amor". Acreditava-se que esta qualidade
permitia que ela soubesse como educá-lo.
Cristiane explicava que para trabalhar com criança especial:
"tem que gostar daquilo que está fazendo, entendeu. porque é
muita paciência, tem que ter muita, e a gente aprendeu isso com o
Hélio. Porque a gente viu que tem que ter uma paciência, tem
vezes que você tá assim a ponto de perder .. tá com um fiozinho de
linha, mas aí você começa a lembrar: Não, ele é uma criança
especial, eu não posso, ele tem que ser tratado normalmente como
uma criança na escola, mas ele tem um lado dele que tem que ser
respeitado porque é especial, entendeu"(Cristiane, em entrevista,
17/05/2002).

Segundo Bourdieu (1997), o intervalo de tempo entre o Dom e o contra-


Dom constitui a garantia da aparência de gratuidade que constitui a essência
mesma do Dom. Desta forma, aquela que possui o Dom, o possui
gratuitamente. Seguindo este mesmo raciocínio, aquele que não o possui
passará, indubitavelmente, pela angústia da possibilidade de fracasso. No
caminho da formação através da experiência, quem não é naturalmente
possuidor do Dom, precisa aprender. Para tanto, cumpre necessário
querer.
Na relação de Dom e contra-Dom destaca-se a diferença entre o
amor maternal e o amor de professor. No primeiro, parece existir o direito
sobre o corpo. Da mesma forma que a professora diz: "eu dou um pedaço
de mim", diz também: "umas palmadinhas se é no filho da gente dá
vontade de sapecar". No segundo, o relato difere no que diz respeito aos
direitos: "a criança é um ser humano, e a gente tem que ver os direitos
88

dela, ela tem deveres, mas ela também tem os direitos" (Cristiane, em
entrevista, 17/05/2002).
Percebemos que, na interação com Hélio, a conduta pedagógica
flutuou entre estes dois tipos de amores, ou práticas.

Escola, família e processo pedagógico


Enquanto um estranho está à nossa frente, podem surgir
evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente
dos outros que se encontram numa categoria em que pudesse
ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável (...)
Assim, deixamos de considerá-lo uma criatura comum e total,
reduzindo-a a uma pessoa estragada e diminuída. Tal
característica é um estigma (...) e constitui uma discrepância
específica entre identidade social virtual e a identidade social
real. (GOFFMAN, 1978, p.12).

A seguir, apresentamos um exemplo simples, corriqueiro, que


aconteceu tantas vezes que se mostrou relevante de ser estudado.
Situações que passam despercebidas no dia-a-dia, mas que, inseridas em
um contexto escolar, podem modificar relações de confiança mútua e
subverter a dinâmica educativa.
0:23:20 - Professora oferece a Hélio massa de modelar.
0:24:30 - Professora orienta Hélio a sentar-se no banco e não na mesa.
Professora senta-se na mesa.
0:25:54 - Hélio senta-se no banco e aguarda a massa
de modelar.
O: 27:56 - Professora oferece pilots a Hélio.
(Evento coletado em 01/03/02).

O evento apresenta a prevalência do estigma de ‘criança especial’,


no qual a lógica e a coerência necessárias para a concretização do processo
educativo cedem lugar às diversas formas de controle do corpo - o
controle físico através do qual a professora o mantém sentado e o controle
relacional no qual atividades infantilizadoras supõem um prolongamento
da infância.
Podemos observar clara incoerência no processo educativo. Na
tentativa de obter o controle de Hélio e fazê-lo parar de perambular pela
área externa da escola, a professora Cristiane sugere uma· atividade -
massa de modelar. Para tanto, Hélio precisaria sentar-se à mesa e
aguardar até que a massa fosse trazida por outra professora. Cristiane
permaneceu ao seu lado para que ele não se levantasse e voltasse a andar
pela escola. A professora então, o orienta a sentar-se no banco e não na
89

mesa; no entanto, é nesta que ela se senta. A distância entre o que é dito e
o que é feito aumenta à medida que os minutos vão passando. Finalmente,
descumprindo sua oferta inicial, a professora, entrega pilots a Hélio.
Podemos supor que esta seja a educação da incoerência, ou mesmo pensar
que para lidar com alguém com tal estigma não se necessita de lógica.
Neste outro exemplo, novamente percebemos a aplicação de uma
atividade infantilizadora, a atitude permissiva perante um
comportamento inadequado e o desencontro entre o que é dito e o que é
feito.
0:27;56 – A professora oferece pilots a Hélio.
0:.28:25 - Hélio desenha no papel e na mesa.
0:28:47 - A professora chama a atenção de Hélio para não desenhar
na mesa.
0:29: 12 - Hélio desenha na mesa.
0:29:30 - A professora chama a sua atenção
novamente.
0:32:27 - Hélio desenha na mesa.
0:32:53 - A professora chama a atenção de Hélio e o ameaça: "Na
mesa não!, Não tô achando graça! Vou guardar o papel!”
0:33:30 - A professora reclama com Hélio "Não·tô achando graça! Vou guardar
o papel!"
0:34;13- Hélio desenha na mesa e ri. A professora diz: “Não tô achando graça!"
0:34;47 - Hélio desenha na mesa e ri. A professora diz: "Não tô achando graça!"
0:35:07- Hélio desenha na mesa e ri. A professora diz: “Não tô achando graça!"
0:35:22 - A professora fala: "Hélio está rindo, eu não tô achando graça!" .
0:37:55· A professora retira o pilot não o papel de Hélio, já que ele
continuou desenhando na mesa.
0;38:05 - A professora devolve um pilot e ameaça: "Desenha no papel
senão eu pego de volta!"
(Evento coletado em 01l03í02).

A continuação deste evento sugere a permanência da atuação


incoerente com a utilização de ameaças que, como a oferta, também não
são cumpridas. Nesta situação, a professora orienta Hélio a não desenhar
na mesa, mas no papel que está à sua frente. Hélio desenha no papel, mas
também desenha na mesa, o que faz com que a professora inicie um
discurso autoritário, com a ameaça de lhe retirar o papel em que desenha.
Podemos imaginar que, se com a folha de papel à sua frente Hélio
desenha tanto nela como na mesa, se esta lhe fosse retirada, muito
provavelmente ele voltaria sua atenção para desenhar na mesa, posto que
era o que ele vinha fazendo. Acreditando que a professora rumou por este
mesmo raciocínio, mas sem o colocar em palavras, usando um tom
autoritário e parecendo se incomodar com os risos e com a desobediência
de Hélio, retirou os pilots. Acontece que a ameaça não era esta. Outra
incoerência. Segundo a sua própria determinação, ela deveria retirar-lhe o
90

papel e não os pilots, mas a ausência de lógica prevalece. E, para finalizar,


dez segundos depois - tempo deveras curto para que Hélio sentisse a sua
falta - um pilot lhe é devolvido.
Em contrapartida, Hélio demonstra o seu entendimento sobre estas
situações apresentando suas próprias regras - entradas e saídas freqüentes
da sala de aula, utilização das mesas como bancos, longa permanência nos
pátios e passeios solitários pela escola. Segundo Goffman, a informação
cotidiana disponível sobre ele [o estigmatizado] é a base da qual ele deve partir ao
decidir qual o plano de ação a empreender quanto ao estigma que possui (1978,
p.58).
Finalmente, este quadro que ora apresentamos, reitera o
estabelecimento e a manutenção do contrato combinado entre escola e
família e suas conseqüências no que se refere à educação da criança com
necessidades especiais. Apresenta a estreita relação entre experiência
profissional e dom para obter êxito no processo educacional, considerando
este último o derradeiro valor que poderá possibilitar o· sucesso na
educação especial. Além disso, a combinação entre o contrato, a
experiência aprendida e a ausência do dom resulta em uma fórmula de
prolongação da infância do aluno. Há ainda a constatação do estigma de
‘especial’ que torna desnecessário o uso da lógica no processo educativo.
Desta forma, concluímos que o cumprimento do contrato por parte dos
alunos - colegas de Hélio - pode ser considerado, talvez, o ponto de
Inclusão que sustentava a sua permanência na escola.

Referências:
BOURDIEU P. Raisons pratiques sur la·théorie de l’action, Paris, Éd. du
Seuil,1994. Trad.portuguesa: Razões Práticas.Celta, 1997.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal, 1988.
BRASIL, Declaração de Salamanca e linhas de ação, Sobre Necessidades
Educativas Especiais. Brasília: Ministério da Justiça. Coordenadoria
Nacional para·Integração daPessoa Portadora de Deficiência - COROE,
1994.
CASTEL, R. Face à l'exclusion: Le modele francais. Paris. Ed.Esprit, 1991.
GOFFMAN, E,. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de
Mônica Célia Santos Raposo. 9aedição.· Petrópolis: Ed. Vozes, 1985.
HABERMAS, J. Os Pensadores. São Paulo, Editora Abril, 1983.
91
92

PRÁTICAS DE ENSINO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA FFP –


PERCEPÇÕES DA PRÁTICA DOCENTE15

Ana Paula Carvalho Nogueira


Helena Amaral da Fontoura

INTRODUÇÃO

Começamos com um desafio para os que gostam de pensar.

Tente completar a seqüência abaixo com um X possível: (uma resposta


aceitável estará a seguir)

02 10 12 16 19 X

02 + 10 = 12, a primeira seqüência pode ser essa... mas o que fazer com o
16? E o 19?

Somamos, subtraímos, buscamos um segredo...

Tente mais um pouco....


Vamos pensar sobre os passos que você seguiu para buscar uma resposta
adequada.
O que fazemos quando vemos números? Pensamos em uma resposta com
a lógica matemática, não é? E se dissermos que se trata de outra lógica?
LEIA os números em voz alta e ouça o som. DOIS, DEZ, DOZE,
DEZESSEIS, DEZENOVE...

O X poderia ser DUZENTOS? A lógica então seria a de números


começados por D, em ordem crescente. Certamente, se pensarmos um
pouco mais, talvez encontremos até outras soluções...

Por enquanto ficamos com esse caminho para pensarmos a(s)


lógica(s) que regula(m) as práticas de ensino nas faculdades e
departamentos que formam professores e como os licenciandos vivenciam
esse processo de formação.

15 Trabalho apoiado com bolsa de Iniciação Científica PIBIC-CNPq


93

A nossa pesquisa foi desenvolvida na Faculdade de Formação de


Professores da UERJ, instituição com algumas particularidades em suas
licenciaturas - além de alunos terem contato com as disciplinas de
Educação desde o primeiro período da universidade, as classes de Prática
de Ensino I são formadas por graduandos dos diversos cursos
(Licenciatura em Letras, Licenciatura em Geografia, Licenciatura em
História, Licenciatura em Matemática, Licenciatura em Pedagogia e
Licenciatura em Biologia ).
A metodologia utilizada foi a etnografia, que, como nos ensina
Erickson (1984,1986, 1992), busca entender as questões de pesquisa do
ponto de vista dos sujeitos. A etnografia constrói, durante a investigação,
o seu proceder. O ponto inicial tem um procedimento alinhavado, no
entanto, conforme o caminhar e o desenvolver da pesquisa, a interação
com o campo e com os sujeitos, pode tomar-se um outro rumo que atenda
às demandas impostas pelo campo. Neste movimento constante, é
necessário que atuemos de forma reflexiva para não perder os detalhes, as
pistas, as indicações que o campo aponta. Na nossa análise de dados, por
exemplo, percebemos que as categorias de análise pensadas a princípio
não davam conta da complexidade das respostas.
Erickson (1986) traz que a tarefa da pesquisa etnográfica
interpretativa é descobrir as formas específicas de organização social e
cultural em relação às atividades das pessoas, às suas escolhas e às suas
formas de se conduzir, buscando estabelecer uma co-relação entre elas.
Cada momento é visto como singular, mas que contém algumas
características universais, que para serem descobertas dependem da
proximidade com os fatos concretos. A conotação de não-quantitativa é
evitada, pois algumas quantificações podem ser usadas neste tipo de
trabalho.
A fim de nos aproximarmos dos fatos concretos, utilizamos dois
parâmetros principais: as respostas dadas em um questionário e a
observação de quatro semestres das aulas de Prática de Ensino I da FFP.
Para coleta de dados em nosso trabalho optamos por formular um
questionário com perguntas abertas, o que possibilitou a identificação de
um amplo número de questões e expectativas, ora colocadas sobre os
formadores de professor, ora colocadas sobre os licenciandos.
94

Participaram da pesquisa 96 alunos das Práticas de Ensino I, II e III,


durante os anos de 2005 e 2006, licenciandos matriculados a partir do
quinto período do curso escolhido.
As duas primeiras questões tinham por objetivo identificar o
licenciado quanto à sua experiência docente. Essa divisão fez-se
necessária, pois almejávamos dividir os alunos em dois grupos: os com
experiência prévia de magistério e os ainda sem experiência docente. O
tema relação teoria-prática revelou-se uma constante em nossos achados.
O primeiro grupo, mesmo tendo experiência docente, trouxe a
importância de se aprender com a prática do professor, de aprender teoria
que embasasse a prática, de aprender comportamentos e posturas.
Falaram ainda na necessidade de trocar experiências, de viver novas
experiências e de aprender com a prática, no cotidiano escolar. O segundo
grupo trouxe também o tema de unir teoria e prática, de aprender com a
prática do professor e de aprender na prática. Também aqui está presente
a troca de experiências como um benefício da Prática de Ensino. Falaram
também de aspectos instrumentais como desenvolver facilidade na
transmissão e desenvolver habilidades, e ainda de aspectos mais de fundo,
como se tornar professor crítico, desenvolver identidade profissional e
apreender a realidade escolar.
Outro objetivo do questionário era levantar os pontos positivos na
sala de aula. Dentre as respostas apresentadas por licenciados com
experiência de magistério, quase a metade apontava, como pontos
valorizados, características exclusivamente pessoais, como confiança,
respeito e organização, sendo que muitas valorizavam características
pessoais dos alunos. Cabe salientar que as situações valorizadas que
levavam em consideração os alunos tinham como foco alguma situação
em que o discente era considerado apresentando características
exclusivamente pessoais.
Dentre os graduandos sem experiência de magistério, o número de
respostas que levava em conta características pessoais também foi elevado,
e a metade delas referia-se a características de professores. Notamos a
presença de algumas típicas de crenças da nossa sociedade, tais como
habilidade de transmitir e talento para extrair atenção. Parece-nos que os
95

licenciando sem experiência ainda buscam a ‘fórmula mágica’ para o ato


docente.
A valorização das características pessoais nos remete à ideologia do
dom, explicitada por Soares (1995), que considera três discursos
difundidos na sociedade para explicar o fracasso escolar. Um deles, a
teoria do dom, responsabiliza as ‘deficiências’ pessoais do aluno por seu
fracasso. Nessa perspectiva, (...) não seria a escola a responsável pelo fracasso
do aluno; a causa estaria na ausência, neste, de condições básicas para a
aprendizagem, condições que só ocorreriam na presença de determinadas
características indispensáveis ao bom aproveitamento daquilo que a escola oferece.
(p.45)
Dentre as respostas dos alunos com experiência, algumas
valorizavam na sala de aula pontos relacionados a características
metodológicas, como apresentar um assunto levando em conta o
conhecimento prévio do aluno ou utilizar textos. Dentre estas
características, notamos uma preocupação com um ensino para formar
alunos ou professores mais críticos e produtores do conhecimento. Entre
os alunos sem experiência, poucos apontaram para a valorização de
características metodológicas, dentre elas planejamento, métodos e
práticas, o que novamente nos remete a alunos desejosos pela ‘receita
mágica’ para o ato docente.
Respostas dos alunos com experiência consideravam positivas
características de cunho pessoal e metodológico, e apontavam para a
relação professor-aluno, com ênfase na troca, seja ela de experiência seja
de conteúdo. Os licenciandos sem experiência consideraram respostas
positivas as características de cunho pessoal e metodológico. As respostas,
como ter visão crítica e ser agente transformador, revelam também uma
preocupação com o papel social que o professor exerce na sociedade.
Algumas poucas respostas dos licenciandos com experiência
valorizavam na sala de aula o domínio do conteúdo como característica
positiva do professor, que também apareceu como resposta principal no
que tange a características de conhecimentos específicos nos questionários
dos graduandos sem experiência de magistério. Apenas uma resposta
entre os licenciandos com experiência apontou para situações de cunho
metodológico e de conhecimento específico – trazer para a sala assuntos
96

ligados ao cotidiano. Não houve nenhum dado nos questionários dos


graduandos sem experiência que pudesse ser entendido como uma
característica de cunho metodológico específico.
Erickson (1988) afirma que, na pesquisa etnográfica, a coleta de
dados e a análise dos mesmos são mutuamente constitutivas; por isso, as
diferentes perspectivas que alimentam a análise etnográfica necessitam ser
discutidas, bem como os processos de observação e a criação de registros
de dados sobre os quais o relato se baseia.
A partir dos dados acima apresentados, concluímos, no melhor
sentido das “sínteses provisórias” de Ezpleta e Rockwell (1986), que os
licenciandos valorizam principalmente características pessoais, sobretudo
dos seus alunos, mesmo quando são universitários com experiência de
magistério. Dentre as características metodológicas, no entanto,
observamos que os graduandos valorizam situações pertinentes a um
ensino em que o conhecimento é construído por alunos e professores.
Apesar de tais dados parecerem contraditórios, acreditamos exista
uma razão para essas respostas. Os licenciandos buscam construir
conhecimento junto com seu aluno, mas, para que isso seja realizado, na
visão de nossos sujeitos, os alunos precisam ter características ‘favoráveis’
a tal processo, como disciplina, interesse e respeito. Ou seja, estamos
falando de um aluno idealizado, que já vem ‘pronto’ com algumas
características consideradas essenciais para que a construção de
conhecimento aconteça. Onde estaria a possibilidade de co-construir?
Já em relação aos pontos negativos da sala de aula, constatamos
que, entre os alunos sem experiência, a responsabilidade sobre algo que
eles consideram ruim, na maioria das vezes, é do professor. No caso dos
alunos que já lecionam, as situações consideradas desagradáveis são
distribuídas de uma maneira mais igualitária. E ainda percebem com
muito mais clareza problemas oriundos de ambas as partes.
No geral, enquanto na posição de licenciandos, tendem a atribuir a
culpa por um não- entendimento de alguma disciplina ou o total
desinteresse em uma matéria sobre o professor: falta de planejamento,
aulas monótonas, professores autoritários foram alguns dos apontamentos
que mais desagradam os alunos. A partir do momento em que entram na
sala de aula e na realidade escolar surgem situações que desagradam o
97

‘aluno-professor’ e as visões se modificam para implicar tanto alunos


quanto professores nas situações.
Quanto aos pontos considerados pelos licenciados importantes no
processo de formação de professores, decidimos agrupar as respostas em
três categorias: dos saberes específicos; dos saberes didático-pedagógicos; e dos
saberes da prática (TARDIF, 2002; TARDIF e cols,1991) . O número de
respostas não variou significativamente nas duas primeiras categorias. Na
terceira categoria, dos saberes da prática, o quantitativo foi
significativamente mais alto, tanto entre os alunos com experiência como
entre os sem, com especial ênfase nos que ainda não têm prática docente
efetiva. Tais resultados talvez se devam a três fatores:
a) o nome da disciplina influenciou a resposta. Por se chamar Prática
de Ensino, os discentes esperavam encontrar saberes relativos
exclusivamente à prática dos professores. Nesses casos, as
respostas mostravam a dicotomia entre teoria e prática;
b) a disciplina é ministrada nos períodos finais do curso. Por estarem
em períodos avançados da graduação, os alunos estão em um
momento de “colocar a teoria em prática”;
c) a formação pedagógica aprendida na graduação apresenta
problemas. Por considerarem a formação na área pedagógica
deficitária, os alunos apontaram como resposta para a questão um
grande índice de saberes didático-pedagógico;

Cabe salientar que apesar de fazermos a separação dos saberes para


cotejar os dados, acreditamos que eles não agem separadamente, mas
fazem parte de um único saber na práxis.
Nos relatos de experiência apresentados, constatamos a
importância do exemplo. Foram recorrentes as respostas que envolviam
frases do tipo “escolhi minha profissão por causa do professor X”, caso de
exemplo positivo ou do tipo “não farei jamais isso com o meu aluno”. Da
mesma forma, houve uma série de palavras modalizadoras presentes no
discurso dos licenciandos, como “talvez, deve ser, acho” ou frases que
minimizassem a credibilidade de um determinado pensamento, como “No
meu caso, com pouca experiência de magistério”. Tal estratégia foi
utilizada com intuito de diminuir o grau de adesão das idéias que
98

defendem. Uma possível explicação para isso estaria no fato de, como nos
provoca Boaventura (1996), ainda estarmos vivendo sob o paradigma
dominante das ciências, em que predomina a lógica quantitativa e
matemática, apesar da presença do paradigma denominado por
Boaventura de emergente. Prova disso, é a brincadeira utilizada no início
deste trabalho, em que grande parte das pessoas tenta somar, subtrair,
dividir etc. Baseando seus argumentos em exemplos e trocas de
experiência, os licenciandos estariam se colocando muito mais no campo
psicossocial do que no “científico” (de acordo com o paradigma
dominante) e, por isso, utilizariam estratégias para minimizar a adesão aos
seus argumentos.

Desafios teóricos e práticos que envolvem os cursos de Prática de Ensino

Discutir caminhos teórico-metodológicos para a formação de


professores implica criar espaços de reflexão, de instrumentalização e de
empoderamento para os profissionais professores em formação.
Concordamos com Nóvoa (1991), um dos estudiosos da área de
formação de professores, que critica o fato de que, ao longo da história, a
formação desses profissionais tem oscilado entre modelos acadêmicos –
centrados em instituições e em conhecimentos considerados
“fundamentais” – e modelos práticos – centrados nas escolas e em
métodos “aplicados”. Propõe formas de superação dessa dicotomia,
através da adoção de modelos profissionais, que se baseiem em parcerias
entre as instituições de ensino superior e as escolas. Insiste que a formação
de professores seja repensada e reestruturada como um todo, abrangendo
as dimensões não apenas da formação inicial, como também da formação
contínua ou continuada. Para atingir esse objetivo e responder às
necessidades centrais da formação, Universidades e escolas precisam
trabalhar juntas montando dispositivos organizacionais articulados que
definam as novas figuras profissionais e valorizem os espaços da prática e
da reflexão sobre a prática.
O tradicional questionamento sobre a importância do componente
curricular Prática de Ensino na formação do professor e sobre a
organização da grade curricular das licenciaturas foi amplamente
abordado por especialistas tais como Perrenoud (2002), dentre outros.
99

Afirma esse autor não haver formação inicial, apenas formações contínuas,
na medida em que sempre partimos de aquisições anteriores. Argumenta
que:

“a formação profissional básica continua sendo um momento crucial,


não só porque fornece meios de sobrevivência ao iniciante, mas porque
molda de forma duradoura sua capacidade de aprender, de refletir
sobre sua ação e transformá-la. Ademais, ela coloca problemas
institucionais diferentes, especialmente o problema da relação entre
instituições de formação e o âmbito escolar.” (p.24)

Para Tardif (1999), “(....) na universidade, temos com muita freqüência a


ilusão de que não temos práticas de ensino, que nós mesmos não somos
profissionais do ensino ou que nossas práticas de ensino não constituem objetos
legítimos para a pesquisa” (p.34). Entretanto, não devemos nos esquecer que
vivemos num tempo em que, mais do que nunca, somos “convocados” a
repensar, a ressignificar o que Lüdke (2001) denomina construção de uma
prática docente efetiva no cotidiano escolar. As colocações acima
demonstram a necessidade de se problematizar a prática docente
desenvolvida em sala de aula, principalmente nos locais de formação de
professores.
Acreditamos que os professores são atores competentes, sujeitos e
produtores de conhecimento e rejeitamos a idéia de que sejam técnicos
que aplicam conhecimentos produzidos por outros ou de que sejam
agentes sociais cuja atividade é determinada somente por forças ou
mecanismos sociológicos. Basear-nos em tais concepções implica pensar
que há subjetividades presentes nas práticas pedagógicas e, como tal
reconhecemos o conhecimento próprio.
Uma boa maneira de fazer com que o aluno reflita sobre sua prática
levando em conta o arcabouço teórico é a Prática de Ensino Exploratória
(BEZERRA e cols, 2007). Os princípios norteadores da Prática Exploratória
são: priorizar a qualidade de vida, trabalhar para entender a vida na sala
de aula ou em outros contextos profissionais, envolver todos neste
trabalho, trabalhar para a união de todos, trabalhar para o
desenvolvimento mútuo, integrar este trabalho com as práticas de sala de
aula ou com outras práticas profissionais e fazer com que o trabalho para o
entendimento e a integração sejam contínuos. Essas autoras enfatizam o
100

papel desta ‘lente para reflexão’ que é a Prática Exploratória ao voltarem


seu foco para três instâncias: [a] a disciplina Prática de Ensino; [b] a
atividade de observação desenvolvida em escolas pelos professores em
formação; [c] a atividade de planejamento de aulas para as turmas de seu
estágio. Prática Exploratória.
Desenvolver atividades no componente curricular Prática de Ensino
deve procurar dar conta das instâncias envolvidas, a universidade e a
escola campo, sempre levando em consideração as dimensões de
planejamento e execução das atividades e das avaliações. É um processo
que apresenta muitas camadas e que vai se desenrolando aos poucos,
devendo ser refletido e acompanhado. Não aceitamos a perspectiva de que
o docente responsável pela Prática de Ensino envie o licenciando ao
campo munido de uma carta de apresentação e deixe que este busque se
formar a partir da atividade de observação sem o respaldo da presença do
docente e dos encontros de debates sobre o que está sendo vivido e
observado.
Como elucida Tardif (2002), “(...) o trabalho dos professores de profissão
deve ser considerado como um espaço prático específico de produção, de
transformação e de mobilização de saberes e, portanto, de teoriaas, de
conhecimentos e de saber-fazer específicos ao ofício do professor.” (p. 234).
Tanto os licenciandos quanto os formadores de professores devem
se lançar no processo de perguntas e respostas, ao longo do semestre,
tentando buscar juntos encaminhamentos e soluções, refletindo a partir
das teorias que aprenderam. Em nossa pesquisa notamos oposições
conceituais que parecem sugerir o tradicional desejo de praticar, de fazer,
e não de teorizar sobre a prática, como costuma acontecer em abordagens
distanciadas das práticas profissionais. Tal fato sugere a conhecida
dicotomização entre prática e teoria – o tradicional desejo de praticar e não
de teorizar sobre a prática. De certa forma pode refletir a própria
organização curricular que separa disciplinas teóricas, sem articular uma
relação mais concreta com disciplinas que focam a prática docente.
Alguns encaminhamentos trazidos por Nóvoa (1992) nos ajudam
em nossas considerações: devemos investir na pessoa do professor,
estimulando-lhe uma postura crítico-reflexiva, devemos dar estatuto ao
“saber da experiência”, porque o processo de formação não se constrói por
101

acumulação de conhecimentos e técnicas, mas, sim, através de um


“trabalho de reflexividade crítica” sobre as próprias práticas e de um
trabalho de (re)construção permanente de uma identidade pessoal.
Boaventura (2007) acredita que nosso ensino universitário deva superar
nossa maneira de criar teoria, que reprime totalmente o conhecimento
próprio, o deslegitima, o desacredita e o inviabiliza. Assim, a formação
deve ser um processo que se constrói e se reconstrói constantemente,
interativa e dinamicamente, num espaço em que haja lugar para o diálogo
entre os professores com vistas ao relato de experiências e ao
compartilhamento de saberes.
Buscamos na FFP articular fazeres e saberes da prática docente,
formando professores e nos formando professoras, em um processo que
vemos como coletivo, tanto na construção de novas perspectivas quanto
no fortalecimento de práticas já existentes, viabilizando uma articulação
orgânica entre o pensar e o fazer em prática de ensino. A FFP é, assim, um
espaço que se consolida como pleno de possibilidades, constituído de
vários professores/as com a vontade de realizar, imbuídos/as do papel de
educadores/as na acepção freireana do termo, um espaço de construção
permanente de conhecimentos, um espaço de teorização e de articulação
teoria-prática. Nossas pesquisas devem contribuir para que docentes e
discentes se percebam e se assumam, como nos ensinou Freire (1996),
porque professores, como pesquisadores.

Referências:

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Ed.70. 1977


BEZERRA,ICM, MILLER,IK, CUNHA,MI. Prática de ensino e prática exploratória:
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102

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FONTOURA, HA. O vídeo como instrumento de pesquisa. Caderno de ensaios e pesquisas
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FONTOURA, HA. Entre falas e encontros: tecendo fios sobre a prática médica. Tese de
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TARDIF, M., LESSARD, C. & LAHAYE, L. Os professores face ao saber: esboço de uma
problemática do saber docente. Teoria e Educação, Porto Alegre, n.4, 1991.
103

ENTRE O SONHO E A REALIDADE: A REFLEXIVIDADE COMO


POSSIBILIDADE DE DESPERTAR16
Lucia de Mello Mourão

Observamos diariamente mudanças generalizadas acontecendo na


sociedade contemporânea. Sabemos, também, que essas têm sido provocadas
pela globalização e pelo avanço tecnológico dos sistemas de comunicação e
informação. Notamos ainda que esses fatos têm sido causas de significativas
transformações nas formas de vidas dos sujeitos sociais, sendo que uma das suas
conseqüências é a exigência da aquisição de novas competências e saberes.
Diante deste novo cenário, a escola, como uma das fontes principais de
conhecimento e cultura deve estar preparada para atender às necessidades de
seus alunos. A garantia de tais requisitos é o início de um processo de inclusão
desses aprendizes na sociedade do conhecimento.
Entretanto, notamos que a maioria das escolas públicas brasileiras não
estão aptas a cumprir seu papel social de condutora dos jovens a uma cidadania
plena. Por carências materiais e humanas, elas parecem ignorar o contexto atual,
marcado, principalmente, pelas transformações tecnológicas.
Movida por essa aparente dicotomia entre o “mundo escolar” do sistema
público e o “mundo tecnológico contemporâneo”, busquei nesse trabalho, cujo
método utilizando foi o qualitativo viabilizado através de entrevistas semi-
estruturadas com abordagem etnográfica, conhecer os pensamentos dos jovens
alunos de uma escola pública, a partir de suas reflexividades sobre o contraste
tecnológico vivido por eles entre a escola e a sociedade em que vivem. Esta
metodologia foi escolhida devido às contribuições que a abordagem etnográfica
pode trazer para os estudos das desigualdades e exclusões sociais.
Para André,
Por meio de técnicas etnográficas de observação participantes e
de entrevistas intensivas, é possível documentar o não-
documentado, isto é, desvelar os encontros e desencontros que
permeiam o dia-a dia da prática escolar, descrever as ações e
representações dos seus atores sociais, reconstruir sua
linguagem, suas formas de comunicação e os significados que
são criados e recriados no cotidiano do seu fazer pedagógico.
(ANDRÉ, 1995, p. 41)

Para Mattos (2007) “a entrevista etnográfica, enquanto um recurso da


pesquisa qualitativa de cunho etnográfico possibilita o desvelamento de

16 Este trabalho é parte da dissertação de Mestrado- sob o titulo: A reflexividade dos jovens do Ensino Médio sobre
o contraste tecnológico entre a escola pública e a sociedade; orientada pela Profª Drª Carmen Lúcia Guimarães de
Mattos pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Proped/UERJ).
104

percepções dos sujeitos-objetos de tal pesquisa desde que respeitados seus


procedimentos e tendo-se clareza de seus objetivos”.
Seguindo rigorosamente as observações metodológicas dos autores
estudados, partimos para o campo escolhido para realizar esse trabalho, que foi
um CIEP – Centro Integrado de Educação Pública Estadual, denominado por nós
de escola XYZ. A escola localiza-se no município de Duque de Caxias, que é uma
cidade componente da região metropolitana do Rio de Janeiro, situada na
baixada fluminense. Ela dispõe de poucos recursos tecnológicos, sendo que os de
informática são inexistentes. Essa carência se explicita nas falas dos participantes.
E, através delas, iremos conhecer seus sentimentos sobre a impossibilidade, não
somente de acesso às tecnologias, principalmente às de informática, mas também
ao acesso a uma escola com recursos básicos que deveriam ser garantidos a todos
eles. Iremos ouvir também o que eles pensam ser necessário obter da escola em
relação a recursos materiais e de aprendizagem. O eixo das exposições sobre
tecnologia gira em torno das comparações entre a realidade e o sonho,
entre os limites e as possibilidades.
O CIEP XYZ funciona em condições precárias, não somente em relação à
infra-estrutura, como também em relação às questões pedagógicas. Entretanto,
não é privilégio somente deste CIEP não possuir estes recursos necessários para
atender a seus alunos. A maioria dos quinhentos e um17 CIEPs existentes
nos municípios do Estado do Rio de Janeiro encontram-se próximo do abandono.
Quase nada sobrou da proposta original que tinha como meta manter os alunos
em tempo integral na escola.
Tal proposta oferecia um arrojado programa administrativo e
pedagógico18 que incluía: aulas regulares, reforço extracurricular, material
didático, uniforme, quatro refeições diárias, atendimento médico, odontológico,
atividades recreativas ou culturais, entre outros.
Ao analisar a situação dos CIEPs, 16 anos depois da sua inauguração,
Cavaliere e Coelho (2003, p.151) relatam que na época a intenção inicial era
promover qualidade no ensino fundamental do estado: “O programa pretendia
criar 500 escolas exemplares e inovadoras que funcionassem como um parâmetro
para as demais escolas.” Segundo as autoras, no decorrer das décadas de 80 e 90
foram construídos mais de quinhentos CIEPs e entre seus principais
idealizadores encontravam-se intelectuais e políticos que compartilhavam dos
mesmos ideais e pertenciam ao mesmo partido. Este fato levou o CIEP a ter,

17 MARQUEIRO, P; BERTA, Ruben; SCHMIT, S. 21 anos depois, as lições dos CIEPs. Jornal O Globo 28
de maio de 2006.
18 Disponível em: <http://www.fundar.org.br/darcy_educa_ciep-gp_balancritico.htm> acesso em 12/09/2006.
105

durante a maior parte de sua existência, a imagem associada a políticos


partidários. Essa associação é apontada como um dos motivos da
descontinuidade da proposta original dos CIEPs, pois como seus criadores não
conseguiram fazer sucessores do mesmo partido, a conseqüência foi “um quase
desmonte total” das escolas.
Neste contexto, somente os primeiros CIEPs conseguiram, com restrições,
continuar funcionando em tempo integral. Estes, por possuírem equipes docentes
com mais experiência em relação ao seu funcionamento, se empenharam em
resistir ao desmonte da proposta original.
Para Cavaliere e Coelho (2003), o fato de alguns CIEPs estarem
localizados em regiões desfavorecidas socioeconomicamente os transformou em
escolas- problema que passaram a ser rejeitadas pelo sistema. O estigma de
escola inoperante foi intensificado com o fim do Programa Especial e quando da
implementação da proposta do bloco único. A partir desta proposta os alunos
passaram a ter cinco anos de escolarização, cuja abrangência ia da alfabetização à
quarta série e a reprovação dos alunos não era permitida. Ao final do bloco era
oferecido um ano de complementação para os que precisassem. Conforme as
autoras continuam descrevendo, tanto a população quanto a categoria docente
das escolas públicas estaduais contestaram a ausência da reprovação. Para
driblar a situação de desagrado, as escolas públicas convencionais criaram
mecanismos internos informais que contornavam a situação do bloco único.
Entretanto, como os CIEPs o implementaram na íntegra, a população associou a
ausência de reprovação aos Cieps, e reforçou a representação de escolas ‘fracas’
ou ‘desorganizadas’.
A escola XYZ, onde realizamos este trabalho de pesquisa, encontra-se em
funcionamento há doze anos e é parte da história contada por Cavaliere e Coelho
(2003). Atualmente, este CIEP, disponibiliza o segundo segmento do ensino
fundamental e médio, atendendo aos alunos em três turnos, comportando
dezoito turmas. Dos seus cento e vinte e cinco funcionários, noventa e oito são
professores efetivos com licenciatura plena na disciplina específica na qual
lecionam, vinte e dois são contratados, quatro são coordenadores de turno e um é
inspetor.
Nesta escola existem, aproximadamente, três mil alunos matriculados,
pois de acordo com a professora W,

“a escola é conhecida como “coração de mãe”. O Ensino Médio disponibilizado à noite


favorece muito ao pessoal da localidade. Acolhe a toda a clientela da periferia, pois as
escolas do bairro só atendem ao primeiro e segundo segmento do ensino fundamental e os
alunos que fogem ao dito ‘padrão’ dessas escolas, são expulsos e vêm para este Ciep.”
106

A professora segue dizendo que por atender a um quantitativo elevado de


alunos, freqüentemente havia problemas graves de disciplina. O problema da
gravidez precoce faz parte da rotina da escola, tendo sido registrados casos de
alunas de onze anos de idade que se tornaram mães. E como essas mães não têm
onde deixar os seus filhos levam-nos para o CIEPs, que, embora não ofereça
serviço de creche, permite que elas assistam aulas com seus bebês.
Sobre a infra-estrutura da escola a professora acrescenta que por ser esta
uma escola pública, não foge aos padrões da maioria, portanto não possui
recursos necessários para atender aos anseios dos alunos. Contudo, existem
alguns projetos de animação cultural, tais como realização de jogos de capoeira e
encenação de peças teatrais.
Os alunos que participaram do nosso trabalho corroboram a opinião da
professora, pois deixam claro em seus depoimentos a carência existente sobre os
recursos disponibilizados.
[...] o que tem mesmo é só a merenda, que é o básico e a quadra né, que às vezes nem serve, ta lá
toda quebrada, por causa dos alunos.

[...] a televisão, e eles prometeram uma sala de informática, mas até hoje nada.

[...] não, que eu me lembre não, não tem não, só grupos de lamba aeróbica, teatro, só!

Em seu trabalho, Cavaliere e Coelho (2003) descrevem diversos problemas


encontrados nos CIEPs decorrentes de infra-estrutura: as vulnerabilidades das
áreas externas, a falta de manutenção das quadras e pátios, a inexistência de
atividades culturais, a acústica das salas de aulas que resultam em graves
problemas tanto para os alunos quanto para os professores.

A maioria desses problemas pode também ser verificada na escola XYZ


conforme declaração de seus alunos que segue abaixo.

Ah, tinha que ter um funcionário pra cada setor. Algumas salas, não só uma, algumas salas de
informática, como eu disse, a quadra tinha que ser mais ou menos, tinha que ter umas redes, as
cercas, o muro de trás tinha que ser levantado, tinha que ser bem cercado, a limpeza lá..lá no pátio,
tinha que ser bem mais gramadinho, limpa, tinha que ter algumas lixeiras, mais lixeiras, tem só
uma. Um Brizolão desse tamanho tem só 3 lixeiras. Pô, que isso cara? Tinha que ter umas
10lixeiras por ai mais ou menos. Os micros, aulas, por exemplo, pelo menos, se tivesse 3 horas por
dia de aula sobre internet, estava ótimo, estava ótimo….é …é isso, é isso aí.

[...] ter fiscalização aqui, vendo a merenda, tudo, uniforme, os professores que tão faltando, ai
ninguém vê que é essa bagunça, entende?

Sala toda pintada certinha, sem nenhum arranhão, os quadro tudo em perfeita qualidade, as
carteiras, as mesas, a cadeira, tudo em perfeita qualidade de norma né, toda certinha sem
pichamento, os alunos também, né, tudo bom, nenhum aluno que possa quebrar a cadeira, pichar, a
quadra toda... boa e o vestiário grande, o chuveiro quente. Na aula educação física podia ter bola
que na maioria das vezes é nessa aula os alunos todinhos intera pra comprar bola. A gente ter
xérox de graça aqui, cada um dos alunos ter um computador, tipo assim, é, a turma ter uma sala, e
uma sala tipo assim, é, agora é hora, é a hora da gente aprender informática. A gente chega lá, ter
107

a sala certinha, limpinha, cada um com computador, professor bem qualificado, pra ensinar a
gente, ter paciência pra ensinar as pessoas. (Alunos)

Nas falas acima o que nos chama atenção são os desejos que os alunos
possuem de estudar numa escola que ofereça o mínimo de recursos básicos. Uma
escola, que além da tão sonhada tecnologia, contenha também, por mais incrível
que pareça: “Sala toda pintada [...], os quadro todos em perfeita qualidade, as carteiras,
as mesas, a cadeira, [...] limpeza [...] [computador [...]” (Alunos)
A preocupação com a falta de qualidade do ensino na escola XYZ é outro
problema apontado de forma unânime por esses alunos. Por estarem cursando o
Ensino Médio, possuem a preocupação com os desafios que os esperam após o
término do curso. Todos sonham em prestar exame de vestibular. Entretanto,
manifestam forte descontentamento com o colégio por não prepará-los para
ingressar na universidade. Ao mesmo tempo desejam que durante o curso de
Ensino Médio, a escola os deixe aptos a conseguir uma colocação no mercado de
trabalho.
Nesse ponto, o desejo dos alunos vai ao encontro de uma das formas de
articulação do Ensino Médio com a Educação Profissional de Nível Técnico
definida no Decreto 5154/04: a integração. Nessa modalidade, o aluno cursa em
uma mesma instituição o Ensino Médio e a formação profissional com matrícula
única, tendo como objetivo a preparação para o mercado de trabalho e o
prosseguimento dos estudos em nível superior.
Essa preparação profissional no Ensino Médio tem sido vista por alguns
especialistas em educação como uma imposição da realidade das camadas
desfavorecidas socioeconomicamente.

De acordo com Frigotto, Ciavatta e Ramos:

O Ensino Médio integrado é aquele possível e necessário


em uma realidade conjunturalmente desfavorável – em
que os filhos dos trabalhadores precisam obter uma
profissão ainda no nível médio, não podendo adiar este
projeto para o nível superior de ensino – mas que
potencialize mudanças para, superando-se essa conjuntura,
constituir-se em uma educação que contenha elementos de
uma sociedade justa. Na verdade a grande luta é para que
todos os jovens, independente de sua origem social,
possam ter uma educação básica (fundamental e média)
que, ao mesmo tempo articule o específico ao geral, o
técnico ao social, cultural e político. A isso que
denominamos de educação e/ou formação unitária,
omnilateral, integral, politécnica ou tecnológica.

Os alunos da Escola XYZ, mesmo desconhecendo o Decreto 5154/04,


pensam que se tivessem uma educação, como a descrita acima, estariam sendo
108

mais preparados para concorrerem ao mercado de trabalho. Revelam ainda que


seria importante receberem de seus professores melhores explicações sobre as
matérias, mais atenção e dedicação. Estes estudantes sonham em ter uma escola
que:
[...] poderia também ter professor muito bem qualificado aqui nesse colégio, professores
que poderiam ensinar tudo, ensinar não só a matéria, mas também educação aos alunos,
sobre a tecnologia, sobre muitas outras coisas. Mais o colégio público também deveria tá
fornecendo alguns cursos técnicos porquê a pessoa poderia se decidir em uma área e se
preparar pro futuro. Se ela quiser mesmo ser aquilo mas tarde, se ela quiser seguir mesmo
aquela profissão pra mais tarde pensar assim, eu estou decidida a fazer isso, é isso que eu
quero pro meu futuro.

[...] tivesse uns professores mais dedicado, né, aquele professor que está sempre com você.
Meu sonho de consumo é aquele professor que te ajuda, entendeu? Você quer isso? Vamos
lá, que te ajudo. Meu sonho é ter professores bem dedicados aos alunos, dispostos a
ajudar, a ensinar, até mesmo nas minhas dificuldades de aprender.

[...] tivesse uma sala, como eu já falei uma sala de informática, um laboratório, vários
professores disponíveis, porque esse ano nós estamos sem professores, uns entraram em
greve, outros não tem. Tinham que ter todas as matérias, todos os recursos pra mim
utilizar, uma biblioteca imensa pra mim [...] Uma sala de vídeo, uma sala de teatro,
porque eu adoro teatro. Eh... um laboratório com todos os equipamentos disponíveis para
os alunos. Essa pra mim é uma escola perfeita com todas as matérias completas, um
ensino ótimo, excelente pra ter um novo preparamento para vida. (Alunos)

Neste bloco destacamos algumas falas que apontam para o desejo do


aluno de: “ter um preparamento melhor para a vida” e para um “futuro
melhor” através de: “[...] professores muito bem qualificados, dedicados. [...] professores
que poderiam ensinar tudo [...] sobre tecnologia, cursos técnicos a pessoa poderia se
decidir em uma área e se preparar pro futuro”. (Alunos)
É preocupante ver que de forma unânime, os alunos participantes deste
trabalho, possuam opinião tão negativa sobre a sua escola. O fato é que o
Decreto 5154/04 não é amplamente aplicado e o ensino do jeito que está sendo
conduzido está longe de atingir aos objetivos do Ensino Médio definido pelo
artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases19. O que se tem percebido como resultado
desta situação é que as escolas acabam por não preparar os alunos para o mundo
do trabalho e nem para a prática social, principalmente no que diz respeito à
cidadania.
A maioria deles relata que se sentem à margem do que acontece nas aulas.
No que se refere à postura dos professores em sala de aula percebem que estes
tendem a dirigir-se somente a alguns alunos. Tal ação faz com que se sintam

19 § 1º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do
ensino médio o educando demonstre:
I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna;
II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem;
III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania.
109

excluídos diante dessas “delimitações de corpos” que ocorre nas salas de aula
conforme descrita por Mattos (1994, p.3):
No interior da sala de aula admitimos a existência de um tipo de
“jogo” no qual observamos mecanismos por parte do professor
de valorização e desvalorização dos alunos. O comportamento
dos alunos passa a ser comparado, diferenciado, hierarquizado
baseado em normas sutis. A classe, obviamente heterogênea, é
classificada a partir de critérios homogeinizadores: os melhores,
os piores, os que trabalham, os da bagunça, os do fundo da sala,
os da patota. Os alunos participam ativamente desse jogo
percebendo o seu enquadramento enquanto membro de um
determinado grupo.

Este sentimento de exclusão pode ser percebido nas falas abaixo:

A aula deveria ser mais criativa. [...] não é você chegar encher o quadro de dever explicar, mais não
se aprofundar. Porque há casos de professores que não aprofundam no assunto. Eles deveriam se
aprofundar mais, mostrar de uma forma diferente pros alunos aquele determinado assunto. Uma
forma mais criativa, mais..., mais interessante. Eu aprendi, é claro, não no colégio, que a forma de
se tratar com jovem é mostrando pra ele, dá forma dele, o assunto. Mais tem professores que se
esquece que estão tratando com jovens. Não é só encher o quadro de dever, e falar, falar, falar que o
jovem vai entender, e que o jovem vai prestar atenção, ou que o jovem vai querer saber sobre
aquele assunto ou querer se aproximar. Eles têm que despertar o interesse do jovem. Os
professores, eles realmente não fazem isso. Aí no caso fica mais difícil para o aluno entender o
assunto, querer prestar atenção no assunto mesmo do interesse dele querer vir pro colégio. Aí os
professores estão mais... relaxados.

Não, nenhuma, atenção eles só dão atenção àqueles que estão mesmo interessado na matéria. E
aqueles que não estão nem aí, eles também não estão nem aí, eles não querem sentar quando acabar
a aula pra conversar com os alunos, falar que não é assim, que está errado. Eles querem que esse
aluno, desculpe a expressão, se dane!
Já neste ponto podemos observar que a carência vivida e percebida por
esses alunos, através de suas reflexividades, vai muito além da tecnológica.
Embora, que não há como negar a importância da disponibilização da
informática e do acesso à internet nas escolas para uso dos alunos. Pesquisas
como as da OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico- confirmam a importância do uso de computadores e da Internet nas
escolas, reforçando a necessidade de romper com o modelo de ensino tradicional
quando afirmam que o uso do computador e a Internet melhoram o desempenho
dos alunos nas habilidades de leitura e matemática (OECD, 2005).
Tentando garantir algum acesso à informação, e como não possuem
acesso regular às tecnologias da informática, os alunos da escola XPTO se dizem
espectadores assíduos de televisão. Eles apontaram-na de forma unânime como a
principal tecnologia utilizada para obter informação e lazer. Para eles a internet
só não é tão usada como a TV porque não possuem acesso diário a esta mídia,
pois acessar a internet requer investimento financeiro não disponível
frequentemente.
Nos seus depoimentos, abaixo, podemos perceber o quanto a TV faz parte
das suas rotinas diária.
110

Televisão é interessante, passa uma série de novidade, informações, a gente fica por dentro das
parada, futebol, então pô, globo esporte 13 horas, direto, então, é a televisão. Ah, dá uma cor…dá
um certo colírio aos nossos olhos. A maioria dos jovens da minha idade gostaria de ser jogador de
futebol, então quando passa assim, ehh... jogo do Real Madrid, Barcelona, esses time assim... a
gente se imagina, então, quem dera que fosse eu na jogada daquele cara que perdeu o pênalti, que
fez o gol bonito, a gente se imagina lá, é fica cheio de coisa na cabeça, entendeu? Um jogador de
futebol do Inter, do Juventus, são times estrangeiros, então seria emocionante, ta lá a gente
pensando, o olho fica brilhando, mais fazer o que, ehh... tamos aqui.

Com a televisão você se identifica mais, né. Você fica sabendo mais das coisas.

A televisão, eu fico o dia inteiro na frente da televisão. Eu não faço nada.


[...] a televisão eu acho, assim, pra mim saber, ficar mais informada do que acontece.

[...] poupa o seu tempo, você tem mais cultura vendo na televisão tudo que tá passando no RJ TV.
(Alunos).

Para esses alunos, pertencentes a uma classe menos favorecida, “estar


ligado” todos os dias à televisão significa ter acesso a entretenimento e
informação sem, praticamente, custo algum. Todos eles demonstram grande
preocupação em estar informados, pois tentam captar da TV o máximo de
informações visando ampliar seus conhecimentos.
Portanto, de acordo com suas declarações, podemos observar que os
alunos vêm recebendo doses diárias de imagens e discursos formados pela TV.
Assim, por utilizarem essa mídia de forma intensiva esses jovens estão,
possivelmente, conformando uma visão de mundo previamente selecionada e
fragmentada. Aceitam as informações recebidas deste artefato sem nenhuma
crítica e parecem acatar passivamente as suas “instruções”. A escola, como uma
das fontes principais de conhecimento e cultura, deveria promover o
desenvolvimento de sua conscientização crítica. Esta ação possibilitaria a eles
uma reflexão mais profunda sobre as mensagens recebidas através das diversas
formas de informações, tal como nos fala Freire (1983). Para o autor o processo
educativo promove a consciência crítica do indivíduo. E, a partir dessa
conscientização é possível realizar uma leitura crítica de mundo é estar apto a se

defender das armadilhas, por exemplo, que lhes põem no


caminho as ideologias. As ideologias veiculadas de forma sutil
pelos instrumentos chamados de comunicação. [...] Esta continua
sendo uma tarefa fundamental de prática educativo-democrática.
Que poderemos fazer, sem o exercício da curiosidade crítica, em
face do poder indiscutível que tem a mídia e a que Wright Mills
já se referia nos anos 50, em A elite do poder, de se estabelecer sua
verdade como a verdade? Ouvi no jornal da TV X, é o que dizem
muitos de nós, sem dúvida, quase absolutamente possuídos pela
verdade sonora e coloridamente proclamada. (FREIRE, 1983, p.
107)
Não há dúvida de que ajudá-los a discernir de forma crítica tais discursos
e imagens recebidas pelas mídias fará diferença nas suas ações. Se os jovens
alunos não possuírem oportunidade de desenvolver visão crítica do que ocorre
111

em seu entorno e no mundo, dificilmente serão reflexivos a ponto de se


posicionarem diante de valores a eles estipulados.
Desta forma, somente adquirir informações da TV, sem interpretá-las,
dificilmente ajudará a mudar para melhor as suas vidas. Ao invés de realizarem
seus sonhos continuarão contribuindo para a manutenção dos problemas sociais
que os afetam diretamente. Continuarão carregando o estigma de pessoas
incapazes de aprender, contribuindo a cada ano que passa para o aumento da
evasão escolar bem como do analfabetismo funcional do país.
Possuir visão crítica sobre os conteúdos tanto da TV como do ciberespaço
é importante, não somente para filtrar informações impertinentes ou
manipuladas, como também, para melhor elaborar a construção de
conhecimentos através da reflexividade sobre as informações recebidas.
Infelizmente a maioria dos alunos da escola XYZ que participaram deste trabalho
demonstraram possuir pouca visão crítica quanto ao mundo televisivo e virtual
da internet.
Em contrapartida, parecem suficientemente críticos quanto às suas
condições socioeconômicas e de alunos de escola pública. Essas críticas por
diversos momentos mostraram que são conscientes sobre vários aspectos
próprios e de outros atores da escola. Foram altamente reflexivos sobre o bairro
onde moram, a escola onde estudam, as exigências do mercado de trabalho, a
classe social a que pertencem, dentre outras questões.
Tentando entender como se processa a reflexividade apresentada por
esses alunos recorremos a Wiley (1996) que diz ser ela a maneira como uma
pessoa pode conhecer ou, de algum modo, relacionar-se com seu próprio self20.
O autor afirma que a reflexividade tornou-se um conceito central no campo da
teoria social nos últimos anos. Foi através de Gouldner (1970), em seu trabalho
“sociologia reflexiva” que ela propagou-se com cientistas sociais.
Descartes é citado no trabalho de Wiley como sendo o primeiro autor que
reivindicou a reflexividade como princípio fundador da filosofia e a partir daí,
ocorreram mudanças subjetivas que refletiram na história da filosofia moderna.
A reflexividade de Descartes era privada, a-social e quase monológica em relação
à sua forma. Ela assentava-se sobre a dúvida absoluta, abrangendo a dúvida
privada sobre a existência real das pessoas.
Nos Estados Unidos, ainda segundo Wiley, foi Adam Smith quem exerceu
grande influência sobre os pragmatistas, que criaram a versão americana da

20 Self: No que se refere à intenção do autor, são: “1. identidade, caráter ou qualidades essenciais de qualquer
pessoa ou coisa; 2. a identidade, personalidade, individualidade etc. de uma dada pessoa; o próprio de uma
pessoa enquanto distinta de todas as outras”. (WILEY, 1994, p.9)
112

filosofia reflexiva. E é a partir do modelo dos pragmatistas que Wiley formula os


seus estudos sobre a reflexividade. Para ele, a reflexividade se dá através do
processo de autoconhecimento. Este processo leva o sujeito à interlocução e ao
conhecimento de si mesmo. Tal conhecimento se revela através de sentimentos e
desejos numa constante inter-relação com a realidade externa.
O autor assinala duas versões para a reflexividade, a de primeira e
segunda ordem. Segundo ele, os pragmatistas entendem que todo pensamento é
reflexivo, sendo que às vezes esse processo de reflexividade é aplicado a si
mesmo. Esse fato implica num tipo de reflexividade dupla, sobreposta em dois
níveis. A partir dai o processo de pensamento sempre reflexivo volta a entrelaçar-
se em si mesmo.
A fim de exemplificar a reflexividade de primeira e segunda ordem, o
autor descreve o processo de pensamento de uma pessoa. Em um determinado
momento uma pessoa encontra-se num processo de pensamento espontâneo, não
dirigido e fluente, quando repentinamente ocorre uma idéia nova. Este
acontecimento faz com que a sua mente passe a examinar atentamente essa idéia,
ou faça uma retrospectiva dela na tentativa de apreendê-la a fim de que se torne
mais firme, bem como lembrar-se de como surgira na sua consciência. Neste
ponto a pessoa deslocou-se da reflexividade de primeira ordem para a de
segunda ordem, uma vez que o seu objeto de reflexão passa a fazer parte da
reflexão anterior, e o pensamento torna-se “pensamento sobre pensamento”.
(WILEY, 1996, p.98)
Tal qual Wiley menciona em seus estudos, podemos identificar a conduta
reflexiva apresentada pelos alunos da escola XYZ como sendo de primeira e
segunda ordem. Possivelmente, para chegar a verbalizar os seus pensamentos
nas entrevistas, realizaram o processo de reflexividade descrito pelo autor. As
suas falas demonstram que suas reflexividades os levaram a uma introspecção
frente à realidade que os cerca, pois fazem observações das suas vidas,
analisando seus pensamentos e sentimentos.
A seguir podemos conferir algumas preocupações, por eles
demonstradas, em seus momentos reflexivos:

Eu me sinto muito insegura, porque a sociedade, essa sociedade, eh, está evoluindo muito. Então,
assim, a escola tá me preparando, mas de uma forma diferente, entendeu? Não dessa forma de que
nós estamos falando, entendeu? Então, acho assim, eh, quando eu sair daqui eu vou me sentir
muito insegura, por que eu não vou ter tanto conhecimento sobre a sociedade que tá por vir, que já
tá aqui presente. Pelo fato de eu não ter estudado muito, sobre esse assunto, e não ter bastante
conhecimento. Pó, chega ali, tô ali competindo com aquela pessoa, a pessoa que deve ter muito
conhecimento. Com certeza eu vou ficar imaginado, poxa eu não vou conseguir, eu vou me sentir
insegura. Por que eu não sei tanta coisa sobre esse assunto, sociedade tecnológica, que tá no nosso
dia-a-dia. Eu acho que agente deveria ter muito mais conhecimento pra poder tá preparado pra
sociedade de qual nós estamos falando.
113

Eu acho que teria que ter mais tecnologia aqui na escola. Como os computadores, como DVD,
como uma televisão melhor, até tem televisão, mas a imagem fica ruim, entendeu? Agente teria que
ter som, caixa de som, ventiladores, eh, ventiladores... não, ar condicionado.

Eu vou fazer 17 anos, então eu penso muito como vai ser minha, vida fora da escola. Acabar o 3°
ano, ai... meu Deus, o que é que eu vou fazer? Eu me desespero, mas aí o fato de eu ter aprendido a
refletir melhor, eu penso, puxa eu vou procurar um emprego, pagar minha faculdade, me formar...
eh... ter uma profissão... eu poder comprar minhas coisinhas, ter minha casa.

Eu sou uma garota que sonho muito em ter minha vida sozinha eh, em ter minha responsabilidade
de trabalhar. Eu acho assim, que não vai ser fácil, a pessoa sair de dentro de casa, dos braços de pai
e mãe, que tá sempre ali contigo dano as coisas, pra procurar emprego. Eu acho assim que vai ser
uma nova fase, uma nova fase pra mim, por que não vai ter mais aquela de mamãe papai dá. Não...
vai ter que chegar lá, trabalhar, ganhar com o seu esforço.

[...] eles vão querer mais pessoas com nível de escolaridade maior do que a minha, porque tem mais
condições, tem condições financeiras melhores do que a minha, estudaram em colégios importantes
e fizeram cursos importantes, enquanto eu não tenho condições de fazer, eles vão preferir essas
pessoas que tem estudo.

[...] bastante sinais de trânsito que ta faltado muito, até pouco tempo teve vários acidentes ali na
esquina. Ontem mesmo morreu um garoto de acidente ali. O carro pegou ele de moto, se tivesse um
sinal, no caso, nas curvas não teria tanto acidente como tem agora. [...] Igualdade social pra todos
porque tem uma certa forma de desigualdade no bairro assim, na sociedade, por exemplo, posso dá
um exemplo? Eh... vamos supor que no nosso bairro, numa certa parte falte luz. Ali, demoraria
pelo menos um dia pra voltar, dois..., agora tem um outro lado, só que isso é real, tem um outro
lado que é a praça onde a socialite, são um pouquinho mais alta, eh..., meia-hora, dez minutos a luz
já tá lá, tudo iluminado normalmente. Só que no outro lado seria mais ou menos um dia pra luz
chegar. Então, certa desigualdade, o certo seria todos iguais, mas não, tem certa desigualdade.
(Alunos)

Neste bloco podemos perceber que todas as falas dos alunos demonstram
preocupações de ordens pessoais, profissionais e sociais. Suas dúvidas, seus
medos, ansiedades e inseguranças são conhecidos através de suas reflexividades
o que se revelou a partir de constantes interlocuções com as realidades externas.
Sentimentos como insegurança, preconceito, desigualdade e exclusão
foram expostos pelos jovens alunos durante as entrevistas. Ao mesmo tempo em
que se mostram animados com as tecnologias, parecem perceber que, por serem
socioeconomicamente desfavorecidos, estão cada vez mais distantes de poderem
contar com elas para ajudá-los a “melhorar de vida”.
Entretanto, ainda que apresentem um alto nível de reflexividade sobre
suas condições socioeconômicas, eles permanecem inertes no contexto social em
que vivem. Tal comportamento os impede da participação de importantes
movimentos que dizem respeitos às suas vidas. Essa conduta nos leva a refletir
sobre o que os estaria impedindo de reivindicar mudanças de postura diante de
tantas situações indesejadas.
Talvez, se tivessem acesso a informações claras sobre os seus direitos de
cidadãos, bem como garantia por parte do governo sobre estes direitos, poderiam
elaborar suas reflexões de maneira que surgissem possibilidades de mudanças
das suas condições de vida. Entretanto, nem o acesso a informação através de
114

outras mídias que não seja a TV e rádio, nem a garantia aos direitos de cidadania
são oferecidos a estes jovens. Neste sentido, de acordo com Candau (1995) a
escola, que deveria exercer um papel de humanização a partir da aquisição de
conhecimento e de valores para a conquista do exercício pleno da cidadania, tem
muitas vezes favorecido a manutenção do status quo e refletido as desigualdades
da sociedade, reforçando as diferenças entre ricos e pobres.

Referências bibliográficas

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Papirus, 1955
CANDAU, Vera Maria; SACAVINO, Suzana Beatriz; MANDARINO, Martha;
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CAVALIERE, Ana Maria; COELHO, Lígia Martha. Para onde Caminham os
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PAZ. A conceituação de Paz e Violência. In: O estado da Paz e da Violência – A
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123
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_______. Pedagogia da Indignação. Ed. São Paulo: Unesp, 2000
_______. Pedagogia do Oprimido, Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004.
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MATTOS, C. L. G. de O espaço da exclusão: O limite do corpo na sala de aula –
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progressão na rede pública do rio de janeiro: Práticas e “práticas” Anais do VII Encontro
de Pesquisa em Educação no Brasil / Região Sudeste - Educação: Direito ou Serviço?
2005
WILEY, Norbert. Reflexividade In: O Self Semiótico. Ed. São Paulo:Loyola, 1996.
115

ETNOGRAFIA DE UMA ATIVIDADE DE EDUCAÇÃO NÃO


FORMAL JUNTO A RODOVIÁRIOS NO EXERCÍCIO DA
CIDADANIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Rafael Croitoru Azamor

O presente trabalho é um recorte de uma dissertação de mestrado21


que trouxe uma abordagem inovadora na área de Biociências, surgindo da
indagação sobre a possibilidade de uma iniciativa de ensino não formal
favorecer o exercício pleno da cidadania, tanto para pessoas com
deficiência quanto para os que não apresentam deficiência. Esta pesquisa
se reveste de um ineditismo, visto que a grande maioria dos trabalhos
relacionados à educação e a pessoas com deficiência tratam da inclusão
destes no processo de educação regular ou especial. Nossa proposta é
voltada às pessoas que não possuem deficiência, física, mental ou
sensorial, e que trabalharão com outras que não necessariamente
apresentam esta característica. Investigamos o processo de treinamento de
profissionais rodoviários com vistas a sensibilizá-los para atuarem como
agentes multiplicadores junto aos seus pares, mais diretamente, e junto à
sociedade em geral, com quem trabalham e interagem, contribuindo para
a promoção de cidadania. Nos dias de hoje se fala muito a respeito de
cidadania, de inclusão da pessoa com deficiência, mas a sociedade reluta
porque ainda não se desvencilhou dos preconceitos. Acreditamos que um
dos fatores que afasta a pessoa com deficiência de uma vida plena é o
preconceito e para superá-lo é indispensável esclarecer e envolver a
sociedade. É neste ponto que pretendemos atuar.
Um trabalho como o proposto só pode ser desenvolvido com um
olhar qualitativo, então optamos pela etnografia. Utilizamos, como
suporte para nossa pesquisa, o registro em vídeo das atividades de
formação dos agentes multiplicadores e também trabalhamos com notas
de campo e reavaliações periódicas de acompanhamento dos sujeitos
envolvidos.

21
“Saber Sobre a Vida - Conduzindo a Multiplicação da Cidadania Sobre Rodas”, apresentada ao Programa de
Pós Graduação em Ensino em Biociências e Saúde – Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, em 2006, financiada pela
CAPES e orientada pela Profª Drª Helena Amaral da Fontoura.
116

O objetivo geral deste trabalho foi o de avaliar um processo de


educação não formal na formação do profissional de transporte urbano
como agente multiplicador para um melhor atendimento à pessoa com
deficiência, tendo como objetivos específicos o relato e a avaliação da
experiência do módulo de 4 horas, a idealização e a implementação do
módulo de 24 horas e a avaliação das mudanças comportamentais e a
prática educativa dos agentes multiplicadores submetidos ao módulo de
24 horas.
Nosso desenho metodológico consiste em um estudo exploratório
com perspectiva etnográfica. Em termos de pesquisa exploratória nos
baseamos na conceituação de Tobar e Yalour (2001), como sendo: “(...)
aquela realizada em áreas e sobre problemas dos quais há escasso ou nenhum
conhecimento acumulado e sistematizado. Pela natureza de sondagem, não parte
de hipóteses. Estas poderão surgir como produto final das pesquisas” (p.69). Já
em relação à perspectiva qualitativa de cunho etnográfico, estamos
empregando-a no sentido de uma abordagem voltada para a compreensão
de significados, valores culturais e crenças (Minayo, 1999). Utilizamos o
vídeo como instrumento de coleta de dados (Fontoura, 1997, 1998, 1999,
2000a, 2000b, 2001, 2005), que se apresentou como uma técnica que nos
ajudou na construção de sentidos que os sujeitos dão às suas ações;
desenvolvemos e utilizamos também um questionário como uma
ferramenta de avaliação do impacto do trabalho, principalmente, no
comportamento dos profissionais envolvidos.
Janoski (1998) considera a cidadania como um conjunto de práticas
políticas, econômicas, jurídicas e culturais que definem uma pessoa como
membro competente da sociedade. No entanto, a inclusão do elemento
competência no conceito é passível de críticas, uma vez que se podem
encontrar, no seio de uma sociedade, cidadãos que não se acham em
condições de exercer direitos políticos, e nem por isso perdem direitos
civis ou sociais, como é o caso dos portadores de deficiências mentais ou
das pessoas em coma, por exemplo. Construir cidadania é também
construir novas relações e consciências. A cidadania é algo que não se
aprende apenas com os livros, em um processo de educação formal, mas
também e muito com a convivência, na vida social e pública. É no convívio
do dia-a-dia que exercitamos a nossa cidadania, através das relações que
117

estabelecemos com os outros, com a coisa pública e o próprio meio


ambiente. A vivência da cidadania deve ser perpassada por temáticas
como solidariedade, democracia, direitos humanos, ecologia e ética.
Neste contexto de reflexão sobre a questão da cidadania, suas
implicações e seus processos, trazemos uma discussão sobre uma das
questões tratadas neste trabalho que é relativa à pessoa com deficiência,
termo escolhido por nós neste relato, que pode ser encontrado na
literatura referida ainda como pessoa portadora de deficiência, ou pessoa
deficiente, ou apenas deficiente. Enquanto orientação geral, uma das
maiores preocupações deste trabalho é chamar atenção para a necessidade
de se evitar os chamados “rótulos” ou “carimbos”. A partir do momento
em que uma determinada pessoa for rotulada com a marca da deficiência,
poderá nunca mais ser a mesma, pois corre o risco de passar a viver em
seus espaços sociais sob o estigma do inválido e/ou do inútil. Em uma
sociedade que já tem estabelecido um padrão de perfeição, de beleza, de
inteligência, de cor, alicerçado sobre valores econômicos, políticos, sociais,
culturais, éticos e morais definidos, essa ressalva torna-se importante, pois
se entende que o melhor seria evitar a colocação do carimbo ‘deficiência’
do que depois retirar as suas marcas. Vale a pena lembrar, a título de
esclarecimento, que o problema da pessoa com deficiência não é
necessariamente a deficiência em si, mas sim em grande parte o
tratamento que a mesma recebe por parte da sociedade, em face da sua
deficiência.
De acordo com estimativa da Organização das Nações Unidas
(ONU) há 500 milhões de pessoas deficientes no mundo. Essas pessoas
estão expostas a barreiras físicas, culturais e sociais que constituem
obstáculos à sua vida (ONU, 1992, p. 5-15). No caso do Brasil, dados
oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000,
apontam para um número de 14,5% da população com algum tipo de
deficiência Conforme Amaral, “nas projeções mais otimistas são mais de treze
milhões as pessoas brasileiras portadoras de deficiência. Se acrescentarmos dois ou
três elementos familiares, teremos quase que um terço da população envolvida com
a questão!” (1994, p. 13). Não é pouco significativo o número de pessoas
diretamente relacionadas com as deficiências/diferenças e, portanto, esta é
uma questão necessária à pauta dos debates sociais.
118

A pessoa com deficiência encontra-se, de forma concreta, inserida


no contexto social, decorrendo daí a caracterização de sua condição de
cidadão. A Organização Mundial da Saúde (OMS), agência de execução da
ONU, afirma que cada país tem 10% (dez por cento) da sua população
composta de pessoas com deficiências.
Nosso trabalho se insere em uma perspectiva educacional, mas não
aquela intramuros escolares, mas sim aquela que acontece em outros
espaços formativos. O conceito de educação, no sentido amplo, é sinônimo
de socialização do indivíduo; educação compreende todos aqueles
processos, institucionalizados ou não, que visam transmitir determinados
conhecimentos e padrões de comportamento a fim de garantir a
continuidade da cultura e normas da sociedade. Gohn (2001) aponta para
a necessidade ampliar o conceito de educação de forma a transpor os
muros da escola para espaços da casa, do trabalho, do lazer, do
associativismo. Como resultado desse movimento um novo campo
educacional: o da educação não formal. A referida autora define educação
não formal como sendo "aquela que aborda processos educativos que ocorrem
fora das escolas, em processos organizativos da sociedade civil, ao redor das ações
coletivas do chamado terceiro setor da sociedade abrangendo movimentos sociais,
organizações não governamentais e outras entidades sem fins lucrativos que
atuam na área social" (Gohn, 2001, p.32)
Para Frigotto (1995), a natureza da dimensão política da ação
educativa não se restringe dentro dos muros da escola, mas nas relações
sociais, onde estão em jogo interesses antagônicos. Brandão (1986)
caracteriza a educação não-formal, diferentemente da educação formal,
por não ter a preocupação em desenvolver um currículo predefinido, mas
um currículo que se faz principalmente baseado em desejos, necessidades
e interesses das pessoas que constituem os grupos envolvidos em ações e
práticas desse campo educacional. As propostas da educação não formal
têm como objetivo central enriquecer a biografia dos indivíduos,
ampliando a gama de vivências e experiências formativas de crianças,
jovens, adultos e idosos. Nesse contexto, as diversas linguagens artísticas e
culturais se inserem como fator de sedução e ferramenta possibilitadora de
amplos aprendizados.
119

Segundo Trilla (1996), o termo educação não-formal começa a


aparecer relacionado ao campo pedagógico concomitantemente a uma
série de críticas ao sistema formalizado de ensino, em um momento
histórico compreendido como crise do sistema escolar, em que este
começa a ser percebido, não só pelo campo pedagógico, como também por
diferentes setores da sociedade mais ampla, como serviços sociais, a área
da saúde e outros, como impossibilitado de responder a todas as
demandas sociais a ele impostas, delegadas e desejadas.
Para Ventosa (1992), é característico da educação não-formal um
outro jeito de organizar e perceber a relação ensino-aprendizagem,
educador/educando, produção de conhecimento no processo educacional.
Uma dessas características é a importância e relevância das ações da
prática e dos saberes e fazeres cotidianos. O movimento da educação não-
formal se deu através da existência de diferentes práticas que eram
mediadas por relações educacionais, mas que não eram consideradas
como educação por não obedecerem a uma série de requisitos formais, que
na prática estavam construindo diferentes modos de vivenciar e
compreender o processo ensino-aprendizagem.
Na sociedade atual, verificamos uma inadequação cada vez mais
ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados,
compartimentados entre disciplinas e, por outro lado, realidades e
problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais,
multidimensionais, transnacionais, globais, planetários. A hiper
especialização nos impede de ver o global, que ela dilui. O retalhamento
das disciplinas, mais especialmente no ensino formal, torna impossível
apreender o que é ‘tecido junto’, isto é, o complexo, segundo o sentido
original do termo, como trazido por Morin (1999). A realidade é complexa
e para a compreendermos, nosso pensamento tem que seguir a mesma
linha de complexidade. Em pesquisa é muito importante não esquecermos
este preceito, visto que nosso interesse é investigar e compreender a
realidade, retratando-a como ela é percebida por nós. Desta forma, não
podemos negar de sua complexidade e nem tentar simplificar os processos
que nela ocorrem.
Buscamos na pesquisa contribuir para a sensibilização de
trabalhadores rodoviários para um melhor atendimento à pessoa com
120

deficiência como usuária dos ônibus do sistema de transporte público do


município do Rio Janeiro, explorando práticas de educação não formal, em
espaços não formais, de modo a que possam desenvolver a promoção de
saúde e cidadania. Trabalhamos a partir do referencial da etnografia.
Jordan e Yeomas (1995) afirmam que, embora a pesquisa qualitativa
seja amplamente aceita nas ciências sociais, a perspectiva etnográfica,
mesmo que bem vista nos meios acadêmicos, está ainda em processo de
pavimentar seu caminho em direção à credibilidade por parte dos órgãos
financiadores e dos encarregados de desenvolver as políticas públicas.
Estes autores advogam a importância da pesquisa etnográfica como
possibilitadora de reflexões sólidas e significativas.
Oriunda da antropologia, a etnografia envolve um conjunto
particular de procedimentos metodológicos e interpretativos
desenvolvidos ao longo do século XX, mas, em sentido lato, Sanday (1979)
afirma que desde os antigos gregos, tem sido praticado. Esse método
envolve, tradicionalmente, longo período de estudo em que o pesquisador
fixa residência em uma comunidade e passa a usar técnicas de observação,
contato direto e participação em atividades. Usando o termo ‘paradigma’
no sentido kuhniano (Kuhn, 1962), pode-se dizer que o paradigma
etnográfico pode assumir um caráter diferenciado, na medida em que
esteja mais ou menos marcado pela visão do todo, pela preocupação com o
significado, e conforme o estudo penda mais para o diagnóstico ou para a
explicação dos fenômenos. O que importa neste tipo de estudo não é a
forma de que os fatos se revestem, mas o seu sentido.
Segundo a visão de Erickson (1984), a abordagem etnográfica se
refere a questões de contexto e não é meramente uma descrição de
procedimentos. Como instrumento de registro, utilizamos, entre outros, o
vídeo, cuja participação imediata e direta dos personagens observados no
registro constitui a singularidade deste recurso, uma vez que aumenta o
campo de observação, de análise e interpretação conjunta, mostrando aos
personagens suas próprias imagens e os motivando a comentá-las, debatê-
las e discuti-las após os registros. Este procedimento implica, muitas
vezes, o que Clarice Peixoto salienta como “encontro ou confronto de lógicas e
culturas diferentes, de conceitos de identidade ou ‘alteridade’, do problema da
realidade e da representação ou ainda o lugar do visual nos modos de expressão”
121

(1994, p.14). Em outras palavras, o vídeo enquanto ferramenta, além de


animar e instigar o conhecimento mútuo, tem a capacidade de provocar
uma autoscopia.
A palavra "autoscopia" é composta pelos termos “auto” e “scopia”.
O primeiro trata de uma ação realizada pelo próprio sujeito e o segundo
refere-se a escopo (do grego skoppós e latim scopu), que quer dizer objetivo,
finalidade, meta, alvo ou mira. A idéia de autoscopia diz respeito,
portanto, a uma ação de objetivar-se, na qual o ‘eu’ se analisa em torno de
uma finalidade. Trataremos, aqui, a autoscopia como técnica de pesquisa e
de formação que se vale de videogravação de ações de um ou mais
sujeitos, numa dada situação, visando a posterior auto-análise delas. Em
sua especificidade, a autoscopia supõe dois momentos essenciais: a
videogravação propriamente dita da situação a ser analisada e a(s)
sessão(ões) de análise e reflexão.
O procedimento de autoscopia é encontrado em estudos como os de
Linard (1974; 1980), Prax e Linard (1975), Nautre (1989), Rosado (1990;
1993) e Ferrés (1996), que detalharam a função de avaliação de si mesmo
que a videogravação permite através da confrontação da imagem de si na
tela. Allan (1986) utiliza o termo ‘microensino’. Na técnica da autoscopia, o
indivíduo se vê em ação, o que permite o retorno da imagem e do som,
retorno da informação, possibilitando uma modificação da ação pela
percepção de causas e efeitos (Linard, 1980). A autoscopia pode ser
utilizada tanto em situações de pesquisa como nas de aprendizagem e
formação de diferentes profissionais. O sujeito é o próprio objeto de
feedback visual, ao se deparar com a imagem de seu corpo, a apreensão,
pela memória, de sua representação e aparência.
O funcionamento de uma análise através do recurso do vídeo não é
tarefa fácil para se realizar. Ela envolve um processo de tomada de
consciência e reflexão simultânea de variados códigos expressivos:
linguagem, metalinguagem, deslocamentos, posturas, expressões faciais,
maneirismos, entre outros, tanto de si como das demais pessoas
envolvidas na situação registrada.
Uma de nossas preocupações foi verificar a forma com que este
processo de treinamento se manifestava, de suas diversas formas nos
sujeitos em questão, durantes as atividades propostas e conseqüentemente
122

de que maneira estas alterações poderiam interferir, trazendo alternativas


de melhoras nas práticas sociais, na vida cotidiana de cada pessoa.
Utilizamos neste trabalho o vídeo como uma ferramenta de
autoscopia, que conforme já descrito por alguns autores, é o processo de
auto-análise do indivíduo de sua prática reproduzida e assistida pelo
próprio.
Com este tipo de observação, abre-se um espaço de possibilidades
entre as pessoas filmadas e o pesquisador-cineasta. Uma das
particularidades deste tipo de utilização deste equipamento é que uma vez
que aumenta o campo de observação, análise e interpretação, mostrando
aos personagens suas próprias imagens e induzindo aos debates e
comentários destes registros, permitimos uma consciência mais fiel a
realidade e assim temos a possibilidade de identificar, para possível
análise, aspectos cognitivos, comportamentais e afetivos.
Por estes motivos utilizamos a gravação em vídeo da prática de
ensino dos sujeitos envolvidos no treinamento, para uma posterior análise,
em grupo, e desta forma estimulamos a análise e crítica dos próprios
sujeitos em questão e posteriormente abrimos para debate com todos os
demais, e desta forma ficou mais evidente e ilustrado de forma mais
compreensiva as práticas de cada pessoa. É nossa avaliação que a escolha
metodológica configurou-se como acertada, uma vez que possibilitou que
atingíssemos os resultados pensados para nosso trabalho de pesquisa e de
formação de multiplicadores em ação.
O trabalho com os rodoviários foi desenvolvido durante o período
de 2001 a 2003, dentro das próprias garagens das empresas de ônibus,
através da realização de um módulo de 4 horas, composto por uma parte
teórica e outra prática. Na teórica, tem por objetivo questionar: Quem são
as pessoas com deficiências? Por que são chamadas de deficientes? O que
é ser deficiente e qual a diferença entre ser ou ter uma deficiência? Destes
questionamentos então todos refletem sobre suas próprias eficiências e
deficiências e sobre seus pré-conceitos a respeito das pessoas então
chamadas ‘deficientes’.
Abre-se então uma nova discussão, o que vem a ser deficiente?
Qual é o significado desta palavra? A partir das colocações dos
participantes colocamos outro questionamento, a respeito do que vem a
123

ser incapacidade e se as pessoas com deficiências são incapazes ou são


pessoas que apresentam algumas limitações, como todos nós, e são estas
dificuldades impostas que fazem com que superemos estas limitações e
nos adaptemos ao meio.
Para melhor ilustrar esta situação, é apresentado aos participantes o
curta “Mãos”22, principalmente para entender as ‘mãos’ como uma forma
de oferecer ajuda às pessoas que necessitam. A projeção é seguida de
discussões e questionamentos e da exibição do filme, “Transporte Eficiente
– Aprendendo com as diferenças”, produzido pelo Rio Ônibus com a
supervisão da equipe de capacitação da FUNLAR RIO, em 2003, para
demonstrar procedimentos a serem realizados no exercício da profissão
dos agentes envolvidos, de acordo com cada tipo de deficiência. Para
finalizar a parte teórica, discutimos de que forma as barreiras e o
preconceito dificultam o exercício pleno de cidadania das pessoas com
deficiência, tentando mostrar aos participantes do módulo como cada um
pode ser responsável por facilitar ou dificultar o convívio do e com o seu
próximo.
A parte prática é realizada ilustrando as dificuldades de uma
pessoa cega e de uma pessoa usuária de cadeira de rodas. Ao término
destas atividades, todos retornam à sala de aula para então realizarem
uma avaliação oral do processo de treinamento e após esta avaliação o
módulo se dá por encerrado e todos os participantes recebem um
certificado pela realização do módulo de 4 horas.
O módulo de 24 horas – nosso objeto

Para desenvolver esta etapa realizamos um curso no qual cada


empresa filiada ao sindicato podia enviar funcionários para serem
treinados e desta forma poderem atuar junto a seus pares nas suas
empresas. Tivemos inicialmente a presença de 48 pessoas, mas nem todas
chegaram ao final do curso por não terem cumprido a exigência de 75% de
freqüência. O curso então foi realizado em três dias distintos, 19 e 28 de
abril e 05 de maio de 2005.
Na manhã do primeiro dia todos responderam um questionário,
pré-teste, assim que chegaram, e receberam uma pasta contendo o
cronograma das atividades dos três dias, um bloco pautado e uma caneta

22
Produzido pelo CVI-RJ
124

para observações. Logo em seguida assistiram a relatos de pessoas com


deficiência usuárias do transporte rodoviário da cidade. No final dos
depoimentos se abriu a plenária para questionamentos aos palestrantes na
tentativa de sugestões para melhorias no atendimento às pessoas com
deficiências e maiores esclarecimentos em relação às questões levantadas.
Ainda neste dia, na parte da tarde, reunimos novamente os
representantes das empresas de ônibus que estavam participando deste
curso para assistir a aula do módulo de 4 horas na íntegra para que
pudessem ter um primeiro contato com o conteúdo e a forma de
abordagem deste, já que o objetivo final é que cada um esteja capacitado a
reproduzir o módulo de 4 horas em suas empresas. No final deste
primeiro dia todos foram divididos em 6 grupos, e a apresentação do
módulo de 4 horas foi dividido em 3 partes, e desta forma cada uma
destas partes do módulo foi designada a 2 grupos de participantes, para
que no segundo dia cada um destes grupos apresentassem sua parte do
módulo de 4 horas a partir das primeiras impressões e informações que
cada um tinha a respeito do conteúdo proposto.
No segundo dia, pela manhã, todos passaram por uma série de
dinâmicas e práticas de diversos tipos de deficiências, principalmente a
física e a visual, onde puderam constatar algumas das dificuldades
relatadas no primeiro dia do curso pelos palestrantes usuários do sistema
de transporte rodoviário que possuem algum tipo de deficiência. Para isto
fixemos uso de cadeiras de rodas, bengalas articuladas, vendas e muletas.
Tínhamos como objetivo nestas vivências fazer com que os participantes
estimulassem suas percepções, na medida em que podiam, mesmo que de
forma fictícia, sentir os medos e dificuldades que as pessoas com
deficiências sentem assim como treinar formas de abordagem para
auxiliar estas pessoas.
Ainda neste mesmo dia, na parte da tarde, cada um dos grupos
criados no primeiro dia fez a apresentação da parte do módulo de 4 horas
que lhe coube para o restante da turma sendo filmadas estas apresentações
mediante prévia autorização e com o consentimento de imagem de todos
os sujeitos envolvidos. Durante estas apresentações não foi feito qualquer
tipo de comentário com relação às apresentações, nem mesmo sobre o
conteúdo, já que neste momento nosso objetivo era de captar a dinâmica
125

de cada pessoa e não avaliar se cada um já tinha pleno conhecimento sobre


o tema em questão, pois muitos deles somente tinham tido contato com o
conteúdo no primeiro dia de curso, durante a apresentação das
transparências.
No terceiro e último dia do curso, durante toda a parte da manhã,
todos assistiram aos filmes produzidos para que pudessem então assistir
suas performances e então se auto-avaliar, desta forma foi apresentado o
vídeo de cada grupo e após a exibição o próprio grupo fazia as
considerações sobre a forma de apresentar o tema, postura na frente da
turma e interações com o restante do grupo e em seguida os outros grupos
tinham a oportunidade de expor suas opiniões sobre a apresentação em
questão e por último os instrutores do módulo colocavam as questões
ainda não discutidas que achavam relevantes ao trabalho. Desta forma foi
feito com todos os demais grupos. No último momento deste dia e do
curso todos preencheram novamente o questionário, pós-teste, para
avaliarmos, de forma documentada, as mudanças em suas percepções em
relação às pessoas com deficiências. Logo após iniciamos uma reunião
com todos para avaliar a realização do módulo, traçar juntos os métodos
de acompanhamento destes agentes multiplicadores em seus locais de
trabalho e entregar para cada um o “Manual do Instrutor do Projeto
Transporte Eficiente”. Por verificarmos a importância do conteúdo do
manual para o treinamento, à medida que fomos descrevendo o processo
pelo qual passamos no treinamento, principalmente no que diz respeito ao
módulo de quatro horas, por este ser a finalidade do treinamento destes
multiplicadores, selecionamos trechos mais significativos, que já estão
fazendo parte deste relato. Trabalhamos ainda com questionário de pré e
pós concepções, que não farão parte desse recorte.
Fizemos uma seleção de cenas, registradas durante a atividade de
filmagem dos participantes do módulo de 24 horas, como exemplos de
situações que foram debatidas com os mesmos sobre o que faziam durante
o processo de transmissão dos conhecimentos aprendidos. Através do
processo de autoscopia, já descrito anteriormente neste trabalho, tornou-se
mais fácil o diálogo a respeito das atitudes apresentadas, pois ao invés de
serem apontadas verbalmente, as atitudes apropriadas ou não, os
participantes podiam fazer as avaliações através de suas próprias imagens
126

e assim, podendo fazer suas reflexões e análises, bem como ouvir as


mesmas dos demais participantes.
Para fins de pesquisa participamos de todo o processo como os
demais membros do trabalho, uma vez que ao se tratar de uma pesquisa
que envolvia seres humanos, que não podem desprender-se de seus
sentimentos, pensamentos e ações, a maneiras mais próxima de se buscar
informações verdadeiras e comletas, garantindo a precisão das
informações foi buscando a vivência. Segundo Mann(1975), “(...) a
observação participante refere-se a uma situação onde o observador fica
tãopróximo quanto um membro do grupo do qual ele esta estudando e
participa das atividades normais deste”.
A linguagem corporal é uma ferramenta de comunicação, sendo
assim, se você consegue entender o que o corpo tem a dizer, conseguirá
entender melhor o que os outros estão dizendo, e também transmitir
melhor a sua mensagem. Na verdade, devemos tomar muito cuidado, pois
muitas vezes a boca diz uma coisa, mas o corpo fala outra completamente
diferente. Oliver Sacks (1990) comenta sobre como pessoas surdas, ao
assistir um programa de televisão com a presença de políticos, riam
ininterruptamente da incapacidade de mentir que os "corpos" tinham. A
linguagem corporal era uma grande delatora das mentiras que estes
contavam.
A seguir mecionamos alguns exemplos simples que identificamos
nos participantes de nosso trabalho. Na primeira seleção, identificamos
que uma das participantes apresentava o tema na mesma posição por um
período prolongado, com as pernas cruzadas durante todo este período,
sem qualquer tipo de utilização da linguagem corporal. Na segunda
seleção de imagens, o grupo identificou o que considerou um
posicionamento não apropriado dos participantes colocando uma das
mãos no bolso durante a exposição do tema proposto.
Identificamos ainda, na terceira seleção, em dois momentos, um
participante que durante sua fala se manteve por todo o tempo
gesticulando, desta forma não favorecendo o foco na apresentação feita ao
invés de ser em sua excessiva movimentação. Caso tivesse consciência
desse aspecto, poderia ter tornado mais dinâmica sua apresentação. Na
quarta e última seleção de cenas, salientamos uma importante iniciativa de
127

uma das participantes do módulo estudado: a interação do instrutor com


os participantes.
Percebemos que a ‘futura instrutora’ utilizava um dos participantes
para demonstrar algo durante sua fala, desta forma fazendo com que este
participante em questão tivesse uma participação ativa durante a
exposição da instrutora. Assim, criou-se um elo ativo entre a instrutora e
os participantes, já que a partir desta atitude todos se tornaram possíveis
participantes ativos e não somente meros expectadores.
A linguagem coporal é passível de interpretações, uma vez que a
comunicação verbal e a não verbal não estão em sintonia. Estas
interpretações são apenas indícios uma vez que o contexto comunicativo
deve ser levado em consideração a partir de uma análise da comunicação
não verbal. Parar com as mãos na cintura, por exemplo, pode sugerir uma
certa incompreensão ou até mesmo agressividade; parar com os braços
cruzados no peito, pode ser interpretado como uma posição defensiva;
andar com as mãos nos bolsos, olhando
para baixo pode levar o ouvinte a pensar a cerca de uma falta de
entusiasmo, desmotivação; assim como o desvio do olhar é muitas vezes
analisado como um sentimento de desconfiança de quem o faz.
Uma das observações importante de ressaltar é a de que o vídeo se
revelou, tanto para nós quanto para os sujeitos participantes do módulo
de 24 horas, uma importante ferramenta para auxiliar na formação dos
multiplicadores, pois possibilitou a estes uma maior percepção de suas
próprias atitudes.
Este trabalho buscou analisar e avaliar uma experiência de
treinamento para profissionais do sistema rodoviário da cidade do Rio de
Janeiro, com vistas a prepará-los para atuarem como agentes
multiplicadores nas empresas em que trabalham, capacitando então,
motoristas e cobradores de ônibus, para atenderem com mais qualidade os
passageiros que possuem algum tipo de deficiência. Assim, além de um
estudo específico sobre este treinamento, procuramos, com esta pesquisa,
desvelar as mudanças comportamentais apresentadas pelos sujeitos
envolvidos, através de um questionário, e desta forma buscar refletir sobre
as mudanças de idéias pré-concebidas sobre as pessoas com deficiências e
desta forma aprimorar a prática da cidadania de cada pessoa.
128

Procuramos mostrar, assim como Janoski (1998), que a cidadania


pode ser compreendida como um conjunto de direitos que possibilita a
pessoa a participar de forma ativa e integrada na vida social e política de
sua cidade, estado ou país. Aquele que se encontra excluído, pelo motivo
que for, da vida social, não exerce a sua cidadania, e se encontra em
posição inferior diante da sociedade.
Desenvolver a cidadania é tarefa que não termina. A cidadania não
é como um dever de casa, onde cada um faz sua parte, apresenta e pronto,
acabou. Enquanto seres inacabados que somos, sempre estaremos
buscando, descobrindo, criando e tomando consciência mais ampla dos
direitos. Concordamos com Gilberto Freire (1933) ao dizer que somos
cidadãos e por isso temos o direito a ter direitos e obrigações inerentes à
condição de cidadão, tanto os direitos passivos, universais, promulgados,
garantidos por leis a qualquer pessoa, quanto principalmente pelos
chamados direitos ativos, que possibilitam à pessoa atuar de forma
marcante e presente, influenciando nas esferas sociais e políticas do local
onde vive, e a combinação destes direitos nos faz entender cidadania como
uma ferramenta de igualdade entre os cidadãos.
Ao capacitarmos agentes multiplicadores que irão, em suas
empresas, treinar os funcionários desta para lidar melhor com os
passageiros que possuem algum tipo de deficiência, estamos, de alguma
forma, quebrando uma das barreiras que estas pessoas encontram ao
tentar exercer sua cidadania: conviver.
Ao realizarmos um trabalho como o descrito nesta pesquisa,
estamos mais do que treinando funcionários para lidar com passageiros
com deficiências, mas estamos sensibilizando tais sujeitos, em relação às
pessoas com deficiências, independente do local onde estão, se no
exercício de suas funções profissionais ou não, saberem e entenderem
melhor as pessoas com deficiências, estando mais esclarecidos sobre as
realidades destas pessoas e até mesmo levando estas informações a outros
e cada vez mais envolvendo a sociedade.
Foi possível analisar os eventos do ponto de vista dos atores sociais
e desenvolver uma etnografia do trabalho de treinamento de
multiplicadores para que empresas de ônibus possam vir a oferecer um
melhor e mais qualificado atendimento à população que se utiliza de seus
129

serviços. Ainda nos referindo à escola metodológica, utilizar o vídeo como


uma ferramenta de autoscopia possibilitou que os envolvidos no processo
de treinamento pudessem analisar a si próprios produzindo conquistas
efetivas e mais duradouras do que as obtidas em processos educativos
formais. Por nossas próprias tradições, somos acostumados a agir de
forma passiva, a aceitar as disparidades sociais como algo naturalizado, a
aceitar também um não-compromisso de oferta de serviços públicos
adequados à população que deles se utiliza. Aceitamos um Sistema Único
de Saúde que não atende, um sistema educacional que não educa, um
transporte que não transporta.
É inaceitável termos a falta de qualidade nos serviços e a aceitação
passiva das populações a estes serviços não acessíveis. Temos que buscar
criar espaços de possibilidades para a superação de impasses e situações
de desvantagem social dos sujeitos-objetos de preconceitos, seja de que
tipos forem estes preconceitos. Um trabalho de intervenção qualitativa
promove espaços de construção de cidadania especialmente relacionados
ao tema aqui tratado, pois não é pouco significativo o número de pessoas
diretamente relacionadas com as deficiências/diferenças e, portanto, esta é
uma questão necessária à pauta dos debates sociais.

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131

MUDANÇA DE LUGAR: UM ESTILO DE AULA OU DE ENSINO-


APRENDIZAGEM? UM ESTUDO ETNOGRÁFICO EM UMA CLASSE
DE PROGRESSÃO NO RIO DE JANEIRO23

Tatiana Bezerra Fagundes


Carmen Lúcia Guimarães de Mattos

A sala de aula é o espaço tempo eleito pela sociedade moderna para


transmitir, construir, apreender o conhecimento já existente na humanidade. Em
cada escola e em cada sala de aula pode existir uma maneira diferenciada de
lidar com esse conhecimento. No entanto, a presença de um sujeito que transmite
e/ou auxilia em sua construção e/ou apreensão é factual.
A despeito de o acesso a informação estar a cada dia mais disponível no
âmbito social, a escola com os alunos e os professores é o local onde, intencional e
legalmente se sistematiza o conhecimento e o professor ainda é o sujeito
qualificado a fazê-lo.
Nesse fazer docente, existe o estilo de aula de cada professor (MATTOS,
1992) para que os conteúdos escolares sejam passados aos alunos e alunas. Em
nossa pesquisa esse estilo de aula se caracterizou pela mudança de lugar de uma
das professoras com quem realizamos o estudo.
A mudança de lugar foi uma forma opção adotada pela professora para
dar aula e para verificar a tarefa dos alunos. Neste trabalho descrevemos e
problematizamos esta mudança de lugar. Para tal, no primeiro momento
descrevemos o locus de observação, a metodologia do estudo, o processo de
análise dos dados e o funcionamento da classe observada, no segundo momento
analisamos a categoria mudança de lugar onde também traçamos nossas
considerações a respeito da mesma.
Os dados deste estudo foram coletados no período de agosto a dezembro
de 2006, em uma escola pública municipal (CIEP C) na cidade do Rio de Janeiro
no âmbito do projeto “Imagens Etnográficas da Inclusão Escolar: o fracasso
escolar na perspectiva do aluno” (MATTOS, 2005-2008). Semanalmente a escola
foi visitada e duas classes de progressão foram simultaneamente observadas,
além de dois conselhos de classe e das entrevistas feitas com os alunos de uma
das classes. Em cada classe encontravam-se duas assistentes de pesquisa, sob a
supervisão da professora pesquisadora, que realizavam as observações fazendo
anotações em caderno de campo e filmando a sala de aula.
Nas salas de aula, quando das observações, havia uma câmera de vídeo
posicionada de modo a filmar a sua maior parte. Como a câmera não era capaz
de abranger na filmagem a totalidade da sala, por vezes, foi preciso mudar o seu

23 Trabalho apoiado com bolsa de Iniciação Científica PIBIC-CNPq


132

posicionamento para que se pudesse ter o máximo de informações possíveis


sobre o espaço filmado. Em alguns momentos, a câmera foi destinada à
focalização de algum micro evento que se considerou relevante para desvelar
determinado aspecto da interação entre professora e aluno, aluno e aluno, aluno
e tarefa, que auxiliasse no entendimento das práticas de sala de aula que
interferem na carreira e no conhecimento que o aluno adquire na escola.
A abordagem etnográfica subsidiou a coleta e análise dos dados dessa
pesquisa. A partir da descrição densa (GEERTZ, 1989), possibilitada pela
observação participante, e da microetnografia de sala de aula (ERICKSON, 1992)
procedeu-se, concomitante e dialeticamente, ao levantamento e análise indutiva
dos dados (MATTOS, 2002).
As categorias tarefa e mudança de lugar foram levantadas no período de
assistência, edição e discussão dos vídeos, aliada às observações participantes em
sala de aula e as entrevistas. Essas categorias ilustram o cenário de sala de aula e
ainda, o entendimento sobre como ocorre o processo de ensinar, aprender e
avaliar o aluno.
A tarefa em sala de aula faz parte do processo pedagógico24. Ela é uma
característica do processo de ensino-aprendizagem caracterizada pela escola
como necessária para que os conteúdos das disciplinas escolares sejam
aprendidos pelos alunos. De acordo com Meirieu (1998) a tarefa “compreendida
num sentido amplo [...] deve chegar a atividade do sujeito” (p.192) e:
“para envolver de maneira eficaz a atividade de um sujeito [...]
a instrução-alvo (definição da tarefa) deve vir acompanhada de
instruções-critérios” que devem ser elaboradas levando em
conta o êxito funcional da tarefa e o êxito acadêmico da tarefa
(ligadas às exigências próprias do “contrato didático” entre o
professor e o aluno)” (p. 193).

A análise apresentada por Meirieu destaca a atividade do sujeito aluno


atrelada às situações curriculares, de avaliação do desempenho e que são
elaboradas e acompanhadas pelo professor.
Por outro lado, podemos ressaltar que a tarefa, além de ser pensada para
que o aluno tenha acesso aos conteúdos escolares, pode também ser considerada
uma ferramenta na elaboração cognitiva dos alunos, aliada aos demais fatores
observados na dinâmica de sala de aula, atuando, por exemplo, na sua “zona de
desenvolvimento proximal” (VYGOTSKY, p.89, 1993) e levando-o a conquistar
sua autonomia na condição de sujeito do saber.

24 Por processo pedagógico entendemos o conjunto de ações utilizadas pela professora, intencionais ou não,
para que a aprendizagem do aluno sobre determinado conteúdo ou conceito seja alcançada.
133

Lahire em seu estudo (1997) percebe a autonomia vinculada à


autodisciplina no ambiente escolar em duas dimensões:

“autodisciplina corporal (saber conter os desejos, portar-se bem,


ficar calmo, escutar, levantar a mão antes falar, começar a
trabalhar sem que o professor tenha necessidade de intervir,
imprimir regularidade ao trabalho, ao esforço, ser ordenado...) e
como autodisciplina mental (saber fazer um exercício sozinho,
sem a ajuda da professora, sem perguntar nada, fazer uma
leitura silenciosa e resolver por si mesmo um problema, saber
se virar sozinho ao fazer um exercício escolar somente com as
indicações escritas...).” (p.58)

Tal autonomia implicaria em o aluno compreender o sentido da tarefa em


sala de aula e desse modo progredir nos conteúdos organizados para cada etapa
do processo de escolarização. Assim, analisar os resultados da tarefa implica
entender os demais fatores presentes no contexto de sala de aula, como por
exemplo, a dinâmica da interação entre o professor e o aluno.
Castro (2006) sustenta que a tarefa escolar não deve ser analisada de
forma isolada, mas sempre em conjunto com outros elementos do processo de
ensino aprendizagem. Para a autora, a tarefa é parte do processo e é reflexo do
tipo de abordagem metodológica, da relação entre professor e aluno e dos
recursos didáticos disponíveis, culminando na ação do aluno. Portanto, a tarefa
concebida no sentido pedagógico e em conexão com os demais elementos do
processo de ensino-aprendizagem requer um estudo dos diferentes níveis dentro
da escola em que ela se constitui até chegar à sala de aula e ser aplicada ao aluno
(p.86).
Partindo desse pressuposto, evidenciou-se que a tarefa escolar na sala de
aula estudada era parte do cumprimento do dever dos alunos permeada pela
presença e circulação da professora por suas mesas.
No enredo de sala de aula, a tarefa era definida pelas formas de interação
entre a professora e os alunos. Uma das formas destacadas nesse estudo é quanto
a não permanência da professora em sua mesa e a permanente mudança entre as
mesas dos alunos durante as aulas. Tal movimento foi denominado mudança de
lugar em nossas categorias.
A mudança de lugar da professora se apresentou como uma opção para
desenvolver a aula e verificar a tarefa dos alunos, o que implicava em uma série
de ocorrências durante as aulas, tais como: o movimento dos alunos pela sala, a
não realização da tarefa e as chamadas de atenção por parte dela.
A seguir descrevemos o funcionamento das classes de progressão da
escola observada e discutimos a categoria mudança de lugar.
134

Funcionamento das classes de progressão no CIEP C25


Na cidade do Rio de Janeiro, à época da pesquisa, o CIEP C estava
funcionando simultaneamente com o regime de ciclos e séries.
Em substituição as primeiras séries do primeiro segmento do ensino
fundamental (CA, 1ª e 2ª séries) funcionava o Ciclo de Formação (ou Ciclo de
Alfabetização) e as duas últimas séries (3ª e 4ª séries) permaneciam no regime
anterior. Na escola existiam duas turmas de progressão.
De acordo com a entrevista feita com os alunos, a classe de progressão na
escola era dividida em classe de progressão fraca e classe de progressão forte.
Utilizaremos essa definição para nos reportar a uma ou outra classe.
A classe de progressão (CP) forte era composta por 30 alunos. Estes com
idades entre nove e dezessete anos, que era a idade da aluna mais velha da
turma. Eles eram, em sua maioria, repetentes conforme nos relatou a professora e
os próprios alunos, inclusive repetentes da própria classe de progressão.
Na rotina de funcionamento da classe estavam previstas atividades a
serem desenvolvidas em sala de aula, como as aulas de Língua Portuguesa e
Matemática, a aula de Artes, a assistência de vídeo, geralmente com uma história
infantil, e as atividades trabalhadas fora de sala, como aula de Educação Física e
aula de bijuterias (somente para os alunos que se interessassem); além do recreio
diário que ocorria em dois momentos: após o almoço e antes do lanche da tarde.
A classe de progressão (CP) fraca possuía os mesmos horários e
atividades da CP forte, entretanto, diferenciava-se desta pela idade dos alunos e
pelo trabalho que a professora desenvolvia com a turma. Caracterizava-se por ser
uma turma de alunos mais novos e, de acordo com os alunos, que repetiram
apenas uma vez26. A idade do alunado variava de nove a doze anos e a turma
era composta por 30 alunos.
Enquanto a professora da CP forte trabalhava conteúdos de Língua
Portuguesa e Matemática – leitura, separe as sílabas, contas de somar e subtrair
com dois algarismos – nas aulas da CP fraca havia predomínio de atividades que
tinham como foco a Língua Portuguesa.
Essa diferença entre ambas as classes esteve prevista nos documentos da
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. No ano de 2001, a Diretoria
do Departamento Geral de Educação (E-DGED) publicou uma portaria (Portaria
nº2) que definia como critério para o ingresso na classe de progressão a idade
mínima de nove anos. Neste mesmo ano, outra portaria definia que, além da

25 O nome da escola e dos alunos foi modificado a fim de preservar a identidade dos participantes da pesquisa.
26 Embora os alunos afirmem que repetiram apenas uma vez a Classe de Progressão, existiam na turma alunos
cuja idade acusava a permanência na progressão por mais de um ano seguido, como era o caso dos alunos com
onze e doze anos de idade.
135

idade, deveria ser considerado o processo de aprendizagem do aluno que se


distinguia entre construção e consolidação da leitura e da escrita (Portaria nº 15,
E-DGED). A partir dessa distinção, duas classes de progressão foram criadas, a
classe de progressão I e a classe de progressão II. Na primeira seriam agrupados
os alunos em processo inicial de construção de leitura e escrita e na segunda,
alunos que já possuíssem o domínio da leitura e escrita, mas necessitavam
consolidá-lo.
As classes de progressão, desde sua implementação em 2001 até o final do
ano de 2006, sofreram uma série de modificações quanto ao seu funcionamento e
objetivos. Em princípio ela se destinava “a oferecer suporte pedagógico aos
alunos que, mesmo na modalidade dos ciclos, não conseguiram acompanhar os
conteúdos ensinados pelos professores” (ARAÚJO; MAURÍCIO, 2006, p.3).
Durante o período da pesquisa, as classes de progressão serviam para “atender a
alunos em diferentes estágios do processo de leitura e de escrita numa única
turma” (Id. Ibid. p.5).
No funcionamento de cada uma das classes salientamos a rotina
pedagógica que consistia, basicamente, na verificação pela professora da tarefa
no caderno dos alunos. As tarefas eram passadas pelas professoras no quadro ou
então em folhas mimeografadas, aos alunos cabia realizar a tarefa para depois ser
verificada.
Durante as observações nas classes de progressão evidenciou-se que a
professora da CP fraca enfatizava a cópia e verificação das tarefas no caderno,
enquanto que a professora da CP forte enfatizava a feitura da tarefa em folhas
mimeografadas a ser corrigida coletivamente.
A diferença no modo como as professoras desenvolviam e verificavam a
tarefa culminava em um processo diferente nos rendimentos e compreensão do
sentido do fazer em sala de aula que, na Classe de Progressão Fraca, era marcada
pela mudança de lugar da professora. Adiante passamos a discutir esta mudança.
Mudança de lugar – um estilo de aula
Mattos (1992) aponta em seus estudos que a professora, ou o professor,
em sala de aula, costumam adotar um estilo próprio para desenvolver a aula com
os alunos e alunas, embora, em aspectos gerais, estes sejam semelhantes:
permanecer à frente da turma enquanto dá aula, chamar os alunos pelo nome,
caminhar por entre as carteiras, definir o lugar de cada aluno, mudá-los de lugar,
entre outras coisas. Este estilo de aula visa a um determinado fim, no estudo
citado, a professora tentava manter a turma organizada para o cumprimento da
tarefa escolar.
136

A mudança de lugar nos estudos do Núcleo de Etnografia em Educação


(NetEdu)27 aparece relacionada aos alunos e a processos pautados na
manutenção da disciplina (LAGE, 2004), do controle (CASTRO, 2006) e da
exclusão no espaço de sala de aula (MATTOS, s/d). Esses estudos apontam que
os alunos eram sempre aqueles que mudavam de lugar por requisição das
professoras.
No entanto, na Classe de Progressão Fraca, a mudança de lugar tem a ver,
principalmente, com a professora que freqüentemente mudava de lugar (embora
ela mudasse os alunos de lugar também). Essa foi a alternativa adotada por ela
para desenvolver a aula e para verificar a tarefa dos alunos.
A professora, desde o início das atividades da tarde, pegava uma cadeira
e a conduzia por entre as carteiras dos alunos; sentava-se ao lado de um aluno,
verificava o seu caderno e mudava de lugar levando a cadeira. Novamente, a
professora sentava-se ao lado de outro aluno, verificava o seu caderno e mudava
de lugar. Isso acontecia sucessivamente até o final da aula.
Observou-se que em um dia de aula, na parte da tarde, a professora
costumava mudar de lugar, pelo menos, onze vezes. Mesmo estando em uma
mesa onde estavam sentados um grupo de alunos, a professora, toda vez que ia
verificar o caderno de um deles, mudava de lugar colocando-se ao lado desse
aluno.
Na cena destacada é possível visualizar a mudança de lugar da professora
onde um tempo expressivo da aula era ocupado, pois entre um aluno e outro
existia um percurso, mais ou menos definido que demandava tempo: a
professora levantava-se da cadeira em que está sentada, pegava a cadeira, ia para
outro lugar, colocava a cadeira no novo lugar, sentava-se, ajeitava-se na cadeira,
olhava o movimento da sala, esperava o aluno ajeitar-se, pegava o caderno do
aluno e conferia a tarefa parando sua conferência para chamar à atenção os
alunos quando achava necessário. Percebemos ainda que a professora gastava
mais tempo em todo processo que envolvia a mudança de lugar do que
assistindo o aluno e ao fazê-lo sua primeira atitude era olhar o caderno dele:

Profa: Oh Pedro. Nada Pedro?! (A professora vira a folha do caderno)


Profa: De quando que é isso? (Profa vira o caderno de um lado para o
outro)
Profa: Pedro... (olha para o aluno e fala alguma coisa)
Profa: Quer ficar sem recreio hoje?
Pedro acena que não com a cabeça.
Profa: Eu quero oh... Quando eu voltar de lá (aponta para outra mesa)....
(A profa diz que vai verificar o seu caderno).

27 www.netedu.pro.br
137

A assistência da professora se restringia quase que exclusivamente a


folhear o caderno do aluno. Se a tarefa verificada estava sendo feita, ela dava o
visto e pedia para o aluno terminá-la, se por outro lado a tarefa não estivesse
sendo realizada, a professora chamava à atenção o aluno, ordenava que ele a
fizesse e mudava de lugar.
Em Meirieu (2005) encontramos a explicação de que “a tarefa é o exercício
tal como é apresentado no caderno, na ficha de leitura [...]. A tarefa é aquilo que é
palpável, aquilo que se concebe antes mesmo de ter realizado, aquilo que pode
ter critérios de êxito consolidados” (p.186). A professora, ao verificar o caderno
do aluno buscava o aspecto manifesto da tarefa, aquilo que era palpável e
verificável. Ao considerar apenas este aspecto, a mesma desconsiderava outros
elementos que estão embutidos na realização da tarefa, tais como: a compreensão
mínima do aluno acerca do que está sendo pedido para que possa realizar
sozinho a tarefa ou o auxílio de outrem para realização dessa tarefa. De acordo
com Jesus (2003) em estudo que analisa as pesquisas que tem a sala de aula como
locus de observação, a maneira como os professores explicavam as tarefas “não
apresentavam características que facilitassem a compreensão dos alunos para a
execução das tarefas em classe” (p. 16).
Numa perspectiva construtivista da educação, sobre a qual se sustenta o
ensino público do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2007), a tarefa escolar
prioriza uma ação interna e mental de classificação, ordenação, numeração,
estabelecimento de relações e problematização dos fatos observados. O aluno é
considerado o sujeito na construção do conhecimento e o professor um facilitador
e condutor nesse processo (COLL, 1994). O professor, então, ao propor e elaborar
as tarefas escolares, precisa ter em vista o grau de autonomia que os alunos
possuem para realização dessa tarefa em termos cognitivos, criando estratégias
para que eles aprendam. Dessa maneira, os objetivos da tarefa, devem estar
claros e serem alcançáveis tanto para o professor quanto para o aluno. Tais
princípios não ficaram evidentes nas práticas observadas na classe de progressão
fraca.
A mudança de lugar nos revela outra característica de dar aula da
professora. Ao mudar de lugar e sentar-se ao lado do aluno, a professora se
colocava numa relação de proximidade com este aluno, mediada pela tarefa, de
maneira que a mesa onde a ela se encontrava passava a ser também a sua mesa.
Embora existisse na sala a “mesa da professora”, esta costumava está ocupada
com materiais escolares - lápis de cor, cadernos - e com as bolsas que a professora
trazia.

Profa: João senta aqui na minha mesa.


138

João permanece sentado onde está.


Profa: João. (A profa o chama novamente e João continua sentado).
Profa: João! João! (João levanta).
Fábio: João a professora tá te chamando!
João pega a mochila e vai para a mesa onde a professora está sentada.

A professora chamou o aluno João para sentar-se à mesa em que ela


estava com outros alunos. Naquele momento, João estava sentado com mais dois
colegas de turma em sua mesa, mas não estava realizando a tarefa. João
permaneceu sentado até que o aluno Fábio interveio e João atendeu a professora.
Percebemos que a proximidade pretendida pela professora ao sentar-se
junto aos alunos parece não ocorrer. Os alunos estabelecem relações de
proximidade e identificação com os seus pares, isto é, com os demais alunos da
sala com os quais ele interage e não com a professora. Tal fato é explicado por
Newcomb (1961 apud RODRIGUES, et. al., 1999, p. 340). Em seus estudos ele
aponta que as pessoas com atitudes semelhantes se tornam amigas. Assim,
observamos que no contexto da sala de aula estudada, a maior parte do tempo,
apesar de a professora mudar de lugar e buscar proximidade física com os
alunos, as atitudes semelhantes entre os alunos os aproximam uns dos outros.
Entendemos que a relação de proximidade e identificação entre professor
e aluno deveria estar pautada numa relação de respeito mútuo, onde a tensão
entre a autoridade do professor e a liberdade do aluno se traduzisse em práticas
conjuntas em sala de aula. Desse modo a proximidade pretendida com as
mudanças de lugar da professora poderiam ser uma atitude que a aproximasse
dos alunos em vez de ser uma um castigo quando do não cumprimento das
tarefas estabelecidas por ela em sala de aula.
O momento da mudança de lugar e verificação do caderno de um aluno é
também quando se observava uma grande movimentação na sala de aula: os
alunos se levantavam e caminhavam pela sala, conversavam com os colegas de
outras mesas com maior freqüência, brincavam e brigavam e, os que
permaneciam sentados ficavam conversando, desenhando ou de cabeça baixa.
Essa movimentação só era interrompida quando a professora, do lugar
onde estava sentada chamava à atenção os alunos – ora do grupo, ora de um
especificamente – que retornavam aos seus lugares, para, logo em seguida,
iniciarem outros afazeres entre si, ou então se levantarem novamente de suas
carteiras.
Nos estudos que tem a sala de aula como locus de observação evidencia-
se que chamar atenção é, muitas vezes, uma tentativa de os professores
manterem a turma organizada e engajada no cumprimento da tarefa escolar
(MATTOS, 1992; CASTRO, 2006; COX & ASSIS-PETERSON, 2001), que, para
139

além de ser uma ferramenta na construção do conhecimento pelo aluno está mais
ligada a necessidade de cumprimento do dever tanto da professora quanto do
próprio aluno. Ao aluno cabe realizar as tarefas escolares e à professora cabe
cobrar e verificar a realização dessa tarefa com vistas ao cumprimento de um
currículo mínimo referente ao grau de ensino em que leciona.
Assim, nos questionamos sobre a idéia de mudar de lugar estar
condicionada aos resultados esperados pela professora no tocante ao
cumprimento da tarefa pelo aluno, onde são utilizadas estratégias que não
valorizam a aprendizagem e o aproveitamento do tempo e espaço de sala de
aula.
Considerações Finais
Ao traçar as considerações finais desse estudo, entendemos ser
fundamental ressaltar as condições da escola básica pública e as condições de
trabalho as quais são submetidos os professores desta escola. A educação básica
tem sido marcada pelo descaso das autoridades frente às necessidades prementes
para o desenvolvimento de um ensino que se sustente no binômio qualidade-
quantidade.
Ao mesmo tempo em que o acesso e permanência a escola foi ampliado,
não houve garantia da qualidade de ensino (OLIVEIRA, 2007). As políticas
públicas educacionais descontínuas e sucessivamente substituídas são impostas a
escola e ignora a realidade vivida pelo professor no contexto de sala de aula. E a
profissão docente, por sua vez, vem padecendo de uma desvalorização que teve
seu início no regime militar e ainda hoje mostra os seus reflexos (FERREIRA,
BITTAR, 2006). Desvalorização traduzida, sobretudo, na baixa remuneração dos
professores. “O respeito que devemos como professores aos educandos dificilmente se
cumpre, se não somos tratados com dignidade e decência pela administração privada ou
pública da educação” (FREIRE, 2004, p.96). Não obstante, a pesquisa educacional
que se orienta, principalmente, pela abordagem etnográfica, ao estudar a sala de
aula na sala de aula, traz a tona os meandros dos processos que envolvem a
dinâmica de ensino e aprendizagem de uma perspectiva micro (ERICKSON,
1992), sem ignorar seu contexto macro, e sem a qual incorremos no erro de
proliferar discursos generalistas que tem como pano de fundo somente as
impressões sobre o espaço escolar.
Feitas essas considerações, apontamos as evidências observadas na sala
de aula locus desse estudo. Nesta sala nos deparamos, de um lado, com uma
professora que precisava cumprir o estatuto de sua profissão, qual seja, levar os
alunos a aprenderem os conteúdos escolares e de outro lado alunos que pareciam
não se adequarem ao modelo de ensino proposto. Este modelo era centrado na
140

realização da tarefa dentro de sala de aula e perpassado pela mudança de lugar


da professora.
A mudança de lugar que, num primeiro momento, parecia ter como
objetivo dar assistência ao aluno traduziu-se num modo de dar aula e ao mesmo
tempo de verificar a tarefa.
A tarefa “compreendida num sentido amplo [...] deve chegar à atividade do
sujeito” (MEIRIEU, p. 192, 1998) ser um instrumento pensado para favorecer o
desenvolvimento cognitivo do aluno (COLL, 1994), bem como sua autonomia no
domínio do saber escolar (LAHIRE, 1997) apresentou-se meramente como uma
atividade-fim em si mesma. Realizar a tarefa era o objetivo da aula, era o
cumprimento do dever do aluno e motivação para professora mudar de lugar e
monitorar de maneira próxima a sua execução.
O modelo de aula adotado pela professora, mudando de lugar, no
entanto, criava um ambiente onde os alunos passavam mais tempo envoltos em
outros afazeres que não realizando a tarefa e fazia com que a professora, por não
se conformar com tal situação, utilizasse uma parte significativa do tempo
individual com o aluno chamando à atenção os demais à necessidade de realizar
a tarefa.
Embora, a professora ao mudar de lugar buscasse estabelecer uma relação
de proximidade com o aluno esta não ocorria. Entendemos que, para que seja
estabelecida tal proximidade esta deveria estar pautada no respeito ao aluno
enquanto sujeito, ao seu saber, ao seu modo de aprender e não somente a relação
que se estabelece decorrente da movimentação dos corpos em sala de aula.
O contexto de realização da tarefa nas classes de progressão já nos fez
questionar em outro momento (FAGUNDES; MATTOS, 2008) a funcionalidade
da tarefa escolar em termos da aprendizagem do aluno, que não está sendo
priorizada no modelo de aula proposto pela professora.
Com isso, entendemos que a relação com o saber e o fazer na escola
precisa ser repensado de modo que as atitudes e a relação da professora e dos
alunos com a tarefa escolar seja também repensado. Na realidade, não somente a
mudança do método de ensino garante a aprendizagem dos alunos no contexto
escolar, mas a mudança de percepção que o professor tem desses alunos
entendendo que, como indivíduos que são, aprendem de maneira diferente uns
dos outros (CERQUEIRA, 2006). Portanto, é fundamental que os professores
conheçam seus alunos e que as mudanças sejam realizadas em virtude das
necessidades de aprendizagem que esse aluno apresenta.
Dessa perspectiva, pensamos em outro tipo de mudança, aquela que diz
que “ensinar exige a convicção de que a mudança é possível” (FREIRE, 2004, p.76).
141

Mudança de mentalidade com relação ao aluno, mudança de atitude


frente a tarefa escolar e estabelecimento de um vínculo outro com o saberes e
fazeres escolares de modo a garantir a esses alunos o direito a uma educação
qualitativamente relevante para sua vida dentro e fora do ambiente escolar.

Referências:

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continuada na visão de professores da rede municipal do Rio de Janeiro em
exercício no projeto. In: XIII Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, 2006,
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interação entre professor e aluno na sala de aula. Dissertação (Mestrado em
Educação) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
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sobre os estilos de aprendizagem e a escuta sensível. Revista de Psicologia da Vetor
Editora, v. 7, nº 1, p. 29-38, Jan./Jun. 2006
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para a aprendizagem ou cumprimento do dever do aluno ? Revista Eletrônica
Espaço do Currículo, João Pessoa-PB, ano 1, nº. 2, nov. 2008. Disponível em:
http://www.aepppc.org.br/revista/. Acesso em: 04/12/08
FERREIRA Jr., Amarílio; BITTAR, Marisa. A ditadura militar e a proletarização
dos professores. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 97, p. 1159-1179, set./dez. 2006
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29ª
Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
JESUS, Lúcia de Fátima. A sala de aula como objeto de estudo: uma análise de
teses e dissertações. In: 26ª Reunião Anual da Anped, 2003, Caxambu.
LAGE, Marta Cristina Wisnescky Ferreira. Imagens de uma sala de aula: um
estudo etnográfico dos processos sócio-educacionais e metacognitivos numa
turma de 8ª série do ensino fundamental público do Rio de Janeiro . 2004. 90 f.
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142

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RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Educação. Os Ciclos do Ensino
Fundamental, Aspectos Históricos, Políticos e Pedagógicos. Portaria nº 15, E-
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Multieducação. Disponível em: http:\\www.rio.rj.gov.br/sme. Acessado em:
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RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKI, Bernardo.
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VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
143

ESCOLA, ESPAÇO DE EXCLUSÃO?


UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O FRACASSO ESCOLAR DE
ALUNOS/AS NO ENSINO FUNDAMENTAL28

Luis Paulo Cruz Borges


Carmen Lúcia Guimarães de Mattos

Tantas vidas encurraladas, manietadas, torturadas, que se


desfazem, tangentes a uma sociedade que se retrai. Entre
esses despossuídos e seus contemporâneos, ergue-se uma
espécie de vidraça cada vez menos transparente. E como são
cada vez menos vistos como alguns escamoteados dessa
sociedade, eles são chamados de excluídos. Mas, ao contrário,
eles estão lá, apertados, encarcerados, incluídos ate a medula!
Eles são absorvidos, devorados, relegados para sempre,
deportados, repudiados, banidos, submissos e decaídos, mas
tão incômodos: uns chatos! (FORRESTER, 1997, p. 15).

Atualmente a exclusão é um conceito usado para explicar os grandes


problemas do mundo: as crises civis, as relações existentes no âmbito do
trabalho, os direitos humanos e sociais, os fenômenos que tangenciam o espaço
escolar, entre outros (CASTEL, 2007). O termo exclusão tem sua origem do latim,
exclusione, que semanticamente significa eliminar, abandonar, expulsar, privar,
afastar e negar. Todavia, percebemos uma nova forma de conotação para este
conceito, a exclusão na inclusão (MARTINS, 1997).
Neste contexto, a escola como um espaço de exclusão para alunos e alunas
do sistema público do ensino fundamental da cidade do Rio de Janeiro é objeto
de estudo deste trabalho. Objetivamos compreender como é construído o artifício
do fracasso escolar no âmbito da escola, ocasionando assim, a exclusão
educacional destes sujeitos. Elegemos o espaço da sala de aula para a realização
das observações participantes, por concordarmos com Castro (2006), que este é
um espaço privilegiado para definição do sucesso ou fracasso do alunado.
Os estudos sobre a exclusão emergem na década de 70, para definir o
status social das pessoas que viviam abaixo da hierarquia do poder econômico e
político (MATTOS, 2002). Os estudos de Mattos (1992; 2002; 2005a) afirmam que
a exclusão é engendrada pela pobreza e tem como eixo central à justiça social e a
qualidade de vida. Corroborando a idéia da autora, Martins (1997), nos fala que o
termo exclusão vem escamoteando a palavra pobreza, tirando assim uma
conotação pejorativa daqueles que sofrem com suas conseqüências.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) atrelado ao
Ministério do Planejamento informa que na década de 90 aproximadamente 55

28 Trabalho apoiado com bolsa de Iniciação Científica PIBIC-CNPq


144

milhões de pessoas no Brasil viviam em situação de pobreza (2002). O IBGE, em


estudos recentes (2006; 2007), informa que a desigualdade social é uma situação
recorrente no Brasil nas últimas décadas, sendo a concentração de renda, a
expressão destas desigualdades sociais, mais evidentes no país. Tais condições
produzem a indigência, a miséria e a violência social, afetando também a
educação.
O espaço da escola se torna um lugar em que a população pobre está
inserida, mas sem aprofundamentos quanto aos conhecimentos sociais e culturais
em que se pretende um ensino da considerada escola “tradicional”, é neste
contexto que é produzida a “escola pobre para o pobre” (GUIMARÃES, 1998).
Este debate se faz necessário, principalmente, quando nos questionamos sobre a
universalização do ensino básico e sua qualidade (OLIVEIRA, 2007).
A escola então cria e reafirma os estereótipos dos alunos pobres que
permeiam este espaço de socialização do conhecimento, e institucionaliza um
modelo de educação de acordo com as classes sociais (FREITAS, 2007). Deste
modo, percebemos que é notável o número de alunos e alunas que vislumbram
através da escola uma possibilidade de ascensão no universo do trabalho, mas
sendo este descartado pela lógica do sistema em que dão aos excluídos a ilusão de
que estão incluídos na escola e, pela obtenção do diploma, no universo do trabalho
(PATTO, 2005, p.33). É nesta conjuntura que o excluído é aquele que procura
uma identidade aceitável frente ao jogo de tensão existente entre a exclusão e
inclusão, mas que se depara, freqüentemente, com a vulnerabilidade da pobreza
(MARTINS, 1997).
A pobreza e a educação estão intimamente ligadas, principalmente, por
constatarmos que grande parte dos alunos e alunas que fracassam na escola, são
das camadas menos abastadas da sociedade. De acordo com Freitas (2007)
colocamos a pobreza na escola e não sabemos como ensiná-la (p.979). Isso, também,
implica em uma nova forma de exclusão, algo que Bourdieu & Champagne
(1998), denominam de exclusão do interior.
Em um contexto escolar, Mattos (2002) nos indica que a exclusão
educacional impede que, tanto crianças, como jovens e adultos, exerçam seus
direitos a cidadania e a autonomia de gerenciamento de suas vidas. Tal condição
cria para esses indivíduos uma contingência que antepara suas possibilidades de
aprendizagem frente ao mundo. Podemos compreender, desta forma, que a
democratização do ensino público, por si só, não garante a qualidade da
educação, mas, o mesmo espaço considerado de inclusão pode ser considerado de
exclusão (VEIGA-NETO, 2007, p.959).

Pressupostos metodológicos
145

O pesquisador deve sempre esforçar-se para aprender a


realidade total e concreta, mesmo que saiba não poder
alcançá-la, a não ser de maneira parcial e limitada...
(GOLDMANN, L. apud PATTO, 1999, p. 26).

Para este estudo, utilizamos a abordagem etnográfica de pesquisa, por


este pressuposto metodológico possuir uma vasta contribuição às pesquisas
sobre desigualdade social e educacional. Esta abordagem permite que os alunos e
alunas tornem-se contribuintes para a construção do conhecimento em pesquisas,
e principalmente as que tenham como campo de estudo a educação (MATTOS,
2002; MEHAN, 1992). Segundo Mehan (1992), o propósito da etnografia na pesquisa
educacional é revelar o que está dentro das caixas pretas da vida rotineira nos ambientes
educacionais (Apud, MATTOS, 2002). Para tal utilizamos a observação
participante em um determinado período no campo (DELAMONT, 1983), e a
descrição densa, que pressupõe uma contribuição para a investigação científica,
como pressuposição a um contexto, dentro de símbolos que podem ser descritos
densamente (GEERTZ, 1989).
Usamos também a microetnografia de sala de aula (ERICKSON, 1971) que
possibilita o entendimento da particularidade de um fenômeno e
concomitantemente, a sua perspectiva holística. Desta forma, a sala de aula
ilustra, como as relações endógenas à escola, contribuem para o entendimento
sobre o processo de exclusão educacional dos alunos e alunas pertencentes a ela.
Quanto às análises, estas ocorreram através do processo indutivo, onde
construímos representações teóricas do problema investigado, partindo do
problema em particular para o geral, sem uma hipótese pré-concebida (MATTOS,
1992). Neste processo o vídeo foi utilizado como um instrumento de pesquisa
etnográfica para auxiliar nas análises dos dados, pois possibilita uma re-visitação
dos eventos e das ações dos sujeitos pesquisados, além da transcrição das ações
ocorridas no dia-a-dia da sala de aula (MATTOS, et al, 2005b).
Os dados deste estudo foram coletados no período de agosto de 2006 a
julho de 2007, no âmbito da pesquisa, Imagens Etnográficas da Inclusão Escolar: o
fracasso escolar na perspectiva do aluno (2008). Observamos duas salas de aula de
uma escola de Ensino Fundamental da Rede Pública de Ensino localizada na
cidade do Rio de Janeiro, além de dois Conselhos de Classe. A duas salas de aula
pesquisadas foram visitadas no período de agosto a dezembro de 2006 em um
Centro Integrado de Educação Pública – CIEP.
As classes observadas foram as de Progressão. De acordo com a Portaria
nº 21 (E-DGED/ 2003) as classes de progressão deveriam ser constituídas por
alunos e alunas formados com idade igual ou superior aos 9 anos. Estas classes
foram criadas em 2001 e tiveram sua finalização no ano de 2006 com
146

implementação de uma nova política – Projeto Especial para Adolescentes 2007.


Nestes espaços designados para “fazer progredirem”, os alunos, contrariamente,
permaneciam em situação de exclusão no interior das escolas, reafirmando mais
uma vez a idéia de Bourdieu & Champagne (1998), dos excluídos do interior. Após
uma longa permanência destes, alunos, nestas classes, tornavam-se passivos
frente às possibilidades de escolarização formal. Assim, o resultado apontado
pela escola era dado ao fracasso e possivelmente à saída da escola (MATTOS,
2007).
Desse modo, a proposta dos Ciclos de Formação e da Classe de
Progressão, que visava integrar e valorizar o processo de aprendizagem dos
alunos acabou por estigmatizar e posteriormente excluir os mesmos do processo
de escolarização sob a justificativa de serem alunos que não aprendem ou ainda,
que não serão capazes de aprender.
Neste contexto escolhemos como participantes primários os alunos e
alunas da Rede Pública de Ensino da cidade do Rio de Janeiro, com idade de 10 a
17 anos de ambos os sexos, como sujeitos construtores das suas próprias
histórias. Como participantes secundários às professoras/es, diretoras e
coordenadoras pedagógicas das escolas estudadas. Segundo Mattos (2002) os
participantes de um estudo constroem conhecimentos sobre a sua própria
realidade, contribuindo para as interpretações e significações dos dados de uma
pesquisa.
Cientes da complexidade de nossa investigação procuramos garantir a
qualidade dos dados e dos resultados através de um diálogo teórico através do
estudo com um Seminário Permanente, cujo tema principal, foi Fracasso Escolar.
O Seminário Permanente foi uma das instâncias que possibilitou ao grupo de
pesquisa o aprofundamento teórico e metodológico sobre o tema.
O objetivo do seminário era fazer um estado da arte sobre o fracasso
escolar no estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo a partir de
trabalhos científicos da última década, dedicando especial atenção às pesquisas
etnográficas e estatísticas que tratam da temática como problema primordial, de
forma a contribuir para informar sobre a natureza da exclusão e das injustiças
sócio-educacional, com vistas a contribuir teoricamente para discussão sobre a
temática, a uma construção coletiva de alternativas para questões que facilitem a
inclusão educacional de alunos em situação de vulnerabilidade, fazendo com que
tenham o pleno exercício da cidadania, a autodeterminação na construção de sua
identidade emancipatória e a garantia do seu direito pleno à educação.

A construção da exclusão: o estigma em sala de aula.


147

A exclusão ocorre pela delimitação do espaço a ser ocupado


pelos corpos estigmatizados tornando, assim, invisível à
sociedade o sujeito do estigma (CASTRO 2006, p.152).
Os resultados que apresentaremos a partir de agora, correspondem a
argumentações através da construção do conhecimento que emerge das relações
sociais existentes em sala de aula. Este espaço é um importante lócus de
observação como forma de entender a dinâmica escolar.
Compreendemos que as formas de exclusão educacional de alunos e
alunas podem ocorrer, dentro do espaço da escola, através de mecanismos de
estigmatização, quais sejam na interação entre professor-aluno; nas relações de
poder estabelecidas na instituição escolar e nas marcas culturais trazidas pelos
alunos de suas casas.
O estigma é uma forma de classificação que tem sua origem etimológica
do grego e denota um sentido de agrupamento através de características comuns
de um determinado fenômeno, coisa ou indivíduos (GOOFFMAN, 1978). As
formas de estigma são usadas ao longo dos tempos para evidenciar determinados
grupos, através de uma homogeneização, e assim contribuindo para a exclusão
(CASTRO, 2006).
As Classes de Progressão representam um espaço para um grupo de
alunos e alunas que não “aprenderam” e que são culpabilizados pelo seu próprio
fracasso. Entretanto, através da fala de uma das diretoras nos deparamos com
uma subclassificação: a turma “forte” e a “fraca”. Segundo Patto (1999) esta
divisão dos alunos em busca da homogeneidade é ilusória e perigosa, pois é estigmatizante
e mais impeditiva que benéfica à progressão escolar (p.258).
Foucault indica que a subdivisão – forte e fraca - está a serviço do poder
instituído, ou seja, serve tanto para disciplinar como para castigar os alunos.

“[...] A divisão segundo as classificações ou os graus tem um


duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as
competências e as aptidões; mas também castigar e
recompensar. Funcionamento penal da ordenação e caráter
ordinal da sanção. A disciplina recompensa unicamente pelos
jogos das promoções que permitem hierarquias e lugares;
pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de
classificação vale como recompensa ou punição”.
(FOUCAULT, 1987, p, 151).
Assim, a estigmatização não estaria reduzida a uma aparência física que
cause desgosto, mas também a comportamentos que escapam à padronização
escolar (CASTRO, 2006). O estudo de Castro apontou que, assim como na
sociedade, também na escola, os alunos, quando não se encaixam nos padrões de
normalidade impostos, estes recebem uma marca atribuída, passando a ser
reconhecido no meio escolar por tais atribuições (p.87).
148

De acordo com nossa pesquisa, nas falas dos docentes nos Conselhos de
Classe, encontramos as reafirmações das situações onde o estigma é um
instrumento que contribui para o fracasso escolar e possivelmente para a
exclusão educacional.

Professora 1: Eu tenho dois analfabetos, que tem um, agora são semi, mas que um está no auxílio
com a Maria. (professora de reforço escolar), mas assim, não sabiam escrever nem o nome na
terceira série, tá? Então é assim, é, esses dois. Essas duas alunas receberam atendimento
especializado da minha parte, da parte da Maria (professora de reforço escolar). Agora, o restante
eu consegui desenvolver, sendo que tenho três alunos com tendências, quer dizer, classificadas,
TDAH, são pessoas influídas.

A fala de uma das professoras no Conselho de Classe evidencia que a


mesma, cria uma marca para o aluno que não aprende. A tendência ou a
classificação, dos mesmos, com o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção com
Hiperatividade) os coloca em uma situação de não aprendizagem com causas
neurológicas, genéticas de pessoas influídas, ou seja, que não fluem na explicação
dada por ela, que não aprendem. A professora ainda remonta pejorativamente a
palavra, “influída”, o que resultou em uma impossibilidade do aluno de
“evoluir” em condições de aprendizagem.

Professora 2: Wanderley é aquele caso, é, é, é.... Mara, quem continua saindo todo dia ao meio
dia. A Anita, ela é difícil. Mas, ficar com o Wanderley, aquele rapazinho, aquele aluno que pega a
Luana, largava todos os dias ao meio dia. Ela não (...) porque ela é uma boa aluna. Mas, ele nunca
quis nada com o estudo. Como eu cobro muito, ele deixou de vir às aulas, porque ele viu que ele não
consegue acompanhar. E quer fazer bagunça e eu não aceito fazer bagunça na sala. Então eu acho
que é até um problema, é... De ele não aceitar ficar na escola.

Esta segunda fala nos mostra outra marca colocada sobre este aluno que,
na perspectiva da professora, não quer aprender. A chamada bagunça dos alunos
tem se revelado em vários estudos (MATTOS, 1992; LAGE, 2004) que se realizam
no contexto de sala de aula como uma categoria que interfere diretamente no
sucesso ou no fracasso do alunado. Parece haver um consenso de que o aluno
bagunceiro ao não acompanhar a turma “sai” da escola. O problema parece estar
em uma não aceitação pelo aluno das regras estabelecidas pela escola e, portanto,
continua se insurgindo sobre as mesmas. Os que resistem são diferentes dos que
se adaptam, sem resistência, sem contestação, a esse processo de regularização
pela escola (GIROUX, 1997).
As Classes de Progressão, desta forma, segundo Mattos (2007),
representam mais uma política de enfrentamento ao fracasso escolar que não
obteve êxito com sua implementação na cidade do Rio de Janeiro. Segundo a
autora, esta medida, assim como tantas outras políticas de correção do fluxo
escolar, se tornou uma ação de descontinuidade e pouco eficaz frente à realidade
do Ensino Fundamental do país e em especial nesta cidade. As Classes de
149

Progressão, que observamos em 2006 nas escolas públicas da cidade do Rio de


Janeiro, traz em sua prática, contradições e problemas quanto à garantia da
aprendizagem de seus sujeitos.
Na perspectiva de Souza (1999; 2001) as Turmas de Progressão
representam um lugar que deveria ser valorizado e receber uma atenção que
constituísse estes espaços como possibilidade de criação de novas formas de
potencializar uma aprendizagem onde tanto o corpo discente quanto o corpo
docente, descubram e re-descubram o processo de ensino e aprendizagem, e
sejam capazes de construir uma trajetória escolar profícua.
As Turmas de Progressão representam desta forma um espaço de
observação no qual as vozes não escutadas de alunos e alunos representam uma
“pseudo-universalização” do ensino, que é entendida como uma expansão do
ensino fundamental e médio, que supera histórico processo de exclusão, é explicar as
novas contradições e demandas decorrentes desse processo, procurando, com isso,
evidenciar o novo lócus e natureza da exclusão educacional (OLIVEIRA, 2007, p. 666),
caracterizados por alunos oriundos das turmas do fracasso escolar.
Essas formas sutis de definição do espaço escolar redefinem a interação
entre professor-aluno, as relações de poder e as marcas culturais e perpassam a
escola implicando em uma relação entre o aluno da progressão daquele que não
é, o aluno estigmatizado do aluno que não é. Assim, estas relações determinariam
os sujeitos que conseguiriam aprender daqueles que não aprenderiam. No
contexto deste estudo, a turma “fraca” e a turma “forte”, o aluno capaz do aluno
incapaz, se configuraram como características, que indicam, o sucesso ou o
fracasso escolar, a exclusão ou a inclusão dos alunos da escola pública.

Considerações Finais

“Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo que não sei e –
por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que
não sei é a minha parte maior e melhor: É a minha largueza. É com
ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a
minha verdade”. (Clarice Lispector)
Este texto abordou a temática da exclusão educacional que ocorre no
espaço da escola e em especial na sala de aula. Analisamos através de uma
perspectiva etnográfica que o fracasso escolar de alunos e alunas de uma escola
pública do Ensino Fundamental no Rio de Janeiro ocorre através de mecanismos
de estigmatização que atrela ao alunado que não aprende um marca indelével de
incapacidade.
Acreditamos desta forma que a pesquisa etnográfica contribui, pela
possibilidade de compreender a realidade, permitindo um diálogo constante
entre as diferenças e os seus significados (MATTOS & CASTRO, 2005c).
150

Constatamos, que existe na escola uma articulação em que a exclusão


educacional de alunos e alunas é vista como um problema que está no centro das
questões do processo de ensino-aprendizagem. Nossas análises e resultados
apontam que a exclusão educacional destes sujeitos ocorre, portanto, inicialmente
no espaço intra-escolar, sendo assim, os milhares de alunos e alunas que
fracassam na escola encontram se contingenciados29 em uma realidade social de
exclusão, tornando-se ora passivos frente às possibilidades de aprendizagem, ora
resistentes a ela.
Ao nos depararmos com esta realidade escolar, pretendida como capaz de
superar as desigualdades educacionais, nós nos questionamos, sobre o papel da
escola para esses alunos e alunas. Como nos indica o estudo de Candau e
Moreira (2003), é necessária uma releitura da própria visão de educação. É indispensável
desenvolver um novo olhar, uma nova ótica, uma sensibilidade diferente (p.166). É neste
ponto que pesam os eventos observados durante a pesquisa, que culminaram no
esvaziamento da cultura do aluno desconsiderando a sua busca por outras
formas de conhecimento.
A escola ao proporcionar um ambiente de aprendizagem percebido por
seus atores como um espaço de construção de saber e significados em que seja
possível a construção de práticas pedagógicas e curriculares a partir de uma
pedagogia culturalmente sensível à diversidade do ato de ensinar e aprender.

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29 Contingência é a condição de submissão dos desejos e expectativas de um indivíduo à sua realidade social.
Parte de uma situação de contingência é o indivíduo vivendo uma situação-limite e na expectativa de um
inédito-viável que vá transformar a sua vida e que lhe traga uma nova perspectiva diante, por exemplo, da
pobreza, miséria, do analfabetismo. (MATTOS & FACÍON, 2005, p.26).
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