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Análise da experiência narrada no vídeo Jongo: uma roda pela igualdade

a partir das teorias pós-críticas e do currículo cultural

Danielle Carvalho

Nesse texto, busco relacionar as atividades desenvolvidas no vídeo com os


conteúdos estudados nos encontros com foco no processo de tematização,
tendo em vista a influência de princípios ético-políticos e da teoria da ecologia
dos saberes.

À frente da pesquisa sobre o Jongo, a proposta da escola de nomear as


turmas em homenagem às mulheres negras que foram/são importantes para a
história e cultura do país além de fomentar o estudo sobre essas personas
indica uma ação que se encaixa como pós-colonialista e multiculturalista,
teorias intrínsecas ao estudo pós-crítico. Resgatando esses conceitos,
Cledineia Carvalho Santos pontua que

Para os teóricos desta corrente, o Pós-colonialismo propõe


descolonizar o pensamento a partir da crítica ao modelo
imperialista eurocentrado numa nova concepção de produção
epistemológica do Sul para O sul, pois até então as relações
entre os povos subalternizados e os colonizadores foi uma
relação de poder do modelo hegemônico.1
Dessa forma, o pós-colonialismo possibilita uma visão de Mundo dilatada e
abre espaço para outras vozes, antes silenciadas, contar suas próprias
histórias. Nessa mesma linha de pensamento, e atuando de forma síncrona, é
possível perceber o multiculturalismo crítico presente no ideal da atividade, já
que se propõe uma pesquisa sobre membros da cultura brasileira de diferentes
origens, trazendo luz a diferentes culturas e desvelando a variedade dos povos
que compõem a sociedade brasileira.

Uma educação multicultural deve por a ênfase na


vinculação entre os programas escolares e a aprendizagem
informal produzida dentro e fora da escola; deve impedir que as
identidades sejam essencializadas ou reduzidas a uma versão
identitária estereotipada; deve favorecer o desenvolvimento de

1
SANTOS, Cledineia Carvalho. Educação, estudos póscoloniais e decolonialidade: Diálogos
com a Lei 11.645/08. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e
Contemporaneidade – UESB. ISSN: 2525-4715 – Ano 2018, Volume 3, número 5. Bahia:
janeiro – Junho de 2018.

1
competências e a interação de pessoas em uma nova cultura e,
portanto, se opõe a ambientes escolares homogeneizadores;
promove que os indivíduos aprendam competências em múltiplas
culturas e, por último, [deve] favorecer nos estudantes a
consciência da multiplicidade cultural que os rodeia e na qual
ingressam.2
Reintegrando as teorias ao vídeo analisado, em um segundo momento da
vivência é possível observar uma situação didática embasada nos princípios
supracitados.

Através da pesquisa sobre Clementina Maria de Jesus, surgiu a questão


acerca da palavra JONGO. Essa dúvida se desdobrou com a leitura da música
“Rainha Quelé”, escrita por Dona Ivone Lara em homenagem à Clementina de
Jesus, também conhecida como “Quelé”. Aqui destaco a utilização da música
popular como ferramenta de estudo e a atenção às referências que as crianças
possuíam sobre o que era lido.

Foi a partir da necessidade de construção de um significado que a


Tematização se iniciou. A busca por compreender o Jongo passou por
diferentes processos e espaços e alcançou não só as crianças, mas também
comunidade escolar, pais e mães e comunidade.

Inicialmente a professora Carolina Hamburguer buscou compreender quais


conhecimentos as crianças possuíam sobre o tema, realizando um
mapeamento e favorecendo a opinião dos discentes no processo de
construção do significado. Após verificar que o termo era “desconhecido”,
instigou as crianças a realizarem pesquisas, e as opções dadas por elas foram
realizadas.

Um dos mecanismos de pesquisa foi a de entrevista com os funcionários da


escola e com os moradores mais próximos. Esse procedimento parte do
reconhecimento da cultura da comunidade e sua importância como fonte de
conhecimento, desvencilhando o rigor científico e conteudista como forma de
saber. Ademais que engloba a criança na sociedade, expande o território e o
“saber” para além dos muros da escola e dá lugar para uma construção de
significados transversal humanizada.

2
MARTÍNEZ, Maria Elena. Entre identidades y diferencias: pensando acerca de la escola-
rización y el pluralismo em contextos latinoamericanos. In: CANDAU, Vera Maria (Org.).
Cultura(s) e educação:entre o crítico e o pós-crítico. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

2
Nesse processo de ampliação do conhecimento, as crianças tiveram
encontros com dois jongueiros: a Aninha e o Paulinho. Em cada um dos
encontros elementos foram sendo acrescentados às aulas, como saias de chita
e pequenos tambores, que proporcionaram um envolvimento ainda maior das
crianças e possibilitou identificações com a prática do jongo, seja ela na dança
ou na banda (instrumentos).

Através desses encontros, fica evidente a potência que as vivências


possuem e como trazem à tona referências antes ignoradas, reconhecendo o
que se é estudado com a vida, como o que foi apontado por algumas crianças:
a similaridade sonora/rítmica do Jongo com o samba e o pagode.

Outros mecanismos de pesquisa utilizados foram o computador, onde as


crianças tiveram acesso a diversas imagens da “prática do jongo”, e a sala de
vídeo, onde assistiram a grupos dançando o Jongo, refletindo na construção e
aprofundamento do sentido do termo e potencializando a experimentação em
seus corpos.

Ainda no processo de significação as crianças participaram de um jogo que


foi criado pela professora Carolina e que se baseou em uma matéria da revista
Ciência Hoje, chamada “Jongo, o avô do samba”. Nesse jogo percebeu-se uma
ligação entre o tema estudado e uma “musa” de outra turma, Dandara dos
Palmares. Assim, as turmas se encontraram e trocaram suas ideias,
conhecimentos e vivências sobre a África, o Jongo e a cultura africana, tecendo
uma teia de conhecimentos sobre o processo de constituição da cultura
brasileira.

Fazendo um recorte desses encaminhamentos pedagógicos e situações


didáticas é possível correlacionar os diversos estímulos de pesquisa e fonte de
conhecimento ao que se entende como ecologia dos saberes

A ecologia dos saberes se opõe à lógica da monocultura do


conhecimento e do rigor científicos, e identifica outros saberes e
critérios de rigor e validez que operam de forma crível em
práticas sociais que a razão metonímica declara não existentes.
Neste sentido, a ideia central da sociologia das ausências é que
não existem a ignorância nem o conhecimento em geral. [...] Na
ecologia dos saberes, buscar credibilidade para os
conhecimentos não científicos não leva a desacreditar o

3
conhecimento científico. Implica, pelo contrário, utilizá-lo em um
contexto mais amplo de diálogo com outros conhecimentos.3
Nesse modelo de compreensão dos diversos saberes do mundo, podemos
enxergar como é possível atrelar o conhecimento científico ao social-cultural,
sem uma ideia maniqueísta destes e sem hierarquizar poderes de maior ou
menor valia. Além de agir contra a ideia do epistemicídio, onde ocorre a
supressão dos conhecimentos locais em detrimento de conhecimentos
exteriores/importados/colonizados.

Observando as demais partes do vídeo percebi outro ponto importante no


processo de tematização: o registro e a avaliação, afinal é preciso estudar e
rever os procedimentos realizados e compreender os pontos positivos e
negativos, da mesma forma que fomentar na criança atividades que busquem a
assimilação e sintetização dos assuntos. A partir desse ponto de vista fica
evidente o cuidado com os processos de filmagem, elaboração de materiais em
horários extraclasse e o estudo sobre membros atuantes da prática do Jongo,
de maneira a somar no processo de significação da turma.

Seguindo concomitantemente a essa linha, Carolina também propõe à turma


a utilização do desenho como ferramenta de sistematização dos seus estudos.
Os desenhos, feitos à lápis, são criados com base nas experiências vividas e
nas pesquisas realizadas e revelam o aprofundamento do estudo das crianças
a cerca do tema. Em um primeiro momento revelam corpos dançantes
coloridos com tinta guache; em um segundo momento, já mostram alguns
corpos nomeados e vivências de jongo realizadas por eles mesmo, coloridos
com estampas de tecidos similares aos das saias que as crianças utilizam na
aula e que foi um elemento levantado como presente na prática do Jongo.

Essas atividades demonstram o quão significativo é o processo de


tematização e como suas práticas pedagógicas de cunho democrático
desempenham ressignificações e o pertencimento. Ressignificação essa que
advém da leitura de um signo através de outras vozes e fontes, o que
possibilita a reelaboração do significado já tido, ampliando a visão de mundo
antes concebida e o senso de respeito à diversidade cultural. Pertencimento
3
SANTOS, Boaventura de Sousa. Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Esencial.
Volume I: Para um pensamento alternativo de alternativas. Buenos Aires – CLACSO: novembro
de 2018.

4
esse que inclui o saber do discente e da sociedade como qualificados, que
abarca a vivência, a história e a cultura local, e da criança, como material de
estudo, possibilitando a proximidade do que se é estudo ao que a criança vive,
vê, se relaciona ou entende como parte de sua identidade.

Retornando ao vídeo, sua finalização acontece com a apresentação de uma


coreografia criada pelos próprios estudantes para a música “Muriquinho
Piquinino”, de Clementina de Jesus, e em seguida uma roda de Jongo. A
apresentação aconteceu na calçada da EMEI Nelson Mandela e contou com a
presença de uma banda de jongueiros que tocaram ao vivo na apresentação.

Importante ressaltar que por mais que o processo do estudo tenha se


encaminhado para uma apresentação o processo de tematização não
necessita, necessariamente, de um produto final, esse é um dos maiores
diferenciais da proposta da tematização em relação aos projetos.

É possível compreender como o momento da apresentação aparece muito


mais como uma forma de trazer para a comunidade o que aprenderam sobre o
assunto, como um retorno da pesquisa anteriormente feita, e a proposta de
vivências à todos e todas, a fim de construir uma significação ainda maior para
o tema estudado.

Considerando todos os momentos aqui citados é possível apontar elementos


pertinentes ao processo de tematização, tais como: o mapeamento, a vivência,
a leitura da prática social, a ressignificação, o aprofundamento e a ampliação
dos conhecimentos e ato de registro e avaliação. Esses tópicos não desenham
uma ordem que precisa ser seguida, mas meios pelos quais o currículo cultural
busca uma educação humanizada, democrática e libertadora4.

Danielle

Excelente análise. Confrontou o relato em vídeo da tematização do jongo


artistada pela professora Carolina com o referencial epistemológico e
metodológico do currículo cultural. Identificou e justificou adequadamente, seus
4
O termo “libertadora” faz menção a ideologia de Paulo Freire: a Educação como prática da
Liberdade pensa numa educação que promova a libertação dos homens, uma educação
pautada nos princípios da democracia e da justiça – uma pedagogia para homens livres.
FREIRE, Paulo (1967). Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997.

5
princípios ético-políticos e os encaminhamentos pedagógicos, destacando os
conhecimentos acessados pelas crianças.

Marcos

Referências

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6
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SANTOS, Cledineia Carvalho. Educação, estudos póscoloniais e


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Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB. ISSN:
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Disponível em: <file:///C:/Users/danie/Downloads/Dialnet-
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