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Trabalho de Conclusão de Curso: Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Indígenas

na Educação

Tradição: Memória e História em constante reinvenção

Autora: Beatriz Christov Masini


Orientadora: Vivian Parreira da Silva

São Paulo, março de 2020


Resumo
Este artigo discute os usos da palavra Tradição e busca, a partir de uma proposta de
educação decolonizadora, compreender suas implicações na forma como a sociedade
ocidental desvaloriza, inferioriza e apaga epistemologias que são diferentes do que
conhecemos como ciência e “verdade”. A partir desta análise, esse artigo ressalta a
importância da valorização da oralidade, da memória e das histórias que são fatores
essenciais para a formação de identidades dos que estão “do outro lado da linha”
(SANTOS, 2007).

Palavras chave: Tradição; Educação; Oralidade; Decolonialidade.


3

Introdução

A formação em Ciências Sociais e a grande influência da minha família de


educadores, que sempre me incentivou à consciência crítica e a participação política,
me fez desenvolver um grande interesse pelas questões indígenas, principalmente na
área da Educação. Meu trabalho de conclusão de curso na graduação foi sobre uma
escola indígena, localizada em Tocantínia, no estado de Tocantins, e que funciona em
uma parceria entre o estado e a Cia de Jesus1. A questão que abordei, e que considero
ainda muito importante, é a formação da identidade dessas crianças, que vivem tão
perto da cidade e tem uma educação católica e indígena ao mesmo tempo. Considero
relevante abordar este trabalho anterior por, a partir dele, conseguir questionar
abordagens educacionais e ideológicas as quais as crianças indígenas são submetidas
dentro das escolas formais.
O Centro Educativo Fé e Alegria Frei Antônio atende cerca de 700 alunos, no
ensino fundamental II e ensino médio; sendo estes alunos indígenas da etnia Xerente e
alunos não indígenas. O Centro Educativo conta com um corpo docente formado
também por professores indígenas e não indígenas, com a direção e coordenação
pedagógica sendo composta por professores indígenas. Considero a escola em questão
um exemplo de inclusão e preservação das culturas indígenas na educação, pois para
além do bilinguismo, incluir festividades e atividades essenciais do povo Xerente no
calendário escolar, respeitando suas particularidades e ressaltando sua importância
para a comunidade atendida. Apesar das diversas contradições que esse tema levanta,
fui me interessando cada vez mais por ele.
Consigo lembrar de diversas experiências, durante a minha
infância/adolescência, que me influenciaram muito para seguir os caminhos acadêmicos
em que cheguei hoje. Destaco três situações que me marcaram neste caminho: (1)
Fórum Social Mundial de 2003, em Porto Alegre, foi o primeiro evento de grande porte
em que acompanhei minha mãe, que na época era da equipe do Instituto Paulo Freire e

1
A Cia de Jesus, órgão da Igreja Católica, mantém um projeto de Educação Popular Integral,
chamado Fé e Alegria. Desde 1981, Fé e Alegria Brasil ampliou seu trabalho e atende,
atualmente, mais de 13 mil pessoas, entre crianças, jovens e adultos, em 20 cidades de 14
estados. No mundo, são 1,5 milhões de pessoas, em 21 países da América Latina, Europa e
África, em cerca de 4.000 centros educativos e sociais, em 3.000 pontos geográficos.
4

trabalhava na formação de professores para o Projeto MOVA-Brasil2. (2) 5º Fórum de


Educação Ambiental, em 2004, em Goiânia. Eu tinha 10 anos e fui acompanhando
minha mãe que foi ao evento a trabalho, lembro de assistir documentários e conhecer
pessoas nesse ambiente que me deixaram, aos 10 anos, muito impressionada e
curiosa, entre eles, diversos povos indígenas da América Latina. (3) III Encontro
Nacional de Educação, Saúde e Cultura Populares, em 2008, na Universidade Federal
de Uberlândia, aos 14 anos -ainda muito nova- consegui aproveitar mais a experiência e
conhecer pessoas que mantenho contato até hoje.
Acredito que esses eventos marcantes e também as pessoas que conheci, por
terem envolvimento em movimentos sociais e engajados na luta pela educação popular,
me fizeram ter, logo cedo, uma perspectiva aberta para as diversas possibilidades de
construção política, cultural e educacional, me levando, em 2013 à Escola de Sociologia
e Política de São Paulo, onde me graduei em Sociologia e Política e me formei em
2016. A universidade, mesmo sendo um ambiente que me abriu para diversas
reflexões, me deixou com a sensação de falta quando pensamos as questões
relacionadas aos povos indígenas e afro-brasileiros. Na graduação, cursei apenas duas
disciplinas que abordaram esses temas, e fiquei muito curiosa sobre eles e querendo
conhecer cada vez mais. Neste momento, já sabia que me interessava pela
antropologia.
A pós-graduação Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Indígenas na Educação,
realizada em A Casa Tombada, me apresentou referências essenciais que
complementam ainda mais os conhecimentos antropológicos adquiridos na graduação e
também apresentou referências de outras áreas que eu não tinha acesso anteriormente.
Temas que sempre me interessaram como: oralidade, tradição e a identidade,
foram abordados em disciplinas que me influenciaram na escolha do tema para
construção do trabalho de conclusão de curso. Destaco as experiências que pudemos
dialogar sobre oralidade e decolonialidade.
A reflexão que levanto neste trabalho é sobre o conceito ocidental de tradição e
a formação da identidade indígena, penso que esse conceito -tradição- não se adequa
totalmente para analisar os povos indígenas, por estar relacionado a uma ideia de
história eurocêntrica. Este viés eurocêntrico promove um modo de agir fundado em
práticas, conhecimentos e conceitos forjados à luz europeia. Isto, nos leva a praticar
2
Mova surgiu em 1989 em São Paulo durante a gestão de Paulo Freire na secretaria municipal
de educação de São Paulo, como uma proposta para combater o analfabetismo entre jovens e
adultos
5

uma forma de pensar, educar e formar pessoas tendo como centralidade apenas uma
visão de mundo, e neste caso a visão eurocêntrica.
Acredito que se referir ao modo de produção e reprodução de conhecimento dos
indígenas como “tradição” não é necessariamente o mais adequado por não considerar
a ideia de saberes que se vivenciam e de “memória viva”, conceito citado por Jerá
Guarani, professora e uma das lideranças da aldeia tekoa Kalipety, em São Paulo 3.
Para essa discussão, acho importante pontuar os motivos dessa minha indagação,
baseada em “A invenção das Tradições” (1983), onde a ideia de tradição está
diretamente ligada a um passado, Hobsbawm propõe classificar as tradições em três
categorias superpostas, que são: a) as que estabelecem ou simbolizam a coesão social
ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) as
que estabelecem ou legitimam instituições, status, ou relação de autoridade e c)
aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de
valores e padrões de comportamento.
Tendo isso em mente, acredito que a categoria mais adequada seria a c), mas
deixo em aberto para a realização de uma futura pesquisa e conversas, que acredito
serem necessárias para compreender qual a visão de povos indígenas sobre essa
questão. Minha hipótese é que há uma contradição e talvez uma facilitação do discurso
ao usarmos nossos termos para descrever relações que são diferentes das nossas e
talvez não tenhamos vocabulário para expressá-las.
A discussão de Ecléa Bosi em “O tempo vivo da memória” nos traz reflexões
importantes sobre como a “memória oral” é um instrumento essencial para
compreendermos e notarmos a sensibilidade e as subjetividades daqueles que contam
suas histórias. “A fonte oral sugere mais que afirma, caminha em curvas e desvios
obrigando a uma interpretação sutil e rigorosa” (BOSI, 2006. p 20).
A autora nos mostra que a ideia que está estabelecida na nossa sociedade é a
de uma narrativa coletiva, criada por um grupo específico e disseminada como legítima
e verdadeira, que coloca como inválidas ou menos importantes aquelas que estão fora
da considerada oficial. Ecléa nos traz um ponto muito importante para a discussão que
proponho que é o esquecimento. Quais são as histórias que escolhemos não contar?

3
Durante o curso de pós-graduação citado anteriormente, no dia 29 de junho de 2019, fizemos
uma visita à aldeia tekoa Kalipety e fomos recepcionados por Jerá Guarani. Nesta visita, entre
outras atividades, Jerá nos recebeu na casa de rezas da aldeia e lá nos contou sua trajetória
como mulher indígena, educadora e militante. Sua fala foi um dos fatores que me motivaram a
pensar este trabalho.
6

Nas escolas e na forma de educar as crianças na nossa sociedade, temos o


hábito de desconsiderar toda a complexidade que essas crianças já trazem em si. Uma
frase marcante da fala de Jerá4 é que a ideia de “ir à escola para ser alguém” não faz
sentido, todos já são um alguém, com ou sem a educação formal, a linguagem e
referência ocidental e do não-indígena.

Não podemos falar de crianças de um povo indígena sem entender


como esse povo pensa o que é ser criança e sem entender o lugar que
elas ocupam naquela sociedade – e o mesmo vale para as crianças
nas escolas de uma metrópole. (Cohn, 2005, p.9)

As referências bibliográficas do curso me levaram a perceber, cada vez mais,


como a Educação é o caminho para o giro 5 no nosso pensamento de como
interpretamos nossa relação com o modo de produzir e reproduzir os diversos tipos de
conhecimentos, levando em consideração as diversas epistemologias, sem hierarquias.

Do outro lado da linha

A discussão de Boaventura de Sousa Santos sobre o Pensamento Abissal, a


ideia da impossibilidade da copresença dos conhecimentos “deste lado da linha” -
pensamento ocidental: ciência filosofia, teologia- e “do outro lado da linha” -
epistemologias indígenas e não-brancas em geral-, é um dos eixos para a elaboração
deste trabalho.
O autor aponta como “este lado da linha” prevalece e tem se mantido como o
“conhecimento oficial” através do apagamento e desvalorização de outras
epistemologias, criando uma ideia de verdadeiro e falso, mas nunca uma relação
dialética com “o outro lado da linha”, com o que está para além desse universo de
verdadeiro e falso.
Boaventura mostra como a ciência e o direito, fundamentos que a sociedade ocidental
tem como seus pilares, “representam as manifestações mais cabais do pensamento
abissal” (2007, p 72), dando à ciência o monopólio do conhecimento e do que se

4
Fala realizada no dia 29 de junho de 2019, no encontro citado anteriormente.
5
O conceito “Giro decolonial” foi cunhado por Nelson Maldonado-Torres em 2005 e se baseia
em um movimento de resistência, como um terceiro elemento, que se contrapõe à dualidade
modernidade/colonialidade.
7

encaixa em verdadeiro ou falso.

Em cada um dos dois grandes domínios — a ciência e o direito — as


divisões levadas a cabo pelas linhas globais são abissais no sentido de
que eliminam definitivamente quaisquer realidades que se encontrem
do outro lado da linha. Essa negação radical de co-presença
fundamenta a afirmação da diferença radical que deste lado da linha
separa o verdadeiro do falso, o legal e o ilegal. O outro lado da linha
compreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas
invisíveis, assim como seus autores, e sem uma localização territorial
fixa. (SANTOS, 2007, p. 73)

Para além disso, Boaventura discorre sobre os contratos sociais dos séculos
XVII e XVIII, concepções que silenciam diversas questões humanas e cria categorias
problemáticas como “homem metropolitano” e “estado de natureza”, colocando nesta
segunda categoria tudo que é deplorável na humanidade e criando uma linha abissal,
aqueles que fazem parte do estado de natureza são condenados a nunca escapar
dessa condição por via da criação de uma sociedade civil.
A partir de Simas e Rufino, com “A ciência encantada das macumbas” e
“Pedagogia das encruzilhadas”, podemos abordar a ideia de como o pensamento
ocidental e colonizador se estrutura no racismo epistêmico, a partir de um projeto de
morte e de precarização de potências de qualquer epistemologia e de formas de viver
que não estejam “deste lado da linha”. Os autores nos apresentam uma nova
possibilidade conceitual, neste caso através da macumba. Esta possibilidade
epistemológica, pode nos ajudar a dialogar com as mais diversas cosmologias que
também existem nas frestas e nos vazios deixados pela colonização, já que estas
visões de mundo não pensam na eliminação e no extermínio epistemológico, pelo
contrário, elas promovem a coexistência, valorização dos sujeitos e suas
ancestralidades.
Considero essas reflexões relevantes pois meu ponto é discutir sobre como a
formação da identidade “do outro lado da linha”, a partir de epistemologias que são
desvalorizadas e constantemente sofrem com seu apagamento na nossa sociedade,
tem resistido através de diversas formas, seja da contação de histórias, mitos,
alimentação (como é o caso dos Guarani em São Paulo) e também pela educação
formal ocidental. Uma questão que me faz pensar sobre esse tema foi uma afirmação
absurda do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em que ele diz que “os indígenas
8

querem ser o que nós somos e querem ter o que nós temos”6, tirando dessa população
a validação da afirmação de identidade e indicando que esses povos, para ter acesso
“ao que nós temos”, devem deixar de “ser o que são”.
Considero importante discutir essa afirmação ao abordar esse tema pois isso é
muito comum no imaginário brasileiro, o que gera ainda mais preconceito e exclusão
por não considerarmos a importância da conservação da cultura indígena através da
oralidade e da vivência, tentando incluí-los na nossa sociedade fazendo-os se separar
de quem são e de sua origem.
Uma questão a se apontar é a ideia da tutela do indígena pelo homem branco e
como isso gera uma ideologia que prega que os povos indígenas precisam de auxílio
para se organizarem enquanto sociedade, ignorando suas instituições políticas
originárias.

Tradição: De onde vem e o que significa

(Tradição: Ato ou efeito de transmitir ou entregar; transferência.)7

Para iniciarmos a discussão proposta anteriormente, considero necessário


entendermos melhor o que o termo “tradição” significa na narrativa ocidental; o que
significou anteriormente e com qual carga o aplicamos hoje. A palavra tradição tem
como ideia central a noção de transmissão e troca contínua. A conotação negativa é
recente, em sua origem, era ligada ao progresso. O discurso ocidental tende a ligar à
tradição a ideia de arcaico, atraso, imobilidade e ao purismo. Para entendermos melhor
essa discussão, considero importante abordarmos a origem da “história nacional” e a
criação das Letras8. Com a criação da educação “nacional”, temos como resultado a
marginalização de culturas regionais, povos considerados “atrasados” que são fadados
ao esquecimento e a morte por uma ideia falsa de superioridade da cultura nacional. As
Letras, no limite, resultam no desprezo pelas línguas populares.
Um dos pontos importantes para essa discussão é a valorização da oralidade

6
Fala do dia 17 de dezembro de 2018. Fonte:
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/12/19/As-falas-de-Bolsonaro-sobre-
ind%C3%ADgenas.-E-o-que-ele-pode-fazer. (Acesso em 24/03/2020). No link
https://survivalbrasil.org/artigos/3543-Bolsonaro é possível encontrar outras falas racistas de Jair
Bolsonaro em relação aos povos indígenas brasileiros.
7
Fonte: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=neGVl
8
A instituição das Letras como área de conhecimento.
9

que, assim como a ideia original de tradição, se baseia na recriação e reconstrução


permanente. A oralidade tem como característica o público como coautor e coator e
está cunhado no conceito de “movência”. A oralidade está diretamente ligada a
performance, que nunca é fixa, sempre se recria. Com o estabelecimento da escrita, a
dinâmica de constante mudança e a coautoria das narrativas se perdem ao ser
escolhido o que é digno de memória.
É importante ressaltar que a escrita não acaba com a oralidade, mas a
transforma; transforma as relações e a formas como lembramos de nossas histórias.
Porém, a escrita faz com que a movência total se perca, o que está escrito no papel se
torna algo fixo e definitivo, um dos problemas que surgem com isso é uma autoridade
de fala, aquela que tem o conhecimento oficial por conhecer a escrita e ter monopólio
do que começam a considerar como “verdade”.

Educação: educar é inacabamento, movência

Compreender a Educação como parte fundante do que entendemos como


sociedade é importante para traçarmos como nossas ideias e valores se consolidam e
permanecem válidas. É essencial, como um dos primeiros passos, entendermos que
Educação não é apenas a formal fornecida nas escolas, é algo muito mais amplo e que
abrange os mais diversos atores sociais. Entender que ensinar não é apenas
transferência de conhecimento é essencial para discutirmos como a oralidade e a
escrita são um complexo importante na socialização, tanto ocidental como das crianças
indígenas que estão inseridas na educação formal. Devemos levar em consideração
que ensinar é criar possibilidade para uma produção própria e compreender sua
predisposição à mudança por estar ligada ao inacabamento humano; movência.

Não foi educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a


consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. É
também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos
inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a
esperança. (Freire, 1996, p.34).

Paulo Freire aponta a ideia de que “ensinando se aprende, aprendendo se


ensina”, citando novamente a ideia de autor e ator. A Educação, assim como a
oralidade, deve estar ligada ao devir, à mudança constante e à autonomia daquele que
10

está sendo ensinado (e ao mesmo tempo ensinando).


O autor nos mostra que para construirmos uma educação realmente
emancipatória temos que ter em mente que a mudança é possível, e que os educadores
e educadoras são um dos grupos responsáveis por encampar esta mudança
compreendendo a História como possibilidade e oportunidade.

O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa,


inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me
relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que
ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências.
Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. (Freire,
1996, p.46.)

Progresso e Tradição: outras formas de vida

A partir do que já discutimos anteriormente, chegamos ao “mito do progresso”. A


falsa ideia de tradição, ligada ao que é arcaico e imóvel, forma uma dualidade com uma
noção, ainda mais falsa de progresso e desenvolvimento como meta universal.
Sabemos hoje que o estabelecimento de uma meta universal por si só é problemático
por ser uma decisão feita por grupos restritos.
A partir do conceito de “Bem Viver” de Acosta, podemos analisar como as lutas
populares de grupos marginalizados e até dizimados se estabeleceram como
alternativas para aqueles que se viram presos pelo mito do progresso, chegando a
construções coletivas de outras formas de vida. Formas estas que não são análogas ao
progresso, sem a dicotomia de riqueza e pobreza, estado anterior e posterior. Acosta
considera o Bem Viver uma tarefa decolonizadora de sabedorias práticas, citando o
desenvolvimento como uma das formas de desaparecimento do outro.
Para discutir esta questão, considero importante trazer a visão de Walsh que
levanta a ideia de "posicionamento crítico de fronteira", processo em que o fim não seria
a sociedade ideal universal, mas sim uma forma de questionamento e reconstrução das
relações de poder, trazendo à tona outras lógicas e formas de pensar, diferentes da
lógica eurocêntrica. O pensamento de fronteira sujeita o pensamento dominante a
constante questionamento e o apresenta diferentes narrativas possíveis.
11

Oralidade, escuta e outras formas de escrita

Voltando às questões que originaram este trabalho e a partir das discussões


feitas com autores até este ponto, penso que a linguagem é um dos principais pontos a
serem abordados para essa discussão. Sabemos que a palavra tradição teve sua
conotação alterada com o tempo e assim a usamos hoje como algo negativo.
Considerar a oralidade e tudo que esteja relacionado às histórias e às culturas dos
povos indígenas como tradição (nos termos que usamos hoje) é limitar uma enorme
complexidade de epistemologias a algo que deve ou que já foi superado.
Compreender tradição ligada ao conceito de desenvolvimento é cair no erro da
criação de dualidades/dicotomias, como se as epistemologias dos povos indígenas
fossem lineares e nossa sociedade ocidental estivesse no topo desta linha de
desenvolvimento, o que sabemos ser completamente falso. Voltamos aqui a citar a linha
abissal que separa o que seria ciência/conhecimento do que é considerado
insignificante e até incompreensível.
É importante considerarmos que a escrita se tornou uma ferramenta de poder e
uma ferramenta de luta. Daniel Munduruku cita como os livros se tornaram forma
essencial na preservação das Histórias dos povos indígenas e como estes auxiliam na
educação e na formação de identidade dos indígenas brasileiros.
É essencial apontar que uma educação intercultural9 necessita de mais do que a
simples adaptação dos currículos oficiais e do bilinguismo, é necessário entender como
a educação se coloca como forma de reprodução de costumes e valores ocidentais
civilizatórios e como isso tem influência na socialização da criança indígena.
Tendo como objetivo uma educação emancipatória, intercultural e
decolonizadora, se faz necessário compreender e praticar a oralidade, a escuta e a
escrita como complexidades explicativas de mundo, onde nenhuma deve se sobrepor à
outra, mas sim co-existirem para que possamos exercitar uma educação humanizadora;
fazem parte de um mesmo pacote complexo.
Catherine Walsh descreve a decolonialidade como a viabilização das lutas
contra a colonialidade a partir das práticas do dia a dia, sendo essas sociais,

9
A partir de documentos encontrados no portal do MEC, podemos ver quais são as definições e
orientações para a educação que engloba a pluralidade cultural, tendo o bilinguismo como um
dos focos. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro101.pdf ,
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=636-vol-28-
educdiv-elet-pdf&category_slug=documentos-pdf&Itemid=30192
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epistêmicas e políticas. A decolonialidade seria então uma estratégia de reconstrução


dos seres, saberes e poderes.
A interculturalidade crítica (...) é uma construção de e a partir das
pessoas que sofreram uma experiência histórica de submissão e
subalternização. Uma proposta e um projeto político que também
poderia expandir-se e abarcar uma aliança com pessoas que também
buscam construir alternativas à globalização neoliberal e à
racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social
como pela criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes.
Pensada desta maneira, a interculturalidade crítica não é um processo
ou projeto étnico, nem um projeto da diferença em si. (...), é um projeto
de existência, de vida. (WALSH, 2007, p. 8)

Memória não é estagnação

Um dos pontos mais importantes levantados a partir de toda a reflexão feita até
aqui é a compreensão de que a valorização da memória, da tradição e da história em si
não representa estagnação ou atraso. A tradição, por ser viva, é um símbolo da
atualização e da dinâmica cultural, porém não podemos desconsiderar o que se
mantém e o porquê destas determinadas permanências. Compreender tradição como
dinâmica e movência é também considerar tudo que se movimenta, mas não é apagado
ou esquecido, mas sim ressignificado nas suas mais diversas potências. É importante
pontuar que a tradição é essencial para o senso de comunidade e ancestralidade,
sendo parte fundante das organizações sociais.

A construção da tradição é coletiva. Não importa se esta construção é


cultural, isto é, que ela sofre modificações ao longo da história. O que
importa é que ela é capaz de identificar os elementos que congregam e
caracterizam uma certa visão de mundo. (Oliveira, 2013.)

A construção coletiva e constante se dá tanto nas sociedades indígenas e


africanas, como vistas ao decorrer deste trabalho, como na sociedade ocidental, porém
há um esforço para que a ideia de mudança e “progresso” esteja ligada apenas ao
avanço capitalista e tecnológico. É essencial nos entendermos como atores ativos na
criação e na preservação de quem somos e do que já fomos.

Considerações finais

Refletindo sobre minha experiência na área antropológica a partir da graduação


em Ciências Sociais, percebo que meus interesses de estudo até hoje foram
13

relacionados a questionamentos sobre socialização e sociabilidade. Como dito antes,


meu trabalho de conclusão de curso na graduação foi focado em educação indígena
bilíngue e como esse tipo de formação tem influência direta na vida da comunidade em
questão, com foco nas crianças que frequentam a escola bilíngue.
A partir das discussões abordadas durante esse trabalho concluo que a
facilitação do discurso nos faz usar a palavra Tradição para englobar questões que
estão além do que este termo, na nossa língua, pode carregar.
Percebo que independente de influências externas dos não-indígenas na
educação, na linguagem e nos mais diversos âmbitos, as culturas indígenas não podem
ser invalidadas ou menosprezadas por serem consideradas menos “puras” ou alteradas.
Deste modo, considero que a ideia geral e mais importante de toda a discussão deste
trabalho é a ideia de movência e renovação constante, compreendendo que a
estagnação é uma ideia a se desbancar a partir de uma educação libertadora e com
uma finalidade decolonizadora.
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Referências
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HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. 6. ed. Rio de
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15

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WALSH, Catherine. Interculturalidad Crítica/Pedagogia decolonial. In: Memórias del
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Bogotá: Universidad Pedagógica Nacional 17-19 de abril de 2007.

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