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Adolescentes e jovens indígenas: escola e identidade étnica

em São Gabriel da Cachoeira - AM1

Claudina Azevedo Maximiano – PNCSA/UEA/Amazonas

Resumo:

Neste texto proponho iniciar uma reflexão sobre a questão da identidade étnica no
cotidiano das escolas da rede pública estadual no município de São Gabriel da
Cachoeira - AM. O intuito é fazer um diálogo com os adolescentes e jovens que
estudam nas escolas que possuem uma prática diferenciada e as escolas da sede do
município (cidade). As escolas estaduais localizadas comunidades indígenas, estão num
processo de diálogo com a cultura indígena, realizando atividades diferenciadas. Nelas
os alunos interagem com os elementos de sua cultura e com os elementos do currículo
nacional. Na sede do município acontece o inverso. As questões referentes à história,
identidade, religiosidade, festas, lutas e conquistas do movimento indígena estão
ausentes das discussões em sala de aula. Os adolescentes e jovens que vieram das
aldeias e/ou nasceram na cidade não são motivados a pensar a sua própria identidade e a
história de seu povo. Estas e outras questões nos provam a pensar esse contexto na
perspectiva de tentar compreender o jeito de ser dessa parcela da população, mediante
as problemáticas sociais envolvendo os adolescentes e jovens indígenas em São Gabriel
da Cachoeira. A idéia é começar a pensar essa realidade, assim como ouvir os agentes
sociais que nela estão inseridos. Na perspectiva de gerar possibilidade de reflexão e
intervenção que possibilite novos horizontes para o diálogo entre a escola e a
diversidade cultural presente no município.

Palavras Chaves: Escola indígena, Educação diferenciada, identidade étnica.

1. A escola indígena diferenciada e a escola indígena e o processo ensino-


aprendizagem dos adolescentes e jovens indígenas

1
“Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de
agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.”

1
Ao longo da visita em campo, realizada durante os meses de outubro e novembro de
2008. Foi possível conversar e entrevistar jovens das diversas comunidades indígenas
situadas ao longo do rio Tiquié e alguns igarapés que lhe são tributários. Nos diversos
depoimentos, fui percebendo o quanto o processo metodológico utilizado pelas escolas
indígenas diferenciadas, estão gerando não só a aproximação dos jovens e adolescentes,
dos saberes próprios de suas culturas, como também, aponta o despertar de novas
lideranças, a partir da valorização da vida em comunidade e aos saberes tradicionais.
Um dado significativo nesse processo é o envolvimento das pessoas mais “velhas”, os
sábios da comunidade, que acompanham o processo de aprendizagem ensinando as
tradições e valorizando os saberes adquiridos pelos mais jovens.

Durante minha permanência na sede do município, cidade de São Gabriel da


Cachoeira – AM, no período de 2009 a 2010, observei o movimento inverso nas escolas
estaduais indígenas. As atividades pedagógicas realizadas pelas escolas não apontam
para um diálogo com a diversidade cultural presente na cidade. Seguem o currículo
tradicional das escolas públicas do Estado do Amazonas. Nestas unidades educacionais
os saberes tradicionais não estão presentes no processo ensino-aprendizagem o que
favorece o distanciamento dos alunos da origem de seu povo.

Aqui em São Gabriel da Cachoeira é difícil porque, muitas pessoas que são indígenas eles
querem ser branco. Que eles não valorizam o seu direito de ser índio. Que eles tem vergonha
de se mostrar na cara deles que soa índios, mas, por exemplo, dá pra perceber que ele é índio,
então é assim essas coisas aí que eles. (Jair, Baré 07/03/09)

Na fala dos próprios adolescentes e jovens pude perceber o quanto a questão da


origem, identidade étnica é silenciada. Um processo de “silenciamento" talvez reforçado
pela dinâmica competitiva estimulada pela Secretaria Estadual de Educação e Qualidade
de Ensino - SEDUC. Para além, da estrutura imposta para que os alunos tenham acesso
à universidade, através do vestibular e os outros concursos já existente a nível nacional,
a SEDUC criou o Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Amazonas –
SADEAM, no qual as escolas são avaliadas através da análise do rendimento dos
alunos, efetuado através de uma prova, aplicada na última série do curso. As escolas

2
recebem uma classificação e são premiadas em dinheiro. A escola classificada em
primeiro lugar, além do valor em dinheiro, os professores recebem um décimo quarto
salário2. Diante dessa dinâmica não há lugar para a diversidade, a escola tem que se
padronizar. Como afirmou Ailton Krenak:

... a pessoa passa a duvidar de seus próprios valores na medida em que está “sofrendo” numa
escola que expropria a sua identidade e afirma para ele um conjunto de referências, normas de
conduta e valores que não encontra na sua história, que não encontra na sua memória cultural.
(KRENAK, 1996: 94)

A instituição escola, para além, de ser um espaço social da construção de


conhecimento e busca de novos saberes, deve ser o lugar de diálogo dos saberes,
obedecendo aos “ritmos” de vida dos agentes sociais que a constituem. No que se refere
à educação indígena, a construção desse saber está para além de uma rotina medida por
tempos de aula.

Tem muita diferença, eu estudei com muitos professores... Tem muita diferença lá na escola
Dom Pedro Massa (Pari-Cachoeira), as matérias: português, matemática, espanhol, língua
Tukano, geografia, história. Cada matéria um professor. Estudei assim por hora. Entra na sala,
cada professor ou professora dá a matéria e dá aula e dá uma pergunta, uma tarefa, ele foi. Saiu,
45 minutos. Pra cá é diferente. Porque antes de estudar uma matéria, os próprios alunos que
escolhem para estudar uma matéria. Depois os alunos, eles foram para pesquisa com os velhos.
O aluno foi pesquisar o que eles escolheram com os velhos e procurar nos livros para
pesquisar, escrever o que eles entenderam. Depois faz uma exposição para os colegas e para os
professores. (Marcos, Tuyuka3 12/11/08)

2
Dados obtidos em conversa com os professores. Também tive contato com um caderno de
orientações sobre sistema de avaliação da Educação Básica, produzido pela SEDUC-AM. O caderno faz
referência ao o resultado do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB 207. E trás como
objetivos: Possibilitar o conhecimento sobre o SAEB; Socializar a concepção de avaliação desenvolvida
no SAEB; Aproximar a metodologia (construção de itens) da avaliação do SAEB com a utilizada pelos
educadores em sala de aula; Possibilitar que os educadores possam os conhecimentos da proposta
curricular do Estado com os conhecimentos que são avaliados no SAEB. O SAEB é a avaliação promovida
pelo Ministério da Educação e Cultura – MEC. O referido caderno da SEDUC não possui data de
publicação.
3
Marcos em 2008 era aluno da Escola Tuyuka. Foi entrevistado na comunidade São Pedro Alto Tiquié,
Distrito de Pari- Cachoeira. Comunidade em que está localizada a Escola Utapinapona Tuyuka. Região de
fronteira com a Colômbia.

3
Os adolescentes e jovens apresentam em suas falas a importância da educação
diferenciada para garantir que as futuras gerações possam continuar valorizando suas
culturas, através do conhecimento e do processo de aprendizado realizado na escola. E
apontam para o exercício do protagonismo no que se refere à criação do saber, como
afirma Boaventura Santos:

(...) As ecologias de saberes apelam a saberes contextualizados, situados e úteis, ao serviço de


práticas transformadoras. Por conseguinte, só podem florescer em ambientes tão próximos
quanto possível dessas práticas e de um modo tal que os protagonistas da ação social sejam
reconhecidos como protagonistas da criação de saber. (Santos, 2006: 167-168)

Aos poucos no processo de apropriação da idéia da escola indígena diferenciada,


os jovens vão se posicionando enquanto agente ativo no processo ensino-aprendizagem
que efetiva a construção dos saberes, realizada na e com a comunidade. Apropriando-
me da idéia de autonomia e protagonismo, aqui entendido como sinônimos, pois esses
agentes sociais parecem assumir o papel de agente ativo do e no processo pedagógico
efetivado por essas escolas e são reconhecidos pela comunidade dentro de tal processo.

E a escola indígena, quais são as formas de o indígena educar o seu filho, quais são as formas
dele formar a pessoa. Porque o não indígena pelo meu conhecimento, no conhecimento dos
brancos ele coloca que o indígena começa a partir dos 18 anos a gente chama. O indígena já é o
contrário, ele começa a trabalhar desde pequeno, já começa a se virá na verdade, então essa
questão a gente vai ta vendo dentro dessa questão que a gente colocou entre a escola formal e a
escola indígena. (...). (Melvino, Baniwa 8/03/09)

A escola diferenciada indígena trabalha com a metodologia da pesquisa, cada


aluno escolhe sua área de pesquisa e todo o processo escolar é construído a partir da
dinâmica da pesquisa que o aluno desenvolve com o a colaboração dos professores, dos
sábios da comunidade e dos assessores que acompanham o desenvolvimento das
pesquisas.

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Eu comecei durante o ensino fundamental, manejo florestal, aí quando comecei o ensino médio
eu escolhi de novo essa pesquisa sobre manejo florestal. Eu terminei, não só para continuar a
pesquisar, pois pesquisa não termina. Aí continuando, pesquisando aí o professor José Ramos
me chamou para dar aula para os alunos deles. Como plantar mudas, como cuidar as plantas...
Aí eu dei aulas para eles, elas. Eu dei três meses... Eram segunda turma de ensino médio. Eu
como primeira turma do ensino médio, dei aula para a segunda turma do ensino médio.
(Marcos, Tuyuka, 12/22/08)

A língua oficial da escola é a língua indígena, no caso da escola Tuyuka, a


língua utilizada é o Tuyuka. A relação com a língua portuguesa se dá através do contato
com os assessores e professores.

Tem alguns módulos que nós (alunos) escolhemos para estudar só com português. Para estudar
português nós escolhemos o diálogo e a escrita. Não escolhemos livros, só pra falar com língua
mesmo, assim: bom dia como está, dormiu bem? Assim... Estudar nós vamos escrever assim
com o dialogo mesmo com o português. (...) Nós primeiro escolhemos um tema para estudar e
nós dialogamos entre os alunos e com os professores, e também fazemos diálogo com escrita
com papel. Depois tem uma exposição do nosso diálogo com escrita e também quando vamos
jogar bola, dentro do jogo falamos com português mesmo. Assim que nós aprendemos falar em
português e assim também com os assessores. (Marcos, Tuyuka, 12/11/08).

A experiência da escola diferenciada aponta para o envolvimento dos


adolescentes e jovens na comunidade e na afirmação da possibilidade de permanência
desses agentes sociais na comunidade. É importante falar nossa própria língua, estar
na comunidade. (Evaldo, Tuyuka 11/11/08). O processo de saída da comunidade com o
objetivo de estudar começar a ser invertido.

Ainda tendo como referência as falas dos jovens indígenas que vivem na
comunidade indígena, no período de 05 a 10 de março de 2010, visitei a comunidade
Assunção do Rio Içana, onde conheci a Escola Estadual Indígena Nossa Senhora da
Assunção. E no contato com o gestor, professores e alunos pude perceber a efetiva
integração escola/comunidade. Os trabalhos de conclusão do Ensino Médio realizado
pelos alunos demonstram essa interação, pois todos os trabalhos apresentados como
conclusão do curso, tinham temas ligados à dimensão cultural, com ênfase no cotidiano
das comunidades indígenas do rio Içana e afluentes.

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A escola de Assunção do rio Içana é definida pela comunidade como indígena,
não diferenciada, assim como as da sede do município, pois faz parte da rede pública
estadual de ensino. Porém, assume uma proposta pedagógica que se aproxima da
dinâmica das escolas diferenciadas, onde as decisões sobre as opções pedagógicas são
feitas pela comunidade. E as opções pedagógicas estão intrinsecamente ligadas ao
cotidiano da comunidade.

Os alunos demonstram interesse em permanecer na comunidade, tem um


discurso construído sobre a história e vida do povo, falam com fluência a língua de
origem, assim como o português. Como afirmou o gestor, prof. Miguel Piloto, Baniwa:
nós tentamos valorizar a nossa cultura, assim como, também, aprendemos a ciência dos
brancos (Março 2010). As escolas estaduais presente nas comunidades indígenas e,
administrada por gestores indígenas, começam a apontar um novo rumo para educação
dentro do município de São Gabriel da Cachoeira, aproximando-se da proposta das
escolas indígenas diferenciadas, já presente no município, como é o caso da escola
Tuyuka no rio Tiquié, já citada neste texto.

A participação ativa da comunidade no processo educativo das crianças e jovens,


o diálogo com os saberes locais, a história, a religiosidade, os problemas da
comunidade, as festas, o cotidiano, e até o extraordinário, como a chegada de minha
equipe, são acolhidos no dinâmico processo ensino-aprendizagem. Os alunos participam
no conjunto das decisões, juntamente com os demais membros da comunidade. Os
alunos demonstram ter clareza quanto à opção de viver na comunidade esclarecendo
minhas interlocuções com relação à vida na cidade com proposições do tipo: é melhor
viver aqui, a gente tem as nossas coisas. a cidade pra tudo precisa ter dinheiro. (Roda
de conversa com alunos do ensino médio - Março de 2010). Parece que há um processo
de “reforço” da identidade étnica e de pertencimento à comunidade. O que ocorre de
maneira inversa com os adolescentes e jovens indígenas que foram morar na cidade e
frequetam as escolas estaduais indígenas na sede do município.

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Em oficinas realizadas pelo Departamento de Adolescentes e jovens indígenas
da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – DAJIRN/FOIRN, durante as
duas primeiras semanas do mês de agosto de 2009, em duas escolas estaduais da sede
do município foi possível diagnosticar o quanto é difícil para os alunos falarem sobre
sua origem, expressarem o seu pertencimento a um povo específico. Através do contato
em outros momentos com esses agentes sociais fica notório o descompasso entre o a
realidade escolar e a dimensão do pertencimento a um povo indígena. O contexto cidade
e as influências da sociedade envolvente reforçam o distanciamento das questões
ligadas à identidade étnica. Mesmo tendo a experiência de ter os pais e/ou avós em casa,
falante de sua língua de origem, indo para a roça todos os dias, comendo quinhampira, e
mujeca, fazendo farinha da forma tradicional, entre outras atividades. Esses agentes
sociais parecem manter-se a distância do universo cultural de origem, ou pelo menos
preferem não falar sobre esses assuntos.

A experiência vivida em casa no interno nas relações familiares (na intimidade)


parece ser um universo desassociado da rua e da escola. A dinâmica da cidade parece
distanciá-los de seu universo cultural. Têm-se vergonha de dizer que é índio... Eles
ficam metidos quando vão pra cidade (Roda de conversa com alunos do ensino médio –
Março de 2010). Parece efetiva-se uma espécie de ritual para se inserir na cidade que
passa por uma atitude individual de distanciamento, num primeiro momento, e depois
toma uma proporção grupal, através dos grupos de amigos, e outros grupos existentes na
cidade. Essa atitude é reforçada através da não existência de expressões e/ou atividades
sócio-educativas na linha do reforço da identidade étnica; de valorização das tradições;
histórias e lutas dos povos indígenas nas escolas. A escola aqui entendida como um dos
espaços singulares de formação à cidadania e valorização das identidades coletivas
desses agentes sociais.

Fazendo um contraponto das diferentes realidades escolares (escola diferenciada.


escola estadual indígena na comunidade e na cidade) evidencia-se o quanto a efetivação
de um currículo mais próximo da realidade, com ênfase na participação ativa da
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comunidade, exerce uma influência positiva no processo de compreensão do mundo e
da própria identidade étnica por parte dos alunos.

2. Jovens indígenas: cidade, escola e a crise de identidade

Diferente dos jovens das comunidades que através da escola reforçam os laços
com a comunidade. O jovem indígena que nasceu ou vive na cidade encontra
dificuldade para viver sua identidade e parece buscar novas estratégias de viver sem
enfatizar a questão da identidade étnica. Segundo alguns relatos e entrevista colhidos
durante a Oficina da Nova Cartografia nos dia 08 e 09 de março de 20094, os
adolescentes e jovens na cidade sentem vergonha de falar em suas línguas maternas e de
serem identificados como indígena. ...muitas pessoas que são indígenas eles querem ser
branco. (Jair, Baré: 08/03/09)

Diferentemente das comunidades indígenas as escolas estaduais indígenas da


sede do município de São Gabriel da Cachoeira, não fazem um trabalho efetivo com
relação às temáticas referentes às questões étnicas, tais como: identidade, movimento
indígena, direitos dos povos indígenas. Os adolescentes e jovens apontam para falha no
processo educativo no que diz respeito às questões ligadas a causa indígena.

Eles chegam aqui em São Gabriel, e já ficam com vergonha de falar suas próprias línguas, ou
seja, eles não dão valor a sua língua própria. Entendeu? Eles querem falar às línguas que são
dos brancos. (Jair, Baré 08/03/09)

O espaço urbano provoca uma nova dinâmica para o indígena, em particular, ao


adolescente e jovem indígena que se insere na lógica da sociedade envolvente.

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Nesta oficina foi realizado um primeiro mapeamento social dos adolescentes e jovens indígenas, da
qual está em processo de gráfica o fascículo nº 3 da série crianças e adolescentes do Projeto Nova
Cartografia Social da Amazônia.

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Assumem outros referenciais que não são as lideranças indígenas, ligadas aos
movimentos sociais e tão pouco própria a família.

E aqui na sede? Como que esta a identidade étnica? Como vocês colocaram, eles têm vergonha
de assumir, por mais que tenha cara, nem awá! Nem sou índio; eles falam... Então como que
esta essa situação, da valorização a nossa cultura? Da nossa identidade? (Deusimar, Dessano:
08/03/09)

Esta provocação me leva a pensar os porquês do deslocamento desses agentes


sociais para a cidade. Nas falas desses agentes sociais os centros urbanos são
procurados como a alternativa para os jovens no que se referem à possibilidade de
estudo, emprego e lazer. O que também se percebe concretamente nas escolas de
algumas comunidades, onde existe o ensino médio é que o deslocamento de alunos para
as escolas da sede do município ainda persiste. Como nos explicou o professor Wilson
Bergue Vieira Fonseca, Piratapuia, a partir de sua experiência como professor no
Distrito de Taracuá:

Durante a implantação do ensino médio, a gente tinha muitos alunos. Mas como nossos
assessores (pessoal do MEC) nos disseram que era para gente seguir o rumo do ensino
diferenciado, como não tínhamos um currículo, a gente foi tentando, mas os pais dos alunos
começaram a questionar sobre o futuro dos alunos. Diziam que aquilo era um atraso, queriam
que os filhos progredissem. Aí só ficaram na comunidade os filhos do que não podiam mudar
os pobres, e os filhos dos que trabalhavam na comunidade e não tinham parentes na cidade. Eu
diria que de 100% uns 40% deixaram a comunidade. A proposta da escola era fazer um
currículo interdisciplinar, por exemplo: levar os alunos para roça e lá nas atividades, como
plantar roça, fazer farinha. E a partir dessas atividades envolver as disciplinas do núcleo
comum, matemática, física, química, etc. (Prof. Bergue, 13/07/10)

O professor ainda aponta para a questão da origem da preocupação dos pais, que
era a questão do vestibular e outros concursos que os seus filhos seriam submetidos.
Diante do posicionamento dos pais e da saída dos alunos para escolas da sede do
município, segundo o prof. Bergue precisava-se tomar uma decisão. Os professores
como estavam no processo de construção do Projeto Político Pedagógico, decidiram
mudar as estratégias.

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Decidimos mudar e resolvemos dar aula pela manhã do núcleo comum e fazer uma semana de
pesquisa. Depois decidimos o turno da tarde seria para pesquisa. Do ano de 2004 a 2006
fizemos a tentativa do trabalho interdisciplinar. A partir de 2007 mudamos foi o que ajudou a
diminuir a saída dos alunos. Lá todos os professores do ensino médio possuem duas cadeiras.
Pois trabalham em dois horários. Outra coisa que o pessoal falava é que o diploma da escola
não iria valer. Até a responsável da Secretaria Estadual de Educação teve que ir a comunidade,
juntamente com o pessoal de Manaus, para dizer que o diploma valia. (Prof. Bergue, 13/07/10)

Neste relato evidencia-se a força do modelo tradicional de educação escolar que


mesmo não dialogando com a realidade do aluno, da comunidade, tornar-se o “jeito
certo” de educar os filhos na visão dos pais. Motivamos pelo modelo de avaliação
proposto pelo Estado para a continuação da vida acadêmica dos filhos, que é o
vestibular, e que não segue um modelo diferenciado, isto é, não respeita a diversidade
de povos e realidades presente no Brasil. Como afirmou o prof. Bergue, os pais estavam
preocupados com o vestibular e outros concursos. A questão dos saberes tradicionais é
importante para a comunidade, porém, não precisa ir à escola para aprender e como
fazer farinha não caí no vestibular.

O início do diálogo escola/comunidade segundo o relato acima, que são


confirmados pelas conversas informais que tive com professores, pais e alunos nas
comunidades do Alto Rio Negro, que visitei, apontam para um conflito ainda não
resolvido. Entre a proposta de educação formal, vivenciado por várias gerações que
passaram nos internatos, a proposta da Secretaria Estadual de Educação e a proposta de
uma Escola Indígena Diferenciada com um currículo que faça um diálogo entre os
saberes tradicionais dos povos indígenas e os conhecimentos da sociedade não índia.

Em minha visita à comunidade de Assunção do Içana pude observar que esse


primeiro momento de tensão vai sendo superado, através da busca de diálogo entre os
saberes indígenas e os saberes dos “brancos”, como afirmou o gestor da escola estadual
Indígena de Assunção do Içana (já citado acima). Os próprios alunos do ensino médio
desta escola em suas falas demonstraram o desejo de permanência na comunidade, e a
valorização da identidade étnica. Quando em uma roda de conversa foram indagados
sobre o se gostariam de morar na cidade, responderam que não, que na cidade para tudo

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precisa ter dinheiro e que na comunidade, se sentiam mais livres. Com muita liberdade
falaram sobre o ritual de passagem para idade adulta, casamento entre outras coisas.
Demonstrando o quanto as ações realizadas na escola ajudam na auto-afirmação da
própria identidade étnica. A realidade da Escola Estadual de Assunção do Içana abre
caminho para as possibilidades de diálogo nesse processo de construção de uma escola
aberta a diversidade cultural do Rio Negro.

2. Escola na cidade e alunos indígenas

A sede do Município de São Gabriel da Cachoeira pode ser considerada uma


cidade indígena, com maior parte de sua população pertencente às 23 etnias que
constituem o universo cultural do rio Negro. Porém, a configuração de cidade, dentro do
modelo de urbanização próprio da sociedade envolvente, não indígena, gera uma série
de conflitos ligados ao processo de empobrecimento e fragilização da população
indígena residente neste centro urbano, neste caso específico São Gabriel da Cachoeira-
AM.

Minha reflexão diante desse contexto passa pelas seguintes provocações: como
vive e interage com o contexto envolvente o seguimento da população indígena na faixa
etária entre 15 e 29 anos5? Como se inserem nesse contexto social? Como tecem o
diálogo entre os valores próprios de suas culturas de origem o a dinâmica social própria
dos contextos urbanos? Quais conflitos emergem dessa realidade? E o quanto a proposta
pedagógica das escolas estaduais indígenas, na cidade, geram um processo de
distanciamento ou aproximação da identidade étnicas dos jovens e adolescentes
indígenas.

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Faixa etária assumida oficialmente no Brasil para designar a população jovem.

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As perspectivas com relação a políticas públicas voltadas para a necessidade dos
adolescentes e jovens indígenas nas comunidades e na cidade são bastante limitadas.
Existe uma carência com relação a emprego, opções de lazer, escola e opções de cursos
na linha da profissionalização. O gera um processo de mobilização das famílias
indígena dos Distritos, onde estão localizadas as comunidades para a sede do município.
E na sede os problemas agravam-se a cada ano.

No que se refere às questões ligadas a processo ensino-aprendizagem as escolas


estaduais indígenas localizadas na sede do município, estão pedagogicamente
estruturada na questão do conteúdo proposto pelo currículo nacional e com um fazer
pedagógico pautado na foram tradicional de educação. Demonstrando certo
distanciamento da realidade sócio-cultural na qual está inserido o aluno. No que se
refere à identidade étnica não existe nenhuma ação no cotidiano da escola que faça
alguma referência a sua origem, cultura e identidade.

As atividades ligadas à dimensão cultural são pontuais e acontecem, sobretudo,


no mês de abril pela passagem da data instituída como dia do índio, 19 de abril. Em
todas as escolas nesse período acontecem manifestações sobre os povos indígenas do
Rio Negro. Existem duas escolas na sede aula de língua Nheengatu, em uma das séries
do ensino fundamental, porém, os professores ministram essa disciplina seguindo a
proposta tradicional de educação. As escolas estaduais indígenas da sede do município
não seguem uma metodologia diferenciada e/ou apresentam em seus currículos
conteúdos que envolva a diversidade étnica, história dos povos indígenas, cosmo visão
dos povos indígenas do Rio Negro, religiosidade, movimento indígenas entre outros.

A Secretaria Estadual de Educação em seu site apresenta as perspectivas do


Departamento de Políticas e Programas Educacionais – DPPE, a questão da política de
universalização da educação escolar básica para os povos indígenas. O que se observa
concretamente no município a partir da luta do movimento de professores indígenas;
movimento indígena e outras organizações que num processo de luta exigiram seus

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direitos e motivaram a resposta do governo com relação à efetivação das escolas
indígenas no município. Porém, não basta construir escola, ou que a escola seja
“classificada” como indígena por ter a maioria de seus alunos, professores e
funcionários indígenas. Como se evidencia na cidade de São Gabriel da Cachoeira.
Faz-se necessário que a escola, enquanto instituição de diálogo de saberes apresente em
seu currículo e na sua proposta pedagógica de forma clara e objetiva a questão da
diversidade étnica presente no município.

Segundo a fala de uma professora da rede pública estadual todas essas escolas
aparecem no senso do Ministério da Educação e Cultura – MEC, como escolas
estaduais indígenas, porém, não seguem uma metodologia diferenciada como nos é
apresentado no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas- 1998. O
RCNE/Indígena nasceu para atender as determinações à diferenciação da escola
indígena de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira, lei nº
9.394/96. O RCNE/Indígena afirma com relação aos conteúdos escolares:

O diálogo respeitoso entre a realidade dos próprios alunos e os conhecimentos vindos de


diversas culturas humanas é a realização da interculturalidade, e a escola indígena deve tornar
possível essa relação entre a educação escolar e a própria vida em sua dinâmica histórica.
(RCNE/Indígena, 1998: 60)

O que aponta para uma questão relevante na sede do Município de São Gabriel
da Cachoeira, pois, grande parcela da população indígena reside na cidade e ainda
cultivam um cotidiano constituído pela derrubada e plantio de roça e a pesca. Devido à
dificuldade de emprego na sede, muitos pais, avós, tios passam o dia inteiro nas roças,
ou até semanas. Os filhos ficam na cidade e a vida escolar dos filhos, é apresentada
como o principal motivo para que as crianças e jovens não participem das atividades,
por exemplo, nas roças, juntamente com seus pais. E a escola não dialoga com essa
realidade, o que denota um distanciamento e uma “desvalorização” da diversidade
cultural presente na cidade. Muitos problemas que se apresentam na escola, ligados à
falta de acompanhamento dos alunos e indisciplina estão intimamente ligados a essa

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situação social, que a escola não considera como relevante no processo ensino-
aprendizagem dos alunos.

Nas escolas em que os professores começam a concretizar esse diálogo como o


caso já citado da Escola Estadual de Assunção do Içana, já é possível perceber que o
caminho para educação formal no contexto social indígena passa pelo diálogo com os
ritos, mitos, danças, modo de fazer próprio dos indígenas em diálogo com outros
saberes construídos pela humanidade. E esse diálogo efetivo, não é algo que se
estabeleça somente na comunidade indígena. Faz-se urgente que as escolas da sede do
município comecem a construir essa “ponte”, ou mesmo pegar a “canoa”,
metaforicamente falando, afim de, realizar o seu papel de colaborar na construção da
cidadania de seus educandos. E desta forma participar ativamente da construção de uma
educação que gera cidadania e respeito às diferenças. É preciso retomar junto aos
professores as questões referentes às temáticas que geram a idéia da transversalidade do
currículo escolar colocando no centro dessa problemática questões referentes a
diversidade cultural presente no município.

Referências Bibliográficas:

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e território: mapeamento social dos indígenas em Manaus. Manaus: Projeto Nova
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