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Resumo: Os estudos envolvendo crianças têm ganhado cada vez mais espaço na
discussão antropológica, bem como aqueles que envolvem o debate em torno dos
processos de aprendizagem, ainda que em ambos os casos se trate de campos em
processo de consolidação na antropologia brasileira. Propõe-se aqui o desenvolvimento
de uma análise em torno da aprendizagem dos processos rituais no Candomblé,
investigando a partir da perspectiva das crianças, tomando o corpo como categoria
central nesse processo, vivenciado a partir de uma perspectiva lúdica. Parte-se do
pressuposto que a o corpo é o meio por excelência da aprendizagem, especialmente no
caso do Candomblé, e é a partir do corpo das crianças que será analisado aqui a
experiência social do Candomblé e sua aprendizagem, por fim, almeja-se por meio do
exercício da alteridade refletir o que esses processos de aprendizagem têm a contribuir
para o debate das práticas pedagógicas nas escolas regulares, nas quais tais crianças (e
outras) também transitam.
Palavras Chaves: Crianças de Candomblé; Antropologia da Criança; Antropologia da
Educação.
não gostam de crianças, o que tem implicado na construção de uma ciência assentada
principalmente numa perspectiva “adultocêntrica” de mundo, ele chega mesmo a
defender que as crianças possuem uma “arquitetura mental” que lhes permite
compreender o mundo de uma forma mais acurada que os adultos.
No caso brasileiro, no qual me situo, o campo da Antropologia da Criança há
muito tempo vem sendo anunciado como em processo de formação e consolidação,
entretanto, Cohn (2013, 222), em balanço recente desta área de pesquisa afirma que:
perceber as crianças como produtoras simbólicas, e não apenas reprodutoras, que insiro
esse meu trabalho, que em verdade encontra-se na interface entre vários subcampos da
Antropologia: da Criança, da Educação, da Religião e do Corpo. O que me motiva
nessa investigação é busca pela compreensão dos processos de aprendizagem entre as
crianças do Candomblé, cuja reflexão está assentada em incursões etnográficas
realizadas em um terreiro localizado na periferia da cidade de Maceió no estado de
Alagoas – Brasil, e em outro na cidade de Juazeiro no estado da Bahia – Brasil, e em
um amplo diálogo com a literatura disponível na área.
Desde já gostaria de anunciar a minha tese: entendo que o processo de
aprendizagem entre as crianças do candomblé passa por duas instâncias, uma primeira
remete a uma pedagogização mais diretiva por parte dos adultos, que possibilita a
iniciação ritual, considerando todo o complexo sistema hierárquico existente no terreiro,
e outra, que tende a passar desapercebida pelos pesquisadores, refere-se ao intenso
processo de aprendizagem vivenciado por meio da ludicidade própria do universo
infantil, que possibilita uma aprendizagem mais horizontalizada, marcada inclusive pela
aprendizagem entre crianças, dentro do que Corsaro (2011) denomina de “cultura de
pares”. Em ambos os casos o corpo mostra-se como um elemento relevante, dado a
centralidade que ele possui na aprendizagem do Candomblé (Rabelo, Santos, 2011)
todavia, na segunda instância, em torno da qual me deterei nesse trabalho, ele ganha
ainda mais centralidade. O que é relevante aqui é que o estudo desse “outro”, mais
especificamente a análise do modo como o Candomblé lida com as crianças nos
possibilita desenvolver uma reflexão acerca de outros processos educativos em nossa
cultura (Mead, 1982).
O Terreiro e as Crianças
entre adultos e crianças, por consequência, que diz respeito, ainda que não de forma
exclusiva, ao avanço da escolarização e de como essa nova instituição social alterou
significativamente as relações geracionais (Veiga, 2011), mesmo em uma realidade onde
a senioridade continua a possuir uma significativa centralidade. Para elucidar essas
diferenças geracionais creio que são pertinentes algumas das colocações de Mead
(2006) sobre a ruptura geracional, ao indicar que até pouco tempo atrás (o livro foi
publicado em 1970), os adultos poderiam simplesmente dizer para os jovens e crianças,
“eu já fui jovem e você nunca foi velho”, porém, os jovens podem agora responder que
os adultos nunca foram jovens no mundo atual, e nunca poderão sê-lo. Para a autora
“Los niños de hoy se han criado en un mundo que sus mayores nunca conocieron, pero
unos pocos adultos sabían que tal cosa habría de suceder.” (p. 94).
No trabalho de Falcão (2010), por exemplo, há um indicativo de que, em muitas
situações, o tempo de iniciação conta mais que a idade cronológica, bem como ocorre
de crianças terem mais conhecimentos sobre o Candomblé do que outros adeptos mais
velhos. Ainda nessa pesquisa é apontado que:
3 Segundo Bastide (2001, p. 60) os ogãs formam uma espécie de sacerdócio secundário no Candomblé,
porém “O que define o ogã em oposição aos filhos-de-santo não é o fato de deixar de possuir um orixá
(cada um de nós tem sempre o seu), e sim não poder ser possuído por ele. Todo candomblé
compreende obrigatoriamente um conjunto de pessoas que não podem, de modo nenhum, cair em
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Pode-se afirmar assim, que para além de uma aprendizagem “formal”, referente
aos conhecimentos explícitos do Candomblé, o adepto deve incorporar disposições
sociais necessárias para essa nova experiência, havendo o desenvolvimento de um
habitus educativo novo, que se substancia no corpo (Oliveira, 2013b).
Ampliando a ideia trazida pelas autoras, afirmo que o correr das crianças pelo
transe: os agãs do lado masculino, as equedes do lado feminino, da mesma forma que também
compreende obrigatoriamente uma confraria de filhas-de-santo que entram em êxtase.”
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espaço sagrado não é uma simples meninice, é também uma iniciação gradual,
paulatina, que se relaciona com o ganho de intimidade com o espaço e com o tempo do
Candomblé, possibilitando a construção das disposições as quais elas se referem.
No dia de São Cosme e Damião, sincretizados com os Ibejis4, as crianças
ganham uma especial centralidade nas atividades rituais, pois elas entram para o centro
do terreiro, como pude observar na cidade de Juazeiro, e comem doces, separados em
pequenos quites que em muito lembram lembrancinhas de aniversário infantil. Como
também recebi um desses quites de presente, por ser visita já que nesse dia os doces se
destinam às crianças, pude abrir e conferir que além dos doces havia também um apito e
uma língua-de-sogra, que remetem imediatamente às festas de aniversário de crianças.
Como se trata de um culto aos erês5 também no mesmo ritual adultos
incorporam um espírito de criança, cuja possessão dista daquilo que ocorre quando na
incorporação de outros orixás, o que transparece a multiplicidade dos aposentos do
“castelo interior” (Bastide, 2001).
Uma senhora aparentando ter em torno de cinquenta anos recebe um erê, e ao
entrar em transe há uma mudança gestual e vocálica, seu corpo passa a representar uma
dada compreensão de infância, marcada por movimentos bruscos, e uma aparente
natureza voluntariosa, expressa também por gritos e risadas altos, sempre em um timbre
de voz infantil.
Destaco aqui, para finalizar esse tópico, que se aprende comendo no Candomblé,
o que envolve a feitura e a partilha dos alimentos, e se aprende com os doces, com o
açúcar, e com a ingestão e utilização de tudo aqui que remete ao universo pueril. Além
do Caruru compartilhado por adultos e crianças6. Portanto, a comida é também central
na aprendizagem. Como nos indica Caputo (2012, p. 71):
4 “Certos Candomblés da Bahia festejam também os Gêmeos (São Cosme e Damião) com o nome
africano de Ibêjis, mas no decorrer de uma cerimônia que não lhes é especialmente consagrada, e sim
aos erês.” (Bastide, 2001, p. 196).
5 É uma entidade intermediária entre a pessoa e o Orixá, sendo por meio dele que o Orixá expressa sua
vontade. Geralmente quando incorporados são inquietos, barulhentos.
6 Um cozido de quiabos, muitas vezes servido com outros alimentos preparados no processo ritual.
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Esta possibilidade de estar para além das normas, nos remetem a como estas são
pensadas a partir de uma perspectiva adultocêntrica, mais que isso, nos levam
novamente à figura do erê, que ao representar a criança na cosmologia do Candomblé,
representa também uma concepção na qual a criança seria um ser que não teria passado
por um processo completo de socialização e, devido a tanto, age como se não houvesse
limites impostos, os orixás adultos possuem outra postura corporal, outra representação
de mundo. Interpreto a singularidade da possessão do erê como uma afirmação de que a
criança compõe esse universo simbólico, porém é algo a parte, demasiadamente sui
generis para vivenciar as mesmas normas que os adultos.
Brincadeira e Aprendizagem
Ao observar a dança percebo que diferentemente dos adultos, cujo ritmo era
mais sincronizado, as crianças produziam ritmos próprios de dança, ainda que
dançassem juntas. Também brincavam de “cair no santo”, e em conversa com elas,
confidenciou-se que também brincavam disso fora do terreiro, porém os pais não
gostavam, pois o que se passava no terreiro era “coisa séria”. É na cultura de pares por
excelência que se aprende a cair no santo, penso eu que mesmo antes dos processos de
iniciação ritual.
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Júnior, o ogã abiaxé, não tem que ser maior de 18 anos para fazer
alguém ser possuído, ele está pronto. Isso significa que as relações de
poder não correspondem inteiramente ao modelo tipo ideal moderno,
em que os pais/adultos exercem poder sobre as crianças; mas existe a
ênfase no tempo de envolvimento com a religião, no acúmulo de
conhecimento sagrado durante todo o processo de iniciação, e nos
casos como do Omin Mafé, as crianças se envolveram desde tenra
idade na religião e até possuem mais conhecimentos que alguns filhos
de santo adultos. Em breves termos, as relações de poder de tipo ideal
no terreiro são basicamente uma disputa de conhecimento religioso.
Neste sentido, a ideia desenvolvida por Maggie (2001), de que o terreiro pode
ser visto como um sistema simbólico que representa determinados aspectos da
sociedade brasileira, porém invertendo a posição social de alguns sujeitos, que
marginalizados na sociedade envolvente transformam-se em deuses extremamente
atuantes, pode ser transposta em alguma medida para pensarmos o caso das crianças,
uma vez que que há uma subversão de seu papel social, sendo assim, por meio da
investigação com as crianças de Candomblé podemos chegar a conclusão que há uma
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Considerações Finais
Para finalizar esse trabalho é necessário afirmar que partilho com Wagner (2009)
a certeza de que ao estudar outra cultura sou levado também a refletir sobre a minha, de
tal modo que ao pensar os processos de aprendizagem das crianças no Candomblé
imediatamente me remeto às vivências de outras crianças no processo de escolarização
formal.
Ao investigar esse outro universo simbólico – utilizando-me de minha
experiência como pesquisador na área da Antropologia da Religião e da Educação, mas
que até então havia sido guiado essencialmente por um olhar adultocêntrico – me
deparei com a capacidade inventiva da criança nos seus modos de aprender. Ainda que
se instaure alguma tensão no terreiro, na medida em que os adultos insistem na divisão
entre o que é sério e o que é brincadeira e, por consequência, entre o que pertinente ou
não para aquele espaço, o lúdico mantém-se central naquele espaço de pedagogização, e
é através da brincadeira que se aprende o que é “sério”.
E para se brincar a cultura demanda uma corporificação, e é nas mãos e toca os
baldes como sendo atabaques, no gestual corporal que mimetiza iyawôs, egbômis, ogãs
e ekédjis, no corpo que “cai no santo”, que a brincadeira se materializa. Sendo assim,
entendo que não há como se aprender se não pelo corpo, entendido como em contínua
relação com as pessoas e com as coisas.
Penso eu que a escola formal tem muito a aprender com as formas de aprender
do Candomblé, com a centralidade do corpo na aprendizagem, e com a dimensão da
ludicidade e da vivência na cultura de pares como instâncias pedagógicas. O
Candomblé, na minha compreensão, tem muito a ensinar à escola sobre o lugar das
crianças do mundo, e nós mais ainda a aprender com elas.
Referências
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2011.
WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2009.