Você está na página 1de 19

AS CONTRIBUIÇÕES DOS ITAN DA NAÇÃO KETU-NAGÔ

PARA O ENSINO FORMAL E O EMPODERAMENTO DAS


CRIANÇAS DE CANDOMBLÉ
João Pedro Farias1

RESUMO
Esse artigo tem como objetivo compreender o uso dos itan da nação Ketu-Nagô no
processo de preparação dos filhos de santo. Apoiados nesse estudo, buscamos
compreender a partir da perspectiva das crianças de candomblé como é o cotidiano no ilé
asè, no convívio familiar e escolar, compreendendo o papel da ancestralidade na formação
das crianças de candomblé enquanto sujeitos históricos. A partir dessa perspectiva,
analisaremos o terreiro de candomblé como espaço de formação que contribui no
processo de desconstrução da invisibilidade, preconceito e silenciamento em torno das
religiões de matriz africana e consequentemente das crianças de candomblé que também
vivenciam a discriminação na educação formal que pouco tem contribuído para a inclusão
desses saberes e experiências, que estas crianças trazem do terreiro de candomblé. Os
resultados esperados se direcionam ao acesso e compartilhamento dos saberes
pedagógicos no âmbito escolar, valorizando aprendizados e conhecimentos obtidos na
transmissão do legado étnico cultural africano dentro da roça de candomblé.
Possibilitando que as crianças possam professar sua fé sem sofrer retaliações no âmbito
escolar devido à ideologia excludente que impera nas redes de ensino que julgam o
conhecimento e experiências adquiridos fora dos muros da escola desnecessários para
formação moral, social, política e econômica das crianças.
Palavras – chave: Candomblé, Cultura, Nagô, Criança
RESÚMEN
Este artículo tiene como objetivo comprender el uso de los itan Ketu-Nagô en el proceso
de preparación de los niños santos. Con el apoyo de este estudio, buscamos comprender
desde la perspectiva de los niños candomblé cómo es la vida diaria en ilé asè, en la vida
familiar y escolar, entendiendo el papel de la ascendencia en la formación de niños
candomblé como sujetos históricos. Desde esta perspectiva, analizaremos el Candomblé
terreiro como un espacio de formación que contribuye al proceso de deconstrucción de
invisibilidad, prejuicio y silenciamiento en torno a las religiones de la matriz africana y,
en consecuencia, de los niños Candomblé que también sufren discriminación en la
educación formal que tiene poco. contribuyó a la inclusión de estos conocimientos y
experiencias, que estos niños traen del terreiro Candomblé. Los resultados esperados
están dirigidos al acceso y al intercambio de conocimientos pedagógicos en el entorno
escolar, valorando el aprendizaje y el conocimiento obtenido en la transmisión del legado
étnico cultural africano dentro del campo Candomblé. Permitir que los niños profesen su
fe sin sufrir represalias en la escuela debido a la ideología excluyente que prevalece en los
sistemas escolares que consideran innecesario el conocimiento y la experiencia adquirida
fuera de los muros escolares para la formación moral, social, política y económica de los
niños.
Palabras clave: Candomblé. Cultura. Nagô. Niño

1Sou integrante do Ilê Axé Opô Ajá Funkemin, onde sou conhecido como Dofono de Logunedé. Logunedé é Òrìsà ao
qual fui iniciado, Òrìsà que me permitiu renascer. Sou graduando no Curso de Licenciatura em História, do Centro
Universitário Jorge Amado, onde faço parte do Grupo de iniciação cientifica na linha de pesquisa Educação e Gênero.
Não poderia deixar de explanar que o motivador para escolha do curso, foi exatamente a necessidade de resgatar,
preservar e disseminar as tradições que meus ancestrais lutaram para manter viva. Travamos lutas e batalhas
constantes para que nossa herança não seja perdida, negligenciada ou silenciada. E os pequenos do candomblé serão
os responsáveis por fortalecer nossas raízes e dar continuidade à luta dos nossos ancestrais.
E-mail: joaofarias951@gmail.com.br

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

Introdução Os Itan
No candomblé os processos de Geralmente quando
educação estão baseados na perguntamos na escola se alguém
experiência, no trabalho e na sabe contar um conto, o mais comum
dinâmica de observar, repetir para é a reprodução de histórias sobre
aprender, formando assim uma fadas, rainhas, castelos, princesas
modalidade de experiência educativa
etc. Aquela casa com um lindo
baseada nos conhecimentos
jardim, a grande macieira e as lindas
religiosos e na prática da ritualística.
flores. Sem dúvida, essas são as
Essa experiência pode ser
características mais citadas, contar
notada no dia a dia numa roça de
histórias sob essa perspectiva, das
candomblé, respeitando os limites
que são impostos pela sua função no princesas brancas, não dá conta da

templo espiritual. Não são todos os diversidade de histórias e povos no


lugares que temos acesso dentro do planeta. Os africanos em sua maioria
terreiro e nas cerimonias a circulação utilizam a oralidade como elemento
de pessoas é tão grande que fundamental de conexão entre as
acabamos deixando passar atos diferentes gerações. Basta se
importantes e únicos. Percebemos recordar das fabulas, que tanto
que quanto mais a pessoa possui líamos na escola buscando entender
experiência e conhecimento, mais o sentido da história, criando
segredos elas guardam.
reflexões em torno da “mensagem”
Entendo que esse estudo, ao
que ela transmite. As histórias do
analisar as práticas educativas em
povo Nagô não são exclusivas, mas
uma roça de candomblé, em
carregam uma faceta única. Mais do
particular com base na transmissão
que uma simples história, elas estão
dos itan, nos concede a oportunidade
de ampliar os debates sobre os carregadas de ensinamentos,

processos e práticas educativas que energias, princípios religiosos e


acontecem em ambientes não éticos. Segundo Ruy do Carmo
escolares e podem ser utilizados nos Póvoas (2004): “A consistência do
ambientes de ensino formal, itan, a pluralidade dos seus sentidos,
exclusivamente nas aulas sobre é que dá a sua perenidade e, depois, é
história e cultura afro-brasileira. o que permanece na alma do povo: o
sentido”. E dessa forma, carregados

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
6
João Pedro Farias

de sentido, permanecem na memória pois o sistema é baseado na


e são passados de geração em oralidade.
geração. As histórias perpassadas de No Brasil, o sistema de
lições são como um elo entre os escravidão não possibilitou a
velhos e novos, a herança que sobrevivência dos babalaôs. E o
passará de pai para filho. sistema divinatório utilizado através
De acordo com o livro: “Itan do opelé5 foi tornando-se restrito. E
dos mais velhos”, itan é uma palavra com o surgimento dos terreiros de
ioruba que significa história; um candomblé, o sistema do jogo de
conto. De uma forma mais específica, búzios, através das iyálòrìsàs6 e
itan são histórias do sistema nagô de bàbálòrìsàs7, foi ocupando o lugar
consultas às divindades, histórias de vazio, gerado pela ausência do
tempos imemoriais, recitações, sistema de adivinhação. Os itan, no
mitos. Na África, os itan entanto, foram ganhando espaço fora
compunham, e ainda compõem o do sistema oracular, sendo utilizados
oráculo denominado ifá2, que pode para ensinamentos de princípios
ser lido e interpretado através de um éticos e morais. Essas narrativas
conjunto de dezesseis sinais, tomam como personagens pessoas,
conhecidos como odu3. Esses sinais animais, plantas, seres divinos que
podem se combinar entre si, em um tempo muito remoto
resultando em 256 outros sinais. Os passaram por situações conflituosas
sinais são explicados através de idênticas aos que os humanos vivem
várias histórias; o sacerdote, ainda na atualidade. Os itan
conhecido como babalaô4, sabe utilizados dentro dos terreiros de
todas essas histórias, pois no candomblé nos transmitem grandes
processo de iniciação para babalaô é lições. Separamos o itan que
necessário decorar todos os odus, escutamos em um dos momentos de

2
Ifà – termo ioruba conhecido como oráculo africano
3
Odu – termo ioruba conhecido como destino
4
Babalaô – é o sacerdote exclusivo do jogo de ifá na religião ioruba.
5
Opelé – é uma cadeia de adivinhação usada nas religiões africanas.
6
Iyálòrìsàs – mãe de santo, sacerdotisa e chefe de um terreiro de candomblé.
7
Bàbálòrìsàs – pai de santo, pai de terreiro, sacerdote das religiões afro-brasileiras.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
7
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

descontração no terreiro Ilé Asè Opô vai voltar, mas ainda está lutando
para alcançar o que deseja.
Ajá Omin:
Passou muito tempo e um
dia Gadamu voltou. Agora ele era
O desejo de Gadamu
um homem sabido, com muitos
cestos e baús repletos de muita
Um homem chamado
novidade. Considerava-se um
Gadamu nasceu e se criou em
grande vitorioso na vida. Mas
Aldeia Velha. Desde novinho ele
Gadamu foi tomado de muitas
vivia insatisfeito com tudo que era
surpresas: os avós e os pais dele não
de sua terra. Jurava todos os dias ir
existiam mais. As irmãs tinham se
embora para Aldeia Grande, a
casado com homens de outras
terra das novidades, onde pudesse
aldeias e foram embora com seus
aprender muitas coisas para ser
maridos. Ele não conhecia mais os
uma pessoa importante. O seu
rapazes que tinham nascidos depois
sonho era vencer na vida e viver
de sua partida. E os jovens de seu
conforme ele entendia. Por isso, ele
tempo agora não sabiam mais o que
não dava muita importância à
conversar com ele. As velhas casas
sabedoria e ao conhecimento do seu
não existiam mais e os antigos
povo. Para ele, tudo era limitado e
animais de estimação, há muito
ali, ele jamais seria vencedor.
tempo, tinham desaparecido. Os
Quando os viajantes
cachorros estranhavam Gadamu e
passavam por Aldeia Velha e
não queriam saber de seus afagos.
davam notícias de Aldeia Grande,
O terreno baldio, atrás da sua casa,
Gadamu ficava amuado e zangado
agora era uma mata e a grande
com todo mundo. Mas Gadamu
gameleira-branca tinha sido
também sofria muito, pois amava
queimada por um raio.
seus parentes e seus amigos. Seu
Aí Gadamu se deu conta de
coração doía, quando ele pensava
que sua amada Aldeia Velha não
em deixar tudo e ir embora para
existia mais e a família que era seu
longe. Um dia Gadamu criou
maior tesouro, tinha se acabado.
coragem e partiu. Apenas se
Pensou em voltar para Aldeia
despediu dos mais íntimos e muitas
Grande, mas concluiu que não tinha
das suas coisas ficaram
ficado raízes por lá. Afinal, ele tinha
abandonadas porque para ele eram
labutado o tempo todo em Aldeia
coisas sem serventia. De tempos em
Grande, para ficar sabido, garantir
tempos passavam viajantes por
o futuro e voltar. Agora ele não
Aldeia Velha e informavam:
sabia o que fazer com tudo o que
– Gadamu mandou dizer
tinha aprendido, por que ele não
que não esquece todos e que um dia

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
8
João Pedro Farias

tinha mais quem sustentasse seus 1- Qual seu maior sonho?


sentimentos. - Virar uma mãe de santo(entre
E Gadamu ficou como risos) já te falei que meu avô me
exemplo: Quem pensa apenas disse que sou a herdeira dele! Mas
em si, mesmo coberto de também quero ser policial
glória, não tem com quem 2- O que você aprende na
dividir. roça?
- Eu, eu aprendo a cantar, dançar,
O itan nos remete a uma falar e gosto quando a mãe pequena
conta as histórias dos orixás.
reflexão sobre a vida em
3- Você fala das coisas que
comunidade, onde devemos pensar
você aprende fora da roça?
em todos. É pautado nesse itan que - Não. Meus amigos gostam de
os lideres religioso do Ilé Asè Opô brincar, cantar música, brincar de
boneca. Só falo de macumba
Ajá Omin direcionam seus filhos.
quando estou em casa ou na roça de
Contudo à aplicabilidade dos
meu avô.
ensinamentos obtidos no ilé8 asè9, 4- Na escola as pessoas sabem
na sua grande maioria não são o seu sonho?
- Sabem, minhas amigas sabem que
aproveitados no meio externo. Em
eu quero ser policial.
entrevista com uma abian do 5- Mas você não quer ser mãe-
terreiro Ajá Omin, que de-santo? Por que você não
chamaremos pelo pseudônimo fala?
- Quero. Mas minhas amigas falam
Nanãzinha (apelido carinhoso pela
que isso não é coisa de Deus... aí eu
qual é chamada dentro do terreiro)
não conto isso a elas.
ela nos revelou depois de um bate- 6- E os professores, fazem o
papo descontraído, informações de que em relação a essa
postura?
extrema valia. Segue um trecho da
- Tem uma menina lá que eles ficam
entrevista:
chamando de macumbeira. Ela fala
para pró, ela chama atenção, mas,
não faz mais nada. E sempre
acontece.

8
Ilé – Roça, terreiro de candomblé, templo espiritual.
9
Asè – força, energia

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
9
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

7- Você fala essas coisas com contato com a escola e já possui


seus pais?
determinados conhecimentos.
- Falo, eles dizem que não é para me
Segundo Sacramento:
preocupar, pois o mundo é
preconceituoso. E o que importa é
meu amor pela minha religião. De algum modo, perante a
instituição, a criança “morre”,
enquanto seu jeito concreto, com
saberes, emoções, aspirações,
Mediante as dificuldades em sentimentos e vontades próprias,
para dar lugar ao aprendiz,
se ver como sujeito histórico, a destinatário da acção do adulto,
partir dessa crítica, Machado agente de comportamentos
prescritos, pelo qual é avaliado,
(2002), acredita que a vivência no premiado ou sancionado. A escola
criou uma relação particular com o
terreiro tende a ficar “fora da saber, uniformizando o modo de
aquisição e transmissão do
escola”, já que a escola conhecimento, para além de toda a
diferença individual, de classe ou de
historicamente ignora os valores pertença cultural. (SACRAMENTO,
2011, pag. 588).
culturais negros. Em uma
entrevista realizada via a É importante salientar que,

ferramenta WhatsApp com o tanto Machado (op cit) quanto

Bàbálòrìsà Junnior t´jagun que Sacramento (op cit) acreditam que a

possui o cargo de bàbákekeré10 no escola intrinsicamente adota essa


postura excludente que tem como
Ilé Alaketu Asè Osun Iyà Mi
base a cultura hegemônica
Ypondà, dirigido pelo Babalorisà
eurocêntrica. A importância do
Mauro t´osun (fundado em 1963
ensino de História e Cultura Afro
pelo zelador Antônio Carlos,
Brasileira e Africana nas escolas se
conhecido como Dialunde): “A
faz necessária, pois traz explícitos os
criança tem que ser orientada
aspectos sociais, culturais e políticos,
dentro do terreiro, pois o culto é
como os principais fatores em seu
hierárquico, didático, tem que ser
desenvolvimento no contexto
falado e expandido”. A criança tem
educacional. A História e Cultura
Afro Brasileira e Africana foram se

10
Babakekerê – termo ioruba que significa pai pequeno, cargo destinado ao braço direito do pai de santo. Considerado
o responsável pelos processos na ausência do zelador(a).

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
10
João Pedro Farias

desenhando no contexto social, onde não utilizarmos os itan para contar a


o preconceito se mostrou presente e história desse povo que lutou pela
ainda é um componente atual nesse preservação da sua cultura, costumes
e crenças?
desenvolvimento. Diante desse
aspecto, Macedo apresenta que:
Os Òrìsàs e o candomblé
Em 9 de janeiro de 2003, o
presidente da república sancionou
uma lei que movimentou debates Os òrìsàs são guardiões que
relacionados a questões étnico- receberam de Olodúmárè11, o ser
raciais. Foi firmada uma conquista
do movimento negro, que havia supremo, a missão de governar o
décadas que lutava por uma
valorização das origens étnicas de mundo, partilhando entre eles a
um povo negro brasileiro. Nada se
dizia. Nada se fazia. Nada era importante tarefa de zelar pela
exposto de forma ampla quando se
tratava do estudo da História da natureza, por alguns aspectos da vida
África e da cultura afro-brasileira. em sociedade e pela condição
(MACEDO, 2007, pag. 211)
humana. A presença do culto aos
Sendo assim, o ensino de
Òrìsàs no novo mundo é uma
História e Cultura Afro Brasileira se
consequência da diáspora africana.
consolidou na educação arrevesado
em um meio de conflitos e disputas Os africanos trazidos para o Brasil
pelo desenvolvimento da identidade foram submetidos a um modelo de
sociocultural afro-brasileira. E escravidão e a um contexto social
mesmo com a aprovação da lei completamente desconhecido com os
10.639/03 , que propõe novas europeus e indígenas. Para deixar a
diretrizes curriculares para o estudo
convivência ainda mais complexa, o
da história e cultura afro-brasileira e
tráfico interno de escravos colaborou
africana, possuímos diversos
entraves para reconhecermos os/as para o estado de subordinação das
negros(as) como sujeitos histórico e identidades étnicas africanas,
formadores de uma sociedade facilitando a escravidão negra no
brasileira. E é de responsabilidade Brasil. O candomblé se configura
exclusiva do profissional de educação
como um modo de vida, agir, pensar,
a aplicabilidade dessa lei e não a
direcionar e resgatar. Os
omissão e terceirização. E por que

11
Olodúmárè – Senhor supremo. Assim que é chamado a forma máxima para os iorubas.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
11
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

ensinamentos obtidos dentro do lento e cada um tem o seu “tempo de


terreiro e/ ou roça de candomblé são aprendizagem”, nesse fantástico
de extrema importância para as sistema de aprender-fazer.
pessoas envolvidas naquele contexto. Não iremos aprofundar a
De acordo com o Asogun12, Edmar análise da estrutura do terreiro nesse
Dofono13 t´oxossi, Ogan14 do Ilé Asè momento, nem fazer um estudo
Ôpo Ajà Funkemin: minucioso da história do seu povo,
tendo em mente que nenhuma
É muito importante os História é mais importante que a
ensinamentos que são transmitidos
dos mais velhos para os mais novos, outra. Ela pode ser usada para
quem teve a oportunidade de sentir
o asè que é sentar em uma exaltar, unir, compreender e
adississa15 e escutar as histórias de
lutas e conquistas de um povo disseminar o bem, mas no caso do
guerreiro que não desistiram da sua povo negro, foi utilizada para
ancestralidade.
desapropriar o seu passo. A história
O tipo de relacionamento
pode destruir a dignidade de um
dentro da casa de candomblé é de
povo, como pode reconstruir a
caráter familiar, a comunidade tem
dignidade perdida (ADICHIE,
uma estrutura hierarquizada, onde o
2009). Não é o outro que dá direito
zelador (a) é a autoridade máxima,
de civilização a um povo, esse é um
seguidos pelos cargos, postos, ogan,
direito inalienável que todo povo
ekedji16, egbomi17, yaô18 e os abian19.
possui, ou seja, não é outro que
O processo de aprendizado é diário,
concede o seu direito histórico

12
Asogun – Cargo destinado ao ogan responsável pelos sacrifícios dos animais votivos no candomblé. Conhecido como
ogan-de-faca, é um dos cargos mais importantes destinados a um ogan. Nas casas mais tradicionais é um cargo
direcionado aos filhos iniciados de Ossossi e Ogun.
13
Dofono – é o nome dado a primeira pessoa do barco. Barco é o nome dado quando entra mais de uma pessoa no
huncó no processo de iniciação/feitura.
14
Ogan – é o nome do cargo dado para as diversas funções masculinas dentro da casa de candomblé. Ele é escolhido
para auxiliar durante todos os processos. O ogan ele não entra em transe.
15
Adississa – esteira feita das palhas do dendê. Utilizadas para dormir dentro e fora do terreiro de candomblé. Todos
filhos de santo possuem suas adississas.
16
Ekedji – cargo feminino de grande valor. Conhecida como zeladora dos òrìsàs.. É equivalente ao ogan feminino. Elas
não entram em transe.
17
Egbomi – é o iniciado no candomblé que já cumpriu a obrigação de 7 anos conhecido como odu ejé. Nem todos os
egbomi possuem caminhos para se tornar bàbálòrìsà ou iyálòrìsà.
18
Yaô – esse termo ioruba nasceu da contração da palavra iyawóòeìsà (yaô) que significa mulher do orisà. Esse termo
tanto se aplica aos homens quanto às mulheres e não evoca uma ideia de união ou de posse carnal.
19
Abian - é todo filho de santo novo na casa que já passou pelo processo de lavagem de conta e bori.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
12
João Pedro Farias

fundamental. Segundo Chimamanda fortaleceram e proporcionaram


Adichie: sentido “as novas vidas” de homens e
É impossível falar sobre única mulheres oriundos da África (Costa
história sem falar sobre poder. Há
uma palavra da tribo igbô, eu lembro da Guiné, Angola, Nigéria e Costa do
sempre que penso sobre as
estruturas de poder do mundo. E a Marfim). Mesmo diante as diversas
palavra é nkali. É um substantivo
que livremente traduzido é “ser
adversidades que o povo de santo
maior do que o outro”. Como nossos enfrentou, o candomblé sempre foi
mundos econômicos e políticos,
histórias também são definidas pelo um dos principais focos de
princípio do nkali. Como são
contadas, tudo depende realmente resistência do povo negro,
do poder. Poder é a habilidade de
não só contar a história de uma constituindo um espaço de
outra pessoa, mas de faze-la a
história definitiva daquela pessoa.
preservação da cultura, tradições e
(ADICHIE, 2009) consolidação da identidade negra.
Segundo Munanga (1996), assim
A intenção não é hierarquizar
como o candomblé, os quilombos
as histórias, e sim reconhecer a
representavam formas de resistência
importância que cada História tem
negra para formação do povo afro-
para seu povo. Queremos alterar
brasileiro, reproduzindo um modelo
perspectiva de análise da história do
semelhante ao bantu20 dos séculos
povo afro-brasileiro e
XVI e XVII. O quilombo brasileiro é
consequentemente a do candomblé,
um grande reflexo do quilombo
criando linhas interpretativas para
africano, que serviu como
robustecer os diálogos sobre os
concentração de articulação política,
costumes, tradições e credo do povo
utilizado para acolher os oprimidos
de santo. No processo de formação
da sociedade sem nenhum tipo de
do povo afro-brasileiro, várias foram
distinção. E de acordo com
as formas de prélio travadas pela
Munanga:
população negra, que mesmo
No seu processo de
vivendo em um ambiente hostil e amadurecimento, o quilombo
tornou-se uma instituição política e
desconhecido, aferrado a militar transétnica, centralizada,
formada por sujeitos masculinos
sentimentos e crenças que submetidos a um ritual de iniciação.
Como instituição centralizada, o

20
Bantu – constitui um grupo etnolinguistico localizado principalmente na África Subsariana.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
13
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

quilombo era liberado por um um akiko (galo) para um Òrìsà, onde


guerreiro entre guerreiros, um chefe
intransigente dentro da rigidez da é preciso o trabalho do asogun e após
disciplina militar. Suas práticas e
estratégias desenvolveram-se o processo de imolação é repassado
dentro do modelo transcultural, com
objetivo de formar identidades
para yabassê21 que irá tratar o
pessoais ricas e estáveis, que não animal e preparar a refeição que será
podiam estruturar-se unicamente
dentro dos limites da sua cultura. direcionado para os próprios filhos
Um exemplo de união para superar
e erradicar o racismo e seus duplos de santo da casa e todos os
constituiu na República de
Palmares, cujo líder Zumbi, foi envolvidos, assim como nas grandes
morto em 1695, quase no fim do
século XVII.” (MUNANGA, 1995,
cerimonias dentro do terreiro de
pag.63) candomblé. Todo alimento que é
utilizado dentro de uma roça de
Essa ainda é uma
candomblé é reaproveitado, pois na
configuração do terreiro de
cultura africana a comida é um dos
candomblé que além de um modo de
símbolos que possui uma
vida, é um espaço de fortalecimento
representatividade muito grande na
de laços e identidade, que valoriza
organização social do grupo.
todos os seus membros
Oferecer um alimento a um Òrìsà, ou
independentemente de poder
repartir o próprio alimento com os
aquisitivo, etnia, origem e gênero. Lá
nossos ancestrais, é, antes de tudo
conseguimos perceber que existe
uma ação social. A culinária do
uma verdadeira escola que lhe
candomblé se diferencia da comida
concede subsídios para resgatar o
baiana que muitas vezes se inspiram
que um dia foi perdido ou tirado.
nos mesmos pratos da culinária do
Para que a engrenagem central
candomblé, contudo desprovida da
funcione é necessário empenho e
intenção de oferecer a alguma
dedicação de todos os envolvidos,
divindade. Cada alimento possui
pois, um depende exclusivamente do
seus significados e simbologia, um
trabalho do outro. Um grande
grande exemplo é o famoso akará22,
exemplo é o processo de oferenda de
conhecido no Brasil como acarajé,

21
Yabassê – surgiu da contração do termo ioruba Iyá Agbà sé, que significa “a senhora respeitável da
cozinha”.
22
Akará – termo ioruba, que pode ser traduzido como bola de fogo. Que são exatamente bolinhos de feijão-fradinho
quebrados, batidos com cebola e camarão, fritos no óleo de dendê.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
14
João Pedro Farias

um dos produtos preparados pelas mesma cultura e tradições de origens


baianas de acarajé, que nos remete comum, na cidade de Ifé24. De
ao “período da escravidão”, onde os acordo com Lydia Cabrera (1986),
escravos de ganho produziam seus no seu livro: “Anago, vocabulário
quitutes para vender nas feiras, lucumi”, os yorùbás são geralmente
praças, festivais, como fonte de renda conhecidos como “lucumi” e “nagô”
para sustento da sua família, que na respectivamente em Cuba e no
maioria das vezes conseguiram Brasil, onde se deduz que lucumi
suas cartas de alforria, com seria um nome de nação e anago o
acúmulo de pecúlio proveniente nome de sua língua. Já Vivaldo da
das atividades desenvolvidas fora Costa e Lima (2002, p. 14)25 propõe
do engenho do seu senhor, muitas que “o termo nagô” no Brasil, seja
vezes sem o seu consentimento. inspirado no termo empregado no
Dentro da cozinha de Daomé26 para designar os iorubás
candomblé temos contato com de qualquer origem.
diversos termos da língua ioruba, e Feito uma breve reflexão
é dessa forma que o mais novo sobre os termos pronunciados
aprende essa língua no convívio em quando o assunto é candomblé,
comunidade. O termo “yoruba” de conheceremos como esses
acordo com S. O. Biobaku (2002, p. ensinamentos são transmitidos
11)23 “aplica-se a um grupo dentro da roça de candomblé. Mas
linguístico de vários milhões de
como se dá à participação dessas
indivíduos”. Mesmo sem constituir
crianças dentro da comunidade?
uma única entidade politica, os
Quais são os desafios e
yoruba estavam unidos por uma
dificuldades? Esses conhecimentos

23
S. O. Biobaku – foi um estudioso, historiador e politico nigeriano que estava entre um conjunto de historiadores
iorubas que acompanharam o esforço pioneiro de Samuel Johnson ao estabelecer as bases da historiografia ioruba e
na criação de notas referenciais da literatura histórica africana nativa.
24
Ifé – antiga cidade ioruba no estado de Osún, localizada no sudoeste da Nigéria.
25
Vivaldo da Costa e Lima – foi um antropólogo e professor emérito da Universidade Federal da Bahia, “Formado em
odontologia” o professor se enveredou desde cedo para os caminhos da antropologia.
26
Daomé – era um Estado da África, localizado onde fica situado o Benin. O reino foi fundado no século XVII e durou
até 1904.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
15
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

são utilizados fora da comunidade são os únicos responsáveis por guiar


de santo? Para isso, analisaremos e orientar os pequenos no convívio
como os itan são utilizados nesse interno e externo. Durkheim (2010,
processo de ensino-aprendizagem e p.15) afirma que: através da

como esse conhecimento dialoga educação, o “ser individual”

fora do terreiro de candomblé. transforma-se em “ser social”. E o


que seria educação?

Como brincadeira de criança: Para compreender educação,

Educação nas roças de nos apoiaremos nos estudos

candomblé Ketu realizados por Emile Durkheim


(2010)27, que acreditava que a

No terreiro, a transmissão do educação era uma ação exercida

conhecimento é contínua, carregada pelas gerações adultas, sobre aquelas

de “novidades”, histórias e segredos. que estão maduras para vida social.

Todos os ensinamentos são O objetivo seria desenvolver na

repassados através da oralidade, criança competências físicas,

seguindo do mais velho para os mais intelectuais e morais que as

novos. Em uma visita ao terreiro Ilé sociedades requerem, definindo a

Asè Opô Ajá Omin, notei que as educação como uma socialização

crianças, mesmo aquelas na condição metódica da jovem geração. De

de iniciantes, as chamadas abian, acordo com Durkheim:


Essa “socialização metódica”, que é
transmitem seus conhecimentos aos a educação, corresponde à
mais novos. É impressionante a necessidade para toda sociedade se
assegurar as bases de suas
desenvoltura desses pequenos, que “condições de existência” e de sua
perenidade. Ela se opera, não resta
captam os ensinamentos e depois dúvida, desde o nascimento, no seio
da família, porém, é na escola que é
reproduzem em brincadeiras e sistematizada, de modo que a escola
se torna o lugar central da
conversas descontraídas aquilo que continuidade social, quando se trata
aprenderam com seus irmãos. Os da transmissão dos valores, das
normas e dos saberes.
líderes possuem um papel muito (DURKHEIM, 2010, p.51)

importante nesse processo, mas não

27
Emile Durkheim – foi um sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo francês. É comumente
citado como principal arquiteto da ciência social moderna e pai da sociologia.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
16
João Pedro Farias

Tomando como base que o escola, valorizando e reconhecendo


verdadeiro sentido da educação é como importantes e formadores de
socializar por meio do acúmulo do identidades e caráter. A valorização
conhecimento, ou seja, transmitir a dos processos existentes no terreiro
cultura, assim podemos considerar a de candomblé não implica no
religião e outros espaços como, rompimento com o ensino formal,
teatro, cinema e o terreiro de estamos propondo um diálogo entre
candomblé, ambientes de as diversas formas de educar, pois
aprendizado. E escolhemos trabalhar pensar a ciência como neutra e
exclusivamente com o candomblé da objetiva é negar a subjetividade
nação ketu28 devido os métodos de inerente ao ser humano. Vivemos em
ensino-aprendizagem utilizados nos um país de diversidades, onde por
terreiros que ajudaram com a muito tempo, foi trabalhada a
pesquisa. No livro de José Beniste educação, apenas por uma
(2002), “As águas de Oxalá – Àwon perspectiva eurocêntrica, e muitos
Omi Òsàlá”,que retrata o legado tratam essas diferenças culturais
étnico yoruba, conhecido como com desigualdade. Partindo dessa
código Womoluwabi, que discute a premissa, o outro sempre será alvo
importância da moralidade, do de uma grande carga preconceituosa,
respeito, honestidade e outros por esse motivo devemos
princípios essenciais para o convívio proporcionar esse tipo de diálogo
em comunidade. Não queremos sobre identidade e educação fora dos
colocar em xeque dois modelos de terreiros de candomblé. De acordo
ensino diferentes, a formal e a com Charlot :
informal, e sim de uma educação que A escola deveria estabelecer uma
relação entre o eu empírico e o eu
tenha como objetivo a socialização do epistêmico dessas crianças, uma
relação entrelaçada multicultural
indivíduo. Devemos dar mais pelas suas experiências individuais e
de grupo”. Porém, a escola
atenção aos processos educacionais historicamente ignora os valores
que perpetuam fora dos muros da culturais negros. (CHARLOT, 2000,
p.61)

28
Ketu – conhecido como a maior e mais popular nação do candomblé, tendo origens nas tradições dos povos da
região Ketu. Incluindo os iorubas.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
17
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

gerações precedentes. Dessa forma


E como defende Albuquerque:
incorporam modos de pensar e agir,
Em tese, toda religião funciona próprios dessa cultura, de acordo
como uma escola, isto é, toda
religião tem uma tarefa com ele:
essencialmente pedagógica e visa a
transmissão de determinados
conhecimentos tidos como O comportamento do homem
verdadeiros. Tal é a função do padre, moderno, cultural, não é só produto
do pastor, do sacerdote ou do pai de da evolução biológica, ou resultado
santo. (ALBUQUERQUE, 2011, p. do desenvolvimento infantil, mas
170-1) também produto do
desenvolvimento histórico. No
A importância está processo de desenvolvimento
histórico da humanidade,
exatamente na valorização da criança ocorreram mudanças e
desenvolvimentos não só nas
como ela é, não se pode ignorar o que relações externas entre pessoas e no
relacionamento do homem com a
ela sabe, o que ela aprendeu com a natureza, sua natureza mesmo,
mudou e se desenvolveu.
família e com a vida. E conseguimos (VYGOTSKY; LURIA; LEONTIEV,
captar que em alguns momentos os 2006, p. 95)

adultos aprendem muito mais com as Os pequenos do candomblé se


crianças, do que ensinam, elas têm articulam no terreiro de candomblé,
talentos. Nos dias atuais é mais com auxílio dos integrantes mais
frequente o envolvimento das experientes. Dessa maneira, eles
crianças nos processos ritualísticos viajam em um mundo
do candomblé, tais como: completamente diferente, onde
Obrigações, bori29, webó30, na passam por um processo de
ornamentação e organização do ressignificação, atribuindo novos
espaço. Os pequenos participam sentidos e significados aos objetos
como gente grande. Segundo que em outro contexto social seriam
Vygotski31(2006) a partir do descritos de diferentes maneiras. E
nascimento, a pessoa passa a compor utilizaremos como exemplo o abebé,
um mundo que foi histórico e que pode parecer para muitos,
culturalmente organizado pelas apenas um espelho, porém para

29
Bori – processo ritualístico conhecido como dar comida à cabeça.
30
Webó – ritualística de limpeza corporal
31
Levy Vygotsky – bielorrusso, pioneiro no conceito de que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em
função das interações sociais e condições de vida.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
18
João Pedro Farias

maioria dos pequenos, ele possui enxergamos o crescimento dos


uma representatividade muito pequenos do candomblé, momento
grande, por ser um componente da que eles entram em contato com o
indumentária utilizada por Osún32 e sagrado, vivem a energia (consciente
Yemonja33. O abebé é um paramento ou inconscientemente) e tem contato
ritual, símbolo do poder feminino e com um novo mundo. Caputo37 e
da realeza. Esses símbolos da Passos38 (2007), afirmaram que em
herança africana nagô se articulam diálogo com José Beniste o mesmo
como preciosos recursos informou a eles que no candomblé:
educacionais para o ensino da [...] o conhecimento das coisas de
santo é passado na medida em que
história e cultura dos africanos e
haja participação, pois tudo se
afro-brasileiros. Esses instrumentos
aprende fazendo. Não há uma
carregam informações valiosas sobre cultura didática, há uma cultura de
a cosmogonia dos nossos participação. Viu, repetiu,
antepassados africanos. aprendeu. (CAPUTO; PASSOS,
2007, p.99)
Outra forma de evidenciar o
processo de aprender-fazer é no
E notamos isso nas crianças
momento do siré34: é notório como
que ainda não foram iniciadas.
as crianças reproduzem os passos
Saber é um sinal de iniciação e
dos seus mais velhos e dos Òrìsà, seja
“este que sabe” é alguém já integrado
na sutileza do aguerê35 ou na
ao grupo e a cultura. O segredo
delicadeza do ijesá36. Nessa mistura
significa a sua pertença ao grupo. E
de brincadeira, diversão e tradição,

32
Osún – dona das águas doce. Na África mora no rio osún, considerada senhora da fertilidade, da gestação e do parto.
33
Yemonja – rainha do mar. Na África foi adotada por Olocum. Yemonja na África era cultuada nas águas doces,
sofrendo uma modificação de território quando começou ser cultuada aqui no Brasil.
34
Siré – é uma palavra yoruba que significa movimento ou dança realizada para evocação dos òrìsàs.
35
Aguerê – dança atribuída aos caçadores que são conhecidos como odé. Dança ritmada que simula quando o caçador
vai para matar nas suas caçadas.
36
Ijesà – ritmo oriundo a cidade de ilesa, na Nigéria.
37
Stela Guedes Caputo – é Doutora em Educação. É professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-
Graduação da UERJ e fotógrafa.

38
Mailsa Carla Pinto Passos - Doutora em Educação Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do rio de Janeiro
PUC-Rio. É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
19
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

mais, é passar a pertença a uma nova assim um processo de ensino e


família, a “família de santo”. aprendizagem dentro do terreiro de
(CAPUTO; PASSOS, 2007, p.97) candomblé.
Com essa interação as
Essa análise também
crianças de candomblé se
procurou dar uma visibilidade
desenvolvem de forma grandiosa e
maior à precisão de analisarmos as
possibilita o debate de novas
práticas educativas existentes fora
possibilidades pedagógicas,
dos muros da escola,
contribuindo grandiosamente para o
reconhecendo, valorizando e
sistema de ensino formal. E com isso
aplicando-as no ensino formal.
deixamos o seguinte
Notamos que essas práticas
questionamento: porque não
educativas têm um papel central na
trabalhar com as diversas religiões,
formação de caráter e identidades.
do judaísmo até as religiões afro-
brasileiras? Fomentar nossas Assim colaboraremos para

possibilidades pedagógicas é o nosso superação das barreiras da

legado para construção de novos pesquisa educacional. E


métodos que auxiliem o ensino contribuiremos no processo de
formal e valorizem os saberes visibilidade das práticas
produzidos fora dos muros da escola. pedagógicas não escolares,
auxiliando na preparação dos
CONSIDERAÇÕES FINAIS professores que encontram
dificuldades de trabalhar com a
Nesse artigo busquei cultura e tradições afro-brasileiras.
compreender as contribuições dos Portanto, com a utilização dos
itan da nação ketu no processo de contos afro-brasileiros,
formação dos filhos de santo do conseguiremos minimizar a carga
terreiro de candomblé Ilé Asè Opô negativa que foi alimentada por
Ajá Omin, entendendo esse essa ideologia eurocêntrica.
processo como educativo, tendo em Dessa forma iremos abrir
vista que é formada uma teia de caminho para novos métodos
conhecimentos, caracterizando pedagógicos produzidos em

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
20
João Pedro Farias

ambientes não escolares, religiões de matriz africana,


concedendo oportunidades para as visando a quebra dos paradigmas
crianças de candomblé transmitir formados sobre essa cultura que
os saberes produzidos dentro do apresenta uma herança rica.
terreiro. Dessa forma iremos gerar
novos debates em torno das
REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. 2009. (Vídeo da


palestra da escritora nigeriana no evento Tecnology, Entertainment and Design
– TEDGlobal 2009. Tradução para o português por Goreti Araújo. Revisado por
Paulo Calçada.) Disponível em:
<https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_
story?language=pt>. Acesso em: 01 de maio.de 2018.

ALBUQUERQUE, Maria Betânia. Epistemologia e Saberes da Ayahuasca.


1.ed. Belém: EDUEPA, 2011.

BENISTE, José. As águas de Oxalá - Àwon Omi Òsàlá. Rio de janeiro: Bertrand
Brasil, 2002.

BIOBAKU, S. O. - “An historical aketch of the peoples of western


Nigeria”, in Odù, Ibadan, 1958.

CABRERA, Lydia. Anagó, Vocabulário Lucumí (El Yoruba Que Se Habla en


Cuba), 2. ed. Miami, Ediciones Universal, 1986.

CAPUTO, Stela Guedes. Educação em terreiros e como a escola se


relaciona com as crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

CAPUTO, S.G. Educação em terreiros de candomblé – contribuições para


uma educação multicultural crítica. In: CANDAU, Vera (org). Educação
Intercultural e Cotidiano Escolar. Rio de Janeiro : 7 Letras, 2006

CAPUTO, Stela Guedes; PASSOS, Mailsa. Cultura e conhecimento em


terreiros de Candomblé: lendo e conversando com Mãe Beata de Yemonjá.
Currículo sem Fronteiras, Porto Alegre, v. 7, n. 2. p. 93-111, 2007.

CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação dos professores e


globalização: questões para educação. Porto Alegre: Artmed, 2005.

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto


Alegre: Artmed, 2000

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
21
As contribuições dos itan Ketu-Nagô para o ensino formal e o empoderamento das crianças de candomblé

EYIN, Pai Cido de Òsun – Acaça: Onde tudo começou / Pai Cido de Òsun Eyin.
– São Paulo: Arx, 2002.

Filloux, Jean-Claude. Émile Durkheim / Jean-Claude Filloux; tradução: Celso do


Prado Ferraz de Carvalho, Miguel Henrique Russo. – Recife: Fundação Joaquim
Nabuco, Editora Massangana, 2010.

JOAQUIM, Maria Salete. O papel da liderança religiosa feminina na


construção da identidade negra. Rio de Janeiro : Pallas; São Paulo: Educ,
2001.

LIMA, Vivaldo da costa. A Família de Santo nos candomblés jejês-nagôs


da Bahia; Salvador , Editora Corrupio 2003.

MACÊDO, Marluce de Lima. Professores/as de história e a lei 10639/2003:


experiências e desafios. ANAIS DO 18º EPENN - POLÍTICA DE CIÊNCIA E
TECNOLOGIA E FORMAÇÃO DO PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO. Maceió,
2007.

MACHADO, Vanda. Ilê Axé: Vivências e invenção pedagógica – as crianças do


Opô Afonjá. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2002.

MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. In: Revista


USP, São Paulo, Nº 28, 1996, p. 56-63.

PASSOS, M.C. (2004) O jongo, o jogo, a ONG: um estudo etnográfico sobre a


transmissão da prática cultural do jongo em dois grupos do Estado do Rio de
Janeiro – (mimeo) – tese de doutorado. Rio de Janeiro : PUC, Departamento de
Educação.

PÓVOAS, Ruy do Carmo. Itan dos mais-velhos : (contos). 2ª. Ed. – Ilhéus, Ba:
Editus, 2004.

PRANDI, Reginaldo, Mitologia dos Orixás . São Paulo: Companhia das Letras,
2001.

REGO, Cristina Tereza. Vygotsky. Petrópolis: Vozes, 1994.

SARMENTO, Manuel Jacinto. A Reinvenção do Ofício de Criança e Aluno. Atos


de pesquisa em Educação, v.6, n. 3, p. 581-602, set./dez.2011.
DOI: http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2011v6n3p581-602

____.; GOUVÊA, M. C. S. Estudos da Infância: educação e práticas sociais.


Petrópolis: Vozes, 2008.

VERGER. Pierre Fatumbi. Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo


Mundo. Tradução Maria Aparecida da Nóbrega; 6ª Ed. Salvador: Corrupio,
2002. ‘

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
22
João Pedro Farias

____. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a


Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. Tradução Tasso Gadzanis.
– São Paulo: Corrupio, 1987.

VYGOTSKY, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem,


Desenvolvimento e Aprendizagem. 10ª ed. São Paulo: Ícone, 2006.

Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 6, n. 9, p. 5-23, jul./dez. 2018
ISSN 2317-9457 | 2317-9465
Acesse: revistas.uneb.br/index.php/opara
23

Você também pode gostar