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1- INTRODUÇÃO

Gloria Moura*

A Lei Nº. 10.639/03 que “Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, obriga a incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e dá outras
providências”. A aprofundada análise feita pelo Conselho Nacional de Educação/Conselho
Pleno, consubstanciada no Parecer CNE/CP 03/2004, informou a Resolução Nº. 1, de 17 de
junho de 2004, do CNE, que “Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana”. No entanto sabe-se do desconhecimento dos professores em relação aos
conteúdos exigidos pela Lei. A partir dessa constatação construímos o Curso de Formação
de Professores Ensino Afro-Brasil.

Pensar esse curso é pensar o país em que vivemos com sua formação histórica e sua
marca africana indelevelmente deixada em todas as instâncias da vida nacional. Perseguir a
meta de conhecer nossas origens e nossas raízes é buscar sedimentar nossa identidade ainda
inconclusa.

Conhecer a África de ontem e de hoje, a história do Brasil contada na perspectiva do


negro, com exemplos na política, na economia, na sociedade em geral é uns dos objetivos
que se pretende atingir com esse curso. Pretende-se ainda reafirmar a constante presença da
marca africana dos nossos ancestrais na literatura, na música, na criatividade, na forma de
viver e de pensar, de andar, de dançar, de falar e de rir, de rezar e festejar a vida. O curso
ainda pretende colaborar para uma crescente valorização da comunidade negra,
contribuindo para a elevação de sua auto-estima. Existe ainda a pretensão de dar aos
professores os mecanismos indispensáveis para o conhecimento de um Brasil fortemente
marcado pela cultura africana na perspectiva de mudança da mentalidade preconceituosa.

Conhecer e a aplicar a legislação tem a finalidade de fazer cumprir e garantir a plena


eficácia do Art. 5º da Carta Magna “Todos são iguais perante a lei”, na certeza de que não
há desiguais, mas diferentes. O respeito à diferença deve ser um dos sustentáculos de uma
sociedade democrática, sonho de um país justo, e de uma sociedade marcada pela
cidadania, pela inclusão.
A escola é uma das instituições responsáveis pela instauração desse processo. Ela
forma gerações e poderá contribuir para a mudança do quadro de injustiças vigente. É ainda
de sua competência respeitar matrizes culturais e construir identidades, visando à dignidade
da pessoa, respeitando as especificidades da herança cultural inclusa na infinita diversidade
que constitui a riqueza humana.

O professor consciente de seu papel revolucionário será o baluarte da transformação


de seus alunos fazendo-os seres pensantes e responsáveis por suas atitudes, pela ação nas
mudanças necessárias. Segundo o Prof. Paulo Freire é preciso descolonizar as mentes, a fim
de que o nosso jeito de ser e a nossa cultura possam ser valorizados.

Com essas considerações apresentamos as unidades do curso de Formação de


Professores Ensino Afro-Brasil à distância, na certeza de contribuir para a capacitação de
professores conhecedores de sua história e de seu papel na sociedade, para que mestiços,
brancos, indígenas e negros formem uma sociedade de homens livres e com uma visão de
mundo aberta ao novo numa tendência a superar as violências implantando uma sociedade
onde impere a PAZ.

Unidades:
1- Introdução ..............................................................................Profa Glória Moura
2- Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais .....................Profª Ana Lucia Lopes
3- O Ensino da História da África em debate (Uma introdução aos estudos
africanos).................................................................Prof. Anderson Ribeiro Oliva
4- O Negro no Brasil .................................................... Prof. Luiz Carlos dos Santos
5- A incisiva marca africana na cultura Brasileira .....................................................
........................................................Profs. Alexandre Ratts e Adriane Damascena
6- O Direito é legal no combate ao racismo ..................................Dra. Vera Santana

*Gloria Moura, Professora da Faculdade de Educação/Universidade de Brasília. Graduou-se


em Pedagogia na Universidade Federal Fluminense. Mestrou-se em Planejamento Educacional
na Universidade de Brasília. Doutorou-se em Educação na Universidade de São Paulo. É
membro do Conselho de Ciência e Tecnologia Palmares/CNPq. Consultora do MEC/Pnud
produziu “Uma História do Povo Kalunga”, livro didático para remanescentes de quilombos. É
pesquisadora do CNPq.
UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais
Aula2.01 – Escola, sua função social e sua história

Caro Professor

Antes de refletir sobre o Currículo e as suas implicações na constituição de


identidades individuais e sociais, gostaríamos de refletir sobre a Escola, sua função social e
as condições de acesso e permanência da população negra e mestiça em relação ao sistema
de ensino.
A Escola na nossa sociedade é a segunda instituição responsável pelas relações de
sociabilidade de crianças e jovens, depois, é claro, da família. Nela o aprendizado sobre as
regras e valores sociais é experimentado sob a ótica do grupo. Não se trata de cada um com
seus pais, e sim com seus pares, mediados pela figura do professor. Entrando na escola cada
vez mais jovem, a criança aprende logo cedo a dividir a atenção e os cuidados do adulto
com os outros no grupo. Esta é uma grande experiência fundante na sociabilidade escolar e
na construção de identidades. As experiências iniciais com a escola precisam ser levadas a
sério, pois podem definir a base de uma trajetória escolar mais tranqüila ou mais atribulada.
Sentir-se acolhido, incluído e integrado facilita a construção de uma auto-estima positiva,
elemento fundamental para o sucesso escolar.
Desde a sua origem, a função social da Escola como transmissora da instrução
pública foi motivo de estudos e de reflexões, nos diversos momentos históricos por que
passaram as modernas sociedades ocidentais, sendo abordada por diferentes tendências
teóricas, cada uma das quais construiu seu ideário específico a respeito dela. De fato, foi só
no final do século XVIII, por volta de 1790, que o ensino passou a ser motivo de
preocupações constantes por parte das Assembléias Revolucionárias na França, e a
Constituição do ano III anunciou o princípio de “uma instrução pública comum a todos os
cidadãos, gratuita, no que se refere à parte indispensável para todos os homens” (Soboul,
A: 1981:50).
Sem dúvida, o caráter universalizante e homogeneizador do ensino na Escola,
como responsável pela instrução pública, estava vinculado às enormes transformações
sociais, políticas, econômicas e culturais por que passava o mundo Ocidental naquele
momento. Esta Escola surge no bojo da própria definição do papel do moderno Estado
nacional e de seus serviços, e é ela a precursora da Escola laica e da obrigatoriedade da
universalização do ensino, princípios quase intocáveis até os nossos dias.

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Aula2.01 – Escola, sua função social e sua história
A Escola de que falamos hoje é, portanto, herdeira das intenções contidas na
Constituição francesa do ano de 1792. Os princípios gerais do pensamento liberal, isto é, o
individualismo, a propriedade, a igualdade e a liberdade, estavam no fundamento do
surgimento da Escola como responsável por uma instrução pública. Essa Escola deveria
garantir o respeito aos talentos e aptidões individuais e seu desenvolvimento ao máximo da
capacidade de cada um, bem como a liberdade individual dessa escolha, no sentido de
melhor aproveitar as potencialidades individuais, em respeito à personalidade de cada um.
A idéia de igualdade do pensamento liberal estava vinculada à igualdade perante a lei, dela
derivando a igualdade de oportunidades de acesso à instrução pública, como igualdade de
direitos, independente do pertencimento a qualquer classe social.
Esses princípios apontam para a democracia como forma ideal de governo, capaz
de assegurar a todos os indivíduos o direito à participação na vida social e política da
nação. Eles não encontraram, evidentemente, um consenso total quanto aos significados de
seus postulados teóricos no pensamento liberal (Quirino dos Santos, C e Montes, M.L:
1987), mas o que nos interessa aqui é ressaltar o contorno que eles davam ao papel social
da Escola que surgia na época, e que foi, ao longo da sua história, compondo o imaginário
da função social da instituição escolar até os nossos dias.
Acreditava-se num desenvolvimento humano independente da família, das
instituições religiosas e das classes sociais, que aconteceria pela revelação dos dotes inatos,
aptidões e vocações de cada um. Este desenvolvimento seria mediado pela Escola que,
cumprindo esse papel, garantiria ou, pelo menos, contribuiria de modo inestimável para a
realização individual, condição do progresso geral.
Deste modo, o final do século XVIII, com todas as suas transformações, pôs fim ao
privilégio do acesso ao ensino, abrindo a perspectiva do direito à Educação como condição
de progresso social, regulamentando-o na forma da Lei, e estabelecendo como função do
Estado a sua garantia.
Um longo percurso de transformações históricas e de construções teóricas a respeito
delas aconteceu desde então. A ebulição de idéias que caracteriza o início do século vinte
trouxe para a Escola os filósofos, os epistemólogos, os sociólogos, os lingüistas, os
herdeiros da psicanálise, todos contribuindo, à luz da sua disciplina, para desvendar a
Escola e sua função social.

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Aula2.02 – A Escola e a reprodução das desigualdades

A situação da criança e do jovem negro e do mestiço não tem suscitado muito


interesse nas reflexões educacionais brasileiras, se considerarmos a história da Educação
em nosso país e sua produção teórica.
Assim, é conhecida a precariedade de dados sobre a trajetória escolar dos alunos
negros e mestiços, desde o ensino fundamental até o universitário. Entretanto, algumas
publicações recentes acerca das desigualdades raciais no Brasil e, em particular, dos seus
reflexos no sistema educacional brasileiro, têm contribuído para conhecer um pouco mais
as condições de ingresso e permanência do aluno negro e do mestiço no sistema escolar.
De uma perspectiva mais abrangente, os dados sobre a escolaridade das crianças de
ascendência africana, inclusive os coletados pelo IBGE/PNAD, sugerem que a vida escolar
dessas crianças é mais difícil e acidentada que a das crianças brancas, isto é, elas enfrentam
maior número de saídas e voltas para o sistema escolar.1 Tanto os dados sobre o
analfabetismo como os de anos de instrução formal, por cor ou raça, revelam níveis
inferiores de escolaridade na população de ascendência africana.
Em relação à média de anos de estudo e instrução formal das pessoas de vinte e
cinco anos ou mais, por cor ou raça, há uma diferença de dois anos de escolaridade a menos
nas populações de ascendência africana. A população branca, em 2001, apresentou 6,9 anos
de estudo, enquanto a população de ascendência africana apresentou 4,7 anos de estudo.
Essa diferença não se altera se compararmos com os dados de 1992, quando a população
branca apresentava 5,9 anos de estudo e a de ascendência africana 3,6 anos de estudo. Vale
ressaltar que a média de anos de estudo no Brasil aumentou, mantendo, porém, um nível de
desigualdade entre as populações de origem étnica diferente, e que essa diferença
permanece, mesmo que isolemos os dados de condição econômica e renda familiar. Em

1
Ver Lopes (2003); Henriques Ricardo (2001); Sampaio, Limongi e Torres (2000);
Rosemberg,F.(1987)

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Aula2.02 – A Escola e a reprodução das desigualdades
outras palavras, a população pobre branca tem anos a mais de estudos que a população
pobre negra.2
A manutenção dessa diferença, quando observada em níveis econômicos
semelhantes, nos leva a refletir sobre outros aspectos da dinâmica social. Segundo
Hasenbalg e do Valle, “a literatura sociológica mais recente tem mostrado a centralidade da
educação para a reprodução das desigualdades entre brancos e não-brancos”.3
Estudo recente sobre os concluintes do Ensino Superior4 confirma essa diferença, ao
demonstrar que, dos alunos que terminaram cursos do Ensino Superior em 2001, segundo
os dados do INEP/ENC, 2,7 por cento se auto-classificaram como negros, 16,4 por cento
como pardos/mulatos e 77,8 por cento como brancos. A despeito da complexidade das
questões envolvidas na auto-atribuição de cor ou raça no nosso país, uma importante
desigualdade se confirma, ao compararmos esse resultado com os percentuais da
composição racial brasileira, que conta em sua população, segundo o IBGE-2001, 51 por
cento de brancos e 47 por cento de negros, categoria que, engloba pretos e pardos.
Essa análise nos remete de forma evidente a um processo de exclusão escolar
voltado principalmente à população negra e mestiça, embora seja preciso ter cuidado com
as análises que aparentemente explicam esses processos de exclusão ao preço de reificar a
condição da população negra e mestiça em nosso país. Não obstante essa ressalva, é
contudo inegável, conforme indica um outro estudo realizado por Vale Silva e Hasenbalg
(1999), que “é no processo de aquisição da educação que reside o núcleo de desvantagens
que indivíduos negros ou pardos sofrem na sociedade brasileira”.
De fato, a “naturalização” das desigualdades étnico-raciais no Brasil opera de modo
eficiente, dificultando um olhar mais cuidadoso sobre os resultados dessas desigualdades no
sistema educacional. Neste sentido, ao observarmos alguns dos instrumentos do currículo
escolar ao longo da história da educação no Brasil, veremos que, por exemplo, os

2
Ver: Henriques, R. Desigualdade racial no Brasil; evolução das condições de vida na década de 90.
Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisas Aplicadas, 2001 e Hasembalg, C. & Silva, N.V. Família, Cor e acesso
escolar no Brasil, in Cor e Estratificação Social. Rio de Janeiro.Contra Capa Livraria, 1999.
3
Hasembalg, C. & Silva, N.V. Família, Cor e acesso escolar no Brasil, in Cor e Estratificação
Social. Rio de Janeiro.Contra Capa Livraria, 1999.
4
Ver Lopes, Ana L. Alunos negro-mestiços concluintes do ensino superior, in Seminário O negro e o
Ensino Superior. NUPES – USP, 2003.

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais
Aula2.02 – A Escola e a reprodução das desigualdades
conteúdos escolhidos pelo currículo escolar não legitimam a presença do negro como uma
das matrizes fundantes na constituição do povo brasileiro. Este é um conteúdo restrito ao
período da escravidão, e que, mesmo assim, apresenta o negro como subalterno e inferior.
Um outro e importante instrumento é o livro didático, que traduz em imagens e
textos o que deve ser aprendido pelos alunos, orientados pelos professores. Como se
apresenta então o livro didático em relação à grande maioria de crianças de famílias negras
e mestiças que freqüentam as Escolas? De uma maneira geral, não há espaço de imagem
para a criança negra aparecer feliz, brincando, estudando, tendo uma família. A imagem
dessa criança negra fica na falta ou, quando preenchida, é pela vida da sub-imagem, aquela
na qual o reconhecimento fortalece e reifica a discriminação e a inferioridade sócio-
cultural.
Assim, ao recuperarmos a reflexão anterior sobre a Escola e a sua função social,
podemos nos perguntar sobre qual tem sido a função social da Escola especificamente para
a população negra e mestiça na nossa sociedade.

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais
Aula2.03 – A Escola e o Currículo

Nas nossas modernas sociedades, fica reservada à Escola grande parcela do ensino
reconhecido socialmente como tal. E sabemos que só há ensino quando há intenção de
aprendizagem, e que a aprendizagem, ou a condição dela, é que aparece como conteúdo de
inscrição genética no instinto humano. A própria história mostra, no seu percurso, a
importância de transmitir os conhecimentos de uma geração a outra, como garantia mesmo
da nossa sobrevivência enquanto espécie, e que as sociedades humanas, nos diversos
momentos da sua trajetória, criaram formas de garantir essa passagem.
Neste sentido é que o conceito de Currículo, como forma de organização do
conhecimento escolar, surge como importante na reflexão sobre o papel social da Escola.
Não se trata aqui de percorrer a história do currículo como campo de investigação,
principalmente da sociologia da educação, nem de buscar as linhas teóricas que o
constituem ou discutir a estrutura do currículo em si. O que nos interessa é refletir sobre as
implicações das visões sociais que o currículo oficial produz, e a que relações ele está
vinculado em nossa sociedade.
De uma maneira geral, o currículo escolar tem se relacionado aos diferentes
interesses dos projetos nacionais, tanto no Brasil como em outros países. Um exemplo
recente disso é a Reforma de Ensino trazida pela Lei 5692/71, criada sete anos após o
regime militar estar no poder. Era um momento de assegurar a soberania nacional, e a idéia
de desenvolvimento nacional, vista na época de uma nova perspectiva, tecnicista,
informava a reorganização da Legislação Escolar posta em vigor. Tratava-se de ampliar as
possibilidades de acesso ao ensino regular obrigatório, que nesse momento passara de
quatro para oito anos. Um currículo mínimo nacional, núcleo comum, foi estipulado, e a
profissionalização aparecia desde o primeiro grau na forma de sondagem de aptidões ou de
iniciação para o trabalho, deixando no então recém-instituído segundo grau a marca
definitiva da profissionalização ao nível técnico médio. Na história da educação brasileira,
outras reformas curriculares antecederam a essa e hoje, após a Lei 9.394/96, Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a partir da qual se elaborou os Parâmetros
Curriculares Nacionais que orientam as escolhas dos conteúdos curriculares nas nossas
escolas.

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Aula2.03 – A Escola e o Currículo
Dessa forma, o currículo não é um elemento neutro e desinteressado na transmissão
de conteúdos do conhecimento social. Ele esteve sempre imbricado em relações políticas de
poder e de controle social sobre a produção desse conhecimento, e por isso, ao transmitir
visões de mundo particulares, reproduz valores que irão participar da formação de
identidades individuais e sociais e, portanto, de sujeitos sociais.
A escolha dos conteúdos curriculares, tanto dos conteúdos conceituais e temáticos,
como os conteúdos de valores morais, passa por essas relações. Fica então para nós, que
estamos refletindo sobre a omissão, no currículo escolar, das informações sobre a presença
e participação dos negros na história brasileira – a ponto de não conseguirmos separar, no
plano da cultura, o que é ser negro do que é ser brasileiro – as seguintes questões: A quem
interessou essa omissão? E qual a relação entre essa omissão, consentida pelo currículo e
pela escola, e os resultados sobre a vida escolar dos alunos de ascendência africana?
Como se constrói a identidade dessas crianças e jovens na experiência escolar?
Como fica a sua auto-imagem e auto-estima, quando o espelho oferecido é o da omissão
exemplar, da falta de prestígio social e histórico da população negra e mestiça?
É preciso olhar mais de perto as experiências escolares que essas crianças e jovens
vivenciam. A escola precisa aprender, para propor situações de aprendizagem que
considerem a presença fundamental dos negros e mestiços em nossa sociedade, e, com isso,
no currículo cotidiano, proporcionar outros encontros identitários, mas, dessa vez, de
inclusão, de sucesso e, portanto, de aprendizagens positivas.
O currículo vivenciado pelos alunos vai além dos conteúdos escolhidos para serem
ministrados pelos professores. A existência, na experiência escolar, de um “currículo
oculto”, ao lado do currículo oficial, está confirmada por vários estudos sobre o tema. O
conceito de “currículo oculto” como o conjunto de experiências não explicitadas pelo
currículo oficial nos permite ampliar a reflexão sobre o tipo de mensagens cotidianas –
traduzidas pelas páginas dos livros escolares, pelo preconceito racial entre colegas e entre
professores e alunos – que são levadas ao conjunto dos alunos negros e mestiços. Ele inclui
conteúdos não ditos, valores morais explicitados nos olhares e gestos, apreciações e
repreensões de condutas, aproximações e repulsas de afetos, legitimações e indiferenças em
relação a atitudes, escolhas e preferências. Alguns relatos de trabalhos produzidos nesta

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Aula2.03 – A Escola e o Currículo
linha revelam o nível de exclusão traduzido no plano da violência simbólica a que estes
alunos estão submetidos na sua experiência escolar.
Nesta medida, uma discussão acerca do preconceito racial e das suas manifestações
na sociedade brasileira e, em particular, na escola, precisa ser feita. Ela é necessária porque
é preciso ampliar a compreensão do problema, para então se poder refletir sobre o que e por
que deve ser escolhido como conteúdo para compor um currículo escolar que privilegie um
deslocamento do olhar sobre os negros e mestiços na nossa história e cultura.

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Aula2.04 – O preconceito racial no caso brasileiro

O preconceito racial, no caso brasileiro, opera fundamentalmente em três


dimensões: a moral, a intelectual e a estética. As atribuições, as piadas e as brincadeiras
que reforçam o preconceito racial quase sempre revelam conteúdos racistas relacionados a
essas três dimensões. Assim, é conhecido o “quando não suja na entrada, suja na saída”,
“é preto, mas é inteligente” “é preto, mas é bonitinho”, “é preto, mas é uma graça”, ou
ainda a classificação de cabelo ruim ou cabelo duro, quase sempre acompanhada de risos.
A complexidade das relações raciais na sociedade brasileira foi construída com base
no processo de escravização do negro. Isto foi o que criou, ao longo de séculos de história,
tanto no escravizado quanto no escravocrata, representações sociais e experiências de
subalternidade que são, do ponto de vista individual, de uma fundura simbólica imensa, e
que produzem, do ponto de vista social, um engessamento de lugares e de hegemonia.
Não foi uma observação espontânea de um certo gradiente de cor de pele que deu
origem às denominações “branco” e “negro” no nosso país. A nossa experiência de
classificação está vinculada à subalternidade da escravidão, que foi utilizada como
nomeação e demarcação de lugares sociais. Esta origem da classificação por cor é
carregada de um conteúdo marcadamente discriminatório, e com ele vêm junto conceitos,
opiniões e certezas que informaram, ao longo da nossa história, o lugar de cada um –
brancos e negros – no imaginário social.
Os bantos, nagôs, minas, gêges que foram escravizados e trazidos em grandes
contingentes para o Brasil, aqui se tornaram “africanos”, ganhando, junto com o termo
“africano” para sua identificação, outros dois, o de “negro”, identificador da sua condição
racial, e o de “escravo”, descrevendo sua condição social. Isto acabou por produzir uma
fusão de significados entre os termos, todos referentes a uma condição percebida como de
inferioridade.
Entretanto, mesmo sob a égide da escravidão, que os reduzia à condição de peças,
esses homens e mulheres africanos se constituíram em uma das matrizes fundadoras do
nosso povo.1 A ambigüidade das relações escravocratas, no caso brasileiro, permitiu ao
negro africano um jogo sutil entre ser objeto no modo de produção e aos poucos ir

1
Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo. Companhia das
Letras, 1995.

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Aula2.04 – O preconceito racial no caso brasileiro
negociando lugares de sujeito nas relações sociais e culturais. A história brasileira está
repleta de exemplos da participação de homens negros e mestiços em importantes lutas nos
diferentes momentos da constituição do país.
No entanto, a marca do preconceito e da discriminação racial está contida na
desigualdade de acesso às posições sociais e nos baixos índices sócio-econômicos, o que
nos mostra a necessidade de ampliar o entendimento de como o preconceito opera na nossa
sociedade.
Um grande e fundamental passo para entender esse processo foi dado por Oracy
Nogueira2 quando, dentro das “relações raciais”, ele escolheu estudar“o estado atual das
relações entre os componentes brancos e de cor da população brasileira”· , o que lhe
permitiu colocar o preconceito racial como foco central do estudo das “relações raciais” no
Brasil.
O seu estudo toma como base uma análise comparativa de como se explicitam as
relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, e foi apresentado originalmente por
Nogueira em 1954, como parte das reflexões acerca das relações raciais no Brasil
desenvolvidas por um programa de pesquisa patrocinado pela UNESCO, no início da
década de cinqüenta.
A distinção apresentada por Nogueira entre preconceito racial de marca e de
origem é essencial. No caso brasileiro, é o preconceito racial de marca – isto é, aquele
vinculado à aparência física, manifestações gestuais etc. – que permite, em função do grau
de mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, decidir a sua inclusão ou exclusão na categoria
de negro. Isto é o que se torna impossível frente ao preconceito racial de origem vivido nos
Estados Unidos, segundo o qual a definição étnica está dada pela hereditariedade,
independente do fato de o indivíduo trazer ou não traços do fenótipo negro.
No Brasil, os estudos têm revelado um gradiente maior de cores auto-atribuídas
quando existe uma presença marcada de traços do fenótipo negro e, ao contrário, quando a
predominância é do fenótipo branco, as dúvidas de auto-atribuição são bem menores e o
gradiente de cores, também. Entretanto, isso não nos impede de observar que os indicadores

2
Nogueira, Oracy. Tanto Preto Quanto Branco: Estudo de Relações Raciais. São Paulo: T.A.Queiroz,
Editor,1985.

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais
Aula2.04 – O preconceito racial no caso brasileiro
socioeconômicos, colhidos nos censos e nas pesquisas domiciliares, aproximam pretos e
pardos e distanciam brancos e negros.
Por outro lado, as expressões que denotam o preconceito racial estão de tal forma
impregnadas na nossa sociabilidade que já ficaram naturalizadas no nosso cotidiano, como
padrão predominante de comportamento social e, por isso mesmo, nos obrigam ampliar a
observação e a interferência nessas situações.

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais

5- O Currículo cotidiano

Ao tomarmos o currículo escolar como o conjunto de experiências pelas quais os


alunos passam, o que nos permite agregar ao currículo oficial o currículo oculto, podemos
também incluir na idéia de currículo uma outra noção, que é a de currículo cotidiano, pois é
no dia a dia que o currículo se realiza. Neste sentido, o grande desafio para qualquer
professor é manter em sua prática cotidiana os princípios que, segundo ele próprio acredita,
devem orientar a sua ação. É muito fácil deixá-los de lado em razão da multiplicidade de
questões que aparecem na dinâmica escolar, desde dificuldades das mais várias ordens
relativas aos alunos e suas famílias até as que dizem respeito à estrutura da escola, a
escolha dos livros e outros materiais pedagógicos ou o escasso tempo e orientação para a
pesquisa e planejamento do trabalho. Enfim, o cotidiano nos enreda em uma tal armadilha
que muitas vezes as boas intenções ficam em parte presas nas folhas de planejamento.
O currículo, como já vimos, é um lugar de escolhas; ele não é neutro e precisa ser
alimentado pela ação do professor. Na medida em que estamos tratando de um conteúdo
omitido, negligenciado e pouco conhecido pela escola e pelo professor, que é a restituição
da presença e da dignidade da população negra como sujeito na história e na cultura
brasileira, precisamos tomar cuidado para não cometermos uma falha pedagógica muito
comum nas nossas escolas.
Quando a sociedade de alguma forma dá mostras de que determinados conceitos ou
valores estão em falta nas relações sociais, fica para a escola a função de organizar eventos,
projetos ou semanas para a recuperação desses valores. Assim, os projetos de cidadania,
preservação do meio ambiente, tratamento do lixo, cultura indígena, cultura africana, entre
outros, abrem espaço para uma pedagogia do exótico, pois, acabando os referidos projetos,
eles são quase sempre esquecidos, e o que se vê é o retorno às práticas anteriores. É muito
comum o comentário dos educadores nas escolas dizendo: “De que adiantou tal
experiência?” Com isso eles se referem às atitudes posteriores dos alunos em relação aos
conteúdos contemplados nos projetos, que desaparecem de cena tão logo os eventos
terminam.

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais

Contudo, embora esta constatação seja verdadeira, é preciso lembrar que ela é
apenas parte da verdade, pois em várias situações projetos pedagógicos coletivos
mobilizam e tocam alguns alunos individualmente. E é claro que, em algumas experiências
mais integradas, esses projetos acontecem como ponta de lança e são incorporados ao
cotidiano escolar. No entanto, para isso, precisa-se contar com uma manutenção consistente
e que faça sentido para o conjunto dos alunos e professores. Como garantir ações
pedagógicas que não fiquem restritas a um projeto especial, mas que realmente sejam
incorporadas?
Quando nossas dúvidas se referem ao como fazer e ao como ensinar, as respostas
podem estar na retomada de alguns princípios norteadores contidos no que e por que
ensinar e fazer. É preciso que estejamos convencidos da urgente necessidade de reescrever
a nossa história sob a ótica da presença e participação da população negra, e do por que
disso, tanto do ponto de vista da recuperação da história brasileira, como da participação da
escola na construção de identidades positivas das crianças e jovens de ascendência africana
que são seus alunos.
Neste sentido, cabe enfatizar que o princípio estruturador das ações e projetos
pedagógicos é a igualdade como base. A igualdade pressupõe semelhanças e diferenças,
mas não contempla a inferioridade, que é a marca do preconceito e da discriminação racial.
É preciso crer que as diferenças encontradas nos indicadores sócio-econômicos, em relação
à população não branca, evidenciam apenas a falta de oportunidades e de acesso, e não a
falta de capacidades e competências. Somos todos humanos: esta é a verdade que a
antropologia revela, demonstrando também que o conceito de raça, do ponto de vista
antropológico, é uma construção social. Dessa perspectiva, não existem raças humanas
diferenciadas que devam ser dispostas numa escala de inferior a superior. È essa visão que
precisamos ultrapassar nos programas curriculares, nas pesquisas e escolhas de conteúdo.
O status de igualdade será conseguido quando o professor estiver atento para
contemplar alunos negros e brancos, democraticamente, nas pequenas atividades do dia a
dia, através do que chamamos instrumentos ou ferramentas pedagógicas. Contar histórias
em que apareçam crianças negras como protagonistas vivendo situações cotidianas, buscar
epopéias de povos africanos com seus heróis e suas sagas, procurar imagens de famílias

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais

negras, profissionais negros, políticos, escritores, cientistas negros para estar lado a lado
dos brancos já colocados nos murais e estudos escolares – eis alguns procedimentos que
podem ser adotados. De fato, será preciso naturalizar a igualdade para se opor à
naturalização da diferença como inferioridade, que é o que sustenta o preconceito.
As diferenças raciais, culturais ou outras só podem ser contempladas quando a
igualdade humana é tomada como base; caso contrário, o que surge é a discriminação.
Neste momento, é preciso ampliar o nosso repertório de informações sobre a participação
negra na cultura e na história nacional, para alargar o sentido dessa igualdade, não só pela
fala, mas pela democratização da imagem e pela informação mais apurada sobre a história
do Brasil, tarefas que exigirão de nós um esforço coletivo.
Deve-se ressaltar aqui que as histórias contadas são um importante instrumento para
proporcionar um deslocamento positivo da imagem do negro, pois a narrativa é capaz de
mobilizar conteúdos afetivos e morais que são estruturadores de identidades.

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6- A Lei e o Currículo

A Lei n°10.639 de 9 de janeiro de a 2003, altera a Lei n°9394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira,
e dá outras providências”.

“Art. 1º - A Lei Nº 9.394/1996 passa a vigorar acrescida dos seguintes Arts. 26-A, 79-A e
79-B:
Art. 26-A - Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,
torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o
negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras”. [Grifos nossos]
A lei deixa nítida a obrigatoriedade do ensino de conteúdos sobre a matriz negra
africana na constituição da nossa sociedade no âmbito de todo o currículo escolar e sugere
as áreas de História, Literatura e Educação Artística como áreas especiais para o tratamento
desse conteúdo, tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio. Entretanto, como já
foi antes enfatizado, é preciso que estejamos convencidos da urgência e da importância de
recuperar esses conteúdos, na história da sociedade brasileira e nos currículos escolares.
Pois, sem o pleno entendimento do por que esses conteúdos são fundamentais, corre-se o
risco de cumprir a lei burocraticamente e, com isso, reforçar situações de preconceito racial
ao qual estamos submetidos.
Desta perspectiva, apresentamos a seguir algumas considerações, tratando de
cuidados e abordagens do ponto de vista metodológico, mais que de uma seleção
programática para as diversas áreas. A reflexão estará em consonância com o princípio da

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igualdade como base, traduzido na idéia de que somos todos humanos como norteadora das
ações e reflexões metodológicas. Quando se estabelecem princípios antes de se pensar em
objetivos, a organização dos conteúdos, das atividades, das estratégias didáticas e as sempre
necessárias correções de rotas ficam mais coerentes e integradas.
Não é fundamentalmente na escolha dos temas que se pode escorregar pela via do
preconceito, mas, sobretudo, na abordagem, na escolha de materiais, no cuidado com a
construção dos argumentos, no grau de conhecimento sobre o assunto ensinado, na
resistência às situações cotidianas em que o preconceito se expressa, tanto na sala de aula
como nos outros espaços e momentos escolares. Trabalhar o mais coletivamente possível,
buscar pares na escola que queiram enfrentar o desafio de re-visitar e reaprender a história,
a cultura, a literatura brasileira sob a perspectiva da população negra como sujeito, pode ser
uma maneira competente e facilitadora na construção de conteúdos e metodologias mais
adequados às diferentes faixas de idades e níveis de ensino.
Um exemplo de deslize pela via do preconceito é o que vem sendo dito, de forma
superficial, em alguns materiais impressos e cursos de formação para professores, sobre o
processo de escravidão no Brasil. Os estudos revelam que muitos dos africanos que foram
seqüestrados para o Brasil já estavam escravizados por nações inimigas ou rivais no
Continente Africano. Essa informação tem funcionado, em muitos casos, para aplacar o
mal-estar sobre o processo de escravidão aqui ocorrido. Comentários como “lá eles já eram
escravos; os africanos escravizavam os próprios africanos; eram os africanos que vendiam
os seus irmãos” são freqüentemente utilizados para justificar a escravidão como fazendo
parte da lógica africana. O que assim se revela é uma profunda ignorância da diferença
entre as formas de escravidão que ocorriam nas terras africanas e a escravidão mercantil,
que transforma homem em peça e mercadoria, destituindo-o de sua humanidade, e que
organiza uma sociedade, no caso a brasileira, tendo essa relação como base.
Desta forma, um estudo que envolva os diferentes processos de escravidão pelos
quais a humanidade já passou, considerando os povos dos continentes europeu, americano,
africano e asiático, se torna imprescindível, para então se compreender a especificidade do
tráfico negreiro do Atlântico, que marca a inauguração de um novo sistema de relações
econômicas e políticas no cenário ocidental.

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Essa situação não é apenas pontual, ela revela a ação profunda do preconceito racial:
ao se tomar conhecimento de uma escravidão anterior no continente africano, a primeira
atitude não é investigativa, no sentido de se indagar sobre a natureza dessa escravidão, e
sim compreensiva no mal sentido, pois a “interpretação” que assim é feita se acomoda ao
argumento da “inferioridade natural” do negro.
É a essa perspectiva de tratamento cuidadoso e amplo dos conteúdos que não
podemos deixar de estar atentos. Um outro exemplo do mesmo tipo de deslize pelo terreno
do preconceito pode ser visto em uma abordagem quase oposta, traduzida em certo
modismo de exagerada empolgação sobre a África. No seu avesso, ele reafirma o
preconceito, na medida em que admira como “essencialmente africanas” experiências
também vividas por povos de outros continentes, deixando assim de reconhecer o status de
igualdade dos africanos em relação aos demais povos. Assim, é freqüente encontrar nesse
tipo de abordagem o argumento de que é preciso valorizar a tradição oral, porque ela é
característica dos povos africanos. A força da tradição oral nas sociedades africanas é
incontestável. Contudo, a oralidade é da natureza dos grupos humanos. Os mitos gregos, a
Odisséia, os mitos dos diversos grupos indígenas das diferentes Américas, os contos
hindus, entre outros, construíram a memória e a identidade dos seus respectivos povos sob a
forma da oralidade. A diferença está no tratamento historiográfico dado à “oralitura”
européia e à sua correlata africana.

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7 - Histórias, Leituras, Literatura

Contar histórias reaproxima espaços, tempos e mentalidades por meio da força


estruturadora que a narrativa contém. As experiências humanas foram e são narradas. E
ouvir histórias é apropriado a todas as idades e níveis de ensino.
As histórias gozam da liberdade de transitar por representações passadas e presentes
e de ousar sonhar com futuros. Nelas, os conteúdos de um imaginário social se
corporificam, provocando identificações, repulsas e referências, tanto no nível individual
como no social. Enfim, as histórias são pautadas por valores sociais que são narrados pelos
seus personagens, conflitos, soluções, no tempo e espaço determinados pela estrutura da
narrativa. O ser humano precisa de histórias para aprender a ser humano.
As histórias africanas, carregadas da força da oralidade, constituem um vigoroso
instrumento para aproximar a imagem mental dos nossos alunos da vida dos povos
africanos e dos seus valores. Recuperar os heróis africanos e sua saga, como o caso de
Sundiata, alimenta de modo positivo o repertório sobre a vida naquele continente. Os mitos
africanos contribuem neste sentido.
Por outro lado, as histórias de brasileiros negros que superaram e ultrapassaram a
condição desigual a que foram submetidos, e deixaram um importante legado à nação ou
tiveram importância em uma situação particular, são fundamentais na construção de
referências positivas para os alunos e, em especial, os alunos negros. José do Patrocínio,
Luís Gama, André Rebouças, Machado de Assis, Juliano Moreira, Lima Barreto, Teodoro
Sampaio, Carolina de Jesus, são alguns exemplos de políticos, literatos, médicos,
engenheiros que compuseram com as suas histórias a nossa história.
Quem não conhece “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá. As aves que
aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá...” São os primeiros versos da Canção do Exílio,
escritos por Antonio Gonçalves Dias, um dos maiores representantes do romantismo
brasileiro e também autor de I-Juca Pirama, uma das obras-prima da nossa poesia. De
origem mestiça, foi proibido de desposar Ana Amélia Ferreira do Vale, o grande amor de
sua vida, pois a mãe da moça não concordou com o casamento, dada a origem do poeta.

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E Machado de Assis? Autor obrigatório nas leituras escolares, talvez o maior


romancista brasileiro de todos os tempos, ele era filho de um operário mulato e de uma
portuguesa nascida nos Açores. Neto de escravos perdeu ainda criança sua mãe e sua irmã,
vítimas de doenças que assolavam na época a cidade do Rio de Janeiro. Sobre sua infância
e o início da adolescência, pouco se sabe. Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Quincas Borba, Dom Casmurro, O Alienista, O Espelho, Missa do Galo são alguns
exemplos dos romances e contos do autor, que também escreveu poemas, crônicas sobre o
cotidiano, peças de teatro, críticas literárias e teatrais.
O advogado e poeta Luis Gama teve uma trajetória de vida ímpar. Filho de africana
liberta da Costa da Mina e de fidalgo português nasceu livre na Bahia, em 1830. Sua mãe,
Luiza Mahin, rebelde e livre, foi acusada de envolvimento em ações revolucionárias e,
então, foi exilada para o Rio de Janeiro ou talvez para o Oeste Africano. Seu pai
empobreceu e o vendeu como escravo, três anos após o desaparecimento de sua mãe. Luis
Gama tinha então dez anos. Aprendeu a ler na adolescência e logo passou a trabalhar como
tipógrafo, para depois tornar-se advogado e um dos maiores líderes abolicionistas. A sua
importância foi tal que seu enterro, em 1882, paralisou a cidade de São Paulo e contou com
o acompanhamento de cerca de três mil pessoas, entre negros pobres, fazendeiros, políticos,
advogados, e até o Conde de Três Rios, Vice-Presidente da Província em exercício.
A literatura brasileira está repleta de escritores negros e mestiços que
reconhecidamente marcaram escolas literárias, como seus representantes ou precursores, e
precisa ser revisitada nesta perspectiva.
Uma outra forma de entrar em contato com esses escritores, dependendo do nível ou
série de ensino, é por meio do estudo de biografias. A biografia é um gênero textual que,
adequadamente estudado, amplia o universo de informações e permite o estabelecimento de
relações, quando se contextualizam o período e as situações que ali são mencionadas.
O estudo da influência das línguas africanas no português brasileiro pode ser um
outro meio de aprender sobre essa presença na nossa língua, que passa despercebida, por
estar impregnada no seu uso cotidiano. Darcy Ribeiro comentou que as línguas africanas
amoleceram o português. Acarajé, angu, agogô, banda, batuque, bamba, banguela, banzo,
carinho, cafuné, caçula, cachimbo, camundongo, calombo, canga, cachaça, caxinguelê,

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chuchu, caxumba, calundu, cochilo, dengo, dengoso, dendê, fubá, inhame, Ioiô, Iaiá, jiló,
jongo, moleque, miçanga, molambo, marimbondo, marimba, macambúzio, maxixe,
mucama, quiabo, quitanda, quitute, quilombo, quibebe, tanga, vatapá, xingar, zumbi - são
exemplos de algumas das palavras de origem africana na língua portuguesa do Brasil.

Algumas sugestões de literatura infanto-juvenil:

1 - PINSKY, Mirna. Nó na garganta. São Paulo: Atual, 1991 (série conte outra vez)
2 - SANTOS, Joel Rufino. Dudu Calunga. São Paulo: Ática, 1986.
- Zumbi. São Paulo: Ática, 1985. (Col. Biografia)
- Gosto de África – histórias de lá e daqui. São Paulo: Global, 2001.
3 - COOKE, Trish. Tanto, tanto. São Paulo: Ática, s.d.
4 - ZIRALDO. O menino marrom. São Paulo: Melhoramentos, 2004 30ª edição.
5 - MACHADO, Ana Maria.
- Menina bonita do Laço de Fita. São Paulo: Editora Ática, 1997.
- Do outro lado tem segredos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d.
6 - LESTER, Julius e CEPEDA, Joe. Que Mundo Maravilhoso. São Paulo: BRINQUE-
BOOK, 2000.
7 - DIOUF, Sylviane S. As tranças de Bintou. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.
8 - PRANDI, Reginaldo.
- Os Príncipes do Destino. São Paulo, Cosac e Naify, 2001.
- Ifá, o Adivinho. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
- Xangô, o Trovão.
9 - GODOY, Célia. Ana e Ana. São Paulo: DCL, 2003.
10 - LIMA, Heloisa Pires. Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998.
11 - BARBOSA, Rogério Andrade;
- Histórias Africanas para Contar e Recontar. São Paulo: Editora do Brasil, 2001.
- O Filho do Vento. São Paulo: DCL, 2001.
- Como as Histórias se Espalharam Pelo Mundo. São Paulo: DCL, 2002.
12 - EISNER, Will. Sundiata – O Leão de Mali. São Paulo: Companhia das Letrinhas, sd
13 - LAMBLIN, Christian.
- Samira não quer ir à escola. São Paulo: Editora Ática, 2003.
- Os pais de Samira se separaram. São Paulo: Editora Ática, 2002.

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8- Temas, Atividades e Projetos.

Um dos princípios que devem orientar os temas, os projetos e as atividades


pedagógicas em relação à questão do negro na escola é a desconstrução do preconceito
racial e a reafirmação de uma auto-estima positiva da população negra e mestiça. Ensinar e
aprender sobre e na diversidade, propor situações de aprendizagem que sejam desafiadoras
e que tragam novos conhecimentos são cuidados que se deve ter quando o que se estuda
vem carregado de imagens e crenças baseadas no preconceito e na discriminação.

A presença negra nas artes brasileiras


Uma pergunta sempre é um bom início para uma atividade ou projeto de trabalho.
Ao perguntar sobre um assunto, aciona-se o repertório dos alunos a respeito dele e produz-
se o contato entre os conhecimentos ou sua falta na classe.
O estudo da presença negra e mestiça na arte brasileira pode partir de nomes como
Mestre Valentim e Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, homens de um tempo em que
a formação artística se dava de maneira coletiva e não excludente nas corporações de
ofício. Em seguida é preciso procurar entender o impacto da vinda da Missão Francesa
sobre as corporações e seus artistas. Qual era o espaço de reconhecimento social dos
artistas negros nas corporações de ofício e o que lhes ficou reservado após a chegada da
Missão Francesa em 1816? Essa é uma pergunta que pode orientar um projeto de pesquisa e
deve ser adaptada às possibilidades de cada faixa de idade e níveis de ensino.
A trajetória de artistas negros e mestiços que cursaram a Academia Imperial de
Belas Artes na segunda metade do século XIX e a Escola Nacional de Belas Artes no início
do século XX é um caminho para se avaliar o impacto da Missão Francesa. Nomes como
Estevão Silva, Antonio Firmino Monteiro, Antonio Rafael Pinto Bandeira, João Timóteo da
Costa, Artur Timóteo da Costa precisam ser conhecidos e sua trajetória de vida, bem como
suas obras, devem ser apreciadas pelos estudantes brasileiros.
Artistas negros no século XX como Benedito José Tobias, Iêda Maria, Rubem
Valentim, Mestre Didi, Ronaldo Rêgo, Otávio Araújo, Jorge dos Anjos, Emanoel Araújo,

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entre outros, com suas trajetórias particulares, recompõem os fragmentos de uma presença
negra na História da Arte brasileira.

A arte dos artistas populares


A forte presença da arte na vida social brasileira é também mediada pela chamada
arte popular. Essa designação é controversa, pois pode atribuir à expressão artística mais
popular um status de arte menor. Independente da discussão acerca de qual seria a
nomeação mais adequada para esse segmento da arte, que retrata um outro Brasil e está
presente em todo o território nacional, ele tem, como artistas, brasileiros negros e mestiços
que devem ser valorizados e conhecidos pelos currículos escolares. Nomes como os de
Heitor dos Prazeres, João Alves, Agnaldo Manoel dos Santos, Artur Pereira, João Alves,
Sérgio Vidal, Madalena Reinbolt, entre outros, devem ser incluídos nessa reflexão. Muitos
deles, por tratarem de temas oníricos ou próximos do cotidiano, podem ter suas obras
magníficas facilmente apreciadas pelos estudantes.

A arte da música
Desde o lundu e as orquestras compostas de escravos músicos até os dias atuais, é
reconhecida a marca negra africana na música e na musicalidade brasileira.
A música, acompanhada da gestualidade, foi, segundo estudos, marca de resistência
e da presença ancestral das culturas dos povos africanos que para aqui vieram. A memória
contida no corpo e cantada pela voz permitiu a manutenção de vidas marcadas pela
experiência da escravidão e, no avesso do sofrimento, trouxe alegria, criatividade e novos
arranjos para a expressão musical e corporal brasileiras. Pesquisar essa influência e
acompanhar as suas modificações, conhecer os nomes mais significativos na linha de tempo
da nossa história, pode vir a ser um projeto de estudo.

As festas brasileiras
As festas tradicionais brasileiras, como Maracatus, Bumba-meu-Boi, Cavalhadas,
Marujadas, Folias de Reis, Festas do Divino, Congadas, constituem importantes elementos
da cultura popular, carregados de valores e sentidos próprios, tendo um significado maior

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não só pelo conteúdo que representam e expressam, mas, também, pela forma de ensiná-lo
e aprendê-lo, através da oralidade e da experiência cotidiana com os mais velhos.
Sem dúvida, será necessário recuperar o sentido original das múltiplas linguagens
que estão presentes nas manifestações culturais brasileiras, com forte presença da
população negra e mestiça. O sorriso, o humor, o disfarce, a peleja, a altivez, a alegria, a
crença, a tradição, a celebração, a vitória, a reciprocidade, estão inscritos no corpo de cada
um dos participantes, para dar sentido e contar sem palavras o que está sendo representado.
O significado dessa representação, porém, é um pouco diferente da representação teatral, tal
como nós a conhecemos, pois confere aos que dela participam um sentimento de
pertencimento a um grupo inserido no tempo e no espaço cotidiano dessas pessoas, isto é,
ela faz parte das suas vidas, para além da apresentação.
Neste sentido, tomar contato com essas e outras manifestações da cultura popular,
trazer para a escola grupos tradicionais que possam apresentar o vigor da sua experiência e,
assim, alargar a reflexão sobre o conteúdo e o significado histórico de cada uma dessas
representações, aproxima o aluno de uma outra versão, fundamental, da história brasileira.
Versão esta compreendida e transmitida pelas chamadas camadas populares e que, sem
dúvida, compõe o imaginário nacional, tendo por isso um valor inestimável, mas pouco
conhecido pela instituição escolar. Recriar junto aos alunos essas celebrações culturais,
compreendendo os seus conteúdos é sem dúvida um instigante projeto pedagógico, que só
terá sentido se organizado e experimentado coletivamente, conforme a própria natureza das
expressões culturais populares.

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9- Tempos e espaços

O continente Africano
Situar a África como um continente dividido em países com línguas e culturas
diversas, assim como são a Europa, a América e a Ásia, é um dos primeiros passos para
desmontar a visão de que “todos os negros são iguais” e, portanto, não se precisa ser
específico em relação aos africanos, como se é, por exemplo, em relação aos ingleses,
franceses, alemães ou italianos. Os moçambicanos, angolanos, malineses, sudaneses,
quenianos, senegaleses, africanos do sul, argelinos, egípcios têm fenótipos, histórias,
tradições e culturas diferentes. Eles não se confundem.
Observar e operar com mapas do Continente Africano é um recurso que pode ser
desdobrado em diferentes atividades e projetos em relação às diversas idades e níveis de
ensino. Tudo depende do que se quer buscar, que perguntas se faz e como se organiza a
ação pedagógica.. Nas séries iniciais do Ensino Fundamental, não se deve temer que as
crianças observem livremente o mapa para descobrirem tudo o que puderem. Essas
descobertas são geralmente importantes e possibilitam novas questões ao professor. Para as
séries mais avançadas, é interessante trabalhar comparativamente com mapas atuais e
antigos do Continente Africano, registrar as mudanças de distribuição do território, levantar
hipóteses sobre essas mudanças, organizar um roteiro de busca de informações, confrontar
as hipóteses com as informações colhidas, construir argumentos e debater. É crucial para
esse tipo de atividade que o professor tenha de fato uma boa pergunta orientadora para o
aluno, pois é ela que mobilizará as ações e o envolvimento com o trabalho.

Os ciclos econômicos
A pesquisa do professor, em relação aos personagens negros e mestiços e às
situações históricas nas quais estes personagens tiveram destaque, pode ser facilitada se ele
se orientar pelos ciclos econômicos brasileiros. Os ciclos marcavam a lógica da produção e
a organização política e social de cada momento da nossa história e, se considerarmos que
por mais de quatrocentos anos era a mão escrava a produtora de riquezas, os conflitos,
pequenas batalhas, conquistas, acordos, tiveram a presença da população negra e de seus

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais

representantes. Re-visitar as relações sociais que se construíram em torno do ciclo do


açúcar, da mineração, do couro, da borracha, do café, sob a perspectiva da presença do
negro, nos revelará fragmentos dessa história, cuja reconstrução é urgente. Essa é apenas
uma possibilidade de pesquisa para o professor, que decidirá, segundo a linha de ensino que
julga mais adequada, como compartilhar com seus alunos esses conhecimentos.

A cor da História
Os personagens da História brasileira precisam de cor. Esta é uma questão que
praticamente nunca é incluída no ensino de História. Qualquer que fosse o tema abordado,
sempre se assumiu que a cor dos personagens importantes era naturalmente branca, mesmo
que não fosse esse o caso. No sentido de recuperar a presença das personalidades negras
em nossa História e elevar a auto-estima dos alunos negros e mestiços, a referência à cor ou
a identidade étnico-racial desses personagens precisa ser feita. É importante que esses
alunos tenham modelos positivos de identificação. É preciso relembrar a luta do
Conselheiro Antonio Pereira Rebouças pela inclusão de ex-escravos – mulatos, pardos e
negros – na categoria de cidadãos que pudessem eleger e ser eleitos, já que, segundo a
Constituição de 1824, que permaneceu por todo Império, “uma importante distinção não
propriamente censitária se fazia, pois, além das exigências de renda, impunha-se ao eleitor que
1
tivesse nascido “ingênuo “, isto é, não tivesse nascido escravo”. Antonio Pereira Rebouças se
valia da sua condição de mulato bem sucedido e respeitado homem público para, mesmo
sem questionar diretamente o regime escravocrata, reivindicar a presença cidadã de negros,
pardos e mulatos livres no cenário político da nação. Este é um dos exemplos que podem
servir como sugestão de estudo sobre a presença e participação da população negra na
História brasileira. José do Patrocínio, um dos maiores líderes abolicionistas, pela sua
importância histórica, é um outro exemplo contundente.

As letras de música e a História

1
Ver: Mattos, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro. Jorge
Zahar Editor, 2000.

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais

As letras de músicas, principalmente de sambas-enredos de escola de samba,


geralmente recuperam e apresentam a presença negra na nossa história. O inventário dessas
letras, feito pelos alunos, além de ampliar sua informação, revela que, ao se contar a
História fora dos cânones oficiais, o espaço da presença e participação da população negra
é reconhecido. Portanto, pelo menos ali, não se pode contar a nossa História sem essa
presença. Veja-se este exemplo:
Há muito tempo nas águas da Guanabara/ o Dragão do Mar reapareceu/ na figura
de um bravo resistente/ que a História não esqueceu/ Conhecido como navegante
negro/ tinha dignidade de um mestre-sala/ e ao acenar pelo mar na alegria das
regatas/ foi saudado no porto/ pelas mocinhas francesas,/ jovens polacas/ e por
batalhão de mulatas./ Rubras cascatas/ jorravam das costas dos santos/ entre
cantos e chibatas/ inundando o coração/ do pessoal do porão/ que a exemplo do
feiticeiro gritava então:/ Glória aos piratas/ às mulatas/ às sereias!/ Glória à
farofa/ à cachaça/ às baleias!/ Glória/ a todas as lutas inglórias/ que através da
nossa História/ não esquecemos jamais!/ Salve/ o navegante negro/ que tem por
monumento/ as pedras pisadas do cais./ Mas faz muito tempo...
O Mestre-sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc, conta a história da Revolta
da Chibata, acontecida em 1910 no Rio de Janeiro, que teve como líder João Cândido - o
Almirante Negro.

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais

10- Identidade e Diversidade

Identidade e memória
É preciso ampliar a memória para que nossos alunos possam construir a noção de
sua própria identidade. Para isso, deve-se proporcionar um encontro entre as informações
que os alunos têm sobre a sua vida, os seus antepassados, a sua história, e construir, dentro
de uma perspectiva que vai do passado ao presente, as linhas de memória que os
constituíram.
Neste sentido, é importante que se incorpore a idéia de contexto, para que os
alunos tenham informações sobre os acontecimentos que estavam presentes no período do
seu nascimento e possam construir a sua linha de história pessoal integrada ao social. As
noções de pertencimento e de simultaneidade devem sempre ser acionadas nas atividades
relativas à construção da identidade e ao processo temporal. Realizadas com alunos
brancos, negros e mestiços, essas atividades evidenciam a igualdade fundamental de todos
enquanto seres humanos.

As famílias no tempo
Recuperar as composições familiares até o antepassado mais longínquo que se
sabe, descrevendo-os, contando histórias interessantes a seu respeito, são atividades que
produzem um conhecimento acerca de histórias particulares que, confrontadas com outras
do mesmo grupo de alunos, possibilitam um conhecimento sobre épocas diferentes e sobre
origens semelhantes. Pode-se organizar essa pesquisa em diferentes modos, agrupando
depoimentos semelhantes de antepassados diferentes, reunindo informações que dizem
respeito a um mesmo assunto surgido na pesquisa e que dialogam entre si. Devem-se
buscar os principais sinais que demonstram um modo característico de pensar em uma
determinada época. Estas são algumas das possibilidades de lidar com informações
advindas de pesquisas familiares. Elas enfatizam semelhanças e diferenças, oferecendo uma
oportunidade para se revisar as concepções preconceituosas acerca das relações raciais que
puderam prevalecer no passado, mas devem ser eliminadas no presente.

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UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais

Diversidade africana
Investigar os diferentes povos africanos, conhecer suas características, seus modos
de vida, seus estilos de habitação, suas religiões, suas tecnologias, suas histórias,
estabelecer diferenças e semelhanças a partir da pesquisa, comparar com estudos de um
outro continente e seus povos, são procedimentos que ampliam o repertório de
conhecimento e enquadram as diferenças entre povos em um plano mais geral. Com isso,
será possível produzir murais e cartazes sinalizadores dessas diferenças. Podem-se recriar
desenhos de casas, vestimentas, padrões de tecidos, jóias, utensílios, instrumentos musicais
e tecnológicos, tendo como base as diversas produções africanas, e com isso perceber quais
são os elementos de permanência entre os povos africanos e o Brasil. Isto proporcionará um
conhecimento em que as noções de diversidade e permanência estarão contempladas, sendo
este um conteúdo pedagógico essencial para que alunos brancos, negros e mestiços possam
reavaliar sua concepção acerca da identidade brasileira.

Identidade
A construção da identidade da criança e do jovem precisa do apoio de imagens
confirmadoras positivas. Isto é necessário para todos eles, mas no caso de crianças e jovens
negros, esta é uma tarefa essencial, pois os jovens e as crianças que não são negras já
encontram naturalmente na sociedade essa confirmação.
A escola pode ser um lugar facilitador desse encontro com imagens e referências
identitárias positivas para as crianças e jovens negros. Estar atento ao que se oferece como
material para os alunos, que modelos de vida e beleza as imagens, afirmam é uma tarefa
diária de planejamento de aula. Para planejar uma aula, organizar um programa ou projeto
de estudo, é preciso contar com a intenção firme de democratizar a imagem e os exemplos
positivos e reais da presença da população negra e mestiça na nossa História e no nosso
cotidiano.
Sabemos da importância do direito à imagem nos dias atuais, mergulhados que
estamos no mundo virtual e da comunicação áudio visual. A força de projeção identitária
que os meios de comunicação exercem sobre as nossas crianças e jovens, principalmente

2
UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais

pela televisão, é imensa. É graças a ela que se introjetam valores, sentimentos,


significações, se povoa o imaginário, criam-se expectativas e idéias de pertencimento.
Em termos proporcionais, a imagem da criança branca na televisão é responsável
por mais de noventa por cento do tempo total dos programas infantis, enquanto a imagem
da criança negra responde por menos de cinco por cento. Juntas, imagens de crianças
brancas e negras aparecem na maioria das vezes durante três por cento1 do tempo dos
programas infantis.
Essa situação é vivida por todas as crianças cotidianamente, diante da tela da
televisão que com toda a naturalidade projeta, assim, modelos e valores eivados de
preconceito, tanto pelo excesso de representação da imagem do branco, quanto
fundamentalmente, pela falta de representação da imagem do negro.
Fica para a escola enquanto instituição pública e para os seus professores a tarefa
hercúlea e inadiável de buscar mecanismos que transformem essa situação, pelo menos em
relação aos seus alunos.

1
Levantamento cronometrado do tempo no qual crianças negras e brancas aparecem em programas
infantis televisivos em semanas repetidas no ano de 2002.

3
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.01 – Reflexões Iniciais
Anderson Ribeiro Oliva
Mestre e Doutorando em História
da África pela Universidade de
Brasília e Professor de História
da África da UPIS
Reflexões iniciais

Há alguns dias encontrei um professor, colega de trabalho, que retornara de sua primeira
visita a uma cidade africana. Ele estivera em Luanda, capital de Angola. Perguntei sobre referências
da cidade que ainda carrego frescas em minha memória e de alguns hábitos, comuns a certos grupos
de pessoas que habitavam determinados bairros, de que tinha me familiarizado. Seu depoimento foi
um misto de inquietação e descontentamento.
Problemas para apanhar e despachar as bagagens no Aeroporto Internacional 4 de fevereiro,
o trânsito caótico, o sistema de coleta de lixo urbano extremamente falho ou ainda os horários de
funcionamento de algumas casas de comércio ou órgãos públicos, marcaram seus olhares sobre
Angola pelo desprestígio e pela incompreensão. Apesar disso o tamanho da cidade o havia
impressionado. Já de sua estadia em Johannesburg, em que pernoitou na volta, sobraram elogios e
espantos. Mesmo já tendo escutado depoimentos e visto imagens sobre a cidade ele ficou admirado
com seu traçado urbanístico, com o moderno aeroporto e com o hotel de luxo em que ficou. “Nem
parecia estar na África”, finalizava o colega.

Vista de um avião da companhia angola TAAG na pista do Aeroporto Internacional 4 de


Fevereiro, em Luanda. Foto Anderson Oliva

Exageros em parte dessa postura, podemos perceber que ela encontra elos com as
narrativas de viagem de centenas de brasileiros, americanos ou europeus que viajam ou viajaram
para a África. Discordo, em parte, de quase todos eles e de seus argumentos.
Parece plausível que em rápidas passagens por algumas ruas de várias cidades africanas,
alguns ocidentais, se impressionem pelo lixo acumulado nas sarjetas ou pelo trânsito caótico, eles
estão lá. O mesmo serve para aqueles que se deparam com as estatísticas e os números de perdas
humanas nas guerras, das vítimas de malária e dos contaminados pela Aids, eles também estão lá.

Aula3.01 - Texto.doc 1
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.01 – Reflexões Iniciais

Porém, essas realidades não revelam e nem sintetizam o que é a África, nem seus centros urbanos.
Eles são, evidentemente, muito mais do que isso. Os graves problemas existem, e vão continuar
existindo nos próximos anos, mas há, nos passados e presentes africanos, muito mais do que fome,
guerra, doença e sujeira. Além disso, é certo afirmar que as realidades descritas pelo colega muito
pouco de distingam de alguns bairros e dados estatísticos que encontramos em nossas cidades.
Sujeira e violência nunca foram exclusividades, muito menos identificadores das cidades africanas,
apesar de parecer que elas, pelos nossos olhares muito limitados, deveriam se resumir a estas
imagens. Por que então reduzir o outro a isso, enquanto olhamos para os mesmos problemas
internos e achamos que são realidades passageiras ou de menor importância na construção de uma
identidade positiva sobre nós mesmos?
Refletindo acerca de tão profundo desconhecimento ou carga imaginária negativa cheguei a
uma conclusão, um tanto óbvia, no esforço de tentar explicar o porquê de tão poucas expectativas ou
impressões positivas sobre o continente negro: a África e suas múltiplas experiências históricas não
nos foram apresentadas durante nossas trajetórias de vida e formações escolares, a não ser por meio
de informações que estavam recheadas de equívocos e simplificações. Quantos de nós estudamos a
África quando transitávamos pelos bancos das escolas? Quantos tiveram a disciplina História,
Literatura, Arte ou Geografia da África nos cursos de Graduação? Quantos livros ou textos lemos
sobre a questão? Tirando as leituras que associam a África e os africanos à escravidão, as breves
incursões pelos programas do National Geographic ou Discovery Channel, ou ainda as imagens
chocantes de um mundo africano em agonia, da Aids que se alastra, da fome que esmaga, dos
grupos étnicos que se enfrentam com grande violência ou dos safáris e animais exóticos, o que
sabemos sobre a África?
Para começar a mudar esse quadro de imagens temos que, inicialmente, reconhecer a
relevância de estudar a África, independente de qualquer outra motivação. Não é assim que fazemos
com a Mesopotâmia, a Grécia, a Roma, com suas civilizações e legados ou ainda a Reforma
Religiosa, os Estados Nacionais Europeus, Revoluções Liberais ou as contribuições da Europa
Moderna em nossa formação, como nas artes, nas formas de pensamento ou na literatura. Muitos
irão reagir à minha afirmação, dizendo que, o estudo dos citados assuntos, muito explica nossas
realidades ou alguns momentos de nossa História ou características atuais. Nada a discordar. Agora,
e a África, não nos explica? Não somos (brasileiros) frutos do encontro ou desencontro de diversos
grupos étnicos ameríndios, europeus e africanos?
1
A História da África e a História do Brasil estão mais próximas do que alguns gostariam. Se
nos desdobramos para pesquisar e ensinar tantos conteúdos, em um esforço de, algumas vezes,
apenas noticiar o passado ou características de algumas escolas de pensamento ou de padrões
artísticos, por que não dedicarmos um espaço efetivo para a África em nossos programas ou
projetos. Os africanos não foram criados por autogênese nos navios negreiros e nem se limitam em
África à simplista e difundida divisão de bantos e sudaneses ou de culturas negro-africanas
homogêneas. Devemos conhecer a África não apenas para dar notícias aos alunos, mas internalizá-

1
Na realidade não estamos fazendo referência à nenhuma instituição ou grupos de pessoas específicas, mas sim
ao imaginário coletivo do povo brasileiro, que com poucas exceções, não assume a sua africanidade.

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UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.01 – Reflexões Iniciais

la neles. Por isso devemos saber responder com boa argumentação à pergunta inicial do texto.
Porém, chega de defesas ou apologias de uma História, e nos concentremos nas “coisas sérias”.
O presente curso se propõe realizar uma dupla tarefa: entregar aos nossos leitores uma
reflexão sobre a forma como a África tem sido tratada nas salas de aula brasileiras, a partir da análise
dos conteúdos destinados à História da África em alguns manuais utilizados em nossas escolas; e
conjuntamente a essa tarefa, que talvez se transforme em um manual de releitura dos livros didáticos
pelos professores e alunos, também apontaremos como poderia ser a forma correta de abordagem
de alguns tópicos e indicaremos referências de leituras aos docentes. Esperamos que essa indicação
das referências bibliográficas permita o complemento de leituras e uma aproximação mais densa e
substancial por parte dos interessados na temática. Boa sorte!

Aula3.01 - Texto.doc 3
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.02 – A África ensinada no Brasil

II. A África ensinada no Brasil

1
Ao levar em consideração que a freqüência ao ensino é obrigatória no Brasil, no que
chamamos de Ensino Fundamental – duração de oito anos - podemos supor que, o material didático
produzido e utilizado nas escolas seja um instrumento de grande importância para a construção do
conhecimento e na elaboração de referências sobre a História da África e dos africanos. É claro que
esse poder é muito menor do que o da mídia, ou das imagens que chegam pela Internet, cinema ou
TV e cercam nossos estudantes, mas não deixa de ser uma possibilidade de mudança de olhares
sobre os africanos e a História da África.
A partir desse contexto, a presente parte do curso se propõe a analisar a forma como alguns
dos manuais escolares de História utilizados nas escolas brasileiras abordaram a História da África e
representaram, por meio de imagens e textos escritos, os africanos. Com relação ao tratamento
concedido a História do continente limitaremos o esforço analítico aos trechos que se referem ao
período anterior ao século XIX, já que é ainda maior o silêncio sobre esse período da história
africana. Esperamos que seja uma boa contribuição inicial para tão importante debate.

2.1. Os africanos dentro dos manuais escolares de História

Silêncio e desconhecimento. Poderíamos assim definir o entendimento e a utilização da


História da África nas coleções escolares de História no Brasil. Apenas um número muito pequeno de
livros possui capítulos específicos sobre a História da África. Nas outras obras, a África aparece
apenas como uma figurante que passa despercebida em cena, sendo mencionada como um
apêndice misterioso e pouco interessante de outras temáticas. Tornou-se evidente também que,
quando o silêncio é quebrado, a formação inadequada e a bibliografia limitada criam obstáculos
significativos para uma leitura mais atenta e um tratamento mais pontual sobre a questão. Vejamos,
portanto, como a História da África é tratada por alguns dos manuais utilizados nas escolas
brasileiras.
Antes de maiores reflexões sobre nosso objeto, que se registre um elogio. Dentro de um total
2
de mais de trinta coleções de História destinadas para o Ensino Fundamental apenas oito , até agora
3
identificadas e analisadas , dedicam o espaço exclusivo de um capítulo para tratar a história do

1
Nos anos noventa esta obrigatoriedade foi sendo aos poucos efetivada em números reais. Os índices de alunos
matriculados no Ensino Fundamental correspondem à grande parte da população em idade escolar no país.
2
HISTÓRIA, 6°. Projeto Araribá; BRAICK, Patrícia Ramos e MOTA, Myriam Becho. História das Cavernas
ao Terceiro Milênio, 6ª; JÚNIOR, Alfredo Boulos. História: Sociedade e Cidadania, 6ª; MARANHÃO, Ricardo
e Antunes, Maria Fernanda. Trabalho e Civilização: uma história global, 2; CADERNO DE EDUCAÇÃO DO
ILÊ AIYÊ. África: Ventre Fértil do Mundo; RODRIGUE, Joelza Éster. História em Documento: Imagem e
Texto, 7ª; MOZER, Sônia e TELLES, Vera. Descobrindo a História, 5ª série.
3
Por pesquisa que desenvolvo em tese de doutorado na Linha de Pesquisa Comércio e Transculturação no
Mundo Atlântico, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB). Na tese
tenciono fazer a análise acima citada em manuais didáticos de História – produzidos a partir de 1990 - utilizados
nas escolas angolanas, brasileiras e portuguesas. Ver também o artigo de OLIVA, Anderson. “A África nos
bancos escolares: Representações e imprecisões na literatura didática”. In Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, n° 3,
2003, pp. 421-462.

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UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.02 – A África ensinada no Brasil

continente africano anterior ao século XIX. Nas outras, quase sempre, a África aparece em óbvias
passagens da História do Brasil, da América ou da Europa, ligadas à escravidão, à expansão
ultramarina, ao domínio colonial no século XIX, ao processo de independência e às graves crises
sociais, étnicas, econômicas e políticas em que mergulhou grande parte dos países africanos
formados no século XX.
Optamos por limitar as observações aqui efetuadas a três dos primeiros livros que têm tido a
preocupação de incluir entre seus volumes capítulos específicos sobre a História da África. No
presente tópico estarão sob análise os seguintes textos: o de Mario Schmidt, Nova História Crítica, 6ª;
o de Ricardo Dreguer e Eliete Toledo, História: cotidiano e mentalidades, 7ª; e o de José Rivair
Macedo e Mariley W. Oliveira, Brasil: uma história em construção, vol. 3.

A capa dos três livros aqui analisados

Nos textos em enfoque, por razões que talvez espelhem as defasagens da formação
acadêmica, da pequena intimidade com a bibliografia especializada em História da África e as
circunstâncias específicas da elaboração de um livro didático, as imprecisões e equívocos acabam
por predominar. Isso não exclui algumas boas reflexões realizadas pelos autores ou ainda
abordagens adequadas dos conteúdos apresentados. No entanto, os livros, quase sempre, são
marcados mais pelos desacertos do que pelos acertos. Façamos um breve balanço desses pontos,
lembrando que eles não são comuns a todos os livros, mas sim fruto de um panorama geral desses
manuais. Como estratégia de apresentação dividimos os aspectos analisados em tópicos, nos quais
associamos as visões dos autores acerca de determinados conteúdos ou temáticas. Pensando ainda
em um alcance maior para este texto também tivemos a preocupação de fazer comentários e
indicações de como os desacertos poderiam ser minimizados no tratamento da África em sala de
aula.

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UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.02 – A África ensinada no Brasil

2.2. Poucas palavras para muitas Histórias

Um primeiro problema a destacar pode ser identificado com uma simples passada de olhos
pelos índices dos manuais. Se elogiamos a disposição dos autores em conceder à África um capítulo
específico, é inversamente sintomático o espaço reservado a tal tarefa. Existe clara tendência entre
os volumes analisados de dedicar um número significativamente menor de páginas ao tratar a África,
concentrando suas abordagens em uma versão eurocêntrica da História. Por exemplo, enquanto os
capítulos que tratam de temas como Europa Medieval, Absolutismo Monárquico, Reforma Religiosa e
Renascimento Cultural ocupam em média de 15 a 20 páginas e vasta bibliografia, a História da África,
quase sempre é abordada em um único capítulo que varia de 10 a 15 páginas, e com uma literatura
de apoio restrita. No texto de Mario Schmidt ela ocupa 10 páginas, no de Ricardo Dreguer e Eliete
Toledo 13 e no de José Rivair Macedo e Mariley Oliveira 11. Por falta de conhecimento ou de
interesse percebe-se um grande desequilíbrio ao se abordar a história da Europa e da África.
É claro que não estamos tomando como referência exclusiva o valor quantitativo da questão,
mas também qualitativo. Parece-nos óbvio que, tratar a história africana - abordando um período
equivalente a pelo menos mil anos e englobando o complexo e diverso quadro das sociedades e
civilizações do continente - em dez ou quinze páginas é algo que só se torna possível com extremas
simplificações e generalizações.
Frisamos que a expectativa sobre a abordagem escolar da história da África não se encerra na
ilusória idéia de que todas as sociedades africanas tenham que ser mencionadas ou abordadas.
Parece evidente também que qualquer assunto tratado em sala de aula ou em um livro didático é
escolhido a partir de alguns critérios eleitos pelos autores, editoras, Estado – currículos –, estudantes
e professores. Assim como a forma de abordar o tema nunca vai deixar de ser uma leitura parcial, um
recorte um tanto arbitrário das experiências enfocadas. Mas o que não é justificável, pelo menos em
nosso entendimento, é, mais uma vez, o pequeno espaço concedido ao estudo da história da África.

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UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.03 – A África só dos grandes “Reinos” e “Impérios”?

2.3. A África só dos grandes “Reinos” e “Impérios”?

Um outro elemento comum aparece quando os autores apresentam as sociedades africanas


que serão estudadas. Eles, quase sempre, utilizam uma difundida idéia entre os historiadores
1
pertencentes à chamada corrente da “Superioridade Africana” de que é fundamental estudar as
grandes civilizações encontradas em África. Porém, esse grupo de pesquisadores e intelectuais, no
período próximo – anterior e posterior - às independências, utilizou padrões ou modelos europeus
para afirmar ao mundo e aos próprios africanos que a História do continente negro possuía elementos
sofisticados e formas de organização avançadas e que deveriam ser estudadas.
Neste sentido encontrar os grandes “impérios” e “reinos”, as grandes construções e as
2
esplendorosas obras de arte, se tornou, portanto, quase que uma obsessão . Porém, já faz algum
tempo que as novas historiografias africanas e africanistas vêm alertando para o fato de que se a
África é uma região de grande autonomia, de imensa capacidade criativa e de fecunda participação
na história da humanidade, não seria preciso eleger sempre referências européias para sua
afirmação.
Porém, os autores dos manuais parecem desconhecer essa crítica, pois é justamente esse o
critério adotado por eles para selecionar o que será estudado nos capítulos sobre História da África.
Por isso a presença quase certa dos reinos de Gana, do Kongo, da Etiópia, do Zimbabue e dos
3
impérios do Mali e Songhai . A princípio não temos nada contra a citação ou estudo dessas
formações políticas, elas devem ser abordadas. O que incomoda é sua supervalorização ou enfoque
exclusivo, e não a sua presença quase sempre obrigatória. Tal ênfase ocorre em detrimento a outros
contextos históricos também importantes, o que causa uma leitura distorcida de certas sociedades
africanas.

Parece também que a ênfase na abordagem da África Ocidental, encontrada em boa parte
dos manuais, se confunde com a perspectiva de que a existência dos “grandes reinos e impérios”
ocorreu em maior número naquela região. Dessa forma o “resto” da África, muitas vezes, não recebe
a mesma atenção ou parece que seus grupos não são tão interessantes como os da África Ocidental.

1
O historiador guineense Carlos Lopes organizou uma classificação para a historiografia africana na qual ela
pode ser pensada em três correntes: a corrente da Inferioridade Africana; a corrente da Superioridade Africana; e
os novos estudos africanos. Com relação à corrente da Superioridade Africana uma de suas principais
características era supervalorizar o continente, utilizando categorias européias no estudo de antigas civilizações
africanas, buscando igualar os feitos históricos africanos aos europeus. Ver Carlos Lopes. A Pirâmide Invertida:
historiografia africana feita por africanos.
2
Sobre a questão ver os trabalhos de Philip Curtin, Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e
contribuição à história em geral e Manuel Difuila, Historiografia da História de África.
3
Para informações e pesquisas mais completas acerca dessas formações políticas ver os seguintes estudos:
BIRMINGHAM, David, A África Central até 1870; COSTA E SILVA, Alberto, A Enxada e a lança. A África
antes dos portugueses; KI-ZERBO, Joseph, História da África Negra; M’ BOKOLO, Elikia, África Negra
História e Civilizações, Até ao Século XVIII; NIANE, D. T. (org), História Geral da África, vol. IV: África entre
os séculos XII e XVI; OLIVER, Roland, A Experiência Africana e FAGE, J. D. e OLIVER, Roland. Breve
História da África.

Aula3.03 - Texto.doc 1
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.03 – A África só dos grandes “Reinos” e “Impérios”?

“De modo geral, os principais grupos africanos viviam nas áreas ao Norte, divididos grosso modo em
cinco zonas geográficas: o Magreb; a faixa territorial do Deserto do Saara; do Deserto de Sahel; a
4
faixa sudanesa e a faixa do Golfo da Guiné.”

“Os grandes impérios de Gana, Mali e Songhai, por sua vez, construíram as mais importantes
civilizações africanas entre os séculos IX e XV. Por isso, eles serão estudados com mais detalhes
5
nas próximas seções deste capítulo.”

Com relação à África Central Ocidental, o Reino do Kongo, chamado quase sempre de
Congo, é a única formação política, econômica e social a merecer uma atenção à parte. As
referências acerca de outras sociedades são mínimas. Dessa forma os reinos do Ndongo, Luba,
6
Lundas, Kubas ou Luango, ficam praticamente esquecidos . E mesmo quando os textos tratam do
reino do Kongo, apesar de fornecerem uma série de informações, como as ligadas aos padrões de
economia, tecnologia e da sociedade, as abordagens estão cercadas de simplificações e
generalizações.
Este é o caso de um dos manuais, que cometeu deslizes graves também com relação a
outros recortes históricos. Suas maiores imprecisões variam entre a emissão de juízos de valor e a
realização de leituras anacrônicas. Ao tratar dos conflitos entre o Abomei (Daomé) e os iorubás no
século XVIII, um dos autores afirma que “infelizmente grande parte das riquezas do reino Abomei veio
7
do comércio de escravos” . Infelizmente para quem? E por que?
Já ao citar uma das características “comuns” às culturas dos reinos do Kongo e do Ndongo,
na África Central, a postura do autor parece estar embebida de uma ação “moralizadora” ocidental
despropositada. Isso fica claro quando ele menciona o consumo de bebidas alcoólicas na região.

“O vinho feito de palmeira era muito apreciado, embora fizesse muito mal à saúde quando bebido
exageradamente. O guerreiro bêbado era fácil de ser derrotado, o sábio bêbado não passava de
8
tolo.”

4
MACEDO, José Rivair e Oliveira, Mariley W. Brasil: uma história em construção, p. 196.
5
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 58.
6
A única exceção dos livros citados é o de Mario Schmidt.
7
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 181.
8
Idem, Ibidem.

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Aula 3.03 – A África só dos grandes “Reinos” e “Impérios”?

A presença dos mapas destacando as formações políticas dos grandes reinos e impérios
também é comum, confirmando a ênfase concedida a essa abordagem.

Mapas da África destacando as formações políticas.


In DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 57 e In SCHMIDT,
Mario. Nova História Crítica, p. 177.

Apesar desses aspectos um ponto positivo pode ser destacado do esforço dos textos em
descreverem os grandes reinos e impérios africanos. Ao abordarem, por exemplo, a relevância da
metalurgia, o domínio da grande agricultura e o circuito comercial que envolvia as atividades
econômicas entre as sociedades africanas e outras regiões, eles permitem a aproximação dos alunos
com parte da produção de cultura material desses povos. Outro acerto comumente encontrado refere-
9
se ao destaque concedido ao perfil comercial de algumas sociedades na África Ocidental . A
presença de caravaneiros árabes e africanos envolvidos nos negócios é corretamente apresentada.
Ao mesmo tempo, a referência a alguns importantes centros comerciais do período como Tombuctu,
Gao ou Djenné, com seus grupos de comerciantes ou artesãos, permite aos alunos perceberem a
ativa participação dos africanos nas atividades mercantis desenvolvidas naquela parte do continente.

“Os comerciantes habitavam uma cidade próxima e negociavam com os árabes do Norte da África,
10
comprando tecidos, sal e cobre.”
“O ouro africano, desde este tempo, abastecia os estoques metálicos dos comerciantes árabes,
chegando até o Mediterrâneo. Caravanas de camelos cortavam o Sudão em busca do rico metal, em
11
busca de marfim e de escravos.”

9
O comércio foi uma característica econômica comum a várias regiões na África, não ficando limitada a citada
área da África Ocidental. Tanto na África Central, com um comércio intra-africano até o século XV, como na
parte Oriental do continente – com grande influência e participação do mundo árabe – as atividades mercantis
foram comuns.
10
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p, 178.
11
MACEDO, José Rivair e Oliveira, Mariley W. Brasil: uma história em construção, p. 198.

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UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.03 – A África só dos grandes “Reinos” e “Impérios”?

Um outro reino africano citado em alguns livros é o da Etiópia. A ênfase das informações
concentra-se na idéia de que ele foi um grande reino cristão cravado em meio às sociedades
islamizadas. Sua sobrevivência teria sido possível, segundo alguns autores, devido “à aliança entre
os governantes locais e os poderosos líderes religiosos. Em troca da construção de enormes igrejas
12
de pedra e da doação de terras, os líderes religiosos apoiavam as guerras contra os islamitas” .
Parece um tanto limitante encerrar toda a importância ou história da Etiópia em um dado: ela ser
cristã. E suas outras faces e características?
Que fique claro que não negamos a importância das abordagens dessas regiões ou
formações políticas africanas. Elas de fato possibilitam a construção de novos referenciais sobre a
África. Porém, a idéia transmitida por esse enfoque parece reforçar a perspectiva de que os
“pequenos” grupos não possuem relevância alguma. Ou ainda diante da impossibilidade de atentar
para as diversas sociedades que se espalham pela África, a seleção ocorreu se espelhando na
História da Europa: o estudo das grandes civilizações ou reinos. Não ignoramos a existência em
África de organizações políticas ou sociais, com semelhanças às européias ou americanas, mas é
preciso que se demonstre e enfatize suas singularidades e especificidades. Porém, esse importante
debate sobre o sentido ou significado das categorias como “reino” ou “império” para estas sociedades
africanas não ocorre. Esses conceitos são empregados e apresentados como se possuíssem o
mesmo valor explicativo utilizado na compreensão das realidades européias.
É muito provável que tal descaso confunda as referências adotadas ou construídas pelos
alunos sobre a história da África. A utilização de modelos ou categorias europeus é de fato uma ação
comum e pouco didática por parte dos autores.
Em contra partida, como aspecto extremamente adequado, destacamos as tentativas
realizadas por alguns livros de informar aos alunos a maneira como a História da África Ocidental foi
reconstruída a partir do uso das fontes escritas árabes e européias e das fontes orais africanas.

“No caso da história dos impérios africanos dos séculos XI a XV, os historiadores encontram histórias
13
orais transmitidas de geração em geração até os dias de hoje.”

A referência aos nomes de alguns imperadores dos reinos ou impérios da região, como
Sundjata Keita e Mansa Musa, é também fecunda. Permite aos alunos recriarem as referências sobre
a história da África. Não defendemos o tipo de ensino que supervaloriza a memorização de nomes e
datas, porém, a história não se faz sem marcos. Por isso, se os alunos já carregam em suas
memórias nomes de reis e cidades européias, como o de Luís XIV e Paris, por que não dividirem
espaço em suas lembranças com outros nomes: os de Sundjata Keita e Tombuctu, ou do Ngola a
Kiluanje e MabanzaKongo.

12
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 58.
13
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 63.

Aula3.03 - Texto.doc 4
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.04 – A África entre escravidões

2.4. A África entre escravidões

Ao analisar os efeitos da escravidão e do tráfico negreiro nas populações africanas os textos,


com raras exceções, revelam um grande descompasso com as novas pesquisas historiográficas.
Sobre as referências do uso da escravidão na África e na América e das motivações econômicas que
alimentaram o tráfico negreiro, algumas posturas incomodam.
Primeiro, poucos livros fazem alusão explicativa à escravidão tradicional africana – aquela
existente antes da chegada dos europeus ou árabes -, como se a escravidão fosse uma invenção
estrangeira naquele continente. Sabendo das profundas diferenças entre a escravidão praticada
pelos africanos e aquela utilizada sob influência dos árabes ou europeus, seria fundamental um
1
comentário sobre o tema. Porém, quando isso ocorre, a leitura é encoberta de certa idealização das
sociedades africanas e do uso da escravidão entre elas.

“Outra forma de escravização consistia em uma prática antiga entre os africanos: os


vencedores de uma guerra tinham o direito de levar parte dos derrotados para
trabalhar em sua terra. Contudo, o escravo levava uma vida parecida com a dos
trabalhadores livres: trabalhava lado a lado com eles, mantinha suas tradições e
2
muitas vezes alcançava a liberdade ao lutar junto com os guerreiros da tribo.”
“A escravidão não era novidade na África. Desde o século XI os árabes adquiriam
escravos africanos. Mas os árabes tinham poucos escravos e geralmente os filhos
3
dos escravos já eram quase livres.”

“Como se vê, antes do domínio europeu, já havia escravidão na África, embora


jamais em grande proporção. (...) existiam diferentes povos que lutavam entre si,
vencedores e vencidos, senhores negros e escravos negros, nem melhores nem
4
piores do que outros povos e outras civilizações.”

É evidente que existem outras faces, não tão amistosas, da escravidão praticada na região e
que são ignoradas ou omitidas pelos autores. Trabalhos de historiadores reconhecidos na temática
5
como John Thornton e Paul Lovejoy revelaram há um bom tempo a existência de castigos,
castrações, comercialização e sacrifícios envolvendo os usos da escravidão na África. Em alguns
casos, como da última citação, o sentido está parcialmente correto, porém seria preciso completar a

1
Apesar de não estar incorreta, a citação utilizada abaixo, está coberta por simplificações e ausência de
informações.
2
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 59.
3
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 180.
4
MACEDO, José Rivair e Oliveira, Mariley W. Brasil: uma história em construção, p.200.
5
THORTON, John. A África e os africanos na formação do Mundo Atlântico, 1400-1800, e LOVEJOY, Paul E.
A escravidão na África: uma história de suas transformações.

Aula3.04 - Texto.doc 1
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.04 – A África entre escravidões

idéia apresentada com outras informações. Ao mesmo tempo quase nada é dito sobre as
6
carcaterísticas e especificidades da chamada escravidão doméstica ou de linhagem e parentesco .
Segundo, ao tentar situar o aluno perante as relações das práticas materiais com as
mentalidades de certo período, algumas análises se revestem de um perigoso anacronismo. Ao
afirmarem que mesmo sendo apoiada pela Igreja, governos, comerciantes, políticos, fazendeiros e
pela mentalidade da época, a escravidão foi de alguma forma injusta em sua própria essência, os
livros – que adotam tal postura explicativa – perdem os limites temporais e os critérios do relativismo,
fazendo com que o aluno visualize uma história na qual, todos devem ter como valores e referências
7
de vida os padrões ocidentais atuais .

“Além das necessidades econômicas, existia a mentalidade da época. A escravidão


não era escandalosa como é hoje. Até mesmo os padres tiveram escravos. Já
pensou se alguém disser que temos de aceitar as injustiças sociais de hoje porque no
8
futuro alguém vai falar que no nosso tempo ‘as injustiças eram normais?.”

“Por incrível que pareça, alguns papas chegaram a autorizar a escravização dos
africanos. A Igreja Católica alegava que essa era uma maneira de fazer os africanos
9
‘abandonarem as religiões do diabo e conhecerem o cristianismo’.”

Ao exigir da Igreja Católica do período uma postura contrária a que historicamente manteve o
autor desconsiderou as perspectivas teológicas e temporais do catolicismo. A idéia de que a Igreja foi
omissa ou permissiva não condiz com as práticas e posturas do Vaticano à época, são reflexões que
10
encontram eco apenas a partir dos olhares contemporâneos . Não podemos esquecer que os
elementos que embasaram as bulas papais, que autorizavam os reis portugueses a escravizar
eternamente os muçulmanos, os pagãos e os africanos negros, foram retirados de um imaginário
maior, no qual o negro e os infiéis eram tipificados como inferiores aos homens da cristandade
11
européia .

6
Sobre o assunto ver os seguintes trabalhos: Selma Pantoja, Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão;
Patrick Manning, Escravidão e mudança Social na África; e Alberto da Costa e Silva, A manilha e o Libambo.
7
Parece óbvio que pensar a escravidão a partir dos valores e concepções de mundo influenciadas pelas
ideologias e posturas humanitárias que marcaram a segunda metade do último século, exige a rejeição e o
combate da sua existência nos dias de hoje, ou mesmo no passado. Porém, isso é uma visão do presente. O
conjunto de idéias, valores e interesses daquela época eram outros e não eram homogêneos. Mesmo que a
violência fosse marca certa desse processo, ele era justificado para os homens do período, inclusive alguns
africanos.
8
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 213.
9
Idem, p. 102.
10
Alertamos que, não estamos desconsiderando os esforços de alguns missionários, religiosos ou teólogos
contrários à escravidão. Apenas evidenciamos o debate político-diplomático-religioso de esferas hierárquicas
maiores acerca da questão ou que se tornaram características gerais da Igreja.
11
Acerca da questão, ver o trabalho de Carlos Lopes. A Pirâmide Invertida - historiografia africana feita por
africanos.

Aula3.04 - Texto.doc 2
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.04 – A África entre escravidões

De forma parecida, quase não existem menções aos africanos traficantes ou as formas de
escravização usadas em África. Para os autores somente os comerciantes portugueses, espanhóis,
ingleses e brasileiros fizeram parte das redes de lucro oriundas de tal atividade. A participação de
africanos no comércio de homens é quase ignorada, a não ser pela perspectiva de que muitos
escravos foram obtidos a partir dos conflitos entre grupos rivais do continente.
Soma-se a esse quadro o uso pouco adequado de imagens que ilustram os africanos e
escravos no Brasil em condição de submissão e de punição. Nelas é reproduzido o estereótipo do
africano passivo e sofredor.

A postura do africano escravizado resumida ao


sofrimento e submissão.
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série,
p. 102.

Nos manuais em que a África não recebe uma abordagem específica um dos maiores
equívocos encontrados é de se referir à sua história apenas a partir do tráfico de escravos. É como se
o continente não tivesse uma trajetória histórica anterior à escravidão atlântica. Alguns autores dos
manuais analisados aqui chamam a atenção para a influência dessa referência na elaboração do
imaginário cheio de estereótipos compartilhado pela grande maioria de nossos alunos e professores
acerca dos africanos.

“Em geral, quando no Brasil e na América falamos em África, todos lembram-se logo
da escravidão e exploração impostas aos africanos pelos europeus. É como se a
12
história da África estivesse sempre presa à história dos povos dominadores.”

12
MACEDO, José Rivair e Oliveira, Mariley W. Brasil: uma história em construção, p.195.

Aula3.04 - Texto.doc 3
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.05 – Entre diversidades e simplificações

2.5. Entre diversidades e simplificações

Uma das principais estratégias para desconstruir alguns dos estereótipos que simplificam ou
inferiorizam os africanos aos olhares ocidentais é revelar aos alunos que abaixo do Saara não
existiram apenas dois grandes grupos humanos: os bantos e os sudaneses. Ao longo da História da
África, inclusive nos dias atuais, podemos encontrar centenas de grupos étnicos e diversas formas de
organização política-social-cultural-econômicas no continente. Essa profunda diversidade é uma das
faces mais vivas e características da África
No começo dos capítulos quase todos os autores alertam, de forma bastante pontual, para
essa diversidade cultural que teria caracterizado os povos africanos, assim como para o fato de que a
grande civilização egípcia ser, antes de qualquer outra “coisa”, africana. Esses argumentos serviriam
para desconstruir as idéias equivocadas transmitidas pelo ensino da História e preservada no
imaginário comum de uma África homogênea e simplista.

A África é um imenso continente, ocupado por muitos povos que apresentam uma
grande diversidade cultural. Tal diversidade resulta dos diferentes processos
1
históricos vividos pelos habitantes de cada região na África .

Quem não admira o povo do rio Nilo, das múmias, dos faraós, que escrevia livros de
Matemática e construía pirâmides? A maioria dos egípcios antigos eram africanos e
tinham a pele negra ou mulata. O que é mais uma prova contra as pessoas racistas
que teimam em dizer que “os negros não foram capazes de formar uma grande
civilização”. Acontece que o Egito não foi a única grande civilização da África.
2
Existiram muitas outras.

Apesar desse destaque, nós já vimos que os livros analisados acabam por concentrar suas
abordagens em apenas algumas dessas sociedades, descartando, portanto, uma das maiores
características do continente. Já em outros livros didáticos é comum encontrarmos mapas, nos quais,
a África é apresentada aos alunos separada em duas ou três faixas geográficas de onde teriam saído
os africanos escravizados. Novamente, a diversidade e complexidade dos povos do continente ficam
nubladas. Os alunos ao terem contato com tais leituras passam a reproduzi-las, transformando
milhares de grupos étnicos em apenas dois, os já citados bantos e sudaneses.
Em outros casos os autores procuram estabelecer uma outra separação, na qual, usando
uma fusão de grupos humanos com os locais de embarque dos escravos, optam por denominar as
regiões do tráfico em África de Guiné, Costa da Mina e Angola, de onde viriam os “congos” e os
“angolas”.

1
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª. São Paulo: Atual, 2000, 56.
2
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 177.

Aula3.05 - Texto.doc 1
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.05 – Entre diversidades e simplificações

Mapa Tradicional de Livro Didático e a África reduzida às regiões do tráfico.


Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, História do Brasil, p. 110 e SCHMIDT, Mario. Nova
História Crítica, p. 205.

Aula3.05 - Texto.doc 2
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.06 – Uma África dividida por tribos e nações?

2.6. Uma África dividida por tribos e nações?

Com relação à forma de denominar ou identificar as sociedades africanas o uso de alguns


termos ou conceitos demonstram muitas vezes o despreparo dos autores. Por exemplo, o conceito de
tribo, utilizado por quase todos os autores, parece ser por demais impreciso para se referir aos
grupos do continente. Existe já, há algum tempo, um intenso debate acerca da utilização dessa
categoria de forma deliberada. Diante do grande suporte que as pesquisas antropológicas e históricas
já deram sobre o assunto, acredito que insistir nessa forma de se referir às sociedades da África não
encontra mais justificativa. Porém, a referência às sociedades africanas como tribais é freqüente.
Parece existir uma continuidade de idéias com os mitos ou teorias que defendiam a suposta
inferioridade dos povos africanos, já que tribo aparece, nestes casos, com o significado oposto ao de
civilização. A utilização da categoria tribo também é recorrente para designar as sociedades
dominadas pelos impérios. Será que existe nesta relação alguma intenção de inferiorizar os
pequenos grupos? Em nenhum livro encontramos algum tipo de aparte explicativo sobre o
significado, trajetória e ajustes que devem cercar a aplicação desse conceito.

“A unificação de tribos em reinos nunca chegou a se comparar com os casos


apresentados anteriormente. No máximo ocorreram agrupamentos de tribos, em
uniões passageiras, ao sabor da influência de chefes importantes, cujo poder era
1
exclusivamente pessoal.”

“A maioria [dos escravos] pertencia a tribos subjugadas no início da expansão


imperial, que, por tradição, continuavam presas a essa condição. Para manter essa
2
situação, os membros dessas tribos eram proibidos de casar com estrangeiros.”

O uso de alguns outros termos ou conceitos como de nação ou de país também são
recorrentes, e também estão encobertos de imprecisão. Fica evidente que os autores encontram
dificuldades em tratar os grupos étnicos africanos, e confundem ainda mais os alunos ao usarem
termos ou definições que se ajustam mais especificamente a outros contextos históricos do que ao
africano, pelo menos até o início do século XX. Não que não possam ser aplicados no entendimento
da África, mas, se utilizados, devem ser contextualizados. Porém, neste caso o uso de
nação/civilização e grupo étnico como sinônimos é uma postura pouco didática. É o que ocorre, por
exemplo, quando alguns textos tentam explicar que eram os haúças, da África Ocidental.

“A civilização dos hauças começou a ser construída por volta do século XI (...)
Os hauças eram, na verdade, diversos povos que falavam uma língua semelhante.
Habituados ao comércio internacional, os haúças aceitavam conviver com pessoas de
3
outras nações(...).”

1
MACEDO, José Rivair e Oliveira, Mariley W. Brasil: uma história em construção, p. 200.
2
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 59.

1
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.06 – Uma África dividida por tribos e nações?

2.7. As cosmologias africanas esquecidas

Outra falha encontrada é a quase total ausência de referências acerca das concepções
4
cosmológicas das sociedades africanas. Em poucos momentos os livros atentam para uma
abordagem explicativa da relação entre as diferentes percepções e definições daquilo que os
ocidentais chamam de Religião para as elaborações africanas sobre a questão. A literatura existente
sobre o pensamento tradicional religioso africano oferece um rico subsídio para este debate, em
minha opinião, fundamental para relativizar o universo africano e demonstrar como suas estruturas de
5
explicação das relações sociais e da vida são diferentes das ocidentais .
Devido à polêmica que normalmente envolve o assunto nas salas de aula ele deveria ter
presença obrigatória nos textos didáticos. Porém, o tema recebe apenas uns poucos parágrafos de
atenção.

“(...) uma parte importante dos africanos acreditava num único Deus: eles se
6
tornaram muçulmanos.”

“Assim, apesar da forte pressão dos imperadores, nobres e grandes mercadores a


favor da adesão ao islamismo, a maioria da população do império continuava
7
mantendo suas práticas religiosas, como a adoração aos deuses da natureza”
“Muitos povos africanos desenvolviam o culto aos antepassados. Os parentes mortos
eram adorados como deuses por seus familiares, que acreditavam que os espíritos
podiam ajudar ou perturbar o cotidiano dos vivos. Por isso, era comum jogar-se um
pouco de bebida na terra para que o espírito do parente morto pudesse beber e se
8
alegrar”.

3
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 179-180.
4
Ao nos referirmos em África ao que no Ocidente entendemos por religião utilizaremos o termo Cosmologia. Na
verdade o termo procura condensar a idéia de uma estrutura de pensamento que articula as relações entre as
esferas do físico e do metafíscio de forma muito mais intimista e complexa do que no caso ocidental. A relação
com as forças invisíveis, com os antepassados, com as normas de funcionamento das sociedades e do cosmos se
confundem nessa dinâmica perspectiva relacional.
5
Acerca da questão das cosmologias africanas ver a obra de APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai.
6
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 182.
7
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 61.
8
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 183.

2
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.06 – Uma África dividida por tribos e nações?

Sobre o primeiro exemplo fica uma inquietante dúvida: que parte importante dos africanos era
monoteísta? E esse é o único elemento que possibilitou a conversão ao islamismo? Acreditamos que
estas idéias estejam erradas. No segundo grupo de citações o que se percebe é a extrema
simplificação e superficialidade ao se tratar das cosmologias africanas. Ora se empresta a todo
universo africano algumas práticas, que se ocorriam em certas regiões do continente possuíam
significados singulares e complexos, e, ora, as complexas estruturas do pensamento africano ficam
resumidas e estereotipadas. Não podemos ignorar o fato de que o fenômeno religioso em África não
tem as mesmas bases do que o Ocidental. Por isso, para os povos da região seria mais adequado
usar o termo cosmologia e não religião. Além disso, é difícil aceitar que as complexas estruturas dos
pensamentos cosmológicos africanos sejam resumidas pela idéia deles serem “adoradores de
deuses da natureza”.

3
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.07 – Os africanos islamizados e o islã africanizado

2.8. Os africanos islamizados e o islã africanizado.

No tópico responsável pela abordagem das múltiplas relações entre o mundo islâmico e
sociedades africanas percebemos um movimento explicativo comum entre os livros e impreciso
historicamente. Poderíamos falar em uma espécie de “islãcentrismo”, a nortear essas análises. As
ações históricas ocorridas na África do Norte, Ocidental e Oriental se tornam exclusividades dos
grupos árabes muçulmanos que percorrem a região, restando aos africanos uma postura passiva
perante o outro.
As influências do islamismo e a própria islamização de algumas sociedades africanas são
mencionadas, porém alguns aspectos são negligenciados ou citados de forma um tanto confusa. Um
desses pontos é a idéia de que a conversão ao islamismo atingiu a todos os membros das
sociedades em contato com os mercadores árabes ou dos estados islâmicos em expansão de forma
quase instantânea. As estratégias de conversão das elites comerciais ou governamentais e a
posterior e gradual conversão da população são fenômenos apenas parcialmente mencionados.

“Apesar de manterem diversas práticas tradicionais, converteram-se ao islamismo,


absorvendo muitos aspectos da cultura islâmica(...) A adoção dos mesmos elementos
utilizados por seus parceiros comerciais possibilitava maior controle sobre as
1
relações comerciais, evitando-se prejuízos.”

Outro descuido é não mencionar a apropriação e influências dos africanos sobre o islamismo
praticado em África. Seria correto afirmar que o islã foi muitas vezes africanizado. Na arquitetura, nas
formas teocráticas, nas interpretações alcorânicas, na convivência com as concepções cosmológicas
locais, existiu uma participação ativa das sociedades da região sobre o islã. Porém, a idéia mais
repetida, inclusive nas imagens, é a da islamização dos africanos. Mesmo quando os autores indicam
o movimento contrário eles se confundem.
2
“Islamitas em frente à mesquita de Mopti, no Mali, de arquitetura africana.”

“Em todos os territórios da África Ocidental, os árabes fundamentaram o seu governo


segundo as mesmas normas existentes no Oriente Médio, isto é, segundo os
3
princípios teocráticos do islamismo.”

“Houve ainda forte influência islâmica na arquitetura africana, especialmente em


4
Tombuctu, capital do império do Mali.”

1
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 62 e 63.
2
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p. 62.
3
MACEDO, José Rivair e Oliveira, Mariley W. Brasil: uma história em construção, p.196-7.
4
DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª, p.63.

1
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.07 – Os africanos islamizados e o islã africanizado

Imagens de mesquita de Mopti, no Mali e influências islâmicas no vestuário de grupos africanos, ou


poderiamos falar em influências africanas no vestuário árabe islâmico?
In SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 179 e In MACEDO, José Rivair e Oliveira,
Mariley W. Brasil: uma história em construção, p.197.

2.9. Outros pontos positivos e elogios

No uso das imagens, alguns autores parecem se sair um pouco melor, apesar de algumas
citações de fontes estarem imprecisas ou ausentes. A apresentação de mapas, que fogem das
representações cartográficas tradicionais dos manuais, e de imagens de mesquitas em Mopti e
Djenee e da cidade de Tombuctu, no Mali, do Grande Zimbábue, assim como de esculturas feitas
pelos africanos são importantes instrumentos na apresentação das formas arquitetônicas, das
religiosidades, artes e filosofias africanas.

As muralhas do Grande Zimbábue e a estatuária dos povos africanos.


In SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 182 e In MACEDO, José Rivair e Oliveira,
Mariley W. Brasil: uma história em construção, p. 196.

2
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.07 – Os africanos islamizados e o islã africanizado

Alguns autores, em válida iniciativa, chamam a atenção dos alunos para as representações
elaboradas pelos africanos sobre os europeus, como uma imagem feita por grupo étnico que habitava
o Benin. A postura mercantil-bélica fica evidente na pequena estatueta. Alertar para as
representações feitas de europeus pelos diversos grupos africanos é um exercício fecundo para que
os alunos passem a reconhecer a participação ativa e a autonomia das sociedades africanas.
Normalmente o que encontramos é a reprodução das imagens elaboradas pelos europeus
sobre os africanos, nas quais percebemos a mudança de suas fisionomias, de seus gestos, roupas e
comportamentos, que são europeizadas.

Os portugueses, sob olhares africanos e os africanos sob olhares portugueses.


In SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série, p. 102 e 179.

3
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.08 – A Historiografia consultada

2.10. A Historiografia consultada

Com relação à utilização das pesquisas realizadas pelas historiografias africana e


africanistas, as bibliografias citadas, apesar de conterem nomes e obras importantes, são ainda
bastante restritas se comparadas à difusão de estudos e pesquisas que a História da África passou
nos últimos vinte anos. A presença dos trabalhos de Basil Davidson, Roland Oliver, Joseph Ki-Zerbo
demonstra o contato com a vertente de estudos efetuados até a década de 1970. Já a citação da
obra de Alberto da Costa e Silva revela um pequeno contato com os novos estudos, porém, a
referência é ainda insuficiente. Outros textos sofrem influências de trabalhos um tanto questionáveis,
principalmente pelas defasagens e imprecisões: João Carlos Rodrigues, Pequena História Negra, e
Mario Maestri, História da África Negra.
Porém, tal desconhecimento com as novas investigações acerca do continente não mais se
justifica. Nos últimos anos, a ação de um grupo considerável de pesquisadores tem contribuído para
1
minimizar o descaso com os estudos africanos no país. Congressos , publicações e centros de
pesquisa têm tentado estender os estudos sobre o passado escravista nacional e sobre a própria
África. Destacaram-se, nessa tarefa, três centros de estudos afro-brasileiros. O mais antigo deles é o
Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), da Universidade Federal da Bahia, criado nos anos 1960.
Sob sua tutela, é publicada a revista Afro-Ásia. Alguns dos pesquisadores que contribuíram para a
fundação e manutenção do Ceao “atravessaram o oceano e foram estudar e lecionar em Dacar,
2
Ibadan, Ifé, Kinshasa” . Na década seguinte, surgiam mais dois importantes centros: o Centro de
Estudos Afro-Asiáticos (1973), na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, e o Centro de
Estudos Africanos (1978), da USP. Ambos também são responsáveis pela manutenção das revistas
Estudos Afro-Asiáticos e África, respectivamente.
Nesse mesmo tempo, pesquisadores têm conquistado um espaço cada vez maior no cenário
historiográfico internacional e nacional. Para evitar a repetição excessiva de nomes e títulos, serão
mencionados apenas aqueles que são, para os estudos africanos realizados a partir do Brasil,
indispensáveis e possuem publicações acessíveis ao público brasileiro. É claro que, devido a um
descuido imperdoável, alguns nomes não serão citados. Isso ocorre não por demérito, mas sim pela
existência de um dado positivo: o aumento do número de pesquisas impossibilita reunir todas em um
só texto. Citemos, portanto, os trabalhos agregados em algumas áreas temáticas. Acerca do tráfico
de escravos dois trabalhos são fundamentais: o de Paul Lovejoy, A escravidão na África: uma história
de suas transformações, e o de John Thorton, A África e os africanos na formação do Mundo
Atlântico, 1400-1800. Sobre regiões específicas da África, como o reino do Kongo, do Ndongo, na
África Central Ocidental, existem os trabalhos de Joseph Miller, Poder político e parentesco: antigos
estados mbundu em Angola, de David Birmingham, A África Central até 1870, e de Selma Pantoja,
Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão. Sobre Angola contemporânea, as reflexões de Marcelo
Bittencourt, Dos jornais às armas: trajectórias da contestação angolana, são importantes. Enfocando

1
O mais conhecido é o Congresso Nacional da Associação Latino-Americana de Estudos Afro-Asiáticos no
Brasil (ALADAAB).
2
COSTA E SILVA, Alberto. “Os Estudos de História da África e sua importância para o Brasil”, p. 19.

1
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.08 – A Historiografia consultada

Cabo Verde, os trabalhos de Leila Hernandez, Os filhos da terra do sol: a formação do Estado-nação
em Cabo Verde, e de Gabriel Fernandes, A diluição da África, são boas referências. Acerca de
Moçambique, destacam-se Valdemir Zamparoni e Edson Borges. Para um olhar em torno das
relações internacionais África-Brasil, revelam-se as investigações de José Flávio Sombra Saraiva, O
lugar da África, e de Pio Penna, Conflito e busca pela estabilidade no continente africano na década
de 1990. Acerca da África Austral ou do período colonial, encontramos os artigos de Wolfgang
Döpcke, como A vinda longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra.
Englobando temáticas gerais africanas, ou realizando grandes sínteses do continente, temos os
textos clássicos de Joseph Ki-Zerbo, História da África Negra, de dois volumes, e do embaixador
Alberto da Costa e Silva, A enxada e a lança e A manilha e o libambo, além da excelente obra do
africano Elikia M’Bokolo, África Negra História e Civilizações. Até ao Século XVIII.
Apesar desses avanços, ainda existe a necessidade de dinamizar os estudos da África e
desvinculá-los daqueles ligados às temáticas afro-brasileiras, para percebê-los em seu próprio eixo
histórico africano ou naquilo que é chamado de contexto ou Mundo Atlântico. Mesmo que o objetivo
final desses estudos seja entender as relações históricas entre a África e o mundo, é preciso que os
historiadores voltem suas óticas para a própria África, ou que, a partir dela, visualizem suas
interações com outras regiões.
Outro dado preocupante, reflexo do reduzido grupo de especialistas em África no Brasil, é o
pequeno número de universidades e faculdades com cursos de história que ofertam como disciplina
obrigatória ou até com perspectivas temáticas a história da África. A publicação e tradução de obras,
em escala ainda insatisfatória, apesar do aumento do interesse de algumas editoras, é outro ponto a
ser repensado. O que poderia amenizar algumas falhas dos autores aqui analisados.
Percebe-se, portanto, que a escrita da história da África é uma tarefa ainda em construção,
mas que, seguindo a tendência mundial dos estudos e enfoques sobre o continente negro, deve ter
avanços importantes nos próximos anos.

2
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.09 – Reflexões Finais

Reflexões Finais

Acredito que, percorrida essa breve abordagem acerca da História da África, temos ainda não
respondida a questão que introduz o texto – “o que sabemos sobre a África?”. Talvez demore mais
algum tempo para que possamos – professores e alunos - fazê-lo com desenvoltura. Porém, fica
evidente que ensinar a História da África, mesmo não sendo uma tarefa tão simples, é algo
imperioso, urgente. As limitações transcendem – ao mesmo tempo em que se relacionam – aos
preconceitos existentes na sociedade brasileira, e se refletem, de certo modo, no descaso da
Academia – com ainda um pequeno número de especialistas e pesquisas -, no despreparo de
professores e na desatenção de editoras pelo tema. Por isso, não sei se aquela pergunta ainda uma
tem resposta aceitável.
É obvio que muito se tem feito pela mudança desse quadro. Louve-se nesse sentido a ação
de alguns núcleos de estudo e pesquisa em História da África montados no Brasil, como o Centro de
Estudos Afro-Orientais (CEAO), da Universidade Federal da Bahia, o Centro de Estudos Afro-
Asiáticos e o Centro de Estudos Afro-Brasileiros, da Universidade Cândido Mendes (UCAM), e o
Centro de Estudos Africanos, da USP. Enalteça-se a iniciativa legal do governo, do movimento negro
e de alguns historiadores atentos à questão. Ressalte-se a ação de algumas instituições e
professores que têm promovido palestras, cursos de extensão e oferecido ou proposto cursos de pós-
graduação em História da África, como na UCAM e na Universidade de Brasília (UnB). Porém, ainda
existem grandes lacunas e silêncios. A obrigatoriedade de se estudar África nas graduações, a
abertura do mercado editorial - traduções e publicações - para a temática, até a maior cobrança de
História da África nos vestibulares são medidas que possam aumentar o interesse pela História do
continente que o Atlântico nos liga. Talvez assim, em um esforço coletivo as coisas tendam a mudar.
Incursionar sobre a História da África parece ser algo tentador, motivador e necessário.
Esperamos que o presente módulo venha a contribuir na melhoria e continuidade de algumas
iniciativas aqui abordadas, sempre objetivando a formação humana e o reconhecimento do continente
que se conecta conosco pelas fronteiras Atlânticas.As histórias dos iorubás, dos haúças, dos
umbundos ou kicongos deveriam estar tão próximas de nós quanto a história de Portugal ou da
Europa. Nossa ancestralidade encontra conexões profundas em ambas as parte da fronteira Atlântica
que nos toca. Além disso, a África nos reserva um poderoso campo de pesquisa e entendimento da
História da humanidade.

1
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.09 – Reflexões Finais

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_____. História Geral da África: metodologia e pré-História da África. vol. IV. São Paulo: Ática; Paris:
Unesco, 1982.
LOPES, Carlos. “A Pirâmide Invertida - historiografia africana feita por africanos”. In Actas do
Colóquio Construção e Ensino da História da África. Lisboa, Linopazes, 1995.
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2002.
M’ BOKOLO, Elikia. África Negra História e Civilizações. Até ao Século XVIII. Lisboa, Vulgata, 2003.
MANNING, Patrick. “Escravidão e mudança Social na África”. Novos Estudos, CEBRAP, nº 21, julho,
pp. 8-29, 1988.
MILLER, Joseph. Poder Político e Parentesco. Antigos estados mbundu em Angola. Luanda: Arquivo
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_____. “Tradição Oral e História: uma agenda para Angola”. In Actas do II Seminário Internacional
Sobre A História de Angola. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000.

2
UNIDADE 3 - O Ensino da História da África em debate
(Uma introdução aos estudos africanos)
Aula 3.09 – Reflexões Finais
MOKHTAR, G. (org.) História Geral da África, vol. II: A África Antiga. São Paulo: Ática; Unesco, 1983.
MUDIMBE, V. The invention of Africa. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1988.
NIANE, D. T. (org). História Geral da África, vol. IV: África entre os séculos XII e XVI. São Paulo:
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OLIVER, Roland. A Experiência Africana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1994.
PANTOJA, Selma e ROCHA, Maria José (orgs.). Rompendo Silêncios: História da África nos
currículos da educação básica. Brasília: DP Comunicações, 2004.
PANTOJA, Selma e SARAIVA, Flavio. (Orgs.) Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. Rio de
Janeiro, Bertrand do Brasil, 1999.
PANTOJA, Selma. (Org.). Entre Áfricas e Brasis. Brasília, Paralelo 15, 2001.
PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão. Brasília, Thesaurus, 2000.
RAY, Benjamin C. African Religions: symbol, ritual, and community. New Jersey, Prentice-Hall, 2000.
SARAIVA, José Flávio Sombra. “Olhares Transatlânticos: África e Brasil no mundo contemporâneo”.
In Humanidades, nº 47, novembro de 1999.
SARAIVA, José Flávio Sombra. O Lugar da África. Brasília: EdUnB, 1996.
THORTON, John. A África e os africanos na formação do Mundo Atlântico, 1400-1800. Rio de
Janeiro, Campus, 2003.
VANSINA, J. “A tradição oral e sua metodologia”. In KI-ZERBO, Joseph (org.). História Geral da
África, vol. I. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1982.
ZURARA, Gomes Eanes. Crônica dos feitos notáveis que se passaram na conquista da Guiné por
mandado do Infante D. Henrique. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1978 e 1981.

Ensino da História da África

CUNHA, Henrique Cunha Jr. “O ensino da História Africana”. In Historianet, www.historianet.com.br.


LIMA, Mônica. “A África na Sala de Aula”. In Nossa Historia, ano 1, n° 4, fevereiro de 2004, pp. 84-86.
_____. Fazendo soar os tambores: o ensino de História da África e dos Africanos no Brasil.
Comunicação apresentada na II Jornada África-Brasil. Brasília, 2003.
MATTOS, Hebe Maria. “O Ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil”. In
Martha Abreu e Rachel Soihet, Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de
Janeiro, Casa da Palavra; FAPERJ, pp. 127-136, 2003.
OLIVA, A. R. “A África, o imaginário Ocidental e os livros didáticos”. In PANTOJA, Selma e ROCHA,
Maria José (orgs.). Rompendo Silêncios: História da África nos currículos da educação Básica.
Brasília: DP Comunicações, 2004.
_____. “A África, o imaginário Ocidental e os manuais escolares: Representações e imprecisões
sobre os africanos nos livros de História em Angola, Portugal e no Brasil.” In Anais do VII
Congresso Nacional da Associação Latino-Americana de Estudos Afro-Asiáticos do Brasil.
Brasília: UnB, 2004.
_____. “A História da África nos Bancos Escolares: representações e imprecisões na literatura
didática”. Revista Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, n° 3, set./dez. 2003, pp. 421-462.
RIBEIRO, Ronilda. “Ação educacional na construção do novo imaginário infantil sobre a África”. In
MUNANGA, Kabenguele (org.). Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São
Paulo: EDUSP; Estação Ciência, 1996, pp. 167-176.
SILVA, Petronilha Beatriz. “Africanidades brasileiras”. In Revista do Professor, Porto Alegre, 19 (73),
jan./mar. 2003, pp. 26-30.
TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. A África só produz escravos?

Livros Didáticos

DREGUER, Ricardo e Toledo, Eliete. História: cotidiano e mentalidades, 7ª. São Paulo: Atual, 2000.
MACEDO, José Rivair e Oliveira, Mariley W. Brasil: uma história em construção, vol. 3. São Paulo:
Editora do Brasil, 1996.
SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica, 6ª série. São Paulo: Nova Geração, 1999. (Incluído o Manual)

3
UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.01 - Introdução

Prof. Luiz Carlos dos Santos.*


Introdução

Embora muitos tenham dificuldades em saber quem é negro no Brasil, mesmo quando se leva
em consideração a classificação feita pelo IBGE, de que negro é a associação estatística de pretos e
pardos, a polícia parece não ter dúvidas. E a centena de nomes ligados a cor da pele em registros
estatístico do mesmo IBGE,só evidencia que ser negro no Brasil é, antes de tudo, uma posição política.
A História Oficial do Brasil destinou ao negro um espaço que começa e termina na escravidão e
sobre a civilização negro-africana espalhou uma nuvem de esquecimento e exotismo que o senso-
comum reproduz em suas narrativas que situam as culturas africanas e indígenas, como primitivas .
Entretanto, a palavra falada, instrumento de comunicação privilegiado entre os africanos
escravizados ou não e, ao mesmo tempo, sopro divino de humanidade, far-se-á presente com o seu som
e sentido históricos, mostrando que o retrato do saber não é o saber e que a História contada pode ser
outra,como a poesia abaixo expressa.

“ Eu quero uma história nova


Não este conto de fadas brancas e ordinárias
Donas de nossas façanhas
Eu quero um direito antigo
Engavetado em discursos
Contidos, paliativos
(cheios de maçãs e pêras)
Bordados de culpa e crimes.

Eu quero de volta, de pronto


As chaves dessas gavetas
Dos arquivos trancafiados
Onde jazem meus heróis
Uma “nova” história velha
Cheia de fadas beiçudas
Fazendo auê, algazarras
Com argolas nas orelhas,
De cabelos pixaim
Engasgando príncipes brancos
Com talos de abacaxi.”

Fadas Negras Nordestinas, In. Caxingulê, de Lepê Correia

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.01 - Introdução

A Presença Negra no Brasil

A presença negra no Brasil vem sendo mostrada, em prosa e verso, desde os primeiros anos da
colonização portuguesa. Muitos historiadores indicam o ano de 1532 como o marco de entrada dos
primeiros negros que aqui chegaram na condição de escravos. Entretanto, cabe ressaltar, que a história
do negro começa muito antes no continente africano, onde uma civilização, organizada através da
palavra falada, vem construindo, dentro uma rica diversidade cultural, a sua história.
A compreensão da história do Brasil, nesses últimos 500 anos, não é possível se não
conhecermos de forma mais profunda a presença negra na sua constituição. O modo de viver, pensar e
trabalhar do brasileiro está completamente impregnado da matriz africana. Desde a língua, passando
gestualidade e pela religiosidade, é muito difícil não se identificar a mão e a alma negras naquilo que
denominamos cultura brasileira.
Quando pensamos na comida típica brasileira, o que nos vem à cabeça? A música que todos nós
brasileiros identificamos como nossa, seja cantarolando ou mexendo com o corpo, qual é? As nossas
festas populares que pintam de várias cores todas as regiões brasileiras estão enxarcadas das diversas
culturas africanas, sequestradas ainda no seu berço civilizatório e para cá trazidas. Poderíamos listar
dezenas de manifestações culturais com a marca negra, no Brasil. No entanto, como explicar 505 anos
depois, a situação de exclusão física da população negra no país, onde ela representa cerca de 45,8%.
A História do Brasil vem sendo contada, como é comum, nas sociedades ocidentais, na
perspectiva dos grupos sociais hegemônicos, ou seja, daqueles que detêm o poder político, geralmente
conquistado pela força das armas e não pela sofisticação das idéias. Por isso mesmo, o lugar do índio e
do negro, embora sejam essenciais na formação social brasileira, parece ainda não ter sido encontrado
para a historiografia oficial que optou pelo olhar eurocêntrico sobre as nossas matrizes civilizatórias.
Por tudo isso, conhecer a história do negro no Brasil é reconhecer a necessidade de que a
mesma seja contada, agora enxergando-o como sujeito e, portanto, igual. Para tanto, devemos nos
convidar a uma empreitada nova no sentido de abrir os nossos velhos livros de história e relê-los,
buscando compreender os significados de suas capas e títulos que , na maioria das vezes, apresentam
homens e mulheres em situação de trabalho escravo, abolida a escravidão a imagem negra
simplesmente some dos manuais de história e se fixa de forma perversa no imaginário.
A escolha das respostas indica apenas o resultado de uma primeira leitura do texto introdutório e
não que a sua escolha, caso não coincida com a mais adequada, está absolutamente errada. Não
devemos esquecer que ,assim como os nossos alunos, nós mesmos fomos formados sob um ótica
voltada para valorizar o que não está em nós, o que vem de fora. Até porque essa era a forma dos
colonizadores europeus estarem sempre presentes entre nós.

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UNIDADE 4 – O Negro no Brasil
Aula 4.02 – O Negro no Brasil Colônia

A Colonização do Brasil

A colonização do Brasil foi uma obra política dos portugueses que levou até as últimas
consequências a exploração do trabalho escravo, realizado por índios e essencialmente por negros,
trazidos de várias regiões do continente africano e, portanto, donos de uma considerável diversidade
cultural.
As histórias do Brasil Colônia não se resumem, no entanto, as articulações políticas da coroa
portuguesa, sempre preocupada em tirar o máximo proveito das terras recém achadas e das gentes que
escravizou para realizar o seu objetivo. Por isso mesmo, é importante ressaltar que a aparente
passividade dos escravizados não foi verdadeira. Foram muitas as formas de resistência à escravidão e
elas, aliás, começavam ainda em terras africanas, tornavam-se dramáticas durante a travessia do
atlântico e no continente americano tomaram as mais diversas formas. E a mais conhecida entre nós
foram os quilombos, forma de organização já conhecidas pelos negros ainda no continente africano.
As narrativas da historiografia oficial apresentam um processo de colonização cujos os conflitos
se limitam aos desarranjos entre os portugueses, dando pouco ou nenhum destaque à resistência negra
ao trabalho escravo,dando a entender que a escravidão foi bem aceita/assimilada pelos africanos. As
fugas de escravos e a posterior formação de quilombos foi uma constante desde os primórdios da
colonização, ganhando maior destaque no século XVII, com o Quilombo de Palmares.

Os quilombos eram espaços para onde os escravos que não aceitavam a sua condição fugiam e
lutavam contra a escravidão. Os quilombos também eram chamados de mocambos e abrigavam
também índios e brancos pobres e pela maneira como se contrapunham à escravidão, foram vistos
como propostas alternativas de sociedade e a pujança que alcançou o quilombo de Palmares durante
quase um século de existência, obrigando a administração portuguesa a ter de negociar com ela, mostra
a importância que esse instrumento de luta negra conquistou entre nós.
O quilombo, segundo Clóvis Moura, “ nasce no bojo do sistema escravista e expressa uma das
suas contradições mais agudas e violentas. Do ponto de vista organizacional, a não ser naqueles
grandes como Palmares e o de Campo Grande em Minas Gerais, é muito simples. A sua liderança é
exercida pelo elemento que se destaca durante a fuga e a sua organização. Quase nunca há uma
complexidade maior na sua estrutura. Todos se defendem e atacam quando necessário, algumas vezes
plantam uma agricultura de subsistência. Mas nas proximidades das cidades isso não acontece”, explica.
Seria ainda interessante acrescentar que além de Palmares, existiram centenas de outros
quilombos espalhados pelo Brasil e tal constatação é feita pelo recente levantamento do geógrafo
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos em seu livro Territórios das Comunidades Remanescentes de Antigos
Quilombos no Brasil, Primeira configuração, publicado em 1999. Em sua pesquisa, Rafael Sanzio
mapeou cerca de 840 comunidades remanescentes de antigos quilombos, 511 delas só na região
nordeste. Esses números mostram que a passividade negra diante da escravidão é apenas fruto de uma

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UNIDADE 4 – O Negro no Brasil
Aula 4.02 – O Negro no Brasil Colônia
história mal contada. E a maior confirmação disso é a presença histórica de Zumbi dos Palmares,
comandando aquele que foi considerado o maior quilombo brasileiro e que resistiu durante quase cem
anos aos ataques portugueses.
Se as formas de luta coletiva contra a escravidão se deram por todo canto do Brasil, seja sob o
nome de quilombos, mocambos ou ainda as irmandades religiosas que organizavam compras de
africanos escravizados,para liberta-los; o banzo parece ter sido uma alternativa individual para uma fuga
definitiva do cativeiro, através do suicídio. A escravidão, para os negros, resultou de uma forma ou de
outra, na sua exclusão social ainda hoje observada nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos
do país. Sabemos também que o negro participou ativamente nas lutas internas da colônia que
objetivavam acabar com o arrocho político administrativo imposto pelo metrópole portuguesa, ao longo de
toda a colonização e até mesmo ajudou na expulsão de inimigos dos portugueses do nosso território,
como foi o caso de Henrique Dias, entre muitos outros.

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.03
As Manifestações Literárias e a Construção do Imaginário Brasileiro Sobre o Negro

Durante quase duzentos anos, o Brasil colônia falou uma “língua geral”, ou seja, a modalidade
expressiva da massa de sua população era uma mistura das língua indígenas, do português e de língua
africanas. Alguns portugueses,geralmente filhos de senhor de escravo, iam estudar na metrópole e de lá
traziam as novidades literárias, com as quais procuravam mostrar como era a sociedade da época.
Nesse tempo, a forma de expressão mais valorizada era a poesia declamada nos salões ou em
praça pública, de acordo com a sua natureza. A praça e o púlpito, conforme assinala Luiz Roncari, em
seu livro Literatura Brasileira , são os espaços privilegiados para a poesia(satírica, lírica e religiosa) e os
sermões cujos conteúdos estavam sempre afinados com os acontecimentos cotidianos dos respectivos
grupos sociais, refletiam também as expectativas dominantes
Numa sociedade escravocrata, a literatura, na maioria das vezes, evidenciou e formulou os
elementos iniciais do que viria a ser a prática preconceituosa e mesmo racista que ainda hoje, graça
entre nós, seja na forma de piadas ou ditados populares; e a religião cristalizou pelas crenças populares,
ou através de sermões, como fez Vieira pregando aos negros em um engenho da Bahia. Segundo afirma
Jacob Gorender,em seu livro Brasil em preto e branco, o jesuíta deu a mais alta qualificação humana,
comparando os sofrimentos deles aos de Jesus. Logo em seguida, porém disse-lhes que a migração
forçada da África ao Brasil decorria de um desígnio da Providência Divina, que, dessa maneira os
conduzia pelo caminho da salvação de suas almas. Somente assim se livrariam os negros das crenças
pagãs far -se-iam cristãos, acrescentou.
Se a carta de Caminha descrevia ao rei de Portugal como eram a terra descoberta e suas gentes
,no encontro entre portugueses e nativos, no século XVI e os jesuítas se empenhavam em defender os
índios fosse livrando-os da escravidão, fosse procurando dominar-lhes a língua, para submete-los no
campo da cultura, elaborando uma gramática tupi, como fez Anchieta; os poemas satíricos de Gregório
de Matos e muitos dos atribuídos a ele , expressaram máximas que até hoje povoam o imaginário do
senso comum racista brasileiro, reforçando estereótipos com relação aos negros e mulatos, já no século
XVII. A literatura dessa época tinha na palavra falada a sua fonte de expressão primeira e, por isso
mesmo, ganhava os contornos dados pelo seu usuário. Como podemos observar na poesia abaixo:

À negra Margarida, que acariciava um mulato

Carina, que acariciais


Aquele senhor José
Ontem tanga de guiné
Hoje Senhor de Cascais:
Vós, e outras catingas mais,
Outros cães, e outras cadelas
Amais tanto as parentelas,
Que imagina o vosso amor,
Que em chamando ao cão Senhor
Lhe dourais suas mazelas.

Longe vá o mau agouro;


Tirai-vos desse furor

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.03
As Manifestações Literárias e a Construção do Imaginário Brasileiro Sobre o Negro
Que o negro não toma cor,
E menos tomará ouro:
Quem nasceu de negro couro,
Sempre a pintura o respeita
Tanto, que nunca o enfeita
De outra cor, pois fora aborto,
É como quem nasceu torto,
Que tarde ou nunca endireita.

A nem um cão chamais tal,


Senhor ao cão? isso não:
Que o senhor é perfeição,
E o cão perro neutral:
Do dilúvio universal
A esta parte, que é
Desde o tempo de Noé,
Gerou Cão filhou maldito
Negros de Guiné, e Egito,
Que os brancos gerou Jafé.

Gerou o maldito Cão


Não só negros negregados,
Mas como amaldiçoados
Sujeitos à escravidão
Ficou todo o canzarrão
Sujeito a ser nosso servo
Por maldito, e por protervo;
E o forro, que inchar se quer,
Não pode deixar de ser
De nossos cativos nervo.
(.......................................)
(In. Literatura Brasileira- dos primeiros cronistas aos últimos românticos-, de Luiz Roncari)

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UNIDADE 4 - O Negro no brasil
Aula 4.04 - Religiosidade e Sincretismo

Vamos ler e cantar a poesia musicada que nos informa sobre o tema do capítulo.

“Quando Bob Dylan se tornou cristão


fez um disco de ragee por compensação
abandonava o povo de Israel
e a ele retornava pela contra-mão
Quando os povos da África chegaram aqui
Não tinham liberdade de religião
Adotaram o Senhor do Bonfim
Tanto resistência quanto rendição.

Quando hoje alguns preferem condenar


o sincretismo e a miscigenação
Parecem que o fazem por ignorar
os modos caprichosos da paixão
Paixão que habita o coração da natureza mãe
E que desloca a história em suas mutações
que explica o fato de branca de neve amar
não a um, mas a todos os sete anões
eu cá me ponho a meditar
pela mania da compreensão
ainda hoje andei tentando decifrar
algo que li, estava escrito numa pichação
que agora resolvi cantar
neste samba em forma de refrão

Bob Marley morreu


Porque além de negro era judeu
Michael Jackson ainda resiste
Porque além de branco ficou triste.”
( De Bob Dylan a Bob Marley. Samba Provocação, Gilberto Gil)

Ao resultado do casamento das religiões de origem africana com o catolicismo damos o nome de
sincretismo, forma de sobrevivência religiosa que os negros encontraram para manter, durante todo o
período escravista, os seus deuses escondidos por trás dos santos católicos. O candomblé, a umbanda,
a macumba e a quimbanda são religiões afro-brasileiras que, diferentemente, são marcadas por uma
forte relação com a natureza ou incorporam grupos sociais às suas representações religiosas, ou ainda
são uma reinterpretação da visão de mundo católica que se expressa através da incorporação.
Em As Religiões africanas no Brasil, Roger Bastide escreve que “os negros introduzidos no
Brasil pertenciam a civilizações diferentes e provinham das mais variadas regiões da África. Porém, suas
religiões, quaisquer que fossem, estavam ligadas a certas formas de família ou organização clânica, a
meios biogeográficos especiais, florestas tropicais ou savana, a estruturas aldeãs e comunitárias.” No
entanto, ao chegar no Brasil, submetidos a uma organização social, baseada no trabalho escravo e
patriarcal e impedidos de praticarem suas crenças, os negros terão que reinventa-las, adequando-as à
nova realidade.

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UNIDADE 4 - O Negro no brasil
Aula 4.04 - Religiosidade e Sincretismo
O candomblé derivado dos povos ioruba se organiza em torno de um terreiro, seu centro
religioso é liderado por sacerdotisas , chamadas de mãe de santo e sacerdotes ou pai de santo. Os filhos
de santo adoram um panteão de orixás, de acordo com um ciclo anual, semelhante a liturgia da igreja
católica. Cada orixá do candomblé representa um elemento da natureza e possuem uma cor e comida
preferidas. Oxum, a deusa da beleza veste amarelo, e Iemanjá, a rainha do mar, veste azul e branco.
Nas cerimônias religiosas, os filhos de santos usam as cores de seus orixás. As comidas são colocadas
diante do altar antes do início dos cânticos e danças, realizadas a partir do toque dos tambores sagrados.
A sintonia entre o orixá e o filho de santo é o que permite a incorporação, um dos momentos mais
importantes do candomblé.
A umbanda , que se desenvolve no Brasil, a partir de 1920, apresenta elementos das religiões
africanas, dos ritos e das crenças indígenas, do espiritismo e do cristianismo é, com certeza, praticada
nas áreas urbanas da região sul e sudeste. O candomblé de caboclo, Xangô(nordeste), preto minas(sul)
e batuque(norte).
O papel da mulher nas religiões afro-brasileiras é fundamental e majoritário. Algumas
sacerdotisas como Mãe Mininha do Gantoais, Mãe Stela e Mãe Hilda são muito respeitadas, além de
conhecidas, em boa parte do país.
É importante salientar que a palavra falada que circula nos espaços sagrados africanos e os
afro-brasileiros tem uma força vital e, por isso, mesmo está impregnada de Axé.

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.05 - O trabalho negro, fazendo arte e construindo o brasil

Vamos ler e cantar mais uma poesia musicada:

O branco inventou que o negro


Quando não suja na entrada,
vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Que mentira danada,ê
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava,ê
Imagina só
O que o negro penava, ê

Mesmo depois de abolida a escravidão


Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão de imaculada nobreza
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
Eta branco sujão
(A mão da limpeza, Gilberto Gil, 1984)

A idéia que temos de trabalho escravo está associada apenas a agricultura como a única forma
de uso das mãos em uma atividade produtiva. Junto com essa idéia vem o desprezo por esse tipo de
trabalho, como se fosse uma atividade menor. Por isso, cabe assinalar que foi o trabalho escravo, a base
fundante da sociedade brasileira, responsável também por um modo de pensar, o que significa dizer que
as relações sociais foram impregnadas pelo modo como a sociedade produzia os seus bens, no caso,
através do trabalho escravo.
Tal situação fez com que os negros escravizados criassem um sistema de estratificação em que
eles se distribuíam de acordo com as especificidades de seu trabalho que, precariamente, foi
esquematizado assim por Clóvis Moura:
A - Escravos do eito e de atividades extrativas.
1.Na agropecuária; 2. Em atividades extrativas(congonha,borracha, algodão, fumo, etc);
3. Na agro-indústria dos engenhos de açúcar e suas atividades auxiliares; 4. Nos trabalhos das
fazendas café e algodão diretamente ligados à produção agrícola; 5. Escravos na pecuária.
B - Escravos na mineração.

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.05 - O trabalho negro, fazendo arte e construindo o brasil
C - O Escravo doméstico.
O Escravo doméstico urbano poderá ser dividido em: 1. Escravos ourives; 2. Escravos
ferreiros; 3. Escravos mestres de oficinas; 4. Escravos pedreiros; 5.Escravos taverneiros; 6.
Escravos carpinteiros; 7. Escravos barbeiros; 8. Escravos calafates; 9. Escravas parteiras; 10.
Escravos correios; 11.Escravos carregadores em geral.
D - O Escravo do eito e das atividades afins são:
1. os Escravos trabalhadores nas minas de ouro; 2. Escravos extratores de diamantes.
E - Escravos domésticos nas cidades ou nas casas-grandes.
1. Escravos carregadores de liteiras; 2. Escravos caçadores; 3. mucamas; 4. Escravas
amas-de-leite; 5. Escravas cozinheiras; 6. Escravos cocheiros.
F - Escravos de ganho nas cidades.
1. Escravos barbeiros; 2. Escravos”médicos”; 3. Escravos vendedores ambulantes;
4.Escravos carregadores de piano, pipas e outro objetos; 5. escravos músicos; escravas
prostitutas de ganho; 7. escravos mendigos de ganho.
G - Outros tipos de escravos.
1. Escravos dos cantos( de ganho); Escravos soldados; 3.Escravos do Estado; 4.
Escravos de conventos e igrejas; 5. Escravos reprodutores.

A especialização do trabalho escravo, apresentada acima, embora servisse ao conjunto do


sociedade não era suficiente para se pensar uma mobilidade social dos negros que não fosse aquela
permitida no interior da própria escravidão. Entretanto, demonstra o quanto foi fundamental a presença e
o trabalho negros na formação brasileira, muito embora se tente nos dias que correm se associar, de
maneira racista, o trabalho de negro com tarefa mal feita, ou ainda associar o próprio negro com o
estereótipo de preguiçoso e vagabundo, ou seja, uma raça que não gosta de trabalhar, embora o tenha
feito por quase 400 anos.
É importante destacar que o grande contingente de trabalhadores negros, durante a escravidão,
estava nas plantações de cana-de-açúcar,algodão e café e que com os seus pares da cidade formavam
a parcela escrava que continuamente se rebelava contra a escravidão, atitude pouco comum aos
escravos que circulavam pela casa grande, mais propensos a aceitarem a ideologia dominante.
Se tal divisão do trabalho nos faz pensar em por que com o domínio tão grande das atividades
laboriosas da sociedade, o negro não se emancipa, a resposta está no violento controle exercido pelas
autoridades metropolitanas e, posteriormente, pelo estado escravista que não se limitava a comandar
pequenas expedições chefiadas por capitães do mato em busca de negros fugidos e aquilombados.
Existia também um eficiente mecanismo de repressão que, através de esquema oficial e extra-oficial de
aprisionamento e devolução de escravos, procurava garantir a “paz” nas senzalas.

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.06 - Um Brasil Independente e Escravocrata

O comércio de africanos e o trabalho foram fundamentais para a acumulação de capital, na


Europa. Sabe-se hoje que os comerciantes de escravos tinham um lucro fabuloso que, somados às
transformações econômicas e sociais pelas quais passaram países, como Inglaterra e França,
possibilitaram o surgimento de uma nova classe social, a burguesia, que vai revolucionar as relações
sociais de produção, apoiada em ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Metrópoles
escravocratas, outrora comerciantes de escravos africanos, vão agora repensar as suas atividades
econômicas, contextualizando-as em um processo revolucionário.
Os mazombos, filhos de portugueses nascidos no Brasil, ao voltar de seus estudos na Europa,
procuravam adequar as teorias revolucionárias à situação da colônia que, com a descoberto de ouro nas
Minas Gerais, passa a ser violentamente controlada por Portugal fiel a sua filosofia de que era
quantidade de ouro e prata que determinava a riqueza de um país.
Os movimentos emancipatórios que floresceram na segunda metade do século XVIII ,no Brasil
apesar das idéias “amalucadas”,inspiradas na revolução francesa, não incluíam a escravidão. Eram os
portugueses de segunda categoria, querendo igualdade com os de primeira, os reinóis. Entretanto, Em
1798, em Salvador, foi deflagrada a revolução dos alfaiates, inspirada nos ideais da revolução francesa e
Haitiana e pretendia proclamar a república e abolir a escravidão. Seus integrantes eram majoritariamente
negros e tinham na liderança os alfaiates, João de Deus e Manuel Faustino dos Santos que juntamente
com Lucas Dantas e Luiz Gonzaga das Virgens, foram esquartejados em praça pública, quando o
movimento foi desmantelado.
Se a escravidão já caracterizava o início de uma política expansionista européia, em nome de
Deus e da economia, as transformações burguesas desse período obrigará a metrópole portuguesa a
tomar decisões que mudarão a sua relação política com o Brasil e que desaguarão na sua
independência.
Para o negro, tais mudanças foram pouco significativas. Uma vez que a sua condição de vida
permaneceu basicamente a mesma, ainda que o Império fosse pressionado pela conjuntura internacional
e pelas pressões internas desencadeadas por uma militância negra, mestiça e de brancos simpáticos a
causa da liberdade, combatendo nos tribunais e nas letras, como foi o caso de Luiz Gama, André
Rebouças, José do Patrocínio, entre outros.
A chegada do século XIX trouxe não só a família real para o Brasil e a Independência formal do
país, mas também o romantismo e, com ele, o surgimento de uma imprensa e a formação precária de um
público leitor, estímulo maior para quem escreve e para a expansão do conhecimento, instigando assim a
formação de uma identidade nacional, ainda que centrada na Europa. É neste contexto que a literatura
brasileira se constitue, idealizada nas características do novo estilo e, ao mesmo tempo, produzindo
poetas, como Castro Alves e Cruz e Souza profundamente ligados às questões da liberdade negra.
É dessa época também nomes como Gonçalves Dias e Machado de Assis, escritores
mestiços/pardos(conforme a nomenclatura atual do IBGE), sendo que primeiro, em seus escritos, se
ocupou de forjar a identidade indígena e o segundo, pouco se ocupou da situação negra, tendo escrito

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.06 - Um Brasil Independente e Escravocrata
apenas uma poesia, “Sabrina,” sobre uma escrava que se apaixona e é enganada por um sinhozinho e
feito pouco menos de dez crônicas(Bons Dias), abordando o contexto pré abolicionista e pós, ressaltando
as poucas ou quase nenhuma mudança na vida daqueles que deveriam ser beneficiar com o fim da
escravidão da escravidão.

Um nome a ser destacado nesse período é de Luiz Gama, um dos primeiros poetas negros a
assumir a sua identidade e a proclamá-la em prosa e verso, comportamento raro de se encontrar. Em
“Quem sou eu”, Gama satiriza a sociedade brasileira da época, é também um dos primeiros a elogiar a
mulher negra em suas poesias:

“(........................................)
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
D`esta arenga receosos
Hão de chamar-me – tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode,
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
(.............................................)
Para que tanto capricho?
Haja paz, ha alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse, pois, matinada,
Porque tudo é bodarrada!”
(Quem sou eu.In. Primeiras Trovas Burlescas, Luiz Gama. Org. por LigiaF.Ferreira)

É dele também a afirmação de que “todo escravo que mata o seu senhor, está agindo em
legítima defesa.” É interessante notar que o pai de Gama, um senhor de escravos, o da como
pagamento de dívida a um outro senhor. Sua mãe , a escrava Luiza Mahin foi um dos nomes mais
importante da revolta male, ocorrida na Bahia.
Embora tenha sido um dos mais brilhantes militantes da causa negra, no século XIX, defendendo
e ganhando a liberdade de mais de mil negros, Luiz Gama, Orfeu de Carapinha, morre em 1882, com 52

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.06 - Um Brasil Independente e Escravocrata
anos de idade. Seu enterro foi um dos acontecimentos mais importantes da cidade de São Paulo, sendo
acompanhado por figuras ilustres como advogados, lentes, jornalistas, magistrados e por cerca de 3 mil
pessoas, das 40 mil que habitavam a São Paulo da época. Os jornais noticiaram o acontecimento
durante semanas.
Um pouco antes de tudo isso, em 1835, acontece na Bahia o levante dos malês, objetivando a
tomada do poder pelos negros muçulmanos, no entanto, presume-se que a delação de um dos
integrantes precipitou os acontecimentos. Diz a história que ,” na madrugada de 25 de janeiro de 1835,
dia de Nossa Senhora da Guia, um grupo de escravos muçulmanos traçava os últimos planos de uma
rebelião que eclodiria ao amanhecer. A ocasião era propícia, pois, com o grosso da população voltada
para as celebrações católicas, a cidade estaria vulnerável. E o momento tornava-se ainda mais oportuno
porque, para os muçulmanos, estava-se no fim dos mês do Ramada, o mês sagrado islâmico, e próximo
à festa do Lailat-al-Qadr, a “Noite do Poder”, que o encerra,”conforme nos informa Nei Lopes em sua
Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana.
Foram dezenas de mortos e a repressão oficial de olho no que acontecera no Haiti puniu os
participantes com a pena de morte, degredo e açoitamento, dispersando definitivamente o Islam Negro,
no Brasil.

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.07 - Os Negros que Escrevem Durante a Escravidão: do Amor à Liberdade,
Construindo a Identidade

DA PALAVRA FALADA EM LÍNGUA GERAL À ESCRITA NEGRA EM PAPEL BRANCO.

É sempre bom reafirmar, conforme nos ensina Eni P. Orlandi que “Ler é saber que o sentido
pode ser outro.” E é o resgatar desse sentido muitas vezes falado e tantas outras escrito que procuramos
fazer. Se até a primeira metade do século XVIII, falava-se na colônia uma mistura de tupi, português ,
banto e iorubá, conhecida como língua geral, a descoberta do ouro e a necessidade de controle total da
colônia fizeram com que Portugal torna-se obrigatório o uso da língua portuguesa em todo o território
brasileiro, principalmente na região das Minas Gerais.
Os que escreviam na colônia representavam o poder e, por conseguinte, estavam distante dos
interesses dos negros escravizados e muito próximos da visão que associa uma sociedade não letrada,
a uma sociedade sem história. E, portanto, propensa, a ter a sua história reescrita pelos colonizadores.
Por outro lado, como os diversos povos africanos, aqueles que para cá foram trazidos eram formados
pela tradição oral que informava e garantia as práticas culturais que até hoje, entre nós, povoam o
imaginário popular brasileiro, de norte a sul, com histórias sobre o saci pererê, nas fazendas, os
maracatus, as folias de reis, os bois bumbas etc.
A partir da segunda metade do século XVIII, alguns mulatos timidamente começam a expressar,
por escrito, a sua presença no meio social: Caldas Barbosa é um deles, Cruz e Souza, Machado de Assis
e muitos outros que seguirão o caminho das letras, levarão algum tempo para expressar com
tranqüilidade e orgulho o ser negro no Brasil, posição,aliás, bastante corajosa que começará a aparecer
com Luiz Gama, Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade, Abdias do Nascimento e Oswaldo de
Camargo já na transição e ao longo do século vinte, contagiando uma nova geração de poetas e
escritores, dos quais Edimilson, Cuti, Ele Semóg, Elisa Lucinda, Conceição Evaristo, Lepê Correia e
muito outros já expressam, sem nenhuma dúvida, o ser negro no Brasil, através da literatura.
Já “as formas estéticas negras, por se relacionarem a uma forma de comunicação
predominantemente oral, só podem ser percebidas em toda a sua plenitude e riqueza própria no contexto
e nas relações de comunicação para quais foram produzidas e criadas, conforme afirmam Helena
Teodora, José Jorge e Beatriz Nascimento, no livro Negro e Cultura no Brasil. Ainda segundo os autores,
a participação do negro nas artes brasileiras pode ser vista de dois ângulos, aquela feita por negros em
bases de criação branca, européia e hegemônica e a feita por negros, tendo como base a criação negro-
africana. Mestre Didi e Rubens Valentim, entre outros nomes, são figuras importantes em nossas artes
plásticas e refletem tais tendências.
Artistas como Picasso, Braque, Cezzane, Calder e tantos outros foram fortemente influenciados
pela arte negra e nela se inspiraram para criar movimentos artísticos que caracterizaram a vanguarda
européia, tais como o cubismo, o fovismo, o dadísmo e o expressionismo. E como sempre acontece
nesses casos, muitos artistas brasileiros entraram em contato com a arte negra via Europa.

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.08 - Da abolição aos nossos dias. A liberdade que exclui. Embranquecendo

É comum se ouvir dos militantes dos movimentos negros que a “princesa Isabel assinou a lei
Áurea, mas se esqueceu de assinar a carteira de trabalho”, a ironia presente nesta afirmação, juntamente
com o seu conteúdo explícito é a mais cruel das realidades pós-abolição. Se ainda nos lembramos da
variedade de trabalho exercida pelo negros durante a escravidão, podemos nos perguntar por que então
a mão de obra negra será preterida em função do trabalho dos imigrantes que aportam no país, no
momento em que uma massa escrava era liberta, mas não integrada à nova realidade econômica.
Mesmo se considerarmos, os fatores conjunturais externos(excesso de mão de obra na Europa)
e os internos que fizeram o estado brasileiro estimular a entrada de trabalhadores europeus, portanto,
brancos, enquanto os ex-escravos eram abandonados à sua própria sorte. Fica muito difícil não
enxergamos nessa medida, uma atitude política deliberada para embranquecer o país e assim fugir dos
estigmas formulados pela ciência da época, cujas teorias apontavam a inferioridade negra, para mais
uma vez, saquear as riquezas do continente africano, agora justificado por teorias eugênicas(1) e pela
antropometria que habilitava os negros à práticas sociais físicas, apenas.
Há notícias de que na década de 1920, um grupo de agricultores negros estadunidenses
comprou um pedaço de terra na amazônia brasileira mas quando o governo brasileiro soube qual era a
sua cor, os impediu de entrar no país e devolveu o dinheiro da compra. Entretanto, para os imigrantes
europeus as terras era dadas e a sua entrada no país, estimulada. É a esse comportamento,
complementado por alguns outros que chamamos de política de embranquecimento da população
brasileira. A liberdade advinda com a abolição além de excluir, possibilitava a agora república tornar seu
sonho eurocêntrico uma realidade, empurrando para as periferias dos grandes centros, a massa negra
desempregada. Junto com essa política um outro processo deu início ao branqueamento das
personalidades nacionais cuja a descendência negra era evidente, clareando fotos e ilustrações de
personagens mestiços e mulatos que com o tempo e algum esforço editorial passaram a ser brancos:
Machado de Assis é um bom exemplo.
Quando nada disso resolvia, a alternativa era tornar alguns negros ilustres em invisíveis,
dinâmica que até hoje caracteriza os meios de comunicação, os espaços acadêmicos e algumas
atividades profissionais.
Leia atenciosamente os versos da música abaixo e , a seguir, responda.

“ Sim sou negro de cor


Meu irmão de minha cor
O que te peço é luta sim
Luta mais que a luta está no fim

Cada negro que for


Mas um negro virá
Para lutar com sangue ou não
Com uma canção
Também se luta,irmão
Ouvi minha voz
Luta por nós

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.08 - Da abolição aos nossos dias. A liberdade que exclui. Embranquecendo

Luta negra demais


É lutar pela paz
Lutar negra de mais
Para sermos iguais. “

Tributo a Martin Luther King, de Wilson Simonal eRonaldo Boscoli

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.09 – Movimentos Negros após a abolição

O LUGAR DE NEGRO: A FAVELA, A ESCOLA DE SAMBA, O FUTEBOL

Desde os primeiros quilombos formados com as primeiras levas de negros que aqui chegavam
na condição de escravos, os negros não pararam de lutar e resistir contra a escravidão. De um jeito ou
de outro as organizações negras como as irmandades foram espaços de preservação e sociabilidade
negra.

A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO PÓS – ABOLIÇÃO


Com a abolição, uma nova realidade se apresentou ao negro que passou então a procurar
formas mais efetivas de organização que não só preserva-se o grupo, mas também o representasse nas
suas reivindicações e lhe desse maior visibilidade social. A imprensa negra começa a sua atividade,na
década de 1920, dando notícias sociais sobre a comunidade. Nomes de jornais como Menelik, Alfinete e
Clarim da Alvorada fazem parte da história do negro no Brasil.
Outra organização importante foi a Frente Negra Brasileira, fundada em 1931, possui uma rígida
organização de funcionamento e seus membros cerca de 400 andavam uniformizados e gozavam de um
certo prestígio junto as autoridades e a população em geral, que acreditavam que os componentes da
Frente Negra eram pessoas de bem. Inicialmente estruturada em São Paulo, teve vários núcleos em
outros estados como Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul e tinha como ideologia a
educação, como caminho para Vitório dos negros. Com o Estado Novo, a Frente Negra foi desagregada.
Em 1954 , surge a Associação cultura do Negro que reuniu nomes como Solano Trindade,
Abdias do Nascimento e Fernando Góis. Apesar de ter uma proposta de aglutinar vários segmentos
culturais do país, tinha também uma preocupação em construir uma ideologia para o negro brasileiro.
Alguns intelectuais como Florestan Fernandes, Sérgio Milliet, Carlos Burlemarqui participaram de
conferências. Congregando inicialmente negros de vários status, a ACN, em função de lutas ideológicas,
perderá a unidade política, a sede e os seus principais nomes, ficando reduzida a uma entidade
filantrópica e assistencial , agora com sede na casa Verde, por ter sido despejada da sua antiga sede na
rua 13 de maio.
As escolas de samba também foram e são consideradas importantes centros que congregam
negros, permitindo aos mesmos um espaço de sociabilidade e interação cultural. Foram originalmente
reprimidas pelo estado e, posteriormente, promovidas à agremiação fundamental da folia de carnaval.
Geralmente originárias de times de futebol, atividade esportiva ainda impedida aos negros da época.
Dos anos 60 aos anos 70, a luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis e as guerras de
libertação das nações africanas colonizadas, o fechamento político da sociedade brasileira imposto pela
ditadura militar, a partir do golpe de 1964, espalhou a militância negra mais organizada, pelos
movimentos sociais de resistência e luta contra a ditadura e nas brechas que surgiam, aqui e ali, eram
formadas organizações culturais, como Sinba(Sociedade de Intercâmbio Brasil-África), no Rio de Janeiro,
no início da década de 1970; Jornais como Árvore das Palavras circulam em São Paulo e Rio, o Jornal
Versus abre um espaço para os negros, o MNU se consolida como entidade negra nacional e depois de

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.09 – Movimentos Negros após a abolição
muita discussão é criado o Dia da Consciência Negra, dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos
Palmares, herói negro, transformado em referência nacional para as organizações negras espalhadas
pelo país.
Com o centenário da abolição, em 1988, o Brasil já possui um leque de organizações sociais
preocupadas com a luta da população negra. Na USP,um grupo de funcionários e professores da
universidade fundam o Núcleo de Consciência Negra que nos anos seguintes empreenderá uma luta por
cotas na universidade e Reparações para o povo Negro, isto nos anos de 1993/94. As mulheres negras
também estão organizadas no Geledés, São Paulo; no Rio, O IPCN –Institutos de Pesquisa das Culturas
Negras- desenvolve suas atividades, o Cecun, no Espírito Santo, são algumas das organizações negras,
que continuam na luta contra o racismo e pela melhoria da qualidade de vida dos negros brasileiros. Um
pouco antes de tudo isso, Sambistas como Paulinho da Viola, Candeia e Martinho da Vila desencantados
com o rumo que as escolas de samba começam a tomar, criam A escola de Samba Quilombos para
resistir a onda de descaracterização imposta as agremiações populares. O soul invade e contagia os
bailes negros dos subúrbios cariocas, na década de 1970. O samba continua resistindo.

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UNIDADE 4 - O Negro no Brasil
Aula 4.10 – O Brasil e o Negro

Apesar da força dos nossos poetas cantores, de nossos artistas, da presença negra no futebol,
na literatura, de termos também o maior geógrafo do mundo, das mulatas no carnaval, a invisibilidade da
população negra continua, hoje menos, mas continua.Não a invisibilidade no sentido real da palavra, mas
aquela pusilânime e cínica que só nos faz visíveis em datas e situações oportunas. Algumas cara negras
começam a aparecer em peças publicitárias e outdoors dos grandes centros urbanos como Rio São
Paulo , Salvador, Belo Horizonte. Alguns jornais noticiam que já existe uma classe média negra com
renda até R$ 3000,00. as cotas, apesar da resistência dos antigos aliados da causa negra, já são uma
realidade em diversas universidades públicas e o embranquecimento tão cara a negros e brancos parece
não passar de falácia, já que segundo o IBGE, no Brasil, 88% dos casamentos se dão entre pessoas da
mesma raça, ou seja, branco casa com branca, negro casa com negra e pardo casa com parda. Apenas
12% da população brasileira pratica as uniões interétnicas.
Qual é cara do brasileiro? Se quisermos responder a essa pergunta olhando os meios de
comunicação de massa, nos surpreenderemos com o resultado. As imagens que povoam os outdoors
das principais capitais, as capas de revistas nas bancas de jornais, os elencos da dramaturgia
nacional(TV,cinema e teatro) são espetacularmente brancas, precisamente loiras, o novo ícone produzido
a partir da mulata e da sua imagem erotizada.
É na música e no futebol que normalmente encontramos a presença negra de forma mais
destacada, muito embora tal evidência não signifique ausência de preconceito racial. Muito pelo, pelo
contrário, as manifestações racistas estão ficando cada vez mais comuns entre as torcidas, bem como
em campo, conforme têm noticiado os jornais e revistas semanalmente, apesar de racismo , no Brasil,
ser,legalmente, crime inafiançável, uma das maiores dificuldades é flagrar o racista, uma vez aqui
ninguém é racista, mas todo mundo conhece um, logo...
O Negro no Brasil tem um longo caminho na conquista da chamada cidadania, aliás,
pouco conhecida pela maioria da população. Tal situação, muitas vezes, sugere que a
questão do negro e da discriminação que ele sofre é de natureza social e não racial. Muita folha de papel
já foi usada na tentativa de convencer parcela significativa da população negra brasileira que o
preconceito racial acaba, quando se conquista a igualdade social e/ou econômica, já que o problema
racial ,entre nós, não existe, apenas as diferenças de classe.
Entretanto, para além dos argumentos conhecidos, apresentamos outros mais recentes, como
por exemplo, os freqüentes incidentes em campo de futebol, no Brasil, em que jogadores negros são
chamados de “macacos” e, o que é pior, apesar do testemunho de milhões de brasileiros de um ato
discriminatório contra um jogador de futebol, em São Paulo, recentemente,
A lei CAÓ,de autoria do ex-deputado e jornalista, Carlos Alberto Oliveira, que torna o crime de
racismo inafiançável, apesar do espetacular episódio, foi novamente descumprida. O agressor pagou a
fiança e seguiu seu destino racista, ainda muito abalado com o que tinha provocado.

1
UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.01 - Áfricas e Brasis: culturas plurais
Alex Ratts • e Adriane A. Damascena ••

Muito antes da existência da lei 10.639, de março de 2003, que institui o ensino da História da
África e da cultura afro-brasileira nas escolas, intelectuais negros(as) ativistas e outros(as) estudiosos(as)
da participação africana na formação do Brasil vinham apresentando a grande lacuna nos currículos de
várias disciplinas que negavam ou reduziam a colaboração de africanos, africanas e descendentes na
formação da cultura e do povo brasileiros ao passado escravista e ao mundo da música, da dança, da
culinária e, no máximo, da religião. Podemos começar nosso texto com algumas perguntas básicas:
Havia e há uma só África? Há um só Brasil? Haveria Brasil (ou Brasis) sem a África (as Áfricas)? O termo
influência é suficiente para apreender a relação entre Áfricas e Brasis e entre africanos(as) e
brasileiros(as)?
O contato dos europeus com os africanos se dá em intricados processos de encontro e de
confronto desde o século XV. Para as sociedades africanas organizadas em reinos, cidades-estado e
territórios étnicos, os colonizadores foram construindo a idéia de uma África relativamente homogênea,
habitada por “negros” termo também atribuído externamente por coletividades bastante dinâmicas e que
se reconheciam por outras denominações como Fanti, Ashanti, Peul, Mandinga, Fulani, Bambara,
Tchokwe, Lunda, Kuba, Luba, Kosa, Zulu, etc..
No processo de colonização, o país que denominamos Brasil também se formou no
encontro/confronto de etnias e sociedades “européias”, “africanas”, “indígenas” (outra denominação
externa). Como nos propõe o geógrafo negro Milton Santos, pensando em nossa formação socioespacial,
temos, de certo modo, vários brasis, que ele divide como Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Região
1
Concentrada (composta pelos Estados do Sudeste e do Sul) . Estes vários Brasis apresentam processos
históricos, composições étnicas e sociais relativamente distintas e desiguais entre si.
Neste sentido, nosso processo de educativo, tendo em mente a relação das várias Áfricas, com
os vários Brasis, sem perder de vista uma unidade em construção, tanto aqui, como lá, pode incorporar
uma ampliação dos nossos conhecimentos nesse campo.
Os(as) africanos(as), na sua grande maioria, ao ser forçados(as) a vir para o Brasil traziam
consigo sua própria África, composta de lembranças e desejos. Um patrimônio cultural material e
imaterial inscritos nos objetos, hábitos, textos orais e escritos, rituais, jogos, folguedos e muitas histórias.
Lembranças e saberes que dizem respeito à religião, à tecnologia, e ao trabalho, que podem preservados
quanto recriados no estilo de vida, nas habilidades artísticas, nos rituais religiosos e nas soluções
2
técnicas e procedimentos intelectuais .



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.01 - Áfricas e Brasis: culturas plurais

No Brasil, com o contínuo movimento do tráfico negreiro, ocorria uma regular chegada de
africanos nos portos, o que contribuía para realimentar as lembranças, os traços, os valores e os
costumes, que, pela distancia, tenderia a desaparecer das práticas em terras tão longínquas. Não se
pode perder de vista que a travessia e a transposição dos grupos para cá foi bastante violenta, causando
mudanças bruscas para esta população. Junto a isso, a dinâmica da exploração aqui encontrada, conduz
a novas formas de entender a realidade, tomada pelos olhos de quem traz as suas tradições para poder
dialogar com o presente. Diferentes origens possivelmente produzissem diferentes formas de encarar a
realidade
As várias tradições culturais, que podem ser relacionadas à África, formam um mosaico que
demonstra a diversidade cultural e social mesmo aqui, pois havia muitas formas de ser escravizado(a),
que se baseavam, algumas vezes, pela nação de origem e, sobretudo, pela atividade que este(a)
desempenhava ou ainda se estava na cidade ou no campo.

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.01 - Áfricas e Brasis: culturas plurais

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.02 - A participação africana na formação cultural brasileira

Os(as) africanos(as) trazidos(as) compulsoriamente para o Brasil tiveram que lidar com o
desconhecido e o arbitrário. Foi nesse contexto, numa situação concreta e desfavorável, que essa
população teve que se reinventar, recorrendo a negociações que se constituíam cotidianamente ou,
ainda muitas vezes, em formas de resistência.
Para melhor compreender a participação do segmento negro na formação brasileira, três
dimensões são de fundamental importância: a história, a memória e as práticas culturais. A memória, ao
lado da identificação com certos valores culturais, aponta fortes sinais que vêm pautando os elementos
que compõem a participação da população negra na cultura brasileira, com toda a multiplicidade que ela
carrega:
Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do
vivido. Ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é
1
apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.

Não podemos perder de vista que, no Brasil, muitas expressões culturais negras estão
fundamentadas em um princípio de resistência e de não submissão, construindo a idéia de que “a
2
felicidade do negro é uma felicidade guerreira” . A resistência se dá diante da expropriação a qual a
população negra experienciou ao longo da História.

Línguas africanas no Brasil

Estudiosos das línguas africanas faladas no Brasil, como Yeda Pessoa de Castro e Nei Lopes,
chamam atenção para esse aspecto pouco estudado da cultura brasileira. Nas religiões de matriz
africana, em rituais e cânticos guardam-se e recriam-se línguas, a exemplo do Yorubá no candomblé. No
falar cotidiano, presume-se que há maior influência dos povos subsaarianos, dos grupos etno-linguísticos
denominados bantos:
Dentro do quadro da presença afro-negra no Brasil, verifica-se uma
predominância das culturas bantas, que colaboraram para a formação da
cultura brasileira, principalmente através de suas línguas, entre elas o
3
Quicongo, o Umbundo e Quimbundo .

Para refletirmos sobre esse ponto, vejamos a seguinte frase:

Após o jantar, um delicioso quibebe, uma mulher do quilombo fazia


cafuné na sua filha caçula. A jovem lembrava como sua avó era a
bamba do lugar.

Estas e outras palavras de línguas africanas colocadas numa sintaxe portuguesa nos fazem
refletir o quanto o nosso falar está marcado pela participação africana de Norte a Sul do Brasil. A língua


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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.02 - A participação africana na formação cultural brasileira
não é apenas um conjunto de vocábulos e normas, pois traz sentidos que podem ser atribuídos a cada
termo. Muitas vezes, quando pensamos ou falamos na “língua brasileira” , como diria Mario de Andrade,
somos bastante africanos.

Religiões de matriz africana

A marca social de africanos e africanas no Brasil se destaca pela necessidade de sobrevivência e


a não perda de si mesmo vislumbrava sempre a possibilidade de liberdade. Numa sociedade
hierarquizada e escravocrata foi necessário, através das brechas do sistema, criar alternativas de
4
socialização que no espaço urbano poderiam ser tanto as irmandades religiosas negras , como
igualmente as casas de culto aos orixás, denominado de Candomblé Ketu (relativos aos Yorubá, da
Nigéria e do Benin), inquices (Candomblé Angola) ou voduns (Tambor de Mina, relativo ao povo do
Daomé, no Benin).
As religiões criadas e/ou praticadas pelos negros no Brasil em grande parte constituíam algo que
vai além da relação transcendental e espiritual, tornavam-se também um espaço de ação política, local
onde era possível estabelecer estratégias de sobrevivência e, na época da escravidão, de projetos de
liberdade. A umbanda, criada no século XX, tem uma linha de orixás e outra de pretos(as) velhos(as) que
nos permitem incluí-la nos cultos afro-brasileiros.
No espaço rural e suburbano o que mais se destacava, sem dúvida, era o exemplo dos
quilombos, formas de organização social que, em grande parte, diferiam da sociedade mercantilista e
escravista vigente.

Links:
Entrevista com Yeda Castro www.topbooks.com.br/frEntrev_FalaresAfricanos.asp
Religiões de matriz africana no Maranhão (artigo de Álvaro Pires) www.mulheresnegras.org/alvaro2.html
Candomblé Ketu – Ilê Axé Opô Afonjá - Salvador www.geocities.com/Athens/Acropolis/1322
Candomblé Angola www.ritosdeangola.com.br
Candomblé Angola www.candombledeangola.hpg.ig.com.br

Glossário:

Bamba: Pessoa que é autoridade em determinado assunto. Do quicongo mbamba, espécie de jogo.
Caçula: O(a) mais moço(a) dos(as) filhos(as) ou irmãos(ãs). Do quimbundo kasule, último filho.
Cafuné: ato de coçar levemente a cabeça de alguém para faze-lo adormecer. Do quimbundo kifune,
singular de ifune, estalidos produzidos com os dedos na cabeça.
Quibebe: papa de abóbora preparada de várias formas e acompanhamentos diversos. Do quimbundo
kibebe, caldo grosso, papa.
Quilombo: Aldeamento de escravos fugidos. Do quimbundo kilombo, acampamento, arraial, povoação,
5
povoado, união, exército.


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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.03 - Cultura e trabalho

No Brasil, como um dos efeitos da escravidão, o trabalho manual recebe uma histórica
desqualificação. Em certas partes do país é tratado como “coisa de negro” e ouve-se a expressão
“trabalhar como um negro”, ainda que não somente os(as) africanos(as) tenham sido escravizados(as).
Por conseqüência, procede-se a uma desqualificação dos(as) trabalhos subalternos(as), sobretudo
aqueles exercidos em sua maior parte por negros e negras.
A população africana e negra (nascida em território brasileiro) deve ser vista para além da
condição de mão de obra compulsória que trabalhou nos canaviais, na mineração, nas plantações de
algodão, arroz ou café e no serviço doméstico. Na relação entre campo e cidade, quilombolas,
escravizados(as) e libertos(as) forjaram formas de cultura próprias ou recriadas de sua “bagagem
1
cultural” .
É necessário destacar a reconhecida habilidade dos africanos ocidentais com a mineração que
aqui foram genericamente denominados de negros mina e marcaram profundamente a composição
sociocultural de uma parte do país. Da Amazônia aos pampas, práticas culturais afro-brasileiras foram se
constituindo em meio ao trabalho compulsório. Aqueles(as) que trabalharam no serviço doméstico, como
amos e mucamas, participaram da formação do mundo privado patriarcalista.
Nos principais centros urbanos era possível perceber várias possibilidades de relações, mesmo
no período escravista. Um exemplo disso são os chamados “escravos de ganho”, que imprimiam mais
dinâmica às relações sociais, relações estas que podiam ser vistas como sinais de relativa mobilidade
social e econômica.
Nas cidades era igualmente comum a existência de um espaço denominado de “cantos de
trabalho”, local onde os homens escravizados esperavam ser contratados para realizar serviços.
Geralmente a reunião era em uma esquina onde era possível se encontrar com pessoas da mesma
origem e da mesma nação, ou que falavam a mesma língua, ou ainda eram malungos (tinham vindo no
mesmo navio negreiro). Esses encontros eram um momento que servia para a atualização com os que
haviam chegado da África e para estabelecer outros termos de comunicação e de sociabilidade.
Considerando que a população negra no Brasil teve compulsoriamente como principal espaço de
exposição o trabalho. Foi o trabalho manual, o espaço mais provável de expressão artística e técnica da
2
“mão afro-brasileira” . Assim, trabalho e conhecimento expressavam-se concomitantemente para esse
grupo. A condição de escravizado reforçava a idéia de coletividade muitas vezes necessária para o
próprio trabalho.



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.03 - Cultura e trabalho

Podemos citar alguns nomes: Antonio Francisco Lisboa, conhecido como Aleijadinho (1738-
1814), autor de esculturas e fachadas de igrejas barrocas mineiras (Sabará, Ouro Preto, Congonhas do
Campo), e de Valentim da Fonseca e Silva ou Mestre Valentim, nascido entre 1730 e 1740, falecido em
1814, escultor, cujas obras se encontram em igrejas ou parques cariocas (Passeio Público, Chafariz da
3
Praça XV) . Ambos são filos de mãe africana e pai português. Para São Paulo, podemos citar o nome de
4
Joaquim Pinto de Oliveira Thebas, construtor da torre da antiga Sé da cidade . Não podemos esquecer
os construtores e escultores das imagens dos antigos templos de matriz africana, cujas trajetórias estão
por ser pesquisadas.
Em todo o período escravista africanos(as) escravizados(as) trabalharam no serviço doméstico
tanto nas fazendas quanto nas casas e sobrados urbanos. As chamadas “mucamas” ou “amas de leite”
foram mulheres negras exploradas além do que era considerado trabalho. Eram também tratadas como
objetos sexuais, aviltando ainda mais a condição exploratória e redutora do ser humano e de seu corpo.
Há muitas formas de se perceber um passado que não passou, e o trabalho é um dos nexos
fundamentais para entender uma sociedade que renovadamente se revela excludente e produtora de
profundas desigualdades. Ainda nos dias de hoje, dentre os sujeitos de várias práticas culturais e
artísticas afro-brasileiras, encontramos pessoas que trabalham como lavradores(as), cozinheiras(os),
babás, pedreiros, garis, etc. e que são pouco reconhecidas como produtores de arte e cultura.

Links:

Sobre O Aleijadinho http://www.moderna.com.br/moderna/arte/aleijadinho/obras


Sobre Mestre Valentim http://www.portaldoscondominios.com.br/turismoRioIgrejaSFP.asp
Artigo de Marcelo Eduardo Leite sobre Christiano Jr. http://www.studium.iar.unicamp.br/10/6.html?studium10
Entrevista com Emanoel Araújo http://brazil-brasil.com/content/view/186/62/




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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.04 - Referências africanas: influências em tradições que se recriam

A partir desse ponto pretendemos focalizar práticas culturais, a exemplo de alguns complexos de
música/dança/ritual que fazem e refazem referências à África e à diáspora africana. O crescimento de
estudos referentes à temática da cultura negra decorre da contribuição de pesquisadores(as), intelectuais
e militantes que chamaram atenção para essa cultura como resultado de um processo de reelaboração e
1
sustentação de uma “herança cultural negra multifacetada” .
Este processo nos aproxima sobremaneira da África num contínuo enriquecimento do que era
costumeiro, tradicional, constituindo um dinâmico diálogo com outras culturas aqui presentes, que
passaram a compor a expressão negra nas mais diversas formas: escolas de samba, capoeira, jongo,
congada, blocos afro, maracatus e tantas outras.
O patrimônio cultural da população negra é composto de bens materiais e imateriais que são
expressões dessas comunidades, dos mais diferentes aspectos: objetos, costumes, canções, rituais,
encontrados na religião, na culinária, nos modos de tecer e de vestir.

Música negra

A música é um importante veículo para se perceber a presença africana entre nós. No entanto, é
muito comum quando se pensa na contribuição dos(as) africanos(as) no que se refere à música imaginar
a predominância da percussão e dentro dela variações de ritmos, que dizem respeito a um saber musical
que em grande parte não foi adquirido na educação formal e sim no convívio cotidiano e também muitas
vezes pautado em rememorações.
Não se pode perder de vista que o fazer poético em diferentes partes da África, se apresenta de
diversas maneiras: cantos funerais, canções de ninar, preces e cantos religiosos. Junto a essas criações
poéticas é possível encontrar algo totalmente estranho à chamada “tradição estética ocidental”: o texto
percussivo ou poesia dos tambores (drum poetry), executada pelos tambores falantes (talking drums). No
Brasil, cada expressão musical marcadamente de “origem” africana constitui linguagens artísticas
particulares e específicas. Mesmo dentro de cada uma desta existem particularidades que as distinguem
entre si.
A experiência é uma grande aliada, na medida em que vários participantes das festas populares
e nos cultos de matriz africana, os músicos ou “tocadores”, como são popularmente chamados, fazem
soar tambores, sanfonas, cavaquinhos, ou seja, uma ampla gama de instrumentos, sem terem estudado
música no sentido formal.



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.04 - Referências africanas: influências em tradições que se recriam

Por outro lado não se pode esquecer da inserção e contribuição dos negros ao que se refere à
música por volta de 1800 aqui no Brasil, onde grande parte dessa atividade, com destaque para a
2
interpretação instrumental, era feita por negros e “mestiços”, muitos deles ainda escravizados . Na
relação entre as formas culturais do Brasil e da África acontece numa justaposição ou apropriação, pois
essas orquestras apresentavam Haydn, Mozart e compunham por vezes, à moda européia:

Esses escravos músicos eram altamente qualificados e suas atividades diárias se


concentravam no aperfeiçoamento da sua técnica... Criou-se entre os negros e
mestiços da corte e das principais vilas e cidades, escravos e libertos, uma
3
tradição musical complexa e plural, que trazia elementos diversos.

Música, dança e ritual

Dentre as influências africanas que se recriam, a linguagem musical é certamente um dos


campos onde as referências africanas aparecem de maneira significativa formando um infinito mosaico
de presenças e contribuições, constituindo um rico caleidoscópio rítmico das mais diversas expressões e
possibilidades de identidades negras espalhadas pelo Brasil, tanto no passado como no presente. Hoje é
possível constatar múltiplas manifestações musicais que traduzem as mais variadas temporalidades, nas
quais é possível apreender dinâmicos processos de continuidade e descontinuidade relativos aos
desdobramentos das heranças negro-africanas frente aos desafios do presente.
As identidades negras contempladas na música brasileira hoje são resultados de muitas
4
implicações históricas , dentre elas a tradição da oralidade de inúmeras culturas africanas, a qual que se
destaca pela força do improviso, presente em muitas expressões musicais, como nos cantos do congado,
jongo, capoeira e no próprio samba (no tradicional pagode ou partido alto).
Não se pode perder de vista que a música também ganha uma centralidade quando se tem um
país onde, em alguns lugares, a educação ainda é um privilégio. Assim, a música dá um sentido à
existência, por ser linguagem de maior abrangência, envolvendo geralmente a dança, a corporeidade e
sendo exercitada em momentos de festas ou rituais.



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.05 - Culturas afro-brasileiras: congada, capoeira e samba

Nesse módulo do curso fizemos uma seleção de práticas culturais encontradas, com variações,
em todo o território brasileiro e lembramos quando possível outras de extensão regional. Todas
apresentam músicas que fazem referência direta à África, aos navios negreiros, à escravidão e a outros
aspectos da vida da população negra.

A congada

A congada aparece como um emblema das representações da população africana e de seus


descendentes no Brasil, e também como porta de entrada para outras expressões significativas da
cultura negra. São expressões oriundas das irmandades religiosas de pretos. Presentes desde o período
colonial, reverenciavam os santos negros como São Benedito, Santa Efigênia (ou Ifigênia), Santo Antônio
de Catagerona (ou Catigeró) ou de devoção negra, a exemplo de Nossa Senhora do Rosário, Nossa
Senhora do Carmo, São Gonçalo.
Houve entre estudiosos dessa temática a noção de que as irmandades seriam uma expressão de
adesão e conformismo dos negros no sistema escravista, tendo em vista que elas faziam parte da igreja
católica. Estudos mais recentes apontam que essas irmandades constituíam espaços de resistências, de
1
solidariedade culturais e sociais, base de muitas estratégias de sobrevivência e liberdade. É preciso
considerar que, mesmo as práticas tidas como lugares de interseções, de desvios e rupturas, como é
caso das irmandades, que no escravismo seriam uma forma de dominação, foram, contraditoriamente,
2
reapropriados pelos negros como espaço de reterritorialização práticas culturais ancestrais .
A festa de coroação de rei e de rainha do congo esteve presente no Brasil desde a colônia, mas
teve seu fim decretado pela Igreja Católica no final do século XIX com o início do período chamado
romanização da igreja no Brasil. Assim, o ato de coroação passa a transformar-se em auto de dança
3
dramática, como espaço de louvor nem sempre ligados à igreja, como é caso da festa da congada .
Nessa festa, a linguagem musical, incluindo canto, percussão e dança, permite uma comunicação entre
os participantes, possibilitando um contato com a esfera divina, cumprindo um compromisso com a
ancestralidade, com a divindade, ou com o prazer de sentir-se integrado e de se reconhecer como negro
4
e como congo (congueiro/a ou congadeiro/a).



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.05 - Culturas afro-brasileiras: congada, capoeira e samba
A capoeira

Entre os africanos e seus descendentes escravizados no Brasil imperial, há registros e


representações de uma expressão que contém música, dança e luta, parecidas em grande parte com a
capoeira, como hoje a conhecemos, a exemplo de viajantes europeus como Rugendas, autor das
litografias Jogo de Capoeira e San-Salvador, ambas datadas de 1835.
Documentos estudados por historiadores demonstram a perseguição de que a capoeira foi alvo
desde o reinado de D. João VI, especialmente nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro. Nesta última,
no final do século XIX, as chamadas maltas de capoeiras incluíam brancos imigrantes e eram igualmente
5
perseguidas .
Na década de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas, que tinha uma política cultural
altamente seletiva de construção da identidade nacional, a capoeira foi instituída como prática esportiva,
na sua vertente denominada de regional, justaposto a outras artes marciais liderada por Manoel dos Reis
Machado, o Mestre Bimba. O outro estilo denominado de “Angola”, tendo à frente Vicente Joaquim
Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, é considerado por muitos como menos influenciado por outras
culturas. Ambas têm crescido em integrantes oriundos tanto dos subúrbios e periferias de maioria negra,
quanto entre segmentos médios, de maioria branca.

Um samba, muitos sambas

Sabemos que o samba é uma das principais criações afro-brasileiras, mas tendemos a reduzi-lo
a um estilo musical com algumas variações e a situar seu “nascimento” na comunidade negra urbana
carioca do início do século XX, a exemplo da “Pequena África”, situada na Praça Onze na cidade do Rio
6
de Janeiro, onde residiam Tia Ciata e outras pessoas, originárias da Bahia . Somente com esses
elementos teríamos muito a dizer sobre o samba. No entanto, ele nos leva mais além. O samba na
7
verdade são muitos estilos de samba e ritmos correlatos . Além de baiano e carioca é uma prática
cultural tanto urbana, quanto rural e presente com essa e outras denominações em outras partes do país.
As escolas de samba e blocos carnavalescos existem de Norte a Sul do país. O samba pode ser
relacionado direta ou diretamente a genros e ritmos a exemplo do jongo, do samba de roda, do partido
alto, do pagode, etc.
A lista de sambistas negros(as) passa por nomes conhecidos e outros pouco lembrados: Donga,
Sinhô, Pixinguinha, Ismael Silva, Candeia, Cartola, Antônio Vieira, Paulinho da Viola, Nei Lopes. E há a
presença fundamental de mulheres compositoras e intérpretes: Ivone Lara e Leci Brandão; Clementina
de Jesus, Clara Nunes, Elza Soares, Alcione, Teresa Cristina e outras.



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.05 - Culturas afro-brasileiras: congada, capoeira e samba

Nesse campo que combina música, dança e ritual, as culturas afro-brasileiras marcam o mapa
brasileiro numa lista sem fim: marabaixo e batuque (Amapá), Boi Bumbá (Pará), Bumba-meu-boi e
Tambor de Crioula (Maranhão) Dança da Súcia ou Sussa (no Norte de Goiás e Sul de Tocantins).

Links:
Capoeira regional http://www.capoeiramestrebimba.com.br/index.htm
Capoeira angola http://www.nzinga.org.br/
Entrevista com Muniz Sodré http://www.baixadafacil.com.br/zonacultural/conteudo/munizsodre.htm
Escolas de samba - RJ http://www.papodesamba.com.br/
Jongo http://www.jongodaserrinha.org.br/
Samba da Vela - SP http://www.sambadavela.com.br/

 
UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.06 - Cultura afro-brasileira e espaço

Ao abordarmos a participação africana e afro-brasileira na cultura brasileira não poderemos


deixar de tratar dos referenciais espaciais atribuídos ou construídos. Inicialmente, destacamos os porões
dos navios negreiros, com sua disposição degradante de pessoas tratadas como coisa e mercadoria, fato
que marca a grande travessia do Atlântico e a desigualdade que estaria por se reconstituir em terra. Logo
em seguida, ressaltamos os locais de vendas de escravizados(as), como praças, largos e mercados, a
exemplo, do Largo da Memória em São Paulo, do mercado do Valongo no Rio de Janeiro ou do atual
prédio do Centro de Cultura Negra no Maranhão. Separados(as) por condição física, sexo e faixa etária,
os africanos viveram aí um outro espaço de segregação. Nessa linha, incluímos as partes de edifícios
rurais e urbanos como as senzalas e cafuas verdadeiras prisões, das quais por todo o país temos
registros arquitetônicos e urbanísticos.
A África, rememorada ou recriada em inúmeras práticas culturais, também permanece como o
vasto território negro, para as populações afro-brasileiras urbanas ou rurais. Exemplo disso são as
canções (sambas, toadas de congo e corridos de capoeira) que rememoram regiões como o Congo e
Angola ou pontos específicos a exemplo da decantada Luanda, cujo nome, às vezes, aparece modificado
1
como, por exemplo, Aruanda . No entanto, vivendo numa situação de subalternidade, africanos e
africanas, negros e negras, construíram espaços de sociabilidade, permanentes ou transitórios que
podemos denominar de territórios negros.

Territórios negros em espaço branco

Os quilombos, as irmandades de “homens pretos” e “pardos” e os denominados terreiros, casa de


cultos africanos e afro-brasileiros, constituem os territórios permanentes de maior antiguidade no Brasil,
construídos desde os períodos colonial e imperial.
Do Amapá ao Rio Grande do Sul, do litoral ao sertão, africanos(as) escravizados(as) formaram
2
quilombos de todos os portes . Os quilombos se configuraram também não somente em terras
apossadas, mas incluem a permanência como grupo social em terras “de santo”, adquiridas, doadas (de
maneira verbal ou escrita) por serviços prestados à nação ou por proprietários ou ainda abandonadas por
estes últimos em situação de absenteísmo ou falência. Os quilombos resultam mais de uma busca
3
espacial de um espaço próprio que somente de um ato de fuga e em condições de longa permanência
4
elaboraram práticas culturais próprias .



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.06 - Cultura afro-brasileira e espaço

Na segunda metade do século XIX, quando a maior parte da população negra era livre ou liberta,
muitos desses agrupamentos negros se organizam nas áreas que podemos denominar de suburbanas
em São Luís, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, dentre outras cidades.
Tendo em vista que os espaços centrais da sociedade brasileira eram dirigidos por brancos e
vetados, explicitamente ou não, aos negros e escravizados, como os templos católicos, foram
organizadas irmandades de “pretos” e ”pardos” e edificadas capelas dedicadas a vários(as) santos(as) de
devoção. Essas igrejas marcam o espaço urbano de cidades brasileiras, tanto das capitais como do
interior, e constituem parte do patrimônio cultural brasileira.
Por outro lado grupos de africanos(as) e negros(as) nascidos no Brasil, formaram em meio ao
sistema escravista, espaços de culto, que genericamente denominamos de terreiros. Alguns exemplos
são: a Casa das Minas, construído por africanas por volta de 1847 em São Luís do Maranhão e a Casa
Branca do Engenho Velho, em Salvador, ambas tombadas pelo patrimônio histórico. Nestes territórios
negros o controle era sobretudo feminino, o que rompia frontalmente com o lugar social inferior das
mulheres negras no período.
Os espaços onde se apresentam as congadas, a exemplo de Catalão em Goiás, contemplam
lugares permanentes como a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e territórios transitórios que são
apropriados em determinados momentos, como as ruas por onde passam os ternos de congo. Nesse rol
entram os lugares de apresentação regular de capoeira, samba, além de outros ritmos e gêneros afro-
5
brasileiros. Permanentes ou transitórios são “espaços próprios” apropriados pelo corpo, permitindo
inúmeras vezes, a presença de pessoas de outros grupos étnico-raciais.

Links:
Observatório Quilombola http://www.koinonia.org.br/oq/
Patrimônio Histórico http://www.iphan.gov.br/

Imagens:

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.06 - Cultura afro-brasileira e espaço

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.07 - Estética e corporeidade africanas e afro-brasileiras

Como sistema desumanizador, o escravismo atinge o corpo do homem e da mulher africanos de


várias maneiras: a prisão em África, a travessia do Atlântico nos porões dos navios negreiros, a
exposição nos “mercados de escravos”, o trabalho forçado nas fazendas e nas “casas grandes”, as
1
condições subumanas das senzalas e cafuas, os instrumentos de suplício e os açoites . No entanto, é
necessário ir mais além e desvincular, ao menos em parte, o nexo entre o corpo negro e a escravidão.
No entanto, para o homem e a mulher africanos o corpo também é visto como marca de
identificação, portador de uma grande variedade de práticas culturais como penteados, turbantes e
gorros, escarificações, panos da costa. O corpo negro, africano e afrodescendente, torna-se igualmente a
referência primeira da cultura negra por ser um elemento de destaque em práticas musicais e corporais,
como a capoeira, a congada, o samba e a apropriação do espaço.
A noção de estética nos parece mais abrangente para incluir a corporeidade e a indumentária,
nesse campo mais específico ligado à arte e, particularmente, à música.

O corpo africano e negro no sistema escravista

A maior parte das práticas culturais que mencionamos no curso, desde o período escravista, tem
o corpo como uma das principais referências. Para os colonizadores brancos, europeus e eurodescentes,
os africanos e as africanas deveriam afastar-se cada vez mais dos seus referenciais de identidade, de
grupo e de territorialidade. Por um lado, civilizar-se implicava, então, na negação de si mesmo e na
aceitação de outros padrões estéticos e corporais. Dentre os elementos de violência que atingia o corpo
africano estavam a imposição de andar descalço que indicava a condição de escravizado, marcas de
proprietários como se faz com o gado e cicatrizes de açoites.
Por outro lado, o corpo negro passa a ser visto também como o portador da diferença racial: a cor
da pele, a textura do cabelo, os penteados e adornos de cabeça, indumentárias tidas como não
ocidentais, e que podiam ser marcas de pertencimento a grupos étnicos, o corpo que dança em
movimentos e rituais considerados como sensuais e exóticos.
No que diz respeito ao vestuário as mulheres negras eram vistas adornadas com jóias de ouro e,
sobretudo, com panos-da-costa trazidos da África. Esses panos podiam ser usados para amarar crianças
nas costas, colocados por cima do corpo e também na cabeça. O pano-da-costa viajou da África para o
Brasil e do Brasil para a África, pois o uso do pano como xale ficou conhecido na África como hábito das
2
brasileiras descendentes de escravizadas que voltaram do Brasil .



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.07 - Estética e corporeidade africanas e afro-brasileiras

As que aqui ficaram utilizam indumentárias e adornos semelhantes, como as denominadas mães
de santo (iyalorixás). Outras também utilizam os turbantes e os panos da costa, a exemplo das mulheres
negras que comercializam produtos da culinária afro-brasileiras, denominadas de “baianas” e daquelas
que são representadas nas “alas das baianas” das escolas de samba.

A estética negra individual e coletiva

O corpo é uma construção histórica e cultural que se modifica de uma sociedade para outra. Não
se resume ao corpo físico, biológico, mas agrega os significados que a ele atribuímos na diferenciação
3
social e racial .
O que estamos denominando de estética negra é uma recriação de elementos africanos e afro-
brasileiros e compreende um vasto repertório de práticas: cabelos crespos e cacheados, tratados e
penteados de várias maneiras, tranças do próprio cabelo ou complementadas com fibras artificiais,
penteados “black power” ou “rastafari”; o uso de adornos (colares, pulseiras, etc.) de metal
(especialmente dourados e prateados), madeira, fibras vegetais, búzios, “miçangas”. Podemos também
destacar o “visual” mais ligado a outros universos negros est6rangeiros ou globais: camisetas
customizadas ou estampadas com ícones da cultura negra, correntes metálicas (como colares), gorros,
lenços, calças largas, tênis, etc..
A estética negra contemporânea, que mantém as várias estéticas africanas e africanizadas como
“espelho”, age no sentido de ampliar os parâmetros de beleza para além da pele e dos olhos claros, do
cabelo liso e das roupas formais “ocidentalizadas”. Trata-se de uma estética em busca de referenciais
identitários, de auto-estima, de pertencimento e reconhecimento que foge ao padrão único e à idéia de
exótico. Trata-se também de espaços de inovação e criatividade.

Links:
Revista Raça Brasil http://racabrasil.uol.com.br/
Portal Afro http://www.portalafro.com.br/
Penteados africanos antigos http://www.africanloxo.com/galerie_photo.htm
Estética negra e informação http://www.belezapura.org.br/

Glossário:

Cafua: espécie de prisão para escravizados (as), geralmente sem janelas.


Escarificações: cicatrizes de cortes feitos no rosto e em outras partes do corpo que indicam o grupo
étnico, a cidade ou a região de origem e pertencimento.



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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.07 - Estética e corporeidade africanas e afro-brasileiras

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.08 - Cultura negra e pensamento

Em todas as práticas culturais enfocadas neste módulo do curso relacionamos a produção


cultural à produção de conhecimento, o saber ao fazer, como dissemos, para além da redução da cultura
afro-brasileira a contribuições isoladas e passadistas.
A cultura e as práticas culturais são elaboradas cotidianamente transformando o conhecimento
em experiência de aprendizagem, do mesmo modo que a própria experiência vivida se transforma em
conhecimento. Através da socialização se aprende e, em todos os momentos a existência, a relação com
outro e as ações ali vividas nos ensinam e nos constituem. Esta constituição é elaborada cotidianamente,
e se revela nas mínimas coisas. Assim, pormenores normalmente considerados sem importância e
triviais, carregam muitos elementos importantes que nos permitem captar a realidade.
Considerar os mais diversos elementos presentes nas práticas como a alimentação, o vestuário,
a oralidade, a gestualidade, sonoridade, odores, sabores, são sinais que permitem decifrar a diversidade
e a complexidade da realidade histórica da população afro-brasileira.
Tomar as diversas práticas sociais e culturais como práticas educativas é vê-las em processo,
sendo construídas intensamente e carregadas de tensão entre diferentes indivíduos e diferentes
comunidades, criando contextos interativos que, justamente por se relacionarem dinamicamente em
diferentes ambientes culturais, os quais diferentes indivíduos desenvolvem identidades, contribuem para
um ambiente formativo.

Cultura negra e transmissão de conhecimento


As expressões culturais e religiosas de matriz africana trazem processos educativos que dizem
respeito ao próprio exercício das apresentações no momento da festa e nos rituais religiosos. Esses
processos se revelam na música, na dança, no toque dos instrumentos e nos gestos. São elementos
impressos e expressos no corpo através da prática e da tradição oral.
O conhecimento se manifesta e se constitui no exercício e na função de cada membro do grupo
ou da comunidade, que se apresenta, seja nas festas seja nos rituais religiosos. O saber se traduz no
saber fazer, que advêm do saber ouvir, do saber ver, através do aprendizado com o outro. O saber é
compartilhado e se materializa no momento das festas, onde se apresenta e se reconstrói, através dos
participantes, a africanidade nos mais diversos aspectos, seja na estética, seja nos toques dos
instrumentos.
Outra fonte de conhecimento se encontra nas organizações negras formadas no século XX,
especialmente as que se mantém na contemporaneidade, a exemplo dos movimentos negros e dos
movimentos de mulheres negras. É necessário considerar também a formação nas universidades
brasileiras de Núcleos Afro-Brasileiros e grupos similares, compostos em grande parte por
acadêmicos(as) negros(as). Merece destaque igualmente a criação, em 2000, da Associação Brasileira
de Pesquisadoras e Pesquisadores Negros (ABPN) que realiza encontros bianuais, além de intelectuais
negros de relevância nacional como Milton Santos e Sueli Carneiro.

 
UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.08 - Cultura negra e pensamento

Conhecimento e respeito à diferença


Esse interesse de uma educação vinculada às práticas sociais e culturais aparece como reação à
dominação por vias culturais, que são abraçadas como vias civilizatórias e de progresso, pautadas por
uma visão linear e etnocêntrica de história, de cultura.
Uma retomada de vozes que ficaram silenciadas por opressões históricas é fundamental e
necessária para uma compreensão democrática de educação. O primeiro movimento para esta escuta é
o reconhecimento da existência de espaços outros que não o da educação formal, como portadores de
saberes. Para isso, é necessário tomar como imprescindível para o entendimento desses saberes os
nexos entre educação e cultura, considerando que uma não existe sem a outra, ambas sendo
alimentadas e alimentando-se na arte e na memória.
O respeito às diferenças é um ponto crucial na construção de uma sociedade mais humana, cuja
concepção de humanidade seja fundada na diversidade: “o que nos faz mais semelhantes ou mais
1
humanos são as diferenças”.

Links:

Geledés – Instituto da Mulher Negra – São Paulo http://www.geledes.org.br/


Criola – Rio de Janeiro http://www.criola.ong.org/
Fala Preta! – São Paulo http://www.falapreta.org.br/
Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br
NEAB/UFAL http://www.neab.ufal.br/
NEAB/UFSCar http://www.ufscar.br/~ubuntu/

Imagens:

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.09 - Áfricas recriadas em terras brasileiras

Podemos incluir na relação África/Brasil as referências que encontramos novamente no campo


das artes e da estética, a exemplo da literatura e das artes visuais, mas igualmente de práticas culturais
1
em que a corporeidade afrodescendente é relevante .
No caso da literatura brasileira destacamos poetas, escritores e escritoras que fazem diferenciadas
menções às Áfricas, à “terra-mãe”, à diáspora, ao mar, à escravidão e, sobretudo, à vida de negros e
negras em terras brasileiras, “à dor e à delícia” de ser negro, ou seja, ao ônus e ao bônus de ser e de se
identificar como negro no Brasil.
No final do século XIX, a romancista Maria Firmina dos Reis, os poetas Castro Alves e Cruz e
Souza se incluem dentre aqueles(as) cuja obra traz citações diretas à África. No romance Úrsula
publicado em 1856, as personagens negras mantém distintas relações com o continente africano: uma
relembra com saudade a terra perdida, sofre ao rememorar o rapto, o navio negreiro; outra reforça sua
ligação com o Brasil.
Cruz e Souza, no texto O Emparedado, compõe um dos mais significativos exemplos da dificuldade
de tornar-se artista no Brasil sendo, como diríamos nos termos de hoje, afrodescendente.

Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua


região desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente,
Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada
África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos,
tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios,
sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou
toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!

Na segunda metade do século XX, diversos(as) poetas emergem em publicações individuais ou


coletâneas como Cadernos Negros (lançada em 1978). A exemplo de Oswaldo Camargo, Cuti,
Paulo Colina e posteriormente Conceição Evaristo, Jônatas Conceição, Landê Onawalê e Esmeralda
Ribeiro, dentre outros(as). A literatura afro-brasileira contemporânea continua trazendo referências
diretas ou indiretas à África, à escravidão, ao racismo e à negritude, num movimento de descontinuidade
e continuidade com as denominadas “raízes culturais”. A literatura afro-brasileira, segue, às vezes, o
mesmo percurso da pessoa negra em busca da reconstrução de si:

Não sei se te contei


Mas há algum tempo sou minha
Me adquiri num mercado
Onde o escambo era de posse pela liberdade
Me obtive numa dessas voltas da morte
Me acolhi num desses retornos do inferno
Dei banho, abrigo, roupas, amor, enfim
Adotei o meu mim
Como quem se demarca e crava em si o mastro da terra à vista
A cheiro, a tato, a trato, a paladar e tato


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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.09 - Áfricas recriadas em terras brasileiras

Não sei se te contei


Me recebi à porta da minha casa
Abracei, mandei sentar
Abracei eu mesma, destranquei a porta
Que é preu sempre poder voltar.

Dei apenas o céu à sua legítima gaivota


Somos a sociedade
E ao mesmo tempo a cota
Visita e anfitriã
Moram agora num mesmo elemento
Juntas se ancoram
Na viagem das eras
No novelo do umbigo
No embrião do centro
2
No colo do tempo

No campo das artes plásticas, encontramos um vasto número de artistas que constroem suas
obras a partir de um referencial africano ou afro-brasileiro, a África, as Áfricas ou o que denominamos
aqui de culturas afro-descendentes, ou seja, as culturas dos africanos(as) em diáspora pelas Américas e
em outras partes do mundo . É o caso da pintora Niobe Xandó, do pintor e escultor Rubem Valentim e do
sacerdote do candomblé, escritor e também, escultor Mestre Didi (Deoscoredes dos Santos).

Links:
Questão étnico-racial (artigos, notícias) http://www.afirma.inf.br
Escritores negros(as) http://www.quilombhoje.com.br/

Imagens:

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.09 - Áfricas recriadas em terras brasileiras

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.10 - Negritudes plurais e culturas negras dinâmicas

Para encerrar esse módulo do curso, seguindo o princípio que traçamos desde o início, vamos
abordar a pluralidade de culturas negras e sua dinamicidade no Brasil. A negritude, movimento de
afirmação da identidade e das referências negras, busca suas fontes no vasto repertório dos africanos e
das africanas na diáspora.
Como dissemos que nem a África, nem o Brasil são homogêneos, não podemos afirmar a idéia
de uma cultura afro-brasileira única ou mesmo “pura”. Em se tratando de cultura, não há uma essência. O
que existe é um processo dinâmico de construção.
Da segunda metade do século XX até os dias atuais, vemos movimentos culturais, principalmente
1
no campo das artes visuais , da literatura e da música que incorporam referências africanas, mas
também outras afro-descendentes, como aquelas que emergem no Caribe e nas Américas. É o que nos
aponta Fernanda Felisberto, acerca da literatura:

Nós, que tanto precisamos de nossa literatura para nos entreter,


precisamos dela também para expressar as várias demandas que temos
por igualdade de gênero, religiosidades distintas, e para exercer a auto-
estima. Nossa literatura negra nos serve como um alicerce para a
construção de uma identidade afro-brasileira autônima, sem amarras e
legendas que legitimem a nossa permanência ou exclusão ao longo da
2
história desse país .

Ressaltando igualmente a música negra que abrange dos ritmos que emergiram no território
nacional, a exemplo do samba, e inclui outros que se formaram em terras estrangeiras como o jazz, o
soul, o reggae, o funk e o rap. Deste modo temos o samba-reggae dos blocos afro baianos, como Ilê
Aiyê e Olodum. A música de Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Gerson King Combo, Tim Maia, Sandra de Sá,
Ivo Meirelles, Ed Motta, Paula Lima e Seu Jorge abriga essas justaposições de ritmos e referências.

Um dos exemplos a destacar é o da cultura hip hop, que envolve elementos como o rap (a
música), o break (a dança), os MCs e DJs (cantores e músicos eletrônicos) e o grafite (a arte visual).
Considerada um estilo estrangeiro, cada vez mais, cresce no Brasil e muitos de seus artistas buscam
referências africanas, afro-americanas e especialmente afro-brasileiras, a exemplo de Rappin’ Hood com
3 4
Leci Brandão, em Sou Negrão , Marcelo D2 nas faixas Samba de Primeira e Batucada e de Racionais
MC’s em Júri Racional:

Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee.


Zumbi, um grande herói, o maior daqui.
São importantes pra mim, mas você ri e dá as costas.
(...)


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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.10 - Negritudes plurais e culturas negras dinâmicas
Porém, não quero, não vou, sou negro, não posso,
não vou admitir!
De que valem roupas caras, se não tem atitude?
E o que vale a negritude, se não pô-la em prática?
A principal tática, herança de nossa mãe África.
A única coisa que não puderam roubar!

Muitos desses grupos que se destacam no país mantêm conexões nacionais e internacionais, às
vezes sendo originários de fora do chamado eixo Rio-São Paulo, como o faz o grupo Clã Nordestino, de
São Luís do Maranhão.
Esses exemplos, e todos os outros citados ao longo desse módulo do curso, constituem
reencontros, possíveis e imaginários, dos descendentes de africanos, entre si e com a África, processo
cujo entendimento é fundamental para a formação cultural brasileira. Não existe Brasil sem a África e,
portanto, não existe identidade nacional sem a cultura afro-brasileira.

Links:

Jorge Ben Jor http://www.benjor.com.br/


Gilberto Gil http://www.gilbertogil.com.br/
Gerson King Combo http://www.musikcity.mus.br/gersonkingcombo.html
Movimento hip hop http://www.realhiphop.com.br/index.htm
Movimento hip hop http://www.movimentohiphop1.hpg.ig.com.br/

Imagens:

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UNIDADE 5 - A incisiva marca africana na cultura Brasileira
Aula 5.10 - Negritudes plurais e culturas negras dinâmicas

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