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Recife
2022
JOÃO VICTOR DE SOUSA CAVALCANTE
Recife
2022
Catalogação na fonte
Bibliotecária Mariana de Souza Alves – CRB-4/2105
Inclui referências.
BANCA EXAMINADORA
Agradeço a minha mãe e minha irmã, Letícia e Amanda, pelo apoio, pelo amor e pelo
suporte. Por terem sido presença constante nesse percurso. E ao meu pai, a quem dedico
essa tese.
Aos meus familiares que foram presenças atentas à minha educação, em especial aos
meus avós Diná e Analilho e à tia Lúcia.
Ao meu orientador, Eduardo Duarte, pela confiança, pela generosidade e pela parceria.
Por ter aceitado caminhar comigo durante esses anos.
Às contribuições das professoras Angela Prysthon e Cristina Teixeira no exame de
qualificação e durante a defesa. Aos professores Gabriela Almeida e Fábio Andrade pela
leitura atenta e generosa durante a defesa da tese.
Sou grato ao PPGCOM da UFPE, aos professores de quem fui aluno e aos funcionários
que me acolheram nesses anos de UFPE.
Aos amigos do grupo de pesquisa Narrativas Contemporâneas, pelos momentos de
partilha coletiva, de parceria, pelas sugestões e inquietações que ajudaram a construir essa
tese: Mariana, Rosa, Alan, Rafael, Bruno, Rafaela, Camila, Gabriel, Márcio.
À família que tive em Recife, Isadora, Emilly e Tatá, que foram minha casa em uma
cidade nova.
Aos amigos que fiz em Recife, Renato, Marcela, Breno e Larissa, amigos queridos que
me apresentaram a cidade, os carnavais, e com quem dividi o cotidiano durantes os anos
de UFPE.
À Raquel, pela parceria e pela amizade de todos os dias.
Aos amigos de Fortaleza, em especial, Caio, Gustavo e Chico, pelo companheirismo, pela
paciência e pelo acolhimento.
Aos meus alunos da disciplina “Monstros e monstruosidades na literatura e no cinema”,
pelas inquietações, pelas contribuições e por colocarem perguntas que alteraram o
desenvolvimento desse trabalho.
À Zoe, Nina e Siouxsie, por me ensinarem a ser menos homo sapiens.
Essa pesquisa, realizada em uma universidade pública, com bolsa de pesquisa. A tese foi
feita a despeito dos esforços do governo em desmontar a educação e a ciência do País.
Parte significante desse trabalho aconteceu nos períodos de isolamento social durante a
pandemia de Covid-19. Encontrar sentido e força para continuar pesquisando em dias em
que morriam 4 mil pessoas é um sentimento que está impresso nas páginas que seguem.
A luta política deveria passar por todos os lugares onde se fabrica um
futuro que ninguém ousa realmente imaginar, não se restringir à defesa
dos sentimentos adquiridos ou à denúncia dos escândalos, mas se
apoderar da questão da fabricação desse futuro. (No tempo das
catástrofes, Isabelle Stengers)
E quando ele chegou aonde vivem os monstros eles rugiram seus
terríveis rugidos e arreganharam seus terríveis dentes e reviraram seus
terríveis olhos e mostraram suas terríveis garras (Onde Vivem os
Monstros, Maurice Sendak)
RESUMO
The thesis investigates the political life of monsters from a set of appearances of
monstrous subjects in visual culture and contemporary fiction. The research thinks the
monster as a way of life that resists the normative effects of encoding and recognition of
subjects. The monster appears in the corpus as a type of dissident personality, which
relates to the world from other points of reference, intentionality and self-interpretation.
The thesis elaborates the hypothesis that the monster proposes ways of life, configurations
of subjectivity and subjectivation, and passes by experiences of sociability and
community. In short, the monster proposes ways of life and world modalities from its
own perspective. The aim of this thesis is to investigate this perspective and understand
what political configuration is possible for monstrous subjects. The argument developed
takes the monster as a type of personality capable of imagining other ways of perceiving
and inhabiting the world than those engendered by an anthropocentric vision. The
monster produces unintelligible forms of the common and of the subject, and yet capable
of proposing a policy and other ways of dealing with alterity. The argument's formula can
be refined by asking how monstrous personalities imagine and inhabit communities.
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11
2 O IMPACTO DO CONCEITO DE MONSTRO SOBRE O CONCEITO DE
CULTURA............................................................................................................................. 26
2.1 O MINOTAURO........................................................................................................... 26
2.2 O RETRATO DO MONSTRO ..................................................................................... 31
2.3 O QUE É UM MONSTRO?.......................................................................................... 39
2.4 AS HIPÓTESES ...................................................................................................................... 48
2.5 MÁQUINA DE FAZER MONSTROS ......................................................................... 53
3 O CORPO DO MONSTRO: VARIAÇÕES ENTRE O FRACASSO E A
IMAGINAÇÃO .................................................................................................................... 65
3.1 AS INQUIETAÇÕES DE ÚRSULA BUENDÍA ......................................................... 65
3.2 OS NASCIMENTOS MONSTRUOSOS...................................................................... 70
3.3 PROBLEMAS NO PARQUE HUMANO .................................................................... 80
3.4 O QUE PODE UM HOMEM INCOMPLETO? ........................................................... 91
3.5 COMUNIDADES IMAGINADAS............................................................................. 101
3.6 CORPOS QUE FRACASSAM ................................................................................... 110
4 O MONSTRO CONTRA O ESTADO: RELAÇÕES DE PARENTESCO E
HETEROTOPIAS ............................................................................................................. 116
4.1 OS MODOS À MESA ................................................................................................ 116
4.2 SANGUE RUIM ......................................................................................................... 124
3.3 EXCURSO: O LOBO ................................................................................................. 136
4.4 O ESTADO ................................................................................................................. 145
5 A NATUREZA DOS TROLLS E O FUTURO DOS MONSTROS ......................... 157
5.1 A TERCEIRA MARGEM .......................................................................................... 161
5.2 UM MONSTRO PÁLIDO, DÓCIL E MELANCÓLICO .......................................... 169
5.3 A VIDA SEXUAL DOS TROLS................................................................................ 179
5.4 O FUTURO DOS MONSTROS ................................................................................. 189
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 200
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS .............................................................................. 207
11
1 INTRODUÇÃO
V INTERNACIONAL
1
As relações ente a obra de Shelley e a ressonância da Revolução Francesa são discutidas em Ciacco (2016).
13
2
Cf. Fanon, 2008.
14
termo, como indica o vocábulo do dicionário3, aponta para muitos caminhos: corpo
disforme, desmedido, criatura mitológica, pessoa cruel, forma de vida contrária à ordem
da natureza etc. Proceder uma investigação sobre a monstruosidade implica estar atento
à polissemia do termo, sua variação histórica e seus usos em contextos distintos. O que
chamamos monstro aponta para um amálgama de significados que contempla elementos
do mito e da imaginação, noções normativas sobre o corpo e sobre o humano, bem como
construções morais e históricas. Nesse sentido, o monstro como um estatuto linguístico é
um modo de interpelar e codificar determinados sujeitos e corpos como monstruosos,
ainda que, no senso comum, a definição de monstro seja vaga e imprecisa. O monstro,
nessa concepção, é um operador linguístico ligado ao estigma, como um termo
depreciativo relacionado ao desvio social (GOFFMAN, 2008).
O conceito de monstro com que trabalho nesta tese parte dessa relação entre
indivíduos desviantes e estigma para pensar sujeitos que não contemplam as demandas
de reconhecimento e de legibilidade sociais. Como definição preliminar, proponho que o
monstro é uma forma de vida que situa-se fora dos critérios de inteligibilidade cultural,
de classificação taxonômica e de reconhecimento como pessoa humana. O monstro, nessa
concepção, resiste à inteligibilidade e propõe formas de existência a partir de pontos de
referência e de reconhecimento não antropocêntricos. Esta visão tende a afastar-se da
noção de estigma, que sugere que o monstro é um modo de codificar sujeitos desviantes,
e propõe uma ontologia ao monstro — uma ontologia incerta e que desafia os modos
humanos de conceber a noção de pessoa. Proponho uma noção de ontologia em um
sentido não essencialista e não substancialista. Ontologia é entendida, a partir de Butler
(2019), como uma injunção normativa que produz sujeitos e não como uma fundação.
O conceito de monstro mantém, no entanto, a polissemia que lhe é própria. o mito,
o senso comum, o pensamento científico, a moral e o próprio conceito de humano.
Posicionar o monstro em uma discussão política implica, sobretudo, entender o humano
não como um estatuto fundacional que evolui a partir de uma forma elementar, mas como
um elemento histórico, como disposição assumida no saber (FOUCUALT, 2016). Nesse
sentido, o monstro não é um desvio ou perversão de uma forma fixa, o homem, mas a
variação possível de uma existência que não toma o humano como centralidade. O que
quero considerar é a possibilidade de existência de formas de vida que não são inteligíveis
e que não são reconhecíveis dentro de esquemas de classificação e que, ainda assim,
3
Para a pesquisa, consultei o dicionário online Priberam (https://dicionario.priberam.org/monstro). Outros
dicionários estão de acordo com a definição apresentada.
18
indefinidas que se relacionam com o monstro — expresso em filmes como The Fog (John
Carpenter, 1980), em que uma bruma misteriosa toma conta de uma cidade, causando
mortes e pânico. Acompanho sujeitos dissidentes que vivem em uma condição
ontologicamente monstruosa.
Não se trata, sobretudo, de fazer um elogio às formas de vida precárias e
monstruosas, violentadas pela norma e pela biopolítica. O exercício que quero propor é o
de abrir possibilidades para imaginar outras formas de vida, formas de vida que existem
e que apontam para outros modos de conceber a política. Isso não quer dizer que as
formações políticas aqui analisadas sejam por si só revolucionárias — revolução é um
termo pouco utilizado neste texto por indicar uma transformação na estrutura das relações
sociais. A política do monstro, a meu ver, contempla um potencial revolucionário, mas
não de um ponto de vista hegemônico ou das modalidades de poder.
Nesse sentido, acompanho a discussão aberta por Butler (2019), como um modo
de desafixar a relação entre homem e política como um estatuto fixo e reciprocamente
condicionado.
A tarefa aqui não é celebrar toda e qualquer nova possibilidade como
possibilidade, mas redescrever as possibilidades que já existem, mas que existem
dentro de domínios culturais apontados como culturalmente ininteligíveis e
impossíveis. Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um
silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um
conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos
prontos, uma nova configuração política surgiria das ruínas das antigas
(BUTLER, 2019, p.256).
O recorte apresentado não tem a intenção de ser uma amostragem indutiva capaz
de representar um todo genérico. Pelo contrário, a decisão por estas obras levou em conta
a potência particular dos sujeitos monstruosos apresentados, o tipo de monstruosidade
encenada e o tipo de configuração política apresentada. Além disso, a organização desse
corpus empreende um esforço de experimentar vizinhanças e proximidades. O objetivo
desta pesquisa não é teleológico, de modo que interessou menos um conjunto convergente
de objetos que me possibilitasse uma conclusão estável, do que as possibilidades de trocas
e interferências entre eles. Por conta disso, o agrupamento comparativo dessas obras teve
importância decisiva na escolha do corpus.
A escolha das obras ocorreu ao longo dos anos da pesquisa. Durante o tempo em
que me dediquei a esta investigação, que antecede o começo do doutorado propriamente
dito, investi em recolher e me familiarizar com o maior número de obras relacionadas ao
tema. Essa aproximação com os objetos privilegiou a presença do monstro em contextos
diversos, que não apenas o universo do horror, da fantasia e do mito. A manutenção desse
arquivo de referências me permitiu, ao mesmo tempo, imergir na produção artística
referente à monstruosidade, como também entrar em contato com outras obras, algumas
menos óbvias e secundárias, que ajudaram a compor meu entendimento sobre o tema. O
exercício é influenciado pelo modo como Wright Mills (1982) valoriza o uso do arquivo
no trabalho do cientista social, como um modo de acumular e organizar as experiências
no decorrer de uma pesquisa. Equivalente a um diário de campo, o arquivo é, para o autor,
uma ferramenta de desenvolvimento da imaginação sociológica, um modo de conectar os
fenômenos e as interpretações da vida social.
O recurso ao arquivo como um modo de revisitar experiências e memórias
intelectuais e pessoais é retomado, em um contexto diverso, por Jack Halberstam (2020).
O “arquivo bobo” investigado pelo autor, um conjunto de obras desconsideradas pela
tradição acadêmica e que se contrapõe à “alta teoria” e ao cânone, possibilita traçar
relações entre obras e sujeitos que não estão, a princípio, conectados. Visitar e revisitar o
arquivo permite testar e experimentar diversos modos de vizinhança entre as obras, como
uma mesa de trabalho em que o guarda-chuva e a máquina de costura encontram o seu
lugar-comum, para remeter a uma proposição foucaultiana (FOUCAULT, 2016)4.
4
A imagem utilizada por Foucault retoma os versos de Lautréamont, publicados n’Os Cantos de Maldoror,
em 1869. Os versos foram bastante reproduzidos pelos surrealistas franceses no começo do século XX. A
citação que Foucault se apropria diz: “Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, de
uma máquina de costura e um guarda-chuva”.
21
5
Publicado no livro “Outras Inquisições” (BORGES, 2000).
22
6
Um apanhado panorâmico do monstro na literatura e no cinema pode ser encontrado no livro “Todos os
monstros da terra: bestiários do cinema e da literatura” (MESSIAS, 2016).
24
possíveis. O leitor perceberá um movimento não linear entre os temas. As obras elencadas
tem força e complexidade suficientes para as discussões empreendidas na tese. A ordem
dos objetos, ainda que altere e condicione as conclusões, não obedece a uma cronologia
e surgiu conforme o desenvolvimento da investigação.
A tese está dividida em quatro capítulos, além da introdução e das considerações
finais.
O capítulo 2, intitulado O impacto do conceito de monstro sobre o conceito de
cultura, apresenta os pilares teóricos e metodológicos que sustentam esta pesquisa. O
objetivo principal desse capítulo é elaborar um conceito de monstro capaz de dar conta
da condição monstruosa como uma forma de vida. Essa discussão emerge a partir da
revisão da literatura e apresenta, também, outras concepções correntes da
monstruosidade. Essa apresentação justifica-se por dois motivos: em primeiro lugar como
um modo de apresentar ao leitor o campo vasto de estudos sobre a monstruosidade e como
essa miríade de interpretações consolidaram uma visão específica do monstro. Em
segundo lugar, partindo desse pano de fundo, proponho um conceito de monstro que, ao
mesmo tempo, assimila e se opõe à tradição que entende o monstro como outro
complementar do humano. O capítulo acompanha um conjunto diverso de objetos e
concentra as reflexões na comparação do mito do Minotauro e a releitura que Jorge Luis
Borges faz do tema. Além disso, o capítulo faz uma incursão comparativa entre a
iconografia colonial do século XVI e o episódio Engenharia Reversa da série Black
Mirror.
O capítulo seguinte, O corpo monstruoso: variações entre o fracasso e a
imaginação, parte do corpo do monstro para discutir possibilidades de vida de corpos
não codificados como humanos e que, tradicionalmente, são relegados a espaços de
estigma e de uma economia da monstruosidade. Discuto o tema a partir de três objetos: o
romance Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez, publicado em 1967), o filme
Freaks (Tod Browning, 1932) e o filme Inferninho (Pedro Diógenes, Guto Parente, 2018).
Interessa pensar diferentes configurações do corpo do monstro e como esses corpos
propõem modos de vida. O três objetos sugerem uma gradação de possibilidades de
existência do monstro. No romance de García Márquez, ainda que dentro de um escopo
do realismo mágico, o monstro é um tema secundário. Interessa vasculhar essas
possibilidades e analisá-las em conjunto com a comunidade de monstros que se forma em
Freaks e em Inferninho. O capítulo parte de uma investigação sobre o corpo monstruoso,
entendido a partir das ideias de incompletude, deformidade, fracasso e artifício.
25
2.1 O MINOTAURO
Quando Teseu chegou a Creta, decidido a matar o Minotauro e pôr fim à dominação
cretense sobre Atenas, ele já tinha uma vasta experiência como exterminador de monstros.
No currículo do jovem príncipe constava a morte do malfeitor Perifetes, gigante que
atacava peregrinos com uma clava de bronze; a morte do também gigante Sínis, de quem
se dizia capaz de vergar o tronco de um pinheiro até o chão, tamanha era sua força. Sínis,
não raro, costumava vergar duas árvores ao mesmo tempo, amarrando uma vítima entre
as duas, fazendo-a dilacerar-se. Teseu foi capaz de desafiar a força do gigante, vergando,
também ele, uma árvore até o chão. Não satisfeito, fez Sínis provar de sua própria
violência, despedaçando o seu corpo como punição; Teseu também livrou a Grécia da
temível Porca de Crômion e do assassino perverso Cirão, temido por arremessar suas
vítimas ao mar, além de derrotar algumas outras abominações do solo grego
(BRANDÃO, 1987).
O jovem príncipe ateniense era, simultaneamente, filho de Egeu, rei de Atenas, e
do deus Poseidon. A origem do herói é complicada, como a de quase todos os semideuses
dos mitos gregos, e envolve o relacionamento sexual de um deus com uma mortal. No
caso, Etra, que foi visitada por Poseidon na mesma noite em que conheceu Egeu. O filho
concebido nesta noite foi reconhecido por Egeu, contudo o verdadeiro genitor era
Poseidon. Teseu herda de seu pai divino grande força física. De Egeu, ele herdará o trono
de Atenas. O extermínio dos terríveis monstros sobre a terra era um modo de provar seu
valor como guerreiro e como político.
Teseu fora criado pelo avô materno e quando atingiu idade suficiente, viajou até
Atenas, a fim de ser reconhecido pelo pai Egeu. Domar o mal (interno e externo) deveria
27
ser característica essencial a um rei grego, capaz de conter seus próprios impulsos e sua
desmesura, ao mesmo tempo que expurga o mundo de malfeitores. Segundo Junito de
Souza Brandão (1987), o jovem substituía Héracles como o herói de seu tempo. Na
ocasião, Héracles estava distante da Grécia, deixando o terreno livre para malfeitores
diversos e monstros temíveis espalharem o terror. Teseu ocupa o lugar de herói deixado
pelo antecessor na caçada e matança de monstros violentos.
Cabe lembrar que os fatos narrados pelos mitógrafos remetem a um tempo
imediatamente anterior à Guerra de Tróia, mito fundador da unidade grega. Neste período
mítico, as cidades não tinham ainda um acordo que se possa dizer nacional. Muitas dessas
narrativas foram recolhidas pelos mitógrafos a partir de fontes muito diversas, que
revelam certa heterodoxia na construção dessas narrativas. Diversos personagens desses
mitos, heróis ou monstros, tinham alguma ascendência divina, como é próprio ao mito,
que condensa narrativas em que a diferença entre o terreno e o sagrado ainda não está de
todo estabelecida. A própria distinção entre herói e monstro é, por vezes, difícil na
mitologia. Ainda assim, tanto Teseu como o Minotauro descendiam de Poseidon.
Do minotauro pouco se sabe. Sua biografia confunde-se com o passado de seus
pais, Minos, rei de Creta, e sua esposa Pasífae. O rei Minos conta com uma curiosa
genealogia, sendo fruto da relação entre a princesa Europa e Zeus, que a seduziu sob o
disfarce de um touro. Conta-se que Minos, já adulto, recebeu de presente de Poseidon um
touro que deveria ser sacrificado em reverência ao deus do mar. Minos, no entanto,
decidiu manter o touro vivo, encantado pela beleza do animal. A punição pela
desobediência não tardou: Poseidon faz com que Pasífae se apaixone pelo touro. A rainha
roga ajuda a Dédalo, arquiteto ateniense que se encontrava exilado em Creta. Ele
construiu uma vaca de madeira e couro para que, escondida em seu interior, a rainha
pudesse copular com o touro de Poseidon. Dessa união nasceu o Minotauro, uma criatura
de corpo humano e cabeça bovina. O monstro era simultaneamente filho de Minos e do
touro sagrado de Poseidon. O nome remete duplamente à sua animalidade e ascendência:
o touro de Minos, o animal e o nome do pai. A etimologia do nome Teseu, por outro lado,
expressa sua singularidade entre os homens. Quase como uma biografia, o nome indica
“homem forte por excelência” (BRANDÃO, 1987). O Minotauro sugere um
deslocamento de categorias. Seu nome localiza, ao mesmo tempo, a forma física híbrida
e a genealogia complexa, ao mesmo tempo sagrada, animal e humana.
O touro de Minos difere de criaturas semelhantes, cujo corpo condensa partes
humanas e animais, como os centauros, os faunos e as sereias, entidades híbridas, que
28
constituíam populações inteiras. O monstro, também, não é da mesma estirpe dos gigantes
enfrentados por Teseu, não descende diretamente dos titãs ou de outros monstros
mitológicos: o Minotauro é fruto de uma transgressão e do excesso de seus pais. Note-se
que não é o coito entre Pasífae e um touro que representa a perversão ou o desvio de
conduta sexual. O próprio Minos descende de certo modo de um touro. O crime é expresso
na desobediência do rei ao pedido de Poseidon. Muitos nascimentos monstruosos na
Idade Média, por exemplo, vão ser atribuídos a casos de zoofilia e bestialismo7. Na cultura
grega dos mitos este não parece ser o caso de escândalo, por mais alegórico que seja o
ato. A transgressão refere-se ao destino do homem em relação ao sagrado.
Minos esquece sua excelência e sabedoria e é punido com a perversão despótica
dos deuses sobre sua esposa. Na ocasião, Creta e Atenas estavam em guerra devido à
morte de Androgeu, primogênito de Minos, em solo ateniense8. Com um exército
poderoso, Creta avançou sobre Atenas, que fora assolada por uma peste enviada por
Poseidon a pedido de Minos. O rei cretense concordou em retirar as tropas do solo
ateniense na condição de que fossem enviados sete moças e sete rapazes (os números
variam conforme a versão do mito) como sacrifício e alimento ao Minotauro
(BRANDÃO, 1987).
Ao impor um tributo de catorze jovens atenienses para serem devorados, o rei
canaliza a dominação tirânica sob a forma de sacrifício, quase como se a tirania se
alimentasse de carne humana (BRANDÃO, 1987, p. 161). Brandão compreende a relação
com a prole taurina a partir de certa psicologia de Minos. O rei, outrora sábio, vê-se em
uma guerra desmedida contra Atenas. O monstro que devora os filhos do inimigo parece
incorporar a perversão da tirania, ao mesmo tempo que evidencia o rebaixamento do rei
à vilania e à corrupção. Prender o monstro no labirinto, para Brandão, equivale a
trancafiá-lo no inconsciente.
Poder-se-ia dizer, e até com certa razão, que a dominação perversa se nutre de
carne humana. Em outros termos: Posídon, sob forma de touro, e portanto a
perversão, sob forma de dominação tirânica, inspira a Pasífae os conselhos
perversos que fazem nascer o Minotauro, a injustiça despótica de Minos. Este,
no entanto, envergonha-se do Monstro gerado por sua mulher e o esconde aos
olhos dos homens. Minos e Pasífae repelem a verdade monstruosa, a dominação
perversa do rei que é habitualmente sábio (BRANDÃO, 1987, p. 161).
7
Cf. Del Priori, 2000.
8
Algumas versões atribuem a morte de Androgeu a Egeu, rei de Atenas. Outras versões indicam que o
príncipe foi morto por atletas atenienses com quem disputava as olimpíadas. Ou ainda relacionam a morte
à sua ligação política com os Palântidas, inimigos políticos de Egeu. De todo modo, é consenso entre as
versões que Androgeu foi morto em Atenas (BRANDÃO, 1987).
29
por Teseu, e de uma série outra de criaturas que povoam o mobiliário mitográfico grego.
O mundo grego das epopeias era habitado por uma diversidade de entidades
intermediárias entre o sagrado e o humano, descendentes das divindades ctônicas etc.
O Minotauro, tanto a criatura como sua interpretação, nascem juntas como
resultado da transgressão do rei. Derrotar o monstro exigiu seu encarceramento em
tecnologias da razão, que não mais se relacionavam à desmesura do herói, a atributos do
corpo e da natureza: o labirinto, dispositivo arquitetônico, matemático, urbano; o novelo
de Ariadna, recurso lógico que possibilitava se localizar no espaço sinuoso, aproximado
de uma cartografia; e o mito, a tecnologia da palavra, que faz o monstro aderir ao seu
significado em uma narrativa sobre a moral humana. As virtudes do rei e do herói são
endossadas em detrimento do monstro, em uma narrativa que relaciona eros e pólis,
palavra e política. Encapsulado pela técnica, o minotauro resta sem ontologia e sem voz,
apenas imagem transcendente da psicomaquia do herói, como um elemento de conflito e
de resolução.
Dizer que o monstro tinha cabeça de touro não o exime de uma série de emoções
e pensamentos que hoje sabemos serem cabíveis aos animais. A criatura tinha postura
bípede e mãos que tinham polegares opositores como mãos humanas. Esse corpo
possibilitava a criatura a perceber o mundo de algum modo, certamente distinto em
natureza do modo que seu algoz, Teseu, enxergava o ambiente. Distinto, também, de
como um touro normal entende o espaço. Na narrativa mitológica, o monstro é silencioso,
aparece apenas como efeito do horror que causa: ninguém que o viu vivo retornou para
descrever sua aparência. O Minotauro, contudo, foi objeto de uma extensa fortuna
iconográfica: moedas, vasos, afrescos, pinturas, esculturas, sem mencionar a cultura
audiovisual. Essa quantidade de imagens pode ser valiosa para entender mais sobre o
monstro que resta mudo no labirinto. A seguir, detenho-me brevemente em uma imagem
específica do Minotauro.
9
O conto A Casa de Astérion encontra-se publicado no livro “O Aleph”. No epílogo do livro, Borges afirma
que deve à pintura de Watts o “caráter do personagem” (BORGES, 2005).
34
10
Uma cronologia possível dos mitos torna o Minotauro e o personagem Édipo contemporâneos. Édipo e
Teseu se encontrarão na maturidade em “Édipo em Colono”. Na peça de Sófocles, Teseu dá asilo político
para Édipo. A obra é parte da Trilogia Tebana. Édipo em Colono dá sequência aos acontecimentos de Édipo
Rei e precede narrativamente Antígona.
35
11
As teorias sobre o romance moderno acentuam esse caráter de um personagem cindido e fraturado,
especialmente em comparação com os heróis das epopeias, para quem o mundo era incerto e hostil, ao
passo que a subjetividade parecia íntegra. Sobre o tema, cabe destacar as obras de Lukács (2000) e Kundera
(2009).
36
Nesse sentido, o herói torna-se uma figura importante. Teseu divide com o
monstro a mesma origem divina, certa singularidade entre os humanos comuns. O herói,
para Bologna (1997), compartilha com o monstro essa mesma qualidade de entes
limítrofes. O herói, do mesmo modo que o poeta, o profeta e o sábio, são personagens
fronteiriços. “Conhecem a magia do canto e a expressão dos animais; a sua linguagem é
ambígua, enigmática, ameaçadora, enganadora e ao mesmo tempo verídica”
(BOLOGNA, 1997, p.318). Ao herói é cabível decifrar a linguagem do monstro, como
no caso de Édipo com a Esfinge, ou ainda de Ulisses com as sereias. Este segundo caso
alerta para um cuidado que Teseu também demandou, que é o de não se deixar embeber
demais pela linguagem do monstro. A mitologia política elaborada por Teseu sugere a
constante ameaça de um devir-monstro, que demanda vigilância.
O herói, contudo, é figura desimportante no conto de Borges (e também nesta
tese), e suas aventuras de nada servem para pensar a biografia do monstro, exceto a
participação em sua morte. Astérion é alheio à história e ao engodo bélico que ocorria ao
seu redor. Sem a palavra compartilhada o monstro é incapaz de estabelecer vínculos com
o mundo humano, de entrar na temporalidade comum, de devir historicamente. Ao
mesmo tempo, Astérion é um dessemelhante, não vê sua imagem refletida em mais nada,
sendo nula sua capacidade mimética. Um rápido diálogo com Walter Benjamin (2012)
nos mostra como a semelhança e a capacidade de imitação, mais que um dom, parecem
ser as responsáveis pelas faculdades superiores da humanidade. Ademais de uma
capacidade cognitiva, a vontade mimética aparece, para Benjamin, como um desejo
imperativo, um “fraco resíduo da violenta compulsão, a que estava sujeito o homem, de
tornar-se semelhante e de agir segundo a lei da semelhança” (BENJAMIN, 2012, p. 122).
É curioso pensar que o monstro tem apenas o céu como parâmetro de espelhamento, ao
passo que, ainda com Benjamin, é o movimento em relação à semelhança que leva a
humanidade a desenvolver a astrologia e a permitir que “a posição dos astros produzisse
efeito sobre a existência humana” (BENJAMIN, 2012, p. 122).
A imagem do monstro instaura um deslocamento na capacidade de
reconhecimento que arrasta a palavra junto a si. Todo o relato do Minotauro transita entre
loucura e solidão, soberba e misantropia, de modo que também não nos reconhecemos
como parte empática dessa narrativa. A imagem de seu corpo é tão dessemelhante que se
ausenta do tempo, e as estrelas não parecem ter efeito sobre ele, como tem sobre a
humanidade. Também não podemos dizer que o Minotauro aproxime-se de uma imagem
indefinida. O hibridismo do corpo, a intersecção entre humano e touro, colocam-se como
37
talvez um touro com cara de homem? ou será como eu?” (BORGES, 2005, p.86). Neste
instante o silêncio do monstro dá lugar a uma segunda pessoa na narrativa. Após limpar
o rastro de sangue da espada o herói profere: “– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O
minotauro apenas se defendeu” (BORGES, 2005, p.86).
O herói aparece surpreso nas últimas linhas do conto, pois não encontrou
resistência do monstro na hora de sua morte. Mais uma vez, o monstro jaz sem vida, mas
deixa um testamento, oferece a visão de outro mundo, percebido com outros sentidos,
cujos contornos são elaborados a partir de outros pontos de referência. O Astérion observa
o mundo a partir de um dentro, de outra cosmologia. O movimento é simples: orientado
pelo novelo de Ariadne, Teseu antecipa o monstro por fora do labirinto, como um animal
visto em uma jaula. O minotauro de Borges observa de volta, do lado de lá de uma
fronteira que não se cruza sem risco. O herói vem pronto para a guerra, enquanto o
monstro espera o redentor, um semelhante ou um irmão.
Teseu e Minotauro são irmãos por parte de Poseidon. No conto de Borges a
herança paterna parece ser menos importante, mas de todo modo há um espelhamento
possível quando o monstro espera um semelhante. A herança do monstro também parece
ser seu duplo legado de vida e de morte. A presença do monstro é capaz de amedrontar a
racionalidade de uma época, de ausentar-se do tempo linear e propor outra modalidade
de perceber o mundo, como um hiato ou uma parada, algo que causa um dano à percepção
corriqueira do mundo.
Monstro, a categoria confusa e difundida em diversos discursos, também aparece
nas experiências contemporâneas como uma força política relevante, capaz de agrupar ao
redor dela dissidências, insurgências, que faz coro à voz de Astérion e tantos outros
monstros emudecidos pelo processo histórico. O ponto de vista do monstro é capaz de
reclamar para si uma existência, uma percepção de mundo e uma política dissidente. Esta
pesquisa parte dessa dupla condição: por um lado, o monstro é uma figura recorrente que
capitaliza e organiza a diferença, enquadrando ela em tecnologias políticas que a
destituem de sua realidade. Ao fabricar vidas monstruosas a partir da captura da
alteridade, a cultura produz formas de vida extermináveis ou domesticáveis, tornando o
monstro uma presença corriqueira no imaginário contemporâneo.
Por outro lado, o monstro também tem sido objeto de disputa entre subjetividades
dissidentes. Seja por identificação, ou por filiação, a experiência com o monstruoso
aparece nos corpos híbridos, mutantes, nas sociabilidades não edipianizadas, nos
dissidentes de gênero, de nação, nas associações com outras formas de sagrado, com o
39
animal e com a natureza, nos sujeitos estigmatizados. No hiato milenar entre o touro de
Minos e o Astérion, esta pesquisa parte de um questionamento sobre a disputa em torno
da morte do monstro e de sua vida como potência política, capaz de propor outros
possíveis e de indicar outros mundos, outras modalidades de existência.
Inicialmente me questiono porque o monstro aparece e reaparece como uma força
política tão recorrente em um momento em que sua imagem parece banalizada e saturada
pela frequência com que aparece na cultura visual. Se o monstro sempre foi o lócus da
transgressão e da anomalia, é cabível pensar ainda que ele tenha essa força opositora?
Qual o domínio da transgressão no contemporâneo? Ao mesmo tempo, questiono-me se
a imagem do monstro, popularizada pela cultura midiática, é capaz de propor subversão.
O monstro hollywoodiano somente reforça estereótipos ocidentais, capitalistas, brancos
e heterossexuais? Ou será que, ao exibir o monstro, um filme popular permite que ele
projete sua diferença, exuberância e excesso em uma tela gigante? Será que, ao capturar
o monstro em tecnologias de imagem, o cinema hegemônico não corre o risco de mostrá-
lo como vida sensível? Esse tipo de insurgência no sensível me leva a entender o monstro
como uma modalidade de vida, não apenas um amálgama de estereótipos narrativos.
Esta pesquisa investiga a vida política dos monstros. Tomo como ponto de partida,
certa cultura visual que exibe o monstro em suas variações e sentidos diversos, como um
tema recorrente no imaginário contemporâneo. O objetivo principal desta tese abre-se em
caminhos múltiplos de investigação, sobretudo porque as categorias que este objetivo
persegue — vida, política e monstro — são conceitos que suscitam constantes disputas
quanto ao seu significado. A construção soa contraditória, mas debates sobre vida e
política sempre estiveram muito próximos do que é possível entender como monstro. O
monstro, e não a morte, é o contravalor da vida, afirma Georges Canguilhem (2011). O
monstruoso coloca a vida em risco pela possibilidade de transformação e variação. Do
ponto de vista de uma vida social, o monstro ameaça o funcionamento regular dos regimes
de poder e das instituições, e perturba categorias a elas entrelaçadas, como identidade,
diferença, normalidade e racionalidade.
Não à toa o monstro é um elemento que remete ao caos e à catástrofe, geralmente
incorporando uma alteridade incontestavelmente negativa. Ao monstro cabe ser o
portador da monstruosidade, valor moral que condensa um conjunto de afetos rejeitados
40
por determinado grupo social. Desse modo, a forma de vida monstruosa costuma
incorporar a aparição ou o retorno de um conjunto de valores, desejos e medos que uma
cultura determina como abjetos ou asquerosos. A monstruosidade comunga afetos
hediondos e valores inomináveis, que não foram propriamente simbolizados pelo léxico
cultural vigente e que carregam a possibilidade de corromper os regimes de verdade e de
poder em atuação. Trata-se de uma confluência de conceitos, atributos e usos do monstro,
e que fazem parte de sua constituição.
Este capítulo explora esse conjunto de interstícios, partindo da noção de que
monstro é um termo que não gera dúvidas quando evocado. O termo geralmente surge
para desqualificar um sujeito e parece trazer consigo a verdade desta qualificação, como
uma essência que foi, finalmente, identificada. Contudo, o senso comum, a arte, ou a
ciência não possuem acordo ou clareza quanto ao significado da palavra. O termo denota
muito mais um ato de fala do que um significado: “você é um monstro!”. O equívoco é
inexistente em assertivas dessa natureza, de modo que a pergunta “o que é o monstro”,
que dá título e objetivo a esta seção, será sempre acompanhada pela indagação “quem é
o monstro?”, mesmo que de modo subjacente.
O leitor encontrará, ao longo deste texto, certa confluência entre os vocábulos
monstro, monstruoso e monstruosidade. Advirto que se trata de um problema heurístico
e parte do esforço desta pesquisa é compreender o processo em que o monstro e a
monstruosidade se relacionam. Por ora, estabeleço a distinção seguinte: monstro e
monstruoso referem-se à criatura, ao sujeito dito monstruoso. Monstruosidade sugere uma
qualificação, categoria moral, adjetiva e valorativa. A monstruosidade não tem um valor
em si, e opera como um vetor que direciona valores diversos em um determinado contexto
cultural. As categorias relacionam-se de modo complexo, de modo que esta advertência
é mais metodológica do que conceitual.
A aparição do corpo informe12 do monstro atravessa uma fronteira proibida: a que
garante que apenas corpos e modos de existência devidamente codificados e classificados
podem participar das instituições que garantem a vida, como corpo, família, gênero,
estado etc. Com o monstro, a estabilidade destas instituições estará ameaçada. A ideia de
uma civilização ocidental ergue-se sobre uma cisão histórica e metafísica entre natureza
e cultura, diante da qual derivam os limites conhecidos de homem e de mundo. O monstro
coloca no campo do sensível um corpo que apavora os processos de interpretação por não
12
Informe é utilizado nesta tese a partir de Georges Bataille (2018), como apresentado na introdução.
41
de sete teses13, corolários de como atua o monstro nas culturas. O texto de Cohen é,
certamente, uma das obras recentes mais influentes dos estudos sobre monstruosidade. O
texto afirma na primeira tese que o monstro é um corpo cultural, que nasce como a
corporificação de certo momento da cultura, comungando os medos e desejos de um
tempo (COHEN, 1996). Esta proposição apresenta uma inserção do monstro como
elemento cultural e como metodologia histórica, que implica pensar uma cultura a partir
dos monstros que ela engendra.
Trata-se de um recurso epistemológico potente de crítica cultural. A obra de
Cohen investiga o monstro em consonância com o esforço dos Estudos Culturais em
pensar povos e sujeitos subalternizados pela histórica. A teoria dos monstros proposta
pelo autor pensa conceitos hegemônicos como identidade e nação a partir de sua
contraparte rejeitada. Cohen investiga como certos povos narram o contato com
alteridades distantes utilizando o monstro como avatar. A proposta do autor, no entanto,
vai na contramão de dois pressupostos caros aos Estudos Culturais, “a compulsão da
especificidade histórica e a insistência de que todo conhecimento é local, o mesmo
valendo, portanto, para todas as cartografias desse conhecimento” (COHEN, 2000, p.23).
Com isso, o autor, ao longo das sete teses, defende uma relativa universalidade
funcional dos monstros em culturas diversas, como um dispositivo dual e relacional com
o qual cada sociedade lida com suas pulsões ocultas ou crises culturais. O modo como o
autor apresenta o corpus segue uma recuperação histórica em grande medida linear. Essa
possível universalidade do monstro é mapeada pelo autor na cultura ocidental,
identificando sua origem nas cosmogonias gregas e judaicas, por exemplo, e traçando
paralelos com o imaginário medieval, o romance moderno, o cinema etc. Para ele, o
monstro é a chave heurística do desconhecido ou do oculto de cada tempo histórico.
Assim, “o monstro existe apenas para ser lido” (COHEN, 2000, p.24). Para o autor:
O monstro nasce nessas encruzilhadas metafóricas, como a corporificação de um
certo momento cultural — de uma época, de um sentimento e de um lugar. O
corpo do monstro incorpora — de modo bastante literal — medo, desejo,
ansiedade e fantasia (ataráxica ou incendiária), dando-lhes uma vida e uma
estranha independência. O corpo monstruoso é pura cultura (COHEN, 2000,
p.24).
13
Trata-se do livro Monster Theory: reading culture, publicado em 1996, organizado por Cohen. Na fortuna
crítica recente, a obra de Cohen ocupa um lugar central, como um dos expoentes de uma virada nos estudos
sobre monstruosidade. Desse modo, alguns dos seus trabalhos são marcos temporais e teóricos
incontornáveis para uma pesquisa sobre monstros.
43
O interesse desta pesquisa vai em uma direção diversa à da teoria dos monstros de
Cohen. Do ponto de vista de uma vida política, pensar o monstro como um operador
conceitual do humanismo ocidental pouco ou nada revela sobre o monstro em si. Nesse
sentido, busco pensar o monstro não como um conceito utilizado para entender contextos
externos a eles, mas como uma pessoalidade capaz de produzir conhecimento e modos de
existência. Assim, divirjo de Cohen quando ele afirma que o monstro “existe apenas para
ser lido” (COHEN, 2000). O que quero afirmar é: o monstro existe. Este é o ponto de
partida desta investigação.
Ao afirmar que o corpo do monstro é um corpo cultural, Cohen deixa de lado a
contraparte desta assertiva: o corpo humano também é um corpo cultural, e também é um
corpo que pode ser lido como afeto histórico. Como um objeto da antropologia ou da
sociologia, o corpo pode ser pensado como uma construção simbólica (LeBRETON,
2003), como a demarcação de uma fronteira que delimita perante os outros a presença de
um indivíduo. Os valores remetidos ao corpo e às imagens e códigos que lhe dão
espessura “falam-nos também da pessoa e das variações que sua definição e seus modos
de existência conhecem, de uma estrutura a outra (LeBRETON, 2003, p.7).
O corpo denota uma ambiguidade, que indica que ele é constituído por códigos e
valores culturais, ao mesmo tempo que apresenta uma realidade material, corpórea e
sensível. O corpo ocupa um espaço, absorve os fenômenos externos e é, ele mesmo, um
fenômeno, categoria do “real”, muito embora seja conhecido apenas pelos discursos que
o antecedem (GIL, 1997). Nesse sentido, corpo e natureza comungam uma familiaridade
aproximada. Ambos são tomados a partir de uma imobilidade material na qual são
inscritos significados culturais. Cohen, em outro trabalho (1999), percebe o corpo como
uma fita de Moebius, “onde qualquer movimento cruza constantemente o dentro e o fora,
minando a utilidade de manter essas frágeis distinções” (COHEN, 1999, p. XVII).
Nesse sentido, a ideia de uma hermenêutica do monstro não é indevida ou
inadequada. Pensar afetos históricos a partir do corpo monstruoso é uma abordagem
possível. Essa abordagem, no entanto, sustenta pressupostos que estou interessado em
abandonar. Notadamente o pressuposto que posiciona o monstro como oposto ao humano,
como uma alteridade ao mesmo tempo irredutível e complementar. Do ponto de vista do
monstro, a ideia de uma identidade opositora perde força e sentido. O monstro é
identificado pela sua dessemelhança radical. Lembremos a dúvida de Astérion sobre que
tipo de criatura seria o seu semelhante.
46
14
O recurso foi comum no romance epistolar dos séculos XVIII e XIX e será utilizado décadas depois por
Bram Stoker em Drácula, cuja estrutura em forma de cartas e diários garante uma multiplicidade de
narradores, todos em primeira pessoa.
48
2.4 AS HIPÓTESES
Quimera, que surge pela primeira vez em um texto literário na Ilíada, ela é descrita como
um híbrido: “a parte da frente era de leão, a do meio era de cabra e a de trás era de
serpente” (BORGES, 2007, p. 175). Um estranho destino se abateu sobre ela. Ao longo
de obras e dos séculos, sua formação foi sofrendo variações a ponto de não ser mais crível,
sendo interpretada como uma metáfora de um vulcão na Ásia Menor, ou de um navegador
de hábitos ligados à pirataria.
Essas conjecturas absurdas provam que a Quimera já estava cansando as pessoas.
Melhor que imaginá-la era transformá-la em qualquer outra coisa. Ela era
excessivamente heterogênea; o leão, a cabra e a serpente (em alguns textos, o
dragão) não se dispunham a constituir um único animal. Com o tempo, a
Quimera tende a ser "o quimérico"; um conhecido gracejo de Rabelais ("Uma
quimera, oscilando no vazio, pode comer segundas intenções?") marca muito
bem a transição. A forma incoerente desaparece e resta a palavra, para significar
o impossível. "Ideia falsa", "devaneio", é a definição de quimera fornecida agora
pelo dicionário (BORGES, 2007, p. 175).
15
O tema do lobisomem será discutido no capítulo 4 dessa tese.
52
diversos. A história da sexualidade e a história dos monstros têm seus caminhos cruzados
em diversos momentos, sobretudo pela crescente fabricação de patologias e do
enquadramento das dissidências sexuais dentro de um quadro maior de anomalias e
dissidências. Em contextos progressistas ou em narrativas estereotipadas, o monstro é
parte do imaginário midiático contemporâneo de modo complexo.
Nesse sentido, a monstruosidade relaciona-se diretamente com a proliferação de
novos regimes de poder na modernidade, notadamente o poder disciplinar e o biopoder.
Contudo, não se trata de uma categoria fácil de encaixar dentro da conduta disciplinar da
modernidade. O surgimento das alteridades dissidentes implica a necessidade de
enquadrá-las em um discurso normativo, sob o risco da norma ser enfraquecida ou
questionada coletivamente. A produção discursiva da monstruosidade torna-se um
recurso potente de atribuição de um sentido moral ao sujeito monstruoso, codificado
como potencialmente capaz de perpetrar o caos e a catástrofe em uma sociedade.
Todo um regime de visualidade e organização dos corpos e dos discursos é
acionado para codificar o monstro como elemento da catástrofe e da vilania. Se monstro
fosse uma categoria unicamente sociológica ou biológica, o vínculo entre corpo e sentido
certamente seria mais simples de ser esgarçado ou desconstruído. A herança mágica e
mitológica do monstro atribui ao sujeito monstruoso uma camada irreal, imaterial e extra-
humana. A herança mitológica é relevante pela relação bifurcada do monstro com a
política, e impede uma conceituação meramente racional, ou como produto direto de
causas sociais.
Por um lado, o legado mitológico, que pensa o monstro como uma criatura
imaginária, reforça o grau de irrealidade e de invisibilidade das vidas produzidas e
enquadradas como monstruosas, o que reforça a inelutabilidade das vidas exterminadas.
Contudo, essa herança abre a possibilidade para outras formas de relações, alianças e
filiações com elementos não antropocêntricos, da ordem do fantástico, da natureza e de
outros sistemas de compreensão do mundo.
Os sujeitos monstruosos emergem nesse contexto de relações, como pessoalidades
dissidentes dos modos normativos de identificar e reconhecer os indivíduos. Do ponto de
vista do funcionamento das instituições, as monstruosidades e dissidências são capturadas
por uma rede de saberes e poderes que visam dar um destino às formas de vida
monstruosas. Trata-se de um dispositivo simultâneo de minar o poder político do monstro
e de garantir o funcionamento da norma como elemento de organização do real.
55
guerra especista. Os civis, habitantes nativos daquela localidade — os que não são nem
soldados, nem monstros — não são anglófonos, e são entendidos por meio de um
dispositivo tradutor. O som do idioma remete ao leste europeu.
Tendo crescido juntos, o casamento dos jovens era dado como certo desde que
nasceram, apesar dos receios das famílias de que o parentesco dos primos pudesse gerar
crianças monstruosas. “Tinham o temor de que aqueles saudáveis expoentes das duas
raças secularmente entrecruzadas passassem pela vergonha de engendrar iguanas”
(MÁRQUEZ, 2019, p.27). Os temores não eram infundados, uma vez que havia um caso
recente que alimentava as preocupações. Uma tia de Úrsula casou com um tio de José
Arcádio e deu à luz uma criança com um “cauda cartilaginosa na forma de saca-rolha e
com uma escovinha de pelos na ponta” (MÁRQUEZ, 2019, p.27). O monstro com rabo
de porco morreu sangrando, aos 42 anos, após um amigo açougueiro — possivelmente
munido de boas intenções — cortar a cauda com um cutelo utilizado para retalhar costela
de boi. A cauda de porco, que muitos atribuíram ao parentesco dos pais, era escondida
por calças-balão. O jovem morreu sem jamais ter tido contato sexual com mulheres.
Não fica claro no romance qual a causa do nascimento de iguanas ou de crianças
com rabo de porco. A preocupação de Úrsula parece se concentrar em saber se o
parentesco dela e do marido era próximo o suficiente para ser uma transgressão
incestuosa. Sendo assim, um casal jovem e saudável gerar um filho com partes do corpo
de iguana suscita um conjunto de dúvidas quanto à causa e ao destino da prole. Os
nascimentos monstruosos alimentam um extenso debate sobre parentesco e ordem
cultural e ameaçam as linhas que definem os homens e os animais (DOUGLAS, 2012).
Desse modo, uma criança híbrida, com partes humanas e animais, nasce deslocada da
ordem das coisas e dos sistemas de classificação.
O nascimento de um monstro implica uma origem incerta e suscita dúvidas: um
bebê iguana deveria ser criado por pais humanos? Se sim, o que isso implicaria no estatuto
social dos pais? Ele deveria ser batizado? Deveria frequentar a escola? Mesmo um
hibridismo menos radical, como uma cauda de porco, implica uma impossibilidade de
codificar esse sujeito dentro dos signos comuns da humanidade. Essa ininteligibilidade
que define o monstro coloca dúvidas também sobre o lugar social que ele pode ocupar.
Não raro, os nascidos monstros, os corpos que deformam os critérios de inteligibilidade
do humano, ocupam espaços flutuantes, marginais, ou são exibidos como anomalias ou
bizarrices da cultura visual. O parente dos Buendía nascido com uma cauda de porco não
é nomeado. Sabemos que morreu celibatário, sem deixar descendência, na margem das
relações sociais cotidianas.
O tema da descendência, central no romance, é perturbado pela aparição do
monstro. O parente com rabo de porco interrompe uma cadeia reprodutiva. O nascimento
68
pensar as relações fora dos termos de uma imaginação política que concebe o futuro
unicamente em termos de preservação e reprodução, e que confirma o valor absoluto do
futurismo reprodutivo. Trata-se de pensar um espaço “exterior a esse conflito de
perspectivas que compartilham o pressuposto de que o corpo político deve sobreviver”
(EDELMAN, 2021, p. 250).
O autor encontra esse valor de negatividade em uma ética queer, como uma
possibilidade de pensar a vida social fora das fantasias heteronormativas de
transmissibilidade e legado. A criança que herdará o mundo que vivemos, e de quem
nossas decisões políticas são devedoras, confere um valor transcendente ao desejo
heterossexual. A heterossexualidade passa a ser associada à preservação do futuro, uma
função externa e pretensamente mais nobre que o desejo sexual em si. Essa associação é
elaborada como uma oposição ao desejo homossexual, que não é centrado na geração de
filhos. Isso torna qualquer resistência inoperante fora de uma fantasia futurista. O queer,
a dissidência, pode ocupar o seu “estatuto figural como uma resistência à viabilidade do
social e insistindo na inextricabilidade dessa resistência de qualquer estrutura social”
(EDELMAN, 2021, p.251).
Edelman conceitua queer como um modo de designar as pessoas estigmatizadas
por não reproduzirem adequadamente padrões heteronormativos, algo ligado ao atípico,
ao estranho, que perturba de algum modo a normalização. Trata-se de um conceito
escorregadio, com uma genealogia peculiar (BUTLER, 2019a) e cujo valor de
interpelação não tem o mesmo peso na língua portuguesa. Contudo, é importante destacar
o caráter não identitário e não fixo do termo, conforme o utiliza Edelman, uma vez que
“a queeridade não pode definir identidades, ela pode tão-somente perturbá-las
(EDELMAN, 2021, p.262). Não é meu objetivo me debruçar sobre o termo ou recompor
sua história e usos. Meu interesse é pensá-lo a partir de zonas de vizinhança com o
conceito de monstro, e com outros termos que propõem formas de subverter, interromper,
ou mesmo reimaginar a norma. No contexto dessa discussão, monstro se avizinha a queer,
entendido como um termo que nunca foi “plenamente possuído” (BUTLER, 2019a).
O monstro, nas preocupações de Úrsula, ocupa um espaço de possibilidade e
latência capaz de interromper a continuidade da vida social (o que, de fato, ocorre). O
destino trágico do primo com rabo de porco oferece uma imagem de recusa à ideia
disciplinar da criança de que fala Edelman. Essa recusa é central para o argumento deste
capítulo. Por meio dessa recusa, a presença do monstro pode abrir espaço para formas
outras de continuidade da vida. Formas que não são condicionadas pela transmissão e
70
repetição de papéis sociais normativos, e que demandam um corpo inteligível para sua
realização. Não raro, esses papéis sociais normativos implicam uma distribuição
disciplinar do gênero e da força de trabalho. Como dito, o monstro é um corpo
ininteligível, a quem falta ou sobra algo, e que é incapaz de ser classificado em
taxonomias prévias. O monstro interrompe e impossibilita o processo de codificação
como um corpo inteligível, seja como recusa, fracasso, metamorfose ou, nos termos de
Halberstam (2020), ausência de sentido e direção.
Se o futuro — esse futuro idealizado que só existe na medida em que o corpo
social é protegido — projeta-se como uma imagem coercitiva, o monstro é capaz de
interromper a reprodutibilidade da norma, sobretudo de um ponto de vista da
heteronormatividade. Foucault (2010) explica que o contorno do que entendemos como
monstro humano torna-se mais preciso conforme as funções da família, da parentalidade
e das técnicas disciplinares são remanejadas socialmente. O monstro caracteriza-se, não
raro, por uma sexualidade desviante, anômala, fora dos parâmetros da genitalidade: o
primo de Úrsula morre celibatário, ao passo que é a possibilidade de um incesto (uma
relação sexual que transgride as leis da cultura) que pode gerar iguanas (uma prole que
transgride as leis da natureza).
Nesse sentido, o monstro oferece uma separação entre a ordem social e os valores
que a consolidam no imaginário coletivo. Esse gesto é capaz de deslocar as fantasias em
que os termos da vida política são pensados, notadamente a ideia de que a política tem
como ponto de referência um sujeito bem definido e completo. Não à toa, o nascimento
monstruoso é lido como signo de uma desgraça iminente (ECO, 2007), pois não apenas
cinde os padrões de referência desse sujeito de contornos definidos, como impede a
reprodução desse modelo de sujeito. Para Edelman (2021), o queer, como uma categoria
de não identificação, “aniquila o gozo fetichista que trabalha para consolidar a identidade
ao permitir que a realidade coagule em torno de sua reprodução ritual” (EDELMAN,
2021, p. 272), e, assim, corta o fio que garante a futuridade.
ou ainda, a mistura de sangue de parentes tão próximos poderia gerar algum desvio
biológico. A mistura desequilibrada de fluidos corporais, como sêmen e sangue
menstrual, alimentou diversos debates sobre a geração de filhos monstruosos, sobretudo
no final da Idade Média e no Renascimento. Não à toa o sangue torna-se um signo
importante em narrativas sobre monstro.
A historiadora Claude Kappler (1993) analisa a proliferação de imagens e
discursos sobre o monstro no final da Idade Média e elabora um quadro geral de
classificação dos nascimentos e das aparições monstruosas. Para ela, o tema dos
nascimentos monstruosos é objeto de interesse constante e perpassa diversas épocas. O
recorte temporal que a autora explora coincide com diversas obras publicadas entre os
séculos XV e XVI. Trata-se das enciclopédias densamente ilustradas de filosofia natural
ou botânica de autores como Ulisses Aldrovandi, Pierre Boaistuau, Hartmann Schedel e
Ambroise Paré (figura 04), para citar alguns. Essas publicações, junto aos tratados e
crônicas sobre a América recém colonizada pelos europeus, compunham um quadro
complexo de raças monstruosas e de desvios da natureza. Esses tratados naturalistas
partiam de um pressuposto cultural duplo, que entendia o monstro simultaneamente como
um desvio e como um enigma da natureza.
72
Figura 04. Gravuras de nascimentos monstruosos em publicações de filosofia natural do século XVI e XVII.
As ilustrações são de Ulisses Aldrovandi.
Fonte: Domínio Público.
As raças monstruosas, no entanto, são viáveis, como bem lembra Gil (2006). Elas
subsistem e persistem como formas de vida, e é essa particularidade que impõe uma
resistência à interpretação dos nascimentos monstruosos. À revelia de ser cooptado ou
não como figura alegórica, o monstro expressa uma possibilidade de vida materializada
em um corpo, em um espaço e em um tempo. O pensamento medieval, como exposto na
tipologia de Kappler, não entra em acordo se o monstro desvia da natureza em gênero ou
16
O argumento de Agostinho é o de que se as raças monstruosas existem é porque assim o quis Deus. No
pensamento do filósofo, os monstros dos confins do mundo conhecido são parte da ordem geral da criação
de Deus (AGOSTINHO, 2012; GIL, 2006; DEL PRIORI, 2000).
74
17
A primeira edição do livro foi publicada em 1573. Como consulta, utilizo a edição em inglês (PARÉ,
1982).
75
Aguilar morreu com a lança do rival atravessada na garganta. Nessa mesma noite, Úrsula
e José Arcádio tiveram a primeira relação sexual, assumindo o risco da decisão: “Pois se
você tiver que parir iguanas, criaremos iguanas” (MÁRQUEZ, 2019, p.27).
A relação conjugal dos Buendía, como endossa o narrador, era fortalecida pelo
remorso comum da consciência. Prudêncio fora morto, de certo modo, pelas
preocupações de Úrsula, por mais legítimas e bem fundamentadas que fossem. O morto,
no entanto, retorna para atormentar o casal. Silencioso, o fantasma de Prudêncio Aguilar
passou a visitá-los com frequência, revirando potes de água para lavar a atadura presa à
garganta dilacerada. O espectro passa a assombrar o casal, como a corporificação do
remorso e do sentimento de culpa. Assombrados e, em certa medida, comovidos pela
melancolia do morto, Úrsula e José Arcádio partem do povoado, acompanhados de outras
famílias de jovens fascinados por aventura. Assim, o grupo empreende uma travessia de
dois anos e fundam uma aldeia nas margens de um rio. O nome Macondo, como sabemos,
foi dado por José Arcádio.
O primeiro filho dos Buendía nasce ainda durante a peregrinação. “Depois de
catorze meses, com o estômago estropiado pela carne de macaco e a sopa de cobras,
Úrsula deu à luz um filho com todas as partes humanas” (MÁRQUEZ, 2019, p.30). O
nascimento do primogênito, chamado José Arcádio, como o pai, pareceu tranquilizar a
matriarca. Não apenas o filho não era uma iguana, como também não lhe faltavam nem
sobravam partes do corpo. O fato pode ter despreocupado Úrsula, que teve mais dois
filhos, Aureliano e Amaranta. Os dois filhos homens darão sequência à linhagem da
família, e a prole se multiplica ao longo dos anos, conforme Macondo cresce. Casos e
sugestões de incesto retomam a narrativa em alguns momentos e a família continua a
crescer. O ato originário que funda a cidade, no entanto, permanece maculado.
O primo com cauda de porco é esquecido na história, como uma figura sem nome
próprio e sem voz. Se o romance emudece o monstro, não desfaz por completo a
possibilidade de seu retorno. O monstro é sempre um risco latente que atormenta e
assombra a estabilidade das instituições sociais. O tema da consciência assombrada
conecta Cem Anos de Solidão a uma tradição literária em que o monstro ensaia
continuamente um retorno para assombrar a mente atormentada do humano. O tema é
recorrente no romance gótico e ocupa toda a trama de Frankenstein. Nesse sentido, o
monstro empreende um movimento semelhante ao estranho freudiano (FREUD, 1996) e
ao conceito de abjeção (KRISTEVA, 1982; BUTLER 2019a). Cabe entender a figura que
77
capítulos finais dão conta do romance de Amaranta Úrsula, tetraneta da matriarca, com
Aureliano Babilônia, filho de uma das irmãs de Amaranta Úrsula. Ou seja, entre tia e
sobrinho. O nascimento de Aureliano Babilônia foi motivo de escândalo dentro da
família, e o menino foi criado como bastardo, sem conhecimento do seu real espaço na
família. Amaranta Úrsula desde muito jovem foi estudar fora da cidade, e retorna a
Macondo já adulta e casada. As duas figuras, a mulher cosmopolita, moderna e alheia às
tradições familiares e o jovem proscrito, meio selvagem, que dedicava os dias a traduzir
pergaminhos antigos, se apaixonam.
A essa altura, no romance, Macondo é uma cidade em evidente decadência. O
passado glorioso, em que descendentes da família Buendía ocuparam espaços de destaque
e de fortuna, foi gradativamente esquecido. Aos poucos, as pessoas abandonavam a
cidade fantasma. A casa da família também estava em ruína. Formigas devastavam o
jardim, “saciando sua fome pré-histórica nas madeiras da casa” (MÁRQUEZ, 2019, p.
433), e estendendo seu domínio para dentro da residência. A descrição da ruína coloca
em paralelo cidade e família, como se a temporalidade das duas estivesse relacionada
desde a fundação. A natureza assume um lugar de oposição em relação à cidade nesta
fase do romance, e começa a ocupar e deteriorar os espaços anteriormente arruinados
pelos hábitos da vida social.
Formigas, lagartos, ratazanas. Campinas selvagens, poeira, calor. As imagens de
uma natureza hostil, e que ganha terreno sobre a cultura, acentua o caráter de
desaparecimento da cidade. Ao mesmo tempo que o romance entre Amaranta Úrsula e
Aureliano Babilônia é descrito em termos aproximados dessa mesma natureza. O
romance descreve os atos sexuais dos dois como uma visível animalidade: “se espojavam
nus em pelo nos lameiros do pátio” (MÁRQUEZ, 2019, p. 433); e como parte da
destruição da casa: “Em pouco tempo fizeram mais estragos que as formigas-ruivas”
(MÁRQUEZ, 2019, p. 433-434). A relação entre animalidade, relação sexual e destruição
é posta em paralelo: “Uma noite se lambuzaram da cabeça aos pés com pêssego em calda,
se lamberam feito cães e se amaram como loucos no chão da varanda, e foram despertados
por uma torrente de formigas carnívoras que se dispunham a devorá-los vivos”
(MÁRQUEZ, 2019, p. 434).
A dúvida sobre as relações familiares dos dois é levantada pelo casal, preocupados
com a possibilidade de serem irmãos. O passado na cidade era uma ruína esquecida, de
modo que Aureliano Babilônia não encontrou registros de seu nascimento ou evidências
de que, de fato, pertencia à família em cuja casa cresceu. Os dois, então, aceitaram a
79
hipótese de que o jovem fora abandonado em um cestinho, adotado pela família como um
parente agregado. Salvo dos temores do incesto, o casal gera uma criança, batizada de
Aureliano, em homenagem ao antepassado coronel, herói de guerra. O nascimento gera
espanto:
Depois de cortar-lhe o umbigo, a parteira se pôs a limpar com um pedaço de
pano o unguento azul que cobria seu corpo, iluminada por Aureliano com uma
lâmpada. Só quando o viraram de barriga para baixo perceberam que tinha algo
mais do que o resto dos homens, e se inclinaram para examiná-lo. Era um rabo
de porco (MÁRQUEZ, 2019, p.441).
Além disso, o filme opera uma cisão entre a monstruosidade física e uma
monstruosidade moral, denotada não apenas no conflito, mas em um deslocamento dos
regimes de representação tradicionais da monstruosidade. O monstro no filme de
Browning não se dá a ver como um espetáculo passivo ao olhar, ou como relíquia
arqueológica presa em frascos de formol. O filme opera uma inversão no olhar: os freaks
observam, produzem valores e relações de ética e sociabilidade. A construção do olhar
do monstro não apenas sugere uma inversão nos modos até então comuns de relacionar
monstro com espetáculo, como também opera a construção de um ponto de vista, de
pontos perspectivos que partem de corpos informes.
O conflito principal gira em torno do anão Hans (Harry Earles) que se apaixona
pela trapezista Cleópatra (Olga Baclanova), uma mulher bela, sem deformidades físicas
visíveis e que passa a corresponder as intenções de Hans (figura 05). Diante da sedução
da trapezista, Hans rompe o noivado com Frieda (Daisy Earles18), também anã. No início,
Cleópatra seduz Hans como uma forma de ridicularizá-lo diante do circo. Com a ajuda de
seu amante Hércules (Henry Victor), um brutamontes de grande força física, ela trama
um tipo de golpe para se apoderar da herança que Hans deve receber. Os dois, Hans e
Cleópatra, à revelia da opinião dos outros monstros, casam-se, ocasião em que a trapezista
começa a envenenar o marido, na tentativa de matá-lo e ficar com a herança. O grupo de
freaks percebe o plano e arma uma vingança contra Cleópatra e Hércules, assassinando o
segundo e deformando o corpo da trapezista.
18
Dayse e Harry são irmãos e fizeram parte, junto a outros dois irmãos, de um quarteto de anões que se
apresentava nos Estados Unidos, The Doll Family. Os personagens de Freaks, em sua maioria, eram artistas
conhecidos dos freaks shows.
83
reorganiza relações banais. Roscoe (Roscoe Ates) é casado com Dayse, cuja espinha
dorsal a conecta com a irmã gêmea siamesa Violet (Dayse e Violet Hilton). O casamento
é conflituoso, uma vez que Roscoe, que não faz parte dos freaks, não se dá bem com a
cunhada. Em uma cena, ele reclama do hábito da cunhada ficar acordada durante a noite
lendo, enquanto ele tenta dormir. A situação parece trivial, mas resguarda uma
inquietação sobre a vida sexual dos monstros, especialmente quando Violet, a cunhada,
arruma um namorado, e o casal passa a ser composto por quatro pessoas, e três corpos
(figura 06, à esquerda).
Em outra cena, o palhaço Phroso (Wallace Ford), também sem deformidades
visíveis, é convocado às pressas a um dos trailers: a Mulher Barbada (Olga Roderick)
acaba de dar à luz (figura 06, à direita). Ao redor da mãe, um grupo de monstros celebra
o nascimento, acompanhados de Phroso que afirma, animado, que a garota será barbada,
como a mãe. Enquanto isso, o pai, que sofre de uma má formação óssea que deforma seu
corpo, sendo conhecido como “homem esqueleto”, distribui charutos aos vizinhos.
Figura 06: À esquerda, Dayse e Violet com seus respectivos companheiros. À direita, os monstros visitam
a Mulher Barbada após ela dar à luz.
Fonte: Fotogramas de Freaks (Tod Browning, 1932).
Cabe dizer que, do ponto de vista visual e do ponto de vista médico, os monstros
do filme não pertencem às mesmas categorias de classificação. Eles são agrupados sob a
noção de monstruosidade, mas não há uma homogeneidade visível. Mesmo a
nomenclatura recente de pessoa com deficiência não pode ser aplicada de modo geral,
uma vez que uma personagem como a mulher barbada não pode ser pensada nessa
categoria. Os personagens de Freaks correspondem aos sujeitos nascidos monstros, como
o personagem de Cem Anos de Solidão, ou os casos analisados por Paré. A condição
monstruosa, no entanto, não é induzida pelo nascimento, mas por um reconhecimento
recíproco da precariedade. É esse reconhecimento que possibilita a sociabilidade e os
valores compartilhados pelos personagens.
A ideia de filiação é um dispositivo central para o modo como esta comunidade
se forma, como uma aliança produzida a partir do reconhecimento da dessemelhança.
Essa filiação é produzida a partir de sujeitos que distorcem a noção de um corpo humano
saudável e completo e que se organizam ao redor de signos de amizade e de ética. O que
ocorre em Freaks é uma ruptura no modo como as deficiências físicas são codificadas
pelo estigma. O modo estigmatizado de perceber o corpo estabelece uma relação direta
entre deficiência física e monstruosidade, como um predicativo que hierarquiza o corpo
e faz coincidir sujeito, patologia e desvio. O estigma organiza os corpos segundo uma
falta e em comparação a uma noção de sujeito plenamente reconhecível.
Os monstros, no entanto, subvertem essa equação que considera o estigma parte
dos critérios de reconhecimento coletivo. A comunidade é organizada segundo regras
próprias, a partir de pontos de filiação em que a ideia de diferença é multiplicada, em
lugar de ser reduzida a um fator comum. A identificação e o estar junto não se dá por uma
semelhança especular ou mimética, ou pela identificação com um modelo corpóreo
comum, mas sim a partir de pontos de intersecção entre alteridades. Os elementos
normativos de uma identidade não fazem parte do esquema de reconhecimento. As
relações se dão por alianças e de modo descentrado. Os corpos não se repetem em origem
e destino: o “tronco humano” pode ter sido vítima de um acidente e não de uma má
formação de nascença, como o caso das irmãs siamesas, mostradas como jovens belas e
disputadas pelo desejo masculino. Ainda assim, eles fazem parte da mesma comunidade.
Os modos de operar o desejo e os usos pessoais do corpo, notadamente em termos
de sexualidade e de distribuição do poder, promovem práticas que carecem de um
vocabulário específico para defini-las. Do mesmo modo, o termo “monstro” aparece
como um estatuto linguístico que agrupa sujeitos diversos entre si e que são
85
19
Esse tipo de atração é nomeada por Courtine (2011) como “entra e sai”, derivada do francês entre sorts.
O termo diz respeito à forma do espetáculo, em que o espectador entra em uma tenda, se depara com o
fenômeno e deixa o espaço. O historiador investigou a proliferação dos entre sorts, sideshows ou freak
shows, sobretudo no contexto francês, inglês e norte-americano.
88
20
É importante esse recorte de um pensamento francês de herança positivista, comentado por autores
modernos como Canguilhem, Foucault e Courtine, uma vez que a eugenia nazista, também discutida por
Courtine (2011), realizou experiências cruéis com anões em Auschwitz. Os zoológicos humanos, a
antropologia neomalthuziana, as políticas higienistas em relação à miscigenação, castração química para
homossexuais e leis que tentavam esterilizar “disgênicos” também aconteciam sob a égide de um
pensamento científico. A empatia e a promoção de uma “ciências dos monstros” estavam mais relacionadas
a um aprimoramento do humano do que propriamente a uma política de inclusão. Contudo, Courtine parece
ver essa mudança no pensamento francês com certo otimismo que humaniza/naturaliza os monstros.
91
Diferente de outros filmes da mesma década, que seriam refilmados diversas vezes
e fariam parte do imaginário popular, Freaks não teve outras filmagens21. A experiência
de trazer corpos monstruosos reais para o cinema reflete uma tensão entre a
monstruosidade (signo) e o monstro (vivente). Fora do domínio do body horror, destaco
algumas obras que parecem reativar, em certa medida, a relação entre monstruosidade
corporal, doença e senso de comunidade: Os Anões Também Começaram Pequenos
(Werner Herzog, 1970), O Homem-Elefante (David Lynch, 1980), Mask (Peter
Bogdanovich, 1985), Wonder (2017, Stephen Chbosky), Crip Camp (James Lebrecht e
Nicole Newnham, 2020), para citar apenas alguns.
21
A série de horror norte-americana American Horror Story dedicou a quarta temporada aos freak shows.
Os personagens são inspirados nos artistas de Freaks, e, além do enredo próprio ao da série, relações
cotidianas e pessoais também são exploradas. A temporada foi ao ar entre 2014 e 2015.
92
apreensão (BUTLER, 2019c, p.22). O monstro não corresponde, por exemplo, à vida nua
agambeniana. Ele não está fora dos domínios da pólis. Pelo contrário, o monstro é alvo
constante de dispositivos de captura, notadamente a ciência e o saber jurídico. O
enquadramento não é, contudo, um ato fundador onipotente. Como dispositivo
biopolítico, ele tem falhas constitutivas, há sempre algo que ultrapassa a moldura e que
turva nossa compreensão das coisas (BUTLER, 2019c).
Mesmo quando a vida e a morte acontecem entre, fora ou através dos
enquadramentos por meio dos quais são, em sua maior parte, organizadas, elas
ainda acontecem, embora de maneiras que colocam em dúvida a necessidade dos
mecanismos por meio dos quais os campos ontológicos são constituídos. Se uma
vida é produzida de acordo com as normas pelas quais a vida é reconhecida, isso
não significa nem que tudo que concerne uma vida seja produzido de acordo com
essas normas nem que devamos rejeitar a ideia de que há um resto de “vida”
— suspenso e espectral — que ilustra e perturba cada instância normativa da
vida (BUTLER, 2019c, p.22. Grifo meu).
22
De acordo com a biografia da artista que interpreta Josephine-Joseph, que é referida no feminino, ela se
declarava intersexual, ou hermafrodita, no vocabulário da época.
94
Hércules ri ruidosamente em escárnio. A trapezista segura a taça com firmeza e com uma
expressão de fúria. Angeleno está de frente para ela. Atrás dele, todos os monstros da
festa observam a cena com expectativa. Cleópatra grita: “You dirty slimy freaks! Freaks!
Freaks!” (Seus monstros nojentos e sujos! Monstros! Monstros!) e joga o conteúdo da
taça no rosto do anão à sua frente. Furiosa, a mulher expulsa todos os convidados, amigos
de Hans, que deixam a festa com expressões tristes e visivelmente decepcionados com a
recusa violenta da mulher em tomar parte no ritual.
O ato injurioso de Cleópatra pode ser entendido como uma cena de interpelação,
conforme discutido por Butler (2019a; 2020; 2021). A interpelação age como um modo
reiterado de uma ofensa, que tem poder de materializar o sujeito no espaço social. Butler
retoma a discussão de Louis Althusser (1985) sobre o conceito. Para o autor, a
interpelação age como um chamamento do indivíduo à lei, ao mesmo tempo que
circunscreve esse indivíduo no espaço social. Para Butler, a interpelação é um ato de fala
com força inaugural, ela introduz uma realidade a partir de uma convenção linguística. O
objetivo da interpelação é “designar e estabelecer um sujeito na sujeição, produzir seus
contornos sociais no tempo e no espaço. Sua operação reiterativa tem o efeito de
sedimentar seu posicionamento ao longo do tempo” (BUTLER, 2021, p.63).
A ideia encontra interlocução no pensamento foucaultiano, no que diz respeito à
produção discursiva do sujeito. Althusser entende que a ideologia interpela os indivíduos
como sujeitos, como um ato linguístico que o convoca para a realidade social. O autor se
vale do exemplo em que um indivíduo é parado na rua pela polícia. Na leitura que Butler
faz do exemplo althusseriano, a interpelação ocorre na troca em que a relação entre sujeito
que chama e sujeito que é chamado é reconhecida e aceita. O nome interpelativo é uma
fórmula cujo conteúdo não é verdadeiro ou falso. Não se trata da descrição de uma
realidade existente, mas da criação de uma relação de reconhecimento mútuo: da voz que
enuncia a ofensa e o sujeito a quem a ofensa é direcionada.
Ainda que a filósofa concorde com Althusser (e com Foucault, em outros termos)
que o processo de formação do sujeito incorre em um assujeitamento do indivíduo diante
do poder, Butler reitera as limitações linguísticas da fórmula althusseriana. A concepção
de Althusser é limitada por uma noção de aparelho do Estado, que tem monopólio e
autoridade da palavra. Em Foucault, por outro lado, a noção de discurso surge como uma
possibilidade de pensar sua eficácia e distribuição em instâncias que não sejam a palavra
falada (BUTLER, 2020), o que não quer dizer diretamente que os atos de fala sejam
menos importantes ou não mantenham sua eficácia. É justamente a reiteração, o caráter
97
sujeitos de uma enunciação política. Ela deverá fazer parte do mundo dos monstros e não
o contrário. Ela é interpelada.
Cabe dizer que os gestos interpelativos em Freaks acentuam o modo sensível que
o monstro opera na vida comum, e não se restringem à fala ou a discursos inteligíveis. O
olhar, o ato de beberem juntos da mesma taça, o riso, as onomatopeias (Gooble Gobble!),
tudo isso compõe uma performatividade cujo sentido está sendo negociado durante o ato,
como um modo de materializar a vida dos monstros em uma comunidade. Mesmo que
interrompida, a cena tem o formato de um ritual. Os estatutos sociais dos personagens no
circo cedem espaço para os estatutos coletivos da comunidade dos monstros.
Os estatutos referentes à comunidade são acionados novamente na cena final do
filme, e reitera a ideia de filiação a partir de laços de afeto e de uma ética própria. O
momento em que o grupo organiza-se para vingar Hans, que está sendo envenenado por
Cleópatra e Hércules, demonstra essa ambiguidade, em que os personagens extrapolam a
relação agressor-vítima. Trata-se do evento que dá desfecho ao filme, como uma resposta
aos fatos do casamento de Hans com Cleópatra. Os acontecimentos do filme se passam
em um período de tempo curto, o que parece ser poucos dias. Na cena, o circo está
desmontado e em viagem para outra cidade. Os trailers e containers em que moram os
artistas são carregados por carruagens em uma noite chuvosa. Essa é uma das poucas
cenas em que o espaço externo é mostrado, já que o circo está em trânsito.
Enquanto vários dos monstros deixam seus trailers em direção ao de Cleópatra,
arrastando-se na lama, entre os pneus das carruagens, Hércules vai ao trailer de Vênus,
em uma tentativa de silenciá-la e é interceptado por Phroso. Com a luta corporal, as
carruagens tombam em uma paisagem indistinta, como se transitassem por uma floresta
e não por uma estrada (figura 08). A imagem é escura e a paisagem é iluminada pelos
relâmpagos que tomam a cena. A floresta endossa o caráter de transição que impera em
todo o filme, como um espaço de passagem, de contornos indefinidos e que surge nas
narrativas como zonas iniciáticas. De fato, a vingança dos monstros consiste em deformar
o corpo de Cleópatra, o que acentua o caráter iniciático da cena23, em que ela será
transformada em monstro.
23
Assim como o labirinto analisado no capítulo anterior, a floresta pode ser entendida como um espaço
fronteiriço (LOTMAN, 2000), como espaço iniciático (MONDZAIN, 2010) ou ainda como uma
cosmologia errante (CAVALCANTE, 2020). Sobre a paisagem no cinema, ver Lefebvre (2006). Sobre a
relação entre natureza e paisagem, ver Muguiro (2017).
100
Cleópatra salta do seu trailer, perseguida pelos monstros que saem de baixo das
carruagens. A mulher grita por socorro. Não se sabe se ela não é ouvida por conta do
barulho da chuva, ou porque os colegas do circo não se importam em salvar sua vida. Ou
ainda porque ninguém quer interferir no código de ética dos monstros. De todo modo, ela
corre para dentro da floresta (figura 08), distanciando-se rapidamente do espaço por onde
os trailers passaram e é seguida pelos monstros. Na escuridão, é possível ver Hans no
grupo, vestido de branco, deslocando-se velozmente para alcançar a esposa. A cena da
sua transformação não é mostrada, apenas seu corpo, já deformado, é exibido no epílogo
do filme. A cena do museu de atrações é retomada e o monstro é revelado ao público.
101
conta que o estabelecimento era da avó, que passou para a mãe e agora cabe a ela tomar
conta do espaço.
O enredo do filme se concentra nas relações estabelecidas dentro do bar. Os
ambientes externos, a rua ou o bairro onde o bar está situado jamais são mostrados. Nas
poucas vezes em que é evocado, o espaço externo ao bar é descrito como violento e hostil.
A história começa com a entrada inesperada de Jarbas, o Marinheiro (Demick Lopes), no
bar. Um forasteiro, vindo do mar, que logo trava um relacionamento amoroso com
Deusimar (não penso que a homofonia entre mar e Deusimar seja gratuita na obra). A
chegada de Jarbas traz um elemento novo para a ambiência decadente do espaço. Logo,
ele se integra à rotina do estabelecimento e à presença dos funcionários e clientes.
Um dia, um representante de uma empresa que presta serviços ao Estado chega
no bar com uma oferta de compra do Inferninho. A empresa é responsável por processos
de remoção. O bar deverá ceder espaço para o estacionamento de um empreendimento
estatal, um centro de entretenimento virtual, o Devirtuário24. A proposta traz conflito
entre Deusimar, Jarbas e os funcionários do bar. Deusimar cresceu ali, mas sente-se presa
e ressentida pela falta de liberdade e por nunca ter conhecido outra realidade que não
aquela. Os outros parecem contrafeitos com a proposta de venda e desaparecimento de
um espaço que amam e com o qual se identificam.
O conflito é acompanhado pelos eventos do passado de Jarbas, que deve dinheiro
a um grupo de marinheiros-criminosos que aparecem no bar com agressividade. Diante
dos eventos violentos, Jarbas desaparece do bar. Com a perda, Deusimar opta por vender
o estabelecimento, repartir o dinheiro entre os funcionários e cometer suicídio. O ato é
interrompido por um dos funcionários que convence a mulher a viajar pelo mundo com o
dinheiro da venda do Inferninho. Ao retornar da viagem, no final do filme, Deusimar
encontra o bar em funcionamento, do mesmo modo como o encontramos no começo do
filme. Atrás do balcão, no entanto, está Jarbas, em uma sugestão de retorno e repetição
da história, em que é possível recomeçar a narrativa no mesmo espaço.
24
O nome do empreendimento possivelmente remete à construção de um aquário temático na orla de
Fortaleza. A construção da obra gerou debates sobre a remoção da comunidade que habita essa área do
litoral da cidade. A obra foi iniciada e logo interrompida. Atualmente, no espaço há uma grande ruína
murada do que deveria ser o alicerce da obra.
103
Coelho (Rafael Martins) pode ser descrito como um homem cisgênero adulto vestindo
uma fantasia de coelho. A fantasia pode remeter a certa indumentária sexual ou
fetichizada. Contudo, como veremos, termos como “vestir” e “fantasia” perdem força de
explicação nas relações estabelecidas no filme.
O bar é frequentado por um grupo bastante díspar de clientes, que aparentam ser
sempre os mesmos e em número reduzido: um homem com o corpo completamente
pintado de tinta prateada; um Mickey Mouse que bebe cerveja por uma abertura na
fantasia abarrotada; uma travesti de cabelos longos e um bigode fino sobre os lábios, que
ostenta uma pequena coroa sobre a cabeça e braceletes semelhantes aos da Mulher
Maravilha; um Wolverine aparentemente cansado ou alcoolizado. Ainda que estejam em
um bar, as figuras são sempre mostradas em uma atmosfera de monotonia ou tédio, em
silêncio. O espectador não tem certeza se eles estão absortos ou indiferentes à musica
performada pela cantora Luizianne (Samya de Lavor). A artista canta acompanhada por
um tecladista que parece um compositor de música clássica do século XVIII. Durante a
música, ela é observada pelo olhar apaixonado de Caixa-Preta (Tatiana Amorim), que se
divide nas funções de segurança e zeladora do bar.
Com essa apresentação, quero apontar, inicialmente, que os temas externos à
trama, como gentrificação, identidade de gênero, questões de classe, não tomam a
dianteira no desenvolvimento do filme. Estes temas estão presentes na obra, mas de modo
latente e são evocados a partir de uma violência institucional que vem de fora do bar. O
elemento antagônico, cabe lembrar, é inserido na narrativa com a entrada do funcionário
de uma empresa que realiza remoções para o Estado.
As questões políticas e afetivas confundem-se na relação entre corpo e espaço. No
filme, a vida política diz respeito a como as pessoalidades dissidentes que habitam aquele
espaço imaginam modos de estar juntos e de produzir mundo e comunidade, à revelia de
uma violência institucional que invariavelmente é relacionada ao que está fora. A trama
explora uma geografia afetiva, em que a materialidade do espaço fílmico é continuamente
acionada na relação com os personagens. Inferninho “lida com questões afetivas sobre o
vínculo com o lugar — uma espécie de topofilia —, e ao mesmo tempo com o desejo
utópico de imaginar outros mundos, de sair do espaço já conhecido” (PRYSTHON;
CASTANHA; ASSUNÇÃO, 2019, p.18).
Os corpos dos personagens geram um estranhamento em relação ao espaço do bar.
Enquanto este é cinza, escuro, encardido, os indivíduos mostram-se em trajes brilhantes,
coloridos, festivos, excessivos. Além disso, o uso de fantasias, de roupas e adereços que
105
remetem a outras figuras, impede uma definição precisa de quem são aquelas pessoas.
Sabemos que o Coelho não é um coelho, a fantasia não emula o corpo de um coelho ou
direciona o personagem a uma animalidade. Tampouco podemos afirmar que ele apenas
veste-se de coelho. Junto aos outros personagens, o Coelho coloca uma dúvida que
permeia todo o filme. Ou os personagens não estão fantasiados ou a fantasia é parte
integrante de quem eles são.
As identidades em Inferninho, quero sugerir, são negociadas a partir da
ininteligibilidade e da impossibilidade de aderir significados sociais estáveis. O excesso
e o artifício direcionam os sujeitos à imprevisibilidade e à metamorfose. Não
corresponder a uma identidade prévia e fixa tampouco é um problema no local. Deusimar
e os funcionários do bar compõem um tipo de comunidade que inclui, lateralmente, os
frequentadores e que é caracterizada como uma família. As relações não são harmônicas,
mas são estabelecidas por um tipo de filiação complexa semelhante ao que ocorre em
Freaks. Há um reconhecimento recíproco da precariedade e da vulnerabilidade que
aproxima os sujeitos. O bar torna-se, então, um tipo de refúgio, espaço seguro em que
relações são fabricadas não pelo reconhecimento identitário da semelhança, mas pela
multiplicação de pontos de diferença e de existências artificias.
O vínculo com o espaço, sentimento que é comum a todos os personagens, produz
um tipo de zona fronteiriça marcada pelo artifício. Essa zona possibilita a criação de um
mundo próprio, sugere a possibilidade de formas outras de estar junto e mantém, mesmo
que de modo precário, os sujeitos protegidos. O bar apresenta-se como um espaço fora
do espaço, um deslocamento na composição regular de uma cidade. A posição geográfica
do bar é incerta e pode fazer referência aos bares do Centro de Fortaleza, que funcionam
nos momentos em que o comércio está fechado e o bairro é uma zona inabitada. Por outro
lado, nada impede de pensar Inferninho como uma trama futurista, que mostra um refúgio
para os sobreviventes de um cenário pós-apocalíptico. Importa pouco saber o contexto
em que o bar está inserido, ainda que seja evidente uma crítica ao progresso, ao tempo
disciplinar das sociedades modernas e a expansão urbana predatória.
Por ora, descarto a hipótese de que a fantasia pode ser uma válvula de escape de
uma essência, como a corporificação de um eu interior verdadeiro. O modo como os
sujeitos são apresentados invalida classificações binárias como verdadeiro/falso e
essência/aparência. A ininteligibilidade dos personagens remete a termos como variação,
artifício e fracasso. Nesse sentido, quero apontar que não é a transgeneridade de Deusimar
que a torna parte da coleção de monstros de que essa tese se ocupa. É a ininteligibilidade,
106
apenas uma porta aparente. Não há rotas de fuga possíveis, o próprio espaço circunscrito
do bar é a linha de fuga desenhada por aquele conjunto de personagens. Os frequentadores
chegam de algum lugar e encontram ali uma temporalidade arrastada, melancólica, uma
zona invisível, que os separa do espaço externo de onde vieram e que, porventura, deverão
regressar. Nesse espaço, os corpos mostram-se a partir do artifício. Os clientes não
despem as máscaras de Homem-Aranha ou as garras de Wolverine para sentar à mesa. O
estar junto nesse bar implica uma ocupação por corpos fantasiados e imaginados.
Essa performatividade inquieta o olhar. O corpo imaginado e artificial dos
personagens não performam uma orgia ou um carnaval perpétuo, como as formas do
grotesco bakhtiniano (BAKHTIN, 2010). Contudo, na atmosfera de melancolia e de
monotonia, os personagens são capazes de felicidade e de prazer. A carnavalização, nesse
sentido, aponta para esses sujeitos monstruosos que expressam uma imagem artificial.
Essa relação entre corpo e artifício, entre identidade e fantasia, impede a identificação e
assimilação desses sujeitos em categorias conhecidas. O que são e quem são essas
pessoas, é uma pergunta que o filme não responde.
Em Freaks, os personagens estão em uma encruzilhada de saberes, é a saturação
de explicações que tenta encapsular os monstros em uma rede de poder. Inferninho
investe em um movimento oposto. Todas as formas normativas de saber falham em
nominar os personagens. Isso implica, na trama, em uma aparição do sujeito fora dos
dispositivos de interpelação. Na cena em que o funcionário do governo chega para
comprar o bar ele busca por um senhor chamado Denilson. Trata-se do nome designado
a Deusimar no nascimento, o termo que o Estado atribui a ela. A mulher responde à
interpelação: “O bar é meu e eu me chamo Deusimar”.
A resposta de Deusimar faz da interpelação um gesto vazio, que não encontra um
alvo a ser direcionado. Deusimar não é convocada à lei e invalida o termo que o Estado a
nomeia. Ao anunciar o próprio nome em voz alta, ela apresenta um sujeito que está ali,
cuja materialidade é inegável. Um corpo que é capaz de ser reconhecido, mas à revelia
dos termos que o reconhecimento propõe. A legibilidade por parte da norma/Estado cobra
seu preço e não reconhece a vida fora dessa condição. Ter legibilidade social nos termos
em que são garantidos pelo Estado tem um custo: “é aceitar os termos de legitimação
oferecidos e descobrir que o senso público e reconhecível da pessoalidade é
fundamentalmente dependente do léxico dessa legitimação” (BUTLER, 2002, 226).
A partir de Butler podemos entender o reconhecimento não como um ato
fundador, mas como um conjunto de práticas e ritos repetidos no tempo, que garantem
109
Talvez o mais óbvio é que o fracasso permite-nos escapar às formas punitivas que
disciplinam o comportamento e administram o desenvolvimento humano com o
objetivo de nos resgatar de uma infância indisciplinada, conduzindo-nos a uma fase
adulta controlada e previsível. O fracasso preserva um pouco da extraordinária
anarquia da infância e perturba os limites supostamente imaculados entre adultos e
crianças, ganhadores e perdedores (HALBERSTAM, 2020, p.21).
112
O autor irá recuperar a relação entre infância e anarquia das formas em outro
trabalho (HALBERSTAM, 2020a). Interessa aqui pensar em certa rota de fuga da ideia
rígida de maturação do corpo, compreendida como uma forma acabada, completa,
discernível e legível. O sujeito é interpelado constantemente a retornar à lei, a performar
modos de ser inteligíveis e codificados conforme expectativas coletivas. Ter ou não êxito
diante dessas expectativas garante espaços diferenciados ao sujeito dentro de uma
sociedade, como a adequação às demandas de papeis sociais de gênero. O fracasso, ainda
que punido e associado a sentimentos negativos como decepção ou desilusão, proporciona
possibilidades de enfrentar a lógica disciplinar do progresso. O fracasso interrompe a
produção do sujeito em formas reprodutivas (no sentido parental e material). O fracasso
do monstro em ser inteligível não é apenas uma forma de subverter o silogismo político
que demanda sujeitos codificados e reconhecíveis, mas também é um modo de
experimentar outras formas de existência.
Fracasso é um termo cujo sentido é facilmente associado a um contexto capitalista,
em que o sucesso pessoal está atrelado à reprodução dos códigos e estruturas do capital.
As formas familiares heteronormativas bem como os critérios de reconhecimento do
sujeito dentro dessas formas, são parte de um modelo de sujeito adequado ao humanismo
burguês. Halberstam (2020) retoma essa assertiva na discussão sobre o fracasso, e dialoga
com Benjamin, sobretudo em sua crítica à ideia de progresso. Cabe lembrar que o conflito
estrutural de Inferninho é a possibilidade de demolição para dar lugar ao estacionamento
de um centro de entretenimento futurista. O espaço decadente do bar coloca-se como uma
peça que atrapalha o andamento de uma obra em que capital e futuro caminham juntas. O
fracasso interrompe a reprodução das formas normativas do sucesso, ou do futurismo
reprodutivo de que fala Edelman (2004; 2021), e conecta-se com outros modos de pensar
o tempo, a história e a transmissão de informações.
A imagem que Benjamin (2012) utiliza para descrever o progresso é a de uma
tempestade que impele o anjo da história para o futuro, enquanto um amontoado de ruínas
cresce até o céu. Para ele, a “ideia de um progresso da humanidade na história é
inseparável da ideia de seu andamento no interior de um tempo vazio e homogêneo”
(BENJAMIN, 2012, p.249). Essa temporalidade vazia, em consonância com a ideia de
um tempo linear e produtivo do sucesso e do progresso, entra em atrito com a
insuficiência do fracasso. O fracassado corre em outra velocidade, desvia a rota, esquece
o caminho, chega em último lugar, anda em círculos. Considerar o fracasso como um
modo de habitar o mundo implica, também, pensar em outras temporalidades possíveis.
113
outra forma de pertencer àquele espaço. Deusimar retorna ao bar e é atendida pelo Coelho,
que demonstra não lembrar da mulher, e é convidada a entrar, a tomar parte daquele
mundo, a compor a coleção artificial e dessemelhante de frequentadores do Inferninho.
Adotar o esquecimento pode ser um modo de perturbar a ordem da transmissão edipiana
(HALBERSTAM, 2020)25.
Desconectar o processo geracional da força do processo histórico é um projeto do
tipo queer: vidas queer buscam desatrelar mudança de formas supostamente
imutáveis e orgânicas de família e herança; vidas queer exploram algum potencial
para diferença na forma que permanecem adormecida na coletividade queer, não
como atributo essencial da alteridade sexual, mas como possibilidade embutida na
dissociação de narrativas de vidas heterossexuais (HALBERSTAM, 2020. p. 109).
25
Em outro trabalho (HALBERSTAM, 2018), o autor analisa a transmissão geracional no que toca pessoas
transgênero.
115
Em uma das cenas iniciais de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra,
2017), Ana (Marjorie Estiano), a patroa branca e grávida, é observada pela empregada
Clara (Izabél Zuaa), uma mulher negra recém contratada. As duas mulheres são jovens e
aparentam ter idades aproximadas, algo em torno de 28 ou 30 anos. A cena apresenta o
assoalho no qual se movem as duas personagens, em uma relação patroa-empregada cuja
assimetria é acentuada nos momentos iniciais do longa-metragem, antes que estas
fronteiras sejam atravessadas no desenrolar da narrativa.
Clara mantém-se em pé e observa a patroa. Ana senta-se sozinha na grande mesa
de jantar, na sala de um apartamento espaçoso e luxuoso. O momento denota certa tensão,
como se o jantar preparado por Clara estivesse sendo avaliado pela patroa. A cena faz
lembrar o quadro Um Jantar Brasileiro (1827), de Jean-Baptiste Debret (Figura 12), em
que vemos um casal branco disposto em uma mesa de jantar, rodeado por cinco pessoas
negras escravizadas, entre as quais estão duas crianças despidas. Uma mulher, no canto
esquerdo da mesa, abana o casal, enquanto dois homens situam-se um pouco mais
afastados, os braços cruzados, observando a família.
A mesa de jantar destoa do fundo acinzentado da pintura, sobretudo por conta das
cores das roupas do casal e da diversidade de alimentos dispostos sobre a mesa. Trata-se
de uma crônica de costumes do Brasil colonial nos anos seguintes à chegada da família
real portuguesa, na primeira década do século XIX, pelo menos 200 anos antes dos fatos
narrados pelo filme de Rojas e Dutra. Além da disparidade de posicionamento no quadro
pintado entre os brancos fidalgos e os negros escravizados, bem como a distinção entre
as roupas e calçados, chama a atenção o uso de talheres por parte dos senhores. O hábito
117
denota as devidas distinções econômicas do período colonial, uma vez que o uso dos
utensílios era privilégio de famílias ricas. Além disso, marca a entrada de uma cultura da
corte, uma cultura dita civilizada, na maior das colônias portuguesas26.
A chegada da corte e de seu séquito adiciona um novo patamar no gradiente social
da colônia, com hábitos europeus, que aparecem na iconografia do período, em especial
na obra de Debret. A distinção não se deve apenas à posse de cinco pessoas escravizadas,
mas, e sobretudo, à ornamentação dos hábitos cultivados a partir de instrumentos
refinados, como os talheres e os modos europeus à mesa, impossíveis aos negros cativos
e à população pobre não escravizada que ocupava o solo brasileiro. Esses hábitos eram
inscritos no corpo de modo performativo, em detrimento dos modos como o corpo dos
escravizados era entendido na colônia. O refinamento, bem como o acesso à linguagem e
à corporeidade aristocrata, traçam as visíveis linhas de classe e raça, e também reforçam
um gradiente de humanidade a partir de uma equação que inclui termos como civilizados
e incivilizados, espaço e técnicas corporais.
26
Cf. Schwarcz & Starling, 2015.
118
operam. Os eventos que ocorrem nos espaços domésticos e privados são organizados a
partir uma divisão estrutural dos corpos. Não à toa, as primeiras cenas do filme dispõem
as duas personagens de modo similar ao quadro de Debret, como um ponto de partida
para as tensões ligadas ao horror e ao fantástico que ocorrem no filme.
Como veremos, a relação entre Ana e Clara, junto à aparição do monstro, abre
fissuras nessa estrutura disciplinar, como um modo de subverter a interioridade da
espacialização da norma. Para Foucault (2013; 2013a), espaços são constituídos a partir
de um conjunto de relações: o sujeito vive em espaços recortados, matizados, com zonas
claras, zonas sombrias e diferenças de nível (FOUCAULT, 2013). Para o filósofo, as
práticas cotidianas relativas ao espaço não foram totalmente dessacralizadas, como
ocorrido com a noção de tempo na modernidade. Os espaços são organizados a partir de
distinções e posicionamentos dados como naturais, alguns intocáveis. Esse modo sacro
de pensar os espaços reflete a ação do biopoder na produção de corpos e de sujeitos. Os
exemplos são frequentes na obra foucaultiana: presídios, hospitais, escolas, o quarto
conjugal. Todo um aglomerado de dispositivos que demonstram que não vivemos dentro
de um vazio, mas sim “no interior de um conjunto de relações que definem alocações
irredutíveis umas às outras, e absolutamente não passíveis de sobreposição”
(FOUCAULT, 2013a, p.115).
E, talvez, nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições
nas quais não se pode tocar, e que a instituição e a prática até agora não ousaram
atacar: oposições que admitimos como inteiramente dadas - por exemplo, entre
o espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social,
entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazeres e o espaço de
trabalho; todas elas são animadas ainda por uma surda sacralização
(FOUCAULT, 2013a, p.114).
formas de vida que não as normativas. A hipótese que quero desenvolver neste capítulo
é a de que As Boas Maneiras repensa a norma e produz práticas outras de parentesco e de
habitação no interior dos espaços de exclusão. Essas práticas imaginam modos de vida
criativos em que o monstro pode sobreviver e produzir laços de afeto, de família e de
proteção que organizam-se à revelia das estruturas do Estado. Nessa relação, na verdade,
o Estado surge como um dispositivo antagônico. A produção de relações de parentesco e
de habitação ocorrem em um processo de imaginar comunidades a partir de fissuras nos
espaços disciplinares. Interessa-se pensar a criação de heterotopias como modos de
resistência e de invenção de modos de vida.
Foucault está interessado em pensar esses espaços heterogêneos, que ele nomeia
heterotopias: “espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam
efetivamente localizáveis” (FOUCAULT, 2013a). Trata-se de espaços de reclusão, de
suspensão da ordem, como modos de lidar com as crises e os desvios. As heterotopias
funcionam em uma temporalidade específica, que destoa do tempo regular de uma
sociedade, como um tipo de hiato no espaço-tempo, em que relações outras ocorrem em
“espaços outros”, como indicado pela etimologia do termo. O autor cita instituições como
casas de repouso, prisões e clínicas psiquiátricas como exemplos de heterotopias, ainda
que estas possam variar nas sociedades. A partir da noção de heterotopia, é possível
entender o deslocamento das personagens de As Boas Maneiras pelo espaço circunscrito
do apartamento. Como dito, há uma economia de tensões em que a regularidade
disciplinar é matizada pelas fissuras produzidas pela relação entre Clara e Ana.
Paul Preciado (2010; 2012) parte das discussões de Foucault para discutir como a
arquitetura torna-se um instrumento disciplinar, sobretudo a partir das reformas urbanas
ocorridas na Europa no século XIX. A arquitetura desponta nesse processo como um
dispositivo político-sexual, que reforça a naturalização da diferença sexual e das
identidades sexuais e de gênero, sobretudo no que concerne às transformações na
intimidade27. Essas estruturas reafirmam os espaços de reprodução e circulação
heterossexual, bem como a herança arquitetônica (sacralizada, nos termos de Foucault)
de espaços destinados a homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, brancos e
negros, ricos e pobres etc. Em suma, “criando quadros de visibilidade, permitindo ou
negando acesso, distribuindo espaços, criando segmentações entre público e privado”
(PRECIADO, 2010, p. 128). Para o filósofo:
27
Cf. Giddens, 1993.
121
movem-se pela trama de modo mais soturno. Especialmente Clara, a protagonista, que é
mostrada como uma mulher lacônica, séria, e algumas vezes incomodamente silenciosa.
Como discuto a seguir, o modo como as duas personagens são dispostas na narrativa
destoa da caracterização dos espaços, como se elas não aderissem totalmente ao cenário.
O contrário, por exemplo, ocorre em Inferninho, em que o bar escuro e encardido parece
oferecer um espaço confortável em que os personagens podem aderir e confundir-se.
É possível entender o camp, neste caso, como um modo de acentuar a atmosfera
artificial do filme, como uma moldura dentro da qual os elementos insólitos se
desenvolvem. Os planos, os detalhes, a paisagem e a mise em scène são modos de
corroborar o artifício no filme. Do mesmo modo, a decoração do apartamento de Ana: a
lareira, o papel de parede azul, a cabeça de touro ornando uma parede. A atmosfera camp,
que remete ao frívolo, sublinha as relações humanas do filme, não como uma maneira de
torná-las metafóricas, mas como um modo de colocar as imagens entre aspas (SONTAG,
1964) ou sob rasura (PRYSTHON, 2015).
A caracterização dos espaços torna evidente a ação do poder e dos mecanismos
disciplinares que vigiam as relações sociais no filme, especialmente na primeira metade
do longa, que ocorre quase inteiramente dentro do apartamento. As fronteiras são bem
demarcadas e há constante menções à herança escravista brasileira, como o elevador de
serviço e a dependência de empregada, espaços destinados a Clara. Trata-se de ambientes
externos ao espaço comum, ainda que acoplados a eles, e que produzem invisibilidades
contíguas aos sujeitos. O artifício e o camp sublinham essa estrutura de produção de
invisibilidades a partir de sua extensa visibilidade. O excesso e o artifício, as cores, os
detalhes, todos esses “frufrus desnecessários” (PRYSTHON, 2015), intensificam a tensão
entre invisibilidade e visibilidade. Os corpos das personagens transitam nesses espaços
em constante negociação com as fronteiras e os marcadores estruturais da diferença.
123
Figura 13: Cenários de As Boas Maneiras. Em sentido horário: o apartamento de Ana, a rua e o quartinho
de Clara na periferia.
Fonte: Fotogramas de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017)
do filme endossa a expectativa dos elementos de horror. As Boas Maneiras faz referências
a elementos conhecidos do cinema de horror e de fantasia, como o conto de fadas A Bela
e a Fera e suas numerosas adaptações. A gramática tradicional do cinema de terror e
horror, no entanto, sugere um conjunto de reações possíveis aos elementos monstruosos.
Para Carrol (1999), os personagens das obras de horror induzem os modos como o
espectador deve reagir ao monstro. De modo geral, as emoções dos personagens refletem
uma moral ou um conjunto de valores que são acionados para responder emocionalmente
aos elementos monstruosos. Para o autor, as reações dos personagens humanos nas
narrativas “fornecem, pois, uma série de instruções, ou melhor, de exemplos sobre a
maneira como o público deve responder aos monstros da ficção — ou seja, sobre a
maneira como devemos reagir às suas propriedades monstruosas (CARROL, 1999, p.33).
O modo como Clara reage aos monstros não sugere antagonismo ou algo que
perturbe a noção de mundo. No universo em que o filme ocorre, monstros e qualquer
outro elemento insólito deveriam ser interpretados como algo sobrenatural e que perturba
os sentidos do mundo conhecido. A falha na ordem que o monstro causa não perturba
Clara. O medo inicial dá lugar a um tipo de filiação amorosa que é capaz de produzir
novos tipos de relações familiares. Antes de interferir na ordenação racional do mundo, a
presença do monstro é fator de maior adesão de Clara ao mundo — a um tipo de mundo
específico forjado a partir desse encontro. Trata-se da possibilidade novos arranjos nas
relações sociais dispostas na narrativa.
seu passado e de sua origem. Sabe-se que morava na periferia da cidade e alugava um
quarto dos fundos na casa de dona Amélia (Cida Moreira). O curso de técnica de
enfermagem ficou incompleto diante da necessidade de cuidar da avó falecida, único
membro da família mencionado, mostrada brevemente em um porta-retratos.
A primeira parte do filme ocorre em um passado recente, por volta do ano de 2010.
Poucos elementos, como os telefones celulares contextualizam a data. A segunda parte
salta sete anos no tempo e aparenta ocorrer no ano corrente ao que o filme foi lançado,
2017. Essa demarcação temporal é pouco determinante na narrativa, e a passagem dos
anos é explicitada pelo envelhecimento dos personagens.
A primeira metade de As Boas Maneiras acompanha os meses finais da gravidez
de Ana e o desenrolar de uma relação amorosa com Clara. A trama concentra-se nas duas
personagens e ocorre quase exclusivamente dentro do apartamento. Em uma noite, Ana
conta a Clara a história de sua gravidez. A narrativa é mostrada como um flash back em
desenhos dispostos sequencialmente, como quadros de gravuras. Ana, que era noiva,
conhece um homem desconhecido em um bar, com quem tem uma única relação sexual,
dentro do carro, em uma área de floresta afastada da cidade.
Durante a noite, Ana adormece no carro. Quando acorda vê-se sozinha, o homem
havia desaparecido. A jovem percebe um animal selvagem rondando o veículo, pronto a
atacar. Ana atira no bicho, que foge, aparentemente ferido. Ela conta que na cidade
ninguém sabia quem era o homem. Pela imagem, o espectador toma conhecimento de que
se trata de um padre. Essa noite resultou na gravidez e no posterior rompimento com o
noivo. A família também cortou contato com a jovem, após a recusa dela em interromper
a gravidez.
A relação patroa-empregada entre Ana e Clara torna-se um relacionamento
amoroso e sexual, parte maternal, parte predatório. Clara passa a ocupar distintos papéis
em relação a Ana: amante, cuidadora, mãe, empregada. Essa miríade de atribuições
espelha as relações profissionais, como vimos, pois Clara é contratada como babá e
desdobra-se em outras funções domésticas. Em parte, é possível afirmar que a relação
entre as duas reencena as relações coloniais entre senhores e mulheres escravizadas. Essa
comparação pode ser percebida na noite em que Ana ataca Clara.
Nas noites de lua cheia, Ana metamorfoseia-se em um monstro sonâmbulo ávido
por carne e sangue. O corpo da jovem não sofre mudanças nítidas, exceto pelos olhos
amarelados, semelhantes aos olhos de um lobo, e a avidez por comer carne crua. Em uma
dessas noites, ela ataca Clara, em uma cena de crescente ambiguidade entre violência e
126
o garoto com o corpo coberto de pelos, enquanto a mãe o limpa com um barbeador. A
transformação em lobisomem acaba pela manhã e a criança pode retomar às atividades
corriqueiras. A docilidade de Joel é interrompida quando fica aos cuidados de dona
Amélia e come carne pela primeira vez. O ato denota uma desobediência em relação às
orientações da mãe e o garoto come a carne com bastante voracidade. Esse evento
desperta a natureza monstruosa do menino, até então restrita aos dias de lua cheia e
controlada pelas correntes do quartinho.
Os eventos da segunda parte do filme ocorrem em uma única semana, durante os
dias em que Joel transforma-se em lobisomem. O consumo de carne torna Joel agressivo
e desperta nele o desejo de conhecer o pai, de quem ele não tem informações. Essa
vontade, insuflada pela interioridade monstruosa, leva o menino a escapar do ritual do
quartinho em duas ocasiões. Na primeira, o garoto, na companhia do melhor amigo,
Maurício, sai do bairro na periferia em direção ao centro da cidade, no intuito de encontrar
o pai. As duas crianças atravessam a cidade em direção ao shopping luxuoso em forma
de pirâmide que é mostrado no começo do filme. Joel e Maurício ficam presos dentro do
shopping e, quando anoitece, Joel transforma-se em lobisomem e mata o melhor amigo.
Figura 14: Joel acorrentado no quartinho antes da transformação e na manhã seguinte, quando a
metamorfose tem fim.
Fonte: Fotograma de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017).
No dia seguinte à morte de Maurício, Joel demonstra não lembrar o que aconteceu.
A natureza monstruosa do garoto, no entanto, continua ativa. Ele consegue trancar a mãe
no quartinho e foge de casa para participar da festa junina da escola. Na quadrilha, estão
os colegas do colégio, as famílias e os professores, todos vestindo as fantasias juninas. O
desejo de Joel é dançar com Amanda, uma colega de turma com quem ele performa um
tipo de namoro infantil. Durante a dança, quando anoitece, a criança começa a
transformação em lobisomem — a camisa xadrez rasgando conforme o braço peludo e as
garras de lobo despontam sob o tecido. Joel fere a mão de Amanda com suas garras e
128
prepara-se para atacar a menina. O ato é interrompido por Clara, que consegue escapar
do quartinho. A mãe do garoto chega na festa e atira no filho-lobisomem e impede que o
que ocorreu com Maurício se repita com Amanda.
A transformação pública de Joel em lobisomem dispara uma reação da pequena
sociedade ali reunida. O grupo que estava na festa organiza-se rapidamente em uma
multidão disposta a capturar ou destruir o monstro que atacou Amanda. Clara consegue
pegar o filho-lobisomem ferido e levá-lo para casa, na tentativa de protegê-lo da multidão
violenta. Retornarei a essa cena no tópico final desse capítulo, onde discutirei a força
purgatória do linchamento em relação ao monstro. Por ora, gostaria de me deter em alguns
aspectos da relação parental de Clara e Joel, notadamente a partir de alguns signos que
circulam no filme que conectam os dois personagens.
O filme desenha um paralelo entre as paisagens artificiais e as relações entre os
três personagens centrais na obra — Clara, Ana e Joel. Como dito, o artifício e o excesso
tornam nítidos os contornos dos espaços biopolíticos e os marcadores espaciais da
diferença. Ao mesmo tempo, há a possibilidade de fissuras e linhas de fuga na imaginação
e produção de filiações entre os sujeitos. Quero argumentar que, ao criar espaços de
opressão esteticamente excessivos, que remetem ao camp, o filme chama a atenção para
a artificialidade e arbitrariedade desses marcadores da diferença. A saturação das cores,
que faz os cenários terem um aspecto onírico e fantasioso, abre espaço para uma
desnaturalização e um estranhamento da norma. A contraparte disso são as relações
vivenciadas por Clara, codificadas duplamente como fora da norma social
(relacionamento homossexual entre duas mulheres de raça e classe distintas) e fora das
leis da natureza (ser mãe de um lobisomem).
A transgressão que essas relações fomentam não anulam a norma e não fazem
parte de um projeto bem elaborado de revolução. Outros personagens monstruosos, por
exemplo, agem de modo transgressor a partir de um projeto ou desejo de destituir ou de
se apropriar de determinado status quo, como o caso de Drácula, no romance de Stoker.
Creio ser importante considerar que a relação entre Clara, Ana e Joel não tenha esse
caráter conscientemente reativo à norma. A filiação entre eles é possível por certa
estrutura que aproxima os três sujeitos. Não se trata de uma vingança ou de um levante,
mas sim da invenção de filiações guiadas pela vontade de estar vivo e de produzir laços
de afeto, seja amor, desejo sexual, cuidado, ou até mesmo violência e luta por liberdade.
A maternidade de Clara é produzida a partir de uma filiação que contraria normas
culturais e normas da natureza. Joel é fruto de um conjunto de transgressões que o
129
precedem, tanto da parte do pai, um padre, quanto de Ana. O menino mata a mãe biológica
ao nascer. O ato encena uma versão diferente das mitologias edipianizadas em que o filho
mata o pai e assume seu lugar. Ao matar a mãe, Joel torna-se um vivente precário e
vulnerável. O pequeno lobisomem é mostrado após o parto como um filhote qualquer,
sujo de sangue, enrolado no cordão umbilical, faminto e desprotegido (Figura 15).
cheia passasse. A personagem amamenta o monstro, ainda que não seja sua mãe
biológica. Clara o aconchega em seu seio e a pequena criatura trava os dentes na carne da
mulher e sorve calmamente o sangue de seu corpo. O gesto de Clara torna viável a vida
do monstro, ao mesmo tempo que demonstra que toda vida só persiste em uma rede de
proteção e cuidado. A noção de precariedade em Butler sugere que a prevalência dos
viventes é condicionada por uma interdependência em relação a outros corpos e às
estruturas materiais e sociais disponíveis (BUTLER, 2021). Para a autora, “o
entendimento relacional da vulnerabilidade mostra que não somos completamente
separáveis do que torna nossa vida possível ou impossível” (BUTLER, 2021, p.50).
Quando a estrutura social de que dependemos falha, o vivente é exposto a uma
condição precária e vulnerável. A precariedade parece ser, em Butler, uma condição
comum a todos os sujeitos — todos os corpos que nascem são entregues ao cuidado de
alguém e nenhum corpo pode sustentar-se por si mesmo (BUTLER, 2021). O que Butler
insiste em diversas obras é que a distribuição desigual de precariedade e do direito ao luto
permite que algumas vidas sejam mais viáveis e mais vivíveis que outras. Os sujeitos
emergem em um processo ininterrupto de individuação e este processo não opera em
bases comuns ou paritárias para todos os indivíduos.
Clara e Joel são sujeitos a quem as estruturas sociais não garantem completamente
a manutenção da vida. A adoção do monstro pode ser entendida como esse gesto em que
um corpo recém-nascido é entregue a outro para poder perdurar. Contudo, as condições
em que essa entrega ocorre escapam ao formato conhecido da socialização dos sujeitos,
e escapa, sobretudo, ao modelo normativo de família e de parentesco. Joel não é entregue
aos cuidados de Clara como um indivíduo que nasce dentro de uma estrutura social apta
a reconhecê-lo como sujeito. Tampouco as funções paternas e maternas estão bem
delimitadas e distribuídas entre outros sujeitos. Clara pode ser lida como uma vida
precária — os marcadores de raça, classe, gênero e sexualidade intensificam a
vulnerabilidade social da personagem. Joel é recebido por Clara como um proscrito.
Os processos de sobrevivência e de parentesco são desenvolvidos de modo
paralelo pelos dois. Para ser reconhecido como um sujeito social válido e passível de
acolhimento, Joel deve cumprir o ritual do quartinho. Do mesmo modo, Clara torna-se
uma vizinha reconhecida no bairro, trabalhando na farmácia, prestativa aos moradores. E
nesse sentido a sobrevivência de Clara é parte dessa equação. Ser mãe de um monstro,
sobretudo para um sujeito estigmatizado e vulnerável socialmente, torna Clara tão
131
conceito de parentesco que vai em uma direção distinta ao modo como o pensamento
estrutural o define:
Entendido como um conjunto socialmente alterável de arranjos, desprovido de
características estruturais culturalmente transversais que poderiam ser
totalmente extraídas de suas operações sociais, o parentesco designa qualquer
quantidade de arranjos sociais que organiza a reprodução da vida material, que
podem incluir a ritualização do nascimento e morte, que proporcionam laços de
alianças íntimas estáveis e, ao mesmo tempo, frágeis, e regulam a sexualidade
por meio de sanções e tabus (BUTLER, 2022, p.125)
em que vive e devora violentamente um gato de rua. O regime e as ordens médicas entram
em conflito com os desejos do monstro e coloca Ana em risco. Como um modo de cuidado
e de afeto, Clara mistura o próprio sangue às refeições de Ana.
O gesto, em grande medida sacrificial, pode ser entendido como análogo ao
quartinho, como uma engenhosidade de restrição da monstruosidade ao espaço
doméstico. Ao mesmo tempo, oferecer o próprio sangue denota uma complexa metáfora
do trauma e da exploração racial brasileira. A miscigenação e a escravidão são acionados
como imagens que estão na medula da relação entre Ana e Clara. O sangue de uma mulher
negra e um quartinho que remete às senzalas são torcidos como estratégias de manutenção
da vida, ao mesmo tempo que os elementos históricos de dor e trauma permanecem. Ana
alimenta-se do sangue de Clara, que também, ao amamentar Joel, nutre o menino com o
sangue de seu peito.
Há uma cadeia de circulação do sangue de Clara entre Ana e Joel que coloca um
signo de predação — alimentar-se de sangue — como um modo de filiação e de
parentesco. Halberstam (1995) examina esse tipo de relação a partir das múltiplas
transfusões de sangue que ocorrem no romance Drácula. Na obra de Stoker, as
personagens Lucy e Mina são atacadas pelo vampiro, que suga-lhes o sangue. Para conter
os danos, as duas recebem sucessivas transfusões dos cinco personagens masculinos da
trama. O sangue atravessa a sexualidade do vampiro como um substituto histórico para
outros fluidos, como leite ou sémen. No caso do romance, a aproximação entre uma
sexualidade perversa e sangue ruim é bastante evidente (HALBERSTAM, 1995).
A trilha do sangue de Drácula no corpo das duas únicas personagens femininas,
Lucy e Mina, em um universo marcadamente masculino, pode ser mapeada pelas
transfusões das quais o vampiro é o vetor. Drácula alimenta-se do sangue de Lucy, que
recebe transfusões de quatro outros personagens. O mesmo processo de transfusões
ocorre com Mina. Esta alimenta-se de Drácula e, no final do romance, tem um filho, cujo
sangue é visto por Halberstam como um modo de paternidade por implicação que inclui
o sangue dos que doaram o fluido para as duas mulheres. As transfusões podem ser
entendidas como um modo de proteger o corpo das vítimas da contaminação do vampiro,
simultaneamente monstro e estrangeiro. Ao final do romance, após a morte do vampiro,
o filho de Mina é batizado com o nome de todos os personagens homens da trama, pais
simbólicos e, em grande medida, sanguíneos da criança.
De modo semelhante, As Boas Maneiras evoca um tipo de maternidade deslocada
a partir da figura heterogênea de Clara, cujo sangue circula nas veias de Ana e de Joel.
134
Ao mesmo tempo, a trama recupera uma herança histórica das amas de leite escravizadas,
que amamentaram os filhos das mulheres brancas sem poder criar os seus próprios
(KILOMBA, 2019). A heterogeneidade da relação reforça o estatuto de filiação com o
monstro, com alteridades e com modos de vida precários e dissidentes, como um modo
de realização de famílias não edipianizadas.
As Boas Maneiras faz o sangue circular em direção oposta ao que ocorre em
Drácula, em que o filho de Mina é herdeiro do sangue de muitos pais. Para Halberstam,
no universo vitoriano e nacionalista do romance, essa é uma alternativa à possibilidade
de muitas mães. Trata-se da criação de um sistema simbólico que centraliza a
possibilidade reprodutiva no homem (HALBERSTAM, 1995). O sangue de Clara torna
Joel filho de duas mães e de pai nenhum, cuja evocação no filme é um dispositivo de
perigo que leva à morte do menino-lobisomem.
O consumo de carne, e por consequência, de sangue, mostra-se como uma
sequência gradual de abandono da humanidade contida por hábitos civilizados, sobretudo
à mesa, em direção à animalidade monstruosa. Há uma disposição de cenas na primeira
parte do filme em que Ana toma sopa com talheres, come uma macarronada, temperada
pelo sangue de Clara, com as mãos e devora um gato na rua. Os momentos vividos por
ela são repetidos e sequencializados por Joel na ocasião em que come carne, como vemos
na imagem a seguir, em que os talheres são substituídos pelas mãos e por uma devoração
animalesca (figura 16). Cabe notar que Clara não participa das cenas de refeição, apenas
como observadora, o que pode ser entendido, se voltarmos ao quadro de Debret, como
um distintivo de exclusão racializado. As boas maneiras para ela são da ordem da
invisibilidade, do esconderijo, dos quartinhos.
135
codificados como mais próximos da natureza do que da cultura, não teriam acompanhado
a escala de tempo do tornar-se sapiens.
O monstro coloca o corpo e a forma humanas em variação. Criaturas como os
vampiros, por exemplo, são costumeiramente associadas a animais e oferecem o risco de
transformar sujeitos em monstros. A partir do sangue, um vampiro pode converter um
humano em um semelhante. Trata-se de uma ameaça externa. O lobisomem, por outro
lado, representa um risco da intimidade do sujeito. A natureza selvagem do homem pode
ser desperta, geralmente a partir de uma transgressão. O lobisomem situa o sujeito sob o
risco constante da metamorfose.
É contumaz a natureza dessa metamorfose na ficção moderna. A Metamorfose, de
Franz Kafka, romance publicado em 1915, é, possivelmente, o exemplo mais conhecido
e o mais abrupto da transformação do sujeito comum em um animal. A transformação de
Gregor Samsa em um monstruoso inseto ocorre no espaço privado e doméstico,
irrompendo na intimidade de uma família burguesa. A metamorfose do homem em
animal, no romance de Kafka, aparece como um processo irreversível de rebaixamento e
opressão do homem comum, de qualidades ordinárias e utilitárias, diante da engrenagem
coercitiva do capitalismo moderno.
Gregor Samsa, quero sugerir, aparece no começo do século XX como um tipo de
monstro fundante de um tempo. Como comparação, podemos pensar em Frankenstein,
publicado um século antes, como uma obra que intersectou as principais preocupações do
começo do século XIX. Samsa não é um cadáver reconstruído pela ciência moderna, mas
um inseto ordinário que acorda no interior de uma rede de relações familiares e sociais
que o tornam abjeto. O monstro aparece espremido entre a ética burguesa da
produtividade, o limiar da Primeira Guerra e as subjetividades fraturadas da modernidade.
Trata-se de uma criatura sem nostalgia, nascida na paisagem urbana e burguesa, mas que
não projeta futuro, obedecendo a uma temporalidade utilitária e cíclica, do despertar ao
adormecer, sem escapatória.
A monstruosidade do personagem de Kafka se dá menos pelo medo do que pela
incômoda conformidade que sua presença causa, não mais produtiva, gastando tempo útil
com a lassidão e com a angústia da vida de um inseto. Transformar-se em inseto, contudo,
não efetua uma mudança de reino animal para o personagem. Não há uma reversão do
estado cultura para o estado de natureza. Trata-se de um híbrido, criatura transitante entre
distintos domínios da vida, suspenso em uma teia de ininteligibilidade, sem lugar
taxonômico precedente. O inseto-Samsa não tem um lugar entre os humanos nem entre
138
os animais, contudo, aponta para uma insistente proximidade com o sujeito. Esta
intimidade é compartilhada com o lobisomem, figura em tudo diferente do inseto de
Kafka, a não ser pelo hibridismo com o animal e pela estranha familiaridade que provoca
no sujeito moderno. Enquanto Samsa é atormentado pela empregada doméstica, acuado
nos cantos do quarto, o homem-lobo ataca, invade os espaços de ordem como predador.
Outra modulação da figura do lobo na literatura moderna pode ser vista no
romance O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, publicado em 1927. Ainda que distinta
da literatura de Kafka, a proximidade entre as duas obras é acentuada pela relação com o
animal e pela reação ao desenvolvimento militarista no contexto da Primeira Guerra. O
homem-inseto e o homem-lobo reagem a afetos políticos semelhantes, e nos dois casos o
animal sugere angústia, fratura e possibilidade de desintegração do sujeito — ou
impossibilidade de integração.
No romance de Hesse, a figura do lobo aparece como uma possibilidade de duplo
do homem atormentado pela convulsão política e pelos imperativos da modernidade, a
velocidade, a tecnologia, a presença da cultura moderna sobrepondo-se à tradição. O
protagonista do romance de Hesse, Harry Haller, parece constantemente dividido entre o
passado romântico do século XIX e a modernidade veloz dos anos 1920. O tema do duplo,
que ocupou um espaço relevante no pensamento de Freud, notadamente no ensaio sobre
o inquietante (FREUD, 1996), sugere um movimento de cisão entre algo que já foi
familiar e que agora tornou-se hostil28.
O unheimilich freudiano aponta para um tipo de fantasia de retorno de algo
bastante íntimo que foi afastado ou recalcado de modo violento, e que agora retorna como
um afeto indefinido, angústia que não toma forma nem de sujeito nem de objeto. O tema
do duplo foi recorrente na literatura do século XIX, sobretudo pela herança do
romantismo gótico, e remete ao tema da bipartição da alma, a separação do sujeito que dá
a ver seu lado sombrio. Na esteira de Freud, o duplo pode ser entendido como um
simulacro do mal. O monstro herdeiro do gótico é a corporificação da maldade a partir de
um gesto negativo de repressão deste afeto na subjetividade do indivíduo. O
estranho/inquietante deveria permanecer oculto e retorna, tornando difusa e perturbadora
a relação entre sujeito e objeto (FREUD, 1996; PORTO, 2016).
O Lobo da Estepe retoma o tema do duplo a partir da internalização das pulsões e
da angústia, e não de sua externalização, como é o caso do romance gótico do século XIX.
28
O ensaio de Freud foi publicado pela primeira vez em 1919, a proximidade histórica com as obras de
Kafka e Hesse é um fator importante nessa análise.
139
filósofo, o mal passa a ser entendido como uma força criadora, relacionada à matéria
como um princípio ativo de existência autônoma (AQUINO, 2010; BATAILLE, 2018).
O devir-lobo do homem torna-se, portanto, um vir-à-tona do mal a partir de um
contato criativo e produtivo com a animalidade. O movimento toma corpo na figura do
lobisomem, que aparenta ser o mais inescrupuloso, e talvez um dos mais nocivos
monstros examinados até aqui. O homem-lobo compartilha com outras criaturas o
hibridismo do humano com o animal, como as sereias, os centauros e o minotauro.
Diferente de outras figuras recorrentes da monstruosidade, o lobisomem não corresponde
a uma criatura única. O problema em se tornar vampiro, ou outra sorte de não-vivo, é a
transformação permanente em uma coisa outra que humana. O mesmo ocorre com Gregor
Samsa. O lobisomem, por sua vez, nascido ou tornado monstro, transforma-se em besta
nas noites de lua cheia, colocando a monstruosidade como uma metamorfose periódica,
em que o homem é acometido por um violento deixar-de-ser, tomado por um devir-lobo
incontrolável. É a própria metamorfose que se torna a variação da monstruosidade, a
alternância entre corpos e subjetividades em um único indivíduo. A impossibilidade de
ser um sujeito sem desvios, que tanto assombra Harry Haller, é o imperativo da
monstruosidade do lobisomem.
Interessa-me aqui pontuar a recorrência do homem lobo no imaginário popular,
sem, no entanto, buscar mapear uma origem ou condensar o simbolismo do lobo em uma
tradição única. O lobisomem, contudo, remete aos predicativos empíricos dos animais
predadores. O imaginário rural europeu, que Robert Darnton (1988) chama de “universo
mental dos não iluminados durante o Iluminismo” (1988, p.21), parecia atormentado
pelos perigos do lobo e do homem lobo de modo muito mais concreto do que metafórico,
como expresso na análise que o historiador traz do conto da chapeuzinho vermelho. A
análise simbólica e psicanalítica entende o lobo como a masculinidade e o capuz vermelho
como um símbolo menstrual. Nesse sentido, a narrativa apresenta-se como uma metáfora
da virgindade. O conto investe em um alerta para que as adolescentes protejam-se do
desejo sexual masculino.
Darnton confronta essa interpretação com o argumento de que essa versão leva
em consideração um tipo de mentalidade histórica inexistente nos séculos XVII e XVIII.
As versões da cultura oral do que chamamos contos de fada ultrapassam em violência e
sexo as versões literárias dessas narrativas (DARNTON, 1988). Para o historiador, a vida
dos camponeses era uma lida constante com a pobreza e as intempéries naturais. Para
Darnton, antes de serem narrativas moralizantes e detentoras de um simbolismo oculto,
141
29
Para este estudo nos valemos da versão do conto de Darnton (1988) e Carter (2011).
142
Figura 17: Ilustração de Hendrik Goltzius para uma edição de As Metamorfoses, de 1589.
Fonte: Domínio Público.
30
Outras narrativas possíveis vão colocar a relação com o lobo em um idílio de liberdade, como o “Livro
da Selva” (Rudyard Kipling, 1894), ou o livro ilustrado “Onde Vivem os Monstros” (Maurice Sendak,
1963), adaptado para o cinema por Spike Jonze em 2009.
144
Figura 18: Gustave Doré. Ilustrações para os contos dos irmãos Grimm.
Fonte: Domínio Público.
31
O filme Raw (Julia Ducournau, 2016) tem uma interessante abordagem da antropofagia, ao trazer uma
jovem vegetariana que, após ser obrigada a comer carne de origem animal, desenvolve um apetite canibal
monstruoso. A antropofagia parece ser substituída por um estranhamento em relação ao consumo regular
de carne, de vidas animais, como um tipo de violência ou de homicídio.
32
Não cabe aqui inventariar as produções, mas a pornografia heterossexual reproduziu massivamente a
narrativa do lobo mau e da Chapeuzinho Vermelho. A despeito das diferenças, trata-se sempre de narrativas
de uma moça muito jovem sendo abordada por um predador sexual na floresta.
145
Para Darnton, ao analisar a obra de Eric Fromm, “o psicanalista nos conduz para
um universo mental que nunca existiu ou, pelo menos, que não existia antes do advento
da psicanálise” (1988, p.23). Darnton quer se opor tanto ao historicismo quanto à ideia da
universalidade e imobilidade dos símbolos. A interpretação psicanalítica de autores como
Fromm e Bruno Bettelheim, antes de investigar o imaginário camponês da cultura oral,
deteve-se sobre sua versão traduzida e adaptada às camadas cultivadas e letradas, em
projetos como o dos irmãos Grimm. Estas versões fazem parte da miríade de tecnologias
da sexualidade que fala Foucault (1999), em que o autor observa uma saturação de
discursos sobre o sexo e sobre os desvios sexuais, em um contexto que não são mais os
perigos empíricos da floresta que atemorizam os sujeitos. O monstro passa a ser
relacionado com o controle ativo dos corpos pelo poder, a relação entre população e mão-
de-obra, e consequentes questões ligadas à gestão da vida (FOUCAULT, 1999).
O homem-lobo e o lobisomem adquirem força a partir de sua relação com as
tecnologias produtivas da monstruosidade. Essa relação reverbera na psicomaquia do
sujeito moderno, marcado por uma ambiguidade constitutiva, pela força das pulsões e
pelo controle da subjetividade e dos desvios. A figura do lobo torna-se uma tensão com
um tipo de monstruosidade interna ao sujeito, em parte como atenção e vigilância dos
desvios sexuais, ou ainda como possibilidade de vivenciá-los, como no caso de Harry
Haller. Em parte, também, como constante vigilância e punição desses desvios. O
lobisomem nasce por castigo ou contágio, como resultado de uma transgressão. O
erotismo, em um sentido de abertura para a ruptura com o indivíduo, como o concebe
Bataille (2014), é parte importante do devir monstro do lobo ou do devir lobo do homem.
4.4 O ESTADO
33
Clara, cuja biografia é difusa ao espectador, é mostrada no filme com habilidades diversas, desde cozinhar
e cuidar de tarefas de casa, incluindo o conhecimento em enfermagem e saberes ancestrais, aprendidos com
a avó. Na cena da festa junina, demonstra habilidade com o revólver, atirando de modo que não mate o
filho. A personagem faz lembrar o personagem Ben de A Noite dos Mortos Vivos (George Romero, 1968),
que demonstra ser o mais hábil e apto a sobreviver ao ataque zumbi e, ainda assim, é morto pela polícia,
como vítima do racismo estrutural nos Estados Unidos.
147
Por outro lado, o pensamento sobre o bode expiatório reafirma os modos como
operam as tecnologias produtivas de monstros. O processo extrai a potência de vida do
monstro, tornando-o mero signo, representação de algo externo a ele, como um índice do
mal. Para Girard (2004), ocorre um processo de convencimento por parte do corpo social
de que um indivíduo pode tornar-se extremamente nocivo para a sociedade como um
todo, um “bode expiatório” em relação às adversidades que acometem o grupo e que deve
ser exterminado.
Os perseguidores acabam sempre por se convencer de que um pequeno número
de indivíduos ou até mesmo um só pode tornar-se extremamente nocivo para
toda a sociedade, apesar de sua relativa fraqueza. É a acusação estereotipada que
autoriza e facilita essa crença, desempenhando com toda evidência um papel
mediador. Ela serve de ponto entre a pequenez do indivíduo e a enormidade do
corpo social. Para que malfeitores, até diabólicos, consigam indiferenciar toda a
comunidade, é preciso que a firam diretamente no coração ou na cabeça, ou que
comecem por sua esfera individual, nela cometendo esses crimes
contagiosamente indiferenciadores, como o parricídio, o incesto etc. (GIRARD,
2004, p.26).
Girard parte de uma análise do mito e de sua pertinência nas sociedades modernas,
como uma herança que opera de pano de fundo em gestos persecutórios atuais, e salienta
que, no mito, a monstruosidade física e moral são inseparáveis. Nesse sentido, o monstro
torna-se o receptáculo da monstruosidade, o vetor pelo qual o mal entra no mundo. Para
a população de As Boas Maneiras, devidamente fantasiada de sociedade estratificada, o
lobisomem é a causa de todo o mal e deve ser exterminado, mesmo que esse “mal” não
possa ser claramente identificado pelos sujeitos.
A pulsão persecutória é capaz de produzir os estereótipos que ela decide
exterminar. O ato de identificar em um sujeito ou em um grupo as marcas que legitimam
a perseguição reencena a produção se sujeitos estigmatizados. Em As Boas Maneiras, a
multidão busca exterminar um lobisomem, um monstro inaudito que surge no corpo
social. Ao mesmo tempo, o grupo persegue uma mulher negra, lésbica e da periferia, em
um processo que produz e intensifica os estereótipos persecutórios em atividade.
A destruição do monstro implica no extermínio de um mundo possível, realizada
em um microcosmo em que as estruturas do poder estatal são mantidas como forças de
coerção. Estas forças manifestam-se, como dito anteriormente, nas relações entre corpo e
espaço, nos bons modos, na invisibilidade e na docilidade. Quando Joel e Clara (e
também, Ana) escapam à vigilância, é acionado o mecanismo de purgação. Não é a
aparição do monstro que aciona a multidão, é a fuga dele das grades de controle.
O que, exatamente, é expiado quando o bode expiatório é identificado e destruído?
O processo analisado por Girard “designa simultaneamente a inocência das vítimas, a
polarização efetiva que se efetua contra elas e a finalidade coletiva dessa polarização”
(GIRARD, 2004, p.52). Isso ocorre de um modo tão radicalizado que à vítima é
interditada a possibilidade de se defender. Joel é inocente? Qual o crime de Joel? Ter
matado Maurício e ferido Amanda? Ou ter saído do quartinho? A polarização, me parece,
torna intransitivo o verbo expiar, e faz da ação — o linchamento — um ato com uma
finalidade em si mesma, de um modo aproximado ao que Bataille (2013) entende como
dispêndio, gasto puro, destruição e desperdício improdutivo de energia.
A multidão persecutória situa-se em um espaço dispendioso que Bataille (2013)
identifica como exercício da soberania, ações que são puro gasto, que não estão
empenhadas em produzir bens coletivos. A multidão atua como um corpo informe e
homogêneo, que marcha rumo às duas existências monstruosas, que não podem mais ser
assimiladas no espaço social. Nesse sentido, a multidão atua como um mediador, ou um
152
agente do poder e da norma. Dito de outro modo, o grupo parece ser a extensão de um
tipo de poder coercitivo cuja matriz é o Estado.
A noção de poder como monopólio da violência (WEBER, 2015) é sustentada por
um pensamento que entende o Estado a partir da regra e da proibição. Essa ideia é
evidenciada na noção de contrato social, vista em Hobbes e em Rousseau, por exemplo.
O contrato social imagina uma cena primordial semelhante à da passagem do estado de
natureza para o estado de cultura. Nessa passagem, o homem abre mão de sua liberdade
individual irrestrita (estado de natureza) e se submete ao domínio de um poder que está
acima de todos os indivíduos juntos e que detém o privilégio da coerção física, a fim de
manter a paz e a proteção do corpo coletivo.
O estado de natureza e o contrato social são duas imagens importantes para o tipo
de imaginação social formulada pelo Estado. Essas imagens implicam em um tipo de
antropologia filosófica que vislumbra esse sujeito anterior ao estabelecimento da cultura,
ou de formas elaboradas de sociedade. Em Rousseau, cabe lembrar, esse sujeito é
moralmente bom e livre. A vida em sociedade o corrompe, mas parece ser o preço pago
pela garantia da liberdade e da segurança. Por meio do contrato social, esse sujeito
essencialmente bom garantiria sua liberdade e segurança individuais à medida que se
submetesse à soberania coletiva. Há, nesse ato fundante, algo que é perdido pelo sujeito
a fim de que ele possa ser protegido e amparado pelo corpo social.
O pensamento de Thomas Hobbes (1974) antecede historicamente a concepção de
Rousseau e o entendimento iluminista de sujeito e de política. A antropologia filosófica
de Hobbes difere da assertiva rousseauniana de que a sociedade promove corrupção, e de
que o natural do sujeito é o bem. Para Hobbes, o sujeito anterior ao contrato social é mau
por natureza. A concepção do autor relaciona-se a uma tradição agostiniana em que o mal
não é apenas o oposto do bem, mas sua total ausência e negação (ao contrário, por
exemplo, de Bataille, para quem o mal é uma força produtiva). Se Rousseau percebia o
estado de natureza com certa nostalgia, Hobbes defendia a existência de um governo forte,
capaz de controlar a natureza conflituosa dos sujeitos, sob o risco de um caos civil. A fim
de evitar a guerra de todos contra todos, o estado, imaginado na figura do Leviatã, deve
ser mais violento (coercitivo) que o sujeito. A imagem remete ao monstro bíblico que
aparece primeiramente no livro de Jó, no Antigo Testamento, descrito como uma criatura
marinha implacável, indomável e de terrível poder destrutivo.
Na leitura que Butler (2021) faz da obra de Hobbes, podemos entender a
suspensão da soberania individual em prol de um acordo coletivo, ao mesmo tempo que
153
esse acordo cria a figura do governante soberano. “O estado de natureza era, para ele,
uma guerra, mas não uma guerra entre Estado ou autoridades vigentes. Era uma guerra
travada por um indivíduo soberano contra o outro” (BUTLER, 2021, p.41). A imagem
desse sujeito soberano que antecede a sociedade foi estendida historicamente a outros
tipos de organizações sociais, notadamente povos estrangeiros e povos colonizados pelos
europeus. A construção do contrato social como um ato fundante que cria o Estado na
medida que garante as condições mesmas da sociedade produziu um tipo de hierarquia
entre os diferentes modos de organização política.
Interessa em Hobbes a imagem do Estado como um monstro que remete à besta
bíblica. A figura do Leviatã de Hobbes ficou conhecida na cultura visual a partir da
gravura de Abraham Bosse (figura 21). A ilustração mostra o soberano gigante sobre a
cidade, coroa na cabeça, empunhando espada e cetro. Seu corpo parece revestido por um
tipo de armadura escamosa, cujos detalhes revelam ser uma multidão de corpos, a soma
de todos os cidadãos que forma o estado. Um detalhe importante da ilustração de Bosse
é o fato dos sujeitos estarem todos de costas ao observador, indistintos, enquanto o
monstro soberano olha de frente na imagem. Hobbes descreve o corpo do Leviatã como
um autômato, um tipo de monstro artificial que imita a harmonia da natureza: “Pela arte
é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que
não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem
natural, para cuja proteção e defesa foi projetado” (HOBBES, 1974, p.9).
O Leviatã bíblico foi amplamente representado nas artes, notadamente a partir das
gravuras de William Blake e Gustave Doré, mostrado com uma grande serpente marinha.
O imaginário popular recupera a imagem do girante marinho com frequência. O monstro
elaborado por Hobbes, no entanto, não é representado como uma fera ou uma serpente,
mas sim como um constructo antropomórfico. A ilustração de Bosse endossa a figura do
soberano, adornado com símbolos de governo, que absorve e iguala todos os sujeitos
humanos sob o seu domínio. Do monstro bíblico, a criatura de Hobbes mantém não
apenas a “soberba e altivez” (HOBBES, 1974), como também a força, a fúria e a
superioridade sobre as outras formas de vida.
154
Figura 21: Gravura de Abraham Bosse. Detalhe do frontispício da edição de 1651 do Leviatã, de
Thomas Hobbes.
Fonte: Domínio Público.
A paz garantida pelo Leviatã é sustentada pelo fato de que ele é mais forte e
violento que o conjunto de cidadão reunidos, em um tipo de mitologia que hierarquiza o
povo abaixo do Estado. Essa paz consiste em dar um destino devido a todas as formas de
vida, encaixá-las coercitivamente em um projeto de vida social. Nesse projeto de vida
coletiva, o monstro e as outras formas de vida dissidentes são lidos como inimigos da paz
civil. O monstro é o outro, a fantasia do inimigo que justifica a existência de um estado
forte e protetor. Na formulação de Hobbies, o monstro não é apenas o invasor externo,
mas também o lobo do homem, a propensão natural dos sujeitos à violência e ao caos
civil. As vidas dissidentes são parte de uma economia política que mantém o estado
coercitivo, como uma “justificativa moral para a retaliação” (BUTLER, 2019d, p.24), ou
são vistas como um elemento a ser expiado (GIRARD, 2004).
Por outro lado, o monstro é capaz de propor modos de organização social que
prescindem da relação entre poder e monopólio da violência. Em lugar de um tipo de
comunidade organizada sob um estado coercitivo, e mantida a partir da coerção, o
monstro é capaz de propor formas de vida e de cuidado em que a noção de centro é
dispensável e indesejável. O argumento pode ser aproximado do estudo que o antropólogo
155
Clastres torna evidente a divisão entre sociedades com estado e sociedades sem
estado, ou contra o estado. Trata-se, para ele, de uma escolha — os matizes dessa escolha
não são claros, mas são colocados pelo autor como uma escolha social e cosmológica
inconsciente. As sociedades com estado escolheram organizar-se sob a égide de um
estado coercitivo, processo que é irreversível. O exercício que proponho não é tanto
comparar formas políticas monstruosas com as sociedades estudadas por Clastres, mas
sim pensar aberturas possíveis à ideia que relaciona poder, política e coerção como
praticas indissociáveis e que estão na matriz da produção de modos de vida.
O monstro apresenta-se como uma forma de vida inassimilável ao estado, como
vimos anteriormente em Inferninho e, agora, em As Boas Maneiras. O tipo de filiação
que Clara e Joel desenvolvem, a constituição de uma família e de modos de habitar o
mundo, são modos de produzir vida política fora da coerção coletiva. O monstro é capaz
156
34
Utilizo indistintamente não-humano e inumano como sinônimos.
158
35
Esse atravessamento ontológico é entendido na Antropologia, especialmente em Lévi-Strauss (1993;
1996) como o Tabu do Incesto, tido como o ato fundante da cultura.
159
Afirmar que a perspectiva está no corpo indica, sobretudo, que o corpo não é
unicamente uma entidade fisiológica ou anatômica distinta e individualizada, mas sim
“um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus, um ethos, um
etograma. [...] feixe de afetos e capacidades, e que é a origem do perspectivismo”
160
(VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p.66). Esta concepção de corpo encontra relação com
o modo que esta pesquisa entende o corpo do monstro e faz eco às discussões anteriores,
notadamente a partir de Judith Butler. Ainda que partindo de matrizes de pensamento
distintas, a noção de corpo no multinaturalismo (Viveiros de Castro) e na teoria queer
(Butler) convergem na ideia de um corpo que não é universal e que não é presumido. O
corpo, tampouco, pode ser entendido como o invólucro de uma substância ou essência
que define o sujeito, seja ela a alma ou a psique. As duas concepções defendem um corpo
que apreende o mundo a partir de variações contínuas, como ontologias móveis. Além de
entender que o corpo emerge a partir de um conjunto de relações, afastando-se da ideia
corrente no estruturalismo de um corpo prévio ao discurso ou à cultura.
Pensar o monstro a partir da qualidade perspectiva indica não apenas que ele
experimenta o mundo de um modo outro que não o cultural-humano, mas que ele é capaz
de exercer ou vivenciar um tipo de pessoalidade própria que surge nessa relação sujeito-
mundo. O monstro propõe um modo de pessoalidade que prescinde da atribuição externa
do estatuto de pessoa pelas instituições culturais, como no caso dos indivíduos humanos
que são reconhecidos como sujeitos a partir de atribuições culturais (gênero, raça,
nacionalidade, idioma, parentesco etc.). A experiência do monstro também difere do
exemplo dos animais domésticos, tratados como membros da família e personalizados
como sujeitos, e cuja existência é coextensiva à pessoa do tutor humano.
Border nos mostra esse conflito a partir de Tina, cujo corpo apresenta
características particulares, notadamente a forma física disforme e um olfato apurado. A
personagem vivencia um percurso de deslocamento das instituições humanas que,
simultaneamente a absorvem e a segregam — a incluem sob o imperativo da exclusão.
Esse deslocamento é disparado pelo encontro com um semelhante, Vore (Eero Milonoff),
que compartilha com Tina as mesmas características físicas. Tina e Vore se envolvem
amorosamente e sexualmente, estabelecendo um tipo de filiação (corpórea e social, ou
seja, perspectiva) que não seria possível com os outros personagens do filme. Essa filiação
move Tina em direção a outro modo de perceber o corpo e a espécie, quando Vore revela
que eles não são humanos, mas trols, remetendo aos monstros da mitologia nórdica.
Esta narrativa será devidamente expandida e explicada ao longo do capítulo.
Interessa situar, por ora, como o filme apresenta estes personagens, em especial, Tina,
que realiza um movimento de metamorfose de seu estatuto de pessoa em direção a uma
ontologia monstruosa. O título original, em sueco, de Border é Gräns. As duas palavras
significam fronteira, limite, ou ainda, borda, como indica a homofonia com o termo em
161
inglês. O debate sobre fronteira como uma zona habitável, e que se manifesta nas
fronteiras do corpo e da relação humano-inumano, está presente em todo o filme. O tema
é caro a esta investigação na medida em que, ao invés de inverter os lados da fronteira, o
monstro promove uma redistribuição dos predicativos presumidos a cada polo. Tina
apresenta-se como um sujeito fronteiriço e que torna a fronteira uma zona habitável.
inserida. O olfato é a interface sensível que a conecta com esferas distintas do mundo
material à sua volta. Esse mundo material é apresentado no filme a partir de uma
dicotomia entre natureza e cultura, como mencionei anteriormente. Na cena comentada,
objetos de natureza (o inseto) são intercalados com objetos de cultura (as garrafas de
bebida), e esse movimento é reencenado ao longo do filme a partir de outros elementos.
Em relação à percepção do ambiente, Tina organiza suas experiências de um modo
particular em relação aos outros personagens. Por meio do olfato, ela entra em contato e
interpreta o mundo a partir de um ponto de referência corporal que não é compartilhado
pelos outros, e que não endossa a perspectiva cultural preponderante. Nesse sentido, Tina
é duplamente deslocada do mundo: por sua unicidade que a destaca dos demais e porque,
para ela, o mundo é recebido e entendido também de modo diverso. É possível pensar a
qualidade perspectiva de Tina como um modo específico da relação sujeito-mundo, um
desencaixe no modo antropocêntrico de conceber o real.
O ponto de vista torna o corpo uma zona de intencionalidade potencial e, no caso
de Tina, demonstra que condições sensoriais específicas produzem relações outras com o
ambiente. O conceito de umwelt, elaborado pelo biólogo estoniano Jakob von Uexküll
nas primeiras décadas do século XX, é uma chave importante para pensarmos a relação
sujeito-mundo vivenciada por Tina. O termo corresponde em português a “meio
ambiente” ou, de modo mais literal, “mundo ambiente”. Contudo, o modo como Uexküll
manuseia o termo torna seu significado mais complexo e a tradução, consequentemente,
mais difícil. Para o autor, umwelt se refere a um tipo de “mundo próprio” de cada sujeito
animal, e corresponde a um recorte dos elementos do ambiente condicionado pela
estrutura orgânica específica de cada vivente (UEXKÜLL, 2010). Dito de outro modo,
umwelt diz respeito à percepção que os organismos vivos mantém sobre si mesmos e
sobre os elementos que os circundam e que é condicionado pelas capacidades sensoriais
de cada espécie, bem como os mecanismos de comunicação e tradução disponíveis a cada
vivente em um determinado ecossistema.
A teoria de Uexküll (UEXKÜLL, 2004; 2010; AGAMBEN, 2017) propõe que
cada sujeito animal percebe o ambiente em um tempo-espaço específico, abrindo a
possibilidade para uma variedade infinita de mundos perceptíveis e incomunicáveis entre
si. A umwelt seria esta interface sensível por meio da qual cada vivente participa do
ambiente que o circunda. A leitura que Agamben (2017) faz de Uexküll indica o caráter
fortemente não antropocêntrico do pensamento do biólogo e uma desumanização das
imagens da natureza. A teoria da umwelt indica uma ruptura contumaz com o modo que
163
a ciência clássica entende o ambiente, que interpretava o mundo como um todo unitário,
habitado por espécies ordenadas hierarquicamente, das formas primitivas às complexas.
Em lugar disso, há uma “infinita variedade de mundos perceptíveis, todos igualmente
perfeitos e ligados entre si” (AGAMBEN, 2017, p. 66).
[...] nós imaginamos que as relações que um determinado sujeito animal mantém
com as coisas de seu ambiente têm lugar no mesmo espaço e no mesmo tempo
daqueles que o ligam aos objetos de nosso mundo humano. Essa ilusão repousa
sobre a crença em um único mundo no qual se situariam todos os seres viventes.
Uexküll mostra que tal mundo unitário não existe, assim como não existe um
tempo e um espaço iguais para todos os viventes. A abelha, a libélula ou a mosca
que observamos voar em torno de nós em um dia de sol não se movem no mesmo
mundo em que nós as observamos, nem dividem conosco — ou entre elas — o
mesmo tempo e o mesmo espaço (AGAMBEN, 2017, p. 67).
O filme explora momentos em que Tina é visitada por esses animais. Em uma
cena, a personagem sai para o jardim de sua casa, uma pequena faixa de transição entre a
estrada, o espaço doméstico e a floresta, e se depara com um grande alce que cede
calmamente aos carinhos dela. Outra noite, uma raposa aparece na janela do quarto de
Tina, como se estivesse à procura da personagem. O encontro é breve, mediado pelo vidro
da janela, mas denota prazer e familiaridade de Tina com o animal. No contato com os
animais, Tina não demonstra medo, ainda que um alce pudesse machucar facilmente um
ser humano. Do mesmo modo, a raposa aparenta familiaridade com Tina, em um contexto
em que, provavelmente, seria caçada pelos cães de Roland, caso estivessem soltos.
Para Gabriel Giorgi (2015), o animal na ficção fantástica faz referência a um outro
tempo, o tempo de uma natureza espectral, “vestígio de um universo anterior à
modernização e interrupção das evidências do presente” (GIORGI, 2015, p.72). Cabe
dizer, que a relação com o animal não denota unicamente um tipo de alteridade capaz de
transformar o personagem, mas uma relação de continuidade entre as duas formas de vida.
Essa relação é endossada pela presença de animais adestrados, criados em um cercado, e
169
preparados para exposições. Os cães de Roland, sempre latindo de modo hostil a Tina,
não inspiram a docilidade de animais de estimação, mas sim um tipo de agressividade
própria de sua condição cativa. Os animais domésticos estão no filme para demarcar os
domínios da vida humana e da vida animal. Mesmo que Roland demonstre afeto aos seus
cães, há uma descontinuidade e uma hierarquia entre os dois domínios.
Por outro lado, a relação de Tina com os animais da floresta apresenta-se a partir
de pontos de continuidade: espaços de sociabilidade em que as zonas de vizinhança são
multiplicadas e que não podem ser codificados pelos modelos culturais vigentes, como a
distinção entre animal racional e irracional, entre sujeito e objeto, ou caçador e presa.
Trata-se muito mais de uma amizade do que a demarcação da diferença entre espécies.
Tina oscila entre estes estatutos antitéticos, não tanto como uma figura de conciliação,
mas a partir de uma continuidade, como um tradutor, alguém que oscila entre as naturezas
e as temporalidades fraturadas estabelecidas pela cultura.
ela permanece no domínio do humano, do homo sapiens, mas com uma falha.
Juridicamente, ela é mantida nesse domínio mas de modo incompleto, corrompido ou
desviado. Uma pessoa com um asterisco.
Douglas (2012) reitera o caráter público das categorias culturais e que estas não
podem ser facilmente revistas sem uma transformação maior na ordem social. Nesse
sentido, os casos isolados, os desvios à norma, não podem ser ignorados culturalmente.
“Qualquer sistema dado de classificações deve dar origem a anomalias, e qualquer cultura
dada deve confrontar os eventos que parecem desafiar seus pressupostos” (DOUGLAS,
2012, p.54). Por conta disso, para a autora, toda cultura elabora modos de lidar com os
eventos ambíguos ou anômalos. Os modos que as culturas lidam com suas desordens
variam e respondem à demanda da funcionalidade dos sistemas de classificações
correntes. Interpretar um nascimento como anômalo do ponto de vista médico, em lugar
de milagroso, é um modo de classificar esse nascimento em um sistema cultural vigente.
Essa classificação confere um destino ao monstro, e garante que ele não interfira na
efetividade das taxonomias, uma vez que “a regra de se evitar coisas anômalas confirma
e reforça as definições às quais elas não se ajustam (DOUGLAS, 2012, p.55).
De modo controverso, o estatuto social da personagem como uma agente da lei é
parte da dramaturgia disciplinar moderna. Trata-se de uma contradição que negocia
diferenças irredutíveis. Tina é respeitada no trabalho, ao mesmo tempo que ocupa uma
função que normalmente é realizada por cães farejadores. O corpo a torna desagradável,
distinta dos demais, enquanto o mesmo corpo é normalizado a partir de critérios médicos.
Tina é codificada no domínio da anomalia, como um elemento que não se ajusta a um
dado conjunto (DOUGLAS, 2012), ao mesmo tempo que sua existência não é capaz de
causar um assombro taxonômico. Ser anômalo é normatizado como um diagnóstico. As
sanções disciplinares que operam sobre o corpo de Tina garantem à sua existência uma
explicação razoável e minam o caráter monstruoso da sua vida.
A disciplina, como elabora Foucault (1999; 2014), indica uma multiplicidade de
processos produtivos de poder, decorrente de uma transformação do poder punitivo, e que
investe de modo detalhado no corpo a partir de técnicas ininterruptas. O poder disciplinar
opera a partir de descrições, classificações, prescrições, receitas, dados (FOUCAULT,
2014), como um modo de classificar e produzir os sujeitos. A taxonomia, “espaço
disciplinar dos seres naturais” (FOUCAULT, 2014), transforma-se em uma tática, uma
repartição disciplinar. Essas táticas classificatórias operam como uma modalidade de
poder à medida que transformam o contingente de corpos humanos em conjuntos
171
monstruoso (CANGUILHEM, 2012). “No século XIX, o louco é posto no asilo que lhe
serve para ensinar a razão, e o monstro, no frasco do embriologista que lhe serve para
ensinar a norma” (CANGUILHEM, 2012, p.195).
Quando a monstruosidade se tornou um conceito biológico, quando as
monstruosidades são repartidas em classes segundo relações constantes, quando
se vangloriam de poder tê-las provocado experimentalmente, então o monstro é
naturalizado, o irregular se rende à regra, o prodígio à previsão. Parece então
evidente que o espírito científico ache monstruoso que o homem tenha podido
crer, outrora, em tantos animais monstruosos. Na idade das fábulas, a
monstruosidade denunciava o poder monstruoso da imaginação. Na idade das
experiências, o monstruoso é considerado como sintoma de puerilidade ou de
doença mental; ele acusa a debilidade ou o fracasso da razão. (CANGUILHEM,
2012, p.194).
parecem emular as ações cotidianas de um sujeito comum, mas sempre com um hiato de
realização. Esse hiato perpassa a vida social pública e a vida íntima da personagem,
notadamente na impossibilidade do ato sexual e na geração de filhos. A reprodução de
um relacionamento heterossexual mostra-se incompleta, como um arremedo, ou uma
imitação melancólica da vida cotidiana de um casal.
Tina é o que Foucault (2010) chama de “monstro pálido”, figura que o autor
aproxima do aparecimento dos anormais, como uma categoria jurídica dos desvios
sociais. Para Foucault, o indivíduo anormal será marcado por esse tipo de monstruosidade
enfraquecida, apagada, e por um tipo de “incorrigibilidade retificável e cada vez mais
investida por aparelhos de retificação” (FOUCAULT, 2010, p.51). Para ele, o monstro é
parte da genealogia da anormalidade, aparecendo com uma frequência cada vez menor,
em detrimento dos pequenos desvios que irão caracterizar o indivíduo a ser corrigido,
cuja frequência é mais elevada do que a dos monstros humanos. Isso porque, o contexto
de referência do monstro é muito mais complexo do que o dos anormais. O monstro
desafia, simultaneamente, as leis da natureza e da cultura, enquanto os delinquentes e
anormais são definidos a partir de situações mais estreitas, como a família e o
comportamento sexual. Foucault evidencia uma mudança nas preocupações sociais que
passam a se ocupar da monstruosidade moral com mais empenho.
O monstro, como sabemos, persiste em formas mais ou menos evidentes, mais ou
menos transgressoras e, no caso de Tina, mais ou menos retificáveis. A explicação médica
não oferece uma cura ou correção definitiva ao problema da personagem, apenas a
condiciona a um estatuto científico. O controle do corpo ocorre “detalhadamente”
(FOUCAULT, 2014), Tina é socializada como uma esquisitice, uma imperfeição, um
desvio da natureza. O monstro torna-se, portanto, um corpo dócil e melancólico. Há, aqui,
duas perspectivas que agem simultaneamente sobre o corpo da personagem e que dizem
respeito ao controle disciplinar dos corpos e à unicidade do corpo monstruoso de Tina.
O ponto de vista de Tina, explorado no filme, aponta para outros modos de refletir
sobre as formas de vida, que serão explorados em seguida. Do ponto de vista da norma,
no entanto, a relação entre monstro e anormal parece ser verificada em Border. A
docilidade da personagem é manifesta na intensa colaboração que Tina faz com a lei —
ela passa a cooperar com a polícia em uma investigação sobre uma rede de pedofilia —,
e na relação amigável que tem com um casal de vizinhos. Quando pensamos
comparativamente com outras modalidades do monstro humano, essa categoria de
monstruosidade passível de explicação pela ciência e que se materializa em corpos
174
disformes ou anômalos, podemos observar uma equação complexa no que toca a relação
entre humanos e monstros.
Em Freaks, por exemplo, os personagens destoam do quadro de controle dos
corpos e mostram-se capazes de violência e de organização social das diferenças. A
docilidade e a melancolia não são fatores de caracterização deles, mesmo que enredados
na economia visual dos freak shows e do conhecimento científico moderno. A capacidade
de agência e de autorreflexão, ou seja, de produzir conhecimento sobre si mesmos, é
executada fora de conceitos e referenciais normativos. Em Freaks, é possível dizer, os
monstros propõem um tipo de saber sobre o mundo que parte da experiência deles em
comunidade, e não de uma adaptação dos saberes humanos (médicos, sociológicos).
Essa capacidade se dá pelos modos distintos de elaborar a diferença. Dito de outro
modo, é a noção de comunidade, criada a partir do convívio entre corpos dessemelhantes,
que possibilita que essas formas de vida existam como tal. Argumento semelhante ao
desenvolvido no capítulo anterior, em que a invenção de formas outras de parentesco e
de filiação mantém Clara e Joel vivos. Do ponto de vista da resistência e da subversão, os
monstros de Freaks são exitosos. Eles são capazes de travar relações de amizade com
humanos sem cair em uma docilidade utilitarista.
Tina, no entanto, é apresentada como um monstro isolado. As relações possíveis
fora de um escopo humano só ocorrem, a princípio, com animais silvestres e com o
contato com a natureza. Isolada, Tina tem uma existência semelhante à de personagens
de filmes como Mask (Peter Bogdanovich. 1985) e Wonder (Stephen Chbosky, 2017). As
tramas dos dois filmes são semelhantes em alguns aspectos que quero explorar e dão conta
da vida de personagens jovens acometidos por síndromes raras, que resultam em
deformidades físicas aparentes.
pelo diretor, que mobiliza outros estudantes para recepcioná-lo. Os conflitos com a
aparência dele, no entanto, povoam toda a narrativa, ao passo que ele vai se tornando uma
figura popular na escola, tanto pelo êxito intelectual quanto pela personalidade divertida
(não muito diferente de Rocky). O final do filme coincide com o final do ano escolar,
com Auggie sendo aplaudido pela escola como um aluno de destaque, em um arco
narrativo em que a diferença é louvada e o estigma é criticado.
As semelhanças entre os dois filmes parecem aproximá-los em uma escalada
histórica da inclusão a partir da repetição de temas: a maternidade, o discurso médico, a
escola, a socialização etc. Rocky encontra maior resistência nas instituições, a escola o
rejeitaria se não fosse a insistência da mãe. O jovem fica de fora da descoberta sexual dos
romances do ensino médio até conhecer uma garota deficiente visual. Além da
possibilidade recíproca em que dois jovens com deficiências físicas possam se amar, o
discurso de que a falta de visão revela a verdadeira personalidade de Rocky, a “alma
humana”, é notório.
A realidade de Auggie é mais protegida, sobretudo em termos de classe e da
operação do conceito de inclusão. O diretor da escola o recebe com entusiasmo, é a mãe
que teme que o filho possa sofrer. É possível perceber, na transformação dos discursos
sobre tolerância e inclusão, um tipo de maior abertura que ocorre a partir do
condicionamento da anomalia: Rocky e Auggie são lidos como humanos por trás da
carapaça monstruosa. Diferente da teratologia do século XIX, que evidencia o embrião
por trás do monstro, o discurso da tolerância vai identificar a condição humana naquele
corpo deformado. O valor humano dos personagens é medido pelo intelecto, pela
docilidade e por características morais e emocionais.
A moeda de troca da humanidade dos dois personagens é a inteligência e a
personalidade. Em outros termos, a capacidade de razão, que vai ser critério de diferença
entre humanos e monstros (basta lembrarmos do Minotauro), bem entre humanos e
animais, e a docilidade. Rocky e Auggie são instados a desejar a normalidade, de modo
oposto aos personagens de Freaks. Se em Freaks há um momento em que eles aceitam
um elemento de fora como um dos deles, Mask e Wonder empenham em demonstrar que
os monstros podem ser aceitos pela coletividade humana.
O fenômeno não ocorre de modo idêntico. Para Rocky, as reais possiblidades de
filiação são com outros outsiders como ele, tendo uma relação complexa de parentalidade
e de cuidado com toda uma comunidade de motoqueiros. As experiências de Rocky
passam por uma escalada de melancolia que destoam da personalidade divertida e
177
bullying na escola. Ainda assim, Tina precisa se esforçar para cumprir as demandas de
sociabilidade, capturada por mecanismos disciplinares contínuos e repetitivos.
Gostaria de sugerir que a melancolia de Tina não é resultado apenas da
inadaptabilidade social e da aparência. O drama sexual, que não é vivido por Rocky e
Auggie, e que aparece como resolvido em Freaks, tem papel importante na vida da
personagem sueca. A melancolia, nesse sentido, assume um caráter de melancolia de
gênero, um interdito ao prazer sexual e ao desejo, mas não apenas. Trata-se de uma
incongruência entre possibilidades sexuais, condições anatômicas e genitais e a demanda
por performar uma heterossexualidade, ao mesmo tempo compulsória36 e incompleta.
A vida de Tina como uma mulher heterossexual é marcada por esse sentimento de
incompletude — sexualidade interrompida, esterilidade, aparência física e inadequação
ao gênero feminino nos moldes como a coletividade demanda. Se Tina fosse identificada
como uma mulher lésbica, talvez o sentimento de inadequação pudesse ser explicado pela
homofobia estrutural. A insistência em apresentar o cotidiano dela como uma mulher
cisgênero heterossexual endossa a noção de uma melancolia constitutiva. O sentimento é
resultado da imposição coercitiva de um gênero inteligível, ao mesmo tempo que a
aderência a esse gênero é impossível à personagem.
Enredada entre um emprego formal e uma anomalia cromossômica, Tina é
capturada por mecanismos jurídicos e médicos que reduzem a potência de vida do
monstro. Afirmar que o poder disciplinar dociliza e empalidece o monstro indica que há
algo próprio da monstruosidade que está sendo perdido ou que não é vivenciado por Tina.
É nesse sentido que utilizo a ideia de “potência de vida”, ainda que o termo seja
escorregadio, pois pode indicar que há uma monstruosidade essencial e verdadeira presa
em um corpo forçosamente civilizado. O que quero sugerir afasta-se dessa noção
substancialista da monstruosidade e, sobretudo, da ideia de que pensar o monstro como
forma de vida é tornar a monstruosidade uma identidade. Trata-se de um movimento
contrário: há um modo de vida possível que é negado à Tina. Um modo de vida que
constantemente tenta escapar da coerção do poder disciplinar e que é próprio às
qualidades perspectivas da personagem. A condição monstruosa é socialmente interdita
à personagem pelo poder disciplinar.
A potência do monstro pode indicar uma abertura ou uma linha de fuga da
incessante individuação disciplinar e dos interditos sociais próprios à noção de cultura.
36
Sobre heterossexualidade compulsória, cabe destacar o trabalho de Adrienne Rich (2010).
179
Em uma linha que conecta o pensamento de Foucault ao de Bataille, a ideia de uma fuga
em relação à norma parece indicar um caminho possível em direção ao que é chamado
aqui de “potência de vida”. Em Foucault, essa fuga é expressa pela ideia do cuidado de
si, e em Bataille pelo erotismo.
Em Border essa abertura se dá por uma experiência de erotismo que conduz o
monstro ao próprio corpo, e pela vivência de formas propriamente monstruosas de
sexualidade e de gênero. A perturbação na alteridade é estabelecida a partir do encontro
com Vore, com quem Tina vive um romance e cuja relação redistribui os predicativos até
então atribuídos à personagem.
A chegada de Vore é percebida por Tina pelo olfato antes que ele apareça no
campo de visão — dela e do plano fílmico. Vore chega pelo comprido corredor de
desembarque de passageiros, na área fiscalizada por Tina. Sozinho, carregando apenas
uma mala de mão, o personagem aciona a percepção de Tina: as narinas dilatadas e os
lábios erguidos são disparados de modo mais intenso que o normal e denunciam um tipo
de perturbação nos sentidos dela. Um cheiro novo, suspeito, e que demanda uma
investigação. O olfato de Tina parece convocado de modo involuntário, como se farejasse
algo bastante fora do comum. Cabe reforçar essa sensação, sobretudo pela aparente
sobriedade de Tina no trabalho. Em uma cena anterior, ela intercepta, no cartão de
memória do celular de um passageiro, conteúdo de pornografia infantil. A personagem
realizou sua inspeção com um comportamento sóbrio e frio. De modo oposto, a presença
de Vore no corredor de desembarque perturba Tina de modo notório.
Fisicamente, Vore apresenta características semelhantes às de Tina — a mesma
fisionomia que lembra um homem de Neandertal. Uma primeira observação do
personagem indica um homem alto, corpulento, de aparência descuidada e um tanto
assustadora. O rosto exibe os traços já vistos em Tina: pele branca, cabelos castanhos
claros de tamanho médio, que caem despenteados sobre o rosto, a testa larga, o nariz
grosso e a mandíbula levemente projetada para a frente, revelando dentes amarelados. Os
dedos das mãos estão permanentemente sujos de terra. De um modo geral, é possível
supor que ele possui a mesma síndrome rara que acomete Tina e a fisionomia releva um
outro masculino da personagem, um tipo de duplo ou de irmão de outro gênero. Contudo,
180
enquanto Tina é mostrada de modo sóbrio, asseado e polido (ou pálido, dócil e
melancólico), Vore apresenta-se de modo grosseiro, desafiador e descuidado.
que optam por não tornar pública essa informação37. O termo foi incorporado à norma
culta da língua, mas não é falado no diálogo entre Tina e o colega. Em português, é
equivalente a “elu/delu”, utilizado por pessoas de gênero não binário, por pessoas
transgênero, ou por quem não se reconhece na designação binaria masculino/feminino do
par sexo/gênero.
Nenhum desses parece ser o caso de Vore, que, a princípio poderia ser identificado
como um homem transgênero. Essa designação, contudo, não é trazida para o filme e a
presença de um homem com vagina perturba, por motivos distintos, Tina e o colega. A
possibilidade de tratar-se de uma pessoa transgênero acende um cuidado formal do colega
de Tina, como um modo de conduzir Vore a uma designação apropriada: uma pessoa com
vagina não deveria ser revistada por um homem cisgênero. Vore, contudo, abstém-se de
qualquer explicação e os documentos de identidade do personagem não são mostrados.
Há uma mudança, a princípio sutil, no modo como Vore é codificado como um corpo
monstruoso — uma passagem rápida de um corpo masculino disforme e desagradável
para possivelmente um homem com vagina.
Qualificar Vore como um homem transgênero, na minha leitura, apaziguaria as
dúvidas sobre sua identidade, sobretudo em uma sociedade racional, burocrática e laica,
como a que é mostrada no filme. A transgeneridade identificaria o personagem com uma
identidade reconhecida pela ciência. O personagem, contudo, causa um efeito de dúvida
em Tina e no colega, e mostra-se alheio aos procedimentos de legibilidade dos corpos e
dos sujeitos. Os modos correntes de atribuir uma identidade ao sujeito são desativados
pela entrada de Vore. Do ponto de vista de Tina, o olfato perde a eficácia, e aquele sujeito
semelhante a ela — possivelmente também semelhante do ponto de vista do cheiro —
coloca em questão a sua própria identificação como sujeito. Do ponto de vista do colega,
a dúvida denota o ponto de vista humano, os modos como aquela sociedade recebe e
interpreta corpos ininteligíveis como o de Vore, que está longe da adequação social
performada por Tina.
A partir deste encontro, Tina sente-se visivelmente atraída por Vore e perturbada
com essa sensação. A atração aparenta ter uma natureza dupla: um interesse fortemente
físico, como o cio de um animal, ao mesmo tempo que denota uma curiosidade e uma
dúvida crescentes diante de um semelhante. Em uma ocasião, Tina rastreia Vore com o
olfato, forçando um encontro. O momento ocorre em uma área arborizada, um tipo de
37
Mais informações encontram-se na notícia: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/03/dicionario-
sueco-incluira-pronome-para-genero-neutro.html
182
jardim, próximo ao albergue em que Vore está hospedado. Tina aborda o personagem que
coleta minhocas de uma árvore e guarda em um depósito. Vore come uma das minhocas
e sugere a Tina fazer o mesmo. Após hesitar, ela cede à sugestão de Vore e engole uma
pequena larva amarelada, ainda viva. Esse gesto denota uma abertura para a civilizada
Tina, como uma passagem para experiências associadas à natureza e à vida animal.
Neste encontro, Tina convida Vore a ocupar uma pequena cabana de hóspedes no
jardim de sua casa. O convívio com Vore opera uma força de deslocamento nas
atribuições sociais de Tina. A relação dos dois apresenta uma intimidade crescente,
possibilitada pela partilha das características comuns. Em um dia, logo após a mudança
de Vore para a casa de hóspedes, durante uma tempestade, Tina mostra-se bastante aflita:
fora atingida por um raio na infância, que resultou em uma cicatriz na altura da testa. De
modo inexplicável, seu corpo parece atrair raios com frequência. Visivelmente temerosa,
a personagem desliga todos os eletrodomésticos das tomadas e é interpelada por Vore,
que bate à sua porta buscando abrigo. Os dois escondem-se embaixo da mesa da cozinha,
abraçados e tremendo, perturbados pelo barulhos dos trovões e pela luz dos relâmpagos
que iluminam todo o espaço.
Após a chuva, e mais calmos, os dois saem da casa em direção à vegetação da
floresta, aproximam-se afetuosamente e começam um ato sexual, prontamente
interrompido por Tina. A personagem alega que é “deformada”, referindo-se aos genitais
que, a princípio, estariam deformados devido à anomalia genética. Diante disso, não
poderia dar continuidade ao ato sexual. Vore questiona Tina e não recua no investimento.
Os dois parecem tomados pelo desejo, as narinas dilatadas, os dentes expostos, rosnando
enquanto cheiram e lambem os corpos um do outro. A personagem cede à excitação,
avança sobre Vore e abaixa a própria calça: entre as pernas de Tina desponta um pênis
ereto, fino e pontiagudo, que cresce na proporção da excitação sexual dela.
A reação da personagem deixa explícito que aquela era a primeira vez que aquilo
ocorria. Até então, ela entendia seu órgão genital como uma vulva deformada. O rosto de
Tina, diante da visão do próprio pênis, aparenta um sentimento complexo de surpresa e
êxtase, emoção e desejo. Durante o ato sexual, Vore é penetrado por Tina. Os dois urram
selvagemente durante o ato e toda a performance dos personagens remete a uma
animalidade, os dentes expostos, os rosnados e urros, o gesto de cheirar intensificado, a
ausência de palavras. Ao mesmo tempo, o ato denota uma despersonalização intensa
causada pelo erotismo e pela abertura de Tina a um corpo e a uma sexualidade que até
então era desconhecida para ela.
183
Os atributos que elenco como animais são reiterados pela singularidade do corpo
dos personagens e pelo ato sexual ocorrer na floresta. A gestualidade que eles apresentam
não é de todo estranha ao sexo dos humanos, contudo o ato torna singulares os
predicativos sexuais dos dois. O contato sexual entre os dois redistribui os predicativos
presumidos de sexo, gênero e genitalidade. Isso não ocorre, contudo, como um modo de
recompor esses predicativos em um outro formato coerente e estável. O que é apresentado
é uma abertura para a materialização de formas corporais e sexuais que não estão
previamente codificadas.
Não estou seguro de que Border pode ser entendido como uma metáfora da
transexualidade, ainda que o filme tenha sido recebido assim por uma parte da crítica.
Pensar a partir desse questionamento não é o interesse desta pesquisa. Diante disso, não
utilizarei os pronomes neutros (elu/delu) para referir-me aos personagens. Antes,
interessa-me apontar como as noções de sexo, gênero e sexualidade são desestabilizadas
a partir da relação entre Tina e Vore. O filme não conduz esse conflito em direção a um
significado estável e final sobre o que seria o verdadeiro sexo dos trols. A obra não elabora
184
uma explicação, se são transexuais ou intersexuais, e esse entendimento parece não ser
importante ou cabível aos personagens.
Border redistribui os predicativos culturalmente distribuídos para sexo, gênero e
sexualidade de modo dinâmico. Isso rompe com a dicotomia corrente que relaciona sexo
com natureza e gênero com cultura. Nesse pensamento, sexo seria a unidade biológica
estável, natural, materializada e identificada pelos órgãos genitais. Gênero seria a
consequência cultural dessa materialização, a atribuição de papéis e expectativas sociais
a partir do sexo. Essa relação, que estabelece uma continuidade entre corpo e sentido,
pode ser aproximada do modo como que natureza e cultura são entendidas pelo
pensamento antropológico tradicional.
Essa cisão natureza/cultura reflete no modo como a ideia de gênero é produzida
culturalmente. A natureza, nessa visão, seria, paradoxalmente, a unidade estável e regida
por leis, ao mesmo tempo caótica, pois carece de um significado em si. A cultura passa,
então, a ser entendida como um modo de dar significado às formas naturais. Essa equação
traz uma recorrente noção de sexo como algo imutável e o gênero como uma construção
cultural. Essa dicotomia interessa pelo modo com que sexo e natureza são posicionados
em relação a gênero e cultura.
Butler (2019a) elabora um contraponto à noção estruturalista que divide
natureza/cultura e sexo /gênero. As discussões da filósofa podem ser relacionadas com as
críticas pós-estruturalistas sobre o conceito cultural de natureza, notadamente como
exposto por Viveiros de Castro (2018; 2020), e discutido anteriormente. Para ela, “sexo
é um constructo ideal forçosamente materializado ao longo do tempo” (BUTLER, 2019a,
p.16). A autora discute que não se trata de um fato biológico e estático do corpo, em que
órgãos genitais e órgãos sexuais são tidos como sinônimos, mas sim um processo
regulatório constante que materializa o sexo no corpo dos indivíduos.
No pensamento de Butler, sexo e gênero são os marcos identificadores dos sujeitos
e requisitos para a legibilidade de um indivíduo como humano, em detrimento das formas
abjetas e ininteligíveis de vida. A materialização do sexo ocorre de modo performativo,
como um processo de reiteração da norma em uma temporalidade contínua.
185
Tina e Vore performam uma vida corporal que entra em conflito direto com a
noção de corpo humano. Em parte porque eles foram codificados como humanos.
Defeituosos, anômalos, mas humanos. Ao reconhecer — e o reconhecimento é
condicionado à reciprocidade — que não são humanos, e sim trols, eles lançam mão de
outros modos de designar e vivenciar a sexualidade. Tina e Vore podem ser mulher e
homem, ou macho e fêmea, se utilizarmos um vocabulário estritamente humano. Eles
podem ser, mas em um tipo de configuração que ser mulher e ser homem é uma coisa
toda outra. As noções de mulher, fêmea e feminino, do mesmo modo que homem, macho
e masculino, não são cadência ou gradações de um mesmo estatuto, mas predicativos,
funções e performances culturais flutuantes, dinâmicas e intercambiáveis. Do mesmo
modo, é possível que, em termos trols, os conceitos de masculino e feminino inexistam
ou sejam configurados a partir de outros critérios completamente distintos dos humanos.
Na mesma noite, após a relação sexual, ainda sobre a vegetação rala, Vore revela
detalhes da natureza dos dois. A explicação surge após uma pergunta de Tina: “quem sou
eu?38”. “Um trol, como eu”, é a resposta de Vore. A explicação dele para a condição física
compartilhada pelos dois rompe com a narrativa da alteração cromossômica. Eles são
trols e não estão sozinhos. Há um grupo na Finlândia, país vizinho, que leva uma vida
nômade e são difíceis de serem encontrados. De acordo com Vore, os humanos fizeram
experiências com seus pais trols em um hospital nos anos 1970, mantendo-os vivos por
uma década. Após a morte deles, resultado das experiências médicas, Vore fora mandado
para orfanatos, onde sofreu diversos abusos.
A narrativa breve sobre a infância de Vore justifica o modo com que ele se refere
aos humanos, como uma raça ou espécie totalmente distinta, rival, predadora, e contra
quem uma vingança está sendo orquestrada. Essa vingança, em parte, é perpetrada por ele
mesmo, que age de modo a causar danos aos humanos. Os fatos também nos dão pistas
38
Pergunta que ecoa a voz do monstro de Frankenstein apresentada na introdução dessa tese.
186
sobre a infância de Tina e sobre a nebulosa natureza dos trols. A revelação acentua o
movimento de ruptura de Tina com a vida humana: ela confronta o pai sobre seu passado,
expulsa Roland de sua casa e aprofunda a intimidade com Vore.
As informações sobre a origem da protagonista são reveladas pelo pai já no final
do filme. Para contextualizar, me antecipo na narrativa. A estrutura de Border constrói
uma atmosfera de suspense, em que as informações são reveladas nos momentos de
clímax. Desse modo, os poucos elementos da biografia de Tina são conhecidos pelo
espectador, e por ela, nos momentos de conclusão da narrativa.
Tina fora adotada ainda criança. O pai adotivo não é nomeado no filme e a mãe já
está morta a essa altura dos acontecimentos. Ele conta que era porteiro em um hospital
psiquiátrico, em que estavam internados diversos trols. Cabe dizer que o homem não se
refere aos internos como trols, possivelmente ele não tem essa informação. Os pacientes,
ele conta, não sobreviviam muito tempo e, diante da morte dos pais biológicos de Tina,
ele se ofereceu para adotá-la. Ele e a esposa tinham o sonho de criar uma menina, uma
filha. O nome dado à personagem pelos pais biológicos foi Reva, e substituído por Tina
após a adoção. Os trols mantidos internos no hospital psiquiátrico estão enterrados como
indigentes em um pequeno cemitério. Pedras disformes ocupam o lugar da lápides, e não
há nomes gravados ou qualquer identificação de quem está enterrado ali. Os túmulos são
numerosos, algo entre 40 ou 50 pedras demarcam, sobre um gramado, o lugar em que os
trols submetidos à internação e experimentos estão sepultados.
Diante dessas informações, podemos especular alguns elementos sobre o passado
de Tina. É possível que esse grupo de sujeitos que remetiam aos neandertais foram
descobertos ou capturados de algum modo. Eles teriam sido forçados à internação e a
experimentos científicos violentos demais para que sobrevivessem, mas por tempo
suficiente para que tivessem filhos. Esses trols possuíam caldas e não tinham o
comportamento disciplinar que Tina apresenta. É possível supor que não falassem sueco
e que possuíssem idioma próprio. Os filhos foram dados para adoção, após terem a cauda
amputada, e garantido que seriam inofensivos desde que fossem criados como seres
humanos. A anomalia cromossômica, justificativa para a aparência deles, não seria
motivo de preocupação.
Trols são criaturas do folclore nórdico e escandinavo, e bastante disseminadas na
cultura popular e midiática como um tipo de monstro gigante, geralmente antagonista, em
narrativas de fantasia. A grafia do termo pode variar, trols, trolls, trölls, dentre outras, e
remete etimologicamente à ideia de magia ou de encantamento (LINDOW, 2001; 2014).
187
O termo pode designar uma sorte diversa de criaturas mágicas que vivem na natureza,
como gigantes, elfos, gnomos etc. Há uma genealogia específica sobre os trols nas
mitologias nórdica e escandinava, que os antagoniza em alguns momentos ao deus Thor
e outras figuras heroicas desse panteão. O folclore nórdico também aponta para a
existência de um mundo de gigantes, Jötunheim, topografia geralmente relacionada aos
trols. Esses monstros, no entanto, estão muito mais disseminados no cotidiano humano
do que as figuras canônicas das lendas escandinavas. “No mundo dos humanos há muitos
lugares onde os trols devem habitar: montanhas, florestas, e assim por diante — qualquer
região não povoada nas imediações das fazendas (LINDOW, 2001, p. 206).
A tarefa de precisar o que são trols, do ponto de vista das ciências do imaginário
e do folclore, escorrega na própria variedade semântica do termo. Contudo, o que parece
comum às interpretações é que eles são criaturas antropomorfizadas em algum grau, estão
sempre mudando a forma física e são difíceis de fixar em uma imagem concreta, “exceto,
talvez pelo o que eles não são: humanos, normais, prestativos” (LINDOW, 2014, p 12).
Se a etimologia expande a interpretação sobre o trol, a imaginação popular parece ter
fixado um arquétipo da criatura como uma variação dos antigos gigantes, que vivem em
florestas e são particularmente hostis aos seres humanos, especialmente os desavisados
que perdem-se nas florestas e montanhas. Nesse sentido, o monstro passa a ter parentesco
com outras criaturas de significado igualmente poroso como ogros e trasgos.
A disseminação da imagem do trol em contextos diversos aos do folclore
escandinavo reforça essa ideia de um monstro da floresta. Um exemplo pode ser
encontrado na representação conhecida de J. R. R. Tolkien, em O Hobbit, publicado em
1937, em que três grandes trols raptam os personagens em uma floresta para jantá-los. O
protagonista do livro, Bilbo, os mantém acordados com uma longa conversa até que o sol
nasce e os monstros são transformados em pedra. Essa interpretação faz eco à imagem
dos trols como figuras igualmente violentas e tolas — eles são levados na conversa por
Bilbo e não se dão conta do nascer do sol. Essa imagem é endossada pela representação
pictórica dos trols, especialmente na literatura infantil39. A narrativa de Tolkien, no
entanto, remete igualmente à Odisseia de Homero, em que Polifemo, um ciclope gigante
é enganado pela palavra ardilosa de Ulisses, que cega o único olho do monstro. No
39
Outros contextos, no entanto, atualizam essa figura, como na franquia Shrek, produzida pela
Dreamworks. Na série de filmes, um ogro, figura naturalmente antagônica nos contos maravilhosos, torna-
se protagonista de uma comedia romântica.
188
inventário de seres imaginários feito por Borges (2007), os trols são tidos como
descendentes dos gigantes mitológicos, mas como uma decadência em formas rústicas.
A imagem popularizada do gigante, dos ciclopes, assim como as dos trols, endossa
uma criatura violenta e ignorante. Uma genealogia dos gigantes talvez desmentisse esse
estereótipo, como no estudo de Cohen (1999) ou na investigação sobre os gigantes de
Rabelais feita por Bakhtin (2010). No entanto, o monstro é comumente codificado como
um ente sem razão, principalmente diante da fala, do direito à palavra e da engenhosidade
do herói, como ocorre com Teseu e o minotauro, mas também com Bilbo, Ulisses e tantos
outros. Essa relação, sem dúvida, é utilizada como um modo de contrapor humanidade e
monstruosidade no nível da razão e, portanto, da política. Se remonto essas referências
distintas é para chamar atenção para o fato de que os trols em Border foram internados
em um hospital psiquiátrico e a rede de relações sociais a que Tina foi entregue impediu
a personagem de conhecer e contar a própria história.
Os monstros, no filme e nas lendas, são codificados pelo corpo, mas é pela noção
de racionalidade e pela palavra que eles são capturados pelo poder disciplinar. A relação
do monstro com a ciência tem uma longa trajetória, da mesa de dissecação de
Frankenstein às internações psiquiátricas em Border, passando pelos cursos de anatomia
e os laboratórios de genética. Interessa, aqui, pensar a história e a biografia desses
monstros a partir de uma tomada da palavra. É a versão de Vore que, discursivamente, é
tomada como verdade para Tina e para o espectador.
Não sabemos nada sobre os trols de Border. O nosso referencial é baseado na
cultura popular. Não sabemos que tipo de sujeitos Tina e Vore seriam se nascidos e
criados em condições próprias à organização social dos trols. Qual tipo de identidade de
gênero performariam? Em qual idioma se comunicariam? Qual o modelo de família e
organização política adotariam? O que sabemos é que Tina e Vore foram criados em um
modelo de sociabilidade incompatível com a qualidade perspectiva que são capazes e com
a condição monstruosa em que nasceram. Possivelmente os trols tem outro sistema de
parentesco (Tina e Vore podem ser irmãos e toda a discussão sobre família e organização
189
social com base na proibição do incesto torna-se inócua), outra organização de gêneros e
sexos, outro idioma, outros modos de nutrição, estratégias outras de produção de mundo,
de relação com o ambiente (umwelt), de cuidado e proteção recíproca.
Não sabemos também a verdade da palavra de Vore. Isso tornaria a anomalia
cromossômica mais complexa e o discurso médico poderia ser verdadeiro, em parte.
Contudo, isso importa pouco às discussões travadas aqui. A condição monstruosa não
pode ser confundida com uma taxonomia. Identificar Tina e Vore como trols importa na
medida em que eles experienciam o ambiente de um modo outro que o humano. A filiação
entre os dois semelhantes abre a possibilidade para outras formas de proteção e
sobrevivência e para a partilha de um modo comum de entender o mundo e a si mesmos.
Até então, toda a singularidade de Tina era incomunicável. A partir da filiação, que em
Border é disparada pelo sexo, os monstros podem imaginar outros futuros que não sejam
dependentes da reprodução das formas humanas de humanidade.
A relação entre Tina e Vore desencadeia em um tipo de romance breve e que tem
um efeito nitidamente positivo em Tina. Em lugar da figura melancólica e disciplinada
do começo do filme, a protagonista aparenta uma crescente felicidade, que parece estar
relacionada com o abandono dos signos ligados à norma: a vida conjugal infeliz, os cães
adestrados de Roland, o uniforme do trabalho, o espaço doméstico. As cenas que
intensificam essa alegria da personagem mostram ela e Vore correndo pela floresta, sem
roupas, ou tomando banho no rio em um dia de chuva, intercalando as risadas com uivos
e urros. O abandono gradual de uma vida disciplinar e humana em favor de uma vida trol
endossa a relação entre a felicidade de Tina e um outro tipo de monstruosidade. Não mais
a monstruosidade codificada pelo discurso médico como anomalia, mas um modo de vida
em que Tina é capaz de se reconhecer e de ocupar os espaços de modo excessivo e não
mediado pelo poder disciplinar.
O romance entre os dois vai resultar em um filho, gestado no corpo de Vore, que
possui sistema reprodutor feminino e foi fecundado por Tina. O filho dos dois será
revelado para o espectador e para Tina apenas no final do filme e retornarei a ele em
seguida. O corpo de Vore apresenta estruturas equivalentes ao útero e aos ovários. Em
uma cena, antes que ele e Tina tivessem tido a primeira relação sexual, o personagem é
mostrado no quarto, contorcendo-se de dor, desconfortável e inquieto. Vore sai de casa
190
em direção à floresta. A dor o faz errar pela vegetação, ofegante, abafando os urros. Em
um ponto, ele despe a calça e realiza algo semelhante a um parto: a dor aumenta, o
personagem urra com os dentes cerrados, como se estivesse fazendo força, e de sua vagina
algo é expelido. Vemos dois pequenos tentáculos, ou pernas, esbranquiçadas e finas,
fracamente iluminadas pela luz da noite. Após o ato, Vore desfalece exausto.
O fruto do aparente parto é mostrado cenas depois, quando Vore e Tina já estavam
envolvidos. Uma tarde, Tina persegue um cheiro estranho até o quarto de visitas ocupado
por Vore e lá, dentro de uma pequena geladeira, encontra algo semelhante a um bebê
recém-nascido. Trata-se de um bebê disforme, a pele pálida e esmaltada, como um
plástico, ou uma borracha. Olhos cerrados, aparentemente cegos. A figura não possui
cabelos. Tina toca a barriga da criatura, a pele afunda e apresenta uma textura gelatinosa.
A aparência geral é a de um bebê disforme e pálido, ou de um boneco que simula um
recém-nascido, exceto pelo fato de que a criatura aparenta estar viva: move os braços
finos e balbucia alguns sons como um bebê real.
Nesse diálogo, Vore revela que utiliza os hiisit que saem do seu corpo em um
esquema de tráfico de crianças. O personagem rapta crianças humanas e as substitui pelos
hiisit, como um modo de despistar as famílias e ganhar tempo na fuga. As crianças
raptadas são vendidas pelo trol em um esquema de tráfico de crianças por pedófilos. Cabe
dizer que, a essa altura da narrativa, Tina está colaborando com a polícia em uma
investigação de crimes sexuais contra crianças. A personagem utiliza o olfato na busca
por provas e no interrogatório dos suspeitos. Diante da revelação de Vore, ela percebe
que ele é uma peça importante na investigação em curso e confronta o monstro. A cena
exibe uma explosão de raiva da personagem, em que os dois trocam rosnados, exibindo
os dentes ferozmente um para o outro. Gradativamente, Tina passa a rosnar mais alto e
com mais ferocidade que Vore, fazendo-o calar-se, como se o subjugasse de algum modo.
Essa cena demarca uma ruptura entre os dois personagens.
A justificativa de Vore à interpelação de Tina expõe o plano de vingança do trol
em punir crianças humanas com sofrimentos semelhantes aos que eles sofreram ao serem
tirados dos próprios pais. Vore não qualifica o próprio ato como criminoso ou imoral,
uma vez que não é humano e que não tem que viver sob o mesmo código de conduta que
a humanidade. Na visão dele, ele contribui para que os humanos, espécie que ele odeia e
despreza, machuquem uns aos outros e a seus próprios filhos (entendendo filhos como
qualquer criança humana, em um sentido especista e generalizante). Vore entende o
próprio gesto como um ato político. Ele coloca-se em guerra contra a espécie humana e
está retaliando um gesto há muito tempo perpetrado contra os trols pela humanidade.
Vore atualiza a narrativa folclórica da troca de crianças, comum nos contos
maravilhosos europeus, em que uma entidade da floresta (trols, fadas, ogros, goblins)
raptam crianças humanas (figura 29). O tema da troca de crianças foi representado em
diversas ilustrações de contos maravilhosos e, possivelmente, remete ao infanticídio e à
mortalidade infantil frequentes na Europa rural pré-capitalista. Ao atualizar um tema
mítico, Border retoma a relação ambígua entre história e mitologia presente na biografia
dos dois trols do filme.
192
De modo diverso aos contos de fada, Vore não rapta crianças humanas para viver
na floresta dos trols, mas para vendê-las a criminosos sexuais. Ao trazer essa relação, o
filme contrapõe duas formas de monstruosidade: o corpo do trol e a monstruosidade moral
do pedófilo. A ideia de uma monstruosidade moral reflete um dispositivo sociológico de
produção e enquadramento de anomalias sociais. Trata-se de um processo discursivo que
identifica determinados sujeitos ou modos de vida como gravemente disruptivos do ponto
de vista da ordem social. A construção desse tipo de monstruosidade elabora uma
complexa equação que envolve corpo, estigma, marcadores da diferença e valores morais
de um grupo social. Alguns exemplos foram discutidos ao longo desta tese, como no caso
das roaches em Black Mirror, ou ainda em como Girard (2004) discute a teoria do bode
expiatório.
Para Foucault (2010), o monstro moral emerge como um problema social a partir
do século XIX como um tipo de sujeito que rompe com os pactos sociais. O autor observa
uma constante relação entre monstruosidade e criminalidade que, a essa altura, ganha
193
outros contornos. Se o monstro humano poderia ser visto com potencialmente criminoso,
a partir do surgimento do monstro moral o delinquente comum passa a ser suspeito de
uma monstruosidade intrínseca. A emergência do monstro moral coloca em pauta a
aplicabilidade das leis punitivas: como punir um sujeito que coloca-se fora do pacto
social? Como lidar com um monstro moral que é identificado como inimigo absoluto de
uma sociedade?
O monstro moral, continua Foucault (2010), passa a fazer parte do quadro geral
da criminalidade moderna e é identificado como parte da genealogia da anormalidade. O
anormal surge a partir de um pano de fundo em que as patologias sexuais são codificadas
pela medicina e pelo direito, mais especificamente pela psiquiatria penal ou psicologia
criminal (FOUCAULT, 2010). O autor não discute raça diretamente, mas devo
acrescentar que a produção de uma monstruosidade moral, a saber, a codificação de
determinados sujeitos desviantes como monstros, portadores de uma patologia
irreversível, implica em um atravessamento entre sexualidade, raça, classe e outros
marcadores sociais da diferença.
A pedofilia, contudo, parece denotar o grau mais radical e mais inaceitável da
monstruosidade moral no século XXI. O crime é perpetrado em Border por humanos,
europeus de classe média, em um país de baixa desigualdade social e que não remetem a
nenhum estereótipo conhecido de criminoso. Vore acentua esse contraponto ao reiterar
que a humanidade efetua crimes contra suas próprias crianças com a mesma intensidade
que o fez contra as crianças trols. Border não propõe um juízo elaborado sobre a pedofilia,
não busca relativizar como questão de saúde psíquica. O ponto de vista dos criminosos
não é apresentado e eles não demonstram arrependimento, tampouco são psicopatas
caricatos frios e indiferentes à dor do outro. São sujeitos comuns, ordinários, que jamais
atrairiam olhares desconfiados na rua, como ocorre com Tina e Vore. O posicionamento
da pedofilia no filme denota um limite incontornável para a moral humana.
O juízo exibido sobre a pedofilia é o juízo do senso comum que vê o crime como
algo que extrapola o entendimento dos códigos penais, algo hediondo. Quem pratica esse
crime é imediatamente tido como um sujeito monstruoso. O crime contra a infância
perverte a continuidade da vida social. O crime é praticado contra as vítimas mais
indefesas e vulneráveis, e fere diretamente a constituição da família, do indivíduo e a
preservação do futuro. A atuação de Vore realiza um espelhamento entre a rede de
criminosos pedófilos e a rede institucional que capturou famílias trols e expôs seus filhos
à violência humana. Esse espelhamento, perpetrado pelo que o monstro entende como
194
uma vingança justa, demonstra a dependência radical do sujeito diante de redes de amparo
e de socialização (BUTLER, 2021).
Essa noção é explorada por Butler a fim de entender a relação entre
interdependência entre sujeitos e a precarização da vida. O argumento da filósofa reforça
a ideia de que os corpos são precários diante da estrutura social que o mantém vivo
(BUTLER, 2021). Interessa-me não tanto refletir sobre o conceito de interdependência
em Butler, mas sim pensar no gesto reproduzido em Border de interrupção e perversão
dos processos de individuação. Quando nascemos somos entregues a alguém e
dependemos dessa estrutura de cuidado para sobreviver e emergir como um sujeito. O
rapto de crianças — crianças humanas e crianças trols — interrompe a cadeia de cuidado
e de socialização e implica em uma sobrevivência igualmente degenerada e precarizada.
Tina e Vore têm sua existência como trol interrompida e diminuída. Do mesmo modo que
as crianças raptadas pelos criminosos estarão sujeitas a uma violência inimaginável.
Para Vore, a violência opera uma simetria, com a diferença de que o sofrimento
que ele sofrera na infância foi promovido institucionalmente pelo Estado. É esse mesmo
Estado, sob a força policial, que é acionado para desmontar a rede de pedófilos com quem
Vore atua. O crime contra as crianças humanas implica, também, em um dispositivo de
destruição social do futuro. Uma ameaça concreta ao corpo das crianças individualmente
e à continuidade corpo social como um todo. Diante disso, a pedofilia é apresentada no
filme como o epítome da monstruosidade moral. Border posiciona essas ações de modo
paralelo, não como um modo de igualar as experiências dos humanos com as dos
monstros. Não há a identificação de um fundo comum humano, como os discursos
históricos e científicos sobre a anomalia tendem a proferir. Ao comparar ou intercalar as
experiências humanas e monstruosas, a narrativa acentua o caráter assimétrico dessas
realidades, ainda que no discurso de Vore ele esteja procedendo de modo paritário.
Ao trazer a pedofilia, e não outro crime qualquer, o filme realiza uma
desconstrução radical entre a monstruosidade discursiva e a monstruosidade como um
modo de vida. A primeira consiste em uma construção social/moral que atribui valores
radicalmente negativos a alguns sujeitos em detrimento de outros, e que equaciona
monstro e monstruosidade de modo causal. A segunda, a monstruosidade como modo de
vida, expressa por Tina e por Vore, implica em uma relação própria entre sujeito e
ambiente, uma relação perspectiva que produz modalidades de mundo. Isso sugere pensar
o monstro ontologicamente, partir de outros pontos de referência, de intencionalidade e
de autodescrição, e não a partir de um atributo moral.
195
A partir do ponto de vista dos trols, a monstruosidade moral pode ser atribuída
unicamente a sujeitos humanos. Vore realiza uma ação criminosa, hedionda para a cultura
humana, e ainda assim não contradiz a moral dele. Não se trata de uma relativização
gratuita. Vore não é um animal irracional inconsciente dos seus atos. Ele realiza uma ação
intencional a partir de um conjunto de valores que não é o humano e não tem razão de
ser. Ainda assim, seus atos são entendidos como uma resposta à humanidade, e, por isso
mesmo, reativo e condicionado pela moral humana. O ato de Vore parece nos conduzir
para um dilema ético próprio da humanidade e do humanismo. Se pudermos considerar o
ato de Vore tão hediondo quanto o dos pedófilos do filme, faremos isso entrando em
defesa absoluta das vítimas. Diante disso, estaremos equiparando esse crime com a
violência que Vore, Tina e o extenso grupo de trols sepultados em um cemitério anônimo
sofreram. A violência do Estado e a violência dos pedófilos estariam em um mesmo
patamar moral. Esse é o argumento de Vore.
Se recorro a essa inversão é para explorar com mais intensidade o ponto de vista
de Vore. Concepções que pensam o estado como monstruoso não são novas, podem ser
encontradas, por exemplo, na obra do Marquês de Sade, como evidenciado por Foucault
(2010). Do mesmo modo que pensar a violência do monstro (a criatura) como uma reação
reparadora ou justa pode ser entendido como um modo de humanizar a criatura, como no
caso do monstro de Frankenstein. Ou ainda como um modo de responsabilizar a
humanidade por problemas criados por ela, como no caso de Godzilla. Contudo, esse
raciocínio, mesmo que entendido pela tomada de posição política de Vore (uma posição
de guerra), é condicionado pela influência humana na socialização do monstro.
O contraponto proposto por Tina, no entanto, lida com esse paradoxo a partir de
uma recusa a tomar parte no conflito humanos-trols. Após a discussão mencionada
anteriormente, em que Tina confronta Vore sobre o rapto de crianças, ela descobre que o
filho recém-nascido de seus vizinhos fora raptado. Em seu lugar fora posto a figura pálida
do heesit, vestindo roupas de bebê. A criança é filha de um jovem casal, personagens que
são mostrados anteriormente como amigos próximos de Tina. Na ocasião do rapto da
criança, Vore desaparece e deixa um bilhete para Tina: “Você não é humana. Me encontre
no barco”. Acompanhada pela polícia, Tina vai ao encontro de Vore em um grande barco
de passageiros. Vore convoca Tina a tomar parte na guerra contra os humanos: “Nós
temos uma obrigação. Podemos dar continuidade à nossa espécie. Você e eu. Voltaremos
a ser muitos”.
196
do recém-nascido com atenção e desconfiança. Pelo cheiro, ela reconhece a criança como
o filho que tivera com Vore, gestado no corpo dele. Na grande caixa em que veio a
criança, um cartão postal da Finlândia, país vizinho onde, segundo Vore, encontram-se
comunidades nômades de trols.
Tina passeia com o filho pelo jardim, na tentativa de acalmar o choro da criança.
A personagem repete de modo instintivo o gesto que dá início ao filme: recolhe da
vegetação um inseto, idêntico ao do começo da narrativa, e alimenta o filho, que come o
bicho calmamente. O ato de nutrir não vem pela amamentação. Sequer sabemos se é algo
que o corpo de Tina é capaz, ou se Vore poderia amamentar um recém-nascido gestado
no corpo dele. O gesto, contudo, imprime um sentido para ações da personagem que
pareciam desconexas. A conclusão do filme encena a formação de uma família e a
possibilidade da continuidade e do futuro, tanto de Tina e do filho, quanto da
monstruosidade como um modo de vida.
O futuro que é aberto como possibilidade não é o mesmo proposto por Vore, como
reação e guerra à humanidade. O cenário está ausente de humanos e há a possibilidade de
um investimento no mundo a partir do corpo, da qualidade perspectiva daqueles dois
personagens restantes em um jardim ocupado pela natureza. Não temos certeza se a
personagem vai procurar outros trols na Finlândia, mesmo que o cartão postal indique
essa possibilidade. O futuro colocado em aberto talvez seja a imagem mais importante da
cena de Tina com um filho no braço. Não estou seguro se podemos chamar essa relação
de maternidade pois não temos acesso a um vocabulário específico à vida trol. Não
sabemos, também, se esse léxico é realmente necessário. O que vemos é a realização de
198
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As teses de Cohen foram discutidas no primeiro capítulo desta tese, onde detalhei
a epistemologia proposta pelo autor e expressei alguns pontos de discordância com o
pensamento proposto por ele. A ideia de que o monstro surge nos espaços culturais como
uma reação a afetos históricos, como um tipo de sintoma ou corporificação de relações
sociais complexas, e a ideia que essa reação goza de relativa universalidade na cultura
ocidental são os dois pontos em que o esforço desta pesquisa se distanciou das assertivas
de Cohen. Não acredito que o aparecimento do monstro esteja isento totalmente de um
caráter histórico reativo, a noção mesma de alteridade surge a partir do encontro com a
diferença, como reação ao encontro com o outro. Contudo, o monstro elabora modos de
pensar a alteridade que demanda entendê-lo como algo mais que um sintoma cultural.
Cohen defende que “os monstros devem ser analisados no interior da intrincada
matriz de relações (sociais, culturais e lítero-históricas) que os geram” (COHEN, 2000,
p.28). Minha proposta buscou descobrir se o monstro é capaz de produzir outras matrizes
de relações que não as culturais/humanas. O interesse que motivou esta pesquisa foi
descobrir se essas outras relações são possíveis e se o monstro pode ser entendido a partir
delas. Se retomo aqui o pensamento de Cohen é pela importância da obra dele para os
estudos sobre monstruosidade.
A defesa do autor é a de que monstro sempre escapa da morte, ainda que o corpo
pereça. Assim, o monstro torna a perturbar a cultura condensando no seu corpo temores
e questões críticas próprias ao contexto histórico em que surge. De fato, a permanência e
a insistência da cultura midiática contemporânea em atualizar o tema do monstro inquieta
esta pesquisa. Ao olharmos para obras audiovisuais recentes, por exemplo, encontramos
um número significativo de personagens ou elementos monstruosos em destaque.
Dragões, sereias, vampiros, híbridos, zumbis. Essa recorrência parece endossar a tese de
Cohen, ainda que de modo parcial, pois a repetição do tema deixa um rastro de
indiscernibilidade que me interessou particularmente.
A morte do monstro, para Cohen, o desmaterializa em forma de afeto, como uma
ideia ou sensação que retorna diversas vezes. Contudo, enquanto vivo o monstro habita o
mundo com um corpo e em relação com outros corpos e com o ambiente. Esse corpo
perturba os sistemas culturais ao mesmo tempo que vive sensações e experiências que lhe
são próprias: dor, prazer, amor, ódio, fúria, medo, desejo, vingança, esperança.
Sentimentos experimentados por todos os personagens que essa pesquisa se dedicou a
investigar. Nesse sentido, a partir da tese de Cohen, eu gostaria de acrescentar que o
monstro escapa não apenas da morte. O monstro escapa, sobretudo, dos regimes de
202
1932), Inferninho (Pedro Diógenes e Guto Parente, 2018), As Boas Maneiras (Juliana
Rojas e Marco Dutra, 2017) e Border (Ali Abbasi, 2018).
O conjunto de objetos investigados na tese apresenta formas e abordagens muito
distintas de monstruosidade. A natureza desta pesquisa e a variedade de monstros
investigados faz com que uma conclusão convergente e definitiva seja não apenas
impossível mas também indesejável. Interessou-me pensar a pluralidade das formas de
política empreendidas pelos sujeitos monstruosos, de modo que a diversidade apresentada
condiz com o esforço de investigação. Contudo, as vizinhanças possíveis entre as obras e
as experiências indicam alguns caminhos que estabilizam o percurso de pesquisa em
algumas considerações finais.
O percurso dos capítulos de análise contempla um arco de instituições culturais
que passa pelas instâncias do mito, do corpo, da comunidade, dos espaços, da família, da
ciência, do estado e da natureza. Estas categorias são pontos de tensão importantes e
atravessam todos os objetos, ainda que em alguns tenham mais destaque que em outros.
O monstro é capaz de perturbar os conceitos usuais e normativos dessas categorias e, ao
fazer isso, entra em conflito com a norma e com os modos normativos de definir e
reconhecer esses elementos. Dito de outro modo, a presença do monstro é lida pela norma
como uma perversão ou subversão do que pode ser entendido como corpo, comunidade,
família, espaço, estado e natureza. O monstro ocupa essas instituições sociais como
mácula ou como uma experiência degenerada.
Do ponto de vista do monstro, no entanto, o que pode ser observado é uma relação
outra do vivente com as instituições, um tipo de relação que propõe outros usos e
significados para elas. O monstro experiencia uma relação sujeito-ambiente que parte de
pontos de referência, de intencionalidade e de perspectiva que lhes são próprios. Ao fazer
isso, o monstro produz outro tipo de mundo e saberes e experiências sobre esse mundo,
que tornam inócua a noção de um centro hegemônico para onde convergem as instituições
e práticas de poder e saber.
Diante disso, o monstro é capaz de tensionar a noção de pessoa e a noção de vida,
dois estatutos ligados ao humano que repousam sobre certa estabilidade e naturalidade
em sua concepção. Um recém-nascido com cauda de porco ou uma criança que alterna
entre humana e lobisomem podem ser entendidas como vidas humanas pela biologia?
Qual taxonomia é possível a elas? Ou ainda, uma pequena família composta por um trol
e seu filho, habitando a borda de uma floresta, conta como uma vida de fato para a
204
sociedade? Ainda assim, o monstro está vivo, produz relações e negocia circunstâncias
que garantem sua permanência no mundo.
O que o conjunto de objetos torna evidente é o papel da alteridade na constituição
de formas políticas pelo monstro. Contudo, a alteridade nesse contexto não diz respeito
aos modos como a cultura percebe o outro, ou como a relação entre humano e monstro
negocia a diferença. O que importa é a relação que o monstro estabelece com outras
formas de vida dissidentes, ou ainda com outros monstros. Trata-se de um delicado modo
de lidar com a alteridade, uma vez que o contato entre monstros não significa o encontro
com um igual, mas sim uma relação que é estabelecida a partir do reconhecimento
recíproco e da intensificação de zonas de diferença.
Essas filiações baseadas no reconhecimento a partir da dessemelhança tornam as
relações monstruosas possíveis. Os monstros analisados no começo da tese, notadamente
o minotauro e o nascido monstro de Cem Anos de Solidão, perecem rapidamente. Morrem
silenciosos sem produzir descendência, ou sem serem nomeados, como ocorre no
segundo caso. A partir de Freaks começamos a perceber o tipo de aliança e de filiação
que produz estruturas seguras o suficiente para garantir a vida e a continuidade do
monstro. Essas filiações ganham contornos de coletividade e assembleia em Freaks, de
comunidade em Inferninho, de família em As Boas Maneiras e de espécie em Border. O
que é central nessas relações é a possibilidade de um engajamento coletivo que torna a
vida possível e que produz modos outros de desenvolver e viver essas vidas.
A filiação com elementos não antropocêntricos me parece o mais importante no
que toca a vida política dos monstros, sobretudo pela possiblidade de produzir laços
afetivos e políticos baseados em outros modos de reconhecimento que não estão sujeitos
ao imperativo da identidade e da inteligibilidade. Diante disso, o monstro coloca em
evidência que as categorias culturais falham em reconhecer um número significante de
sujeitos e falha ao tentar reconhecer os sujeitos como uma coletividade unificada. O
monstro coloca-se como uma possibilidade de abrir essas categorias normativas do
reconhecimento, colocar-se como um empecilho ao seu funcionamento regular e propor
outras modalidades de reconhecimento, bem como outros léxicos para entendê-las.
Gostaria de retomar a pergunta que abre essa investigação: qual política é possível
aos monstros? Ao tomar o conjunto de objetos e de sujeitos monstruosos que essa tese
acompanhou, é possível entrever modalidades e variações políticas possíveis a essa
pergunta. Em conjunto, no entanto, os monstros parecem equacionar de modo
heterogêneo ontologia e política. A condição monstruosa e as práticas sociais engajadas
205
pelos monstros são constantemente acionadas como modos inventivos de propor relações
outras de sociabilidade e de subjetivação.
O percurso desenhado pela tese evidencia os modos em que a alteridade é acionada
como um dispositivo de produção de relações. Os monstros que acompanhei empreendem
em suas práticas cotidianas modos de vida condicionados por um tipo de fuga da morte,
ou luta por sobrevivência que é salutar apontar. Criaturas como os nascidos monstros em
Cem Anos de Solidão, ou mesmo o Minotauro e as roaches de Black Mirror, perecem ou
são exterminadas compulsoriamente. Formas de engajamento coletivo, como os que
ocorrem em Freaks e Inferninho, ou modos de produzir família, como vemos em As Boas
Maneiras, agem como dispositivos de gestão da precariedade. Trata-se de modos de
proteção e de manutenção da vida que tornam a existência material dos monstros viável.
Border, por sua vez, ensaia um passo além dessa relação. Tina e o filho apresentam
um tipo de futuro e de composição social que, até então, não fora vista. Ao espectador e
ao investigador, cabe apenas elucubrar que tipo de vida política pode ser desenhada a
partir do final do filme. Em certo sentido, Border realiza a utopia abortada do romance
Frankenstein. Nos eventos do romance de Shelley, a criatura pede ao cientista que
produza uma companheira. Com ela, o monstro deveria ir viver nos confins da América
do Sul. Como sabemos, o plano é interrompido. Border realiza o gesto ao trazer a pequena
família de trols no limiar da floresta. Os monstros não estão mais fugindo da morte, mas
sim diante de um futuro aberto.
Com isso, não quero sugerir que a negação total da cultura e da civilização seja a
resposta possível para a política dos monstros, mas sim, a invenção de modos de vida que
não dependam dos interditos reiterados da cultura, como o tabu do incesto e o monopólio
da violência pelo Estado. Border traz a utopia para o horizonte da política do monstro e
propõe um tipo de futuro e de relações sociais até então desconhecidas. Com Tina, o
inimaginável torna-se um possibilidade concreta. Nesse sentido, os trols apresentam um
tipo de comunidade que varia não mais em graus ou valências de alteridade. Trata-se de
uma natureza outra que é apresentada. Com ela, outros modos de humanidades e de
pessoalidades são propostos em detrimento de qualquer noção hegemônica e teleológica
do sujeito antropológico. O futuro aberto por Tina e pelo filho denota a necessidade de
novas antropologias. Uma ciência dos monstros deverá estar atenta a essa demanda.
Pensar a vida política dos monstros implica um movimento de perceber esse
conjunto de pessoalidades dissidentes que reivindicam práticas de vida e de visibilidade
em um contexto social maior, que inclui não apenas homens e monstros, mas outras
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