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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

JOÃO VICTOR DE SOUSA CAVALCANTE

A VIDA POLÍTICA DOS MONSTROS: pessoalidades dissidentes na


ficção contemporânea

Recife
2022
JOÃO VICTOR DE SOUSA CAVALCANTE

A VIDA POLÍTICA DOS MONSTROS: pessoalidades dissidentes na


ficção contemporânea

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do título de doutor em
Comunicação.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Duarte Gomes da Silva.

Área de concentração: Comunicação

Linha de Pesquisa: Estéticas e culturas da imagem e do som

Recife
2022
Catalogação na fonte
Bibliotecária Mariana de Souza Alves – CRB-4/2105

C377v Cavalcante, João Victor de Sousa


A vida política dos monstros: pessoalidades dissidentes na ficção
contemporânea. / João Victor de Sousa Cavalcante. – Recife, 2022.
214f.: il., fig.

Sob orientação de Eduardo Duarte Gomes da Silva.


Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de
Artes e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Comunicação,
2022.

Inclui referências.

1. Monstro. 2. Política. 3. Alteridade. 4. Comunidade. 5. Cultura Visual.


I. Silva, Eduardo Duarte Gomes da (Orientação). II. Título.

302.23 CDD (22. ed.) UFPE (CAC 2023 -35)


JOÃO VICTOR DE SOUSA CAVALCANTE

TÍTULO DO TRABALHO: “A vida política dos monstros: pessoalidades


dissidentes na ficção contemporânea”.

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação


em Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco, como requisito parcial para obtenção
do título de Doutor em Comunicação. Área de
concentração: Comunicação

Aprovada em: 12.12.2022

BANCA EXAMINADORA

Participação Via Videoconferência


PROF. EDUARDO DUARTE GOMES DA SILVA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

Participação Via Videoconferência


PROFA. ANGELA FREIRE PRYSTHON
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

Participação Via Videoconferência


PROFA. CRISTINA TEIXEIRA VIEIRA DE MELO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

Participação Via Videoconferência


PROF. FÁBIO CAVALCANTE DE ANDRADE
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

Participação Via Videoconferência


PROFA. GABRIELA MACHADO RAMOS DE ALMEIDA
ESCOLA SUPERIOR DE PUBLICIDADE E MARKETING
Ao meu pai
AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha mãe e minha irmã, Letícia e Amanda, pelo apoio, pelo amor e pelo
suporte. Por terem sido presença constante nesse percurso. E ao meu pai, a quem dedico
essa tese.
Aos meus familiares que foram presenças atentas à minha educação, em especial aos
meus avós Diná e Analilho e à tia Lúcia.
Ao meu orientador, Eduardo Duarte, pela confiança, pela generosidade e pela parceria.
Por ter aceitado caminhar comigo durante esses anos.
Às contribuições das professoras Angela Prysthon e Cristina Teixeira no exame de
qualificação e durante a defesa. Aos professores Gabriela Almeida e Fábio Andrade pela
leitura atenta e generosa durante a defesa da tese.
Sou grato ao PPGCOM da UFPE, aos professores de quem fui aluno e aos funcionários
que me acolheram nesses anos de UFPE.
Aos amigos do grupo de pesquisa Narrativas Contemporâneas, pelos momentos de
partilha coletiva, de parceria, pelas sugestões e inquietações que ajudaram a construir essa
tese: Mariana, Rosa, Alan, Rafael, Bruno, Rafaela, Camila, Gabriel, Márcio.
À família que tive em Recife, Isadora, Emilly e Tatá, que foram minha casa em uma
cidade nova.
Aos amigos que fiz em Recife, Renato, Marcela, Breno e Larissa, amigos queridos que
me apresentaram a cidade, os carnavais, e com quem dividi o cotidiano durantes os anos
de UFPE.
À Raquel, pela parceria e pela amizade de todos os dias.
Aos amigos de Fortaleza, em especial, Caio, Gustavo e Chico, pelo companheirismo, pela
paciência e pelo acolhimento.
Aos meus alunos da disciplina “Monstros e monstruosidades na literatura e no cinema”,
pelas inquietações, pelas contribuições e por colocarem perguntas que alteraram o
desenvolvimento desse trabalho.
À Zoe, Nina e Siouxsie, por me ensinarem a ser menos homo sapiens.
Essa pesquisa, realizada em uma universidade pública, com bolsa de pesquisa. A tese foi
feita a despeito dos esforços do governo em desmontar a educação e a ciência do País.
Parte significante desse trabalho aconteceu nos períodos de isolamento social durante a
pandemia de Covid-19. Encontrar sentido e força para continuar pesquisando em dias em
que morriam 4 mil pessoas é um sentimento que está impresso nas páginas que seguem.
A luta política deveria passar por todos os lugares onde se fabrica um
futuro que ninguém ousa realmente imaginar, não se restringir à defesa
dos sentimentos adquiridos ou à denúncia dos escândalos, mas se
apoderar da questão da fabricação desse futuro. (No tempo das
catástrofes, Isabelle Stengers)
E quando ele chegou aonde vivem os monstros eles rugiram seus
terríveis rugidos e arreganharam seus terríveis dentes e reviraram seus
terríveis olhos e mostraram suas terríveis garras (Onde Vivem os
Monstros, Maurice Sendak)
RESUMO

A tese investiga a vida política dos monstros a partir de um conjunto de aparições de


sujeitos monstruosos na cultura visual e na ficção contemporânea. A pesquisa pensa o
monstro como um modo de vida que resiste aos efeitos normativos de codificação e de
reconhecimento dos sujeitos. O monstro apresenta-se no corpus como um tipo de
pessoalidade dissidente, que relaciona-se com o mundo a partir de outros pontos de
referência, de intencionalidade e de interpretação de si. A tese elabora a hipótese de que
o monstro propõe modos de vida, configurações de subjetividade e de subjetivação, e
vivencia experiências de sociabilidade e de comunidade. De modo resumido, o monstro
propõe formas de vida e de mundo a partir de uma perspectiva que lhe é própria. O
objetivo desta tese é investigar essa perspectiva e entender qual configuração política é
possível aos sujeitos monstruosos. O argumento desenvolvido toma o monstro como um
tipo de pessoalidade capaz de imaginar modos outros de perceber e habitar o mundo que
não os engendrados por uma visão antropocêntrica. O monstro produz formas de comum
e de sujeito ininteligíveis, e, ainda assim, capazes de propor uma política e modos outros
de lidar com a alteridade. A fórmula do argumento pode ser depurada na indagação sobre
como pessoalidades monstruosas imaginam e habitam comunidades.

Palavras-chave: Monstro. Política. Alteridade. Comunidade. Cultura Visual.


ABSTRACT

The thesis investigates the political life of monsters from a set of appearances of
monstrous subjects in visual culture and contemporary fiction. The research thinks the
monster as a way of life that resists the normative effects of encoding and recognition of
subjects. The monster appears in the corpus as a type of dissident personality, which
relates to the world from other points of reference, intentionality and self-interpretation.
The thesis elaborates the hypothesis that the monster proposes ways of life, configurations
of subjectivity and subjectivation, and passes by experiences of sociability and
community. In short, the monster proposes ways of life and world modalities from its
own perspective. The aim of this thesis is to investigate this perspective and understand
what political configuration is possible for monstrous subjects. The argument developed
takes the monster as a type of personality capable of imagining other ways of perceiving
and inhabiting the world than those engendered by an anthropocentric vision. The
monster produces unintelligible forms of the common and of the subject, and yet capable
of proposing a policy and other ways of dealing with alterity. The argument's formula can
be refined by asking how monstrous personalities imagine and inhabit communities.

Keywords: Monster. Policy. Alterity. Community. Visual Culture.


RESUMEN

La tesis investiga la vida política de los monstruos a partir de un conjunto de apariciones


de sujetos monstruosos en la cultura visual y la ficción contemporánea. La investigación
piensa en el monstruo como una forma de vida que resiste los efectos normativos de
codificación y reconocimiento de sujetos. El monstruo se presenta en el corpus como una
especie de personalidad disidente, que se relaciona con el mundo desde otros puntos de
referencia, intencionalidad y autointerpretación. La tesis elabora la hipótesis de que el
monstruo propone modos de vida, configuraciones de subjetividad y subjetivación, y
vivencias de sociabilidad y vivencias comunitarias. En definitiva, el monstruo propone
modos de vida y de mundo desde su propia perspectiva. El objetivo de esta tesis es
investigar esta perspectiva y comprender qué configuración política es posible para los
sujetos monstruosos. El argumento desarrollado toma al monstruo como un tipo de
personalidad capaz de imaginar otras formas de percibir y habitar el mundo distintas a las
engendradas por una visión antropocéntrica. El monstruo produce formas ininteligibles
de lo común y sujeto, y sin embargo capaces de proponer una política y otras formas de
afrontar la alteridad. La fórmula del argumento se puede refinar preguntando cómo las
personalidades monstruosas imaginan y habitan las comunidades.

Palabras clave: Monstruo. Política. Alteridad. Comunidad. Cultura Visual.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11
2 O IMPACTO DO CONCEITO DE MONSTRO SOBRE O CONCEITO DE
CULTURA............................................................................................................................. 26
2.1 O MINOTAURO........................................................................................................... 26
2.2 O RETRATO DO MONSTRO ..................................................................................... 31
2.3 O QUE É UM MONSTRO?.......................................................................................... 39
2.4 AS HIPÓTESES ...................................................................................................................... 48
2.5 MÁQUINA DE FAZER MONSTROS ......................................................................... 53
3 O CORPO DO MONSTRO: VARIAÇÕES ENTRE O FRACASSO E A
IMAGINAÇÃO .................................................................................................................... 65
3.1 AS INQUIETAÇÕES DE ÚRSULA BUENDÍA ......................................................... 65
3.2 OS NASCIMENTOS MONSTRUOSOS...................................................................... 70
3.3 PROBLEMAS NO PARQUE HUMANO .................................................................... 80
3.4 O QUE PODE UM HOMEM INCOMPLETO? ........................................................... 91
3.5 COMUNIDADES IMAGINADAS............................................................................. 101
3.6 CORPOS QUE FRACASSAM ................................................................................... 110
4 O MONSTRO CONTRA O ESTADO: RELAÇÕES DE PARENTESCO E
HETEROTOPIAS ............................................................................................................. 116
4.1 OS MODOS À MESA ................................................................................................ 116
4.2 SANGUE RUIM ......................................................................................................... 124
3.3 EXCURSO: O LOBO ................................................................................................. 136
4.4 O ESTADO ................................................................................................................. 145
5 A NATUREZA DOS TROLLS E O FUTURO DOS MONSTROS ......................... 157
5.1 A TERCEIRA MARGEM .......................................................................................... 161
5.2 UM MONSTRO PÁLIDO, DÓCIL E MELANCÓLICO .......................................... 169
5.3 A VIDA SEXUAL DOS TROLS................................................................................ 179
5.4 O FUTURO DOS MONSTROS ................................................................................. 189
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 200
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS .............................................................................. 207
11

1 INTRODUÇÃO
V INTERNACIONAL

Antes que eles destruam vocês


Atenção amigos ocultos
drácula
nosferatu
frankenstein
mr. hyde
jack the ripper
m – o vampiro de dusseldorf
monstros do mundo inteiro:
uni-vos!

(Sebastião Uchoa Leite)

O sonho da razão produz monstros


(Francisco Goya)

No encontro entre a criatura de Frankenstein e o seu criador, o cientista que


conseguiu dar vida a um constructo formado por partes irregulares de cadáveres, diz o
monstro:
E eu, o que era? Um absoluto ignorante acerca de minha criação e de meu
criador; e sabia que não tinha dinheiro, amigos, nenhum tipo de posse. Era, além
disso, uma figura horrenda, deformada e desprezível; nem ao menos da mesma
natureza de um homem eu era. Tinha mais agilidade e podia sobreviver com uma
alimentação mais simples; suportava calor e frio extremos sem ter o corpo tão
machucado; minha estatura superava muito a de um humano. Ao olhar em redor,
não via ninguém como eu, tampouco ouvia falar que alguém assim existisse.
Seria eu, então, um monstro, uma nódoa sobre a terra, alguma coisa do qual todos
os homens fugiram e a quem todos repudiavam? (SHELLEY, 2015, p, 210).

Tomo de empréstimo a fala do monstro de Frankenstein para iniciar esta


introdução, não com o intuito de discorrer sobre o romance de Mary Shelley, publicado
em 1818, mas como um modo de fazer ecoar, pela voz da criatura, as questões que
mobilizam e inquietam esta tese. Com o tempo, a popularidade da obra de Shelley e as
ininterruptas adaptações do personagem para o cinema fizeram do monstro um tipo de
metonímia do criador. Frankenstein tornou-se o nome pelo qual conhecemos e
popularizamos a criatura não nomeada no romance e que toma a palavra para questionar
a própria natureza. Há um paradoxo na fala do monstro que apresenta-se como
intransponível. Ao mesmo tempo que é criado pelo engenho do cientista, a partir de
fragmentos de cadáveres de homens, o monstro reconhece que sua “natureza” difere da
que o criador comunga com os outros indivíduos. A natureza humana lhe é alienígena,
ainda que tenha sido a matriz que lhe deu corpo e linguagem.
12

Este paradoxo apresenta-se, ao mesmo tempo, como algo incontornável e como


ponto de partida para entender a presença dos monstros na cultura. O monstro, nesse
paradoxo, é mostrado como uma alteridade negativa, repudiado pelos homens a quem
denotaria um risco ou uma ameaça genérica e abstrata, e, ainda assim, uma nódoa
produzida pela cultura. Quais mecanismos levam uma determinada cultura a produzir
monstros? Victor Frankenstein, o criador, enveredou por essa tarefa a fim de descobrir a
origem mesma da vida, influenciado pelas então recentes descobertas da filosofia natural,
do galvanismo e da eletricidade. O cientista foi respaldado por uma dobra na história da
ciência moderna e do humanismo europeu. No livro, ressoam de modo heterogêneo a
influência do Iluminismo e da Revolução Francesa, ocorrida décadas antes da
publicação1. Essa convergência de fatores parece explicar como uma sociedade produz
monstros e o romance de Shelley abre um precedente para a estreita relação entre ciência,
humanismo e monstruosidade. No entanto, pergunta do monstro — “E eu, o que era?” —
permanece sem resposta.
A investigação empreendida nessa tese repete o desvio ontológico contido na
pergunta da criatura e busca levantar questões sobre o modo de vida que os monstros
propõem ou experienciam. O trabalho afasta-se de um esforço em entender o que isso
pode significar para definir o homem (o masculino singular é mantido aqui para demarcar
a ideia de um homem universal). Defendo que a pergunta da criatura de Frankenstein não
repete o cogito cartesiano e nem indica meramente que a capacidade de linguagem e de
racionalidade o equiparam ontologicamente ao humano. Minha proposta vai em uma
direção distinta: há algo que existe, a que chamamos monstro, que vive em termos que
lhe são próprios, habitam o mundo e produzem experiências sobre esse mundo. Interessa-
me entender essas experiências. Dito de outro modo, o objetivo desta tese é investigar o
monstro como forma de vida.
A presença do monstro é comumente compreendida a partir do medo e do impacto
que causam na cultura e nas emoções humanas (CARROL, 1999; COHEN, 1996;
DELUMEAU, 2009; MITTMAN, 2013). Ainda que incapaz de compreender qual sua
real natureza, o monstro de Frankenstein apresenta a si mesmo a partir da repulsa que
causa nos sujeitos humanos. Estamos habituados, sobretudo a partir da ficção, a
identificar o monstro em conformidade com o sujeito humano que lida com ele. Os
personagens humanos, principalmente os das obras de horror, demonstram como

1
As relações ente a obra de Shelley e a ressonância da Revolução Francesa são discutidas em Ciacco (2016).
13

devemos reagir aos monstros da ficção (CARROL, 1999). O monstro é, portanto,


codificado a partir do olhar humano. Ele é identificado como uma alteridade negativa e
subalterna e que representa uma ameaça ao funcionamento regular das instituições e da
vida humanas.
Tradicionalmente, o monstro é pensado na cultura como um desvio, um corpo que
externaliza sentimentos conflituosos da matriz criadora, seja o sujeito, a sociedade ou o
tempo histórico. O monstro é interpretado como a corporificação de uma crise subjetiva
ou social (COHEN, 1996), como um outro da cultura, ao mesmo tempo que gerado por
ela. Essa concepção é fértil em lançar luz aos problemas humanos mas deixa sem resposta
as questões relativas ao monstro. O monstro resta sem política. Ao questionar sua
natureza, a criatura de Frankenstein passa a ocupar uma zona indefinida de existência,
que persiste como uma ontologia ainda que sem corresponder à humanidade. A pergunta
da criatura pode ser reformulada em outros termos: o que é o monstro?
O interesse desta pesquisa não é tanto responder a essa questão, ainda que formas
de conceituar o monstro sejam exploradas ao longo do texto. Minhas inquietações partem
dessa interrogação como um modo de escutar a fala do monstro. Nesse sentido, procedo
epistemologicamente influenciado pela formulação de W.J.T. Mitchell (2015) que propõe
perguntar o que as imagens querem. A proposta de Mitchell é considerar a imagem de
modo distinto ao escopo tradicional de análise, que busca entender o que as imagens
significam, como se comunicam como signos e símbolos e como afetam as emoções
humanas. Para o autor, a imagem é concebida como a expressão do desejo do artista ou
em função do desejo do espectador: “gostaria de deslocar o desejo para as próprias
imagens e perguntar o que elas querem” (MITCHELL, 2015, p.165).
O exercício de Mitchell reencena o gesto similar de Freud (o que querem as
mulheres?) e Fanon (que quer o homem negro?2) e reflete em um outro modo de elaborar
a alteridade. O deslocamento proposto pelo autor “ecoa toda a investigação a respeito do
desejo do Outro desprezado ou menosprezado, da minoria, do subalterno, que tem sido
tão central para os estudos modernos sobre gênero, sexualidade e etnia” (MITCHELL,
2015, p.166). Estou ciente de que os procedimentos de investigação da imagem e do
monstro são distintos, mesmo que a relação entre monstro e imagem seja bastante
aproximada. Busco redirecionar a pergunta da criatura de Frankenstein — o que sou eu,
ou o que é o monstro — para uma questão política: o que querem os monstros?

2
Cf. Fanon, 2008.
14

O que proponho é deslocar a reflexão sobre a monstruosidade de um campo


sociológico e simbólico para um campo ontológico e político. Não pretendo com isso
personalizar o monstro a partir de predicativos humanos, mas entender como esses
predicativos são desmobilizados, transformados e redistribuídos a partir da ação do
monstro. Ainda que deslocar a questão para o desejo possa indicar um direcionamento
para a psicanálise, devo adiantar que não é este o interesse da pesquisa, tampouco
subjetivar o monstro em termos de uma psicologia. Esse deslocamento implica em
abandonar interpretações que tomem o monstro como uma metáfora, signo ou símbolo
abstrato da vida humana. O que é um monstro? O que querem os monstros? Qual a
natureza do monstro? Qual política é possível ao monstro? Qual o futuro dos monstros?
Estas questões antecedem e influenciam a formulação do problema dessa pesquisa.
A hipótese que desenvolvo nessa tese é a de que o monstro propõe modos de vida,
configurações de subjetividade e de subjetivação, e vivencia experiências de
sociabilidade e de comunidade. De modo resumido, o monstro propõe formas de vida e
de mundo a partir de uma perspectiva que lhe é própria. Nesse sentido, o objetivo desta
tese é investigar a vida política dos monstros, tomando-o como forma de vida, e a partir
de sua aparição em um conjunto de obras da ficção e da cultura visual. O argumento que
quero desenvolver toma o monstro como um tipo de pessoalidade capaz de imaginar
modos outros de perceber e habitar o mundo que não os engendrados por uma visão
antropocêntrica. O monstro produz formas de comum e de sujeito ininteligíveis, e, ainda
assim, capazes de propor uma política e modos outros de habitar a realidade. A fórmula
do meu argumento pode ser depurada na indagação sobre como pessoalidades
monstruosas imaginam e habitam comunidades.
Investigar a vida política dos monstros implica uma série de problemas, sobretudo
por que os conceitos mobilizados — vida, política e monstro — suscitam constantes
debates quanto ao seu significado e conceituação. Além disso, quando equacionados em
um problema, os termos conceituais vida e política são modificados de modo imprevisível
pelo elemento monstruoso. Isso implica que, ao me deter sobre o conjunto de objetos
desta tese, estou diante de modalidades e formas de vida heterogêneas e dinâmicas. Isso
impede um conceito fechado e teleológico de monstro e remete ao poder de
desestabilização e de desorganização de categorias e taxonomias que é próprio ao
monstro.
As explicações normativas sobre a monstruosidade tendem a encaixá-la em uma
dimensão opositiva e complementar em relação à humanidade. O monstro passa a ser
15

entendido como um outro radical do humano, parte de uma psicomaquia, um conflito


entre astra e monstra, que tende a ser reduzido em um fundo comum de humanidade.
Nesse sentido, a explicação hegemônica apresenta essa constante disputa entre uma
dimensão terrível, em que o monstro é o um elemento de destruição, e a dimensão
sublime, em que o saber elabora explicações, redenções ou execuções para o monstro.
Proceder uma investigação que tem o monstro como elemento central, no entanto, impede
de pensá-lo a partir do fundamento da oposição. Isso porque o monstro pode ser
posicionado junto àqueles fenômenos que Georges Bataille (1989) chama de
heterogêneos, elementos que apresentam uma diferença irredutível e inassimilável aos
modelos hegemônicos do saber. O termo opõe-se à noção de homogeneidade,
característica que designa os fenômenos sociais quantificáveis e classificados dentro de
uma lógica temporal linear, progressiva e produtiva. Os elementos homogêneos
confundem-se com o conceito mesmo de social, na medida em que fazem parte do todo
assimilável da cultura.
A heterogeneidade, por outro lado, indica um conjunto de fenômenos que não são
quantificáveis e que, por isso mesmo, têm uma existência em grande medida apartada dos
fenômenos sociais vigentes. A heterogeneidade “indica que se trata de elementos
impossíveis de assimilar e essa impossibilidade, que afeta fundamentalmente a
assimilação social, afeta ao mesmo tempo a assimilação científica” (BATAILLE, 1989,
p.140). Para Bataille, a ciência tem como objetivo estabelecer a homogeneidade dos
fenômenos investigados. Há toda uma sorte de eventos que são irredutíveis à
homogeneidade científica, sob o risco de perecerem em uma compreensão incompleta e
refratária. O autor elenca nesse grupo elementos como a violência, a loucura, o delírio, o
erotismo, o excesso, a ação das multidões, situações ligadas à quebra das regras da
homogeneidade social. Investigar esses fenômenos pressupõe, para Bataille, acessar
camadas do conhecimento anteriores à redução científica (BATAILLE, 1989).
O monstro faz parte desses elementos que são inassimiláveis às categorias
correntes do pensamento, do mesmo modo que produzir um léxico próprio e inédito para
dar conta das categorias da monstruosidade oferece o risco de engessá-lo em explicações
estéreis. Essa dificuldade de partida vigia as análises dessa tese. Os conceitos principais
relacionados à hipótese de trabalho, política e comunidade, são reconhecidamente ligados
ao humano e ao cultural. Contudo, mantenho essas categorias por buscar entender
justamente como o monstro reproduz e transforma essas categorias em suas práticas de
vida.
16

Pensar os sujeitos monstruosos a partir da política implica, primeiramente, a


reivindicação de um espaço outro de práticas de vida, como uma tentativa de restituir o
político ao monstro. Além disso, o ruído proposto pela relação entre monstro e política
interessa como ponto de partida. Política é um termo que vem da noção de pólis grega,
espaço fundamentado na exclusão de um sem número de “outros” (mulheres,
escravizados, estrangeiros). Contudo, não estou convencido de que o monstro esteja
completamente expulso da pólis em um sentido geral. O movimento que empreendo nesta
pesquisa não é o de inclusão do monstro na pólis, mas o de multiplicação de modos de
imaginar comunidades políticas.
O político nesta tese não é entendido de modo análogo ao conceito de poder e do
funcionamento regular das instituições, ou como extensão da influência do Estado.
Interessa-me pensar o político como uma proposta de vida coletiva, como configurações
e práticas engajadas pelo monstro e que imaginam um mundo outro, ou o mundo a partir
do monstro. O que quero descobrir, ao longo dos objetos que analiso, são configurações
políticas que emergem criativamente da ação do monstro e que tipo de conhecimento é
elaborado por essas práticas. Ao longo dos capítulos e da relação entre os objetos pretendo
observar toda uma sorte de variações da política dos monstros: levantes, filiações,
alianças, devires, diplomacias, guerras, escapes, malandragens, estratégias.
Não pretendo com isso negligenciar a relação do monstro com a norma e com as
instituições reguladoras, especialmente a noção de biopolítica. Esta persegue o monstro
como uma sombra atenta a capturá-lo em redes inteligíveis e estéreis de representação,
que docilizam, estigmatizam ou humanizam o monstro. Contudo, o objetivo principal é
pensar configurações políticas que emergem a partir da ação do monstro, modos de
imaginar e produzir outros mundos, e não inventariar os contextos políticos destinados a
eles. Endereço o olhar para a imagem e para a ficção para entrever outras realidades
possíveis. Essa operação implica um conflito do monstro com os sistemas hegemônicos
de representação. Trata-se de entender, como indagado por Butler, “o que pode ser
imaginado e em quais termos (BUTLER, 2021, p.40). Nesse sentido, o caminho
percorrido por essa pesquisa implica investigar as comunidades imaginadas pelos
monstros e restituir, ou endereçar a eles, a política que lhes é própria.
Nesse sentido, a tese empreende um esforço duplo de conceituar o monstro e de
não restringir esse conceito a uma imagem fixa. Como dito, o conceito de monstro indica
um termo em constantes disputas e dúvidas quanto ao seu significado. A significação do
17

termo, como indica o vocábulo do dicionário3, aponta para muitos caminhos: corpo
disforme, desmedido, criatura mitológica, pessoa cruel, forma de vida contrária à ordem
da natureza etc. Proceder uma investigação sobre a monstruosidade implica estar atento
à polissemia do termo, sua variação histórica e seus usos em contextos distintos. O que
chamamos monstro aponta para um amálgama de significados que contempla elementos
do mito e da imaginação, noções normativas sobre o corpo e sobre o humano, bem como
construções morais e históricas. Nesse sentido, o monstro como um estatuto linguístico é
um modo de interpelar e codificar determinados sujeitos e corpos como monstruosos,
ainda que, no senso comum, a definição de monstro seja vaga e imprecisa. O monstro,
nessa concepção, é um operador linguístico ligado ao estigma, como um termo
depreciativo relacionado ao desvio social (GOFFMAN, 2008).
O conceito de monstro com que trabalho nesta tese parte dessa relação entre
indivíduos desviantes e estigma para pensar sujeitos que não contemplam as demandas
de reconhecimento e de legibilidade sociais. Como definição preliminar, proponho que o
monstro é uma forma de vida que situa-se fora dos critérios de inteligibilidade cultural,
de classificação taxonômica e de reconhecimento como pessoa humana. O monstro, nessa
concepção, resiste à inteligibilidade e propõe formas de existência a partir de pontos de
referência e de reconhecimento não antropocêntricos. Esta visão tende a afastar-se da
noção de estigma, que sugere que o monstro é um modo de codificar sujeitos desviantes,
e propõe uma ontologia ao monstro — uma ontologia incerta e que desafia os modos
humanos de conceber a noção de pessoa. Proponho uma noção de ontologia em um
sentido não essencialista e não substancialista. Ontologia é entendida, a partir de Butler
(2019), como uma injunção normativa que produz sujeitos e não como uma fundação.
O conceito de monstro mantém, no entanto, a polissemia que lhe é própria. o mito,
o senso comum, o pensamento científico, a moral e o próprio conceito de humano.
Posicionar o monstro em uma discussão política implica, sobretudo, entender o humano
não como um estatuto fundacional que evolui a partir de uma forma elementar, mas como
um elemento histórico, como disposição assumida no saber (FOUCUALT, 2016). Nesse
sentido, o monstro não é um desvio ou perversão de uma forma fixa, o homem, mas a
variação possível de uma existência que não toma o humano como centralidade. O que
quero considerar é a possibilidade de existência de formas de vida que não são inteligíveis
e que não são reconhecíveis dentro de esquemas de classificação e que, ainda assim,

3
Para a pesquisa, consultei o dicionário online Priberam (https://dicionario.priberam.org/monstro). Outros
dicionários estão de acordo com a definição apresentada.
18

vivem e produzem relações políticas. Dito de outro modo, interessa-me investigar os


monstros como um conjunto de viventes a quem o estatuto cognoscível de pessoa está
inacessível, seja por recusa, seja por interdição.
Proponho uma passagem do estigma à condição monstruosa, como a existência de
sujeitos cuja identificação com estatutos e identidades fixas é impedida. Esse
impedimento provê condições de possibilidade para a produção de modos outros de
existência. O movimento do texto empreende uma busca pelas condições de vida do
monstro, possibilidades biográficas, concepções de mundo, relações amorosas etc. Trata-
se, em suma, de identificar e apreender a qualidade criativa e imaginativa das relações
monstruosas. Com isso, o conceito de monstro que busco estabelecer refere-se à noção de
sujeito monstruoso (e não de raça monstruosa, ou entidade monstruosa, por exemplo).
Essa concepção pode parecer incoerente a princípio, uma vez que a ideia de sujeito está
calcada em pressupostos culturais humanos. O que quero argumentar é que há
modalidades dissidentes e desviantes de sujeito, identificadas como sujeitos ou
pessoalidades monstruosas, que lidam com os princípios do reconhecimento e da
inteligibilidade fora dos esquemas culturais que sustentam o estatuto de pessoa. Esse
paradoxo faz parte da própria concepção do monstro e reacende a preocupação da criatura
de Frankenstein: criada pela cultura e radicalmente diversa dela em natureza e ontologia.
Nesse sentido, interesso-me por acompanhar esses monstros, esses sujeitos
monstruosos, na tentativa de identificar as variações e as possibilidades de vida por eles
propostas e as consequências políticas que surgem. Por conta disso, devo adiantar duas
advertências. A primeira é de que não trabalho com o horror ou terror como matrizes do
monstro. Se o medo é importante para pensar o monstro, ele o é do ponto de vista do
sujeito humano e dos modos como uma sociedade codifica os afetos negativos e
assustadores (CARROL, 1999; DELUMEAU, 2009). As obras aqui elencadas que
remetem ao terror e ao horror não são estudadas a partir das convenções formais dos
gêneros narrativos específicos. Do ponto de vista do medo, cabe dizer, interessa muito
mais perceber o que ameaça o monstro e o que ele teme, do que propriamente o medo por
ele causado.
A segunda advertência diz respeito à identificação do corpus de análise. Ainda
que esteja interessando na variação dos corpos e das possibilidades de vida, o recorte
estabelecido concentra-se em pessoalidades monstruosas. Desse modo, não investigo
raças fantásticas, fantasmas, demônios e outros exemplares que podem ser identificados
como monstros. Além disso, não estou em busca de formas abstratas e corporeidades
19

indefinidas que se relacionam com o monstro — expresso em filmes como The Fog (John
Carpenter, 1980), em que uma bruma misteriosa toma conta de uma cidade, causando
mortes e pânico. Acompanho sujeitos dissidentes que vivem em uma condição
ontologicamente monstruosa.
Não se trata, sobretudo, de fazer um elogio às formas de vida precárias e
monstruosas, violentadas pela norma e pela biopolítica. O exercício que quero propor é o
de abrir possibilidades para imaginar outras formas de vida, formas de vida que existem
e que apontam para outros modos de conceber a política. Isso não quer dizer que as
formações políticas aqui analisadas sejam por si só revolucionárias — revolução é um
termo pouco utilizado neste texto por indicar uma transformação na estrutura das relações
sociais. A política do monstro, a meu ver, contempla um potencial revolucionário, mas
não de um ponto de vista hegemônico ou das modalidades de poder.
Nesse sentido, acompanho a discussão aberta por Butler (2019), como um modo
de desafixar a relação entre homem e política como um estatuto fixo e reciprocamente
condicionado.
A tarefa aqui não é celebrar toda e qualquer nova possibilidade como
possibilidade, mas redescrever as possibilidades que já existem, mas que existem
dentro de domínios culturais apontados como culturalmente ininteligíveis e
impossíveis. Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um
silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um
conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos
prontos, uma nova configuração política surgiria das ruínas das antigas
(BUTLER, 2019, p.256).

Diante disso, trabalho com um conjunto de objetos da ficção e da cultura visual e


concentro minha análise nos personagens dentro dessas obras, atento à ação e ao
desenvolvimento dos monstros nessas narrativas. O corpus foca, sobretudo, no cinema e
na literatura, e cada capítulo prioriza um grupo restrito de obras para investigar. Ainda
que os capítulos tenham um corpus independente e delimitado, as análises fazem
constantes comparações e relações tanto com os objetos do corpus quanto com outras
obras secundárias à pesquisa: Nesse sentido, em um percurso que intercala mito, cultura
visual, literatura e cinema, a tese visita os temas seguintes: o mito do minotauro e a leitura
deste feita por Jorge Luís Borges; a iconografia colonial; monstros na série Black Mirror;
os personagens monstruosos no romance Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez,
1967); e os longas-metragens Freaks (Tod Browning, 1932), Inferninho (Pedro Diógenes
e Guto Parente, 2018), As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017) e Border
(Ali Abbasi, 2018).
20

O recorte apresentado não tem a intenção de ser uma amostragem indutiva capaz
de representar um todo genérico. Pelo contrário, a decisão por estas obras levou em conta
a potência particular dos sujeitos monstruosos apresentados, o tipo de monstruosidade
encenada e o tipo de configuração política apresentada. Além disso, a organização desse
corpus empreende um esforço de experimentar vizinhanças e proximidades. O objetivo
desta pesquisa não é teleológico, de modo que interessou menos um conjunto convergente
de objetos que me possibilitasse uma conclusão estável, do que as possibilidades de trocas
e interferências entre eles. Por conta disso, o agrupamento comparativo dessas obras teve
importância decisiva na escolha do corpus.
A escolha das obras ocorreu ao longo dos anos da pesquisa. Durante o tempo em
que me dediquei a esta investigação, que antecede o começo do doutorado propriamente
dito, investi em recolher e me familiarizar com o maior número de obras relacionadas ao
tema. Essa aproximação com os objetos privilegiou a presença do monstro em contextos
diversos, que não apenas o universo do horror, da fantasia e do mito. A manutenção desse
arquivo de referências me permitiu, ao mesmo tempo, imergir na produção artística
referente à monstruosidade, como também entrar em contato com outras obras, algumas
menos óbvias e secundárias, que ajudaram a compor meu entendimento sobre o tema. O
exercício é influenciado pelo modo como Wright Mills (1982) valoriza o uso do arquivo
no trabalho do cientista social, como um modo de acumular e organizar as experiências
no decorrer de uma pesquisa. Equivalente a um diário de campo, o arquivo é, para o autor,
uma ferramenta de desenvolvimento da imaginação sociológica, um modo de conectar os
fenômenos e as interpretações da vida social.
O recurso ao arquivo como um modo de revisitar experiências e memórias
intelectuais e pessoais é retomado, em um contexto diverso, por Jack Halberstam (2020).
O “arquivo bobo” investigado pelo autor, um conjunto de obras desconsideradas pela
tradição acadêmica e que se contrapõe à “alta teoria” e ao cânone, possibilita traçar
relações entre obras e sujeitos que não estão, a princípio, conectados. Visitar e revisitar o
arquivo permite testar e experimentar diversos modos de vizinhança entre as obras, como
uma mesa de trabalho em que o guarda-chuva e a máquina de costura encontram o seu
lugar-comum, para remeter a uma proposição foucaultiana (FOUCAULT, 2016)4.

4
A imagem utilizada por Foucault retoma os versos de Lautréamont, publicados n’Os Cantos de Maldoror,
em 1869. Os versos foram bastante reproduzidos pelos surrealistas franceses no começo do século XX. A
citação que Foucault se apropria diz: “Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, de
uma máquina de costura e um guarda-chuva”.
21

No caso específico desta pesquisa, busquei entrar em contato com um número


grande e diverso de obras relacionadas ao tema da pesquisa, direta ou indiretamente:
filmes, obras literárias, gravuras, ilustrações, lendas etc. Esse procedimento de arquivo
foi refinado com o desenvolvimento da investigação, conforme o problema de pesquisa
foi sendo reformulado em direção às questões políticas. O corpus depurado que apresento
nesta tese é resultado de um refinamento e de constantes revisitas a este arquivo maior.
As obras foram escolhidas, sobretudo, pela força de interpelação que provocam na
hipótese desta tese.
Gostaria de me deter brevemente na formulação de Foucault para explicar que o
trabalho que segue não envereda por uma arqueologia ou genealogia do monstro na
cultura, ainda que Foucault seja um autor importante no desenvolvimento dessa tese. O
método que Foucault problematiza em As Palavras e as Coisas (2016) encontra outras
formas de pensar e aproximar objetos irregulares e díspares, como discutido por Didi-
Huberman (2018). Foucault faz alusão ao conto de Borges, O Idioma Analítico de John
Wilkins5, para investigar a curiosa organização de animais segundo certa enciclopédia
chinesa: “a monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração consiste, ao
contrário, em que o próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado. O impossível
não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se
(FOUCAULT, 2016, p. XI).
No mesmo texto, Foucault utiliza pela segunda vez o monstro como um
catalizador de vizinhanças impossíveis. Desta vez, referindo-se a Eustenes, personagem
de Rabelais, figura próxima do gigante Pantagruel:
Era decerto improvável que as hemorroidas, as aranhas e as amóbatas viessem
um dia se misturar sob os dentes de Eustenes: mas, afinal de contas, nessa boca
acolhedora e voraz, tinham realmente como se alojar e encontrar o palácio de
sua coexistência (FOUCAULT, 2016, p. XI).

A atitude de Eustenes e de Borges, comentadas por Foucault, interessam-me na


medida em que possibilitam um encontro irregular que não visa recorrer a um cânone ou
formular outro grupo canônico de objetos. Na realidade, o esforço de aproximar monstros
distintos é explorar a potencialidade aberta, contraditória e dinâmica dos arquivos
(HALBERSTAM, 2020). O monstro é entendido por uma resistência e interdição às
taxonomias e por uma diferença irredutível aos códigos culturais hegemônicos. Nesse
sentido, a escolha desse corpus levou em consideração um esforço nitidamente

5
Publicado no livro “Outras Inquisições” (BORGES, 2000).
22

anticanônico e irregular. Do ponto de vista da vida do monstro, essas aproximações são


justificáveis. A distinção tradicional entre alta e baixa cultura torna-se irrelevante diante
da premissa desorganizadora do monstro.
Essa postura remete à influência de Georges Bataille nesse trabalho,
especialmente o projeto da revista Documents, em que a ideia de forma e de
antropomorfismo são continuamente desmontados em favor da desfiguração e
decomposição da figura humana (BATAILLE, 2018; DIDI-HUBERMAN, 2015;
MORAES, 2017). A ideia de uma decomposição da figura humana estava atrelada à perda
de centralidade antropocêntrica nos processos de saber e da possibilidade de um
pensamento a partir das imagens, não em favor de uma hermenêutica mas a partir de um
materialismo baixo e da heterologia batailleana. O conceito de Informe, proposto pelo
autor, apresenta um caráter desclassificador que interessa a esta pesquisa.
Um dicionário começaria a partir do momento em que ele não desse mais o
sentido das palavras, mas sim suas obrigações. Assim, informe não é somente
um adjetivo com certo sentido, mas um termo que serve para desorganizar,
exigindo, geralmente, que cada coisa tenha sua própria forma. Isto que ele
nomeia não aponta um caminho fixo e pode ser facilmente despedaçado, da
mesma forma que uma aranha ou um verme também o podem. De fato, para o
contentamento dos acadêmicos, seria necessário que o universo tomasse forma.
Toda a filosofia não tem outro objetivo: trata-se de dar uma roupagem ao que já
existe, dar uma aparência matemática. Por outro lado, afirmar que o universo
não se assemelha a nada e que ele não é nada além de informe retoma a ideia de
que o universo é como uma aranha ou um escarro (BATAILLE, 2018, p.147).

O informe não interessa apenas na metodologia e composição do corpus. O


monstro empreende um movimento de deslocamento semiótico, ou ainda de perturbação
semiótica, que impede que as palavras e os corpos tenham aderência total em sua
concepção. O monstro, como pretendo demonstrar nos capítulos que seguem,
desestabiliza e redistribui os predicativos subsumidos aos corpos e aos sujeitos. Mesmo
que o monstro não proponha um léxico novo para as relações que surgem, ele empreende
uma desorganização na continuidade entre sujeito e sentido. A crítica de uma metafísica
da substância empreendida por Bataille encontra no monstro um aliado importante.
Reconheço que as obras com que trabalho são inteligíveis e codificadas na
linguagem artística de modo evidente e suficiente para estrarem dentro de uma
investigação científica. Os contornos de definição estão bem delimitados, ainda que
alguns desses filmes estejam no escopo do cinema queer ou em um circuito não
comercial. Contudo, invisto a investigação na vida dos personagens e dos sujeitos
monstruosos. Em algumas obras analisadas, a presença do monstro é um elemento central
e definidor da narrativa. Em outras, o monstro e a monstruosidade são elementos
23

tangenciais ou secundários, como no caso de Cem Anos de Solidão, ou ainda são


elementos cuja construção se dá como um campo de forças ininteligíveis, como discutido
a partir de Inferninho. Estou mais interessado em coletar experiências e pensar
possibilidades políticas a partir da condição monstruosa, do que inventariar um percurso
político do monstro, ou propor uma história do monstro na arte moderna e
contemporânea6. O movimento contido nessa análise comparativa é o de intersectar
experiências dos sujeitos investigados em um quadro heterogêneo e diverso.
O monstro é entrevisto na pesquisa sob ângulos diversos. Algumas discussões
tratam do monstro isolado e solitário, enquanto outras elaboram agrupamentos, famílias
e comunidades. Não estou seguro de que um corpus maior ou mais abrangente
possibilitasse o aprofundamento que desejo com essa pesquisa. Do mesmo modo, penso
que uma tese direcionada a um campo de análise único (a filmografia de um único diretor,
ou obras de um mesmo recorte temporal, por exemplo) reduziria a miríade de
configurações que investigo. Os capítulos funcionam de modo relativamente
independente, mesmo fazendo referências recíprocas em diversos momentos. Contudo,
importa pensar o conjunto de experiências dispostas ao longo da tese.
Uma das conclusões que antecipo brevemente, e que torno evidente em todos os
capítulos, refere-se à passagem do monstro isolado para o monstro em grupo. Essa
distinção estabelece possibilidades criativas de resistência que são importantes à
discussão política e às possibilidades de comunidade imaginadas na tese. O monstro
promove configurações outras de estar junto e um modo próprio de habitar o mundo,
modos complexos, com negociações e embates específicos a cada contexto. Contudo, o
sujeito monstruoso não promove um tipo de sociedade no sentido humano, baseado em
conceitos como identidade, concentração de poder, ou em relações edipianizadas, em que
o pai e a mãe são os eixos de transmissão da cultura e da preservação da continuidade.
O monstro promove e imagina comunidades a partir da multiplicação das zonas
de diferença, da promoção de interstícios e vizinhanças heterogêneos e da
desestabilização da ideia de um centro organizador. Posso formular de outra maneira: a
comunidade do monstro é estabelecida transformando zonas fronteiriças e indiscerníveis
em mundos habitáveis. Essa discussão será retomada ao longo da tese, se antecipo aqui
essa conclusão é porque ela relaciona-se com o modo como o corpus está distribuído.
Antes de expor a divisão dos capítulos, advirto também que outros arranjos seriam

6
Um apanhado panorâmico do monstro na literatura e no cinema pode ser encontrado no livro “Todos os
monstros da terra: bestiários do cinema e da literatura” (MESSIAS, 2016).
24

possíveis. O leitor perceberá um movimento não linear entre os temas. As obras elencadas
tem força e complexidade suficientes para as discussões empreendidas na tese. A ordem
dos objetos, ainda que altere e condicione as conclusões, não obedece a uma cronologia
e surgiu conforme o desenvolvimento da investigação.
A tese está dividida em quatro capítulos, além da introdução e das considerações
finais.
O capítulo 2, intitulado O impacto do conceito de monstro sobre o conceito de
cultura, apresenta os pilares teóricos e metodológicos que sustentam esta pesquisa. O
objetivo principal desse capítulo é elaborar um conceito de monstro capaz de dar conta
da condição monstruosa como uma forma de vida. Essa discussão emerge a partir da
revisão da literatura e apresenta, também, outras concepções correntes da
monstruosidade. Essa apresentação justifica-se por dois motivos: em primeiro lugar como
um modo de apresentar ao leitor o campo vasto de estudos sobre a monstruosidade e como
essa miríade de interpretações consolidaram uma visão específica do monstro. Em
segundo lugar, partindo desse pano de fundo, proponho um conceito de monstro que, ao
mesmo tempo, assimila e se opõe à tradição que entende o monstro como outro
complementar do humano. O capítulo acompanha um conjunto diverso de objetos e
concentra as reflexões na comparação do mito do Minotauro e a releitura que Jorge Luis
Borges faz do tema. Além disso, o capítulo faz uma incursão comparativa entre a
iconografia colonial do século XVI e o episódio Engenharia Reversa da série Black
Mirror.
O capítulo seguinte, O corpo monstruoso: variações entre o fracasso e a
imaginação, parte do corpo do monstro para discutir possibilidades de vida de corpos
não codificados como humanos e que, tradicionalmente, são relegados a espaços de
estigma e de uma economia da monstruosidade. Discuto o tema a partir de três objetos: o
romance Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez, publicado em 1967), o filme
Freaks (Tod Browning, 1932) e o filme Inferninho (Pedro Diógenes, Guto Parente, 2018).
Interessa pensar diferentes configurações do corpo do monstro e como esses corpos
propõem modos de vida. O três objetos sugerem uma gradação de possibilidades de
existência do monstro. No romance de García Márquez, ainda que dentro de um escopo
do realismo mágico, o monstro é um tema secundário. Interessa vasculhar essas
possibilidades e analisá-las em conjunto com a comunidade de monstros que se forma em
Freaks e em Inferninho. O capítulo parte de uma investigação sobre o corpo monstruoso,
entendido a partir das ideias de incompletude, deformidade, fracasso e artifício.
25

O capítulo 4, O monstro contra o Estado: relações de parentesco e


heterotopias, aborda a relação entre o monstro como uma pessoalidade dissidente e o
poder do Estado, entendido a partir do monopólio da violência e de um tipo de
monstruosidade específica relacionada ao controle dos corpos. O capítulo dedica-se ao
filme As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017) a partir de um recorte
interseccional para pensar o monstro em consonância com marcadores de raça, classe,
gênero e sexualidade. Interessa, sobretudo, pensar relações de parentesco que são
fabricadas a partir do monstro, como modos de reorganizar laços da família e modos de
produzir espaços possíveis de sobrevivência ao poder estatal. As relações familiares n’As
Boas Maneiras, observo, constroem-se fora do léxico comum da parentalidade e da
organização edipiana/estatal de família.
O quinto capítulo, A natureza dos trols e o futuro dos monstros, dedica-se a
pensar o longa-metragem Border (Ali Abbasi, 2018) a partir da relação entre monstro,
natureza e utopia. Interessa pensar o corpo monstruoso a partir da ideia de produção de
mundo derivada da relação sujeito-ambiente. As discussões concentram-se na qualidade
perspectiva dos monstros e como isso reverbera em outros modos de pensar a dicotomia
entre natureza e cultura. Investigo o monstro no filme a partir da ideia de
multinaturalismo, e da possibilidade do monstro propor utopias e modos outros de
imaginar o futuro. Desse modo, o capítulo pensa as variações do corpo do monstro fora
das concepções culturais sobre espécie ou animalidade, e inscreve essas relações em uma
variação de possibilidades de vida e modos utópicos de pensar o futuro dos monstros fora
de esquemas humanos de transmissão e progresso.
Os longas-metragens Freaks e Border correspondem a adaptações literárias, ou
são realizados a partir de textos da literatura. Freaks é baseado em um conto intitulado
Spurs (1923), do escritor norte-americano Tod Robbins. Border é baseado no conto
homônimo (Gräns, em sueco) do escritor John Ajvide Lindqvist, publicado em 2011.
Lindqvist atua como roteirista do filme. Cabe destacar que esta tese não envereda pelas
obras literárias e não empreende uma análise de tradução ou adaptação fílmica.
As traduções das citações em língua estrangeira são de minha autoria, exceto
quando indicado.
26

2 O IMPACTO DO CONCEITO DE MONSTRO SOBRE O CONCEITO DE


CULTURA

Estamos hoje no turbulento século XIX, contudo, a não ser que


meus sentidos me enganem, os velhos séculos tiveram e têm
poderes próprios que o modernismo não pôde extinguir.
(Drácula, Bram Stoker)

Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma


pessoa?
(A Hora da Estrela, Clarice Lispector)

2.1 O MINOTAURO

Quando Teseu chegou a Creta, decidido a matar o Minotauro e pôr fim à dominação
cretense sobre Atenas, ele já tinha uma vasta experiência como exterminador de monstros.
No currículo do jovem príncipe constava a morte do malfeitor Perifetes, gigante que
atacava peregrinos com uma clava de bronze; a morte do também gigante Sínis, de quem
se dizia capaz de vergar o tronco de um pinheiro até o chão, tamanha era sua força. Sínis,
não raro, costumava vergar duas árvores ao mesmo tempo, amarrando uma vítima entre
as duas, fazendo-a dilacerar-se. Teseu foi capaz de desafiar a força do gigante, vergando,
também ele, uma árvore até o chão. Não satisfeito, fez Sínis provar de sua própria
violência, despedaçando o seu corpo como punição; Teseu também livrou a Grécia da
temível Porca de Crômion e do assassino perverso Cirão, temido por arremessar suas
vítimas ao mar, além de derrotar algumas outras abominações do solo grego
(BRANDÃO, 1987).
O jovem príncipe ateniense era, simultaneamente, filho de Egeu, rei de Atenas, e
do deus Poseidon. A origem do herói é complicada, como a de quase todos os semideuses
dos mitos gregos, e envolve o relacionamento sexual de um deus com uma mortal. No
caso, Etra, que foi visitada por Poseidon na mesma noite em que conheceu Egeu. O filho
concebido nesta noite foi reconhecido por Egeu, contudo o verdadeiro genitor era
Poseidon. Teseu herda de seu pai divino grande força física. De Egeu, ele herdará o trono
de Atenas. O extermínio dos terríveis monstros sobre a terra era um modo de provar seu
valor como guerreiro e como político.
Teseu fora criado pelo avô materno e quando atingiu idade suficiente, viajou até
Atenas, a fim de ser reconhecido pelo pai Egeu. Domar o mal (interno e externo) deveria
27

ser característica essencial a um rei grego, capaz de conter seus próprios impulsos e sua
desmesura, ao mesmo tempo que expurga o mundo de malfeitores. Segundo Junito de
Souza Brandão (1987), o jovem substituía Héracles como o herói de seu tempo. Na
ocasião, Héracles estava distante da Grécia, deixando o terreno livre para malfeitores
diversos e monstros temíveis espalharem o terror. Teseu ocupa o lugar de herói deixado
pelo antecessor na caçada e matança de monstros violentos.
Cabe lembrar que os fatos narrados pelos mitógrafos remetem a um tempo
imediatamente anterior à Guerra de Tróia, mito fundador da unidade grega. Neste período
mítico, as cidades não tinham ainda um acordo que se possa dizer nacional. Muitas dessas
narrativas foram recolhidas pelos mitógrafos a partir de fontes muito diversas, que
revelam certa heterodoxia na construção dessas narrativas. Diversos personagens desses
mitos, heróis ou monstros, tinham alguma ascendência divina, como é próprio ao mito,
que condensa narrativas em que a diferença entre o terreno e o sagrado ainda não está de
todo estabelecida. A própria distinção entre herói e monstro é, por vezes, difícil na
mitologia. Ainda assim, tanto Teseu como o Minotauro descendiam de Poseidon.
Do minotauro pouco se sabe. Sua biografia confunde-se com o passado de seus
pais, Minos, rei de Creta, e sua esposa Pasífae. O rei Minos conta com uma curiosa
genealogia, sendo fruto da relação entre a princesa Europa e Zeus, que a seduziu sob o
disfarce de um touro. Conta-se que Minos, já adulto, recebeu de presente de Poseidon um
touro que deveria ser sacrificado em reverência ao deus do mar. Minos, no entanto,
decidiu manter o touro vivo, encantado pela beleza do animal. A punição pela
desobediência não tardou: Poseidon faz com que Pasífae se apaixone pelo touro. A rainha
roga ajuda a Dédalo, arquiteto ateniense que se encontrava exilado em Creta. Ele
construiu uma vaca de madeira e couro para que, escondida em seu interior, a rainha
pudesse copular com o touro de Poseidon. Dessa união nasceu o Minotauro, uma criatura
de corpo humano e cabeça bovina. O monstro era simultaneamente filho de Minos e do
touro sagrado de Poseidon. O nome remete duplamente à sua animalidade e ascendência:
o touro de Minos, o animal e o nome do pai. A etimologia do nome Teseu, por outro lado,
expressa sua singularidade entre os homens. Quase como uma biografia, o nome indica
“homem forte por excelência” (BRANDÃO, 1987). O Minotauro sugere um
deslocamento de categorias. Seu nome localiza, ao mesmo tempo, a forma física híbrida
e a genealogia complexa, ao mesmo tempo sagrada, animal e humana.
O touro de Minos difere de criaturas semelhantes, cujo corpo condensa partes
humanas e animais, como os centauros, os faunos e as sereias, entidades híbridas, que
28

constituíam populações inteiras. O monstro, também, não é da mesma estirpe dos gigantes
enfrentados por Teseu, não descende diretamente dos titãs ou de outros monstros
mitológicos: o Minotauro é fruto de uma transgressão e do excesso de seus pais. Note-se
que não é o coito entre Pasífae e um touro que representa a perversão ou o desvio de
conduta sexual. O próprio Minos descende de certo modo de um touro. O crime é expresso
na desobediência do rei ao pedido de Poseidon. Muitos nascimentos monstruosos na
Idade Média, por exemplo, vão ser atribuídos a casos de zoofilia e bestialismo7. Na cultura
grega dos mitos este não parece ser o caso de escândalo, por mais alegórico que seja o
ato. A transgressão refere-se ao destino do homem em relação ao sagrado.
Minos esquece sua excelência e sabedoria e é punido com a perversão despótica
dos deuses sobre sua esposa. Na ocasião, Creta e Atenas estavam em guerra devido à
morte de Androgeu, primogênito de Minos, em solo ateniense8. Com um exército
poderoso, Creta avançou sobre Atenas, que fora assolada por uma peste enviada por
Poseidon a pedido de Minos. O rei cretense concordou em retirar as tropas do solo
ateniense na condição de que fossem enviados sete moças e sete rapazes (os números
variam conforme a versão do mito) como sacrifício e alimento ao Minotauro
(BRANDÃO, 1987).
Ao impor um tributo de catorze jovens atenienses para serem devorados, o rei
canaliza a dominação tirânica sob a forma de sacrifício, quase como se a tirania se
alimentasse de carne humana (BRANDÃO, 1987, p. 161). Brandão compreende a relação
com a prole taurina a partir de certa psicologia de Minos. O rei, outrora sábio, vê-se em
uma guerra desmedida contra Atenas. O monstro que devora os filhos do inimigo parece
incorporar a perversão da tirania, ao mesmo tempo que evidencia o rebaixamento do rei
à vilania e à corrupção. Prender o monstro no labirinto, para Brandão, equivale a
trancafiá-lo no inconsciente.
Poder-se-ia dizer, e até com certa razão, que a dominação perversa se nutre de
carne humana. Em outros termos: Posídon, sob forma de touro, e portanto a
perversão, sob forma de dominação tirânica, inspira a Pasífae os conselhos
perversos que fazem nascer o Minotauro, a injustiça despótica de Minos. Este,
no entanto, envergonha-se do Monstro gerado por sua mulher e o esconde aos
olhos dos homens. Minos e Pasífae repelem a verdade monstruosa, a dominação
perversa do rei que é habitualmente sábio (BRANDÃO, 1987, p. 161).

7
Cf. Del Priori, 2000.
8
Algumas versões atribuem a morte de Androgeu a Egeu, rei de Atenas. Outras versões indicam que o
príncipe foi morto por atletas atenienses com quem disputava as olimpíadas. Ou ainda relacionam a morte
à sua ligação política com os Palântidas, inimigos políticos de Egeu. De todo modo, é consenso entre as
versões que Androgeu foi morto em Atenas (BRANDÃO, 1987).
29

Trancar o monstro no labirinto construído por Dédalo permite que a


monstruosidade do inconsciente de Minos continue a viver (BRANDÃO, 1987). Para o
rei, o expurgo definitivo do monstro é interditado. Minos é obrigado a alimentar o fruto
de seu excesso que, mesmo encapsulado no labirinto, fora do domínio do visível, torna-
se um fantasma que obsedia o rei e a cidade. Do ponto de vista político, o engessamento
e a manutenção do monstro não apenas representam a corrupção política de Minos, como
também a dominação injusta sobre Atenas. O Minotauro torna-se conhecido a partir de
um atravessamento na biografia de dois homens: seu irmão mítico, Teseu, que enfrenta a
possibilidade de desmesura que assola todo herói, como uma psicomaquia entre luz e
sombra; e seu pai terreno, homem sábio e justo, que sucumbe às pulsões tirânicas. O
monstro representa, nesse espelhamento, “o "homem" mais ou menos secretamente
habitado pela tendência perversa da dominação” (BRANDÃO, 1987, p. 161).
Seguindo essa narrativa, pouco se sabe sobre o Minotauro, apenas que é o
resultado de uma rede de complicadas intrigas políticas e divinas, da degeneração de seu
pai terreno e de sua genealogia complexa. Diferente de outros monstros de grande fama,
ele não saiu pela Grécia causando males. Toda sua vida foi restrita ao labirinto. Sabemos
o que ele representa para Minos e Teseu, por mais poroso que seja o significado de
representar, neste caso. Conhecemos o monstro como a existência corpórea, um sujeito
cuja biografia é fracionada em parte pela sua associação direta ao excesso, não
necessariamente ao mal, mas a um desvio da medida justa dos homens.
Além disso, o monstro aparece como uma figura ao mesmo tempo oposta e
complementar, em uma dialética em relação às figuras humanas masculinas no mito: o
pai e o irmão. Nesse sentido, não se trata de entender o monstro apenas em seu sentido
metafórico (a leitura de Brandão avança na leitura simbólica), mas como a possibilidade
concreta ao humano de um devir-monstruoso, contra o qual o herói deve lutar. Minos,
Teseu e Brandão oferecem uma leitura sobre o monstro a partir de uma negação dialética,
desde uma perspectiva humana, cultural e masculina. Sobre o Minotauro, sabemos pouco.
Ao monstro são atribuídas força física, crueldade e antropofagia. Uma discussão
sobre o possível canibalismo do Minotauro poderia ser cabível aqui: qual parte da criatura
realmente devorava as vítimas? A boca de touro ou o estômago de homem? A cabeça
animal é entendida como um rebaixamento do logos, uma emergência da pulsão animal
sobre a identidade racional que define o humano. O parâmetro, seguindo o raciocínio de
Brandão, é que a mente animalesca é equiparável à tirania política. Ambas terão seu fim
na espada de Teseu. Outro parâmetro cabível aqui é entre a cabeça de touro e a tecnologia
30

do labirinto, artefato matemático e arquitetônico. O monstro, mentalmente inábil, é


aprisionado em uma engenhosidade científica do logos.
É esta qualidade do logos, que falta tanto a Minos quanto ao seu filho monstruoso,
que garante a vitória de Teseu no labirinto. Se o herói tinha uma vasta experiência em
derrotar monstros gigantes apenas com a força física, no labirinto ele terá que enfrentar
um inimigo duplo: o edifício monstruoso de onde ninguém jamais saiu vivo e seu
morador, sobre quem podemos supor que conhecesse os múltiplos corredores do seu
palácio sem teto. O príncipe ateniense tinha em seu favor apenas o elemento surpresa. O
monstro, possivelmente, era alheio à disputa entre Creta e Atenas e como isso estava
relacionado com os jovens deixados no labirinto para serem devorados.
Ariadne, uma das filhas de Minos, irmã do monstro, presenteou Teseu com um
novelo de fios, que possibilitou ao herói marcar sempre o caminho de volta e não se perder
no labirinto. Outra versão do mito conta que o presente de Ariadne fora uma coroa
luminosa, que traria luz às trevas do edifício (BRANDÃO, 1987). A versão do novelo de
fios é, certamente, mais popular. As duas versões, no entanto, endossam a ideia de uma
razão que ilumina a indiscernibilidade do labirinto. Corado Bologna (1997) atenta para a
relação entre monstro e enigma, bem como a presença dupla da luz na trama do
Minotauro. Isso porque é o monstro o senhor do percurso secreto do labirinto. Ariadne,
cuja etimologia remete à luz, é a peça que desvenda o mistério. O monstro é “enganado
pela luz que Ariana, a Luminosíssima, lança sobre o enigma dos corredores, iluminando
o caminho a Teseu” (BOLOGNA, 1997, p. 315). Com esta ajuda, o herói mata a criatura,
liberta Atenas do subjugo tirânico de Creta e livra o mundo de mais um monstro.
Sobre o herói, outras narrativas ainda existem que contam seu destino após o
episódio cretense. Teseu vai reaparecer na peça Édipo em Colono, de Sófocles, como rei
de Atenas. Na tragédia ele oferece asilo a Édipo e é mostrado como um rei sábio e justo,
o oposto de Minos. O Minotauro, agora cadáver, possivelmente jaz decomposto, os ossos
humanos largados ao lado do grande crânio bovino, no labirinto. A criatura, no entanto,
gozará de uma popularidade muito maior que a do herói. A figura de um homem-touro
forte e violento vai enriquecer o imaginário popular e tornar o Minotauro cretense um
tipo de monstro clássico e recorrente em narrativas que excedem o campo do mito.
Na mitologia grega, o monstro oferece um contraponto ao logos. Os excessos
morais cometidos por sua ascendência exemplificam a relação entre corrupção e
pensamento racional, ou ainda, uma preponderância da hybris, desmesura,
descomedimento. Cabe dizer que o touro de Minos diferia dos outros monstros mortos
31

por Teseu, e de uma série outra de criaturas que povoam o mobiliário mitográfico grego.
O mundo grego das epopeias era habitado por uma diversidade de entidades
intermediárias entre o sagrado e o humano, descendentes das divindades ctônicas etc.
O Minotauro, tanto a criatura como sua interpretação, nascem juntas como
resultado da transgressão do rei. Derrotar o monstro exigiu seu encarceramento em
tecnologias da razão, que não mais se relacionavam à desmesura do herói, a atributos do
corpo e da natureza: o labirinto, dispositivo arquitetônico, matemático, urbano; o novelo
de Ariadna, recurso lógico que possibilitava se localizar no espaço sinuoso, aproximado
de uma cartografia; e o mito, a tecnologia da palavra, que faz o monstro aderir ao seu
significado em uma narrativa sobre a moral humana. As virtudes do rei e do herói são
endossadas em detrimento do monstro, em uma narrativa que relaciona eros e pólis,
palavra e política. Encapsulado pela técnica, o minotauro resta sem ontologia e sem voz,
apenas imagem transcendente da psicomaquia do herói, como um elemento de conflito e
de resolução.
Dizer que o monstro tinha cabeça de touro não o exime de uma série de emoções
e pensamentos que hoje sabemos serem cabíveis aos animais. A criatura tinha postura
bípede e mãos que tinham polegares opositores como mãos humanas. Esse corpo
possibilitava a criatura a perceber o mundo de algum modo, certamente distinto em
natureza do modo que seu algoz, Teseu, enxergava o ambiente. Distinto, também, de
como um touro normal entende o espaço. Na narrativa mitológica, o monstro é silencioso,
aparece apenas como efeito do horror que causa: ninguém que o viu vivo retornou para
descrever sua aparência. O Minotauro, contudo, foi objeto de uma extensa fortuna
iconográfica: moedas, vasos, afrescos, pinturas, esculturas, sem mencionar a cultura
audiovisual. Essa quantidade de imagens pode ser valiosa para entender mais sobre o
monstro que resta mudo no labirinto. A seguir, detenho-me brevemente em uma imagem
específica do Minotauro.

2.2 O RETRATO DO MONSTRO

Um quadro em particular inspira Jorge Luis Borges a escrever o conto A Casa de


Astérion, publicado em 1949, na coletânea O Aleph. Trata-se de um curto monólogo,
narrado pelo Minotauro, no que seria o instante anterior a sua morte. A pintura em questão
é a obra do pintor inglês George Frederic Watts, do final do século XIX. Na imagem,
percebemos o monstro de pé, postura bípede, as mãos humanas apoiadas no parapeito do
32

labirinto. O monstro observa a paisagem indistinta. O observador do quadro não distingue


formas, apenas o horizonte esverdeado, mas sabemos que o labirinto ficava em Creta, de
modo que o monstro possivelmente tem a cidade à sua frente. A interpretação corrente é
a de que o Minotauro de Watts vigia o mar, enquanto espera o navio chegar com o 14
atenienses que serão devorados por ele. Acima dele, o crepúsculo. Apesar dos braços
fortes e das costas musculosas, o monstro tem chifres pequenos e inofensivos. Minotauro
está de perfil, uma das mãos segura um pássaro morto, e o que entrevemos de seu olhar
nos indica uma visão absorta, possivelmente melancólica. A imagem do monstro, acima
e isolado da cidade, remete mais à solidão do que ao temor.

Figura 01- O Minotauro, quadro de George Frederic Watts, 1885.


Fonte: Domínio Público
33

O minotauro de Borges, inspirado na obra de Watts9, relata seus dias nos


corredores de pedra do labirinto. No conto, o monstro é nomeado Astérion, outro nome
pelo qual ele é conhecido e faz referência ao avô paterno de mesmo nome, que fora rei de
Creta antes de Minos. O texto em primeira pessoa traz um narrador de consciência
limitada, cuja visão dos fatos em muito difere da tradição mitológica sobre ele. Pode-se
dizer que Astérion apresenta um modo de narrar insciente, a consciência dos fatos é
limitada e parcelar. Ele descreve o labirinto e sua exterioridade de modo suntuoso, como
quem descreve um palácio de um príncipe, filho legítimo de uma rainha.
Astérion significa senhor das estrelas, ou o estrelado, nome que remete ao fato do
labirinto não ter teto: sobre o príncipe, apenas as estrelas. O nome também é uma marca
familiar. Astérion é o nome do pai adotivo de Minos, de quem este herdou o trono de
Creta. Lembremos que Minos é filho “biológico” de Zeus (na forma de touro) com
Europa, que posteriormente casou com Astérion. Trata-se do avô do monstro, em termos
relativos, uma vez que Astérion é o pai terreno de Minos. O Minotauro, por sua vez, é
filho do touro sagrado de Poseidon, que ocupa lugar indireto na ascendência do monstro.
O Astérion de Borges descende de uma linhagem ao mesmo tempo real e sagrada.
A tensão narrativa do conto transita entre a extensa solidão do monstro, cuja voz parece
ecoar nas paredes frias do labirinto, e a soberba, esta não apenas por ser filho de uma
rainha, mas também por ser inaudito. A dessemelhança do monstro é vista como marca
de sua excepcionalidade, que se confunde com a própria noção de tempo e espaço no
conto. Diz o monstro: “a casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo” (BORGES,
2005, p.86). O labirinto torna-se um emaranhado de caminhos e entradas sem fim, como
dois espelhos postos de frente um para o outro, de modo que Minotauro desconhece os
limites de seu mundo, o que torna ambos — monstro e mundo — entidades correlatas, de
contornos difusos. Sua existência confunde-se com o espaço, não conhece nem
contraponto nem delimitação. A natureza híbrida do corpo não o impede de ter voz e
eloquência. Uma visão noturna, diz ele, revelou que, assim como as passagens do
labirinto, também são infinitos os mares e os templos.
É possível inferir que Astérion não tem raciocínio matemático, catorze, vários e
infinitos são unidades de grandeza sobre a variação das coisas, mas não uma quantificação
exata dos itens. Da visão noturna à qual se refere resta a dúvida se se trata de um sonho:
terá o monstro um inconsciente? Em uma narrativa em que o desejo sexual da mãe

9
O conto A Casa de Astérion encontra-se publicado no livro “O Aleph”. No epílogo do livro, Borges afirma
que deve à pintura de Watts o “caráter do personagem” (BORGES, 2005).
34

engendra um filho monstruoso, é possível que o monstro tenha complexo de Édipo10?


Pode tratar-se ainda de um vislumbre noturno da cidade, como acontece no quadro de
Watts. A quantificação do mundo importa pouco a ele, incluindo a passagem do tempo,
quase como se ele estivesse fora do tempo linear, talvez por estar fora da linguagem e,
sobretudo, por estar fora do jogo de semelhanças que garantem o pertencimento a um
grupo: touro demais pra ser homem, homem demais para ser touro. Além disso, a
singularidade do híbrido que não forma espécie ou população, como os centauros ou as
sereias. O Minotauro é envolto em uma complexa trama palaciana e parental, e, contudo,
não estabelece comunidade ou aliança. “Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas
duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: em cima, o intrincado sol;
embaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não
me lembro” (BORGES, 2005, p.86).
O Minotauro das narrativas tradicionais é uma peça da história, parte de um
conflito simbólico e político que se confunde com a história da Grécia e com a pedagogia
mítica. O Minotauro de Borges é uma peça astronômica e geocêntrica, ao redor do qual o
tempo passa e os espaços e os eventos se transformam em translação. O real, externo ao
monstro, é uma instância menor, tratada com desprezo. O monstro de Borges comunga
com seu homônimo mitológico a força de uma existência sensível, de um corpo que se
coloca no mundo, contudo sem fazer parte de um esquema semiótico de representação e
de identidade. O monstro afirma que é senhor de seu palácio, e não prisioneiro. As portas
estão abertas para quem quiser entrar, como um templo, dentro do qual está uma
divindade. Astérion afirma que uma vez ensaiou uma saída para a cidade, e o temor visto
no rosto da população o convenceu a retornar rapidamente ao lar. A soberba do monstro
soa como lunática, como um nobre de tão elevada estirpe que jamais poderia se misturar
com os cretenses comuns.
O leitor poderá inferir aqui um raciocínio deslocado por parte dele. A atmosfera
de solidão do conto, sobretudo quando o monstro descreve os jogos que faz para passar o
tempo, remontam uma consciência atormentada, cindida. Ao redor dele, as passagens e
paredes se espelham, mas o monstro jamais enxergou o próprio rosto, tudo o que vê
quando observa o mundo externo são figuras dessemelhantes. Borges coloca o Minotauro

10
Uma cronologia possível dos mitos torna o Minotauro e o personagem Édipo contemporâneos. Édipo e
Teseu se encontrarão na maturidade em “Édipo em Colono”. Na peça de Sófocles, Teseu dá asilo político
para Édipo. A obra é parte da Trilogia Tebana. Édipo em Colono dá sequência aos acontecimentos de Édipo
Rei e precede narrativamente Antígona.
35

em um patamar semelhante ao do sujeito moderno do século XX, uma criatura cindida,


atormentada por uma interioridade tão hostil quanto o mundo exterior11. Se na
interpretação de Brandão, o monstro pode ser pensado como o inconsciente de Minos
aprisionado no labirinto, o Astérion não mais substitui os tormentos do rei. O pai não é
mencionado. É possível pensar a subjetividade do monstro fora de um esquema edipiano
e, sobretudo, especular, em uma realidade em que a figura da mãe desejada e do pai
castrador, bem como de um possível estágio do espelho estão fora da realidade subjetiva
de Astérion. O monstro não é desvio ou insucesso de uma experiência de subjetivação,
mas sim a proposição de um ponto de vista, em uma relação particular entre dentro e fora,
entre sujeito e ambiente e entre sujeito e história.
Diferente do mito grego, a criatura engendra uma narrativa sobre si mesma, cuja
aderência ao real e aos fatos críveis de sua biografia podem ser lidas com suspeita. A
mesma suspeita sugerida por uma leitura cujos personagens principais são Minos e Teseu.
É imperativo desconfiar do narrador neste caso. O relato de Astérion, contudo, põe em
dúvida a contraparte desta narrativa. Ao trazer o ponto de vista do monstro, não é apenas
o foco narrativo que muda de posição. Toda uma noção de mundo, e, portanto, de como
o real se materializa na consciência, é mostrada. A composição literária de Borges
sobrepõe as duas narrativas, acrescenta outras camadas de temporalidade, mas torna a
verdade inalcançável. O estatuto da verdade pode mudar a versão dos fatos: se na primeira
narrativa, o ato de Teseu pode ser entendido como o extermínio de um mal, no conto de
Borges trata-se de um homicídio.
Não se trata apenas de uma narrativa de um prisioneiro, ele próprio não se vendo
deste modo, mas de uma interface sensível outra, cujo mito de origem não parte da união
do deus com a mortal, mas também não é um parto ordinário de uma vaca. Antes de
pensar que a solidão do labirinto enlouqueceu o monstro, interessa-me evidenciar o modo
que Minotauro percebe o mundo, já que na narrativa mitológica só o conhecemos como
efeito de sua presença, capturado pelo mito e morto. Se propusermos uma fenomenologia
do monstro, não será surpreendente que sua versão seja tão diferente: trata-se de um
híbrido, uma corporeidade que recebe os estímulos de modo particular e incomunicável,
já que não há dois minotauros que possam comparar suas sensibilidades.

11
As teorias sobre o romance moderno acentuam esse caráter de um personagem cindido e fraturado,
especialmente em comparação com os heróis das epopeias, para quem o mundo era incerto e hostil, ao
passo que a subjetividade parecia íntegra. Sobre o tema, cabe destacar as obras de Lukács (2000) e Kundera
(2009).
36

Nesse sentido, o herói torna-se uma figura importante. Teseu divide com o
monstro a mesma origem divina, certa singularidade entre os humanos comuns. O herói,
para Bologna (1997), compartilha com o monstro essa mesma qualidade de entes
limítrofes. O herói, do mesmo modo que o poeta, o profeta e o sábio, são personagens
fronteiriços. “Conhecem a magia do canto e a expressão dos animais; a sua linguagem é
ambígua, enigmática, ameaçadora, enganadora e ao mesmo tempo verídica”
(BOLOGNA, 1997, p.318). Ao herói é cabível decifrar a linguagem do monstro, como
no caso de Édipo com a Esfinge, ou ainda de Ulisses com as sereias. Este segundo caso
alerta para um cuidado que Teseu também demandou, que é o de não se deixar embeber
demais pela linguagem do monstro. A mitologia política elaborada por Teseu sugere a
constante ameaça de um devir-monstro, que demanda vigilância.
O herói, contudo, é figura desimportante no conto de Borges (e também nesta
tese), e suas aventuras de nada servem para pensar a biografia do monstro, exceto a
participação em sua morte. Astérion é alheio à história e ao engodo bélico que ocorria ao
seu redor. Sem a palavra compartilhada o monstro é incapaz de estabelecer vínculos com
o mundo humano, de entrar na temporalidade comum, de devir historicamente. Ao
mesmo tempo, Astérion é um dessemelhante, não vê sua imagem refletida em mais nada,
sendo nula sua capacidade mimética. Um rápido diálogo com Walter Benjamin (2012)
nos mostra como a semelhança e a capacidade de imitação, mais que um dom, parecem
ser as responsáveis pelas faculdades superiores da humanidade. Ademais de uma
capacidade cognitiva, a vontade mimética aparece, para Benjamin, como um desejo
imperativo, um “fraco resíduo da violenta compulsão, a que estava sujeito o homem, de
tornar-se semelhante e de agir segundo a lei da semelhança” (BENJAMIN, 2012, p. 122).
É curioso pensar que o monstro tem apenas o céu como parâmetro de espelhamento, ao
passo que, ainda com Benjamin, é o movimento em relação à semelhança que leva a
humanidade a desenvolver a astrologia e a permitir que “a posição dos astros produzisse
efeito sobre a existência humana” (BENJAMIN, 2012, p. 122).
A imagem do monstro instaura um deslocamento na capacidade de
reconhecimento que arrasta a palavra junto a si. Todo o relato do Minotauro transita entre
loucura e solidão, soberba e misantropia, de modo que também não nos reconhecemos
como parte empática dessa narrativa. A imagem de seu corpo é tão dessemelhante que se
ausenta do tempo, e as estrelas não parecem ter efeito sobre ele, como tem sobre a
humanidade. Também não podemos dizer que o Minotauro aproxime-se de uma imagem
indefinida. O hibridismo do corpo, a intersecção entre humano e touro, colocam-se como
37

um empecilho à identificação e ao reconhecimento. Mesmo assim, o Minotauro


apresenta-se como realidade sensível, um existente cuja vida se mantém como imagem
isolada de si mesmo. A inexistência de relações sociais impede uma aderência identitária
entre corpo e subjetividade.
Não à toa o monstro tem desprezo pela palavra: “não me interessa o que um
homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é comunicável
pela arte da escrita” (BORGES, 2005, p.86). Se o mito captura o Minotauro, o conto de
Borges parece propor uma contra tecnologia literária. Diferente da linguagem alegórica
do mito, que direciona os significados para suas realidades transcendentes (RUTHVEN,
1997), o conto conduz o leitor a uma narrativa labiríntica e fragmentada. A
impossibilidade de chegar a um veredito ou a uma verdade se confunde com a noção de
indivíduo dilacerado, própria à complexidade do sujeito moderno. Astérion mostra-se
fora do alcance dos aparelhos de captura e codificação, notadamente a narrativa
mitológica. Na narrativa clássica, o significado de monstro é apresentado de forma
simplificada, como resposta ao excesso humano. O monstro de Borges resiste em ser
capturado pela cognição. Não por acaso o título do conto refere-se ao labirinto e não à
criatura em si. A filosofia do monstro não remete ao passado e à sua genealogia, nem será
algo transmissível para o futuro por meio da escrita. É a imagem dessemelhante, o
sensível, o corpo e a voz que remetem a uma temporalidade cíclica, que sempre retorna e
cujo pensamento se atualiza no presente.
Astérion surge como um anacronismo, uma temporalidade heterogênea, fora do
espaço-tempo linear e racional da narrativa verbal. Como uma dessemelhança ele não se
repete, não é possível colocá-lo em um historicismo dialético, uma vez que a síntese estará
sempre suspensa. O monstro é esta imagem hesitante, cuja recorrência na história da
cultura nada tem a ver com a repetição de um signo, mas sim da potência de vida, um
lampejo que passa veloz, desaparece, torna a iluminar outros pontos de uma constelação.
A natureza do monstro, sua imanência enquanto vivente é da ordem do sensível. Cada
reaparição do monstro no tempo atualiza sua potência disruptiva, como uma centelha, um
fenômeno vivo, e não como a repetição de um tema narrativo e discursivo.
O minotauro de Borges orienta-se ciclicamente no labirinto, cuja materialidade
espelhada faz com que estar no mundo seja um andar em círculos infinitos. Uma profecia
traz a promessa de uma ruptura messiânica e instaura a consciência da solidão no coração
da criatura. Uma das vítimas entregues a ele em sacrifício profetiza, ou ameaça, que um
dia chegará o redentor. O monstro se questiona se será um homem, ou um touro. “Será
38

talvez um touro com cara de homem? ou será como eu?” (BORGES, 2005, p.86). Neste
instante o silêncio do monstro dá lugar a uma segunda pessoa na narrativa. Após limpar
o rastro de sangue da espada o herói profere: “– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O
minotauro apenas se defendeu” (BORGES, 2005, p.86).
O herói aparece surpreso nas últimas linhas do conto, pois não encontrou
resistência do monstro na hora de sua morte. Mais uma vez, o monstro jaz sem vida, mas
deixa um testamento, oferece a visão de outro mundo, percebido com outros sentidos,
cujos contornos são elaborados a partir de outros pontos de referência. O Astérion observa
o mundo a partir de um dentro, de outra cosmologia. O movimento é simples: orientado
pelo novelo de Ariadne, Teseu antecipa o monstro por fora do labirinto, como um animal
visto em uma jaula. O minotauro de Borges observa de volta, do lado de lá de uma
fronteira que não se cruza sem risco. O herói vem pronto para a guerra, enquanto o
monstro espera o redentor, um semelhante ou um irmão.
Teseu e Minotauro são irmãos por parte de Poseidon. No conto de Borges a
herança paterna parece ser menos importante, mas de todo modo há um espelhamento
possível quando o monstro espera um semelhante. A herança do monstro também parece
ser seu duplo legado de vida e de morte. A presença do monstro é capaz de amedrontar a
racionalidade de uma época, de ausentar-se do tempo linear e propor outra modalidade
de perceber o mundo, como um hiato ou uma parada, algo que causa um dano à percepção
corriqueira do mundo.
Monstro, a categoria confusa e difundida em diversos discursos, também aparece
nas experiências contemporâneas como uma força política relevante, capaz de agrupar ao
redor dela dissidências, insurgências, que faz coro à voz de Astérion e tantos outros
monstros emudecidos pelo processo histórico. O ponto de vista do monstro é capaz de
reclamar para si uma existência, uma percepção de mundo e uma política dissidente. Esta
pesquisa parte dessa dupla condição: por um lado, o monstro é uma figura recorrente que
capitaliza e organiza a diferença, enquadrando ela em tecnologias políticas que a
destituem de sua realidade. Ao fabricar vidas monstruosas a partir da captura da
alteridade, a cultura produz formas de vida extermináveis ou domesticáveis, tornando o
monstro uma presença corriqueira no imaginário contemporâneo.
Por outro lado, o monstro também tem sido objeto de disputa entre subjetividades
dissidentes. Seja por identificação, ou por filiação, a experiência com o monstruoso
aparece nos corpos híbridos, mutantes, nas sociabilidades não edipianizadas, nos
dissidentes de gênero, de nação, nas associações com outras formas de sagrado, com o
39

animal e com a natureza, nos sujeitos estigmatizados. No hiato milenar entre o touro de
Minos e o Astérion, esta pesquisa parte de um questionamento sobre a disputa em torno
da morte do monstro e de sua vida como potência política, capaz de propor outros
possíveis e de indicar outros mundos, outras modalidades de existência.
Inicialmente me questiono porque o monstro aparece e reaparece como uma força
política tão recorrente em um momento em que sua imagem parece banalizada e saturada
pela frequência com que aparece na cultura visual. Se o monstro sempre foi o lócus da
transgressão e da anomalia, é cabível pensar ainda que ele tenha essa força opositora?
Qual o domínio da transgressão no contemporâneo? Ao mesmo tempo, questiono-me se
a imagem do monstro, popularizada pela cultura midiática, é capaz de propor subversão.
O monstro hollywoodiano somente reforça estereótipos ocidentais, capitalistas, brancos
e heterossexuais? Ou será que, ao exibir o monstro, um filme popular permite que ele
projete sua diferença, exuberância e excesso em uma tela gigante? Será que, ao capturar
o monstro em tecnologias de imagem, o cinema hegemônico não corre o risco de mostrá-
lo como vida sensível? Esse tipo de insurgência no sensível me leva a entender o monstro
como uma modalidade de vida, não apenas um amálgama de estereótipos narrativos.

2.3 O QUE É UM MONSTRO?

Esta pesquisa investiga a vida política dos monstros. Tomo como ponto de partida,
certa cultura visual que exibe o monstro em suas variações e sentidos diversos, como um
tema recorrente no imaginário contemporâneo. O objetivo principal desta tese abre-se em
caminhos múltiplos de investigação, sobretudo porque as categorias que este objetivo
persegue — vida, política e monstro — são conceitos que suscitam constantes disputas
quanto ao seu significado. A construção soa contraditória, mas debates sobre vida e
política sempre estiveram muito próximos do que é possível entender como monstro. O
monstro, e não a morte, é o contravalor da vida, afirma Georges Canguilhem (2011). O
monstruoso coloca a vida em risco pela possibilidade de transformação e variação. Do
ponto de vista de uma vida social, o monstro ameaça o funcionamento regular dos regimes
de poder e das instituições, e perturba categorias a elas entrelaçadas, como identidade,
diferença, normalidade e racionalidade.
Não à toa o monstro é um elemento que remete ao caos e à catástrofe, geralmente
incorporando uma alteridade incontestavelmente negativa. Ao monstro cabe ser o
portador da monstruosidade, valor moral que condensa um conjunto de afetos rejeitados
40

por determinado grupo social. Desse modo, a forma de vida monstruosa costuma
incorporar a aparição ou o retorno de um conjunto de valores, desejos e medos que uma
cultura determina como abjetos ou asquerosos. A monstruosidade comunga afetos
hediondos e valores inomináveis, que não foram propriamente simbolizados pelo léxico
cultural vigente e que carregam a possibilidade de corromper os regimes de verdade e de
poder em atuação. Trata-se de uma confluência de conceitos, atributos e usos do monstro,
e que fazem parte de sua constituição.
Este capítulo explora esse conjunto de interstícios, partindo da noção de que
monstro é um termo que não gera dúvidas quando evocado. O termo geralmente surge
para desqualificar um sujeito e parece trazer consigo a verdade desta qualificação, como
uma essência que foi, finalmente, identificada. Contudo, o senso comum, a arte, ou a
ciência não possuem acordo ou clareza quanto ao significado da palavra. O termo denota
muito mais um ato de fala do que um significado: “você é um monstro!”. O equívoco é
inexistente em assertivas dessa natureza, de modo que a pergunta “o que é o monstro”,
que dá título e objetivo a esta seção, será sempre acompanhada pela indagação “quem é
o monstro?”, mesmo que de modo subjacente.
O leitor encontrará, ao longo deste texto, certa confluência entre os vocábulos
monstro, monstruoso e monstruosidade. Advirto que se trata de um problema heurístico
e parte do esforço desta pesquisa é compreender o processo em que o monstro e a
monstruosidade se relacionam. Por ora, estabeleço a distinção seguinte: monstro e
monstruoso referem-se à criatura, ao sujeito dito monstruoso. Monstruosidade sugere uma
qualificação, categoria moral, adjetiva e valorativa. A monstruosidade não tem um valor
em si, e opera como um vetor que direciona valores diversos em um determinado contexto
cultural. As categorias relacionam-se de modo complexo, de modo que esta advertência
é mais metodológica do que conceitual.
A aparição do corpo informe12 do monstro atravessa uma fronteira proibida: a que
garante que apenas corpos e modos de existência devidamente codificados e classificados
podem participar das instituições que garantem a vida, como corpo, família, gênero,
estado etc. Com o monstro, a estabilidade destas instituições estará ameaçada. A ideia de
uma civilização ocidental ergue-se sobre uma cisão histórica e metafísica entre natureza
e cultura, diante da qual derivam os limites conhecidos de homem e de mundo. O monstro
coloca no campo do sensível um corpo que apavora os processos de interpretação por não

12
Informe é utilizado nesta tese a partir de Georges Bataille (2018), como apresentado na introdução.
41

fazer parte de um esquema, conjunto ou taxonomia prévios. A aparição do monstruoso


solapa a lógica classificatória do mundo conhecido, organizado a partir de cisões binárias
que estabelecem um dentro e um fora: do corpo, da família, da espécie, do mundo etc.
Reside aqui uma ambiguidade que faz parte da circulação do monstro na cultura
ocidental, orientada por um processo dialético de fabricar o outro a partir da exclusão, e
incluir esse outro sob a marca da exclusão (HAMLIM e FERREIRA, 2010). Como dito,
o monstro é uma forma de vida inassimilável por esquemas de significação. Trata-se de
corpos ou de pessoalidades que resistem à codificação e à classificação. Ao mesmo
tempo, o uso e a disseminação do termo monstro age como um instrumento de poder, um
modo de atribuir a um vivente um significado pejorativo, estereotipado ou estigmatizado.
Identificar um sujeito como monstro acaba por ser um modo de encerrá-lo em um
conjunto de valores atribuídos à monstruosidade.
O argumento que quero explorar é o de que o monstro não é o corpo que dá vida
a medos, anseios e desejos prévios de um grupo social. O monstro tampouco é o corpo
feio e repugnante que se opõe ao belo e ao sublime, muito embora esta seja uma
conceituação frequente em estudos sobre o tema. Essas atribuições são cabíveis em alguns
contextos, mas não possuem validade para definir o monstro. Esse modo de definir
monstro o entende a partir de uma falta, ou uma lacuna, como no caso do Minotauro que
ocupa um espaço gerado pela transgressão do pai, ou é definido como oposição ao herói.
Gostaria de me aproximar do monstro a partir do que ele apresenta, não em
oposição ou reação ao humano, mas como uma possibilidade afirmativa de existência.
Nesse sentido, proponho uma definição preliminar, cujos contornos serão mais bem
definidos ao longo desta tese: monstro é uma forma de vida que se apresenta de modo
não codificado e não classificado, e que resiste à codificação e à classificação. Além disso,
o monstro é um tipo de vivente que faz vacilar os mecanismos hegemônicos de
codificação e de reconhecimento. Afirmar que o monstro é uma forma de vida, uma
modalidade de existência, reforça a tentativa de entendê-lo como agente, e não como
elemento relacional metafórico do homem, seu duplo, lado sombrio ou natureza
ambivalente, ou ainda como a matéria exterminável da qual se ocupam os heróis.
Diante disso, busco entendê-lo menos pelo que ele significa ou representa, do que
pelo que ele propõe como resistência, insurgência, deriva e subversão. Jeffrey Jerome
Cohen (1996; 2000), ao propor uma teoria do monstro, investiga o tema na cultura a partir
42

de sete teses13, corolários de como atua o monstro nas culturas. O texto de Cohen é,
certamente, uma das obras recentes mais influentes dos estudos sobre monstruosidade. O
texto afirma na primeira tese que o monstro é um corpo cultural, que nasce como a
corporificação de certo momento da cultura, comungando os medos e desejos de um
tempo (COHEN, 1996). Esta proposição apresenta uma inserção do monstro como
elemento cultural e como metodologia histórica, que implica pensar uma cultura a partir
dos monstros que ela engendra.
Trata-se de um recurso epistemológico potente de crítica cultural. A obra de
Cohen investiga o monstro em consonância com o esforço dos Estudos Culturais em
pensar povos e sujeitos subalternizados pela histórica. A teoria dos monstros proposta
pelo autor pensa conceitos hegemônicos como identidade e nação a partir de sua
contraparte rejeitada. Cohen investiga como certos povos narram o contato com
alteridades distantes utilizando o monstro como avatar. A proposta do autor, no entanto,
vai na contramão de dois pressupostos caros aos Estudos Culturais, “a compulsão da
especificidade histórica e a insistência de que todo conhecimento é local, o mesmo
valendo, portanto, para todas as cartografias desse conhecimento” (COHEN, 2000, p.23).
Com isso, o autor, ao longo das sete teses, defende uma relativa universalidade
funcional dos monstros em culturas diversas, como um dispositivo dual e relacional com
o qual cada sociedade lida com suas pulsões ocultas ou crises culturais. O modo como o
autor apresenta o corpus segue uma recuperação histórica em grande medida linear. Essa
possível universalidade do monstro é mapeada pelo autor na cultura ocidental,
identificando sua origem nas cosmogonias gregas e judaicas, por exemplo, e traçando
paralelos com o imaginário medieval, o romance moderno, o cinema etc. Para ele, o
monstro é a chave heurística do desconhecido ou do oculto de cada tempo histórico.
Assim, “o monstro existe apenas para ser lido” (COHEN, 2000, p.24). Para o autor:
O monstro nasce nessas encruzilhadas metafóricas, como a corporificação de um
certo momento cultural — de uma época, de um sentimento e de um lugar. O
corpo do monstro incorpora — de modo bastante literal — medo, desejo,
ansiedade e fantasia (ataráxica ou incendiária), dando-lhes uma vida e uma
estranha independência. O corpo monstruoso é pura cultura (COHEN, 2000,
p.24).

13
Trata-se do livro Monster Theory: reading culture, publicado em 1996, organizado por Cohen. Na fortuna
crítica recente, a obra de Cohen ocupa um lugar central, como um dos expoentes de uma virada nos estudos
sobre monstruosidade. Desse modo, alguns dos seus trabalhos são marcos temporais e teóricos
incontornáveis para uma pesquisa sobre monstros.
43

O monstro ocuparia um lugar relativamente fixo em um conjunto de símbolos


ligados ao sagrado, ou ao inefável de cada cultura, como deus, morte, mito, homem,
categorias cujo significado pode ser discernido a partir de símbolos culturais. A proposta
de Cohen dá a entender que, diferente de deus e de humano, o conceito de monstro sofreu
pouca variação histórica. O monstro, nessa concepção, é entendido a partir dos conceitos
culturais hegemônicos e sua variação está condicionada ao modo como diferentes culturas
percebem a noção de identidade e de diferença. Nesta concepção, o monstro atua como
um sintoma ou como índice dos valores culturais vigentes. Uma investigação da cultura
dos monstros deveria proceder, portanto, a partir de um paradigma indiciário, buscando
entender o que eles metaforizam. Um trabalho que consiste em investigar “pegadas, ossos,
talismãs, dentes, sombras, relances obscurecidos — significantes de passagens
monstruosas que estão no lugar do corpo monstruoso em si” (COHEN, 2000, p.30).
Nesse sentido, o monstro não tem um valor em si, mas aponta para algo que é
externo a ele. Essa concepção é endossada pela interpretação da etimologia do termo
monstro. A raiz latina da palavra, monstrum ou monstrare, indica a ideia de advertir,
mostrar, ensinar um comportamento (BOLOGNA, 1997; GIL, 2006). Não raro, o monstro
é relacionado a uma divindade divinatória, ou a um presságio ruim, ou antecipa uma
catástrofe. Nesse sentido, sobretudo pela homofonia entre monstrare e mostrar, o monstro
é comumente associado a uma vocação para a representação (GIL, 2006).
Metodologicamente, o monstro torna-se uma ferramenta referencial, indica algo sobre os
sujeitos humanos que lidam com o monstruoso. Um exame atento à etimologia pode, no
entanto, apontar para outro entendimento em relação ao monstro. Por ora, gostaria de
apresentar dois exemplos que endossam a interpretação representativa do monstro.
Godzilla, cujo primeiro filme foi lançado em 1954, pode ser compreendido como
a representação do medo em relação à bomba atômica nos anos seguintes à Segunda
Guerra Mundial. A relação entre ciência, tecnologias bélicas e o despertar do monstro são
exploradas no filme, em que testes nucleares no mar fazem Godzilla vir à superfície e
atacar o Japão. O mesmo disparador é retomado nas produções mais recentes da franquia.
A relação com a ciência, no entanto, muda de espectro. Se no filme de 1954, o Japão
ainda sob o luto de Hiroshima e Nagasaki, percebemos um pessimismo, nas recentes
produções a ciência aparece como uma aliada do monstro, como uma metáfora do
antropoceno.
Do mesmo modo, o conde Drácula, do romance publicado em 1897, encarna a
xenofobia em relação à Europa Oriental e o antissemitismo corrente ao criar um monstro
44

que caricaturiza o estereótipo antissemita do judeu no final do século XIX


(HALBERSTAN, 1995). Os dois exemplos, distantes em contextos sociais, podem ser
igualmente índice de fenômenos históricos totalmente distintos entre si: a tecnologia
bélica como um monstro que se alimenta de radiação, no caso japonês; a afirmação do
nacionalismo inglês a partir de um vampiro do leste europeu que invade a Inglaterra.
Do ponto de vista de uma narrativa sociológica, ou de uma cultura dos monstros,
como pretende Cohen, os dois monstros condensam questões sociais heterogêneas em um
corpo hostil comum que seria a causa, e não efeito, de tensões emergentes. Os dois
exemplos popularizam narrativas políticas muito específicas dos contextos de produção
e difusão das duas obras. O lagarto gigante radioativo que emerge do oceano Pacífico e o
vampiro da Transilvânia, descendente de uma casta que outrora defendeu as fronteiras da
Europa do império Otomano, corporificam dois modos de colocar em risco o estatuto do
estado e da nação. Godzilla atua pela destruição física e irreparável das cidades,
comparável apenas ao efeito da bomba atômica. Drácula, pela “corrupção racial”,
simbolizada pelo sangue estrangeiro misturado ao corpo das mulheres inglesas.
Nas duas obras, a natureza aparece como um terreno hostil de onde o monstro
salta para destruir a cultura, seja o Oceano Pacífico ou os Cárpatos. Esse fenômeno é
capaz de distender o espaço entre natureza e cultura, esta última vista como instância
conservadora da ordem, da identidade e do funcionamento das instituições. O monstro é
vencido pela ação da ciência, em Godzilla, e pelo homem burguês, em Drácula, duas
modalidades da racionalidade moderna, em que a técnica se sobrepõe ao mito. Nas duas
obras, a figura do cientista/médico é indispensável para lançar luz sobre o monstro, bem
como uma instrumentalização do mito em favor da racionalidade. Restaurada a ordem, as
instituições, as cidades, o corpo, a família e a sexualidade podem retornar ao seu
funcionamento regular. A recepção das duas obras elabora a ideia de guerras em que o
humano consegue defender e manter suas fronteiras seguras. O monstro é retirado do
campo do visível e permanece sem política. Ou ainda, permanece como o outro da
política, o constante inimigo do funcionamento da vida comum.
Investigar o monstro como símbolo indiciário é pensá-lo a partir de um saber
antropocêntrico que situa o monstro em uma narrativa que converge para o homem. Isso
implica em encaixá-lo em um regime representativo, em que sua participação no mundo,
bem como sua crítica política, é reduzida a um espelho de afetos históricos simplificados
no corpo do monstro, corpo que é continuamente expulso dos espaços de ordem. O
monstro desmaterializa-se, perde o corpo, e torna-se metáfora.
45

O interesse desta pesquisa vai em uma direção diversa à da teoria dos monstros de
Cohen. Do ponto de vista de uma vida política, pensar o monstro como um operador
conceitual do humanismo ocidental pouco ou nada revela sobre o monstro em si. Nesse
sentido, busco pensar o monstro não como um conceito utilizado para entender contextos
externos a eles, mas como uma pessoalidade capaz de produzir conhecimento e modos de
existência. Assim, divirjo de Cohen quando ele afirma que o monstro “existe apenas para
ser lido” (COHEN, 2000). O que quero afirmar é: o monstro existe. Este é o ponto de
partida desta investigação.
Ao afirmar que o corpo do monstro é um corpo cultural, Cohen deixa de lado a
contraparte desta assertiva: o corpo humano também é um corpo cultural, e também é um
corpo que pode ser lido como afeto histórico. Como um objeto da antropologia ou da
sociologia, o corpo pode ser pensado como uma construção simbólica (LeBRETON,
2003), como a demarcação de uma fronteira que delimita perante os outros a presença de
um indivíduo. Os valores remetidos ao corpo e às imagens e códigos que lhe dão
espessura “falam-nos também da pessoa e das variações que sua definição e seus modos
de existência conhecem, de uma estrutura a outra (LeBRETON, 2003, p.7).
O corpo denota uma ambiguidade, que indica que ele é constituído por códigos e
valores culturais, ao mesmo tempo que apresenta uma realidade material, corpórea e
sensível. O corpo ocupa um espaço, absorve os fenômenos externos e é, ele mesmo, um
fenômeno, categoria do “real”, muito embora seja conhecido apenas pelos discursos que
o antecedem (GIL, 1997). Nesse sentido, corpo e natureza comungam uma familiaridade
aproximada. Ambos são tomados a partir de uma imobilidade material na qual são
inscritos significados culturais. Cohen, em outro trabalho (1999), percebe o corpo como
uma fita de Moebius, “onde qualquer movimento cruza constantemente o dentro e o fora,
minando a utilidade de manter essas frágeis distinções” (COHEN, 1999, p. XVII).
Nesse sentido, a ideia de uma hermenêutica do monstro não é indevida ou
inadequada. Pensar afetos históricos a partir do corpo monstruoso é uma abordagem
possível. Essa abordagem, no entanto, sustenta pressupostos que estou interessado em
abandonar. Notadamente o pressuposto que posiciona o monstro como oposto ao humano,
como uma alteridade ao mesmo tempo irredutível e complementar. Do ponto de vista do
monstro, a ideia de uma identidade opositora perde força e sentido. O monstro é
identificado pela sua dessemelhança radical. Lembremos a dúvida de Astérion sobre que
tipo de criatura seria o seu semelhante.
46

O corpo do monstro é uma realidade ininteligível. Os códigos correntes de


legibilidade do corpo colapsam ao se deparar com o corpo do monstro, não porque este
encarna a diferença em um grau mais elevado. Poderíamos nos perguntar: diferente de
quem? A resposta recairia sobre o modelo geral de homem. Quando acompanhamos a
angústia do Minotauro de Borges, no entanto, percebemos que ele considera a
possibilidade de um touro, ou um touro com cara de homem, como seu semelhante. A
dessemelhança do monstro é o fator principal de ininteligibilidade, a incapacidade de
encontrar par, de parecer-se com algo além de si mesmo. O monstro impede a ação dos
critérios coletivos de reconhecimento e de identidade.
A impossibilidade de reconhecimento especular é a fonte de angústia do monstro
de Frankenstein. Na obra de Mary Shelley, não há uma descrição precisa do que seria o
corpo desse monstro. A imagem popularizada pelo cinema remete muito mais à feiura
cadavérica do monstro, sobretudo a partir da interpretação de Boris Karloff, na adaptação
de James Whale, de 1931. No romance de Shelley, no entanto, algumas características
são identificadas, como a pele pálida e extremamente fina, que mal esconde os órgãos
internos da criatura, o fato de tratar-se se um cadáver que foi remontado para viver
novamente, além da força, tamanho e velocidade excessivos.
A imagem que o leitor pode formar do monstro é bastante vaga, o conhecemos
apenas pelo efeito de espanto e horror causado em quem o vê. O monstro, no entanto, é
capaz de uma vasta eloquência verbal, tendo sido alfabetizado a partir de obras canônicas
do romantismo, notadamente Paraíso Perdido, de John Milton, e Os Sofrimentos do
Jovem Werther, de Goethe (BROOKS, 1993). Quando o monstro narra sua própria
vivência para Frankenstein, seu criador, notamos que ele é capaz de linguagem e
raciocínio, capaz de mimese e de falar como o homem aristocrata do final do século
XVIII. É a aparência, a realidade sensível do monstro, que o desloca de modo irrevogável
do mundo dos homens.
O monstro questiona a natureza de sua existência como exemplar único e
deslocado do que poderia ser uma raça monstruosa, caso Victor Frankenstein tivesse
levado adiante o plano de construir uma companheira para ele. Isso talvez trouxesse paz
ao coração do monstro, contudo colocaria um temor ainda mais potente: a possibilidade
de uma prole, de uma fêmea cuja capacidade reprodutora, livre da família nuclear,
incorpora o maior pesadelo da racionalidade científica do início do século XIX
(HALLBERSTAN, 1995; FAUSTO, 2019). Temos, portanto, a criatura isolada, solitária,
que não encontra espaço na cultura, tampouco na natureza. Não é a diferença que
47

preocupa o romance. Há toda uma sorte de distinções de gênero, classe e nacionalidade


que povoam a obra, na qual a diferença é calculável e comparável. O monstro não pode
ser apreendido por nenhum desses parâmetros de cálculo da diferença, justamente por não
parecer-se com nada, por ser dessemelhante e informe.
A criatura hedionda de Frankenstein, em vez de se comunicar por urros ou
grunhidos, justifica sua monstruosidade com sensibilidade e elegância (BROOKS, 1993).
A narrativa do livro, composta por camadas de relatos do passado, organizados como uma
grande carta, também oferece uma materialidade díspar entre a forma linear do romance
e a costura entre distintos focos narrativos e vozes entrecortadas na feitura do livro 14. O
relato do monstro remonta o pacto iluminista do contrato social. O monstro não nasceu
mau, a sociedade o corrompeu. Ele justifica sua violência pela falta de lugar no mundo,
em parte denunciando a moral humana, mas evidenciando que não há lugar para ele em
um mundo que agrupa os seres por semelhança.
Como criação verbal, ele é exatamente o oposto do monstruoso: ele é um
participante simpático e persuasivo da cultura ocidental. Todos os interlocutores
do Monstro — incluindo, finalmente, o leitor — devem se conformar com essa
contradição entre o verbal e o visual (BROOKS, 1993, p.202).

Para Cohen, o monstro “tornou-se uma forma comum de expressar ansiedades


sobre os limites e a fragilidade da identidade” (COHEN, 1999, p.XVII). O monstro torna-
se, portanto, o catalisador de crises de categorias identitárias. Sua aparição desvelaria o
medo oculto do homem em relação à sua própria fragilidade existencial. A criatura de
Frankenstein, no entanto, não oferece a possiblidade de relativização do humano. O
criador é atormentado pela própria consciência e debate-se com limites éticos e teológicos
da ciência. O nascimento do monstro, no entanto, implica um elemento trágico do
romance, com a morte do criador e o desaparecimento da criatura. A humanidade dos
outros personagens permanece intocada.
O que o monstro de Frankenstein oferece é a promessa de uma prole possível, de
outra constituição identitária, não mais criada à imagem e semelhança do pai humano,
mas que parte da dessemelhança. No lugar de um constructo feito por partes de cadáveres
humanos, a linhagem da criatura povoaria um espaço do mundo como uma nova espécie,
formas de vida imprevisíveis e incontroláveis. A ideia de uma fêmea monstruosa traz a
possibilidade de geração fora do controle de formas masculinas de reprodução e de vida

14
O recurso foi comum no romance epistolar dos séculos XVIII e XIX e será utilizado décadas depois por
Bram Stoker em Drácula, cuja estrutura em forma de cartas e diários garante uma multiplicidade de
narradores, todos em primeira pessoa.
48

social. A ideia apavora Frankenstein que interrompe a criação da companheira da criatura.


O elemento de horror no romance de Shelley pode ser entendido como um tipo de utopia
política em que o monstro amplia criativamente as possibilidade de entendimento de vida,
de corpo e de sociabilidade.

2.4 AS HIPÓTESES

José Gil (1997) evidencia o desaparecimento da função significante do monstro.


Trata-se de um ser que, a princípio, nada significa e que, por isso mesmo, pode proceder
como um excesso de significação, como um “parasitário de todos os signos da linguagem”
(GIL, 1997, p. 49). Gil refere-se aos corpos monstruosos, como uma cabra de duas
cabeças, em que o mesmo signo, a cabeça, duplica-se a ponto de perder o sentido (GIL,
1997). O monstro, pela recusa a ser codificado, coloca-se como um problema
semiológico. Diante do monstro, a relação estrutural entre corpo como superfície neutra
(significante) no qual são dispostos os códigos (significado) é desorganizada. O monstro
aponta para a “natureza — o corpo — tentando significar por ela própria, sem a ajuda de
(e contra) a cultura: significa, ao mesmo tempo, demasiadas coisas e nada” (GIL, 1997,
p. 49). Gil recorre ao monstro para capilarizar suas discussões sobre o corpo, cujo
argumento começa com a própria dificuldade de definir o objeto de debate. Para Gil,
diante do corpo, assim como do tempo e da morte, a linguagem parece esquivar-se de
uma definição precisa. O monstro está condenado à mesma indiscernibilidade.
Afirmar precisamente o que é o monstro passa por contextos epistemológicos e
culturais determinados, de modo que o investigador pode oferecer apenas esclarecimentos
parcelares sobre o tema. Outro problema que o corpo, na investigação de Gil, comunga
com o monstro, não é exatamente a carência de definições, mas sim o excesso do seu uso
metafórico. O termo monstro circula na linguagem para designar uma diversidade de
coisas que nada têm em comum. Monstro, substantivo masculino, torna-se uma
adjetivação frequente que pode ser atribuída a qualquer coisa: a um animal feroz, a um
ser fantástico, ao presidente, a um vírus. O termo pode ser utilizado de modo elogioso em
relação a um atleta, por exemplo, ou a um praticante de fisiculturismo. Quanto mais se
fala sobre o monstro, menos ele existe por si próprio.
Em o Livro dos Seres Imaginários, Borges (2007) apresenta um extenso léxico de
monstros e animais fantásticos, suas origens e significados. Como um bestiário, o
catálogo passeia por estranhos entes imaginários da ficção e dos mitos. No léxico sobre a
49

Quimera, que surge pela primeira vez em um texto literário na Ilíada, ela é descrita como
um híbrido: “a parte da frente era de leão, a do meio era de cabra e a de trás era de
serpente” (BORGES, 2007, p. 175). Um estranho destino se abateu sobre ela. Ao longo
de obras e dos séculos, sua formação foi sofrendo variações a ponto de não ser mais crível,
sendo interpretada como uma metáfora de um vulcão na Ásia Menor, ou de um navegador
de hábitos ligados à pirataria.
Essas conjecturas absurdas provam que a Quimera já estava cansando as pessoas.
Melhor que imaginá-la era transformá-la em qualquer outra coisa. Ela era
excessivamente heterogênea; o leão, a cabra e a serpente (em alguns textos, o
dragão) não se dispunham a constituir um único animal. Com o tempo, a
Quimera tende a ser "o quimérico"; um conhecido gracejo de Rabelais ("Uma
quimera, oscilando no vazio, pode comer segundas intenções?") marca muito
bem a transição. A forma incoerente desaparece e resta a palavra, para significar
o impossível. "Ideia falsa", "devaneio", é a definição de quimera fornecida agora
pelo dicionário (BORGES, 2007, p. 175).

O constante uso metafórico do termo sugere um uso qualitativo do monstruoso. O


monstro seria, neste tipo de abordagem, o locus da monstruosidade, em uma relação de
causalidade e complementaridade binária: o monstro como um agente (causa) da
monstruosidade (efeito), ou ainda como corpo e espírito, ou corpo e subjetividade. A
monstruosidade torna-se um signo duplo que corresponde à essência do monstro, sua
natureza pervertida, e às consequências maléficas dessa natureza para os humanos. A
relação causal entre monstro e monstruosidade opera um tipo de equação semiótica que
associa o sujeito monstruoso a uma significação estereotipada ou estigmatizada.
Essa operação propõe uma essência, uma interioridade monstruosa para qual o
monstro aponta, ou faz ver. Gostaria de evidenciar o elemento político nessa associação
semiótica, que desmaterializa o monstro em nome de um sintoma, índice ou metáfora.
Essa operação estigmatiza o monstro e o posiciona em uma hierarquia em relação às
outras formas de existência, notadamente a humana. Enquanto isso, o monstro como
vivente desaparece sob um conjunto saturado de valores e significados externos a ele e
que lhe são atribuídos.
Interpretações psicanalíticas tendem a compreender o monstro como sintoma de
alguma pulsão do indivíduo, como o retorno ou a aparição do que foi reprimido ou
recalcado. Nesse sentido, monstro aproxima-se do que Freud chamou de unheimlich, que
pode ser traduzido como inquietante, sinistro, estranho, algo que deveria ter se mantido
fora da vista, mas que veio à tona. O estranho freudiano pode ser definido como “algo
que é secretamente familiar [heimilich-heimisch], que foi submetido à repressão e depois
voltou” (Freud, 1996, p. 235). Essa interpretação entende o monstro como a
50

corporificação paranoica de um trauma, ou de pulsões reprimidas, ou ainda de um tabu,


bem como um modo de lidar externamente com elas. O monstro, aqui, ocupa o mesmo
escopo epistemológico que os sonhos ou os chistes: substitutos de uma causa mais
profunda, que deverá ser investigada clinicamente. Uma vez compreendida a causa, o
efeito deverá desaparecer. O monstro como resultado sintomático do desvio ocupa o lugar
de algo a ser curado e eliminado, ou ainda, uma figura de linguagem que se refere sempre
ao desconhecido: uma vez que a sombra atrás da porta é iluminada, o monstro formado
pela escuridão desaparece.
Esta concepção entende o monstro como um substituto de afetos e de alteridades
indesejáveis, bem como sua aparição recorrente no discurso, na cultura, na ficção etc.
Pensar o monstro como sintoma, contudo, implica ignorar um paradoxo que se encontra
na definição do objeto: o monstro desfaz a possibilidade harmônica de representação,
como o hiato que a imagem da criatura de Frankenstein cria com o modo como que ela
apresenta a si mesma. O impacto do monstro na cultura (e talvez na psique) consiste na
resistência à significação. Para Gil, “é a irrupção de um corpo individual a-significante
no espaço social que nos angustia, é a ameaça que ele faz pesar sobre o nosso ser cultural
ao devorar signos, que nos amedronta” (1997, p.49). O corpo do monstro é a atualização
da dessemelhança, que coloca em dúvida as definições de mesmo e de outro, de igual e
de diferente. O monstro é uma realidade sensível, a quem não corresponde de imediato
uma identidade nem um código de reconhecimento unívoco.
É justamente por fissurar os códigos e as identidades calcadas na semelhança
(FOUCAULT, 2016; GEBAUER e WULF, 2004) que o monstro torna-se uma
experiência de alteridade, que condensa ao redor de si uma ameaça heterogênea às
instituições. A aparição do monstro apresenta uma crise de categorias constitutivas do
que entendemos como identidade, notadamente espécie, raça, classe, nacionalidade,
sexualidade e gênero (COHEN, 1996; 1999; 2000). O monstro é um corpo não
identificado pelas regras correntes da mimese. Nesse sentido, ele surge como um
elemento do caos e da desordem, uma figura capaz de desordenar regimes de verdade e
de poder, mas não o faz de forma unívoca. Desse modo, tratar o monstro como sintoma,
nos moldes da psicanálise, ignora a realidade corpórea e não codificada do monstro, e o
remete diretamente a uma causa, que nos estudos sobre histeria de Freud são de fundo
sexual (HALLBERSTAN, 1995).
O monstro como metáfora e o monstro como resposta a um tabu (sintoma)
associam diretamente monstruosidade à transgressão das normas sociais. Trata-se de um
51

conjunto de epistemologias frequentes na fortuna crítica sobre a monstruosidade, e que


partem de áreas de pensamento diversas. De um modo geral, essas abordagens podem ser
divididas em dois blocos de pensamento que nomeio hipótese indicial e hipótese
complementar.
A hipótese indicial toma o monstro como efeito de uma causa, como indício de
algo externo a ele, seja o efeito de uma transgressão, uma catástrofe, uma profecia, uma
doença. Essa abordagem tende a pensar o monstro como a corporificação de algo que o
antecede e o transcende. Esse é o caso da relação entre Godzilla e a bomba atômica,
discutido anteriormente. Essa hipótese entende o monstro como um avatar social da
diferença, seja racial, nacional, sexual etc. Nesse tipo de investigação, o monstro é
apreendido por um paradigma indicial, como uma peça dentro de uma ordenação maior
de signos. Sua presença deve ser deduzida a partir dos efeitos de sua passagem: rastros,
pegadas, sintomas, sinais.
A hipótese complementar pensa o monstro como o outro radical do homem, uma
parte de sua natureza bipartida ou pervertida. Nessa visão, o monstro tende a ser resultado
da transgressão das normas sociais ou de algum tabu e é lido como consequência dessas
ações. O caso do Minotauro no mito grego representa esse tipo de abordagem, e apresenta
o monstro como resultado direto de um conjunto de excessos e transgressões de seus pais.
O monstro é posicionado como o outro radical do modelo humano, como parte de uma
luta contra a possibilidade de tornar-se monstro. Esse conflito apresenta a monstruosidade
como algo inerente à condição humana e que deve ser combatida. Esse visão posiciona o
monstro como parte da psicomaquia do sujeito, uma oposição-complementaridade entre
astra e monstra, tensão que pode encontrar paralelo na cultura.
O monstro, nesta visão, seria um retorno da natureza animal do homem, e que se
revela na luta do bem contra o mal, da luz contra as sombras, do homem moral contra o
homem passional. O monstro como complemento faz parte da natureza reprimida do
indivíduo, sua sombra, e deve ser sempre combatido, como encontramos no tema do
duplo, nas narrativas de lobisomem15, ou ainda como ocorre no romance O Médico e o
Monstro, de Robert Louis Stevenson (publicado em 1886), em que um artifício químico
é capaz de concentrar toda a vileza de um sujeito, fazendo nascer uma criatura sem
escrúpulos e sem limites morais.

15
O tema do lobisomem será discutido no capítulo 4 dessa tese.
52

Apresento as duas hipóteses como um quadro geral, em que modos de pensar e


investigar a monstruosidade orientam-se. Cabe dizer que não são abordagens a princípio
excludentes. A limitação desses modelos, no entanto, implica um esvaziamento da ideia
de monstro em favor daquilo que ele pode representar. Além disso, propõe uma noção de
monstruoso essencialista e funcional em relação ao conceito de humano. O problema
destas hipóteses é que, nelas, o sentido da monstruosidade se antecipa à própria aparição
do monstro, como um significado pré-estabelecido e pouco empírico, no qual alteridades
distantes, radicais ou indesejadas são encaixadas. É quase como dizer que o estigma
antecede o estigmatizado. A criatura passa a ser percebida unicamente pelo seu efeito e
função. Podemos perceber o monstro de Frankenstein a partir da relação que ele trava
com a ciência e o pensamento liberal que emerge após a Revolução Francesa. Contudo,
estamos diante de um sujeito que põe uma pergunta (“o que era eu?”) que as abordagens
indiciais e complementares são incapazes de responder. Do mesmo modo a dúvida do
Minotauro de Borges, que indaga: quem será meu semelhante? Trata-se de questões que
partem da própria experiência monstruosa e que permanecem sem uma discussão devida.
Pensar o monstro a partir de uma indicialidade ou complementaridade implica
ignorar o caráter produtivo que envolve os sujeitos monstruosos e as pessoalidades
dissidentes. O monstro contemporâneo emerge a partir de um pano de fundo contextual,
a saber, a delimitação de normas sobre o corpo e sobre a subjetividade que orientam a
vida cotidiana. Contudo, a simples oposição entre norma e sujeito não é suficiente para o
aparecimento de monstruosidades. O monstro aparece como parte de uma tecnologia
produtiva de monstruosidades que alimenta o imaginário popular com sujeitos desviantes
e disruptivos. Trata-se, em parte, de codificar certas formas de vida como alteridades
opostas e nocivas à humanidade, em um processo que ocorre simultaneamente à intensa
presença de monstros na imaginação popular. Assim, o monstro torna-se um tipo de presa
do poder e da norma, um modo de produzir pânicos morais e de enquadrar pessoalidades
dissidentes como irreais e abjetas.
53

2.5 MÁQUINA DE FAZER MONSTROS

O sujeito monstruoso emerge em um processo que envolve as formas de vida


dissidentes e a produção discursiva da monstruosidade, entendida como uma categoria
moral e como um marcador social da diferença. Contudo, quero argumentar, esse
processo cria fissuras no modo como a norma age para codificar os sujeitos. O monstro
produz modos de existência e agenciamentos políticos no interstício entre a ação dos
dispositivos de poder e as possibilidades criativas que surgem nessas dobras.
A produção discursiva de monstruosidades é parte de uma tecnologia política que
atribui a determinados corpos ou determinados modos de vida valores radicalmente
opostos e danosos à moral social. Trata-se de um modo de enquadrar existências
precarizadas ou subalternas como monstruosidades, como sujeitos que oferecem um risco
sem precedentes à vida coletiva. As vidas codificadas como monstruosas passam a ocupar
zonas de indiscernibilidade social: codificar um sujeito como monstruoso implica
entendê-lo como parcialmente real. Se uma vida é continuamente entendida como
monstruosa, ou seja, irreal, ela não é entendida como uma vida de fato. Do mesmo modo,
a morte desse sujeito não conta como uma perda social a quem é cabível o luto.
O processo que produz monstruosidades discursivas, ou monstruosidades morais,
age de modo paradoxal. Em parte, os sujeitos monstruosos são relegados a situações
limítrofes da vida social, excluídos dos mecanismos comuns que garantem humanidade
aos sujeitos. Por outro lado, a monstruosidade como um discurso e o monstro como uma
metáfora de determinados valores são recursos ininterruptamente repetidos no imaginário
midiático. Essa presença incessante do monstro na cultura visual pode levantar dúvidas
quanto ao seu efeito. Alguns temas relacionados ao mito e que podem ser associados ao
monstro não têm a mesma presença que personagens monstruosos nas produções
contemporâneas. Temas como o sacrifício humano, por exemplo, quando surgem em
algum filme ou série, causam algum tipo de comoção coletiva. O monstro ficcional, no
entanto, parece ter se tornado uma figura comum, quase familiar e que não se restringe
ao universo do horror.
A saturação da presença do monstro parece confirmar a ideia de uma proliferação
de discursos que impede o entendimento do monstro em si. O que quero sugerir é que a
história da monstruosidade tem uma trajetória similar à história da sexualidade, conforme
contada por Foucault (1999). Em lugar de recalcar o monstro para espaços de
invisibilidade social, a cultura moderna saturou sua presença em contextos e significados
54

diversos. A história da sexualidade e a história dos monstros têm seus caminhos cruzados
em diversos momentos, sobretudo pela crescente fabricação de patologias e do
enquadramento das dissidências sexuais dentro de um quadro maior de anomalias e
dissidências. Em contextos progressistas ou em narrativas estereotipadas, o monstro é
parte do imaginário midiático contemporâneo de modo complexo.
Nesse sentido, a monstruosidade relaciona-se diretamente com a proliferação de
novos regimes de poder na modernidade, notadamente o poder disciplinar e o biopoder.
Contudo, não se trata de uma categoria fácil de encaixar dentro da conduta disciplinar da
modernidade. O surgimento das alteridades dissidentes implica a necessidade de
enquadrá-las em um discurso normativo, sob o risco da norma ser enfraquecida ou
questionada coletivamente. A produção discursiva da monstruosidade torna-se um
recurso potente de atribuição de um sentido moral ao sujeito monstruoso, codificado
como potencialmente capaz de perpetrar o caos e a catástrofe em uma sociedade.
Todo um regime de visualidade e organização dos corpos e dos discursos é
acionado para codificar o monstro como elemento da catástrofe e da vilania. Se monstro
fosse uma categoria unicamente sociológica ou biológica, o vínculo entre corpo e sentido
certamente seria mais simples de ser esgarçado ou desconstruído. A herança mágica e
mitológica do monstro atribui ao sujeito monstruoso uma camada irreal, imaterial e extra-
humana. A herança mitológica é relevante pela relação bifurcada do monstro com a
política, e impede uma conceituação meramente racional, ou como produto direto de
causas sociais.
Por um lado, o legado mitológico, que pensa o monstro como uma criatura
imaginária, reforça o grau de irrealidade e de invisibilidade das vidas produzidas e
enquadradas como monstruosas, o que reforça a inelutabilidade das vidas exterminadas.
Contudo, essa herança abre a possibilidade para outras formas de relações, alianças e
filiações com elementos não antropocêntricos, da ordem do fantástico, da natureza e de
outros sistemas de compreensão do mundo.
Os sujeitos monstruosos emergem nesse contexto de relações, como pessoalidades
dissidentes dos modos normativos de identificar e reconhecer os indivíduos. Do ponto de
vista do funcionamento das instituições, as monstruosidades e dissidências são capturadas
por uma rede de saberes e poderes que visam dar um destino às formas de vida
monstruosas. Trata-se de um dispositivo simultâneo de minar o poder político do monstro
e de garantir o funcionamento da norma como elemento de organização do real.
55

Mary Douglas (2012) investiga como os sistemas culturais estabelecem normas e


pontos de comparação que sustentam sua confiabilidade e caráter de realidade em relação
às pessoas. A antropóloga discute a sujeira como uma categoria moral e afirma que
sociedades tendem a adotar uma lógica classificatória conservadora que as mantenha
estáveis. Segundo a autora, elementos desconfortáveis, que se recusam a ser ajustados,
tendem a ser ignorados ou distorcidos para que os pressupostos estabelecidos não sejam
perturbados. Há um local, em cada cultura, para a sujeira e para os resíduos, e há
significados distintos sobre o que é sujeira em cada cultura. Quando elementos fora de
uma ordenação prévia surgem, o sistema corre o risco de entrar em colapso, é exigido
dele uma tentativa classificatória.
O anômalo, que no pensamento de Douglas significa o mesmo que um nascimento
monstruoso, corresponde a esses itens que não possuem lugar estabelecido nas culturas.
Anomalia é “um elemento que não se ajusta a um dado conjunto ou série” (DOUGLAS,
2012, p.66). Caso não haja lugar prévio para um item anômalo em uma cultura, ele
rapidamente deverá ser classificado a partir dos critérios da anomalia: uma sociedade
precisa saber que destino dar aos monstros. O surgimento de um bebê monstruoso pode,
por exemplo, colocar em indefinição as linhas que separam os humanos dos animais. “Se
um nascimento monstruoso puder ser rotulado como um evento especial, então as
categorias poderão ser restauradas” (DOUGLAS, 2012, p.54).
Os dados etnográficos estudados por Douglas encontram ponto de interlocução
com a noção de ordem estabelecida por Foucault (2016). Tanto em Douglas como em
Foucault a ordem e a mimese são apreendidas pelos indivíduos como mitologias,
simplificações de quadros de verdade heterogêneos, e que agem para apagar os traços de
sua arbitrariedade e construção cultural. Para Douglas, “categorias culturais são assunto
público. Não podem ser facilmente sujeitas à revisão” (DOUGLAS, 2012, p.54).
Foucault, por sua vez, afirma que:
Os códigos fundamentais de uma cultura — aqueles que regem sua linguagem,
seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia
de suas práticas — fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas
com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. Na outra extremidade
do pensamento, teorias científicas ou interpretações de filósofos explicam por
que há em geral uma ordem, a que lei geral obedece, que princípio pode justificá-
la, por que razão é esta a ordem estabelecida e não outra (FOUCAULT, 2016, p.
XVI).

A ordem para o filósofo apresenta-se como a natureza das relações entre


elementos desconexos do mundo, relações construídas sobre um quadro mais amplo de
codificações históricas. Um sistema qualquer de elementos, ou seja, um conjunto formado
56

pela aplicação de critérios prévios, é “indispensável para o estabelecimento de qualquer


ordem” (FOUCAULT, 2016, p. XVI). O surgimento das dessemelhanças pode solapar as
definições prévias de mesmo e de outro, os critérios de codificação da identidade e dos
sistemas. As anomalias resistem à codificação, são nascimentos inéditos capazes de
questionar a pretensa naturalidade da ordem, seja da natureza, seja da cultura (esta
distinção também arbitraria). O monstro carrega em si o germe desse colapso, e a
fabricação de monstruosidades age como um esforço para saturar este poder de desordem,
em um processo continuo de fabricação de avatares monstruosos.
A seguir, analiso dois exemplos que endossam a ideia de uma produção discursiva
de monstruosidades: uma gravura da iconografia colonial, do século XVII, e o episódio
Man Against Fire, da série Black Mirror, de 2016.
A iconografia sobre as colônias americanas dialogou de modo bastante próximo
com o modo europeu de realizar o etnocentrismo, e uma extensa fortuna bibliográfica e
imagética versa sobre os habitantes do novo mundo conforme descritos no imaginário
europeu. Aos relatos dos navegantes, como a carta de Pero Vaz de Caminha, ou os
episódios contados por Hans Staden de sua estadia no nordeste do Brasil, publicado na
década de 1550, somam uma variedade de publicações e debates públicos. Chama a
atenção o esforço de alguns editores que compilaram os materiais esparsos sobre a
América recém colonizada, como o editor e gravurista alemão Johann Ludwig Gottfried,
que publica, no século XVII, uma coletânea dessas imagens e relatos intitulada Newe Welt
und Americanische Historien, algo como “Novo mundo e histórias americanas”.
Uma gravura de Gottfried (figura 02) mostra uma complexa cena de batalha em
que um grupo de indígenas captura o que parece ser um espécime típico das américas, um
monstro robusto, de corpo completamente coberto por uma pelagem semelhante a penas
ou plumas. O monstro é bípede e tem as mãos e os pés limpos de pelagem, iguais a mãos
e pés humanos. A criatura amarrada está prestes a ser açulada com uma lança, portada
por um dos captores que traja uma roupa feita por penas, ornada com um par de asas. O
monstro emplumado do novo mundo tomba para o lado, como quem espera o golpe de
lança. Um olhar mais demorado pode sugerir não tanto desespero, mas certa melancolia
na criatura. Uma passividade de quem se entrega à violência, da lança e do olhar. A cena
inteira remete a um episódio de batalha, com outros capturados ao fundo, fogo, fumaça,
um trio de mulheres que banha um homem no rio, pessoas em círculo ao redor da fogueira,
e um corpo decepado ao lado esquerdo da gravura, em um ato semelhante a uma autópsia
ou uma cena de antropofagia.
57

A gravura de Gottfried, que nunca pisou no Brasil, parece descrever elementos


diversos da cultura indígena, como rituais de guerra e antropofagia, e condensados em
um único amálgama etnográfico e selvagem. Ao chegar na América, por exemplo,
Colombo deparou-se com os restos de um ritual antropofágico e acreditou estar na terra
dos cinocéfalos (DEL PRIORE, 2000). Os cinocéfalos, homens com cabeça de cão, foram
objeto de preocupação, séculos antes, de Santo Agostinho, e de uma sorte de intelectuais
europeus obstinados a averiguar a humanidade (existência de alma) dos habitantes
monstruosos dos outros continentes.
58

Figura 02 – Gravura de Johann Ludwig Gottfried e detalhe, 1631.


Fonte: Domínio Público

O que chama a atenção na gravura de Gottfried não é tanto o valor descritivo da


imagem, mas sim o caráter imaginativo da espécie que ocupa o centro da figura. O novo
continente era habitado não apenas por uma fauna exótica, como nas gravuras de André
Thevet ou Johan Nieuhof, mas por monstros, espécies de gentes outras. Ao dispor o
59

indígena (devidamente estigmatizado) e o monstro capturado, a imagem reforça um


imaginário sobre os habitantes monstruosos dos confins do mundo, um modo de
extrapolar a diferença cultural em diferenças de natureza. Além da indiscernibilidade
humana do indígena, a possibilidade de lidar com monstros nas américas foi um fato
concreto de como o pensamento racional europeu compreendeu a alteridade.
O etnocentrismo não é uma característica cultural exclusiva dos europeus.
Também os povos indígenas brasileiros desconfiaram da humanidade dos brancos que
chegaram no Brasil. Para Lévi-Strauss, o etnocentrismo parece ser uma característica
partilhada por todas as culturas. Lévi-Strauss (2010) comenta o conhecido episódio das
Antilhas: enquanto, no começo da colonização, os espanhóis debatiam-se para saber se
os indígenas possuíam ou não alma (condição para a humanidade), os habitantes das
Américas realizavam experimentos semelhantes, afogando alguns prisioneiros brancos,
para saber se seus cadáveres apodreciam ou não.
O comentário que Viveiros de Castro (2018) faz sobre Lévi-Strauss leva em
consideração esses distintos modos de lidar com a alteridade: “[Lévi-Strauss] viu nesse
conflito de antropologias uma alegoria barroca do fato de que uma das manifestações
típicas da natureza humana é a negação de sua própria generalidade” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2018, p.35). Essa qualidade foi partilhada entre os diferentes povos na forma
de uma desconfiança sobre a humanidade do outro, ainda que sob critérios distintos. Os
europeus queriam saber se os indígenas tinham uma alma, enquanto estes duvidavam se
os europeus possuíam um corpo real. Essa característica do etnocentrismo é um tipo de
“avareza congênita, que impede a extensão dos predicados da humanidade à espécie como
um todo (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p.35).
O monstro coberto de plumas da gravura, como sabemos, não habita o nordeste
brasileiro. Se o fez um dia, possivelmente foi morto junto aos milhares de povos nativos
colonizados pelos europeus. Contudo, o caráter de exagero dos predicativos dos
indígenas, uma distorção que começa na natureza (descrição do corpo, pelagem, tamanho,
hibridismo) e passa pela cultura (guerra, antropofagia, dança), não é uma exclusividade
ou invenção do europeu do século XVII. Trata-se de um aparato bélico e eugenista que,
ao transformar outras gentes em criaturas hiperbolicamente desumanizadas, promove um
conceito negativo e excludente de humanidade. Ao produzir monstruosidades no contato
com o outro, o colonizador promove uma justificativa especista para a conquista dos
outros povos, ao mesmo tempo que endossa um processo de “favorecimento da própria
humanidade às custas da humanidade do outro” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 35).
60

O mecanismo de afirmar uma humanidade, imanente, particular e imutável, às


expensas da desumanização do outro, relegando este outro ao domínio da natureza,
impede, no processo colonizador, outro tipo de política que não a predação. Política e
eugenia tornam-se operações análogas (ROMANDINI, 2012). A fabricação de monstros
revela muito menos o fascínio do europeu diante da descoberta de outras culturas, do que
a produção da diferença como uma tecnologia de colonização. Antes de pensar o monstro
como a corporificação de um sentimento novo aos europeus, medo ou assombro diante
do novo mundo, ou ainda, antes de equiparar a verossimilhança entre o indígena brasileiro
e sua representação nas gravuras, é cabível questionar a presença do monstro nessas
publicações. Se dispensarmos a distorção de narrativas no extenso telefone sem fio de
informações entre marinheiros na costa americana e um editor na Alemanha, podemos
pensar no efeito e na recorrência com que monstro e extermínio aparecem na História.
Um paralelo possível — ficções de cunho científico sobre monstro e alteridade —
é encontrado na série Black Mirror, notadamente no episódio Men Against Fire
(Engenharia Reversa, terceira temporada, 5º episódio), lançado em 2016 e dirigido por
Jakob Verbruggen. O leitor poderá achar estranho os saltos temporais e contextuais no
exame dos objetos, contudo, o esforço em emparelhar distintos monstros insiste em um
deslocamento, um experimento, para entender a hipótese produtiva do monstro, bem
como sua relação com tecnologias de guerra.
O enredo do episódio apresenta um cenário distópico em que uma organização
militar está exterminando uma raça denominada de baratas. No original, o termo é
roaches, humanoides monstruosos de peles pálidas e dentes afiados. Cada soldado possui
um implante neural, conectado a dispositivos tecnológicos externos ao corpo, como
drones e câmeras, e acesso a informações compartilhadas pela missão, além de um
armamento sofisticado. O implante neural torna os soldados mais eficazes em sua caça às
roaches e também garante os momentos de prazer e descanso: o sono e os sonhos também
são previamente regulados pela tecnologia, bem como prazer sexual. O implante neural
induz em sonho relações sexuais para os soldados, como um tipo de prêmio ou
recompensa por matar roaches.
O protagonista Stripe (Malachi Kirby) é novo no destacamento militar. O soldado
é um jovem negro chamado Koinange. O apelido deve-se ao fato de seus companheiros
anglófonos não conseguirem pronunciar adequadamente seu nome. Esta relação é sutil,
mas coloca o personagem negro em um espaço de distinção em relação aos demais,
sobretudo por se tratar de uma operação de extermínio racial que ganha contornos de uma
61

guerra especista. Os civis, habitantes nativos daquela localidade — os que não são nem
soldados, nem monstros — não são anglófonos, e são entendidos por meio de um
dispositivo tradutor. O som do idioma remete ao leste europeu.

Figura 03: Os monstros vistos pelo dispositivo tecnológico


Fonte: Fotograma de Man Against Fire/Black Mirror (Jakob Verbruggen, 2016).

Na primeira operação Stripe entra em conflito com um grupo de quatro roaches,


refugiadas na casa de um civil humano. Duas fogem e o soldado consegue matar as outras,
uma delas com extrema violência, com sucessivos golpes de faca. Durante a operação,
um dos monstros ataca o soldado com um dispositivo tecnológico que corrompe o
implante neural, que reverte a engenharia do dispositivo. Stripe é celebrado pelo feito.
Duas mortes na primeira tentativa! As roaches são sempre referidas como figuras abjetas,
e com extremo ódio e desprezo pelos personagens, como se tratasse do extermínio de uma
praga animal de alto poder de contaminação. Os espaços tocados por elas devem ser
queimados por segurança sanitária. Quando elas são mostradas, sua aparência parece
justificar a ojeriza dos soldados humanos (figura 03).
A segunda operação de Stripe implica em uma caçada aos monstros em um prédio
abandonado. Na ocasião, o soldado experimenta um ruído no seu dispositivo: ele sente o
cheiro da grama. Até então, o implante neural suprimia sentidos básicos dos soldados,
como olfato e paladar. O corpo ciborgue dos personagens garantia que todas as
interpretações do real, incluindo prazer sexual, cheiro e visão, fossem mediadas pelo
dispositivo. Toda a experiência do real que demanda o uso dos sentidos é codificada pelo
dispositivo. Ao entrar no prédio disposto a exterminar mais roaches, Stripe depara-se com
uma mulher humana e seu filho. Diante da tentativa de sua parceira militar de exterminar
estes e os outros humanos do prédio, Stripe foge com a mulher e a criança. Ferido de bala,
ele se refugia em um abrigo com os outros dois humanos.
A mulher questiona porque ele não a via como monstro, ao que o soldado
responde: “Você não é uma barata. Baratas não falam”. De fato, tudo o que escutamos
62

das roaches são guinchos indistintos e desagradáveis. O diálogo desvela a trama


tecnológica envolvida, na qual os implantes neurais medeiam/codificam a percepção do
real, substituindo os sentidos dos soldados. Em lugar de uma imigrante e seu filho, o
implante mostra corpos monstruosos que emitem sons indiscerníveis, cuja aparência
remete diretamente aos insetos a que são equiparados. Trata-se de uma disputa
racializada, em que os monstros eram os últimos remanescentes imigrantes de uma guerra
que teria acontecido anos antes dos eventos da série.
O dispositivo cria uma diferença não mais de grau entre os viventes, mas sim de
natureza: roaches passam a ser vistas como outra espécie, degenerada, como mutações
que deram errado e que, portanto, devem ser exterminadas. É curiosa a organização dos
elementos da série ao trazer o personagem negro como o responsável por refratar a
distinção racial e especista. A crise e o conflito sobre o reconhecimento da humanidade
do outro é acionada pela falha no dispositivo de Stripe. Há um esforço por parte dos
soldados em não matar humanos, vidas humanas devem ser preservadas. O argumento
em favor do extermínio das roaches se daria justamente pela sua não humanidade e pelo
fator de risco que elas causariam aos civis, que as viam como realmente são, sem a
mediação do dispositivo.
O dispositivo é explicado na sequência: trata-se de uma tecnologia de guerra para
aumentar a letalidade dos soldados. O argumento é de que em guerras anteriores, os
homens hesitavam em atirar e matar outros humanos, mesmo que de outros países. Um
implante neural implica uma distinção radical do corpo do outro, tornando-o não apenas
inumano, como se pertencesse à esfera do animal, mas propriamente monstruoso, como
uma espécie degenerada, uma aberração da evolução das espécies, incapaz de linguagem.
Mais que a aparência asquerosa, a incapacidade de linguagem articulada parece ser o
elemento principal da abjeção às roaches. A impossibilidade de fala subtende a
inexistência de uma organização social mínima, como encontrada em agrupamentos
animais. O silvo agudo, em uma frequência agressiva aos ouvidos humanos, expressa a
maior característica dos monstros: eles são vistos como signos puros da violência,
catástrofe, degeneração e doença.
A operação militar tinha um propósito igualmente especista. Os monstros seriam,
na visão do governo e do exército, humanos de um tipo outro. Não se trata de um
enquadramento nacionalista, apesar do sotaque demarcado das pessoas exterminadas
desvelar uma relação forte com imigrantes e refugiados. O que está em jogo é uma
limpeza biológica, um projeto eugenista de melhoramento da espécie, eliminando
63

humanos cujo código genético apresenta tendência a doenças diversas (doenças


humanas). A instancia hegemônica, representada pelo exército, por trás do qual
subentendemos um estado, repete os projetos eugenistas que a história humana presenciou
ao longo dos séculos com a eficácia de tecnologias análogas: um implante neural que
altera a percepção do real, a fabricação de um real mediado pelas imagens e a produção
discursiva do monstro. Ambas fazem parte da máquina de fazer monstros, corpos a serem
destruídos. Ao explicar o projeto a Stripe o cientista do exército afirma: “é mais fácil
apertar o gatilho quando se mira no bicho papão”.
A produção de monstruosidades e sua contraparte, a fabricação intensa de
humanidades, têm como base a elaboração de imagens, em uma operação processada
esteticamente, no sentido de criação de sensibilidades, e que opera diretamente na
imaginação, no imaginário e na memória da cultura. A interface mais visível dessa
tecnologia é encontrada na vida dos monstros em si, e nos modos como humanidade e
empatia são distribuídos de forma díspar, obedecendo a variações de grau e de natureza.
É curioso o aparato da engenharia reversa em Black Mirror, um aparelho que funciona
como um vírus que corrompe os implantes do exército. O cientista militar mostra-se
surpreso com a engenhosidade das roaches. Não à toa, ciência e tecnologia são critérios
e estratégias do poder hegemônico para definir o grau de cultura e, portanto, de
humanidade, dos colonizados. A ausência de linguagem, por consequência, de fala e
escrita, demarca uma metáfora sofisticada de processos históricos colonizadores e de
extermínio que o Ocidente conheceu.
A engenharia exibida no episódio parece uma metáfora da extensão bélica da
biopolítica, a necropolítica como a entende Achille Mbembe (2016), que justapõe o
exercício da soberania política com o desenvolvimento de tecnologias e aparatos bélicos
cada vez mais eficazes. A maior capacidade de extermínio de vidas humanas, para
Mbembe, situa as guerras no mundo globalizado como modos de forçar o inimigo à
submissão, “independentemente de consequências imediatas, efeitos secundários e
“danos colaterais” das ações militares” (MBEMBE, 2016, p. 139):
A percepção da existência do outro como um atentado contra minha vida, como
uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria o
potencial para minhas vida e segurança, eu sugiro, é um dos muitos imaginários
de soberania, característico tanto da primeira quanto da última modernidade
(MBEMBE, 2016, p. 129).

O monstro é peça chave na tecnologia militar de extermínio: por um lado são


fabricadas armas e munição cada vez mais potentes. Por outro, os alvos são
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continuamente produzidos no imaginário como vidas irreais, extermináveis e não


enlutáveis. Toda tecnologia, contudo, é criada trazendo em si o germe de sua
obsolescência. Toda máquina é falível. Isso quer dizer que a engenharia de fabricação e
captura de monstros, simultânea à fabricação de humanos, é parte de um projeto contínuo
de constantes inovações, das quais o implante neural, prostético e ciborgue, desponta
como uma versão futurista do complexo labirinto-novelo-mito que encapsulou o
minotauro. Isso quer dizer também que as falhas da máquina podem corroer sua eficácia
e desmontar sua tecnologia.
No episódio da série, o final pessimista indica que o projeto de extermínio
continua. Contudo, uma camada mais elementar de corrupção da tecnologia da
monstruosidade é convocada. O movimento mais sofisticado da tecnologia consiste
justamente em se apresentar como natureza (PRECIADO, 2014). Ao argumento de
Preciado, é adicionado o elemento mitológico no que tangencia a fabricação de monstros.
Não se trata apenas de uma tecnologia produtiva que incessantemente fabrica monstros
como uma linha de montagem, como aparatos que definem o humano a partir da negação.
O que observo é um processo reiterado de essencializar a monstruosidade em relação ao
sujeito monstruoso, processo que invoca o anacronismo próprio ao monstro, que absorve
sua matriz mítica, e o codifica como existência irreal.
65

3 O CORPO DO MONSTRO: VARIAÇÕES ENTRE O FRACASSO E A


IMAGINAÇÃO

Preferia não fazê-lo (Bartleby, o escrivão, Herman Melville)

Que nos ocupássemos de outros business, nós, as emancipadas do


capitalismo, da família e da previdência social (O Parque das
Irmãs Magníficas, Camila Sosa Villada).

Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo. Às


margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se como
que grandes praias que esse mal deixou de assombrar, mas que
também deixou estéreis e inabitáveis durante longo tempo.
Durante séculos, essas extensões pertencerão ao desumano. Do
século XIV ao XVII, vão esperar e solicitar, por meio de entranhas
encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar do
medo, mágicas renovadas de purificação e exclusão (História da
Loucura, Michel Foucault).

3.1 AS INQUIETAÇÕES DE ÚRSULA BUENDÍA

Em Cem Anos de Solidão, o famoso romance de Gabriel García Márquez, Úrsula,


a matriarca dos Buendía, enfrenta um dilema no começo de seu casamento com José
Arcádio. Trata-se do medo de gerar filhos monstruosos. Úrsula e José Arcádio casaram-
se jovens, antes de empreender a viagem ao lugar em que fundaram Macondo e que deu
sequência aos fatos conhecidos do romance. Os jovens descendiam de duas famílias
europeias, antigas e influentes no povoado colombiano onde viviam: os antepassados dos
dois, alguns séculos antes, estabeleceram uma amizade produtiva e duradoura, que gerou
fortuna e desenvolveu a localidade em que moravam. A parceria, ao longo dos anos,
engendrou também laços familiares, de modo que Úrsula e José Arcádio eram primos.
A genealogia dos personagens não é detalhadamente explicada nas páginas
iniciais do romance. Como sabemos, a narrativa acompanha a descendência do casal e se
ocupa de outros fenômenos. A união dos dois é mostrada como um ato originário, um
evento em que a fundação da família, da cidade e do romance coincidem. Como em uma
narrativa mítica, eros e polis estão intrinsecamente relacionados. Esse ato originário —
66

um casamento heterossexual entre expoentes de linhagens ancestrais — é maculado por


um tipo de corrupção. Acompanhamos a descendência do casal ao longo de sete gerações,
em que os nomes dos personagens repetem-se e confundem-se em destinos cíclicos e
trágicos até a extinção, em que o último dos Buendía, ainda recém-nascido, é devorado
por formigas. O emaranhado de gerações é, por vezes, explicado pelo desenho da árvore
genealógica, impresso no livro como um guia para o leitor.
Os fenômenos que antecedem esse ato originário, no entanto, ocupam poucas
páginas no romance e a ascendência do casal é explicada de modo breve e confuso. Conta-
se que a bisavó de Úrsula presenciou o assalto do pirata inglês Francis Drake a Riohacha,
no litoral colombiano, e ficou traumatizada por toda a vida. Por conta dos temores da
esposa, o bisavô de Úrsula, um comerciante aragonês, migrou com a família para “longe
do mar. Numa aldeia de índios pacificados situada nas encostas da serra” (MÁRQUEZ,
2019, p.26). Nessa mesma aldeia vivia um filho de imigrantes espanhóis, dedicado ao
cultivo de tabaco, antepassado de José Arcádio Buendía. As duas famílias travaram
relações comerciais e a sociedade evoluiu para laços de parentesco ao longo de muitos
anos, cuja contagem não é evidente ao leitor.
A linhagem de Úrsula e José Arcádio é pouco explicada em termos cronológicos.
Sabemos que a invasão de Francis Drake na costa colombiana se deu no final do século
XVI, e que o matrimônio do casal se dá três ou quatro gerações depois. Os termos
temporais são imprecisos. O narrador refere-se à Úrsula ora como bisneta, ora como
tataraneta do comerciante aragonês, o que dispõe os personagens em uma temporalidade
aberta, que remete, em todo o romance, ao tempo cíclico do mito entrelaçado à linearidade
historiográfica.
A genealogia sanguineamente entrelaçada do casal não é motivo de espanto no
romance. Casamentos entre familiares não são raros, sobretudo em comunidades
pequenas, com poucos habitantes e distante de outros povoados, como parece ser o caso
da aldeia em que cresceram Úrsula e José Arcádio. Contudo, o tabu do incesto, tema
basilar para a Antropologia e para a Psicanálise, impele à exogamia, em complexos
sistemas de proibições e restrições no tocante a casamentos dentro de uma determinada
sociedade. A equação que equilibra endogamia e exogamia leva em consideração dois
tipos de interdito que, por vezes, entram em desequilíbrio: a proibição do incesto e a
restrição da miscigenação racial. Diante disso, cabe indagar como a possibilidade de
incesto e as preocupações que o acompanham parecem macular o ato originário da família
Buendía, sob o risco de um nascimento monstruoso.
67

Tendo crescido juntos, o casamento dos jovens era dado como certo desde que
nasceram, apesar dos receios das famílias de que o parentesco dos primos pudesse gerar
crianças monstruosas. “Tinham o temor de que aqueles saudáveis expoentes das duas
raças secularmente entrecruzadas passassem pela vergonha de engendrar iguanas”
(MÁRQUEZ, 2019, p.27). Os temores não eram infundados, uma vez que havia um caso
recente que alimentava as preocupações. Uma tia de Úrsula casou com um tio de José
Arcádio e deu à luz uma criança com um “cauda cartilaginosa na forma de saca-rolha e
com uma escovinha de pelos na ponta” (MÁRQUEZ, 2019, p.27). O monstro com rabo
de porco morreu sangrando, aos 42 anos, após um amigo açougueiro — possivelmente
munido de boas intenções — cortar a cauda com um cutelo utilizado para retalhar costela
de boi. A cauda de porco, que muitos atribuíram ao parentesco dos pais, era escondida
por calças-balão. O jovem morreu sem jamais ter tido contato sexual com mulheres.
Não fica claro no romance qual a causa do nascimento de iguanas ou de crianças
com rabo de porco. A preocupação de Úrsula parece se concentrar em saber se o
parentesco dela e do marido era próximo o suficiente para ser uma transgressão
incestuosa. Sendo assim, um casal jovem e saudável gerar um filho com partes do corpo
de iguana suscita um conjunto de dúvidas quanto à causa e ao destino da prole. Os
nascimentos monstruosos alimentam um extenso debate sobre parentesco e ordem
cultural e ameaçam as linhas que definem os homens e os animais (DOUGLAS, 2012).
Desse modo, uma criança híbrida, com partes humanas e animais, nasce deslocada da
ordem das coisas e dos sistemas de classificação.
O nascimento de um monstro implica uma origem incerta e suscita dúvidas: um
bebê iguana deveria ser criado por pais humanos? Se sim, o que isso implicaria no estatuto
social dos pais? Ele deveria ser batizado? Deveria frequentar a escola? Mesmo um
hibridismo menos radical, como uma cauda de porco, implica uma impossibilidade de
codificar esse sujeito dentro dos signos comuns da humanidade. Essa ininteligibilidade
que define o monstro coloca dúvidas também sobre o lugar social que ele pode ocupar.
Não raro, os nascidos monstros, os corpos que deformam os critérios de inteligibilidade
do humano, ocupam espaços flutuantes, marginais, ou são exibidos como anomalias ou
bizarrices da cultura visual. O parente dos Buendía nascido com uma cauda de porco não
é nomeado. Sabemos que morreu celibatário, sem deixar descendência, na margem das
relações sociais cotidianas.
O tema da descendência, central no romance, é perturbado pela aparição do
monstro. O parente com rabo de porco interrompe uma cadeia reprodutiva. O nascimento
68

dele impede de pensar o futuro em termos de transmissão linear e heterossexual. O


monstro denota uma ideia de interrupção. Não exatamente de morte ou de finitude, mas
um obstáculo à reprodução e à continuidade de termos e relações que servem de base à
vida comum e à política. A inteligibilidade e a codificação como humano são postas em
suspeição. O futuro torna-se ameaçado e, com ele, toda uma ideia teleológica que associa
tempo, história e progresso, nos termos discutidos por Walter Benjamin (2012). Desse
modo, o nascimento monstruoso implica uma impossibilidade de pensar família e futuro
nos termos de transmissibilidade e nos termos de uma repetição de um modelo
edipianizado de parentesco, pensado a partir da proibição do incesto.
De ponto de vista antropocêntrico, a entrada do monstro coloca em risco o futuro
e impede a imaginação política de pensar além dessa obstrução da continuidade e da
permanência das instituições. A transmissibilidade aparece como preocupação em
narrativas conhecidas sobre o monstruoso: em Frankenstein (SHELLEY, 2015), a
possibilidade de criação de uma vida nova fora da relação heterossexual do matrimônio
gera as tragédias de que trata o romance. Além disso, fabricar uma companheira para o
monstro implica a geração de uma prole monstruosa sem precedentes conhecidos; em
Drácula (STOKER, 2002), o sangue do vampiro, simultaneamente monstro e estrangeiro,
coloca a hereditariedade dos personagens ingleses sob o risco de degeneração
(HALBERSTAN, 1995). Por outro lado, o nascimento monstruoso nos habilita a pensar
a transmissibilidade a partir de um interstício, de uma desaceleração, ou mesmo de uma
ruptura radical de padrões normativos de parentalidade e de socialização.
Lee Edelman (2004; 2021) explora a relação entre queeridade e a pulsão de morte
a partir de uma crítica ao que ele nomeia “futurismo reprodutivo”, um enquadramento da
vida social organizado a partir da ideia de um futuro a ser realizado. O argumento de
Edelman foca na ideia da criança como o avatar desse futuro, que se projeta em um
horizonte político como garantia de continuidade, de sobrevivência e de
transmissibilidade do corpo social. A organização da política, para o autor, “permanece,
no seu âmago, conservadora, uma vez que opera para afirmar uma estrutura, para
autenticar uma ordem social que será então transmitida ao futuro na forma de sua Criança
interior” (EDELMAN, 2021, p. 250).
Manter a ordem social segura para uma criança presumida implica,
colateralmente, pensar o político em termos do futurismo reprodutivo, como pensa o
autor, e também em termos da manutenção da família normativa como única estrutura e
matriz de sociabilidade. A defesa de Edelman elabora uma negatividade. Ela implica
69

pensar as relações fora dos termos de uma imaginação política que concebe o futuro
unicamente em termos de preservação e reprodução, e que confirma o valor absoluto do
futurismo reprodutivo. Trata-se de pensar um espaço “exterior a esse conflito de
perspectivas que compartilham o pressuposto de que o corpo político deve sobreviver”
(EDELMAN, 2021, p. 250).
O autor encontra esse valor de negatividade em uma ética queer, como uma
possibilidade de pensar a vida social fora das fantasias heteronormativas de
transmissibilidade e legado. A criança que herdará o mundo que vivemos, e de quem
nossas decisões políticas são devedoras, confere um valor transcendente ao desejo
heterossexual. A heterossexualidade passa a ser associada à preservação do futuro, uma
função externa e pretensamente mais nobre que o desejo sexual em si. Essa associação é
elaborada como uma oposição ao desejo homossexual, que não é centrado na geração de
filhos. Isso torna qualquer resistência inoperante fora de uma fantasia futurista. O queer,
a dissidência, pode ocupar o seu “estatuto figural como uma resistência à viabilidade do
social e insistindo na inextricabilidade dessa resistência de qualquer estrutura social”
(EDELMAN, 2021, p.251).
Edelman conceitua queer como um modo de designar as pessoas estigmatizadas
por não reproduzirem adequadamente padrões heteronormativos, algo ligado ao atípico,
ao estranho, que perturba de algum modo a normalização. Trata-se de um conceito
escorregadio, com uma genealogia peculiar (BUTLER, 2019a) e cujo valor de
interpelação não tem o mesmo peso na língua portuguesa. Contudo, é importante destacar
o caráter não identitário e não fixo do termo, conforme o utiliza Edelman, uma vez que
“a queeridade não pode definir identidades, ela pode tão-somente perturbá-las
(EDELMAN, 2021, p.262). Não é meu objetivo me debruçar sobre o termo ou recompor
sua história e usos. Meu interesse é pensá-lo a partir de zonas de vizinhança com o
conceito de monstro, e com outros termos que propõem formas de subverter, interromper,
ou mesmo reimaginar a norma. No contexto dessa discussão, monstro se avizinha a queer,
entendido como um termo que nunca foi “plenamente possuído” (BUTLER, 2019a).
O monstro, nas preocupações de Úrsula, ocupa um espaço de possibilidade e
latência capaz de interromper a continuidade da vida social (o que, de fato, ocorre). O
destino trágico do primo com rabo de porco oferece uma imagem de recusa à ideia
disciplinar da criança de que fala Edelman. Essa recusa é central para o argumento deste
capítulo. Por meio dessa recusa, a presença do monstro pode abrir espaço para formas
outras de continuidade da vida. Formas que não são condicionadas pela transmissão e
70

repetição de papéis sociais normativos, e que demandam um corpo inteligível para sua
realização. Não raro, esses papéis sociais normativos implicam uma distribuição
disciplinar do gênero e da força de trabalho. Como dito, o monstro é um corpo
ininteligível, a quem falta ou sobra algo, e que é incapaz de ser classificado em
taxonomias prévias. O monstro interrompe e impossibilita o processo de codificação
como um corpo inteligível, seja como recusa, fracasso, metamorfose ou, nos termos de
Halberstam (2020), ausência de sentido e direção.
Se o futuro — esse futuro idealizado que só existe na medida em que o corpo
social é protegido — projeta-se como uma imagem coercitiva, o monstro é capaz de
interromper a reprodutibilidade da norma, sobretudo de um ponto de vista da
heteronormatividade. Foucault (2010) explica que o contorno do que entendemos como
monstro humano torna-se mais preciso conforme as funções da família, da parentalidade
e das técnicas disciplinares são remanejadas socialmente. O monstro caracteriza-se, não
raro, por uma sexualidade desviante, anômala, fora dos parâmetros da genitalidade: o
primo de Úrsula morre celibatário, ao passo que é a possibilidade de um incesto (uma
relação sexual que transgride as leis da cultura) que pode gerar iguanas (uma prole que
transgride as leis da natureza).
Nesse sentido, o monstro oferece uma separação entre a ordem social e os valores
que a consolidam no imaginário coletivo. Esse gesto é capaz de deslocar as fantasias em
que os termos da vida política são pensados, notadamente a ideia de que a política tem
como ponto de referência um sujeito bem definido e completo. Não à toa, o nascimento
monstruoso é lido como signo de uma desgraça iminente (ECO, 2007), pois não apenas
cinde os padrões de referência desse sujeito de contornos definidos, como impede a
reprodução desse modelo de sujeito. Para Edelman (2021), o queer, como uma categoria
de não identificação, “aniquila o gozo fetichista que trabalha para consolidar a identidade
ao permitir que a realidade coagule em torno de sua reprodução ritual” (EDELMAN,
2021, p. 272), e, assim, corta o fio que garante a futuridade.

3.2 OS NASCIMENTOS MONSTRUOSOS

O passado também torna-se objeto de preocupação diante do nascimento


monstruoso. As causas que podem levar um casal jovem e saudável a gerar iguanas ou
outra anormalidade são postas em dúvida. No caso específico dos Buendía, um filho
monstruoso poderia ser um tipo de punição ou aviso de Deus pela relação sexual indevida,
71

ou ainda, a mistura de sangue de parentes tão próximos poderia gerar algum desvio
biológico. A mistura desequilibrada de fluidos corporais, como sêmen e sangue
menstrual, alimentou diversos debates sobre a geração de filhos monstruosos, sobretudo
no final da Idade Média e no Renascimento. Não à toa o sangue torna-se um signo
importante em narrativas sobre monstro.
A historiadora Claude Kappler (1993) analisa a proliferação de imagens e
discursos sobre o monstro no final da Idade Média e elabora um quadro geral de
classificação dos nascimentos e das aparições monstruosas. Para ela, o tema dos
nascimentos monstruosos é objeto de interesse constante e perpassa diversas épocas. O
recorte temporal que a autora explora coincide com diversas obras publicadas entre os
séculos XV e XVI. Trata-se das enciclopédias densamente ilustradas de filosofia natural
ou botânica de autores como Ulisses Aldrovandi, Pierre Boaistuau, Hartmann Schedel e
Ambroise Paré (figura 04), para citar alguns. Essas publicações, junto aos tratados e
crônicas sobre a América recém colonizada pelos europeus, compunham um quadro
complexo de raças monstruosas e de desvios da natureza. Esses tratados naturalistas
partiam de um pressuposto cultural duplo, que entendia o monstro simultaneamente como
um desvio e como um enigma da natureza.
72

Figura 04. Gravuras de nascimentos monstruosos em publicações de filosofia natural do século XVI e XVII.
As ilustrações são de Ulisses Aldrovandi.
Fonte: Domínio Público.

Essa episteme, como indica Kappler, explicava os signos a partir de um quadro


cosmológico de referências. A autora argumenta que o imaginário medieval é marcado
por uma cosmovisão totalizante, em que o uno e o múltiplo, o terreno e o metafísico, se
espelham mutuamente. O mundo é organizado mediante uma geometria simbólica,
marcada por um mimetismo (BENJAMIN, 2012; FOUCAULT, 2016) e por uma noção
de ordem divina das coisas, “segundo uma escala de valores que atribui um lugar a cada
elemento, tanto espiritual quanto material” (KAPPLER, 1993, p. 14). Desse modo, o
monstro representa um desafio à compreensão: em um universo em que tudo encontrou o
seu lugar, como explicar o nascimento de gêmeos siameses, crianças intersexuais, ou com
cauda de porco, ou mesmo iguanas?
O nascimento do monstro põe a ordem em dúvida, em um sistema em que natureza
e Deus confundem-se. A presença do criador nessa equação traz um elemento ambíguo
73

ao pensamento. Em parte, se há monstros é porque assim o quis Deus (é esse o argumento


de Santo Agostinho16). Por outro lado, trata-se de um desvio da natureza e que precisa ser
entendido a partir de uma ordem totalizante. O monstro, no entanto, apresenta uma
subversão dessa ordem. “Ele desconcerta e, quanto mais organizado e hierarquicamente
justificado é o universo, tanto mais gritante é o problema por ele apresentado”
(KAPPLER, 1993, p.15). O conceito de monstro que Kappler põe em movimento não diz
respeito tanto à uma futuridade interrompida, mas a um desvio no desenvolvimento do
corpo. Se, no pensamento medieval, o monstro faz parte de uma cosmologia em que tudo
tem seu lugar, gradativamente ele passa a ser, também, um problema da história da
ciência, como uma entidade ou espécie que demanda um lugar dentro da estrutura do
saber naturalista (BOLOGNA, 1997).
Para o pensamento naturalista do final da Idade Média, o monstro é algo que foge
à generalidade dos casos e desvia da forma humana, pensamento que deriva do modo que
Aristóteles conceitua monstro e que foi absorvido pela filosofia agostiniana. A tipologia
inventariada por Kappler reverbera na proliferação de casos particulares e no surgimento
de uma tipologia vasta. A classificação de monstros nos tratados medievais faz surgir
distintos tipos de anomalias ao passo que a ideia de norma torna-se cada vez mais estreita.
O monstro torna-se uma figura hermenêutica “para designar uma imensa categoria de
seres em relação a outra categoria” (KAPPLER, 1993, p.330). Ao propor uma
historicidade das concepções de monstruoso, Georges Canguilhem (2012) aponta para a
variação e heterogeneidade dos bestiários medievais, como os estudados por Kappler:
A teratologia da Idade Média e do Renascimento é apenas um recenseamento
das monstruosidades e mais uma celebração do monstruoso. Ela é um acúmulo
de temas de lendas e de esquemas de figuras nos quais as formas animais
concorrem, por assim dizer, para trocar órgãos e variar suas combinações, nos
quais as ferramentas e as próprias máquinas são tratadas como órgãos compostos
com partes de viventes (CANGUILHEM, 2012, p. 193).

As raças monstruosas, no entanto, são viáveis, como bem lembra Gil (2006). Elas
subsistem e persistem como formas de vida, e é essa particularidade que impõe uma
resistência à interpretação dos nascimentos monstruosos. À revelia de ser cooptado ou
não como figura alegórica, o monstro expressa uma possibilidade de vida materializada
em um corpo, em um espaço e em um tempo. O pensamento medieval, como exposto na
tipologia de Kappler, não entra em acordo se o monstro desvia da natureza em gênero ou

16
O argumento de Agostinho é o de que se as raças monstruosas existem é porque assim o quis Deus. No
pensamento do filósofo, os monstros dos confins do mundo conhecido são parte da ordem geral da criação
de Deus (AGOSTINHO, 2012; GIL, 2006; DEL PRIORI, 2000).
74

em número. Essa preocupação ganha contornos científicos na obra do cirurgião francês


Ambroise Paré, publicada ainda no século XVI, Des monstres et prodiges17.
A obra de Paré faz parte de um conjunto de tratados científicos que tentava
entender a recorrência dos nascimentos monstruosos e suas causas. No livro, o médico
conceitua monstro como seres que aparecem “fora do curso da natureza”, e que
constituem signo de alguma desgraça. Junto ao monstro, Paré analisa o aparecimento dos
prodígios, que ocorrem “totalmente contra” a natureza. Os dois conceitos não são
excludentes, e sua diferença não é de todo explorada no livro. A obra analisa casos
particulares, em que o monstro ganha especificidades biográficas e de nascimento. Paré
inventaria casos, exemplificando com prontuários e documentos, como um tipo de
registro médico e historiográfico de nascimentos monstruosos na Europa.
De acordo com Paré, os nascimentos monstruosos ocorrem por causas diversas: a
vontade de Deus, quantidade excessiva ou deficitária de sêmen, ou ainda mistura ou
corrupção do sêmen. Além de alguma doença hereditária, estreiteza do útero, violência
sofrida pela gestante e a imaginação. Das causas elencadas, o incesto não é nomeado
diretamente, mas observamos uma recorrência em prescrições sexuais, sobretudo pela
insistência na pureza e integridade do sêmen. Todas essas causas são subordinadas à
vontade arbitrária de Deus para punir.
Cabe ressaltar o lugar da imaginação nessa lista, principalmente por ser a
imaginação da mãe que é capaz de gerar uma prole monstruosa. Ao invés de dar
continuidade à forma e à linhagem paternas, o feto sofre os efeitos da imaginação
materna, acionando os perigos da imaginação feminina. Para Marie-Hélène Huet (1993),
ainda que a imaginação não fosse elencada como a única causa dos nascimentos
monstruosos, o fato foi alvo de diversos debates médicos. Mesmo após o surgimento de
evidências científicas que explicavam os nascimentos monstruosos, que transformou o
monstro prodigioso em uma anomalia biológica, a ideia de que a imaginação materna
pudesse interferir no feto persistiu no senso comum e na literatura (HUET, 1993). O tema
coloca a possibilidade da mãe interferir na forma da matéria, uma vez que é o princípio
ativo paterno que deve ser capaz de imprimir sua continuidade.
Não à toa, a relação entre o feminino e o monstruoso é de grande proximidade, e
o par imaginação-desejo feminino é sempre apresentado como um risco para a
descendência. Huet analisa documentos do mesmo período da pesquisa de Kappler, e

17
A primeira edição do livro foi publicada em 1573. Como consulta, utilizo a edição em inglês (PARÉ,
1982).
75

aponta para a discussão de que a contemplação de imagens poderia gerar anomalias na


gravidez. A relação entre o feminino e o imaginário não é apenas médica, nesse contexto,
mas faz parte de uma norma prescritiva. O perigo das imagens revela uma cultura
iconoclasta que perpassa a história ocidental (DURAND, 2010; MONDZAIN, 2013), e o
monstro parece ser parte das resistências do imaginário e da imaginação, como algo que
escapa às tentativas de controle do imaginário social.
Nessa conjuntura, o monstro não era apenas o prenúncio de uma tragédia, mas o
atestado de que algo em sua concepção foi pervertido ou tornado irregular. As
transgressões dos pais, em especial da mãe, eram postas à prova: “Muitos segredos
perturbadores são tornados públicos pelas mulheres no dia em que dão à luz, quando o
monstro revela o que permaneceu oculto desde a concepção” (HUET, 1993, p. 19). Esse
contexto aproxima-se dos eventos de Cem Anos de Solidão, em que o ato originário é
marcado pela transgressão dos interditos ligados ao sexo e à morte, além de ocupar os
pensamentos de Úrsula continuamente por todo o romance. Seguindo a trilha de Huet,
que relaciona a concepção monstruosa com a imaginação criadora do romantismo, eu
arriscaria dizer que a imaginação atribulada de Úrsula espelha os eventos mágicos em
todo o romance. De todo modo, as inquietações da matriarca estavam respaldadas, não
apenas pelos antepassados, mas também por alguns séculos de filosofia natural.
O precedente familiar assustava Úrsula, mas não pareceu amedrontar José
Arcádio: “Não me importa ter leitõezinhos, desde que consigam falar” (MÁRQUEZ,
2019. p.27). A fala do patriarca, aos 19 anos, pode revelar descrença, como se os riscos
da endogamia fossem parte de superstições antigas menos urgentes que a vontade de
consumar o relacionamento com a esposa. A possibilidade de parir iguanas, levou Úrsula
a impedir a consumação sexual do casamento. A jovem dormia com uma calça de lona
de veleiro, confeccionada por sua mãe, com uma grossa fivela no cinto. A vestimenta de
castidade protegeu Úrsula do ato sexual com o primo e marido, mas não os poupou do
falatório do povoado.
José Arcádio gastava os dias pastoreando seus galos de briga, tendo suportado por
meses as recusas da esposa. Os vizinhos espalharam o rumor de que o jovem era
impotente, e que por isso Úrsula continuava virgem. O romance conta que um dia José
Arcádio venceu Prudêncio Aguilar em uma briga de galos. Diante da derrota, Aguilar
reacende o rumor da impotência de José Arcádio: “Vamos ver agora se enfim esse galo
faz um favor à sua mulher” (MÁRQUEZ, 2019, p.27). Diante da ofensa, o patriarca dos
Buendía desafiou o vizinho para um duelo de honra. O desfecho foi rápido e Prudêncio
76

Aguilar morreu com a lança do rival atravessada na garganta. Nessa mesma noite, Úrsula
e José Arcádio tiveram a primeira relação sexual, assumindo o risco da decisão: “Pois se
você tiver que parir iguanas, criaremos iguanas” (MÁRQUEZ, 2019, p.27).
A relação conjugal dos Buendía, como endossa o narrador, era fortalecida pelo
remorso comum da consciência. Prudêncio fora morto, de certo modo, pelas
preocupações de Úrsula, por mais legítimas e bem fundamentadas que fossem. O morto,
no entanto, retorna para atormentar o casal. Silencioso, o fantasma de Prudêncio Aguilar
passou a visitá-los com frequência, revirando potes de água para lavar a atadura presa à
garganta dilacerada. O espectro passa a assombrar o casal, como a corporificação do
remorso e do sentimento de culpa. Assombrados e, em certa medida, comovidos pela
melancolia do morto, Úrsula e José Arcádio partem do povoado, acompanhados de outras
famílias de jovens fascinados por aventura. Assim, o grupo empreende uma travessia de
dois anos e fundam uma aldeia nas margens de um rio. O nome Macondo, como sabemos,
foi dado por José Arcádio.
O primeiro filho dos Buendía nasce ainda durante a peregrinação. “Depois de
catorze meses, com o estômago estropiado pela carne de macaco e a sopa de cobras,
Úrsula deu à luz um filho com todas as partes humanas” (MÁRQUEZ, 2019, p.30). O
nascimento do primogênito, chamado José Arcádio, como o pai, pareceu tranquilizar a
matriarca. Não apenas o filho não era uma iguana, como também não lhe faltavam nem
sobravam partes do corpo. O fato pode ter despreocupado Úrsula, que teve mais dois
filhos, Aureliano e Amaranta. Os dois filhos homens darão sequência à linhagem da
família, e a prole se multiplica ao longo dos anos, conforme Macondo cresce. Casos e
sugestões de incesto retomam a narrativa em alguns momentos e a família continua a
crescer. O ato originário que funda a cidade, no entanto, permanece maculado.
O primo com cauda de porco é esquecido na história, como uma figura sem nome
próprio e sem voz. Se o romance emudece o monstro, não desfaz por completo a
possibilidade de seu retorno. O monstro é sempre um risco latente que atormenta e
assombra a estabilidade das instituições sociais. O tema da consciência assombrada
conecta Cem Anos de Solidão a uma tradição literária em que o monstro ensaia
continuamente um retorno para assombrar a mente atormentada do humano. O tema é
recorrente no romance gótico e ocupa toda a trama de Frankenstein. Nesse sentido, o
monstro empreende um movimento semelhante ao estranho freudiano (FREUD, 1996) e
ao conceito de abjeção (KRISTEVA, 1982; BUTLER 2019a). Cabe entender a figura que
77

assombra — o monstro ou o fantasma — como o retorno de elementos subversivos que


foram reprimidos ou excluídos do campo social (MISKOLCI, 2016; GORDON, 2008).
Mesmo não nomeado, o monstro que macula o passado familiar retorna como
latência e não deixa de preocupar Úrsula durante sua vida. Anos depois do
estabelecimento de Macondo, durante a adolescência do primogênito, Úrsula reviveu seus
temores de juventude ao interceptar a nudez do filho e se assustar com o tamanho de seu
órgão sexual. “Pensava que sua desproporção era algo tão desnatural como a cauda de
porco do primo” (MÁRQUEZ, 2019, p.32). O tema da consciência assombrada organiza
um conjunto de signos no romance em que o ato originário do casamento dos Buendía,
maculado pela possibilidade do incesto e pelo homicídio de Prudêncio, aproxima sexo
conjugal e morte de uma forma inseparável. O futuro reprodutivo transcorre
acompanhado pela sombra insistente da transgressão. A violação dos interditos ligados
ao sexo e à morte torna-se, portanto, parte estrutural da construção da cidade: eros, polis
e teratos estão entrecruzados em todo o romance.
Cabe ressaltar que, mesmo que inscrito no realismo mágico, em que há uma
presença constante de elementos da ordem do insólito, Cem Anos de Solidão não pode
ser considerado uma história de monstro, como o são os romances conhecidos do horror
gótico. História de monstro não constitui um gênero, sequer uma cena artística. Utilizo a
expressão para designar narrativas em que o monstro é um elemento central, antagonista,
ou mesmo parte dos elementos narrativos comuns, como o conto de Borges, analisado no
capítulo anterior. Esse, como sabemos, não é o caso do romance de Márquez, e os eventos
discutidos ocupam um espaço discreto, mesmo que importante, dentro da história.
Contudo, o argumento que quero desenvolver questiona o lugar político do monstro
dentro dessas narrativas.
O monstro em Cem Anos de Solidão ocupa um espaço maior de latência do que
de concretude. Os eventos insólitos permeiam a vida dos personagens sem surpreendê-
los, como uma chuva que durou quatro anos, ou o destino de Remédios, a Bela, bisneta
de Úrsula, que um dia ascendeu ao céu enquanto dobrava lençóis no jardim de casa,
deixando a família para sempre. Por que um nascimento monstruoso causaria tamanha
aflição? Por que o monstro ocupa um espaço tão decisivo na formação e no fim da família
Buendía? O conceito de monstruoso que opera no romance se encaixa em uma
causalidade com a noção de ruína e de impossibilidade de futuro.
O destino do monstro e o destino da família tornam a se relacionar no final do
romance, na sétima e última geração dos Buendía, anos depois da morte de Úrsula. Os
78

capítulos finais dão conta do romance de Amaranta Úrsula, tetraneta da matriarca, com
Aureliano Babilônia, filho de uma das irmãs de Amaranta Úrsula. Ou seja, entre tia e
sobrinho. O nascimento de Aureliano Babilônia foi motivo de escândalo dentro da
família, e o menino foi criado como bastardo, sem conhecimento do seu real espaço na
família. Amaranta Úrsula desde muito jovem foi estudar fora da cidade, e retorna a
Macondo já adulta e casada. As duas figuras, a mulher cosmopolita, moderna e alheia às
tradições familiares e o jovem proscrito, meio selvagem, que dedicava os dias a traduzir
pergaminhos antigos, se apaixonam.
A essa altura, no romance, Macondo é uma cidade em evidente decadência. O
passado glorioso, em que descendentes da família Buendía ocuparam espaços de destaque
e de fortuna, foi gradativamente esquecido. Aos poucos, as pessoas abandonavam a
cidade fantasma. A casa da família também estava em ruína. Formigas devastavam o
jardim, “saciando sua fome pré-histórica nas madeiras da casa” (MÁRQUEZ, 2019, p.
433), e estendendo seu domínio para dentro da residência. A descrição da ruína coloca
em paralelo cidade e família, como se a temporalidade das duas estivesse relacionada
desde a fundação. A natureza assume um lugar de oposição em relação à cidade nesta
fase do romance, e começa a ocupar e deteriorar os espaços anteriormente arruinados
pelos hábitos da vida social.
Formigas, lagartos, ratazanas. Campinas selvagens, poeira, calor. As imagens de
uma natureza hostil, e que ganha terreno sobre a cultura, acentua o caráter de
desaparecimento da cidade. Ao mesmo tempo que o romance entre Amaranta Úrsula e
Aureliano Babilônia é descrito em termos aproximados dessa mesma natureza. O
romance descreve os atos sexuais dos dois como uma visível animalidade: “se espojavam
nus em pelo nos lameiros do pátio” (MÁRQUEZ, 2019, p. 433); e como parte da
destruição da casa: “Em pouco tempo fizeram mais estragos que as formigas-ruivas”
(MÁRQUEZ, 2019, p. 433-434). A relação entre animalidade, relação sexual e destruição
é posta em paralelo: “Uma noite se lambuzaram da cabeça aos pés com pêssego em calda,
se lamberam feito cães e se amaram como loucos no chão da varanda, e foram despertados
por uma torrente de formigas carnívoras que se dispunham a devorá-los vivos”
(MÁRQUEZ, 2019, p. 434).
A dúvida sobre as relações familiares dos dois é levantada pelo casal, preocupados
com a possibilidade de serem irmãos. O passado na cidade era uma ruína esquecida, de
modo que Aureliano Babilônia não encontrou registros de seu nascimento ou evidências
de que, de fato, pertencia à família em cuja casa cresceu. Os dois, então, aceitaram a
79

hipótese de que o jovem fora abandonado em um cestinho, adotado pela família como um
parente agregado. Salvo dos temores do incesto, o casal gera uma criança, batizada de
Aureliano, em homenagem ao antepassado coronel, herói de guerra. O nascimento gera
espanto:
Depois de cortar-lhe o umbigo, a parteira se pôs a limpar com um pedaço de
pano o unguento azul que cobria seu corpo, iluminada por Aureliano com uma
lâmpada. Só quando o viraram de barriga para baixo perceberam que tinha algo
mais do que o resto dos homens, e se inclinaram para examiná-lo. Era um rabo
de porco (MÁRQUEZ, 2019, p.441).

Amaranta Úrsula e Aureliano Babilônia não se preocuparam, alheios ao


precedente familiar que tanto atormentara Úrsula, e alheios também ao grau de parentesco
entre os dois. O rabo, tranquiliza a parteira, poderia ser cortado quando a criança tivesse
os dentes. A mãe, no entanto, morre pouco tempo depois do parto, após perder bastante
sangue, deixando Aureliano Babilônia sozinho com o filho. O luto deixa o rapaz em um
estado de estupor na cidade vazia, até o dia em que perde o filho. Ao procurá-lo, vê o
último Aureliano, o bebê de rabo de porco, sendo devorado pelas formigas que estendiam
seu domínio sobre a casa: “Era um pedaço de carne inchada e ressecada, que todas as
formigas do mundo iam arrastando trabalhosamente até suas tocas pelas veredas de pedras
do jardim” (MÁRQUEZ, 2019, p.444).
O desespero do pai o conduz de volta à tradução dos pergaminhos antigos, escritos
em sânscrito, em que não apenas sua origem estaria revelada, como também o destino da
família. A leitura do pergaminho anuncia uma temporalidade anacrônica, um tempo do
mito, em que o ato originário que funda a família — um incesto e um homicídio —
conecta-se com o fim da linhagem, também marcado pela relação incestuosa e pela morte,
intersectando as gerações em um tempo espiralado.
Só então descobriu que Amaranta Úrsula não era sua irmã e sim sua tia, e que
Francis Drake tinha assaltado Riohacha somente para que eles pudessem se
buscar pelos labirintos mais intrincados do sangue, até engendrarem o animal
mitológico que haveria de pôr fim à estirpe (MÁRQUEZ, 2019, p.446).

O fim da estirpe se dá duplamente com o fim da possibilidade de reproduzir a


família e pelo destino final da cidade, arrastada por um furacão que também estava
previsto nos pergaminhos. A morte do monstro não implica um retorno à ordem do
mundo, como na narrativa mitológica do Minotauro, analisada no capítulo anterior. O
último Aureliano cumpre aqui um papel de ruptura com a ordem coletiva, e não como
parte da consciência cindida do pai autoritário. O romance organiza ao redor do monstro
um conjunto de imagens desconectadas, de modo que surge uma linha temporal paralela,
80

cheia de rupturas, cujos pontos de intersecção se revelam com a aparição do monstro.


Imagens como a violência colonial de Francis Drake, a imigração, o ato fundador da
cidade, o incesto, as mortes, o sangue da família, as profecias, o rabo de porco.
O monstro aqui não tem ação direta sobre a narrativa, sequer fala, mas organiza
um conjunto de relações em que eros, polis e teratos elaboram uma teia temporal não
teleológica, não progressiva e que interrompe o futuro. Nesse sentido, o bebê com rabo
de porco está mais próximo da figura de Édipo, da tragédia de Sófocles, cujo incesto leva
ruína à cidade e é disparado pelo encontro com o monstro (a esfinge). Contudo, se na
tragédia, a harmonia na polis precisa prevalecer, o que faz Édipo abandonar Tebas. No
romance de Gabriel García Márquez, o monstro é o epicentro do nascimento e da finitude
e impede a possibilidade de pensar uma continuidade nos termos de uma transmissão
edipiana do parentesco e da manutenção da vida social humana como a conhecemos.

3.3 PROBLEMAS NO PARQUE HUMANO

Freaks (Tod Browning, 1932) apresenta o cotidiano de artistas de um circo


itinerante que se apresenta em alguma cidade da França. Os espetáculos circenses não são
mostrados, as imagens do picadeiro aparecem raramente, sem a presença da plateia ou
dos números artísticos. A obra concentra-se nos bastidores do circo. A maioria dos
eventos ocorre na área comum em que os trailers em que vivem os artistas estão
estacionados. A configuração do espaço faz lembrar uma pequena vila, com uma zona
coletiva em que os artistas convivem, em momentos de imprecisão entre vida privada e
pública, e entre o cotidiano e o trabalho artístico. A banalidade aparente do espaço é
tumultuada por seus habitantes: parte considerável dos artistas são monstros humanos.
O título do filme aponta para os seus protagonistas. Freak, em inglês, remete à
ideia de aberração, esquisitice, ou algo raro, inabitual. O termo é também utilizado de
modo pejorativo, como uma ofensa ou injúria direcionada à alguém. Em português, o
filme foi traduzido como Monstros. Trata-se de um grupo de pessoas com alguma
deformidade ou portadoras de deficiências físicas aparentes, algumas bastante raras.
Esses sujeitos estão ali para exibir suas singularidades como parte do espetáculo. A trupe
de monstros é heterogênea, composta por anões, gêmeas siamesas, jovens com
microcefalia, um homem cujo corpo se resume ao tronco, um outro a quem faltam as duas
pernas, uma mulher barbada, entre outros.
81

O espaço apresenta-se como um microcosmo, com regras de sociabilidade


próprias. Os sotaques e os nomes dos personagens remetem a diversas nacionalidades,
ainda que a dona do circo, Madame Tetrallini, seja francesa. O circo é itinerante, os
elementos que constituem identificação não estão condicionados a uma geografia física,
um país, ou um território bem demarcado. As identidades e os processos de
reconhecimento são estabelecidos em uma constante negociação entre os corpos, a
dramaturgia do circo e o espaço comunitário em que vivem. Nesse microcosmo, os
monstros compõem uma comunidade própria. Há uma divisão entre a comunidade e os
outros artistas, as pessoas lidas como normais. Essa divisão é objeto de conflito no espaço
do circo, e age como um marcador estrutural das diferenças entre os monstros e os outros.
O modo como o espaço é estruturado demarca uma economia política em que as
fronteiras estão sempre sendo negociadas, seja as fronteiras territoriais, ou as fronteiras
relacionadas ao corpo. Toda a trama se passa do lado de trás do picadeiro, em um espaço
invisível ao espectador, nos momentos em que a dramaturgia é abandonada e a vida
comum dos personagens ocorre. O conflito entre a imagem (espetáculo) e a vida
(cotidiano) não é facilmente resolvido, uma vez que é o próprio corpo dos monstros que
é dado a ver no circo como entretenimento.
A área comum em que os artistas vivem é circunscrita por cortinas e tendas, na
zona invisível ao público. O espaço externo é pouco mostrado. O entorno do circo é
apenas entrevisto, como em uma cena em que Madame Tetralline leva alguns dos
monstros para tomar sol em uma clareira. O passeio gera um conflito com o dono da
propriedade, que reage violentamente diante dos corpos dos monstros. Esse é um dos
raros momentos em que personagens externos surgem na trama. O público do circo, por
exemplo, não aparece no filme. A atenção é voltada para essa zona intermediária em que
vivem os artistas.
O filme se detém nesse espaço de fronteira, que não está devidamente
territorializado e que corresponde a um hiato geográfico. O espaço do circo itinerante
existe em um recorte de tempo, de modo efêmero e nômade. Ao mesmo tempo, circo
remete a cerco e círculo, e indica que os contornos externos dessa zona definem um
espaço que não adere totalmente à geografia em que está inserido. O filme conduz o
espectador para o “dentro” dessa região fronteiriça e móvel. Os sentidos de fora e de
dentro, de pertencimento e de alienação, são continuamente negociados pela comunidade
de monstros e pela diegese da obra.
82

Além disso, o filme opera uma cisão entre a monstruosidade física e uma
monstruosidade moral, denotada não apenas no conflito, mas em um deslocamento dos
regimes de representação tradicionais da monstruosidade. O monstro no filme de
Browning não se dá a ver como um espetáculo passivo ao olhar, ou como relíquia
arqueológica presa em frascos de formol. O filme opera uma inversão no olhar: os freaks
observam, produzem valores e relações de ética e sociabilidade. A construção do olhar
do monstro não apenas sugere uma inversão nos modos até então comuns de relacionar
monstro com espetáculo, como também opera a construção de um ponto de vista, de
pontos perspectivos que partem de corpos informes.
O conflito principal gira em torno do anão Hans (Harry Earles) que se apaixona
pela trapezista Cleópatra (Olga Baclanova), uma mulher bela, sem deformidades físicas
visíveis e que passa a corresponder as intenções de Hans (figura 05). Diante da sedução
da trapezista, Hans rompe o noivado com Frieda (Daisy Earles18), também anã. No início,
Cleópatra seduz Hans como uma forma de ridicularizá-lo diante do circo. Com a ajuda de
seu amante Hércules (Henry Victor), um brutamontes de grande força física, ela trama
um tipo de golpe para se apoderar da herança que Hans deve receber. Os dois, Hans e
Cleópatra, à revelia da opinião dos outros monstros, casam-se, ocasião em que a trapezista
começa a envenenar o marido, na tentativa de matá-lo e ficar com a herança. O grupo de
freaks percebe o plano e arma uma vingança contra Cleópatra e Hércules, assassinando o
segundo e deformando o corpo da trapezista.

Figura 05: Cleópatra com Hans (esq.) e com Frieda (dir.).


Fonte: Fotogramas de Freaks (Tod Browning, 1932).

A trama central é acompanhada pelo desenvolvimento dos conflitos dos outros


personagens, como uma crônica do cotidiano em que a vida e a presença dos monstros

18
Dayse e Harry são irmãos e fizeram parte, junto a outros dois irmãos, de um quarteto de anões que se
apresentava nos Estados Unidos, The Doll Family. Os personagens de Freaks, em sua maioria, eram artistas
conhecidos dos freaks shows.
83

reorganiza relações banais. Roscoe (Roscoe Ates) é casado com Dayse, cuja espinha
dorsal a conecta com a irmã gêmea siamesa Violet (Dayse e Violet Hilton). O casamento
é conflituoso, uma vez que Roscoe, que não faz parte dos freaks, não se dá bem com a
cunhada. Em uma cena, ele reclama do hábito da cunhada ficar acordada durante a noite
lendo, enquanto ele tenta dormir. A situação parece trivial, mas resguarda uma
inquietação sobre a vida sexual dos monstros, especialmente quando Violet, a cunhada,
arruma um namorado, e o casal passa a ser composto por quatro pessoas, e três corpos
(figura 06, à esquerda).
Em outra cena, o palhaço Phroso (Wallace Ford), também sem deformidades
visíveis, é convocado às pressas a um dos trailers: a Mulher Barbada (Olga Roderick)
acaba de dar à luz (figura 06, à direita). Ao redor da mãe, um grupo de monstros celebra
o nascimento, acompanhados de Phroso que afirma, animado, que a garota será barbada,
como a mãe. Enquanto isso, o pai, que sofre de uma má formação óssea que deforma seu
corpo, sendo conhecido como “homem esqueleto”, distribui charutos aos vizinhos.

Figura 06: À esquerda, Dayse e Violet com seus respectivos companheiros. À direita, os monstros visitam
a Mulher Barbada após ela dar à luz.
Fonte: Fotogramas de Freaks (Tod Browning, 1932).

Dentro da comunidade há outras relações amorosas ou conjugais, como o casal


formado pelo anão Angeleno (Angelo Rossito) e por Frances (Frances O’Connor) a quem
faltam os braços. Além disso, há uma zona intermediária de relações entre os personagens
monstruosos e os outros, sem deformidades físicas. Esses personagens, Roscoe, Phroso e
Vênus (Leila Hyams, amiga de Frieda e par romântico de Phroso) servem de contraponto
a Cleópatra e Hércules. A presença deles acentua a complexidade da socialização
desenvolvida no circo e aponta para a possibilidade de filiações heterogêneas. Os
monstros vivenciam relações amorosas ou de amizade com alguns personagens não
monstruosos, ao mesmo tempo que sofrem violência cotidiana, na forma de escárnio,
exclusões, recusa ao convívio, ressentimento e agressão física.
84

Cabe dizer que, do ponto de vista visual e do ponto de vista médico, os monstros
do filme não pertencem às mesmas categorias de classificação. Eles são agrupados sob a
noção de monstruosidade, mas não há uma homogeneidade visível. Mesmo a
nomenclatura recente de pessoa com deficiência não pode ser aplicada de modo geral,
uma vez que uma personagem como a mulher barbada não pode ser pensada nessa
categoria. Os personagens de Freaks correspondem aos sujeitos nascidos monstros, como
o personagem de Cem Anos de Solidão, ou os casos analisados por Paré. A condição
monstruosa, no entanto, não é induzida pelo nascimento, mas por um reconhecimento
recíproco da precariedade. É esse reconhecimento que possibilita a sociabilidade e os
valores compartilhados pelos personagens.
A ideia de filiação é um dispositivo central para o modo como esta comunidade
se forma, como uma aliança produzida a partir do reconhecimento da dessemelhança.
Essa filiação é produzida a partir de sujeitos que distorcem a noção de um corpo humano
saudável e completo e que se organizam ao redor de signos de amizade e de ética. O que
ocorre em Freaks é uma ruptura no modo como as deficiências físicas são codificadas
pelo estigma. O modo estigmatizado de perceber o corpo estabelece uma relação direta
entre deficiência física e monstruosidade, como um predicativo que hierarquiza o corpo
e faz coincidir sujeito, patologia e desvio. O estigma organiza os corpos segundo uma
falta e em comparação a uma noção de sujeito plenamente reconhecível.
Os monstros, no entanto, subvertem essa equação que considera o estigma parte
dos critérios de reconhecimento coletivo. A comunidade é organizada segundo regras
próprias, a partir de pontos de filiação em que a ideia de diferença é multiplicada, em
lugar de ser reduzida a um fator comum. A identificação e o estar junto não se dá por uma
semelhança especular ou mimética, ou pela identificação com um modelo corpóreo
comum, mas sim a partir de pontos de intersecção entre alteridades. Os elementos
normativos de uma identidade não fazem parte do esquema de reconhecimento. As
relações se dão por alianças e de modo descentrado. Os corpos não se repetem em origem
e destino: o “tronco humano” pode ter sido vítima de um acidente e não de uma má
formação de nascença, como o caso das irmãs siamesas, mostradas como jovens belas e
disputadas pelo desejo masculino. Ainda assim, eles fazem parte da mesma comunidade.
Os modos de operar o desejo e os usos pessoais do corpo, notadamente em termos
de sexualidade e de distribuição do poder, promovem práticas que carecem de um
vocabulário específico para defini-las. Do mesmo modo, o termo “monstro” aparece
como um estatuto linguístico que agrupa sujeitos diversos entre si e que são
85

continuamente interpelados pelo léxico da ciência e pelas ofensas ligadas ao estigma.


Cabe dizer que alguns personagens são difíceis de descrever fora do escopo de um
vocabulário médico que inexistia no contexto do filme. Alguns personagens não são
propriamente nomeados e são referidos pelos nomes que utilizam no espetáculo, como
Bird-girl ou Half-man. A relação entre nome próprio e corpo não é de adesão semiótica,
e não indica um estatuto de pessoalidade uniforme. Isso porque os monstros são
constantemente interpelados a partir de outros nomes e negociam essa nomeação, como
o próprio uso do termo monstro, que pode ser usado como ofensa, mas também um
marcador de filiação e ética.
O filme é aberto com um prólogo, em que é apresentada uma explicação possível
sobre os monstros. O longa começa em um museu de atrações, em que um apresentador
anuncia para a plateia a exibição de monstruosidades vivas. Os espectadores, homens e
mulheres sem nenhuma deformidade física aparente, são conduzidos para uma espécie de
cercadinho, ou uma jaula fechada, dentro da qual é exibida a atração do museu. Ao ver a
anomalia, o grupo se assusta, uma mulher grita, outros viram o rosto para o que,
aparentemente, é o corpo de um monstro humano. O espectador do filme não vê a criatura,
ela é revelada apenas no final. A narrativa será contada em seguida, em flashback, junto
à história dos outros monstros que protagonizam o filme.
Antes de seguir com a narrativa, o apresentador explica para a plateia que as
monstruosidades vivas tem um código de ética próprio, que a ofensa a um deles é
entendida como uma ofensa a todos. Sua origem é totalmente acidental, explica ele, e
qualquer um da plateia poderia ter sido um monstro por um “acidente de nascimento”. A
cena é curta, toma menos que dois minutos. A explicação de uma monstruosidade
contingente, surgida em um acidente de nascimento ou de concepção, expia a origem do
monstro de fundamentos religiosos, dos castigos de Deus ou tentações do diabo, da
imaginação feminina, do incesto ou da bestialidade, ainda que essas causas permaneçam
associadas ao monstro no imaginário popular.
O monstro apresenta-se como um acidente biológico que poderia acometer
qualquer um, o que torna o monstro uma possibilidade latente ao humano. Nos termos de
Canguilhem (2012), o monstro, quando interpretado a partir do ponto de vista do vivente,
é uma falha morfológica em determinada espécie. Nesse sentido, o monstro é um vivente
de valor negativo que revela a “precária estabilidade com a qual a vida nos habituara”
(CANGUILHEM, 2012, p. 188). O conceito de normal, caro ao pensamento do autor,
relaciona-se com essa ideia de estabilidade. A normalidade não se sustenta na
86

imutabilidade das formas, mas sim na regularidade quantitativa de suas ocorrências


(CANGUILHEM, 2009; 2012).
O caráter de contingência torna o monstro, e não a morte, um contravalor vital
(CANGUILHEM, 2012). A morte, para o autor, é a aniquilação total do vivente por
motivos externos, e nada altera a ordem sistêmica à qual pertence o sujeito. Por outro
lado, o monstro é uma ameaça que vem do interior do vivente, como uma possibilidade
acidental e incontrolada de inacabamento ou distorção da forma esperada. Essa
acidentalidade torna o monstro uma força de transformação dos critérios que definem a
norma, um risco capaz de acometer qualquer corpo. Isso justifica, em parte, a intensa
estigmatização dos monstros e o esforço da ciência em explicar origens e causas da
monstruosidade. Canguilhem retoma essa esteira não para decifrar a gênese do monstro,
mas como parte do argumento de que a regularidade biológica não está imune aos desvios,
e que “o monstro seria apenas outro que não o mesmo, uma ordem outra que não a ordem
mais provável” (CANGUILHEM, 2012, p. 187).
Freaks, no entanto, coloca perguntas que tangenciam e excedem as discussões de
Canguilhem sobre o normal e o patológico. O esforço do autor nos conduz a uma certa
naturalização do nascimento monstruoso, a partir de um entendimento de que as
anomalias ou as mutações não são em si mesmas patológicas, elas apenas “exprimem
outras normas de vida possíveis” (CANGUILHEM, 2009, p. 56). Se todas as formas de
vida são possíveis — o que não quer dizer o mesmo que viáveis —, o autor parece
concordar com Foucault quando este diz que o monstro é “o fulcro da especificação, mas
não é mais que uma subespécie na obstinação lenta da história” (FOUCAULT, 2016,
p.217). Em Canguilhem, patologia é um conceito relacional e circunstancial.
O que garante, então, que algumas variações morfológicas sejam viáveis e outras
não? Por que algumas formas de vida podem ser adequadas a critérios de reconhecimento
cultural e outras são lidas como monstros? Se é o futuro das formas que garante o seu
valor (CANGUILHEM, 2012), por quais meios as formas de vida monstruosas persistem
como vidas viáveis? Quais modos de organização política dos monstros torna essa
viabilidade e esse futuro possíveis, mesmo à revelia dos critérios de reconhecimento e de
normalidade? Meu objetivo aqui é menos responder essas perguntas do ponto de vista
teórico do que utilizá-las como chave de leitura para pensar o filme Freaks. O próprio
Canguilhem parece propor um caminho de resposta:
87

Se então é verdade que uma anomalia, variação individual sobre um tema


específico, só se torna patológica em sua relação com um meio de vida e um
gênero de vida, o problema do patológico no homem não pode permanecer
estritamente biológico, já que a atividade humana, o trabalho e a cultura têm
como efeito imediato alterar constantemente o meio de vida dos homens
(CANGUILHEM, 2012, p.178).

O autor refere-se às relações entre indivíduo e coletividade, notadamente a cultura,


como um modo de tornar viável a vida em suas diversas variações. O entendimento entre
vida e política no autor, entretanto, não resvala em um mero antropocentrismo, e inclui a
dinâmica da morte e da doença como etapa importante da criação de outras vidas
(SAFATLE, 2016). O surgimento do monstro nessa equação aponta para uma bifurcação
no curso da vida, ou parte da metamorfose inerente no desenvolvimento das espécies.
Diante da máxima do multiculturalismo, em que a natureza é estável e a cultura é
dinâmica, o corpo do monstro aponta para uma variação na própria formação dos corpos
dos sujeitos. A ideia de desorganização constante do organismo biológico é cara a
Canguilhem, bem como a ideia de errância, que, para Safatle, “não é movimento
submetido a uma finalidade teleológica, e é para afirmar tal característica que devemos
insistir na existência da contingência” (SAFATLE, 2016, p.304),
A discussão de Canguilhem endossa a relação entre norma e poder, em um sentido
de que a normatividade não é baseada em um modelo corporal de partida, mas sim em
um conjunto de expectativas às quais o corpo deve ou não atender. Dito de outro modo,
o conceito de normal “é prototípico e não arquetípico” (CANGUILHEM, 2012, p. 177).
Foucault (2010) vê a norma a partir de uma ideia de “poder normativo”, como uma técnica
positiva de produção de corpos e sujeitos, um princípio simultâneo de qualificação e
correção. Em eco a Canguilhem, Foucault afirma que a norma não pode ser entendida
como lei natural, “mas pelo papel de exigências e coerção que ela é capaz de exercer em
relação aos domínios que se aplica” (FOUCAULT, 2010, p.43).
Freaks remonta aos espetáculos de exibições de deformidades físicas que foram
comuns e lucrativos durante o século XIX, como analisado pelo historiador Jean-Jacques
Courtine (2011). Nessas feiras eram exibidos fenômenos vivos: anões, gigantes, mulheres
barbadas, gêmeos siameses, entre outras anomalias19. Para Courtine, a despeito do
fascínio e da perturbação que esses espetáculos causavam, o formato e a popularidade os

19
Esse tipo de atração é nomeada por Courtine (2011) como “entra e sai”, derivada do francês entre sorts.
O termo diz respeito à forma do espetáculo, em que o espectador entra em uma tenda, se depara com o
fenômeno e deixa o espaço. O historiador investigou a proliferação dos entre sorts, sideshows ou freak
shows, sobretudo no contexto francês, inglês e norte-americano.
88

tornavam parte da “banalidade rotineira dos divertimentos familiares” (COURTINE,


2011, p.255).
O século XIX vê surgir uma outra sensibilidade social no que toca os nascimentos
monstruosos. Em parte, é possível observar uma saturação do corpo disforme, nos
espetáculos, feiras, circos, museus. Essa saturação torna-se uma extensão do domínio da
norma, como uma cultura visual disciplinar, em que a anomalia é exibida para reforçar a
ideia de um corpo considerado normal/saudável. Por outro lado, a popularidade e o
alcance dessas exibições estabelecem certo fundo antropológico extensivo ao monstro,
uma concepção de humano que inclui o monstruoso. Essa inclusão ocorre mediante
dispositivos de exclusão e posiciona o monstro ao lado de outras alteridades distantes ou
perdidas do humano, sobretudo o estereótipo do selvagem, bem como outros corpos
racializados exibidos nos museus humanos.
A ideia de uma monstruosidade latente encontra interlocução com o surgimento
da teratologia científica, um ramo da medicina baseado na embriologia e na anatomia,
dedicado a pensar esses nascimentos anômalos. Courtine pontua a obra do naturalista
francês Étienne Geoffroy Saint-Hilaire como uma ruptura na definição do monstro. O
naturalista é peça importante na ciência teratológica do século XIX, junto ao filho, Isidore
Geoffroy Saint-Hilaire. A teratologia descobre o embrião oculto por trás da anomalia: “o
monstro não era mais que um homem inacabado, um ‘embrião permanente’, a natureza
‘parada no caminho’” (COURTINE, 2011, p. 289. Grifos meus).
Na tipologia medieval já é possível entrever a relação do monstro com a ideia de
inacabamento ou incompletude. É comum identificar o monstro como alguém a quem
falta algo de essencial ou que apresenta uma modificação no formato ou função dos
órgãos do corpo (KAPPLER, 1993). O pensamento científico moderno, no entanto, tenta
situar o monstro em uma ordem classificatória mais ampla, como um desvio em grau, não
em gênero, um desvio que impede que a formação como humano seja acabada ou
completa. A incompletude teratológica volta-se para o embrião como um modo de
explicar as formas de vida monstruosas que, por ventura, tornaram-se viáveis, como os
personagens de Freaks.
O surgimento de uma ciência teratológica reativa preocupações no que toca os
nascimentos monstruosos, agora a serviço de um modo produtivo de governo dos corpos,
em que as anomalias são distribuídas de acordo com individualidades diferenciais
(FOUCAULT, 2010). A captura do monstruoso por uma ciência disciplinar expia o
monstro, seja ele físico ou moral, do caráter de excepcionalidade. Ele passa a fazer parte
89

das populações desviantes, cujo destino e lugar na sociedade preocuparam o pensamento


médico e jurídico da modernidade, uma vez que o monstro é essa existência que, ao
perturbar a ordem, coloca a lei em suspeição. O monstro torna-se uma espécie, “como são
espécies todos esses pequenos perversos que os psiquiatras do século XIX
entomologizam atribuindo-lhes estranhos nomes de batismo” (FOUCAULT, 1999, p. 43).
Em termos genealógicos, seguindo a trilha foucaultiana, trata-se de uma passagem do
modelo da lepra para o modelo da peste:
A reação à lepra é uma reação negativa: é uma reação de rejeição, de exclusão,
etc. A reação à peste é uma reação positiva; é uma reação de inclusão, de
observação, de formulação de saber, de multiplicação dos efeitos de poder a
partir do acúmulo de observação do saber. Passou-se de uma tecnologia do poder
que expulsa, que exclui, que bane, que marginaliza, que reprime, a um poder que
é enfim um poder positivo, um poder que fabrica, um poder que observa, um
poder que se multiplica a partir de seus próprios efeitos (FOUCAULT, 2010, p.
41).

A ciência disciplinar se apodera do monstro. Em um contexto de crescimento das


cidades e dos desvios sociais e morais, a teratologia faz coro a outros saberes
disciplinares, como a psiquiatria, a demografia, a antropologia médica e o pensamento
evolucionista. Para Courtine, uma teratologia científica, um saber desenvolvido no bojo
do positivismo francês, representaria uma “ruptura decisiva” nas concepções de
monstruosidade. De fato, entre o Renascimento e obras como a de Paré e a teratologia
dos Geoffroy Saint-Hilaire, o modo como a racionalidade entendeu o monstro mudou.
Cabe destacar que a história da monstruosidade não corre paralelamente à história
social humana, como um reflexo causal. Busco pensar a monstruosidade a partir de
descontinuidades e intersecções, e não como um “lado sombrio” da história da cultura
oficial. Defendo que o monstro traduz um conjunto de relações que envolve a
racionalidade, o mito, o pensamento mágico, o senso comum e experiência estética.
Pensar as considerações científicas sobre o monstro é parte de um todo maior de
documentos históricos dessa genealogia. A linha do tempo que conecta Aristóteles, Santo
Agostinho, Paré, Geoffroy Saint-Hilaire e Courtine não é homogênea, e a própria
insurgência do monstro e dos termos linguísticos utilizados para reconhecê-lo são fatores
de anacronismo e desvio nessa linhagem.
O que interessa no modo como Courtine mapeia essa história não é tanto a datação
dessas descontinuidades, mas sim o arco histórico em que as sensibilidades sobre o
monstro se transformam. Em termos narrativos, o filme de Tod Browning conecta-se com
essa virada na sensibilidade sobre os corpos dos monstros. O longa-metragem é parte de
uma profícua geração de filmes de horror que apresentou os personagens conhecidos no
90

imaginário cinematográfico de horror. Freaks, no entanto, desloca a gramática tradicional


do horror, uma vez que o enredo em sua maior parte não conecta os personagens
monstruosos a atos assustadores. O que opera no filme é uma inversão nessa lógica, uma
vez que é o anão Hans que vai ser vítima de atrocidades na obra. O horror em Freaks está
dividido entre a exibição dos corpos dos personagens e os atos dos vilões da história.
O filme de Browning trará, pela primeira vez, monstros vivos para o cinema,
diferentemente de outras obras do mesmo período que caracterizavam o monstro com
recursos de maquiagem ou cênicos. O filme dá a ver artistas com reais deformidades
físicas, gêmeos siameses, corpos amputados, pessoas com microcefalia etc. Muitos desses
artistas pertenciam à indústria do entretenimento dos freak shows, que na década de 1930
já não tinha a mesma popularidade do começo do século. Nesse sentido, o filme conecta-
se com uma tradição de saberes modernos sobre o monstro. Em Freaks, os monstros
podem ser lidos como humanos porque sofrem, exprimem seus sentimentos, entram em
conflito com seus desejos, e não são organicamente maus. Frankenstein, de James Whale,
lançado em 1931, mostra uma criatura incapaz de uma ética social em virtude de um
transplante de cérebro. O monstro, em Freaks, expõe concepções ambíguas entre o corpo
monstruoso e uma moral socialmente construída, seja em termos normativos, seja a partir
da filiação entre formas de vida precarizadas.
Do ponto de vista diegético, Freaks dá visualidade aos dramas de uma
comunidade inteira de monstros humanos e conecta-se com essa nova sensibilidade
evidenciada por Courtine, que não mais vê o monstro como um arauto da catástrofe. A
recepção do filme, por outro lado, pareceu afirmar que o tratamento dado aos monstros
pelo senso comum não andava na mesma velocidade que as noções científicas do
pensamento francês20. A presença dos artistas do filme nos sets de filmagem em
Hollywood causou repulsa nos funcionários e nos outros atores. O filme foi um desastre
de bilheteria, foi duramente criticado e, posteriormente, censurado, ficando banido dos
cinemas até a década de 1960.

20
É importante esse recorte de um pensamento francês de herança positivista, comentado por autores
modernos como Canguilhem, Foucault e Courtine, uma vez que a eugenia nazista, também discutida por
Courtine (2011), realizou experiências cruéis com anões em Auschwitz. Os zoológicos humanos, a
antropologia neomalthuziana, as políticas higienistas em relação à miscigenação, castração química para
homossexuais e leis que tentavam esterilizar “disgênicos” também aconteciam sob a égide de um
pensamento científico. A empatia e a promoção de uma “ciências dos monstros” estavam mais relacionadas
a um aprimoramento do humano do que propriamente a uma política de inclusão. Contudo, Courtine parece
ver essa mudança no pensamento francês com certo otimismo que humaniza/naturaliza os monstros.
91

Diferente de outros filmes da mesma década, que seriam refilmados diversas vezes
e fariam parte do imaginário popular, Freaks não teve outras filmagens21. A experiência
de trazer corpos monstruosos reais para o cinema reflete uma tensão entre a
monstruosidade (signo) e o monstro (vivente). Fora do domínio do body horror, destaco
algumas obras que parecem reativar, em certa medida, a relação entre monstruosidade
corporal, doença e senso de comunidade: Os Anões Também Começaram Pequenos
(Werner Herzog, 1970), O Homem-Elefante (David Lynch, 1980), Mask (Peter
Bogdanovich, 1985), Wonder (2017, Stephen Chbosky), Crip Camp (James Lebrecht e
Nicole Newnham, 2020), para citar apenas alguns.

3.4 O QUE PODE UM HOMEM INCOMPLETO?

A relação do monstro com a monstruosidade não pode ser entendida a partir de


uma causalidade ou de uma aderência identitária, como se os signos que compõem uma
noção de monstruosidade fossem substância ou essência do vivente a quem nomeamos
monstro. O monstro surge na percepção cultural a partir de um enquadramento que o
associa a uma série de valores: catástrofe, perversão, maldade, feiura, os termos variam.
O enquadramento direciona a interpretação (BUTLER, 2019c) e posiciona figuras vivas
dentro ou fora das ontologias disponíveis. Os critérios pelos quais uma vida é reconhecida
como viva são delimitados pelo enquadramento e condicionados por critérios de
inteligibilidade. Para Butler, “uma vida tem que ser inteligível como uma vida, tem que
se conformar a certas concepções do que é a vida, a fim de se tornar reconhecível” (2019c,
p.21). O modo como Butler utiliza o termo vida inclui as condições mesmas em que uma
vida pode prevalecer biologicamente e ter seu valor de luto garantido.
A ininteligibilidade do monstro não significa que ele esteja totalmente imune aos
esquemas normativos do enquadramento. O que percebo, a partir de Freaks, é um tipo de
economia que inclui percepção e política, e que negocia continuamente os termos do
enquadramento, do estigma, da agência dos monstros e de sua capacidade de
autodeterminação. Em diálogo com Butler, é possível perceber que o monstro, “situa-se
fora do enquadramento fornecido pela norma, mas apenas como um duplo implacável
cuja ontologia não pode ser assegurada, mas cujo estatuto de ser vivo está aberto à

21
A série de horror norte-americana American Horror Story dedicou a quarta temporada aos freak shows.
Os personagens são inspirados nos artistas de Freaks, e, além do enredo próprio ao da série, relações
cotidianas e pessoais também são exploradas. A temporada foi ao ar entre 2014 e 2015.
92

apreensão (BUTLER, 2019c, p.22). O monstro não corresponde, por exemplo, à vida nua
agambeniana. Ele não está fora dos domínios da pólis. Pelo contrário, o monstro é alvo
constante de dispositivos de captura, notadamente a ciência e o saber jurídico. O
enquadramento não é, contudo, um ato fundador onipotente. Como dispositivo
biopolítico, ele tem falhas constitutivas, há sempre algo que ultrapassa a moldura e que
turva nossa compreensão das coisas (BUTLER, 2019c).
Mesmo quando a vida e a morte acontecem entre, fora ou através dos
enquadramentos por meio dos quais são, em sua maior parte, organizadas, elas
ainda acontecem, embora de maneiras que colocam em dúvida a necessidade dos
mecanismos por meio dos quais os campos ontológicos são constituídos. Se uma
vida é produzida de acordo com as normas pelas quais a vida é reconhecida, isso
não significa nem que tudo que concerne uma vida seja produzido de acordo com
essas normas nem que devamos rejeitar a ideia de que há um resto de “vida”
— suspenso e espectral — que ilustra e perturba cada instância normativa da
vida (BUTLER, 2019c, p.22. Grifo meu).

O monstro parece colocar em movimento isso que a filósofa chama de “resto de


vida”, mas não como sombra da normatividade, ou como uma identidade opositiva. Os
termos em que os sujeitos e os modos de vida normativos se organizam dependem dessa
ideia de oposição, manifesta no par exclusão-inclusão das alteridades. Por outro lado, o
modo que os personagens de Freaks organizam a vida em comunidade torna inócua a
ideia de oposição. Em parte porque não se trata de modos substanciais e bem definidos
de identidade que entram em conflito e se opõem aos outros. Trata-se da promoção de
práticas que resguardam um senso de incompletude e de ambiguidade. Além disso, a vida
mostrada no filme apresenta um conjunto de zonas de imprecisão do corpo individual e
coletivo que desfaz a noção de um centro de identificação normativo.
A vida em Freaks negocia constantemente com o enquadramento e com a noção
de reconhecimento. A ideia de um sujeito codificado e inteligível é um elemento crucial
para a “racionalidade das demandas políticas” (SAFATLE, 2021) e para as “premissas de
um silogismo político” (BUTLER, 2019). Uma comunidade de sujeitos incompletos,
organizados ao redor do reconhecimento da precariedade e da multiplicação de pontos de
referência reclama um espaço político com possibilidades, duradouras ou não, exitosas
ou não, de operar fora do escopo das identidades fixas e normativas. A ética em Freaks
que mantém o grupo unido não é resultado do interesse de um conjunto de sujeitos
completos, ou de uma finalidade teleológica externa aos indivíduos. Diegeticamente, o
filme não se organiza para comover o espectador (como o faz, por exemplo, O Homem
Elefante, de Lynch). Há um gozo visível no filme. Os monstros em Freaks sofrem
93

assédio, violência, estigmatização, mas são artistas, vivem do próprio trabalho, se


apaixonam, desejam, fazem sexo, engravidam, riem, se divertem e vingam suas ofensas.
Um caso particular é digno de nota. Josephine-Joseph é parte da comunidade dos
monstros, e performa simultaneamente identidades de gênero masculina e feminina. Não
há evidências de que se trate de uma personagem intersexual, ainda que o filme leve a
crer que sim22. O modo como a personagem é mostrada acentua essa ideia de dois gêneros
em um mesmo corpo, reforçada pela roupa e maquiagem que ela utiliza (figura 07). A
personagem passa por alguns episódios em que piadas e ofensas ligadas a gênero são
direcionadas a ela. Em um momento Josephine-Joseph passa por Roscoe e Hércules e
lança um olhar demorado ao brutamontes. Roscoe, que sofre de gagueira, afirma: “I think
she-she-he, she-she-he, she-she-he likes you, but he do do d'ont”. Em tradução livre, a
frase diz: “Eu acho que ela gosta de você, mas ele não”.
As paradas e repetições de fonemas da fala de Roscoe, notadamente em inglês,
não são apenas uma caracterização do personagem, mas materializam verbalmente o
modo como o gênero da personagem é definido coletivamente, como expresso na
repetição she-he (ela, ele) da fala do personagem. Esse ato de fala é perpetrado por um
personagem que ocupa um espaço peculiar na trama, não sendo ele mesmo um freak,
associa-se a eles por casamento, amizade e, talvez, pelo distúrbio da fala. Contudo, as
marcas de gênero o mantém em um espaço normativo bem demarcado. Trata-se de um
homem cisgênero. O seu número no circo demanda que ele vista um vestido longo e
branco, atuando como mulher. O diálogo reproduzido ocorre enquanto Roscoe despe as
peças da fantasia. A cena é curta. Os dois homens estão parados enquanto Josephine-
Joseph passa por eles. Roscoe profere a frase no momento em que pendura o sutiã da
fantasia em um cabide, como um retorno à definição do gênero. Josephine-Joseph não
veste uma fantasia, e mantém a mesma roupa em todo o filme.

22
De acordo com a biografia da artista que interpreta Josephine-Joseph, que é referida no feminino, ela se
declarava intersexual, ou hermafrodita, no vocabulário da época.
94

Figura 07: Phroso, Hércules e Josephine-Joseph


Fonte: Fotogramas de Freaks (Tod Browning, 1932).

A ambiguidade de gênero materializa-se pelos atos de fala, pelo assédio e pela


violência. Em outro momento Hércules agride fisicamente Josephine-Joseph com um
soco, porque a personagem o viu com Cleópatra. O soco se deu menos em virtude do
flagra, do que do incômodo de Hércules de ser olhado por Josephine-Joseph. Um olhar
que o espectador, assim como Hércules, não tem certeza se é de desejo ou rejeição.
O caso de Josephine-Joseph aponta para a complexidade das relações de
reconhecimento. O monstro — a personagem supostamente intersexual — coloca em
ação uma impossibilidade de ser definido conforme as normas correntes de gênero, que,
no contexto do filme são ligadas não apenas à cisgeneridade e heterossexualidade, como
também a um binarismo em que o par sexo-gênero está apoiado. A passagem da
personagem é rápida, ela não fala e seu drama não é explorado. Contudo, do ponto de
vista do enquadramento e da interpelação, Josephine-Joseph demonstra negociar com as
miríades incompletas de seu reconhecimento, ao tornar a ambiguidade o elemento central
do espetáculo que apresenta no picadeiro.
Nas entradas da personagem em cena, ela é constantemente injuriada com base na
sua performatividade de gênero. Curiosamente, Hércules performa um tipo de
masculinidade excessiva e dramaticamente artificial, apresentando-se em um número em
que doma um touro feroz. O modo como Hércules e Cleópatra encarnam ao avatares
heterossexuais da masculinidade e da feminilidade denotam uma artificialidade quase
paródica. Enquanto ele performa um super macho conhecido pela força física, Cleópatra
95

apresenta-se como uma femme fatale de caráter duvidoso. Josephine-Joseph é alvo de


injúria e violência física por parte dos homens cisgênero do circo, especialmente
Hércules. A personagem, contudo, interpela o brutamontes ao devolver o olhar, e torná-
lo concreto a partir do afeto que ela investe nele, seja desejo, desprezo ou os dois.
A ofensa e a interpelação são exploradas pela coletividade na cena do casamento
de Hans e Cleópatra. A cena apresenta um banquete, em que uma mesa grande está
montada no picadeiro do circo. Todos os freaks estão lá, além de Madame Tetralline,
Roscoe, acompanhando a esposa e a cunhada siamesas, e alguns convidados secundários,
como o engolidor de espadas e um homem que engole tochas de fogo. A mesa está posta,
os monstros dançam, riem, tocam música e se divertem em grupo, enquanto Kookoo
(Minnie Woolsey), a garota pássaro, dança alegremente sobre a mesa. Hércules senta ao
lado de Cleópatra, demonstrando grande intimidade com ela. A mulher, discretamente,
encontra um jeito de colocar veneno na bebida de Hans. A atmosfera geral da cena é de
grande alegria, um festim em que os monstros parecem genuinamente felizes enquanto
cantam, dançam e gargalham. Apenas Frieda está incomodada com a festa e deixa a mesa.
O anão Angeleno, que parece ocupar um lugar de liderança na comunidade,
interrompe a música e propõe tornar Cleópatra uma deles. A sugestão é recebida
calorosamente pelos convidados, que passam a entoar uma canção, iniciada por
Josephine-Joseph, que logo é acompanhada pelos outros: “We accept her, one of us.
Gooble Gobble!”. Ou em português: “nós a aceitamos, uma de nós”. O grupo canta em
uníssono e está visivelmente animado com o momento. Angenelo sobe na mesa, enche
uma grande taça com bebida e oferece um gole a cada um dos monstros na festa. A
imagem acompanha o anão enquanto ele caminha sobre a mesa, e todos bebem do mesmo
cálice, enquanto cantam.
A cena explora a dramaturgia de um ritual muito específico, em que todos dividem
a mesma mesa e compartilham a mesma bebida. Todos participam do que deverá ser um
ritual de passagem para Cleópatra, um batismo, um momento de mudança de status em
que ela passará a ser uma dos monstros. Não sabemos se o casamento foi realizado em
um cartório, ou por um padre. Temos acesso apenas à festa. A institucionalização oficial
do casamento, jurídico ou religioso, não importa naquele contexto e não torna Cleópatra
parte da comunidade. Torna-se necessário aquele ritual específico conhecido e
coordenado pelos monstros.
Após passar o grande cálice pelos companheiros, Angeleno chega na ponta da
mesa, bebe ele mesmo o conteúdo da taça e o oferece à trapezista. Ao lado da mulher,
96

Hércules ri ruidosamente em escárnio. A trapezista segura a taça com firmeza e com uma
expressão de fúria. Angeleno está de frente para ela. Atrás dele, todos os monstros da
festa observam a cena com expectativa. Cleópatra grita: “You dirty slimy freaks! Freaks!
Freaks!” (Seus monstros nojentos e sujos! Monstros! Monstros!) e joga o conteúdo da
taça no rosto do anão à sua frente. Furiosa, a mulher expulsa todos os convidados, amigos
de Hans, que deixam a festa com expressões tristes e visivelmente decepcionados com a
recusa violenta da mulher em tomar parte no ritual.
O ato injurioso de Cleópatra pode ser entendido como uma cena de interpelação,
conforme discutido por Butler (2019a; 2020; 2021). A interpelação age como um modo
reiterado de uma ofensa, que tem poder de materializar o sujeito no espaço social. Butler
retoma a discussão de Louis Althusser (1985) sobre o conceito. Para o autor, a
interpelação age como um chamamento do indivíduo à lei, ao mesmo tempo que
circunscreve esse indivíduo no espaço social. Para Butler, a interpelação é um ato de fala
com força inaugural, ela introduz uma realidade a partir de uma convenção linguística. O
objetivo da interpelação é “designar e estabelecer um sujeito na sujeição, produzir seus
contornos sociais no tempo e no espaço. Sua operação reiterativa tem o efeito de
sedimentar seu posicionamento ao longo do tempo” (BUTLER, 2021, p.63).
A ideia encontra interlocução no pensamento foucaultiano, no que diz respeito à
produção discursiva do sujeito. Althusser entende que a ideologia interpela os indivíduos
como sujeitos, como um ato linguístico que o convoca para a realidade social. O autor se
vale do exemplo em que um indivíduo é parado na rua pela polícia. Na leitura que Butler
faz do exemplo althusseriano, a interpelação ocorre na troca em que a relação entre sujeito
que chama e sujeito que é chamado é reconhecida e aceita. O nome interpelativo é uma
fórmula cujo conteúdo não é verdadeiro ou falso. Não se trata da descrição de uma
realidade existente, mas da criação de uma relação de reconhecimento mútuo: da voz que
enuncia a ofensa e o sujeito a quem a ofensa é direcionada.
Ainda que a filósofa concorde com Althusser (e com Foucault, em outros termos)
que o processo de formação do sujeito incorre em um assujeitamento do indivíduo diante
do poder, Butler reitera as limitações linguísticas da fórmula althusseriana. A concepção
de Althusser é limitada por uma noção de aparelho do Estado, que tem monopólio e
autoridade da palavra. Em Foucault, por outro lado, a noção de discurso surge como uma
possibilidade de pensar sua eficácia e distribuição em instâncias que não sejam a palavra
falada (BUTLER, 2020), o que não quer dizer diretamente que os atos de fala sejam
menos importantes ou não mantenham sua eficácia. É justamente a reiteração, o caráter
97

de repetição e de durabilidade no tempo da interpelação, que garante sua eficácia em


constituir o sujeito na linguagem (BUTLER, 2021). A interpelação tem poder fundacional
do sujeito, como o caso da linguagem médica que anuncia o sexo de uma criança, na
ultrassonografia ou nascimento, e que garante que essa criança será criada conforme o
sexo que foi inicialmente inserida. Para Butler, o ato é “um modo de configurar um limite
e também de inculcar repetidamente uma norma” (2019a, p.25).
A cena do casamento em Freaks, bem como as injúrias que sofre Josephine-
Joseph, encenam o ato de interpelação que interessa Butler. Os enunciadores das ofensas
são agentes e podem ser responsabilizados pelo discurso de ódio, mas não são a fonte
criadora da ofensa. O ato de fala ofensivo opera pela invocação de convenções sociais
estabelecidas (BUTLER, 2021), ainda que necessite de sujeitos para ser perpetuado. Os
monstros são alvo do chamamento ofensivo a partir de um conjunto de valores coletivos
atribuídos às existências precárias. A interpelação, neste caso busca produzir os sujeitos
monstruosos no discurso, ao mesmo tempo que os rebaixa socialmente.
As duas ocasiões posicionam modos heterogêneos e refratários de endereçamento
(da linguagem ou do discurso) e do reconhecimento. As falas direcionadas a Josephine-
Joseph, que buscam ofender destacando a sua não conformidade de gênero, e as falas de
Cleópatra ao grupo, com a insistência no termo freaks/monstros, desqualificam os
sujeitos. O objetivo da interpelação é rebaixá-los a uma posição que os reduz às próprias
características físicas estigmatizadas. Butler insiste no caráter refratário da interpelação,
que convoca e materializa o sujeito, ao mesmo tempo que cria uma zona de fracasso ou
deslizamento dessa interpelação. Esse deslizamento produz consequências que
ultrapassam o efeito pretendido pela injúria e abre espaço para a subversão. A
interpelação, nesse contexto, “perde sua condição de simples ato performativo, um ato do
discurso que tem o poder de criar aquilo a que se refere, e cria mais do que estava
destinada a criar, um significante que excede a qualquer referente pretendido” (BUTLER,
2019a, p.211).
No que toca a ofensa, diz a autora:
Uma pessoa não está simplesmente restrita ao nome pelo qual é chamada. Ao ser
chamada de algo injurioso, ela é menosprezada e humilhada. Mas o nome
oferece outra possibilidade: ao ser insultada, a pessoa também adquire,
paradoxalmente, certa possibilidade de existência social e é iniciada na vida
temporal da linguagem, que excede os propósitos prévios que animavam
aquela denominação. Portanto, o chamamento injurioso pode parecer restringir
ou paralisar aquele ao qual é dirigido, mas também pode produzir uma
resposta inesperada e que oferece possibilidades. Ser chamado é ser
interpelado, a denominação ofensiva tem o risco de introduzir no discurso um
98

sujeito que utilizará a linguagem para rebater a denominação ofensiva


(BUTLER, 2021, p.13). Grifos meus.

Freaks subverte o direcionamento da interpelação. Podemos imaginar, em um


esforço de elucubração, que tipo de destino linguístico foi endereçado aos personagens
de Freaks no momento do nascimento — um tipo de pavor e exclusão parecido com o
ocorrido em Cem Anos de Solidão. Nasceu um monstro! Esse ato garante que os
indivíduos sejam expulsos da vida social humana, ao mesmo tempo que são produzidos
na linguagem como monstros. A incompletude do corpo e a incompletude da socialização
cedem espaço para a possibilidades criativas de produção de vida social. Com isso não
quero louvar a vida precária, ou as dificuldades de acessibilidade a que estão sujeitos os
personagens. Quero chamar atenção para o fato de que estas vidas produziram
mecanismos de sociabilidade que as tornaram não apenas viáveis do ponto de vista físico,
como também produtoras de sentidos e de modos de vida a partir das próprias práticas
sociais. Essas práticas não estão imunes aos efeitos do poder, contudo, produzem usos
bastante diversos das condições propostas.
A interpelação perde a força de um ato fundacional na medida em que o
endereçamento parte de outros pontos de vista. Como dito, a comunidade de monstros é
capaz de agenciar e negociar os sentidos múltiplos de sua monstruosidade, de modo que
a ofensa assume um valor de predicativo que absorve o estigma e o transforma em alguma
coisa outra (algo semelhante ao uso do termo queer por sujeitos LGBTQIA+ ou “vadia”
por coletivos feministas, como a Marcha das Vadias). Ao transformar a interpelação, a
condição monstruosa assume um valor produtivo e agregador de sujeitos. A comunidade
desestabiliza a relação entre centro normativo e poder. Se o chamamento os materializa a
partir de uma ofensa, ele parte de um ponto de locução que não tem o efeito de polícia
que Althusser fala. Não convoca o indivíduo à lei.
O reconhecimento se dá fora do escopo da lei e o filme constantemente torna claro
certo perspectivismo dos monstros. Josephine-Joseph endereça o olhar a Hércules,
coloca-o como objeto de um afeto ou de um desejo, convoca-o para um campo outro de
significações, que não o que o brutamontes participa. Do mesmo modo, o batismo
interrompido de Cleópatra parte de uma interpelação, um chamamento que materializa a
alteridade ao mesmo tempo que torna concreta e viva a comunidade de monstros, como
denota o uso do pronome “nós”. Ao dizer “nós a aceitamos”, os monstros fabricam um
lugar de pertencimento, tornam visíveis os contornos daquele mundo e se colocam como
99

sujeitos de uma enunciação política. Ela deverá fazer parte do mundo dos monstros e não
o contrário. Ela é interpelada.
Cabe dizer que os gestos interpelativos em Freaks acentuam o modo sensível que
o monstro opera na vida comum, e não se restringem à fala ou a discursos inteligíveis. O
olhar, o ato de beberem juntos da mesma taça, o riso, as onomatopeias (Gooble Gobble!),
tudo isso compõe uma performatividade cujo sentido está sendo negociado durante o ato,
como um modo de materializar a vida dos monstros em uma comunidade. Mesmo que
interrompida, a cena tem o formato de um ritual. Os estatutos sociais dos personagens no
circo cedem espaço para os estatutos coletivos da comunidade dos monstros.
Os estatutos referentes à comunidade são acionados novamente na cena final do
filme, e reitera a ideia de filiação a partir de laços de afeto e de uma ética própria. O
momento em que o grupo organiza-se para vingar Hans, que está sendo envenenado por
Cleópatra e Hércules, demonstra essa ambiguidade, em que os personagens extrapolam a
relação agressor-vítima. Trata-se do evento que dá desfecho ao filme, como uma resposta
aos fatos do casamento de Hans com Cleópatra. Os acontecimentos do filme se passam
em um período de tempo curto, o que parece ser poucos dias. Na cena, o circo está
desmontado e em viagem para outra cidade. Os trailers e containers em que moram os
artistas são carregados por carruagens em uma noite chuvosa. Essa é uma das poucas
cenas em que o espaço externo é mostrado, já que o circo está em trânsito.
Enquanto vários dos monstros deixam seus trailers em direção ao de Cleópatra,
arrastando-se na lama, entre os pneus das carruagens, Hércules vai ao trailer de Vênus,
em uma tentativa de silenciá-la e é interceptado por Phroso. Com a luta corporal, as
carruagens tombam em uma paisagem indistinta, como se transitassem por uma floresta
e não por uma estrada (figura 08). A imagem é escura e a paisagem é iluminada pelos
relâmpagos que tomam a cena. A floresta endossa o caráter de transição que impera em
todo o filme, como um espaço de passagem, de contornos indefinidos e que surge nas
narrativas como zonas iniciáticas. De fato, a vingança dos monstros consiste em deformar
o corpo de Cleópatra, o que acentua o caráter iniciático da cena23, em que ela será
transformada em monstro.

23
Assim como o labirinto analisado no capítulo anterior, a floresta pode ser entendida como um espaço
fronteiriço (LOTMAN, 2000), como espaço iniciático (MONDZAIN, 2010) ou ainda como uma
cosmologia errante (CAVALCANTE, 2020). Sobre a paisagem no cinema, ver Lefebvre (2006). Sobre a
relação entre natureza e paisagem, ver Muguiro (2017).
100

Figura 08: Os monstros perseguem Cleópatra.


Fonte: Fotogramas de Freaks (Tod Browning, 1932).

Cleópatra salta do seu trailer, perseguida pelos monstros que saem de baixo das
carruagens. A mulher grita por socorro. Não se sabe se ela não é ouvida por conta do
barulho da chuva, ou porque os colegas do circo não se importam em salvar sua vida. Ou
ainda porque ninguém quer interferir no código de ética dos monstros. De todo modo, ela
corre para dentro da floresta (figura 08), distanciando-se rapidamente do espaço por onde
os trailers passaram e é seguida pelos monstros. Na escuridão, é possível ver Hans no
grupo, vestido de branco, deslocando-se velozmente para alcançar a esposa. A cena da
sua transformação não é mostrada, apenas seu corpo, já deformado, é exibido no epílogo
do filme. A cena do museu de atrações é retomada e o monstro é revelado ao público.
101

Figura 09: Cleópatra deformada fisicamente e transformada em monstro.


Fonte: Fotogramas de Freaks (Tod Browning, 1932).

A cena é rápida, e Cleópatra é mostrada deformada como um tipo de epílogo do


filme (figura 09). O destino dos monstros após os eventos do filme não é mostrado, exceto
o de Hans, que assume a herança que deveria receber e é mostrado melancólico no final,
sentindo-se culpado por ter infligido as normas de convívio do grupo. A cena mostra o
reencontro do anão com Frieda, em uma reconciliação amorosa, um tipo de desfecho
romântico que garante continuidade aos dois, nos mesmos moldes dos filmes românticos.
A diferença é que, no lugar de duas estrelas de cinema que se unem no final, Freaks dá a
ver um ato de amor entre dois monstros.

3.5 COMUNIDADES IMAGINADAS

A trama de Inferninho (Pedro Diógenes e Guto Parente, 2019) ocorre dentro de


um bar, o bar Inferninho, que é mostrado como um espaço decadente, escuro e antigo. A
ambiência remete a um tipo de ruína doméstica, como se o espaço envelhecesse sem
reformas ou mudanças recentes, ainda que composto por imagens familiares e
reconhecíveis. As paredes são de um tom desbotado de cinza, com manchas escuras e
encardidas e as venezianas das janelas permanecem fechadas, impedindo a entrada de luz
externa no bar. As mesas e cadeiras são de metal enferrujado, e remetem aos bares da
década de 1990. Caixas de cerveja atulham as paredes, dividindo o espaço com as mesas
e o balcão de madeira. Sabemos que o Inferninho é antigo, apesar de não remeter a uma
data específica. O espectador não sabe em que momento a trama ocorre, podendo tratar-
se, inclusive, de uma narrativa futurista. A dona do bar, Deusimar (Yuri Yamamoto),
102

conta que o estabelecimento era da avó, que passou para a mãe e agora cabe a ela tomar
conta do espaço.
O enredo do filme se concentra nas relações estabelecidas dentro do bar. Os
ambientes externos, a rua ou o bairro onde o bar está situado jamais são mostrados. Nas
poucas vezes em que é evocado, o espaço externo ao bar é descrito como violento e hostil.
A história começa com a entrada inesperada de Jarbas, o Marinheiro (Demick Lopes), no
bar. Um forasteiro, vindo do mar, que logo trava um relacionamento amoroso com
Deusimar (não penso que a homofonia entre mar e Deusimar seja gratuita na obra). A
chegada de Jarbas traz um elemento novo para a ambiência decadente do espaço. Logo,
ele se integra à rotina do estabelecimento e à presença dos funcionários e clientes.
Um dia, um representante de uma empresa que presta serviços ao Estado chega
no bar com uma oferta de compra do Inferninho. A empresa é responsável por processos
de remoção. O bar deverá ceder espaço para o estacionamento de um empreendimento
estatal, um centro de entretenimento virtual, o Devirtuário24. A proposta traz conflito
entre Deusimar, Jarbas e os funcionários do bar. Deusimar cresceu ali, mas sente-se presa
e ressentida pela falta de liberdade e por nunca ter conhecido outra realidade que não
aquela. Os outros parecem contrafeitos com a proposta de venda e desaparecimento de
um espaço que amam e com o qual se identificam.
O conflito é acompanhado pelos eventos do passado de Jarbas, que deve dinheiro
a um grupo de marinheiros-criminosos que aparecem no bar com agressividade. Diante
dos eventos violentos, Jarbas desaparece do bar. Com a perda, Deusimar opta por vender
o estabelecimento, repartir o dinheiro entre os funcionários e cometer suicídio. O ato é
interrompido por um dos funcionários que convence a mulher a viajar pelo mundo com o
dinheiro da venda do Inferninho. Ao retornar da viagem, no final do filme, Deusimar
encontra o bar em funcionamento, do mesmo modo como o encontramos no começo do
filme. Atrás do balcão, no entanto, está Jarbas, em uma sugestão de retorno e repetição
da história, em que é possível recomeçar a narrativa no mesmo espaço.

24
O nome do empreendimento possivelmente remete à construção de um aquário temático na orla de
Fortaleza. A construção da obra gerou debates sobre a remoção da comunidade que habita essa área do
litoral da cidade. A obra foi iniciada e logo interrompida. Atualmente, no espaço há uma grande ruína
murada do que deveria ser o alicerce da obra.
103

Figura 10: Personagens de Inferninho


Fonte: Fotogramas de Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018)

Apresento esse breve resumo da trama de Inferninho a fim de melhor posicionar


os personagens na narrativa. O filme dá lugar a um conjunto heterogêneo de sujeitos
díspares, que performam identidades aparentemente artificiais, como que fantasiados. A
aparência dos personagens, tanto os funcionários quanto os clientes, destaca-se sobre o
espaço escuro e mal cuidado do bar. A relação com o espaço, no entanto, não sugere
contraponto. A artificialidade e o excesso na caracterização dos personagens acentuam a
ideia de uma ruína deslocada no tempo, um espaço afastado da sociedade e frequentado
por figuras outsiders.
Deusimar, a proprietária, é uma mulher transgênero, e está sempre vestida e
maquiada com um apuro luxuoso, fazendo referência às divas do cinema hollywoodiano
clássico. Um coelho de patins serve as mesas, movendo-se pelo espaço estreito do bar
vestindo uma pelúcia rosa, no mesmo tom que suas orelhas compridas e pontudas. O
104

Coelho (Rafael Martins) pode ser descrito como um homem cisgênero adulto vestindo
uma fantasia de coelho. A fantasia pode remeter a certa indumentária sexual ou
fetichizada. Contudo, como veremos, termos como “vestir” e “fantasia” perdem força de
explicação nas relações estabelecidas no filme.
O bar é frequentado por um grupo bastante díspar de clientes, que aparentam ser
sempre os mesmos e em número reduzido: um homem com o corpo completamente
pintado de tinta prateada; um Mickey Mouse que bebe cerveja por uma abertura na
fantasia abarrotada; uma travesti de cabelos longos e um bigode fino sobre os lábios, que
ostenta uma pequena coroa sobre a cabeça e braceletes semelhantes aos da Mulher
Maravilha; um Wolverine aparentemente cansado ou alcoolizado. Ainda que estejam em
um bar, as figuras são sempre mostradas em uma atmosfera de monotonia ou tédio, em
silêncio. O espectador não tem certeza se eles estão absortos ou indiferentes à musica
performada pela cantora Luizianne (Samya de Lavor). A artista canta acompanhada por
um tecladista que parece um compositor de música clássica do século XVIII. Durante a
música, ela é observada pelo olhar apaixonado de Caixa-Preta (Tatiana Amorim), que se
divide nas funções de segurança e zeladora do bar.
Com essa apresentação, quero apontar, inicialmente, que os temas externos à
trama, como gentrificação, identidade de gênero, questões de classe, não tomam a
dianteira no desenvolvimento do filme. Estes temas estão presentes na obra, mas de modo
latente e são evocados a partir de uma violência institucional que vem de fora do bar. O
elemento antagônico, cabe lembrar, é inserido na narrativa com a entrada do funcionário
de uma empresa que realiza remoções para o Estado.
As questões políticas e afetivas confundem-se na relação entre corpo e espaço. No
filme, a vida política diz respeito a como as pessoalidades dissidentes que habitam aquele
espaço imaginam modos de estar juntos e de produzir mundo e comunidade, à revelia de
uma violência institucional que invariavelmente é relacionada ao que está fora. A trama
explora uma geografia afetiva, em que a materialidade do espaço fílmico é continuamente
acionada na relação com os personagens. Inferninho “lida com questões afetivas sobre o
vínculo com o lugar — uma espécie de topofilia —, e ao mesmo tempo com o desejo
utópico de imaginar outros mundos, de sair do espaço já conhecido” (PRYSTHON;
CASTANHA; ASSUNÇÃO, 2019, p.18).
Os corpos dos personagens geram um estranhamento em relação ao espaço do bar.
Enquanto este é cinza, escuro, encardido, os indivíduos mostram-se em trajes brilhantes,
coloridos, festivos, excessivos. Além disso, o uso de fantasias, de roupas e adereços que
105

remetem a outras figuras, impede uma definição precisa de quem são aquelas pessoas.
Sabemos que o Coelho não é um coelho, a fantasia não emula o corpo de um coelho ou
direciona o personagem a uma animalidade. Tampouco podemos afirmar que ele apenas
veste-se de coelho. Junto aos outros personagens, o Coelho coloca uma dúvida que
permeia todo o filme. Ou os personagens não estão fantasiados ou a fantasia é parte
integrante de quem eles são.
As identidades em Inferninho, quero sugerir, são negociadas a partir da
ininteligibilidade e da impossibilidade de aderir significados sociais estáveis. O excesso
e o artifício direcionam os sujeitos à imprevisibilidade e à metamorfose. Não
corresponder a uma identidade prévia e fixa tampouco é um problema no local. Deusimar
e os funcionários do bar compõem um tipo de comunidade que inclui, lateralmente, os
frequentadores e que é caracterizada como uma família. As relações não são harmônicas,
mas são estabelecidas por um tipo de filiação complexa semelhante ao que ocorre em
Freaks. Há um reconhecimento recíproco da precariedade e da vulnerabilidade que
aproxima os sujeitos. O bar torna-se, então, um tipo de refúgio, espaço seguro em que
relações são fabricadas não pelo reconhecimento identitário da semelhança, mas pela
multiplicação de pontos de diferença e de existências artificias.
O vínculo com o espaço, sentimento que é comum a todos os personagens, produz
um tipo de zona fronteiriça marcada pelo artifício. Essa zona possibilita a criação de um
mundo próprio, sugere a possibilidade de formas outras de estar junto e mantém, mesmo
que de modo precário, os sujeitos protegidos. O bar apresenta-se como um espaço fora
do espaço, um deslocamento na composição regular de uma cidade. A posição geográfica
do bar é incerta e pode fazer referência aos bares do Centro de Fortaleza, que funcionam
nos momentos em que o comércio está fechado e o bairro é uma zona inabitada. Por outro
lado, nada impede de pensar Inferninho como uma trama futurista, que mostra um refúgio
para os sobreviventes de um cenário pós-apocalíptico. Importa pouco saber o contexto
em que o bar está inserido, ainda que seja evidente uma crítica ao progresso, ao tempo
disciplinar das sociedades modernas e a expansão urbana predatória.
Por ora, descarto a hipótese de que a fantasia pode ser uma válvula de escape de
uma essência, como a corporificação de um eu interior verdadeiro. O modo como os
sujeitos são apresentados invalida classificações binárias como verdadeiro/falso e
essência/aparência. A ininteligibilidade dos personagens remete a termos como variação,
artifício e fracasso. Nesse sentido, quero apontar que não é a transgeneridade de Deusimar
que a torna parte da coleção de monstros de que essa tese se ocupa. É a ininteligibilidade,
106

a impossibilidade de uma aderência a um sentido identitário coletivo que torna


monstruosa a personagem. A monstruosidade em Inferninho aparece no jogo de
transformações, artifícios e invenções operado pelos corpos e que propõem um modo de
estar junto e de produzir comunidade a partir de uma noção radical de “dentro”. Essa
noção de dentro encontra paralelo nos modos de entender os conceitos de fronteira e de
limite, como zonas habitáveis e de intensa atividade cultural.
No caso de Inferninho os contornos são materialmente visíveis, demarcados pela
porta do bar, que o torna igualmente hermético e vulnerável. Não há uma troca cultural
com o que está fora. Nesse sentido, Inferninho aproxima-se mais do labirinto do Astérion
do que do circo de Freaks. Neste, o espaço e as instituições estão dadas, e a vida social
dos monstros a transforma. Em Inferninho, o modo de identificação com essa noção de
dentro é a produção mesma de um ponto de vista, de um lócus perspectivo particular. O
espaço é imaginado e fabricado a partir do artifício. Não há uma relação de oposição entre
os sujeitos artificiais e naturais, ou normativos, ou humanos. A ideia de oposição como
um marcador da alteridade é invalidada pela performatividade dos personagens. O que é
observado é uma multiplicação de zonas artificiais de diferença. Estar no Inferninho é ser
um vivente em meio a outros modos de ser sujeito.
Essa noção de “dentro” é expressa na materialidade do filme e é tensionada pela
viagem de Deusimar, em um espelhamento com o seu par romântico, o Marinheiro que
viajou o mundo antes de chegar no bar. As cenas da viagem de Deusimar mostram a
mulher diante da câmera, enquanto imagens passam por trás, em uma montagem em
chroma key de paisagens turísticas conhecidas: Paris, Nova York, as pirâmides do Egito,
Machu Pichu (figura 11). Não se trata de imagens externas, filmadas em outras locações,
mas sim paisagens projetadas, sonhadas, imaginadas. São as imagens que se movem,
enquanto Deusimar permanece dentro do plano fílmico, observado deslumbrada as
cidades que passam por ela. A saída da personagem para um fora possível se dá a partir
da invenção, assim como os modos de produção do corpo e dos modos de vida. A projeção
extrapola essa noção de pertencimento, uma vez que inverte a noção de deslocamento: é
o mundo que passa ao redor da personagem e não o oposto.
107

Figura 11: A viagem de Deusimar.


Fonte: Fotogramas de Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018)

Em Inferninho o mundo todo é o bar. Ou ainda, os limites do mundo são os limites


do bar. Não se trata unicamente de um bar underground ou decadente, ou um tipo de
espaço de lazer fora do radar da vigilância. O espaço adquire uma força de centralidade
que não é relacional — o espaço externo é evocado como um lugar de violência e de não
pertencimento, como mostrado na cena em que a cantora Luizianne sai do
estabelecimento e retorna gravemente ferida, vítima de uma agressão que sofrera na rua.
Após o ataque, a possibilidade de chamar a polícia também é descartada, indicando que
o poder estatal e policial é nocivo aos personagens do filme.
Diferente das imagens projetadas na viagem, o espaço concreto de fora é sempre
hostil, mesmo que seja pouco falado e sempre de modo generalista, sem detalhes. A
viagem de Deusimar a faz deslizar por paisagens distantes, enquanto a geografia que
circunda o bar permanece nebulosa, como um cerco perigoso ao redor do Inferninho. A
apresentação do espaço denota uma espécie de refúgio. Cabe notar que o bar possui
108

apenas uma porta aparente. Não há rotas de fuga possíveis, o próprio espaço circunscrito
do bar é a linha de fuga desenhada por aquele conjunto de personagens. Os frequentadores
chegam de algum lugar e encontram ali uma temporalidade arrastada, melancólica, uma
zona invisível, que os separa do espaço externo de onde vieram e que, porventura, deverão
regressar. Nesse espaço, os corpos mostram-se a partir do artifício. Os clientes não
despem as máscaras de Homem-Aranha ou as garras de Wolverine para sentar à mesa. O
estar junto nesse bar implica uma ocupação por corpos fantasiados e imaginados.
Essa performatividade inquieta o olhar. O corpo imaginado e artificial dos
personagens não performam uma orgia ou um carnaval perpétuo, como as formas do
grotesco bakhtiniano (BAKHTIN, 2010). Contudo, na atmosfera de melancolia e de
monotonia, os personagens são capazes de felicidade e de prazer. A carnavalização, nesse
sentido, aponta para esses sujeitos monstruosos que expressam uma imagem artificial.
Essa relação entre corpo e artifício, entre identidade e fantasia, impede a identificação e
assimilação desses sujeitos em categorias conhecidas. O que são e quem são essas
pessoas, é uma pergunta que o filme não responde.
Em Freaks, os personagens estão em uma encruzilhada de saberes, é a saturação
de explicações que tenta encapsular os monstros em uma rede de poder. Inferninho
investe em um movimento oposto. Todas as formas normativas de saber falham em
nominar os personagens. Isso implica, na trama, em uma aparição do sujeito fora dos
dispositivos de interpelação. Na cena em que o funcionário do governo chega para
comprar o bar ele busca por um senhor chamado Denilson. Trata-se do nome designado
a Deusimar no nascimento, o termo que o Estado atribui a ela. A mulher responde à
interpelação: “O bar é meu e eu me chamo Deusimar”.
A resposta de Deusimar faz da interpelação um gesto vazio, que não encontra um
alvo a ser direcionado. Deusimar não é convocada à lei e invalida o termo que o Estado a
nomeia. Ao anunciar o próprio nome em voz alta, ela apresenta um sujeito que está ali,
cuja materialidade é inegável. Um corpo que é capaz de ser reconhecido, mas à revelia
dos termos que o reconhecimento propõe. A legibilidade por parte da norma/Estado cobra
seu preço e não reconhece a vida fora dessa condição. Ter legibilidade social nos termos
em que são garantidos pelo Estado tem um custo: “é aceitar os termos de legitimação
oferecidos e descobrir que o senso público e reconhecível da pessoalidade é
fundamentalmente dependente do léxico dessa legitimação” (BUTLER, 2002, 226).
A partir de Butler podemos entender o reconhecimento não como um ato
fundador, mas como um conjunto de práticas e ritos repetidos no tempo, que garantem
109

que o sujeito seja inteligível conforme determinado enquadramento. Os personagens de


Inferninho promovem modos de vida emancipados desses termos de legitimação, em
formas de apresentação que perturbam o léxico identitário reconhecido, em zonas de
ontologia incerta. As estratégias de reconhecimento são formuladas a partir de critérios
outros de invenção do corpo e de fracasso em tornar-se um sujeito inteligível.
De um ponto de vista normativo, os personagens impedem uma classificação
médica ou científica, em que a fantasia pode ser vista como efeito de alguma variação
psiquiátrica ou psicológica. Enquanto em Freaks as anomalias médicas são o ponto de
partida para uma subversão do discurso científico em prol de outras formas de
reconhecimento, Inferninho movimenta-se de um modo a sempre impedir que as
definições sejam estabelecidas e estabilizadas, sabotando os modos normativos de
reconhecimento, fracassando em tornar-se sujeitos inteligíveis. Nesse sentido, o
reconhecimento ocorre a partir da invenção de relações circunscritas no espaço habitado,
essa invenção se dá por meio do par fracasso-artifício.
A própria designação como monstro se torna porosa, uma vez que monstro se
define historicamente a partir da norma. Quando pensamos o bebê com cauda de porco e
os personagens de Freaks, a norma coloca-se como uma força antagônica em constante
atividade para definir e destruir os monstros. Em Inferninho a norma não está presente
como parâmetro de tensionamento. A norma está fora. As leis de filiação e de habitação
no espaço são inventadas à medida que os corpos e a comunidade são construídos. A ideia
de uma coletividade de vidas precárias não aponta para identidades oposicionais ou como
uma alteridade radical e negativa. É a norma, o conceito de humano, que é forjado em
uma lógica opositiva. Em Inferninho, não há termo de oposição — a que o Coelho seria
oposto, por exemplo? O próprio funcionamento da vida no bar, em que todas as formas
de existência são possíveis, garante uma afirmação das possibilidades múltiplas e
dinâmicas de viver.
A ideia de precariedade assume que toda vida sempre ocorre dentro de
determinadas condições de vida (BUTLER, 2019c), ou seja, a vida persiste em redes de
sociabilidade, de cuidado e de reconhecimento. Como discutido, as vidas são
reconhecíveis dentro de um tipo específico de enquadramento, um dispositivo que atua
na distribuição desigual de precariedades e que faz com que algumas vidas sejam mais
vivíveis ou exitosas que outras, e que algumas vidas sejam mais passíveis de luto que
outras. Essa “distribuição desigual do luto público” (BUTLER, 2019c) torna-se mais
complexa quando a violência e a coerção são os dispositivos mantenedores da política
110

institucional e do funcionamento do enquadramento. “Uma vida não passível de luto é


aquela cuja perda não é lamentada porque ela nunca foi vivida, isto é, nunca contou de
verdade como vida” (BUTLER, 2019c, p.64).
Os personagens de Inferninho movem-se por um espaço não apenas como um
modo de lazer e de identificação. O bar denota um tipo de esconderijo, uma rota de fuga
para o que está fora, que sabemos ser a violência estatal, a violência de gênero, e outros
modos de agressão cotidiana a que as vidas precárias estão sujeitas. O bar também é uma
rota de fuga para os dispositivos normativos de reconhecimento dos sujeitos. É no bar
Inferninho que essas vidas contam como vidas e que as estratégias de reconhecimento
não estão submetidas à norma. A sociabilidade no bar não está sujeita às práticas
legitimadoras dos sujeitos, concessões impostas para que o reconhecimento social como
uma vida vivível seja garantida.

3.6 CORPOS QUE FRACASSAM

Canguilhem (2012) compreende os desvios, que a literatura médica agrupou sob


o termo anomalia e desenvolveu um léxico vasto para identificar e classificar cada um, a
partir das noções de errância e de contingência. O autor inclui os conceitos na
compreensão de problemas como a distinção entre saúde e doença, normal e patológico,
bem como a possibilidade de reconfiguração das formas orgânicas. Para ele, um sujeito é
saudável quando é mais que normal, quando é capaz de muitas normas (CANGUILHEM,
2012). “A saúde é, precisa e principalmente, no homem, uma certa latitude, um certo jogo
das normas de vida e do comportamento” (CANGUILHEM, 2012, p.183). Formas
desviantes e monstruosas, para ele, fariam parte de uma variedade experimental da vida.
Os termos que o autor mobiliza são valiosos para essa discussão, não como um
modo de pensar a possiblidade e a validade de todas as formas de vida, mas como
horizonte filosófico para pensar o monstro a partir da errância e da contingência. “Em
suma, podemos interpretar a singularidade individual como um fracasso ou como um
ensaio, como um erro ou como uma aventura” (CANGUILHEM, 2012, p.174. Grifo
meu). O autor equipara fracasso a ensaio, como uma possiblidade dupla de compreensão
dos desvios e do monstruoso. Se na minha leitura de Freaks, busquei pensar o monstro a
partir da incompletude, gostaria de partir dessa formulação para pensar o monstro como
um corpo que fracassa. O fracasso entendido não como falta de êxito, mas como uma
operação reiterada de desvio da norma e que torna a forma imprevisível. O fracasso em
111

Canguilhem não implica diretamente na inviabilidade do organismo. O termo pode ser


entendido como uma não adequação do vivente às expectativas geradas para aquela
espécie. Como dito, em Canguilhem a norma não é tanto uma matriz genérica que serve
de molde aos organismos, mas um protótipo, um conjunto de expectativas e demandas
aplicadas aos viventes. Canguilhem direciona suas investigações para formas orgânicas.
O fracasso, como entendido nesta tese, desloca as proposições de Canguilhem para
investigar os corpos em Inferninho, não a partir da natureza e da biologia, mas no intuito
de pensar a variação dos corpos como produções viáveis de existência.
O fracasso em Inferninho impede os personagens de assumirem formas
reconhecíveis e nomeáveis dentro de um léxico normativo. Trata-se de um conjunto de
sujeitos que não contemplam as exigências e expectativas de reconhecimento e de
inteligibilidade da norma. O fracasso que interessa discutir diz respeito a corpos que não
atendem às expectativas da forma humana, e não têm relação direta com a noção de êxito
social e econômico. Contudo, o fracasso também sugere uma negatividade capaz de
criticar as formas de sociabilidade calcadas na ideia de progresso, futuro e reprodução
(BENJAMIN, 2012; EDELMAN, 2004, 2021; HALBERSTAM, 2020). Nesse sentido, é
possível perceber uma aproximação entre a condição monstruosa, a precariedade e o
fracasso, como modos de existência que persistem e tornam-se viáveis à revelia de uma
definição precisa e normativa de humano.
Jack Halberstam (2020) lê o fracasso no âmbito de uma política queer como uma
prática contra-hegemônica, sobretudo em um regime de poder que associa sucesso com
reprodução continuada do capital e de formas disciplinares do corpo e das subjetividades.
Epistemologicamente, considerar o fracasso no âmbito de uma crítica cultural implica
dialogar com saberes subalternos, transgressores, que não estão afeitos à disciplinarização
escolar ou à hegemonia do cânone. Pensar o fracasso, para ele, pode implicar uma potente
combinação de conhecimentos. Do ponto de vista de uma vida política, fracassar,
esquecer, tornar-se inadequado, desconhecer, podem “oferecer formas mais criativas,
mais cooperativas, mais surpreendentes de ser no mundo” (HALBERSTAM, 2020, p.21).

Talvez o mais óbvio é que o fracasso permite-nos escapar às formas punitivas que
disciplinam o comportamento e administram o desenvolvimento humano com o
objetivo de nos resgatar de uma infância indisciplinada, conduzindo-nos a uma fase
adulta controlada e previsível. O fracasso preserva um pouco da extraordinária
anarquia da infância e perturba os limites supostamente imaculados entre adultos e
crianças, ganhadores e perdedores (HALBERSTAM, 2020, p.21).
112

O autor irá recuperar a relação entre infância e anarquia das formas em outro
trabalho (HALBERSTAM, 2020a). Interessa aqui pensar em certa rota de fuga da ideia
rígida de maturação do corpo, compreendida como uma forma acabada, completa,
discernível e legível. O sujeito é interpelado constantemente a retornar à lei, a performar
modos de ser inteligíveis e codificados conforme expectativas coletivas. Ter ou não êxito
diante dessas expectativas garante espaços diferenciados ao sujeito dentro de uma
sociedade, como a adequação às demandas de papeis sociais de gênero. O fracasso, ainda
que punido e associado a sentimentos negativos como decepção ou desilusão, proporciona
possibilidades de enfrentar a lógica disciplinar do progresso. O fracasso interrompe a
produção do sujeito em formas reprodutivas (no sentido parental e material). O fracasso
do monstro em ser inteligível não é apenas uma forma de subverter o silogismo político
que demanda sujeitos codificados e reconhecíveis, mas também é um modo de
experimentar outras formas de existência.
Fracasso é um termo cujo sentido é facilmente associado a um contexto capitalista,
em que o sucesso pessoal está atrelado à reprodução dos códigos e estruturas do capital.
As formas familiares heteronormativas bem como os critérios de reconhecimento do
sujeito dentro dessas formas, são parte de um modelo de sujeito adequado ao humanismo
burguês. Halberstam (2020) retoma essa assertiva na discussão sobre o fracasso, e dialoga
com Benjamin, sobretudo em sua crítica à ideia de progresso. Cabe lembrar que o conflito
estrutural de Inferninho é a possibilidade de demolição para dar lugar ao estacionamento
de um centro de entretenimento futurista. O espaço decadente do bar coloca-se como uma
peça que atrapalha o andamento de uma obra em que capital e futuro caminham juntas. O
fracasso interrompe a reprodução das formas normativas do sucesso, ou do futurismo
reprodutivo de que fala Edelman (2004; 2021), e conecta-se com outros modos de pensar
o tempo, a história e a transmissão de informações.
A imagem que Benjamin (2012) utiliza para descrever o progresso é a de uma
tempestade que impele o anjo da história para o futuro, enquanto um amontoado de ruínas
cresce até o céu. Para ele, a “ideia de um progresso da humanidade na história é
inseparável da ideia de seu andamento no interior de um tempo vazio e homogêneo”
(BENJAMIN, 2012, p.249). Essa temporalidade vazia, em consonância com a ideia de
um tempo linear e produtivo do sucesso e do progresso, entra em atrito com a
insuficiência do fracasso. O fracassado corre em outra velocidade, desvia a rota, esquece
o caminho, chega em último lugar, anda em círculos. Considerar o fracasso como um
modo de habitar o mundo implica, também, pensar em outras temporalidades possíveis.
113

O progresso aparece em Inferninho como uma ameaça latente, uma força


materializada no parque futurista e que é capaz de remover e destruir o bar. Em
contraposição ao tempo linear, evolutivo, que empurra os sujeitos para o futuro, o bar
Inferninho oferece (para os clientes e para os espectadores) uma atmosfera suspensa,
lenta, como que deslocada do tempo do mundo. O tempo na diegese orienta-se de maneira
cíclica, como o tempo do mito. Em termos narrativos, isso é expresso na lassidão a que
os frequentadores do bar estão entregues e no retorno de Deusimar, que reencena o
começo do filme. A primeira cena do longa apresenta o conjunto de clientes, enquanto a
cantora Luizianne interpreta a canção Anjo de Guarda, da banda de forró Mastruz com
Leite. Diferente do tom dançante do forró, Luizianne entoa a canção de modo lento,
melancólico, acompanhada apenas do teclado. O bar é mostrado nessa mesma atmosfera
lenta, monótona, improdutiva, em que os personagens estão entregues à inutilidade, como
uma concepção onírica do tempo e do espaço. O evento é interrompido pela entrada de
Jarbas, o Marinheiro, uma interrupção que traz ruído a esse tempo do eterno presente, ou
um tempo do agora, para usar um termo de Benjamin (2012). A presença de Jarbas dispara
a narrativa, em parte pela inserção de um elemento inédito na repetição perene, como
também pela relação amorosa com Deusimar.
A cena final do filme apresenta o mesmo movimento. Após uma viagem pelo
mundo com o dinheiro da venda do bar, Deusimar retorna ao bar e encontra o mesmo
movimento do começo. O bar, que ela esperava ser agora um estacionamento, continua
funcionando. No balcão, está Jarbas. A mulher é recebida como uma estrangeira, ou como
uma estrela de cinema. Coelho ensaia um tipo de reconhecimento, como se a tivesse visto
em algum filme. Deusimar entra no Inferninho como que esquecida pelos companheiros,
ou como se nunca estivesse vivido ali. Apenas ela lembra do espaço que fora sua casa por
toda a vida. Agora, contudo, o cenário está invertido: é o marinheiro que ocupa o balcão,
e ela que entra como um elemento estrangeiro e deslocado. O tempo perde força linear
com o retorno de Deusimar, torna-se cíclico e heterogêneo, com mais camadas de
temporalidade. O retorno aponta para uma ideia de recomeço, um modo de pensar a utopia
sem condicioná-la à reprodução futuro evolutivo e exitoso.
O esquecimento, para Halberstam, é peça importante na reconfiguração de uma
outra lógica de relações que não a lógica geracional, garantida a partir de uma transmissão
familiar. Deusimar é uma mulher transgênero e repete o lugar da mãe e da avó no
comando do bar. O retorno da viagem, encenado no final do filme, reposiciona a
personagem nessa rede de relações. A ideia de transmissão é interrompida em favor de
114

outra forma de pertencer àquele espaço. Deusimar retorna ao bar e é atendida pelo Coelho,
que demonstra não lembrar da mulher, e é convidada a entrar, a tomar parte daquele
mundo, a compor a coleção artificial e dessemelhante de frequentadores do Inferninho.
Adotar o esquecimento pode ser um modo de perturbar a ordem da transmissão edipiana
(HALBERSTAM, 2020)25.
Desconectar o processo geracional da força do processo histórico é um projeto do
tipo queer: vidas queer buscam desatrelar mudança de formas supostamente
imutáveis e orgânicas de família e herança; vidas queer exploram algum potencial
para diferença na forma que permanecem adormecida na coletividade queer, não
como atributo essencial da alteridade sexual, mas como possibilidade embutida na
dissociação de narrativas de vidas heterossexuais (HALBERSTAM, 2020. p. 109).

Os personagens de Inferninho exploram essa descontinuidade na ideia de


transmissão e reprodução, ao mesmo tempo que são capazes de imaginar formas outras
de produzir filiações, laços familiares e modos de habitar os espaços. A viagem de
Deusimar, a projeção das paisagens, o retorno e o esquecimento podem ser entendidas
como fissuras no tempo e no espaço. Trata-se de uma ruptura com a ideia disciplinar de
um tempo linear e causal. Do mesmo modo, o bar Inferninho é capaz de atrasar o
desenvolvimento da cidade e a ideia de progresso. Do ponto de vista financeiro, o bar não
é rentável e Deusimar enfrenta problemas com dinheiro durante todo o filme. Ainda
assim, a existência do bar interrompe a velocidade de um empreendimento maior,
futurista, lucrativo e predatório.
Inferninho explora essa dimensão do fracasso, em que um bar pouco rentável
interrompe, momentaneamente ou não, o fluxo do progresso e do êxito. Ao mesmo tempo,
essa dimensão do fracasso ocupa os corpos dos personagens, e manifesta-se na lassidão e
melancolia a que se entregam nos momentos de lazer. O fracasso trona-se um modo de
agência política na medida em que interrompe a reprodução de formas inteligíveis e
disciplinares de vida, seja o capital, seja a ideia de uma identidade reconhecível e
atribuída a um corpo. Ao dar vida a existências precárias, artificiais e ininteligíveis,
Inferninho aponta para a possibilidade de uma multidão de corpos possíveis.
Os sujeitos monstruosos em Inferninho fracassam em tornar-se matéria a partir
das expectativas e demandas de um sujeito social identificável, que ocupa um estatuto
social determinado e que reproduz as formas culturais vigentes. Ao insistir no fracasso,
na lentidão, no tempo anacrônico, os personagens de Inferninho comportam-se como

25
Em outro trabalho (HALBERSTAM, 2018), o autor analisa a transmissão geracional no que toca pessoas
transgênero.
115

Bartleby, o personagem de Herman Melville (2017). Diante da possibilidade do


progresso, do sucesso e do êxito, ou da identidade e das relações reconhecíveis, os sujeitos
monstruosos “preferem não”. Os personagens param, demoram, viajam, retornam,
esquecem, fracassam.
Ao fracassar em tornar-se matéria, toda uma sorte de modos outros da relação
entre corpo e relações de afeto e de identificação são expostas. Butler (2019a) utiliza o
termo “matéria” a partir dos múltiplos significados em inglês da palavra matter, que pode
significar materializar-se, importar ou tornar-se objeto de uma discussão. A tradução em
português atém-se a um único sentido: o livro Bodies that matter foi traduzido como
“Corpos que Importam”. Tornar-se matéria implica, simultaneamente, a materialidade do
corpo, sua potência política e sua presença nos debates coletivos. Os modos normativos
em que os corpos tornam-se matéria garantem que eles estejam dentro do escopo do
discurso político. Os sujeitos que não materializam-se de acordo com as expectativas da
norma, ou seja, que fracassam em tornar-se matéria, são codificados como abjetos.
Em Inferninho, os corpos fracassam nessa materialização, fracassam na
capacidade de serem decodificados dentro de esquemas prévios de enquadramento. Em
um movimento contrário, os corpos aludem ao artifício e a um tipo de invenção que está
sempre impedindo a ligação semiótica entre matéria e significado, entre aparência e
essência, entre corpo e identidade. Os personagens de inferninho fracassam em tornar-se
matéria, em produzir um corpo humano e reconhecível, e ainda assim, estão ali, vivem e
produzem formas de estar juntos e de habitar o mundo.
116

4 O MONSTRO CONTRA O ESTADO: RELAÇÕES DE PARENTESCO E


HETEROTOPIAS

Arrependido eu seria aceito, e com atestado de saúde, do contrário


nunca (Ensaio sobre a puberdade, Hubert Fichte).

Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O


Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver
civilizado. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas
senzalas, mas não que o negro já viesse contaminado. Foram os
senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das
senzalas (Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre).

4.1 OS MODOS À MESA

Em uma das cenas iniciais de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra,
2017), Ana (Marjorie Estiano), a patroa branca e grávida, é observada pela empregada
Clara (Izabél Zuaa), uma mulher negra recém contratada. As duas mulheres são jovens e
aparentam ter idades aproximadas, algo em torno de 28 ou 30 anos. A cena apresenta o
assoalho no qual se movem as duas personagens, em uma relação patroa-empregada cuja
assimetria é acentuada nos momentos iniciais do longa-metragem, antes que estas
fronteiras sejam atravessadas no desenrolar da narrativa.
Clara mantém-se em pé e observa a patroa. Ana senta-se sozinha na grande mesa
de jantar, na sala de um apartamento espaçoso e luxuoso. O momento denota certa tensão,
como se o jantar preparado por Clara estivesse sendo avaliado pela patroa. A cena faz
lembrar o quadro Um Jantar Brasileiro (1827), de Jean-Baptiste Debret (Figura 12), em
que vemos um casal branco disposto em uma mesa de jantar, rodeado por cinco pessoas
negras escravizadas, entre as quais estão duas crianças despidas. Uma mulher, no canto
esquerdo da mesa, abana o casal, enquanto dois homens situam-se um pouco mais
afastados, os braços cruzados, observando a família.
A mesa de jantar destoa do fundo acinzentado da pintura, sobretudo por conta das
cores das roupas do casal e da diversidade de alimentos dispostos sobre a mesa. Trata-se
de uma crônica de costumes do Brasil colonial nos anos seguintes à chegada da família
real portuguesa, na primeira década do século XIX, pelo menos 200 anos antes dos fatos
narrados pelo filme de Rojas e Dutra. Além da disparidade de posicionamento no quadro
pintado entre os brancos fidalgos e os negros escravizados, bem como a distinção entre
as roupas e calçados, chama a atenção o uso de talheres por parte dos senhores. O hábito
117

denota as devidas distinções econômicas do período colonial, uma vez que o uso dos
utensílios era privilégio de famílias ricas. Além disso, marca a entrada de uma cultura da
corte, uma cultura dita civilizada, na maior das colônias portuguesas26.
A chegada da corte e de seu séquito adiciona um novo patamar no gradiente social
da colônia, com hábitos europeus, que aparecem na iconografia do período, em especial
na obra de Debret. A distinção não se deve apenas à posse de cinco pessoas escravizadas,
mas, e sobretudo, à ornamentação dos hábitos cultivados a partir de instrumentos
refinados, como os talheres e os modos europeus à mesa, impossíveis aos negros cativos
e à população pobre não escravizada que ocupava o solo brasileiro. Esses hábitos eram
inscritos no corpo de modo performativo, em detrimento dos modos como o corpo dos
escravizados era entendido na colônia. O refinamento, bem como o acesso à linguagem e
à corporeidade aristocrata, traçam as visíveis linhas de classe e raça, e também reforçam
um gradiente de humanidade a partir de uma equação que inclui termos como civilizados
e incivilizados, espaço e técnicas corporais.

Figura 12 - Um Jantar Brasileiro, Jean-Baptiste Debret, 1827.


Fonte: Wikipédia / Domínio Público.

26
Cf. Schwarcz & Starling, 2015.
118

Não parece coincidência que as cenas inicias de As Boas Maneiras evoquem a


iconografia referente ao período colonial. O filme, como um todo, rememora
continuamente elementos da herança colonial brasileira, em que raça e classe são
atravessamentos contínuos. O título do filme denota um fio que percorre as ações dos três
personagens principais, Ana, Clara e Joel (Miguel Lobo), o lobisomem gerado no ventre
de Ana e adotado por Clara. Os bons modos, como veremos, parecem ser um artifício de
sobrevivência para os personagens transgressores, mas também um marcador biopolítico
que constantemente age sobre os corpos e os espaços no filme. A discussão que quero
desenvolver nesse capítulo é a de que as boas maneiras do título encarnam um duplo
estatuto de circulação das vidas precárias e monstruosas. Por um lado, é o aprendizado
dos modos civilizados da cultura que mantém possível a circulação dos corpos, como um
artifício de docilização e negociação com os elementos hegemônicos do poder. Ao mesmo
tempo, as boas maneiras traçam a linha divisória ultrapassada pelo monstro. Os modos à
mesa mostram-se um complexo modelo que relaciona interdição e transgressão,
notadamente no que diz respeito à comida e ao erotismo.
Na cena mencionada, a empregada veste um avental sobre a roupa, enquanto a
patroa usa um tipo de colete de pele por cima da blusa. No diálogo entre as duas, Ana
narra que, quando adolescente, fez cursos de etiqueta para moças, que, segundo ela, não
parecem ter surtido efeito. Ainda que rica e vivendo em um apartamento de classe média
alta, a personagem parece pouco afeita aos protocolos de comportamento e aos modos de
gestão de uma casa. A partir dali, a patroa determina que Clara passe a fazer as compras
para a casa, adicionando mais uma ocupação à funcionária. Clara foi contratada como
babá, mas já de início começa a trabalhar com os cuidados da casa e serviços diversos,
como montar o berço e pintar uma parede, tornando nítidas as relações de mais valia do
trabalho doméstico. O jantar ocorre durante uma noite de lua cheia, vista pela janela do
apartamento. Após acender a lareira da sala, Clara despede-se da patroa e é mostrada na
“dependência de empregada”, um quarto de dimensões reduzidas e que contrasta com os
espaços amplos do resto da casa. Da cama, ela escuta ruídos indistintos, que anunciam o
sonambulismo da patroa nas noites de lua cheia.
Corpo e espaço são constantemente tensionados na obra, como instâncias que
reproduzem mecanismos disciplinares. A primeira cena do filme, por exemplo, mostra
Clara chegando ao prédio e sendo orientada pelo porteiro a dirigir-se ao elevador de
serviço. As Boas Maneiras organiza um conjunto de signos relacionados ao espaço, com
destaque para a dependência de empregada, ao redor dos quais os elementos disciplinares
119

operam. Os eventos que ocorrem nos espaços domésticos e privados são organizados a
partir uma divisão estrutural dos corpos. Não à toa, as primeiras cenas do filme dispõem
as duas personagens de modo similar ao quadro de Debret, como um ponto de partida
para as tensões ligadas ao horror e ao fantástico que ocorrem no filme.
Como veremos, a relação entre Ana e Clara, junto à aparição do monstro, abre
fissuras nessa estrutura disciplinar, como um modo de subverter a interioridade da
espacialização da norma. Para Foucault (2013; 2013a), espaços são constituídos a partir
de um conjunto de relações: o sujeito vive em espaços recortados, matizados, com zonas
claras, zonas sombrias e diferenças de nível (FOUCAULT, 2013). Para o filósofo, as
práticas cotidianas relativas ao espaço não foram totalmente dessacralizadas, como
ocorrido com a noção de tempo na modernidade. Os espaços são organizados a partir de
distinções e posicionamentos dados como naturais, alguns intocáveis. Esse modo sacro
de pensar os espaços reflete a ação do biopoder na produção de corpos e de sujeitos. Os
exemplos são frequentes na obra foucaultiana: presídios, hospitais, escolas, o quarto
conjugal. Todo um aglomerado de dispositivos que demonstram que não vivemos dentro
de um vazio, mas sim “no interior de um conjunto de relações que definem alocações
irredutíveis umas às outras, e absolutamente não passíveis de sobreposição”
(FOUCAULT, 2013a, p.115).
E, talvez, nossa vida ainda seja comandada por um certo número de oposições
nas quais não se pode tocar, e que a instituição e a prática até agora não ousaram
atacar: oposições que admitimos como inteiramente dadas - por exemplo, entre
o espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social,
entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazeres e o espaço de
trabalho; todas elas são animadas ainda por uma surda sacralização
(FOUCAULT, 2013a, p.114).

Essa sacralização, manifesta tanto no quadro de Debret quanto em As Boas


Maneiras, posiciona os sujeitos em funções sociais que os precedem. Há um conjunto de
expectativas que Clara deve cumprir ao ser contratada como babá que remontam
historicamente aos sujeitos escravizados no Brasil colônia. O modo como os espaços
sociais são elaborados é coercitivo aos sujeitos, e perturbar essa ordem implica
constrangimentos e punições. A relação entre Ana e Clara movimenta-se nesse espaço
disciplinar em uma economia de tensões em que a norma é, simultaneamente, acionada e
subvertida. Os papéis sociais, notadamente classe, gênero, sexualidade e raça, são
negociados e perturbados nessa relação disparada pela monstruosidade.
O que quero argumentar é que, a partir da transgressão e do monstro, os espaços
coercitivos são transformados em zonas de proteção, em que podem florescer outras
120

formas de vida que não as normativas. A hipótese que quero desenvolver neste capítulo
é a de que As Boas Maneiras repensa a norma e produz práticas outras de parentesco e de
habitação no interior dos espaços de exclusão. Essas práticas imaginam modos de vida
criativos em que o monstro pode sobreviver e produzir laços de afeto, de família e de
proteção que organizam-se à revelia das estruturas do Estado. Nessa relação, na verdade,
o Estado surge como um dispositivo antagônico. A produção de relações de parentesco e
de habitação ocorrem em um processo de imaginar comunidades a partir de fissuras nos
espaços disciplinares. Interessa-se pensar a criação de heterotopias como modos de
resistência e de invenção de modos de vida.
Foucault está interessado em pensar esses espaços heterogêneos, que ele nomeia
heterotopias: “espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam
efetivamente localizáveis” (FOUCAULT, 2013a). Trata-se de espaços de reclusão, de
suspensão da ordem, como modos de lidar com as crises e os desvios. As heterotopias
funcionam em uma temporalidade específica, que destoa do tempo regular de uma
sociedade, como um tipo de hiato no espaço-tempo, em que relações outras ocorrem em
“espaços outros”, como indicado pela etimologia do termo. O autor cita instituições como
casas de repouso, prisões e clínicas psiquiátricas como exemplos de heterotopias, ainda
que estas possam variar nas sociedades. A partir da noção de heterotopia, é possível
entender o deslocamento das personagens de As Boas Maneiras pelo espaço circunscrito
do apartamento. Como dito, há uma economia de tensões em que a regularidade
disciplinar é matizada pelas fissuras produzidas pela relação entre Clara e Ana.
Paul Preciado (2010; 2012) parte das discussões de Foucault para discutir como a
arquitetura torna-se um instrumento disciplinar, sobretudo a partir das reformas urbanas
ocorridas na Europa no século XIX. A arquitetura desponta nesse processo como um
dispositivo político-sexual, que reforça a naturalização da diferença sexual e das
identidades sexuais e de gênero, sobretudo no que concerne às transformações na
intimidade27. Essas estruturas reafirmam os espaços de reprodução e circulação
heterossexual, bem como a herança arquitetônica (sacralizada, nos termos de Foucault)
de espaços destinados a homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, brancos e
negros, ricos e pobres etc. Em suma, “criando quadros de visibilidade, permitindo ou
negando acesso, distribuindo espaços, criando segmentações entre público e privado”
(PRECIADO, 2010, p. 128). Para o filósofo:

27
Cf. Giddens, 1993.
121

Esse modelo biopolítico nos permite examinar a história da arquitetura moderna


em relação ao processo de colonização e desenvolvimento capitalista, e à
invenção de sujeitos generificados, sexualizados e racializados. As tipologias
urbanas modernas e sua relação com a higiene e a antropometria, a arquitetura
disciplinar da fábrica, prisão, hospital, escola, bordel e asilo, juntamente com o
nascimento do boudoir e espaços domésticos para a heterossexualidade e para a
reprodução, são apenas algumas das formas mais emblemáticas da arquitetura
biopolítica moderna (PRECIADO, 2012, p. 124).

Em As Boas Maneiras há uma disposição de elementos espaciais que reforçam os


espaços disciplinares e a produção de zonas de visibilidade e invisibilidade. A assimetria
entre centro e periferia é marcada pelo deslocamento de Clara do subúrbio para um bairro
de classe alta no centro da cidade. Na periferia em que morava, Clara alugava um quarto
pequeno e precário nos fundos de uma casa. Quando passa a trabalhar para Ana, instala-
se no quarto destinado à empregada doméstica, comum nos apartamentos de classe média
— a peça é um elemento arquitetônico recorrente na construção civil brasileira em
residências de classe média e alta.
Além dessa assimetria entre centro e periferia, gostaria de destacar o modo como
o filme elabora uma noção de paisagem artificial, que faz eco aos espaços internos do
apartamento onde a trama ocorre. A paisagem em As Boas Maneiras remete a uma
iconografia excessiva, ligada ao artifício e ao camp, como visto nas imagens da lua, ou
em cenas externas, em que São Paulo é mostrada vazia e insólita. Outros elementos
corroboram com essa caracterização camp dos espaços: a decoração do apartamento, o
shopping em formato de uma pirâmide espelhada, o quarto na periferia, para onde Clara
retorna após a morte de Ana.
O recurso ao camp manifesta uma sensibilidade relacionada ao que é
“marcadamente atenuado e ao fortemente exagerado” (SONTAG, 1964), em que o real é
artificializado a ponto de tornar-se paródico. Nesse sentido, os cenários marcadamente
camp do filme parecem tensionar o real a partir de paisagens artificiais, que elaboram
uma atmosfera fantástica no filme. O exagero nas paisagens e nos cenários tornam os
contornos e as fronteiras espaciais mais nítidas. O excesso e o artifício na decoração, nas
cores, na atmosfera claustrofóbica do apartamento tornam mais nítidas as delimitações
que separam os corpos por classe e raça. O apuro visual que cria os espaços fomenta uma
sensação insólita, endossada pela ameaça constante da monstruosidade.
Cabe dizer que as performances das personagens não acompanham totalmente a
estética excessiva dos elementos visuais do filme. Ainda que o filme entrelace horror e
melodrama, com inserções musicais e de animação ao longo da obra, as duas personagens
122

movem-se pela trama de modo mais soturno. Especialmente Clara, a protagonista, que é
mostrada como uma mulher lacônica, séria, e algumas vezes incomodamente silenciosa.
Como discuto a seguir, o modo como as duas personagens são dispostas na narrativa
destoa da caracterização dos espaços, como se elas não aderissem totalmente ao cenário.
O contrário, por exemplo, ocorre em Inferninho, em que o bar escuro e encardido parece
oferecer um espaço confortável em que os personagens podem aderir e confundir-se.
É possível entender o camp, neste caso, como um modo de acentuar a atmosfera
artificial do filme, como uma moldura dentro da qual os elementos insólitos se
desenvolvem. Os planos, os detalhes, a paisagem e a mise em scène são modos de
corroborar o artifício no filme. Do mesmo modo, a decoração do apartamento de Ana: a
lareira, o papel de parede azul, a cabeça de touro ornando uma parede. A atmosfera camp,
que remete ao frívolo, sublinha as relações humanas do filme, não como uma maneira de
torná-las metafóricas, mas como um modo de colocar as imagens entre aspas (SONTAG,
1964) ou sob rasura (PRYSTHON, 2015).
A caracterização dos espaços torna evidente a ação do poder e dos mecanismos
disciplinares que vigiam as relações sociais no filme, especialmente na primeira metade
do longa, que ocorre quase inteiramente dentro do apartamento. As fronteiras são bem
demarcadas e há constante menções à herança escravista brasileira, como o elevador de
serviço e a dependência de empregada, espaços destinados a Clara. Trata-se de ambientes
externos ao espaço comum, ainda que acoplados a eles, e que produzem invisibilidades
contíguas aos sujeitos. O artifício e o camp sublinham essa estrutura de produção de
invisibilidades a partir de sua extensa visibilidade. O excesso e o artifício, as cores, os
detalhes, todos esses “frufrus desnecessários” (PRYSTHON, 2015), intensificam a tensão
entre invisibilidade e visibilidade. Os corpos das personagens transitam nesses espaços
em constante negociação com as fronteiras e os marcadores estruturais da diferença.
123

Figura 13: Cenários de As Boas Maneiras. Em sentido horário: o apartamento de Ana, a rua e o quartinho
de Clara na periferia.
Fonte: Fotogramas de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017)

A estetização do par corpo-espaço aponta também para a artificialidade dessa


“sacralidade muda”, que Foucault aponta. As fronteiras que separam os corpos a partir de
marcadores sociais da diferença deixam de ser linhas sutis e invisíveis. Em vez disso, os
limites espaciais tornam-se vívidos, coloridos e excessivos. Tornar nítidos esses
mecanismos de distinção dos sujeitos e dos corpos evidencia, também, as fissuras na
norma, espaços ocupados pelo monstro, como esconderijo ou como habitação. A presença
do monstro em As Boas Maneiras não destitui a norma de seu poder, mas é capaz de
evidenciar, ou colocar sob rasura, os modos como a norma opera.
O deslocamento da periferia ao Centro, e vice-versa, passa por uma ponte sobre
um rio, dividindo São Paulo em duas cidades imaginárias e distintas. Ainda que os
espaços acentuem o artifício e o insólito na trama, a presença do monstro não é um
elemento que distorce a noção de real. Do ponto de vista dos personagens, a
transformação em monstro de Ana e, mais tarde, de seu filho Joel, não acentuam um
caráter de encantamento daquela realidade. A existência do monstro é testemunhada
unicamente por Clara. A personagem não parece perturbada pela existência do monstro
em si. Ainda que incomuns, não me parece que os elementos fantásticos a surpreendam
ou distorçam a noção de realidade para ela.
Do ponto de vista do espectador, a relação entre Clara e os monstros (Ana e,
posteriormente, Joel) não é de todo surpreendente, sobretudo porque a atmosfera camp
124

do filme endossa a expectativa dos elementos de horror. As Boas Maneiras faz referências
a elementos conhecidos do cinema de horror e de fantasia, como o conto de fadas A Bela
e a Fera e suas numerosas adaptações. A gramática tradicional do cinema de terror e
horror, no entanto, sugere um conjunto de reações possíveis aos elementos monstruosos.
Para Carrol (1999), os personagens das obras de horror induzem os modos como o
espectador deve reagir ao monstro. De modo geral, as emoções dos personagens refletem
uma moral ou um conjunto de valores que são acionados para responder emocionalmente
aos elementos monstruosos. Para o autor, as reações dos personagens humanos nas
narrativas “fornecem, pois, uma série de instruções, ou melhor, de exemplos sobre a
maneira como o público deve responder aos monstros da ficção — ou seja, sobre a
maneira como devemos reagir às suas propriedades monstruosas (CARROL, 1999, p.33).
O modo como Clara reage aos monstros não sugere antagonismo ou algo que
perturbe a noção de mundo. No universo em que o filme ocorre, monstros e qualquer
outro elemento insólito deveriam ser interpretados como algo sobrenatural e que perturba
os sentidos do mundo conhecido. A falha na ordem que o monstro causa não perturba
Clara. O medo inicial dá lugar a um tipo de filiação amorosa que é capaz de produzir
novos tipos de relações familiares. Antes de interferir na ordenação racional do mundo, a
presença do monstro é fator de maior adesão de Clara ao mundo — a um tipo de mundo
específico forjado a partir desse encontro. Trata-se da possibilidade novos arranjos nas
relações sociais dispostas na narrativa.

4.2 SANGUE RUIM

Antes de seguir, gostaria de apresentar uma visão geral do filme As Boas


Maneiras, a fim de situar o leitor nos eventos da narrativa. O longa-metragem divide-se
em duas partes de duração paritária. A primeira começa com a contratação de Clara por
Ana, grávida, com a barriga proeminente. Ana é uma jovem de 29 anos, descendente da
elite agrária goiana. A gravidez é fruto de um adultério, que ocasionou o fim de um
noivado e a viagem à São Paulo, onde ela deveria abortar o filho, por insistência do pai.
A jovem opta por não interromper a gravidez, à revelia do desejo paterno. O desacordo
quanto ao aborto a deixa isolada, sem comunicação com a família, lidando sozinha com
a gravidez no espaçoso apartamento.
A biografia de Clara é menos detalhada no filme. A mulher apresenta ter idade
similar à de Ana, é negra e lésbica. Devido à personalidade lacônica, pouco é revelado de
125

seu passado e de sua origem. Sabe-se que morava na periferia da cidade e alugava um
quarto dos fundos na casa de dona Amélia (Cida Moreira). O curso de técnica de
enfermagem ficou incompleto diante da necessidade de cuidar da avó falecida, único
membro da família mencionado, mostrada brevemente em um porta-retratos.
A primeira parte do filme ocorre em um passado recente, por volta do ano de 2010.
Poucos elementos, como os telefones celulares contextualizam a data. A segunda parte
salta sete anos no tempo e aparenta ocorrer no ano corrente ao que o filme foi lançado,
2017. Essa demarcação temporal é pouco determinante na narrativa, e a passagem dos
anos é explicitada pelo envelhecimento dos personagens.
A primeira metade de As Boas Maneiras acompanha os meses finais da gravidez
de Ana e o desenrolar de uma relação amorosa com Clara. A trama concentra-se nas duas
personagens e ocorre quase exclusivamente dentro do apartamento. Em uma noite, Ana
conta a Clara a história de sua gravidez. A narrativa é mostrada como um flash back em
desenhos dispostos sequencialmente, como quadros de gravuras. Ana, que era noiva,
conhece um homem desconhecido em um bar, com quem tem uma única relação sexual,
dentro do carro, em uma área de floresta afastada da cidade.
Durante a noite, Ana adormece no carro. Quando acorda vê-se sozinha, o homem
havia desaparecido. A jovem percebe um animal selvagem rondando o veículo, pronto a
atacar. Ana atira no bicho, que foge, aparentemente ferido. Ela conta que na cidade
ninguém sabia quem era o homem. Pela imagem, o espectador toma conhecimento de que
se trata de um padre. Essa noite resultou na gravidez e no posterior rompimento com o
noivo. A família também cortou contato com a jovem, após a recusa dela em interromper
a gravidez.
A relação patroa-empregada entre Ana e Clara torna-se um relacionamento
amoroso e sexual, parte maternal, parte predatório. Clara passa a ocupar distintos papéis
em relação a Ana: amante, cuidadora, mãe, empregada. Essa miríade de atribuições
espelha as relações profissionais, como vimos, pois Clara é contratada como babá e
desdobra-se em outras funções domésticas. Em parte, é possível afirmar que a relação
entre as duas reencena as relações coloniais entre senhores e mulheres escravizadas. Essa
comparação pode ser percebida na noite em que Ana ataca Clara.
Nas noites de lua cheia, Ana metamorfoseia-se em um monstro sonâmbulo ávido
por carne e sangue. O corpo da jovem não sofre mudanças nítidas, exceto pelos olhos
amarelados, semelhantes aos olhos de um lobo, e a avidez por comer carne crua. Em uma
dessas noites, ela ataca Clara, em uma cena de crescente ambiguidade entre violência e
126

erotismo: a empregada flagra a patroa sonâmbula buscando carne na cozinha do


apartamento. Ao aproximar-se, Clara é cheirada e beijada por Ana, um beijo lascivo, que
transforma-se em uma mordida que arranca sangue dos lábios de Clara.
A partir daí, a relação entre as duas caminha para um romance marcado por
intensidade sexual e pelo cuidado. O relacionamento torna-se possível apenas nessa
circunstância limite, em que as duas mulheres estão encerradas no espaço disciplinar do
apartamento e interpeladas, cada uma a seu modo, pelos marcadores de classe, raça,
gênero e sexualidade. Nesse sentido, ainda que mantenha o acentuado caráter colonial, a
relação intensifica os pontos de filiação, abertos pelo erotismo e pelo desejo. O amor que
Clara sente por Ana será expresso em momentos futuros da narrativa, como um luto que
a personagem alimenta por anos.
A primeira parte do filme termina em uma noite de lua cheia. Uma festa junina
acontece na cidade e Ana entra em trabalho de parto. O ventre da jovem é dilacerado pelo
filho, um lobisomem filhote, que nasce enrolado no cordão umbilical. Possivelmente, se
a noite não fosse de lua cheia, nasceria um bebê humano, em um parto convencional,
talvez acompanhado por um médico. O nascimento, contudo, ocorre durante a
transformação do feto em monstro, que vem ao mundo de modo violento. O ato ocasiona
a morte da mãe. Diante da cena, Clara foge com a criatura, na intenção de deixá-la no rio
para morrer, mas desiste e retorna com ele para a periferia. O nome do recém-nascido é
Joel, como anteriormente escolhido por Ana. A cena espelha a ação anterior de Ana que,
ao desistir de realizar o aborto, permite a gestação do filho-lobisomem.
A segunda parte ocorre sete anos depois e mostra Clara e Joel em uma rotina de
mãe e filho. A mulher trabalha na farmácia do bairro e realiza serviços de enfermeira,
enquanto o filho é mostrado como uma criança doce, querida pela vizinhança, de saúde
frágil, restrito a uma dieta vegetariana e proibido de comer carne. A trama começa no dia
do aniversário de sete anos do menino. Uma festa surpresa é organizada na casa de dona
Amélia, senhoria de Clara, que se tornou um tipo de madrinha ou avó do garoto. O
aniversário acontece durante a lua cheia. Ao anoitecer, Joel deve repetir o ritual mensal
de ser trancado e acorrentado no “quartinho”, um cômodo nos fundos da casa, escondido
por um guarda-roupas, e fechado por uma sólida porta de ferro. Durante a noite, o menino
transforma-se em um lobisomem, e é mantido escondido pela mãe no processo.
O ritual termina ao amanhecer. Joel é mostrado ainda sonolento, pouco ciente do
que ocorrera durante a noite. O garoto sabe de sua condição monstruosa e não questiona
a necessidade do quartinho e das correntes que o prendem durante a noite. A cena mostra
127

o garoto com o corpo coberto de pelos, enquanto a mãe o limpa com um barbeador. A
transformação em lobisomem acaba pela manhã e a criança pode retomar às atividades
corriqueiras. A docilidade de Joel é interrompida quando fica aos cuidados de dona
Amélia e come carne pela primeira vez. O ato denota uma desobediência em relação às
orientações da mãe e o garoto come a carne com bastante voracidade. Esse evento
desperta a natureza monstruosa do menino, até então restrita aos dias de lua cheia e
controlada pelas correntes do quartinho.
Os eventos da segunda parte do filme ocorrem em uma única semana, durante os
dias em que Joel transforma-se em lobisomem. O consumo de carne torna Joel agressivo
e desperta nele o desejo de conhecer o pai, de quem ele não tem informações. Essa
vontade, insuflada pela interioridade monstruosa, leva o menino a escapar do ritual do
quartinho em duas ocasiões. Na primeira, o garoto, na companhia do melhor amigo,
Maurício, sai do bairro na periferia em direção ao centro da cidade, no intuito de encontrar
o pai. As duas crianças atravessam a cidade em direção ao shopping luxuoso em forma
de pirâmide que é mostrado no começo do filme. Joel e Maurício ficam presos dentro do
shopping e, quando anoitece, Joel transforma-se em lobisomem e mata o melhor amigo.

Figura 14: Joel acorrentado no quartinho antes da transformação e na manhã seguinte, quando a
metamorfose tem fim.
Fonte: Fotograma de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017).

No dia seguinte à morte de Maurício, Joel demonstra não lembrar o que aconteceu.
A natureza monstruosa do garoto, no entanto, continua ativa. Ele consegue trancar a mãe
no quartinho e foge de casa para participar da festa junina da escola. Na quadrilha, estão
os colegas do colégio, as famílias e os professores, todos vestindo as fantasias juninas. O
desejo de Joel é dançar com Amanda, uma colega de turma com quem ele performa um
tipo de namoro infantil. Durante a dança, quando anoitece, a criança começa a
transformação em lobisomem — a camisa xadrez rasgando conforme o braço peludo e as
garras de lobo despontam sob o tecido. Joel fere a mão de Amanda com suas garras e
128

prepara-se para atacar a menina. O ato é interrompido por Clara, que consegue escapar
do quartinho. A mãe do garoto chega na festa e atira no filho-lobisomem e impede que o
que ocorreu com Maurício se repita com Amanda.
A transformação pública de Joel em lobisomem dispara uma reação da pequena
sociedade ali reunida. O grupo que estava na festa organiza-se rapidamente em uma
multidão disposta a capturar ou destruir o monstro que atacou Amanda. Clara consegue
pegar o filho-lobisomem ferido e levá-lo para casa, na tentativa de protegê-lo da multidão
violenta. Retornarei a essa cena no tópico final desse capítulo, onde discutirei a força
purgatória do linchamento em relação ao monstro. Por ora, gostaria de me deter em alguns
aspectos da relação parental de Clara e Joel, notadamente a partir de alguns signos que
circulam no filme que conectam os dois personagens.
O filme desenha um paralelo entre as paisagens artificiais e as relações entre os
três personagens centrais na obra — Clara, Ana e Joel. Como dito, o artifício e o excesso
tornam nítidos os contornos dos espaços biopolíticos e os marcadores espaciais da
diferença. Ao mesmo tempo, há a possibilidade de fissuras e linhas de fuga na imaginação
e produção de filiações entre os sujeitos. Quero argumentar que, ao criar espaços de
opressão esteticamente excessivos, que remetem ao camp, o filme chama a atenção para
a artificialidade e arbitrariedade desses marcadores da diferença. A saturação das cores,
que faz os cenários terem um aspecto onírico e fantasioso, abre espaço para uma
desnaturalização e um estranhamento da norma. A contraparte disso são as relações
vivenciadas por Clara, codificadas duplamente como fora da norma social
(relacionamento homossexual entre duas mulheres de raça e classe distintas) e fora das
leis da natureza (ser mãe de um lobisomem).
A transgressão que essas relações fomentam não anulam a norma e não fazem
parte de um projeto bem elaborado de revolução. Outros personagens monstruosos, por
exemplo, agem de modo transgressor a partir de um projeto ou desejo de destituir ou de
se apropriar de determinado status quo, como o caso de Drácula, no romance de Stoker.
Creio ser importante considerar que a relação entre Clara, Ana e Joel não tenha esse
caráter conscientemente reativo à norma. A filiação entre eles é possível por certa
estrutura que aproxima os três sujeitos. Não se trata de uma vingança ou de um levante,
mas sim da invenção de filiações guiadas pela vontade de estar vivo e de produzir laços
de afeto, seja amor, desejo sexual, cuidado, ou até mesmo violência e luta por liberdade.
A maternidade de Clara é produzida a partir de uma filiação que contraria normas
culturais e normas da natureza. Joel é fruto de um conjunto de transgressões que o
129

precedem, tanto da parte do pai, um padre, quanto de Ana. O menino mata a mãe biológica
ao nascer. O ato encena uma versão diferente das mitologias edipianizadas em que o filho
mata o pai e assume seu lugar. Ao matar a mãe, Joel torna-se um vivente precário e
vulnerável. O pequeno lobisomem é mostrado após o parto como um filhote qualquer,
sujo de sangue, enrolado no cordão umbilical, faminto e desprotegido (Figura 15).

Figura 15: O nascimento de Joel.


Fonte: Fotograma de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017).

Clara resgata Joel e impede que o pequeno lobisomem pereça de fome no


apartamento luxuoso e vazio em que nasceu. A mulher leva a criança recém-nascida para
o quartinho alugado em que vivia, nos fundos da casa de dona Amélia. O plano inicial era
deixar o monstro na beira do rio, com sorte sobreviveria como animal selvagem. Clara
muda de ideia, mesmo com medo, e adota a criança. A motivação da personagem não é
explicada. Anos depois ela é mostrada como uma mãe amorosa e exemplar. Contudo, na
noite do parto não temos certeza se ela manteve Joel consigo por amor a Ana, ou se ela
reconheceu alguma humanidade naquela criatura bestial. Ou ainda, se esse
reconhecimento se deu por compartilhar com o monstro a mesma condição de
precariedade e orfandade. Clara não fora criada pela mãe, mas pela avó. As condições
pessoais e sociais da personagem são marcadas pela vulnerabilidade.
Joel é adotado por Clara na forma de monstro. A mulher leva para casa um bebê
com aparência animal. Possivelmente, a criatura tomaria feições humanas quando a lua
130

cheia passasse. A personagem amamenta o monstro, ainda que não seja sua mãe
biológica. Clara o aconchega em seu seio e a pequena criatura trava os dentes na carne da
mulher e sorve calmamente o sangue de seu corpo. O gesto de Clara torna viável a vida
do monstro, ao mesmo tempo que demonstra que toda vida só persiste em uma rede de
proteção e cuidado. A noção de precariedade em Butler sugere que a prevalência dos
viventes é condicionada por uma interdependência em relação a outros corpos e às
estruturas materiais e sociais disponíveis (BUTLER, 2021). Para a autora, “o
entendimento relacional da vulnerabilidade mostra que não somos completamente
separáveis do que torna nossa vida possível ou impossível” (BUTLER, 2021, p.50).
Quando a estrutura social de que dependemos falha, o vivente é exposto a uma
condição precária e vulnerável. A precariedade parece ser, em Butler, uma condição
comum a todos os sujeitos — todos os corpos que nascem são entregues ao cuidado de
alguém e nenhum corpo pode sustentar-se por si mesmo (BUTLER, 2021). O que Butler
insiste em diversas obras é que a distribuição desigual de precariedade e do direito ao luto
permite que algumas vidas sejam mais viáveis e mais vivíveis que outras. Os sujeitos
emergem em um processo ininterrupto de individuação e este processo não opera em
bases comuns ou paritárias para todos os indivíduos.
Clara e Joel são sujeitos a quem as estruturas sociais não garantem completamente
a manutenção da vida. A adoção do monstro pode ser entendida como esse gesto em que
um corpo recém-nascido é entregue a outro para poder perdurar. Contudo, as condições
em que essa entrega ocorre escapam ao formato conhecido da socialização dos sujeitos,
e escapa, sobretudo, ao modelo normativo de família e de parentesco. Joel não é entregue
aos cuidados de Clara como um indivíduo que nasce dentro de uma estrutura social apta
a reconhecê-lo como sujeito. Tampouco as funções paternas e maternas estão bem
delimitadas e distribuídas entre outros sujeitos. Clara pode ser lida como uma vida
precária — os marcadores de raça, classe, gênero e sexualidade intensificam a
vulnerabilidade social da personagem. Joel é recebido por Clara como um proscrito.
Os processos de sobrevivência e de parentesco são desenvolvidos de modo
paralelo pelos dois. Para ser reconhecido como um sujeito social válido e passível de
acolhimento, Joel deve cumprir o ritual do quartinho. Do mesmo modo, Clara torna-se
uma vizinha reconhecida no bairro, trabalhando na farmácia, prestativa aos moradores. E
nesse sentido a sobrevivência de Clara é parte dessa equação. Ser mãe de um monstro,
sobretudo para um sujeito estigmatizado e vulnerável socialmente, torna Clara tão
131

monstruosa quanto o filho. A engenhosidade de uma vida dupla é o que garante a


permanência dos dois naquela comunidade.
Como dito, no filme, a vida do monstro não denota uma existência reativa ou
opositiva. A transgressão e a subversão da norma ocorrem como consequência da
violência do biopoder, contudo as vidas dos personagens não são definidas nesses termos.
O monstro não é pensado a partir de uma negatividade, como um anti-humano, mas sim
como um modo de vida que perdura a partir da filiação com outros viventes. O monstro
existe a partir da produção intensiva de laços de filiação baseados no desejo de viver e no
afeto. Dito de outro modo, o monstro vive porque constitui uma família.
Os laços de parentesco no filme excedem a concepção estruturalista de que a
família é baseada no tabu do incesto e na diferença sexual. Monstruosidade e família
tornam-se operações análogas que surgem e perduram pelo desejo de estar vivo, pela
filiação das diferenças e pela capacidade de imaginar modos outros de vida. Esses três
fatores permitem que as vidas de Clara e de Joel sejam vidas vivíveis e enlutáveis, para
me ater nos termos de Butler, ainda que, para o Estado, elas sejam vidas descartáveis e
não reconhecidas. O parentesco — a relação mães e filho — desnaturaliza a noção de
família fundada nas noções edipianas de tabu e de proibição e abre espaço para relações
imaginadas a partir de filiações heterogêneas e não antropocêntricas.
Ao discutir a noção de parentesco a partir do estruturalismo, notadamente Lévi-
Strauss e Lacan, Butler chama a atenção para a função normalizadora do tabu do incesto.
A interdição sexual que o tabu sustenta performa uma noção de ato fundador, um modo
em que a cultura interfere na biologia ao mesmo tempo que cria condições para a
existência das normas culturais. A proibição, como a entende Butler, não propõe apenas
um tabu, mas sim a normalização e a naturalização de um modelo de família e de
parentesco em detrimento de outros arranjos possíveis. Esse modelo é calcado na
diferença sexual e na produção de famílias heterossexuais. Para Butler (2022), no entanto,
o tabu do incesto não pode ser entendido como uma condição universal a todas as culturas,
mas sim como um dispositivo de caráter universalista.
Ao atentar para a função normativa e coercitiva do parentesco heterossexual,
Butler aponta para o fato de que alguns arranjos familiares são reconhecidos pelo Estado,
enquanto outros são banidos, proibidos ou simplesmente tidos como inexistentes. Nesse
modelo, a família nuclear torna-se o protótipo de todos os arranjos sociais afetivos. O
reconhecimento pelo Estado de formas outras de parentesco está subordinado aos termos
que legitimam esse reconhecimento (BUTLER, 2002; 2004). A filósofa propõe um
132

conceito de parentesco que vai em uma direção distinta ao modo como o pensamento
estrutural o define:
Entendido como um conjunto socialmente alterável de arranjos, desprovido de
características estruturais culturalmente transversais que poderiam ser
totalmente extraídas de suas operações sociais, o parentesco designa qualquer
quantidade de arranjos sociais que organiza a reprodução da vida material, que
podem incluir a ritualização do nascimento e morte, que proporcionam laços de
alianças íntimas estáveis e, ao mesmo tempo, frágeis, e regulam a sexualidade
por meio de sanções e tabus (BUTLER, 2022, p.125)

Os laços de parentesco tornam-se alianças políticas, maneiras de imaginar modos


de estar junto e de viver a partir da subversão de estruturas disponíveis. A família no filme
estende-se de modo lateral para personagens como dona Amélia, que ocupa um lugar
tangencial de madrinha ou avó. O filme mobiliza um conjunto de signos que endossam
essa relação entre uma comunidade imaginada em detrimento da norma. Há certa tensão
entre os modos que a norma e a disciplina agem sobre os corpos e as fissuras e rotas de
fuga em que os personagens enveredam.
A gravidez de Ana é o resultado de um conjunto de rupturas com signos
masculinos (o padre, o noivo e o pai), e uma constante luta pela ingerência do próprio
corpo. Ainda que o lobisomem e a licantropia sejam temas explorados pelo cinema de
horror, a gestação remete ao folclore brasileiro e a relação entre monstro e transgressão
sexual. A relação com o padre e com a homossexualidade, por exemplo, são temas
recorrentes na descrição de entidades fantásticas. O imaginário sobre a Mula Sem Cabeça
afirma que a transformação de uma mulher no monstro se dá como punição por ela ter se
relacionado com um padre. Um ditado popular brasileiro afirma: “homem com homem
dá lobisomem. Mulher com mulher dá jacaré”. Essas referências compõem o quadro geral
sobre o qual o lobisomem desponta no filme.
Além disso, as figuras masculinas aparecem apenas como sombra, nunca são
materializadas em um personagem. A figura do pai-padre que realiza a transgressão e
desaparece ronda o filme como um fantasma ou uma ameaça. Ir em direção ao pai, por
exemplo, expõe Joel à violência social. A sombra do pai, tanto o pai de Ana quanto o de
Joel, apresenta-se nos espaços disciplinares e nos regimes do corpo. Como contraponto,
Clara remete ao passado apenas na figura da avó.
Por ordens médicas, Ana é proibida de comer carne durante a gravidez. A
abstenção de carne, um regime restritivo, mantém o feto monstruoso adormecido no corpo
da mãe. Em uma das noites de lua cheia em que Ana sai de casa, sonâmbula, ela ataca a
empregada, em um beijo que arranca sangue da mulher. Em outra noite, ela sai do prédio
133

em que vive e devora violentamente um gato de rua. O regime e as ordens médicas entram
em conflito com os desejos do monstro e coloca Ana em risco. Como um modo de cuidado
e de afeto, Clara mistura o próprio sangue às refeições de Ana.
O gesto, em grande medida sacrificial, pode ser entendido como análogo ao
quartinho, como uma engenhosidade de restrição da monstruosidade ao espaço
doméstico. Ao mesmo tempo, oferecer o próprio sangue denota uma complexa metáfora
do trauma e da exploração racial brasileira. A miscigenação e a escravidão são acionados
como imagens que estão na medula da relação entre Ana e Clara. O sangue de uma mulher
negra e um quartinho que remete às senzalas são torcidos como estratégias de manutenção
da vida, ao mesmo tempo que os elementos históricos de dor e trauma permanecem. Ana
alimenta-se do sangue de Clara, que também, ao amamentar Joel, nutre o menino com o
sangue de seu peito.
Há uma cadeia de circulação do sangue de Clara entre Ana e Joel que coloca um
signo de predação — alimentar-se de sangue — como um modo de filiação e de
parentesco. Halberstam (1995) examina esse tipo de relação a partir das múltiplas
transfusões de sangue que ocorrem no romance Drácula. Na obra de Stoker, as
personagens Lucy e Mina são atacadas pelo vampiro, que suga-lhes o sangue. Para conter
os danos, as duas recebem sucessivas transfusões dos cinco personagens masculinos da
trama. O sangue atravessa a sexualidade do vampiro como um substituto histórico para
outros fluidos, como leite ou sémen. No caso do romance, a aproximação entre uma
sexualidade perversa e sangue ruim é bastante evidente (HALBERSTAM, 1995).
A trilha do sangue de Drácula no corpo das duas únicas personagens femininas,
Lucy e Mina, em um universo marcadamente masculino, pode ser mapeada pelas
transfusões das quais o vampiro é o vetor. Drácula alimenta-se do sangue de Lucy, que
recebe transfusões de quatro outros personagens. O mesmo processo de transfusões
ocorre com Mina. Esta alimenta-se de Drácula e, no final do romance, tem um filho, cujo
sangue é visto por Halberstam como um modo de paternidade por implicação que inclui
o sangue dos que doaram o fluido para as duas mulheres. As transfusões podem ser
entendidas como um modo de proteger o corpo das vítimas da contaminação do vampiro,
simultaneamente monstro e estrangeiro. Ao final do romance, após a morte do vampiro,
o filho de Mina é batizado com o nome de todos os personagens homens da trama, pais
simbólicos e, em grande medida, sanguíneos da criança.
De modo semelhante, As Boas Maneiras evoca um tipo de maternidade deslocada
a partir da figura heterogênea de Clara, cujo sangue circula nas veias de Ana e de Joel.
134

Ao mesmo tempo, a trama recupera uma herança histórica das amas de leite escravizadas,
que amamentaram os filhos das mulheres brancas sem poder criar os seus próprios
(KILOMBA, 2019). A heterogeneidade da relação reforça o estatuto de filiação com o
monstro, com alteridades e com modos de vida precários e dissidentes, como um modo
de realização de famílias não edipianizadas.
As Boas Maneiras faz o sangue circular em direção oposta ao que ocorre em
Drácula, em que o filho de Mina é herdeiro do sangue de muitos pais. Para Halberstam,
no universo vitoriano e nacionalista do romance, essa é uma alternativa à possibilidade
de muitas mães. Trata-se da criação de um sistema simbólico que centraliza a
possibilidade reprodutiva no homem (HALBERSTAM, 1995). O sangue de Clara torna
Joel filho de duas mães e de pai nenhum, cuja evocação no filme é um dispositivo de
perigo que leva à morte do menino-lobisomem.
O consumo de carne, e por consequência, de sangue, mostra-se como uma
sequência gradual de abandono da humanidade contida por hábitos civilizados, sobretudo
à mesa, em direção à animalidade monstruosa. Há uma disposição de cenas na primeira
parte do filme em que Ana toma sopa com talheres, come uma macarronada, temperada
pelo sangue de Clara, com as mãos e devora um gato na rua. Os momentos vividos por
ela são repetidos e sequencializados por Joel na ocasião em que come carne, como vemos
na imagem a seguir, em que os talheres são substituídos pelas mãos e por uma devoração
animalesca (figura 16). Cabe notar que Clara não participa das cenas de refeição, apenas
como observadora, o que pode ser entendido, se voltarmos ao quadro de Debret, como
um distintivo de exclusão racializado. As boas maneiras para ela são da ordem da
invisibilidade, do esconderijo, dos quartinhos.
135

Figura 16: Ana e Joel alimentam-se de carne e de sangue.


Fonte: Fotograma de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017).

Ao lançar o artificio sobre os mecanismos biopolíticos dos espaços, o filme


desnaturaliza, mesmo que momentaneamente, as estruturas de controle dos corpos, e
torna visíveis as rupturas que estas estruturas escondem. É como se o camp e o artifício
afirmassem que nada é natural, “é tudo pose” (LOPES, 2016), abrindo espaço para a
invenção de ficções dissidentes, cujo centro é o monstro. A força estética da frivolidade
“pode ser um elemento desestabilizador de certos discursos cristalizados, como ela faz
emergir o potencial radical e autorreflexivo do artifício” (PRYSTHON, 2015, p.67).
Não se trata de recorrer ao artifício para a produção de imagens enganosas,
falseadas e metafóricas: as disparidades sociais estão demarcadas e explícitas em todo o
filme. As paisagens artificiais, no entanto, reposicionam o real em temporalidades
heterogêneas. A aparição monstruosa promove um tipo de dilatação temporal, uma
cronotopia distinta, que se justapõe ao tempo linear e é reforçada pela atmosfera do filme.
O tempo no filme é contado de modo cronológico pela aparição da lua cheia todo mês,
pelo avanço da gravidez de Ana e pelo crescimento de Joel. A linearidade temporal é
136

nítida ao espectador, ao mesmo tempo que parece dilatar-se em experiências temporais


dissonantes.
A relação entre monstro e artifício, marcada no filme, também, pela utilização de
computação gráfica, cria um hiato espaço-temporal, uma negociação temporária com as
relações biopolíticas, sobretudo pela anulação de elementos masculinos na narrativa. A
computação gráfica, defende Halberstam (2020), é capaz de abrir portas para narrativas
novas “entre o infantilizado, o transformador e o queer” (HALBERSTAM, 2020, p.44).
No filme de Rojas e Dutra, os elementos de computação gráfica estão presentes tanto na
transformação do lobisomem, quanto na inserção de símbolos na paisagem, como a lua,
o fogo e a cidade vista de longe.

3.3 EXCURSO: O LOBO

A relação com o animal é um fator recorrente na caracterização do monstro. Não


raro, o monstro é corporificado como um híbrido que condensa humanidade e
animalidade, física ou moral. A monstruosidade não apenas parece sugerir um movimento
do humano em direção à animalidade, como também o inverso, a entrada indevida da
animalidade na cultura. Ao atravessar a fronteira, o monstro coloca-se como invasor ou
como contágio, jamais como parte de uma fauna ou de uma população. O hibridismo
físico e o rebaixamento moral ou racional são associações frequentes e codificam o
monstro fora do domínio da humanidade: um corpo inconstante, de comportamento
incerto e ausente do domínio conhecido da biologia.
A filiação com o animal sugere campos de disputa simbólicas, hierarquias entre
os corpos e entre modos de vida, e embates especistas dentro do escopo do humano. A
animalização é um tipo de rebaixamento das condições humanas, um impedimento de
participar da vida comum e dos espaços da cultura e da política. A distribuição desigual
da precariedade cria lacunas entre as formas de vida a partir de uma abstrata escala de
gradações de humanidade, na qual a natureza é o grau zero. Esta convicção parte da
concepção antropológica tradicional que separa natureza e cultura. Essa cisão é imaginada
como a passagem do animal humano do estado de natureza para o estado de cultura. Trata-
se de uma noção de passagem que cria um tipo de gradação entre diferentes modos de
humanidade, ressoando o pensamento evolucionista que dominou o campo científico do
século XIX (CASTRO, 2005; LAPLANTINE, 2003). Nesse pensamento, outros povos,
137

codificados como mais próximos da natureza do que da cultura, não teriam acompanhado
a escala de tempo do tornar-se sapiens.
O monstro coloca o corpo e a forma humanas em variação. Criaturas como os
vampiros, por exemplo, são costumeiramente associadas a animais e oferecem o risco de
transformar sujeitos em monstros. A partir do sangue, um vampiro pode converter um
humano em um semelhante. Trata-se de uma ameaça externa. O lobisomem, por outro
lado, representa um risco da intimidade do sujeito. A natureza selvagem do homem pode
ser desperta, geralmente a partir de uma transgressão. O lobisomem situa o sujeito sob o
risco constante da metamorfose.
É contumaz a natureza dessa metamorfose na ficção moderna. A Metamorfose, de
Franz Kafka, romance publicado em 1915, é, possivelmente, o exemplo mais conhecido
e o mais abrupto da transformação do sujeito comum em um animal. A transformação de
Gregor Samsa em um monstruoso inseto ocorre no espaço privado e doméstico,
irrompendo na intimidade de uma família burguesa. A metamorfose do homem em
animal, no romance de Kafka, aparece como um processo irreversível de rebaixamento e
opressão do homem comum, de qualidades ordinárias e utilitárias, diante da engrenagem
coercitiva do capitalismo moderno.
Gregor Samsa, quero sugerir, aparece no começo do século XX como um tipo de
monstro fundante de um tempo. Como comparação, podemos pensar em Frankenstein,
publicado um século antes, como uma obra que intersectou as principais preocupações do
começo do século XIX. Samsa não é um cadáver reconstruído pela ciência moderna, mas
um inseto ordinário que acorda no interior de uma rede de relações familiares e sociais
que o tornam abjeto. O monstro aparece espremido entre a ética burguesa da
produtividade, o limiar da Primeira Guerra e as subjetividades fraturadas da modernidade.
Trata-se de uma criatura sem nostalgia, nascida na paisagem urbana e burguesa, mas que
não projeta futuro, obedecendo a uma temporalidade utilitária e cíclica, do despertar ao
adormecer, sem escapatória.
A monstruosidade do personagem de Kafka se dá menos pelo medo do que pela
incômoda conformidade que sua presença causa, não mais produtiva, gastando tempo útil
com a lassidão e com a angústia da vida de um inseto. Transformar-se em inseto, contudo,
não efetua uma mudança de reino animal para o personagem. Não há uma reversão do
estado cultura para o estado de natureza. Trata-se de um híbrido, criatura transitante entre
distintos domínios da vida, suspenso em uma teia de ininteligibilidade, sem lugar
taxonômico precedente. O inseto-Samsa não tem um lugar entre os humanos nem entre
138

os animais, contudo, aponta para uma insistente proximidade com o sujeito. Esta
intimidade é compartilhada com o lobisomem, figura em tudo diferente do inseto de
Kafka, a não ser pelo hibridismo com o animal e pela estranha familiaridade que provoca
no sujeito moderno. Enquanto Samsa é atormentado pela empregada doméstica, acuado
nos cantos do quarto, o homem-lobo ataca, invade os espaços de ordem como predador.
Outra modulação da figura do lobo na literatura moderna pode ser vista no
romance O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, publicado em 1927. Ainda que distinta
da literatura de Kafka, a proximidade entre as duas obras é acentuada pela relação com o
animal e pela reação ao desenvolvimento militarista no contexto da Primeira Guerra. O
homem-inseto e o homem-lobo reagem a afetos políticos semelhantes, e nos dois casos o
animal sugere angústia, fratura e possibilidade de desintegração do sujeito — ou
impossibilidade de integração.
No romance de Hesse, a figura do lobo aparece como uma possibilidade de duplo
do homem atormentado pela convulsão política e pelos imperativos da modernidade, a
velocidade, a tecnologia, a presença da cultura moderna sobrepondo-se à tradição. O
protagonista do romance de Hesse, Harry Haller, parece constantemente dividido entre o
passado romântico do século XIX e a modernidade veloz dos anos 1920. O tema do duplo,
que ocupou um espaço relevante no pensamento de Freud, notadamente no ensaio sobre
o inquietante (FREUD, 1996), sugere um movimento de cisão entre algo que já foi
familiar e que agora tornou-se hostil28.
O unheimilich freudiano aponta para um tipo de fantasia de retorno de algo
bastante íntimo que foi afastado ou recalcado de modo violento, e que agora retorna como
um afeto indefinido, angústia que não toma forma nem de sujeito nem de objeto. O tema
do duplo foi recorrente na literatura do século XIX, sobretudo pela herança do
romantismo gótico, e remete ao tema da bipartição da alma, a separação do sujeito que dá
a ver seu lado sombrio. Na esteira de Freud, o duplo pode ser entendido como um
simulacro do mal. O monstro herdeiro do gótico é a corporificação da maldade a partir de
um gesto negativo de repressão deste afeto na subjetividade do indivíduo. O
estranho/inquietante deveria permanecer oculto e retorna, tornando difusa e perturbadora
a relação entre sujeito e objeto (FREUD, 1996; PORTO, 2016).
O Lobo da Estepe retoma o tema do duplo a partir da internalização das pulsões e
da angústia, e não de sua externalização, como é o caso do romance gótico do século XIX.

28
O ensaio de Freud foi publicado pela primeira vez em 1919, a proximidade histórica com as obras de
Kafka e Hesse é um fator importante nessa análise.
139

O protagonista Harry Haller é constantemente atormentado pela possibilidade de dar


vazão à animalidade inerente, que ameaça constantemente sua pretensa inteireza ou
integridade ontológica. O personagem, homem de 50 anos, inapto à frivolidade da vida
social da Alemanha dos anos 1920, notadamente a música popular dançante, como o
foxtrote, se vê na iminência de um suicídio. Hesse apresenta o personagem, herdeiro de
uma noção de sujeito romântica do século XIX, a partir da incessante fratura da
subjetividade, em que o conflito com esta natureza contida toma a dianteira, em uma
narrativa que envereda pelo sonho e pelo devaneio.
Gregor Samsa, por sua vez, é suspeito de uma forma quase identitária: o tornar-se
inseto é definitivo e irreversível. A transformação pode ser entendida como uma linha de
fuga do onipresente capitalismo. Lembremos que ele não se transforma em um lobo ou
em um animal domesticável, mas sim em um animal que causa nojo ou asco em quem o
vê. O inseto mostra-se um animal improdutivo, dedicado ao ócio, à aflição e ao consumo,
além de impedir o fluxo normal da vida da família. Se em Kafka a transformação em
inseto é o disparador da narrativa, o romance de Hesse traz o lobo como latência, como
uma ameaça constante.
A possibilidade do devir-lobo não é um rebaixamento das funções sociais
humanas para Harry Haller. Trata-se de uma crítica ao próprio rebaixamento da vida
comum humana diante da moral burguesa hegemônica. Diz Hesse: “o que ele para si
designa como ‘homem’, em contraposição ao seu ‘lobo’, não é senão aquele homem
medíocre do convencionalismo burguês” (HESSE, 2009, p.76). Haller torna-se
constantemente dividido pela possibilidade de “renunciar ao homem e viver uma vida
uniforme, sem desvios” (HESSE, 2009, p.76), ao mesmo tempo que entende que viver no
meio comum da vida pública implica uma constante luta contra esse lobo interno. O
conceito de sujeito proposto por Hesse comunga uma inerente bipartição e luta contra a
animalidade interior, ao mesmo tempo que almeja essa vida animal, uma vida sem
conflitos e desvios morais.
A evocação do lobo, no romance, não é meramente ornamental ou metafórica. Sua
recorrência no imaginário popular reativa a potência do duplo sob a forma de uma
animalidade interior, que luta para vir à tona na pele de um predador. O duplo e o mal são
partes de uma equação histórica que envolve o modo como o monstro é entendido. Parte
da tradição filosófica ocidental, herdeira do pensamento de Santo Agostinho, vai entender
o mal como ausência do bem, ou seja, o mal como uma potência negativa (AQUINO,
2010). O pensamento de Bataille retoma a discussão sobre o baixo e o mal. Na obra do
140

filósofo, o mal passa a ser entendido como uma força criadora, relacionada à matéria
como um princípio ativo de existência autônoma (AQUINO, 2010; BATAILLE, 2018).
O devir-lobo do homem torna-se, portanto, um vir-à-tona do mal a partir de um
contato criativo e produtivo com a animalidade. O movimento toma corpo na figura do
lobisomem, que aparenta ser o mais inescrupuloso, e talvez um dos mais nocivos
monstros examinados até aqui. O homem-lobo compartilha com outras criaturas o
hibridismo do humano com o animal, como as sereias, os centauros e o minotauro.
Diferente de outras figuras recorrentes da monstruosidade, o lobisomem não corresponde
a uma criatura única. O problema em se tornar vampiro, ou outra sorte de não-vivo, é a
transformação permanente em uma coisa outra que humana. O mesmo ocorre com Gregor
Samsa. O lobisomem, por sua vez, nascido ou tornado monstro, transforma-se em besta
nas noites de lua cheia, colocando a monstruosidade como uma metamorfose periódica,
em que o homem é acometido por um violento deixar-de-ser, tomado por um devir-lobo
incontrolável. É a própria metamorfose que se torna a variação da monstruosidade, a
alternância entre corpos e subjetividades em um único indivíduo. A impossibilidade de
ser um sujeito sem desvios, que tanto assombra Harry Haller, é o imperativo da
monstruosidade do lobisomem.
Interessa-me aqui pontuar a recorrência do homem lobo no imaginário popular,
sem, no entanto, buscar mapear uma origem ou condensar o simbolismo do lobo em uma
tradição única. O lobisomem, contudo, remete aos predicativos empíricos dos animais
predadores. O imaginário rural europeu, que Robert Darnton (1988) chama de “universo
mental dos não iluminados durante o Iluminismo” (1988, p.21), parecia atormentado
pelos perigos do lobo e do homem lobo de modo muito mais concreto do que metafórico,
como expresso na análise que o historiador traz do conto da chapeuzinho vermelho. A
análise simbólica e psicanalítica entende o lobo como a masculinidade e o capuz vermelho
como um símbolo menstrual. Nesse sentido, a narrativa apresenta-se como uma metáfora
da virgindade. O conto investe em um alerta para que as adolescentes protejam-se do
desejo sexual masculino.
Darnton confronta essa interpretação com o argumento de que essa versão leva
em consideração um tipo de mentalidade histórica inexistente nos séculos XVII e XVIII.
As versões da cultura oral do que chamamos contos de fada ultrapassam em violência e
sexo as versões literárias dessas narrativas (DARNTON, 1988). Para o historiador, a vida
dos camponeses era uma lida constante com a pobreza e as intempéries naturais. Para
Darnton, antes de serem narrativas moralizantes e detentoras de um simbolismo oculto,
141

os contos populares eram, na realidade, expressões muito concretas da violência e da


pobreza vividas por estas populações. Ele defende uma história das mentalidades a partir
dessas narrativas, marcadas por um cruel empirismo: crianças camponesas eram vítimas
do ataque de lobos. O historiador faz um extenso exame dos contos de fada, evidenciando
aspectos muito mais sociológicos, como colheita e consumo de carne, do que
propriamente semióticos, como virgindade e relações sexuais.
A presença do lobo na narrativa tem uma função quase prescritiva e demarca, sob
o imperativo da predação, uma relação entre animalidade e antropofagia29. Não interessa
tanto recuperar a mentalidade rural europeia, a não ser para demarcar recorrências que
interessam a esse estudo. O lobo traz a possiblidade de violência pela degradação do
corpo, ao alimentar-se de carne humana. O predador pode infiltrar-se de modo sutil, sob
o disfarce da inofensiva avó, ou na figura de um violador sexual. A relação com o lobo
situa os sujeitos em uma posição de vulnerabilidade em relação à natureza. O camponês
“não entendia a vida de uma maneira que o capacitasse a controlá-la. A mulher do mesmo
período não conseguia conceber o domínio sobre a natureza, e então dava à luz quando
Deus queria” (DARNTON, 1988, p. 45).
Trata-se de um tipo de monstruosidade que exige uma constante vigilância, sob o
risco de uma violência de ordem ética, como entrevisto na recuperação mitológica do
lobisomem. O monstro é evocado e discutido por um número vasto de nomes do
pensamento antigo e tem vasta presença no imaginário rural brasileiro (CASCUDO,
2005; 2014). A versão mais conhecida o conecta à punição de Licaão, tido como o
primeiro rei mítico de Arcádia. O mito é recontado por Ovídio n’As Metamorfoses. Os
versos de Ovídio narram quando Zeus convoca os deuses para uma reunião no Olimpo
para denunciar as perversidades vistas por ele durante uma visita ao mundo dos homens.
O deus tinha visitado o mundo mortal sob disfarce humano. Das atrocidades, ele fala de
certo rei da Arcádia, Licaão, que lhe serve carne humana em um banquete, como um
modo de testar a divindade de Zeus. Ao perceber a transgressão, o deus transforma Licaão
em um lobo, como forma de punição (figura 17).

29
Para este estudo nos valemos da versão do conto de Darnton (1988) e Carter (2011).
142

Figura 17: Ilustração de Hendrik Goltzius para uma edição de As Metamorfoses, de 1589.
Fonte: Domínio Público.

A monstruosidade de Licaão aponta para uma complexa rede de transgressões. A


antropofagia é descrita como uma perversidade gratuita. Contudo, é a desconfiança sobre
divindade do deus que desperta a ira de Zeus, bem como a hospitalidade perversa de
Licaão: “A licantropia deve ser de origem ética. Vingança de um ser divino em quem
desobedeceu as leis sagradas de hospedagem” (CASCUDO, 2014, s/p). A narrativa de
Zeus, nos versos de Ovídio, pode ser entendida como uma violência exemplar, maior do
que o delito de Licaão. O castigo impõe uma transformação definitiva do corpo e um
rebaixamento à forma animal, que o condena ao mutismo e à expulsão do mundo
logocêntrico da cultura. Como o minotauro, o monstro resta sem voz, incapaz de narrar a
própria história e incapaz de tomar parte na vida política. Cito Ovídio:
143

Aos semivivos, palpitantes membros


Parte amolecem as ferventes águas,
As sotopostas brasas torram parte.
Já nas mesas se impõe, mas de repente
Co’a destra vingadora o raio agito,
Sobre o cruel senhor derrubo os tetos,
Os tetos, e os Penates, dignos dele.
Para o silêncio agreste, agrestes sombras
Foge rapidamente, espavorido,
E querendo falar, uiva o perverso:
Colhem do coração braveza os dentes,
C’o matador costume os volve aos gados:
Inda sangue lhe apraz, com sangue folga.
A veste em pêlo, as mãos em pés se mudam.
É lobo, e do que foi sinais conserva:
As mesmas cãs, a mesma catadura,
E os mesmos olhos a luzir de raiva.
Já uma habitação caiu por terra,
(OVÍDIO, 2016, p.69. Grifos meus)

Os versos de Ovídio, narrados em primeira pessoa, na voz de Zeus, descrevem o


momento da metamorfose de Licaão, em que as vestes se tornam pelo, e as mãos são
transformadas em pé: o rei perde sua postura ereta, diferente da gravura de Goltzius
(Figura 17), que apresenta o monstro com o corpo bípede de humano e a cabeça lupina.
Ao desejar falar, o monstro uiva. Ao rei são atribuídos a violência e o gosto pelo sangue.
Não sendo suficiente a punição, o deus ainda derruba o palácio de Licaão, de modo que
não haverá descendência humana a ocupar o trono da Arcádia, e a permanência na terra
do monstro será sempre sob a forma de monstro. O lobisomem torna-se, portanto, um
proscrito, um monstro que rompe o tratado ético ligado à casa e à vida pública. Não à toa,
o castigo do deus vem com maior intensidade e violência do que o ato tirânico de Licaão.
O leitor terá percebido um caminho em retrospecto de algumas figuras do homem
lobo, a começar por Harry Haller, o lobo nos contos populares e na mitologia grega. Cabe
apontar que não intento uma genealogia do monstro, interessa-me, sobretudo, pontuar
uma série de recorrências que compõem o campo ético do homem-lobo e do lobisomem30.
O monstro oferece ao humano o risco (ou a possibilidade) da desintegração periódica da
identidade, da impossibilidade de controle dos próprios impulsos e da impermanência no
domínio da cultura. O devir-lobo atravessa periodicamente as fronteiras entre natureza e
cultura. Transformar-se em lobo, no entanto, tem o preço da violência, como vemos no
caso de Joel. O monstro é um predador cuja violência desperta na intimidade do sujeito.

30
Outras narrativas possíveis vão colocar a relação com o lobo em um idílio de liberdade, como o “Livro
da Selva” (Rudyard Kipling, 1894), ou o livro ilustrado “Onde Vivem os Monstros” (Maurice Sendak,
1963), adaptado para o cinema por Spike Jonze em 2009.
144

O imaginário da devoração e da caça, que a princípio demarcam os predicativos


do lobo, são associados à noção de predação e de desvio sexual. Como apontado por
Darnton (1988), as análises psicanalíticas da narrativa do lobo apontam para a figura do
homem estuprador. Embora o historiador desvie dessa interpretação em favor de um olhar
empírico sobre a vida rural europeia, o lastro da violência sexual perdura em suas análises,
sobretudo na passagem da cultura oral para a literatura escrita em línguas nacionais. A
figura do lobo, nos contos de fada, pode ser associada a um predador sexual em um
momento de maior controle cultural da sexualidade nos lares europeus.
O lobo e o lobisomem têm uma relação com o sexo e com o erotismo cuja
frequência não podemos deixar de evidenciar. É possível que o tabu da antropofagia não
seja mais tão amedrontador, uma vez que não é recorrente31, e a violência sexual seja um
fator de vigilância mais tenaz. No imaginário do século XIX, em que uma ciência sobre
a sexualidade está mais estabelecida (FOUCAULT,1999), o lobo é representado como
um algoz sexual. Cabe destacar as ilustrações de Gustave Doré para os contos de fada,
em que o lobo aparece de modo ameaçador diante de uma infantil e virginal Chapeuzinho
Vermelho (figura 18)32.

Figura 18: Gustave Doré. Ilustrações para os contos dos irmãos Grimm.
Fonte: Domínio Público.

31
O filme Raw (Julia Ducournau, 2016) tem uma interessante abordagem da antropofagia, ao trazer uma
jovem vegetariana que, após ser obrigada a comer carne de origem animal, desenvolve um apetite canibal
monstruoso. A antropofagia parece ser substituída por um estranhamento em relação ao consumo regular
de carne, de vidas animais, como um tipo de violência ou de homicídio.
32
Não cabe aqui inventariar as produções, mas a pornografia heterossexual reproduziu massivamente a
narrativa do lobo mau e da Chapeuzinho Vermelho. A despeito das diferenças, trata-se sempre de narrativas
de uma moça muito jovem sendo abordada por um predador sexual na floresta.
145

Para Darnton, ao analisar a obra de Eric Fromm, “o psicanalista nos conduz para
um universo mental que nunca existiu ou, pelo menos, que não existia antes do advento
da psicanálise” (1988, p.23). Darnton quer se opor tanto ao historicismo quanto à ideia da
universalidade e imobilidade dos símbolos. A interpretação psicanalítica de autores como
Fromm e Bruno Bettelheim, antes de investigar o imaginário camponês da cultura oral,
deteve-se sobre sua versão traduzida e adaptada às camadas cultivadas e letradas, em
projetos como o dos irmãos Grimm. Estas versões fazem parte da miríade de tecnologias
da sexualidade que fala Foucault (1999), em que o autor observa uma saturação de
discursos sobre o sexo e sobre os desvios sexuais, em um contexto que não são mais os
perigos empíricos da floresta que atemorizam os sujeitos. O monstro passa a ser
relacionado com o controle ativo dos corpos pelo poder, a relação entre população e mão-
de-obra, e consequentes questões ligadas à gestão da vida (FOUCAULT, 1999).
O homem-lobo e o lobisomem adquirem força a partir de sua relação com as
tecnologias produtivas da monstruosidade. Essa relação reverbera na psicomaquia do
sujeito moderno, marcado por uma ambiguidade constitutiva, pela força das pulsões e
pelo controle da subjetividade e dos desvios. A figura do lobo torna-se uma tensão com
um tipo de monstruosidade interna ao sujeito, em parte como atenção e vigilância dos
desvios sexuais, ou ainda como possibilidade de vivenciá-los, como no caso de Harry
Haller. Em parte, também, como constante vigilância e punição desses desvios. O
lobisomem nasce por castigo ou contágio, como resultado de uma transgressão. O
erotismo, em um sentido de abertura para a ruptura com o indivíduo, como o concebe
Bataille (2014), é parte importante do devir monstro do lobo ou do devir lobo do homem.

4.4 O ESTADO

O grupo avança velozmente pelas ruas estreitas à noite. A iluminação baixa e os


gritos difusos que proferem tornam os corpos uma única massa disforme. O espectador
consegue ter apenas um vislumbre dos corpos individuais: um taxista, um padre, uma
noiva, pais de família, mães de família. Carregam lanternas, telefones celulares, tijolos,
pedaços de madeira, brinquedos luminosos. A multidão ruma em direção à casa do
monstro, disposta a destruí-la. No outro extremo, escondidos no quartinho, Joel e Clara
escutam a horda avançar, entrar na casa e rumar direto para a porta de ferro que os mantém
separados da morte.
146

A cena final de As Boas Maneiras reproduz um gesto amplamente conhecido no


cinema de horror: o linchamento final do monstro, o expurgo da forma de vida nociva da
vida comum na cidade. Quando o monstro sai de sua ambiência sombria e torna-se um
corpo visível, sua destruição torna-se iminente. A cena no filme de Rojas e Dutra faz
lembrar o linchamento do monstro de Frankenstein, no filme de James Whale (1931).
Enquanto brincava com uma garota diante de um rio, o monstro gigante e pouco
consciente dos jogos sociais e de sua força física, arremessa a criança na água. A morte
da menina dispara a fúria da cidade inteira, que ruma com tochas de fogo em punho para
matar o monstro. Encurralado em um moinho, o mesmo que serviu de laboratório para
sua criação, o monstro é incendiado vivo, logo após arremessar o corpo de seu pai e
criador, Henry Frankenstein, para a multidão.
Joel repete o destino de Frankenstein. Como dito, o garoto consegue trancar a mãe
no quartinho e fugir de casa para participar da festa junina da escola, onde deverá dançar
com Amanda, um tipo de namoradinha/melhor amiga da escola. A festa é animada pelo
professor da turma, que veste uma fantasia de padre. Durante a festa, ocorre a
transformação de Joel, enquanto dança de mãos dadas com Amanda, no meio das outras
crianças. As garras do lobo despontam primeiro, cortando a palma da mão da garota. O
restante do corpo segue a transformação, os pelos surgem no dorso das mãos, os olhos
ficam amarelados, a roupa de quadrilha é rasgada e dá lugar ao corpo esguio e animalesco
de um lobisomem criança. Antes que ele possa atacar Amanda, Clara consegue interpelar
o monstro com um tiro de revólver e carrega o corpo ferido da fera de volta para casa 33.
A narrativa reencena duas imagens relacionadas à figura paterna de Joel: o professor
fantasiado de padre e a arma com que Clara atira no filho. O revólver pertencera a Ana,
e foi o mesmo que ela usou para se proteger do lobisomem, na noite em que Joel foi
concebido.
Ao ver Amanda assustada e com a mão ferida, o grupo reunido na festa
transforma-se em uma multidão destinada ao linchamento. Não fica claro ao espectador
como as pessoas se organizam, o que é dito ou acordado entre eles, o que vemos é uma
marcha que não hesita. O grupo parece dominado por um único sentimento e um único

33
Clara, cuja biografia é difusa ao espectador, é mostrada no filme com habilidades diversas, desde cozinhar
e cuidar de tarefas de casa, incluindo o conhecimento em enfermagem e saberes ancestrais, aprendidos com
a avó. Na cena da festa junina, demonstra habilidade com o revólver, atirando de modo que não mate o
filho. A personagem faz lembrar o personagem Ben de A Noite dos Mortos Vivos (George Romero, 1968),
que demonstra ser o mais hábil e apto a sobreviver ao ataque zumbi e, ainda assim, é morto pela polícia,
como vítima do racismo estrutural nos Estados Unidos.
147

objetivo. Apenas Amanda e a mãe destacam-se do corpo de pessoas. Durante a cena, as


duas param e hesitam. Não sabemos o que conversam, mas fica claro que elas retrocedem
e não tomam parte na matança. É possível entender essa hesitação como um efeito de
força por parte da multidão: as duas seguem o grupo e só hesitam quando descobrem que
este ruma para a casa de Joel e Clara e que aquele linchamento é desproporcional ao delito
cometido pelo garoto.
Quando comparamos com a cena final de Frankenstein, percebemos que a
multidão em As Boas Maneiras parece um tanto artificial ou excessiva. Os corpos
fantasiados com as roupas da quadrilha encenam posições sociais reconhecíveis, como o
padre. Ao mesmo tempo, o uso das roupas juninas e dos instrumentos — tijolos, pedaços
de pau, telefones celulares, brinquedos luminosos — caracterizam o grupo de modo
paródico. O filme parece explorar não apenas os elementos do artifício que compõem os
dispositivos de poder, mas também a aparência ridícula que a norma assume na figura de
uma multidão linchadora.
De modo distinto do filme de James Whale, o momento em que a multidão decide
se organizar e rumar para a casa de Clara e Joel não é mostrado. A pulsão que os induz a
matar o monstro age rapidamente. O grupo não tem um líder nem grita palavras de ordem,
de modo que o poder disciplinar não é materializado em uma única figura, mas mostra-
se como uma disposição latente em toda aquela pequena sociedade. Nesse aspecto, As
Boas Maneiras destoa da gramática tradicional de filmes de horror. É comum vermos
narrativas em que a ação do monstro opera em uma crescente, rondando a cidade, criando
uma atmosfera de medo e tensão, que explode no conflito em que o monstro é finalmente
caçado. No filme, não há uma relação direta entre a morte de Maurício, ocorrida na noite
anterior à festa, e a aparição de um lobisomem. O desaparecimento de Mauricio sequer
fora notado pelo bairro. O garoto é procurado apenas pelo pai.
O tempo da diegese é curto. A trama ocupa poucos dias — os dias de lua cheia. A
multidão torna-se homogênea e violenta a partir do momento que Joel cruza as fronteiras
que são continuamente desenhadas no filme. Quando Joel foge de casa, o dispositivo do
quartinho que garantia invisibilidade ao monstro deixa de funcionar. A aparição do
monstro perturba a economia social que gerencia visibilidade e invisibilidade, bem como
mantem ativa as distinções entre periferia e centro.
O filme dá a ver uma vizinhança que não hesita em unir-se para matar no momento
em que essas fronteiras são cruzadas. Os moradores do bairro são mostrados como figuras
cordiais, que respondem à docilidade de Clara e Joel. Mãe e filho são mostrados
148

inicialmente como pessoas benquistas naquele microcosmo. A violência é disparada de


modo brusco, como se a propensão para o linchamento fosse uma característica latente e
atávica naquela população. A aparição do monstro desperta um grupo pitoresco que torna-
se homogêneo e deverá punir o monstro com uma violência maior do que é capaz um
lobisomem de sete anos de idade. A punição é análoga ao destino de Licaão, punido por
Zeus. Joel não é preso, ou entregue a cientistas, ou ao zoológico. O grupo marcha para a
morte, como ocorre no filme de James Whale.

Figura 19: As transformações de Joel


Fonte: Fotograma de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017).

A estética do artifício joga com a duplicidade dessa vizinhança, que é


caricaturalmente gentil na mesma medida que é violenta. Com isso, não quero sugerir que
a gestualidade gentil esconda uma essência ou uma natureza violenta. O filme elabora
uma interpretação da cordialidade da cultura brasileira, especialmente em relação à
presença de vidas precarizadas nos espaços coletivos. A docilidade e a invisibilidade são
duas moedas de troca negociadas pro Clara e Joel, modos de garantir uma passagem
segura pela vida social. A violência dos vizinhos é estrutural. Contudo, quero sugerir que
essa mudança não revela uma interioridade ou uma natureza, mas sim o reflexo de um
enquadramento contínuo que codifica vidas precárias como monstros. Se em Joel, a
aparição do monstro denota uma experiência e um modo de vida, no grupo de moradores
o despertar de uma monstruosidade violenta age como um braço do poder disciplinar.
149

Figura 20: A multidão ruma para a casa de Clara e Joel.


Fonte: Fotograma de As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017).

De um ponto de vista social, a relação entre monstro, multidão e linchamento pode


ser relacionada com a teoria do bode expiatório, elaborada por René Girard (2004). Em
As Boas Maneias, o monstro é capaz de viver e produzir relações sociais a partir da
filiação. É a família, a produção de laços de parentesco não normativos, que faz com que
Joel sobreviva. Esses laços de parentesco organizam elementos e signos sociais existentes
em um formato outro de sociabilidade. Elementos como o espaço do quartinho, a memória
do trauma, o corpo feminino, a homossexualidade, o racismo são reagrupados ao redor
do monstro como parte de uma experiência possível de vida.
A teoria do bode expiatório investiga como alguns sujeitos ou grupos são
identificados como a causa de um mal social e que, por isso, devem ser exterminados. A
ideia de um “apetite persecutório”, como nomeia o autor, é direcionada historicamente a
minorias sociais, ou grupos que, em alguma medida, destoam do corpo social normativo.
Expurgar o sujeito desviante, a causa de um dano coletivo, engaja o corpo social em uma
violência persecutória. O grupo social se pretende, em alguma medida, justiceiro e é
mobilizado pela crença de que as vítimas são culpadas. Cabe dizer que o apetite
persecutório não é punitivo de um modo simples. Não se trata da aplicação de leis prévias
diante de crimes, mas sim da extirpação de um mal social excepcional. O
criminoso/vítima é associado a fatos que lesam os fundamentos da ordem social e que
perturbam a instituição da diferença dentro de uma sociedade (GIRARD, 2004).
150

Por outro lado, o pensamento sobre o bode expiatório reafirma os modos como
operam as tecnologias produtivas de monstros. O processo extrai a potência de vida do
monstro, tornando-o mero signo, representação de algo externo a ele, como um índice do
mal. Para Girard (2004), ocorre um processo de convencimento por parte do corpo social
de que um indivíduo pode tornar-se extremamente nocivo para a sociedade como um
todo, um “bode expiatório” em relação às adversidades que acometem o grupo e que deve
ser exterminado.
Os perseguidores acabam sempre por se convencer de que um pequeno número
de indivíduos ou até mesmo um só pode tornar-se extremamente nocivo para
toda a sociedade, apesar de sua relativa fraqueza. É a acusação estereotipada que
autoriza e facilita essa crença, desempenhando com toda evidência um papel
mediador. Ela serve de ponto entre a pequenez do indivíduo e a enormidade do
corpo social. Para que malfeitores, até diabólicos, consigam indiferenciar toda a
comunidade, é preciso que a firam diretamente no coração ou na cabeça, ou que
comecem por sua esfera individual, nela cometendo esses crimes
contagiosamente indiferenciadores, como o parricídio, o incesto etc. (GIRARD,
2004, p.26).

Para o historiador, há uma “acusação estereotipada” que funciona como mediador


entre um conjunto de crenças acusatórias e o indivíduo malfeitor, fabricando uma
correspondência entre a transgressão ou crime e catástrofes que colocam em risco a ordem
social, como pestes, epidemias, desastres ambientais etc. A argumentação de Girard
intenta recuperar a reincidência do mito, mesmo em sociedades secularizadas, para
compreender a pulsão persecutória das sociedades. Nesse sentido, ele evoca certa
universalidade, ou pelo menos uma recorrência sociológica e simbólica que atua nas
sociedades como um todo. “Quase não existem sociedades que não submetam suas
minorias, todos os seus grupos mal integrados ou até simplesmente distintos, a certas
formas de discriminação, quando não de perseguição” (GIRARD, 2004, p.29). A
discriminação persecutória age como um modo de manter vivas as taxonomias que
garantem inteligibilidade a um grupo social.
O monstro é, em parte, a figura que reúne o conjunto de estereótipos persecutórios
elencados por Girard, dos quais destaco a distinção física, uma materialidade corpórea
dessemelhante, e o caráter de indiferenciação. O corpo ininteligível do monstro desfaz a
ordem de coisas diferenciadas que permite a vida comum, seja pelo excesso, pelo
hibridismo, pela filiação com o animal. O monstro é uma instabilidade de sentido que
toma corpo, “uma alucinação instável que tende retrospectivamente a se cristalizar em
formas estáveis (GIRARD, 2004, p.52).
151

Girard parte de uma análise do mito e de sua pertinência nas sociedades modernas,
como uma herança que opera de pano de fundo em gestos persecutórios atuais, e salienta
que, no mito, a monstruosidade física e moral são inseparáveis. Nesse sentido, o monstro
torna-se o receptáculo da monstruosidade, o vetor pelo qual o mal entra no mundo. Para
a população de As Boas Maneiras, devidamente fantasiada de sociedade estratificada, o
lobisomem é a causa de todo o mal e deve ser exterminado, mesmo que esse “mal” não
possa ser claramente identificado pelos sujeitos.
A pulsão persecutória é capaz de produzir os estereótipos que ela decide
exterminar. O ato de identificar em um sujeito ou em um grupo as marcas que legitimam
a perseguição reencena a produção se sujeitos estigmatizados. Em As Boas Maneiras, a
multidão busca exterminar um lobisomem, um monstro inaudito que surge no corpo
social. Ao mesmo tempo, o grupo persegue uma mulher negra, lésbica e da periferia, em
um processo que produz e intensifica os estereótipos persecutórios em atividade.
A destruição do monstro implica no extermínio de um mundo possível, realizada
em um microcosmo em que as estruturas do poder estatal são mantidas como forças de
coerção. Estas forças manifestam-se, como dito anteriormente, nas relações entre corpo e
espaço, nos bons modos, na invisibilidade e na docilidade. Quando Joel e Clara (e
também, Ana) escapam à vigilância, é acionado o mecanismo de purgação. Não é a
aparição do monstro que aciona a multidão, é a fuga dele das grades de controle.
O que, exatamente, é expiado quando o bode expiatório é identificado e destruído?
O processo analisado por Girard “designa simultaneamente a inocência das vítimas, a
polarização efetiva que se efetua contra elas e a finalidade coletiva dessa polarização”
(GIRARD, 2004, p.52). Isso ocorre de um modo tão radicalizado que à vítima é
interditada a possibilidade de se defender. Joel é inocente? Qual o crime de Joel? Ter
matado Maurício e ferido Amanda? Ou ter saído do quartinho? A polarização, me parece,
torna intransitivo o verbo expiar, e faz da ação — o linchamento — um ato com uma
finalidade em si mesma, de um modo aproximado ao que Bataille (2013) entende como
dispêndio, gasto puro, destruição e desperdício improdutivo de energia.
A multidão persecutória situa-se em um espaço dispendioso que Bataille (2013)
identifica como exercício da soberania, ações que são puro gasto, que não estão
empenhadas em produzir bens coletivos. A multidão atua como um corpo informe e
homogêneo, que marcha rumo às duas existências monstruosas, que não podem mais ser
assimiladas no espaço social. Nesse sentido, a multidão atua como um mediador, ou um
152

agente do poder e da norma. Dito de outro modo, o grupo parece ser a extensão de um
tipo de poder coercitivo cuja matriz é o Estado.
A noção de poder como monopólio da violência (WEBER, 2015) é sustentada por
um pensamento que entende o Estado a partir da regra e da proibição. Essa ideia é
evidenciada na noção de contrato social, vista em Hobbes e em Rousseau, por exemplo.
O contrato social imagina uma cena primordial semelhante à da passagem do estado de
natureza para o estado de cultura. Nessa passagem, o homem abre mão de sua liberdade
individual irrestrita (estado de natureza) e se submete ao domínio de um poder que está
acima de todos os indivíduos juntos e que detém o privilégio da coerção física, a fim de
manter a paz e a proteção do corpo coletivo.
O estado de natureza e o contrato social são duas imagens importantes para o tipo
de imaginação social formulada pelo Estado. Essas imagens implicam em um tipo de
antropologia filosófica que vislumbra esse sujeito anterior ao estabelecimento da cultura,
ou de formas elaboradas de sociedade. Em Rousseau, cabe lembrar, esse sujeito é
moralmente bom e livre. A vida em sociedade o corrompe, mas parece ser o preço pago
pela garantia da liberdade e da segurança. Por meio do contrato social, esse sujeito
essencialmente bom garantiria sua liberdade e segurança individuais à medida que se
submetesse à soberania coletiva. Há, nesse ato fundante, algo que é perdido pelo sujeito
a fim de que ele possa ser protegido e amparado pelo corpo social.
O pensamento de Thomas Hobbes (1974) antecede historicamente a concepção de
Rousseau e o entendimento iluminista de sujeito e de política. A antropologia filosófica
de Hobbes difere da assertiva rousseauniana de que a sociedade promove corrupção, e de
que o natural do sujeito é o bem. Para Hobbes, o sujeito anterior ao contrato social é mau
por natureza. A concepção do autor relaciona-se a uma tradição agostiniana em que o mal
não é apenas o oposto do bem, mas sua total ausência e negação (ao contrário, por
exemplo, de Bataille, para quem o mal é uma força produtiva). Se Rousseau percebia o
estado de natureza com certa nostalgia, Hobbes defendia a existência de um governo forte,
capaz de controlar a natureza conflituosa dos sujeitos, sob o risco de um caos civil. A fim
de evitar a guerra de todos contra todos, o estado, imaginado na figura do Leviatã, deve
ser mais violento (coercitivo) que o sujeito. A imagem remete ao monstro bíblico que
aparece primeiramente no livro de Jó, no Antigo Testamento, descrito como uma criatura
marinha implacável, indomável e de terrível poder destrutivo.
Na leitura que Butler (2021) faz da obra de Hobbes, podemos entender a
suspensão da soberania individual em prol de um acordo coletivo, ao mesmo tempo que
153

esse acordo cria a figura do governante soberano. “O estado de natureza era, para ele,
uma guerra, mas não uma guerra entre Estado ou autoridades vigentes. Era uma guerra
travada por um indivíduo soberano contra o outro” (BUTLER, 2021, p.41). A imagem
desse sujeito soberano que antecede a sociedade foi estendida historicamente a outros
tipos de organizações sociais, notadamente povos estrangeiros e povos colonizados pelos
europeus. A construção do contrato social como um ato fundante que cria o Estado na
medida que garante as condições mesmas da sociedade produziu um tipo de hierarquia
entre os diferentes modos de organização política.
Interessa em Hobbes a imagem do Estado como um monstro que remete à besta
bíblica. A figura do Leviatã de Hobbes ficou conhecida na cultura visual a partir da
gravura de Abraham Bosse (figura 21). A ilustração mostra o soberano gigante sobre a
cidade, coroa na cabeça, empunhando espada e cetro. Seu corpo parece revestido por um
tipo de armadura escamosa, cujos detalhes revelam ser uma multidão de corpos, a soma
de todos os cidadãos que forma o estado. Um detalhe importante da ilustração de Bosse
é o fato dos sujeitos estarem todos de costas ao observador, indistintos, enquanto o
monstro soberano olha de frente na imagem. Hobbes descreve o corpo do Leviatã como
um autômato, um tipo de monstro artificial que imita a harmonia da natureza: “Pela arte
é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que
não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem
natural, para cuja proteção e defesa foi projetado” (HOBBES, 1974, p.9).
O Leviatã bíblico foi amplamente representado nas artes, notadamente a partir das
gravuras de William Blake e Gustave Doré, mostrado com uma grande serpente marinha.
O imaginário popular recupera a imagem do girante marinho com frequência. O monstro
elaborado por Hobbes, no entanto, não é representado como uma fera ou uma serpente,
mas sim como um constructo antropomórfico. A ilustração de Bosse endossa a figura do
soberano, adornado com símbolos de governo, que absorve e iguala todos os sujeitos
humanos sob o seu domínio. Do monstro bíblico, a criatura de Hobbes mantém não
apenas a “soberba e altivez” (HOBBES, 1974), como também a força, a fúria e a
superioridade sobre as outras formas de vida.
154

Figura 21: Gravura de Abraham Bosse. Detalhe do frontispício da edição de 1651 do Leviatã, de
Thomas Hobbes.
Fonte: Domínio Público.

A paz garantida pelo Leviatã é sustentada pelo fato de que ele é mais forte e
violento que o conjunto de cidadão reunidos, em um tipo de mitologia que hierarquiza o
povo abaixo do Estado. Essa paz consiste em dar um destino devido a todas as formas de
vida, encaixá-las coercitivamente em um projeto de vida social. Nesse projeto de vida
coletiva, o monstro e as outras formas de vida dissidentes são lidos como inimigos da paz
civil. O monstro é o outro, a fantasia do inimigo que justifica a existência de um estado
forte e protetor. Na formulação de Hobbies, o monstro não é apenas o invasor externo,
mas também o lobo do homem, a propensão natural dos sujeitos à violência e ao caos
civil. As vidas dissidentes são parte de uma economia política que mantém o estado
coercitivo, como uma “justificativa moral para a retaliação” (BUTLER, 2019d, p.24), ou
são vistas como um elemento a ser expiado (GIRARD, 2004).
Por outro lado, o monstro é capaz de propor modos de organização social que
prescindem da relação entre poder e monopólio da violência. Em lugar de um tipo de
comunidade organizada sob um estado coercitivo, e mantida a partir da coerção, o
monstro é capaz de propor formas de vida e de cuidado em que a noção de centro é
dispensável e indesejável. O argumento pode ser aproximado do estudo que o antropólogo
155

Pierre Clastres (2020) realizou com as sociedades ameríndias. Na contramão de um


pensamento clássico sobre o Estado, Clastres propõe que esse tipo de organização política
não é o destino ou a consequência natural do desenvolvimento das sociedades.
O estudo de Clastres propõe um recuo dos pressupostos tradicionais sobre o
estado, notadamente a influência do evolucionismo nas ciências humanas. Essa visão
tradicional, que tem o contrato social como imagem fundante, defende a ideia estado
como um tipo de destino para as sociedades. As sociedades com estado seriam um tipo
de sociedade mais complexa, e o desenvolvimento mesmo das formas sociais com o
tempo levaria ao surgimento de formas de governo semelhantes ao Estado moderno.
Clastres (2020) recua desse pressuposto que naturaliza a relação entre coerção e
estado, o estado sendo criado a partir de uma falta primordial, e afirma que os povos
ameríndios estruturam-se a partir de outra cosmologia, como sociedades que optaram por
não constituir estado. Não se trata de outra versão do contrato social, mas sim de explorar
a política indígena a partir de outro universo simbólico, que garante tecnologias sociais e
cosmológicas que impedem a concentração do poder nas mãos de um líder. Do ponto de
vista antropológico, trata-se de uma operação semiótica que não associa poder à política,
nem poder à violência. As sociedades ameríndias:
Pressentiram muito cedo que a transcendência do poder encerra para o grupo um
risco mortal, que o princípio de uma autoridade exterior e criadora de sua própria
legalidade é uma contestação da própria cultura; foi a instituição dessa ameaça
que determinou a profundidade de sua filosofia política. Pois, descobrindo o
grande parentesco entre poder e natureza, como dupla limitação do universo da
cultura, as sociedades indígenas souberam inventar um meio de neutralizar a
virulência da autoridade política (CLASTRES, 2020, p.54).

Clastres torna evidente a divisão entre sociedades com estado e sociedades sem
estado, ou contra o estado. Trata-se, para ele, de uma escolha — os matizes dessa escolha
não são claros, mas são colocados pelo autor como uma escolha social e cosmológica
inconsciente. As sociedades com estado escolheram organizar-se sob a égide de um
estado coercitivo, processo que é irreversível. O exercício que proponho não é tanto
comparar formas políticas monstruosas com as sociedades estudadas por Clastres, mas
sim pensar aberturas possíveis à ideia que relaciona poder, política e coerção como
praticas indissociáveis e que estão na matriz da produção de modos de vida.
O monstro apresenta-se como uma forma de vida inassimilável ao estado, como
vimos anteriormente em Inferninho e, agora, em As Boas Maneiras. O tipo de filiação
que Clara e Joel desenvolvem, a constituição de uma família e de modos de habitar o
mundo, são modos de produzir vida política fora da coerção coletiva. O monstro é capaz
156

de convocar humanos outros, extra-humanos, animais, formas não antropocêntricas para


participar dos coletivos, do comum, das diplomacias e das assembleias. Enquanto o
Estado age como uma força homogeneizadora dos sujeitos, produzindo relações com base
na função social e na identidade, o monstro vive a partir da variação do corpo, da
transformação e proliferação das zonas de diferença. As Boas Maneiras organiza os
espaços fora do radar do Estado, reconfigurando as zonas de invisibilidade em
comunidades imaginadas, como mundos habitáveis e heterotopias de resistência.
157

5 A NATUREZA DOS TROLLS E O FUTURO DOS MONSTROS

Mas o vento vira, as coisas mudam, e a alteridade sempre


termina por corroer e fazer desmoronar as mais sólidas
muralhas da identidade (Metafísicas Canibais, Eduardo
Viveiros de Castro).

O que significa sair dos abismos onde reina o indistinto,


escolher reconstruir outros limites com a ajuda dos novos
materiais encontrados bem no fundo da noite indiferenciada do
sonho? Bem no fundo de uma boca escancarada de um outro
que não é você? (Escute as Feras, Nastassja Martin)

Este capítulo acompanha Tina (Eva Melander), personagem principal do longa-metragem


sueco Border (Ali Abbasi, 2018), em um percurso que aciona diferentes modos de
perceber a monstruosidade e as pessoalidades dissidentes. O início do filme traz a
protagonista enredada em um conjunto de relações que a tornam um tipo de sujeito
deslocado e estigmatizado, oscilando entre pertencimento e exclusão em relação à
sociedade. O desenrolar da narrativa conduz Tina a outras formas de percepção de si e da
monstruosidade elaboradas a partir de pontos de referência que entendem o sujeito fora
de uma economia binária da alteridade. Este modelo binário, cabe retomar, elabora a
diferença com base na oposição e na exclusão (AGAMBEN, 2017), em um processo de
incluir a diferença sob o imperativo da exclusão. Nesse sentido, o humano e a cultura são
definidos, em parte, em função daquilo a que eles se opõem. Esse processo é o que
Agamben nomeia “máquina antropológica”:
Enquanto nesta [na cultura] está em jogo a produção do humano, por meio da
oposição homem/animal, humano/inumano, a máquina funciona
necessariamente por meio de uma exclusão (que é já, também e sempre, uma
captura) e uma inclusão (que é também uma exclusão). Justamente porque o
humano já é, com efeito, pressuposto, a máquina produz na realidade um tipo de
estado de exceção, uma zona de indeterminação na qual o fora não é a exclusão
de um dentro e o dentro, por sua vez, tampouco é a inclusão de um fora
(AGAMBEN, 2017, p.61).

O monstro, de um ponto de vista estritamente humano, é colocado como o outro


radical dessa relação antinômica, e é comumente codificado como não-humano ou
inumano34, ou em um espaço intermediário entre a humanidade e a não-
humanidade/inumanidade. O monstro é, assim, incluído no discurso, mas de modo

34
Utilizo indistintamente não-humano e inumano como sinônimos.
158

excludente, como exceção, desvio, compensação ou subversão do humano. A


representação cultural do monstro, não raro, explora essa relação antinômica a partir de
uma mistura de signos: a cabeça de touro, a transformação em lobo, o rabo de porco, bem
como um conjunto de outras variações lidas como corrupção, incompletude ou
deformidade (da forma humana), como examinados nos capítulos precedentes.
Diante do humano, o monstro é empurrado para o outro lado, para o animal, para
a natureza ou para as formas não codificadas e ininteligíveis do não-humano. Essa
oposição, que implica um eu e um outro, um dentro e um fora, reproduz e atualiza a
distinção clássica entre natureza e cultura. Como discutido anteriormente, essa concepção
indica o atravessamento de um estado prévio de natureza para o estado de cultura e
estabelece uma fronteira que distingue a vida civilizada e o que foi deixado para trás, a
natureza, a animalidade, a vida incivilizada35.
Do ponto de vista do monstro, no entanto, essa relação de oposição perde força e,
consequentemente, enfraquece ou invalida o vocabulário utilizado para definir o
monstruoso. A experiência do monstro não apenas torna inócua a ideia de uma cisão
radical entre natureza e cultura, como também não pode ser compreendida tendo como
pressuposto a existência dessa cisão. Dito de outro modo, o pensamento antropológico
que entende o monstro como um outro do humano não pode ser manejado para
compreender o monstro como um modo de vida. A razão disso é que o monstro não é um
ente oposto ao humano, ou uma variação em grau da experiência humana. Não se trata de
uma identidade opositiva, ou o lado invertido da experiência humana, mas sim de uma
relação sujeito-mundo vivenciada a partir de outros pontos de referência, de
intencionalidade e de interpretação de si.
A impossibilidade de pensar o monstro em dicotomias culturais foi discutida em
outros momentos desta tese. Se retomo o argumento, sob o risco de redundância, o faço
porque a experiência de Tina em Border retoma esses elementos para pensar o monstro
como modo vida ou como um modo próprio de pessoalidade. O filme de Abbasi organiza
um conjunto heterogêneo de elementos que endossam a relação antinômica entre natureza
e cultura, a saber: animais selvagens e animais domésticos, floresta e cidade, sexo e
gênero, corpo e moralidade, para citar alguns. Esses elementos são dispostos como um
pano de fundo estrutural, sobre o qual os personagens se movem, como uma maneira de
fixar o modo humano/cultural de organizar e compreender o mundo. Tina, cujo ponto de

35
Esse atravessamento ontológico é entendido na Antropologia, especialmente em Lévi-Strauss (1993;
1996) como o Tabu do Incesto, tido como o ato fundante da cultura.
159

vista acompanhamos, oferece uma experiência de percepção e de produção de saber sobre


o mundo diversa do modo humano de estabelecer diferenças.
O intuito desse capítulo é descrever esse modo de vida a partir do ponto de vista
de Tina. Ponto de vista, ou perspectiva, é entendido nesta tese a partir das discussões
sobre a “qualidade perspectiva” do pensamento ameríndio (VIVEIROS DE CASTRO,
2018; 2020). Essa qualidade indica que “o mundo é habitado por diferentes espécies de
sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas, que o apreendem segundo pontos de vista
distintos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2020, p. 301). Essa ideia de mundo indica que
todos os existentes são potencialmente capazes de intencionalidade e que compreendem
os demais viventes e o ambiente segundo suas próprias características ou potências
(VIVEIROS DE CASTRO, 2018). Ao perceber perspectivamente o mundo, diferentes
formas de vida não apenas multiplicam as possibilidades de interpretação do mundo, mas
o conceito de mundo ele mesmo é multiplicado em mundos diversos possíveis.
O perspectivismo ameríndio, tal como o entende Viveiros de Castro, implica um
tipo de inversão da relação tradicional/ocidental entre natureza e cultura que leva o autor
a propor o conceito de multinaturalismo. De modo resumido, o multinaturalismo aponta
que é a cultura, e não a natureza, a forma do universal. O pensamento antropológico
tradicional/ocidental entende a natureza como a base biológica e imutável sobre a qual
variam as culturas, o que implica no multiculturalismo e no relativismo cultural. O
pensamento ameríndio interpreta essa relação de modo inverso: a pessoa, o espírito, a
cultura são as formas universais e presumidas. O corpo é que entra em variação e as
manifestações corporais podem ser lidas como configurações relacionais materializadas.
O multinaturalismo indica que a ideia de ponto de vista não é tanto uma prerrogativa
cultural ou representativa. A representação é uma categoria mental, culturalmente
codificada, e o ponto de vista está no corpo (VIVEIROS DE CASTRO, 2018; 2020).
Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são
propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo. Ser capaz de ocupar
o ponto de vista é sem dúvida uma potência da alma, e os não-humanos são
sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre pontos
de vista – e um ponto de vista não é senão diferença – não está na alma. Esta,
formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda
parte; a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos
(VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p.66).

Afirmar que a perspectiva está no corpo indica, sobretudo, que o corpo não é
unicamente uma entidade fisiológica ou anatômica distinta e individualizada, mas sim
“um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus, um ethos, um
etograma. [...] feixe de afetos e capacidades, e que é a origem do perspectivismo”
160

(VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p.66). Esta concepção de corpo encontra relação com
o modo que esta pesquisa entende o corpo do monstro e faz eco às discussões anteriores,
notadamente a partir de Judith Butler. Ainda que partindo de matrizes de pensamento
distintas, a noção de corpo no multinaturalismo (Viveiros de Castro) e na teoria queer
(Butler) convergem na ideia de um corpo que não é universal e que não é presumido. O
corpo, tampouco, pode ser entendido como o invólucro de uma substância ou essência
que define o sujeito, seja ela a alma ou a psique. As duas concepções defendem um corpo
que apreende o mundo a partir de variações contínuas, como ontologias móveis. Além de
entender que o corpo emerge a partir de um conjunto de relações, afastando-se da ideia
corrente no estruturalismo de um corpo prévio ao discurso ou à cultura.
Pensar o monstro a partir da qualidade perspectiva indica não apenas que ele
experimenta o mundo de um modo outro que não o cultural-humano, mas que ele é capaz
de exercer ou vivenciar um tipo de pessoalidade própria que surge nessa relação sujeito-
mundo. O monstro propõe um modo de pessoalidade que prescinde da atribuição externa
do estatuto de pessoa pelas instituições culturais, como no caso dos indivíduos humanos
que são reconhecidos como sujeitos a partir de atribuições culturais (gênero, raça,
nacionalidade, idioma, parentesco etc.). A experiência do monstro também difere do
exemplo dos animais domésticos, tratados como membros da família e personalizados
como sujeitos, e cuja existência é coextensiva à pessoa do tutor humano.
Border nos mostra esse conflito a partir de Tina, cujo corpo apresenta
características particulares, notadamente a forma física disforme e um olfato apurado. A
personagem vivencia um percurso de deslocamento das instituições humanas que,
simultaneamente a absorvem e a segregam — a incluem sob o imperativo da exclusão.
Esse deslocamento é disparado pelo encontro com um semelhante, Vore (Eero Milonoff),
que compartilha com Tina as mesmas características físicas. Tina e Vore se envolvem
amorosamente e sexualmente, estabelecendo um tipo de filiação (corpórea e social, ou
seja, perspectiva) que não seria possível com os outros personagens do filme. Essa filiação
move Tina em direção a outro modo de perceber o corpo e a espécie, quando Vore revela
que eles não são humanos, mas trols, remetendo aos monstros da mitologia nórdica.
Esta narrativa será devidamente expandida e explicada ao longo do capítulo.
Interessa situar, por ora, como o filme apresenta estes personagens, em especial, Tina,
que realiza um movimento de metamorfose de seu estatuto de pessoa em direção a uma
ontologia monstruosa. O título original, em sueco, de Border é Gräns. As duas palavras
significam fronteira, limite, ou ainda, borda, como indica a homofonia com o termo em
161

inglês. O debate sobre fronteira como uma zona habitável, e que se manifesta nas
fronteiras do corpo e da relação humano-inumano, está presente em todo o filme. O tema
é caro a esta investigação na medida em que, ao invés de inverter os lados da fronteira, o
monstro promove uma redistribuição dos predicativos presumidos a cada polo. Tina
apresenta-se como um sujeito fronteiriço e que torna a fronteira uma zona habitável.

5.1 A TERCEIRA MARGEM

Tina trabalha em um posto da alfândega na área portuária de uma cidade sueca. O


trabalho consiste em inspecionar os passageiros que desembarcam, atenta a possíveis
contrabandos e objetos ilegais. A personagem, no entanto, não opera uma máquina de
raio X ou um detector de metais. É por meio do cheiro que Tina é capaz de perceber que
algo está irregular. O olfato é mais aguçado que o esperado em um ser humano, capaz de
discernir objetos materialmente distintos e sensações subjetivas, como culpa, medo e
vergonha. Não está claro se, em casos como esses, em que Tina distingue emoções e
sentimentos, se ela fareja bioquimicamente as pessoas, ou se a habilidade ultrapassa
capacidades físicas naturais. O que sabemos é que ela capta odores imperceptíveis aos
outros personagens e que nunca se engana. O olfato de Tina toma a dianteira dos outros
sentidos e garante uma posição ambígua no trabalho, respeitada profissionalmente,
contudo atuando como um substituto sofisticado de um cão farejador.
Os momentos iniciais do longa-metragem evidenciam essa capacidade olfativa. A
primeira cena do filme mostra Tina diante do grande barco em que trabalha, ainda em
terra. Ela observa a vegetação rala na margem do rio. Algo chama atenção de seu olfato.
A personagem recolhe um pequeno inseto marrom, segura-o delicadamente entre os
dedos, observa atenciosamente, cheira e, em seguida, devolve o animal à planta em que
estava. Logo em seguida, já no trabalho, ela intercepta bebidas alcóolicas na bagagem de
um jovem. Pelo olfato ela é capaz de afirmar que ele é menor de idade e que carrega três
ou quatro litros de álcool na mala, o que é confirmado pelo colega de trabalho, que revista
a bagagem do adolescente.
Estes são dois exemplos apresentados sequencialmente no início do filme, como
um modo de apresentar e distinguir Tina. O sentido apurado pode ser entendido de modo
ambíguo: para o corpo social, o olfato pode denotar um talento, ou uma raridade que
contribui com a coletividade e com a ordem. Para Tina, não se trata tanto de uma
habilidade, mas do modo mesmo de perceber o ambiente concreto em que ela está
162

inserida. O olfato é a interface sensível que a conecta com esferas distintas do mundo
material à sua volta. Esse mundo material é apresentado no filme a partir de uma
dicotomia entre natureza e cultura, como mencionei anteriormente. Na cena comentada,
objetos de natureza (o inseto) são intercalados com objetos de cultura (as garrafas de
bebida), e esse movimento é reencenado ao longo do filme a partir de outros elementos.
Em relação à percepção do ambiente, Tina organiza suas experiências de um modo
particular em relação aos outros personagens. Por meio do olfato, ela entra em contato e
interpreta o mundo a partir de um ponto de referência corporal que não é compartilhado
pelos outros, e que não endossa a perspectiva cultural preponderante. Nesse sentido, Tina
é duplamente deslocada do mundo: por sua unicidade que a destaca dos demais e porque,
para ela, o mundo é recebido e entendido também de modo diverso. É possível pensar a
qualidade perspectiva de Tina como um modo específico da relação sujeito-mundo, um
desencaixe no modo antropocêntrico de conceber o real.
O ponto de vista torna o corpo uma zona de intencionalidade potencial e, no caso
de Tina, demonstra que condições sensoriais específicas produzem relações outras com o
ambiente. O conceito de umwelt, elaborado pelo biólogo estoniano Jakob von Uexküll
nas primeiras décadas do século XX, é uma chave importante para pensarmos a relação
sujeito-mundo vivenciada por Tina. O termo corresponde em português a “meio
ambiente” ou, de modo mais literal, “mundo ambiente”. Contudo, o modo como Uexküll
manuseia o termo torna seu significado mais complexo e a tradução, consequentemente,
mais difícil. Para o autor, umwelt se refere a um tipo de “mundo próprio” de cada sujeito
animal, e corresponde a um recorte dos elementos do ambiente condicionado pela
estrutura orgânica específica de cada vivente (UEXKÜLL, 2010). Dito de outro modo,
umwelt diz respeito à percepção que os organismos vivos mantém sobre si mesmos e
sobre os elementos que os circundam e que é condicionado pelas capacidades sensoriais
de cada espécie, bem como os mecanismos de comunicação e tradução disponíveis a cada
vivente em um determinado ecossistema.
A teoria de Uexküll (UEXKÜLL, 2004; 2010; AGAMBEN, 2017) propõe que
cada sujeito animal percebe o ambiente em um tempo-espaço específico, abrindo a
possibilidade para uma variedade infinita de mundos perceptíveis e incomunicáveis entre
si. A umwelt seria esta interface sensível por meio da qual cada vivente participa do
ambiente que o circunda. A leitura que Agamben (2017) faz de Uexküll indica o caráter
fortemente não antropocêntrico do pensamento do biólogo e uma desumanização das
imagens da natureza. A teoria da umwelt indica uma ruptura contumaz com o modo que
163

a ciência clássica entende o ambiente, que interpretava o mundo como um todo unitário,
habitado por espécies ordenadas hierarquicamente, das formas primitivas às complexas.
Em lugar disso, há uma “infinita variedade de mundos perceptíveis, todos igualmente
perfeitos e ligados entre si” (AGAMBEN, 2017, p. 66).
[...] nós imaginamos que as relações que um determinado sujeito animal mantém
com as coisas de seu ambiente têm lugar no mesmo espaço e no mesmo tempo
daqueles que o ligam aos objetos de nosso mundo humano. Essa ilusão repousa
sobre a crença em um único mundo no qual se situariam todos os seres viventes.
Uexküll mostra que tal mundo unitário não existe, assim como não existe um
tempo e um espaço iguais para todos os viventes. A abelha, a libélula ou a mosca
que observamos voar em torno de nós em um dia de sol não se movem no mesmo
mundo em que nós as observamos, nem dividem conosco — ou entre elas — o
mesmo tempo e o mesmo espaço (AGAMBEN, 2017, p. 67).

Os mundos percebidos pelos diferentes viventes são incomunicáveis e


reciprocamente exclusivos (AGAMBEN, 2017), ainda que em contínuo contato entre si.
Cabe dizer que a ideia de perspectiva, como entendida na teoria de Uexküll, e o
perspectivismo, como discutido por Viveiros de Castro, não são, de modo algum,
sinônimos ou operações análogas. Neste último, trata-se de uma episteme que toma o
corpo como um princípio inconstante capaz de produzir e habitar pontos de vista, o que
implica uma multiplicidade de mundos perspectivos. Em Uexküll, trata-se de uma seleção
de elementos do ambiente, condicionada pela capacidade sensorial física de cada vivente,
o que inclui o humano com os cinco sentidos conhecidos.
Aproximo os dois conceitos como um modo de compreender como Tina se orienta
no ambiente em que vive. De modo diverso dos insetos investigados pro Uexküll, Tina é,
a princípio, entendida como um ser humano e participa dos códigos da linguagem, ao
mesmo tempo que percebe o mundo a partir de uma seleção sensorial própria. A hipótese
que investigo nesse capítulo indica que, ao perceber o ambiente a partir de um ponto de
vista próprio, o monstro produz mundo, ou ainda, um conceito perspectivo de mundo.
Um mundo elaborado fora de esquemas que separam natureza e cultura. O cenário
proposto por Border adiciona elementos de complexidade à hipótese, uma vez que Tina
é mostrada como um elemento de tradução, que transita entre modos distintos de
organização dos elementos do ambiente.
Diante disso, gostaria de argumentar que, ao priorizar o olfato, em detrimento dos
outros sentidos, o corpo de Tina relaciona-se de modo particular também com
mecanismos institucionais e discursivos do poder. O olfato antecede sensivelmente os
outros sentidos em uma realidade em que os estímulos visuais e auditivos são
predominantes em processos de transmissão de informações. Em lugar de um aparelho de
164

Raio X, há um nariz extremamente potente. Em um contexto de organização visual do


real, em que o sujeito contemporâneo percebe o mundo pela visão ou mediada por
dispositivos midiáticos, a experiência de Tina dá lugar a uma perspectiva em que a visão
é parte secundária da compreensão das experiências.
Jonathan Crary (2012; 2013) relaciona os problemas da visão na modernidade
com questões relativas ao corpo e ao funcionamento do poder social. Para Crary, os
modelos de visão são inseparáveis da organização social do conhecimento e de práticas
sociais que transformam as habilidades produtivas, cognitivas e desejantes dos sujeitos
(CRARY, 2012). O sujeito observador é, a princípio, o corpo que materializa (torna
visível) a visão na história. Esse sujeito é “a um só tempo produto histórico e lugar de
certas práticas, técnicas, instituições e procedimentos de subjetivação” (CRARY, 2012,
p. 15). A visão, no argumento de Crary, é um complexo amálgama histórico, relacionado
aos dispositivos de poder que emergem na modernidade ocidental a partir do século XIX,
organizados sob a noção de biopoder. Nesse sentido, observar é conformar a visão a um
conjunto de regulamentos e práticas, convenções e restrições (CRARY, 2012).
Para o autor, não há um sujeito observador prévio aos fenômenos observados, ou
ainda, um observador neutro anterior ao desenvolvimento de formas históricas de
representação visual. A produção do corpo e da subjetividade modernos está intimamente
relacionada às modalidades materiais de percepção do mundo. Os aparelhos óticos, para
Crary, não podem ser reduzidos a meros objetos técnicos. Trata-se de dispositivos
complexos cuja existência social é inseparável de seu uso mecânico (CRARY, 2012). A
relação pode ser estendida aos sentidos do corpo humano. O observador é “efeito de um
sistema irredutivelmente heterogêneo de relações discursivas, sociais, tecnológicas e
institucionais” (CRARY, 2012, p. 15). De modo aproximado, Butler (2019; 2019a) afirma
que o corpo está sempre subordinado a uma discursividade sobre o corpo, não havendo,
portanto, um corpo prévio, neutro, passivo à significação. O corpo, no pensamento de
Butler, emerge de modo simultâneo aos discursos que o possibilitam historicamente,
como um “conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e
mantidas” (BUTLER, 2019, p.70).
Ainda que discutindo fenômenos distintos, os dois autores, Crary e Butler,
aproximam-se das discussões desta tese na leitura que ambos fazem de Foucault, da
biopolítica e do poder disciplinar. A produção e controle dos sentidos, notadamente a
visão e a relação que esta estabelece com a atenção e com a percepção, interessam Crary
como um modo de entender o surgimento do sujeito moderno. Observamos em Crary a
165

produção de modalidades de corpos e de subjetividades modernas a partir da emergência


de um tipo de sujeito observador. Esse sujeito organiza o mundo — o tempo, os afetos,
as noções de verdade, de corpo, de desejo — com base na percepção visual. Cabe
ressaltar, dentro de uma preocupação biopolítica, que a visão é uma das camadas de um
corpo presumido teoricamente que pode ser cooptado e modelado por técnicas externas
(CRARY, 2013). A visão, em um cruzamento bastante evidente entre Crary e Foucault,
é detalhadamente trabalhada por dispositivos midiáticos que não apenas produzem o
olhar, como também privilegiam a visão em detrimento de outros sentidos.
Desse modo, a presença de um personagem que, ao cheirar, cerra os olhos para
perceber o ambiente, como o faz Tina, levanta suspeitas sobre que tipo de corpo está em
ação, e como esse corpo se relaciona com os mecanismos disciplinares. O ato de cheirar
é manifesto constantemente em um movimento facial em que Tina abre levemente as
narinas e ergue o lábio superior. O gesto está incorporado na personagem, como uma ação
espontânea e intuitiva, ou instintiva, em um sentido que se opõe à noção de hábito cultural
e técnica corporal (MAUSS, 2003). O instinto está sempre em ação, ainda que de modo
não totalmente consciente ou controlado pela personagem. Utilizo o termo instinto em
contraposição à técnica não como o marcador de uma diferença, mas como um modo de
pensar as oposições operantes no filme.

Figura 22: Tina


Fonte: Fotogramas de Border (Ali Abbasi, 2018)

Para Crary (2013), os modos de percepção, mais precisamente, os modos como


ouvimos, olhamos e nos concentramos, têm um intenso lastro histórico. As atividades
produtivas, criativas, de fruição, ou ainda, tarefas passivas e rotineiras fazem parte de uma
“dimensão da experiência contemporânea que requer de nossa consciência o
166

cancelamento efetivo ou a exclusão temporária de boa parte do ambiente imediato


(CRARY, 2013, p.25). Tina organiza as informações do ambiente ao seu redor a partir de
uma experiência sensível que não é partilhada pelos outros personagens e que, pelo menos
dentro da narrativa, escapa aos modelos de codificação de signos corrente. Não se trata
de afirmar que os odores não estejam configurados na cultura. Todos somos capazes de
conferir valor a um perfume ou a um odor desagradável e, com isso, estabelecer uma
relação de significado entre os cheiros e os objetos. O que Border apresenta com a
sensibilidade de Tina é algo diverso de uma experiência semiótica. Trata-se de um
conjunto de trocas entre interfaces sensíveis heterogêneas que produz uma relação com o
mundo, ou produz o mundo ele mesmo, de modo diverso ao da norma social.
Mesmo que o olfato posicione Tina em um espaço de raridade, aproximando-a de
animais, como cães com olfato aguçado, é a aparência da personagem que endossa um
modo irredutível de alteridade. Tina pode ser descrita como uma mulher jovem, mais
baixa que a maioria dos outros personagens com quem convive, com um corpo atarracado.
Tem o rosto largo, a testa proeminente, coberta em parte pela franja dos cabelos castanhos
claros que parecem descuidados. Os olhos pequenos também são de cor clara, apertados
na ossatura larga da face, as maças do rosto são salientes. O nariz é largo e a mandíbula
projeta-se para frente, revelando dentes pequenos e pontiagudos. Há uma cicatriz no canto
superior da testa, coberta em parte pelo cabelo, e que é resultado de um raio que atingiu
a personagem quando criança. Os lábios superiores são erguidos quando ela cheira algo,
exibindo mais dos dentes e do formato pontiagudo da arcada dentária. As mãos são
grossas, e revelam unhas sujas de terra, o que destoa do asseio do uniforme policial que
ela veste no trabalho. Tina tem outra cicatriz acima do cóccix, vista apenas nas cenas de
nudez da personagem. A origem da marca é confusa, e a personagem acredita que é
consequência de um acidente na infância.

Figura 23: Tina vestindo o uniforme do trabalho.


Fonte: Fotogramas de Border (Ali Abbasi, 2018)
167

Apresento as duas características — olfato e aparência física — em sequência. No


filme, contudo, elas são mostradas simultaneamente, na cena já mencionada em que Tina
recolhe um inseto da grama, na abertura do filme. A imagem expõe o rosto dela em
detalhe no momento em que ela examina o animal com o nariz. A descrição verbal da
personagem apresenta certa dificuldade em classificá-la. Separadamente, cada
característica evidenciada não é, de fato, inaudita ou monstruosa, podendo remeter à
feiura, a alguma deformidade ou a uma pessoa descuidada com o corpo, regimes estéticos
de uma outra ordem que não a monstruosa.
Quando tomadas em conjunto, o olfato apurado, a gestualidade associada ao ato
de cheirar, a personalidade taciturna e a aparência, as características de Tina tornam-se
inclassificáveis. Trata-se de um corpo que destoa dos demais e possui traços
inequivocamente disformes. Tina tem uma aparência animalesca, ainda que não pareça
com nenhum animal específico. O rosto faz lembrar um homem de Neandertal, sobretudo
pelo formato do crânio. A fisionomia monstruosa, que remete ao hominídeo pré-histórico,
é explicada no filme por um defeito genético, uma alteração cromossômica que resulta,
além da deformidade física, em problemas de fertilidade e em um desconforto genital,
que faz com que a personagem não consiga ter relações sexuais. O olfato potente,
possivelmente, é entendido como uma consequência dessa alteração cromossômica.
A condição genética, no entanto, não acarreta prejuízos intelectuais ou de
linguagem. A semelhança com o homo neanderthalensis, apesar de endossada pela
maquiagem do filme, é um recurso didático para a aparência da personagem, e não denota
as diferenças de volume craniano e capacidade cognitivas que separam os diferentes tipos
de hominídeos na escala da evolução. Tina executa as funções habituais de uma pessoa
adulta: dirige, trabalha, lê, faz compras no supermercado, relaciona-se com amigos e
colegas de trabalho, cuida do pai. Há, no entanto, certo deslocamento no comportamento
dela, um modo de agir taciturno e desajeitado, como se ela não estivesse totalmente
confortável nas posições sociais que ocupa. O estatuto inicial da personagem denota certa
inadaptabilidade nas funções cotidianas, mesmo que devidamente executadas. Em termos
sociais, Tina não é uma outsider, não é um sujeito marginalizado do ponto de vista de
classe ou de raça. Pelo contrário, em contraposição ao corpo monstruoso, ela ocupa uma
posição estável na ordem social, como cidadã e agente da lei.
Todos os personagens de Border convivem com espaços regulados de natureza,
condizentes com países de elevados índices de desenvolvimento humano, como o caso da
Suécia. Contudo, a habitação de Tina endossa esse contraste entre espaços de natureza e
168

de cultura. A personagem mora em um espaço afastado da cidade, em uma casa cercada


por uma área de floresta. Com Tina, vive Roland (Jörgen Thorsson), um tipo de namorado
ou companheiro amoroso. No jardim da casa há um cercado em que os cães que Roland
cria para competições são mantidos. A presença dos animais incomoda Tina, que não tem
nenhuma relação tutor/animal de estimação com os rottweillers. Por outro lado, em seus
passeios pela floresta, a personagem encontra com frequência animais silvestres, como
raposas e alces, e demonstra familiaridade nesses encontros.

Figura 24: Tina é visitada por animais silvestes.


Fonte: Fotogramas de Border (Ali Abbasi, 2018)

O filme explora momentos em que Tina é visitada por esses animais. Em uma
cena, a personagem sai para o jardim de sua casa, uma pequena faixa de transição entre a
estrada, o espaço doméstico e a floresta, e se depara com um grande alce que cede
calmamente aos carinhos dela. Outra noite, uma raposa aparece na janela do quarto de
Tina, como se estivesse à procura da personagem. O encontro é breve, mediado pelo vidro
da janela, mas denota prazer e familiaridade de Tina com o animal. No contato com os
animais, Tina não demonstra medo, ainda que um alce pudesse machucar facilmente um
ser humano. Do mesmo modo, a raposa aparenta familiaridade com Tina, em um contexto
em que, provavelmente, seria caçada pelos cães de Roland, caso estivessem soltos.
Para Gabriel Giorgi (2015), o animal na ficção fantástica faz referência a um outro
tempo, o tempo de uma natureza espectral, “vestígio de um universo anterior à
modernização e interrupção das evidências do presente” (GIORGI, 2015, p.72). Cabe
dizer, que a relação com o animal não denota unicamente um tipo de alteridade capaz de
transformar o personagem, mas uma relação de continuidade entre as duas formas de vida.
Essa relação é endossada pela presença de animais adestrados, criados em um cercado, e
169

preparados para exposições. Os cães de Roland, sempre latindo de modo hostil a Tina,
não inspiram a docilidade de animais de estimação, mas sim um tipo de agressividade
própria de sua condição cativa. Os animais domésticos estão no filme para demarcar os
domínios da vida humana e da vida animal. Mesmo que Roland demonstre afeto aos seus
cães, há uma descontinuidade e uma hierarquia entre os dois domínios.
Por outro lado, a relação de Tina com os animais da floresta apresenta-se a partir
de pontos de continuidade: espaços de sociabilidade em que as zonas de vizinhança são
multiplicadas e que não podem ser codificados pelos modelos culturais vigentes, como a
distinção entre animal racional e irracional, entre sujeito e objeto, ou caçador e presa.
Trata-se muito mais de uma amizade do que a demarcação da diferença entre espécies.
Tina oscila entre estes estatutos antitéticos, não tanto como uma figura de conciliação,
mas a partir de uma continuidade, como um tradutor, alguém que oscila entre as naturezas
e as temporalidades fraturadas estabelecidas pela cultura.

5.2 UM MONSTRO PÁLIDO, DÓCIL E MELANCÓLICO

O estatuto social de Tina é apresentado de forma ambígua. Por um lado, o corpo


da personagem excede o funcionamento e as capacidades de um corpo humano. A
aparência e o olfato impedem uma aderência completa aos atributos normativos de um
sujeito. Contudo, um conjunto de atributos de reconhecimento social são impressos no
corpo da personagem, como raça, classe social, nacionalidade e gênero. Tina pode ser
lida como uma mulher, branca, sueca, funcionária da alfândega. Ao mesmo tempo, a
personagem é condicionada por uma anomalia cromossômica. Esse conjunto de
predicativos disciplinares atuam de modo simultâneo, como um dispositivo que codifica
e isola o corpo da personagem sob o estatuto da doença e dos saberes e práticas que
classificam as anomalias e os sujeitos anômalos.
A alteração cromossômica atribuída a Tina reacende o debate que relaciona o
monstro à noção de anomalia e incompletude. Codificá-la a partir da doença normatiza o
organismo ao mesmo tempo que singulariza o sujeito. Dito de outro modo, como
portadora de uma síndrome desconhecida, Tina é capturada pelos saberes médicos
disciplinares, identificada em uma taxonomia, classificada em um rol de outras condições
genéticas. De modo simultâneo, sua condição de pessoa permanece anômala e
incompleta. A doença torna-se uma explicação aceitável para a aparência da personagem
e age como um modo de normatizar a diferença a um nível taxonômico. Geneticamente,
170

ela permanece no domínio do humano, do homo sapiens, mas com uma falha.
Juridicamente, ela é mantida nesse domínio mas de modo incompleto, corrompido ou
desviado. Uma pessoa com um asterisco.
Douglas (2012) reitera o caráter público das categorias culturais e que estas não
podem ser facilmente revistas sem uma transformação maior na ordem social. Nesse
sentido, os casos isolados, os desvios à norma, não podem ser ignorados culturalmente.
“Qualquer sistema dado de classificações deve dar origem a anomalias, e qualquer cultura
dada deve confrontar os eventos que parecem desafiar seus pressupostos” (DOUGLAS,
2012, p.54). Por conta disso, para a autora, toda cultura elabora modos de lidar com os
eventos ambíguos ou anômalos. Os modos que as culturas lidam com suas desordens
variam e respondem à demanda da funcionalidade dos sistemas de classificações
correntes. Interpretar um nascimento como anômalo do ponto de vista médico, em lugar
de milagroso, é um modo de classificar esse nascimento em um sistema cultural vigente.
Essa classificação confere um destino ao monstro, e garante que ele não interfira na
efetividade das taxonomias, uma vez que “a regra de se evitar coisas anômalas confirma
e reforça as definições às quais elas não se ajustam (DOUGLAS, 2012, p.55).
De modo controverso, o estatuto social da personagem como uma agente da lei é
parte da dramaturgia disciplinar moderna. Trata-se de uma contradição que negocia
diferenças irredutíveis. Tina é respeitada no trabalho, ao mesmo tempo que ocupa uma
função que normalmente é realizada por cães farejadores. O corpo a torna desagradável,
distinta dos demais, enquanto o mesmo corpo é normalizado a partir de critérios médicos.
Tina é codificada no domínio da anomalia, como um elemento que não se ajusta a um
dado conjunto (DOUGLAS, 2012), ao mesmo tempo que sua existência não é capaz de
causar um assombro taxonômico. Ser anômalo é normatizado como um diagnóstico. As
sanções disciplinares que operam sobre o corpo de Tina garantem à sua existência uma
explicação razoável e minam o caráter monstruoso da sua vida.
A disciplina, como elabora Foucault (1999; 2014), indica uma multiplicidade de
processos produtivos de poder, decorrente de uma transformação do poder punitivo, e que
investe de modo detalhado no corpo a partir de técnicas ininterruptas. O poder disciplinar
opera a partir de descrições, classificações, prescrições, receitas, dados (FOUCAULT,
2014), como um modo de classificar e produzir os sujeitos. A taxonomia, “espaço
disciplinar dos seres naturais” (FOUCAULT, 2014), transforma-se em uma tática, uma
repartição disciplinar. Essas táticas classificatórias operam como uma modalidade de
poder à medida que transformam o contingente de corpos humanos em conjuntos
171

organizados, populações, classes, grupos identitários. “Ela permite ao mesmo tempo a


caracterização do indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma
multiplicidade dada” (FOUCAULT, 2014, p.146).
Os modos como o poder disciplinar é investido no corpo de Tina podem ser
entendidos como uma maneira de enquadrar o corpo monstruoso em uma existência
inofensiva e inteligível. Trata-se de um procedimento quase laboratorial, como um
experimento único. Tina é singular na narrativa, pelo menos até o encontro com Vore. Os
mecanismos incessantes e contínuos da disciplina buscam torná-la um corpo dócil. Esse
é o objetivo do poder disciplinar: agir continuamente nos detalhes, reduzir o corpo à sua
funcionalidade, adestrá-lo, torná-lo dócil e útil. Para Foucault, “é dócil um corpo que pode
ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”
(FOUCAULT, 2014, 134). Essa docilidade não é tanto uma simpatia ou uma candura,
como no caso da docilidade estratégica dos personagens de As Boas Maneiras. Em Tina,
essa docilidade reflete na funcionalização do corpo, em como esse corpo é ajustado
utilitariamente na sociedade.
Esses procedimentos em Border manifestam-se no trabalho de Tina e nas
condições de uma vida civilizada. A personagem vive reclusa em uma casa cercada por
uma floresta e demonstra estar visivelmente mais confortável diante de animais silvestres
do que de seres humanos ou cães adestrados. Ainda assim, ela é codificada a partir de
elementos disciplinares alheios à monstruosidade: ela veste um uniforme, contribui com
a ordem, e é devidamente explicada por saberes médicos. O saber médico, em uma
perspectiva disciplinar e biopolítica, é um mecanismo de tornar o indivíduo um objeto
descritível e analisável, ao mesmo tempo que faz desse indivíduo um “caso” particular
(FOUCUALT, 2014). Os desvios e as anomalias perdem seu caráter reincidente, e são
compreendidos como uma população ou uma espécie (FOUCUALT, 1999).
Canguilhem (2012) dialoga com o pensamento foucaultiano no que se refere à
naturalização dos monstros, em um sentido de adequação às leis da natureza. Para
Canguilhem, o mesmo período histórico que naturalizou a loucura também naturalizou os
monstros, transformando-os em peças do saber médico, com um destino e uma explicação
biológica. A prática de internação compulsória de que fala a História da Loucura
(FOUCAULT, 2019) e as feiras de exposições de monstruosidades já discutidas nesta
tese são exemplos desse processo. Esse período de adequação do monstro às leis das
ciências naturais consiste na passagem do século XVIII para o XIX, época em que foram
elaboradas explicações científicas sobre o monstro e uma redução correlativa do
172

monstruoso (CANGUILHEM, 2012). “No século XIX, o louco é posto no asilo que lhe
serve para ensinar a razão, e o monstro, no frasco do embriologista que lhe serve para
ensinar a norma” (CANGUILHEM, 2012, p.195).
Quando a monstruosidade se tornou um conceito biológico, quando as
monstruosidades são repartidas em classes segundo relações constantes, quando
se vangloriam de poder tê-las provocado experimentalmente, então o monstro é
naturalizado, o irregular se rende à regra, o prodígio à previsão. Parece então
evidente que o espírito científico ache monstruoso que o homem tenha podido
crer, outrora, em tantos animais monstruosos. Na idade das fábulas, a
monstruosidade denunciava o poder monstruoso da imaginação. Na idade das
experiências, o monstruoso é considerado como sintoma de puerilidade ou de
doença mental; ele acusa a debilidade ou o fracasso da razão. (CANGUILHEM,
2012, p.194).

Tina é apresentada como um modelo dessa situação paradoxal. Mesmo que


desperte olhares desconfiados por conta de sua aparência e que seja destacada dos demais
pelo olfato, a personagem não distorce ou rompe com o sistema de saberes em que vive.
A percepção do ambiente e a relação próxima com a natureza são as linhas de fuga da
personagem. Ainda assim, a norma mantém um poder coercitivo sobre ela, evidenciado
em ações ordinárias. O cotidiano de Tina contempla funções básicas da vida. Ela tem um
emprego estável, bens materiais, um automóvel, uma casa. A residência é organizada,
asseada, mobiliada segundo o gosto comum da classe média. Ela visita regularmente o
pai que está internado em uma clínica para idosos, e que demonstra uma acentuada perda
de memória. A mãe morrera algum tempo atrás.
Como dito, Tina também vive algo semelhante a um relacionamento amoroso:
com ela, mora Roland, um homem jovem, criador de cães de grande porte que competem
em feiras e exposições. Os cães são hostis a Tina, que demonstra pouca familiaridade com
eles. A relação entre Tina e Roland é pouco explicada e pode ser lida como um tipo de
namoro incompleto: os dois dormem em camas separadas e a presença do rapaz não
parece agradar totalmente Tina. Em uma noite, ele a procura para relações sexuais e a
personagem o expulsa da cama, recusando o ato. Tina alega não poder, que o ato machuca
seu corpo, e repele Roland.
Há uma nítida inadaptabilidade manifesta pela personagem, mesmo em um
contexto de vida cotidiana, regular e normal. Tina refere-se a si mesma como defeituosa,
fazendo menção à condição genética. Sobre o sexo, o desconforto tem a ver com a
impossibilidade de penetração. Ela diz a Roland: “não posso, isso me machuca”. É
possível supor, diante disso, que ela nunca teve relações sexuais, mesmo que performe
socialmente um relacionamento heterossexual. As atividades de Tina, no entanto,
173

parecem emular as ações cotidianas de um sujeito comum, mas sempre com um hiato de
realização. Esse hiato perpassa a vida social pública e a vida íntima da personagem,
notadamente na impossibilidade do ato sexual e na geração de filhos. A reprodução de
um relacionamento heterossexual mostra-se incompleta, como um arremedo, ou uma
imitação melancólica da vida cotidiana de um casal.
Tina é o que Foucault (2010) chama de “monstro pálido”, figura que o autor
aproxima do aparecimento dos anormais, como uma categoria jurídica dos desvios
sociais. Para Foucault, o indivíduo anormal será marcado por esse tipo de monstruosidade
enfraquecida, apagada, e por um tipo de “incorrigibilidade retificável e cada vez mais
investida por aparelhos de retificação” (FOUCAULT, 2010, p.51). Para ele, o monstro é
parte da genealogia da anormalidade, aparecendo com uma frequência cada vez menor,
em detrimento dos pequenos desvios que irão caracterizar o indivíduo a ser corrigido,
cuja frequência é mais elevada do que a dos monstros humanos. Isso porque, o contexto
de referência do monstro é muito mais complexo do que o dos anormais. O monstro
desafia, simultaneamente, as leis da natureza e da cultura, enquanto os delinquentes e
anormais são definidos a partir de situações mais estreitas, como a família e o
comportamento sexual. Foucault evidencia uma mudança nas preocupações sociais que
passam a se ocupar da monstruosidade moral com mais empenho.
O monstro, como sabemos, persiste em formas mais ou menos evidentes, mais ou
menos transgressoras e, no caso de Tina, mais ou menos retificáveis. A explicação médica
não oferece uma cura ou correção definitiva ao problema da personagem, apenas a
condiciona a um estatuto científico. O controle do corpo ocorre “detalhadamente”
(FOUCAULT, 2014), Tina é socializada como uma esquisitice, uma imperfeição, um
desvio da natureza. O monstro torna-se, portanto, um corpo dócil e melancólico. Há, aqui,
duas perspectivas que agem simultaneamente sobre o corpo da personagem e que dizem
respeito ao controle disciplinar dos corpos e à unicidade do corpo monstruoso de Tina.
O ponto de vista de Tina, explorado no filme, aponta para outros modos de refletir
sobre as formas de vida, que serão explorados em seguida. Do ponto de vista da norma,
no entanto, a relação entre monstro e anormal parece ser verificada em Border. A
docilidade da personagem é manifesta na intensa colaboração que Tina faz com a lei —
ela passa a cooperar com a polícia em uma investigação sobre uma rede de pedofilia —,
e na relação amigável que tem com um casal de vizinhos. Quando pensamos
comparativamente com outras modalidades do monstro humano, essa categoria de
monstruosidade passível de explicação pela ciência e que se materializa em corpos
174

disformes ou anômalos, podemos observar uma equação complexa no que toca a relação
entre humanos e monstros.
Em Freaks, por exemplo, os personagens destoam do quadro de controle dos
corpos e mostram-se capazes de violência e de organização social das diferenças. A
docilidade e a melancolia não são fatores de caracterização deles, mesmo que enredados
na economia visual dos freak shows e do conhecimento científico moderno. A capacidade
de agência e de autorreflexão, ou seja, de produzir conhecimento sobre si mesmos, é
executada fora de conceitos e referenciais normativos. Em Freaks, é possível dizer, os
monstros propõem um tipo de saber sobre o mundo que parte da experiência deles em
comunidade, e não de uma adaptação dos saberes humanos (médicos, sociológicos).
Essa capacidade se dá pelos modos distintos de elaborar a diferença. Dito de outro
modo, é a noção de comunidade, criada a partir do convívio entre corpos dessemelhantes,
que possibilita que essas formas de vida existam como tal. Argumento semelhante ao
desenvolvido no capítulo anterior, em que a invenção de formas outras de parentesco e
de filiação mantém Clara e Joel vivos. Do ponto de vista da resistência e da subversão, os
monstros de Freaks são exitosos. Eles são capazes de travar relações de amizade com
humanos sem cair em uma docilidade utilitarista.
Tina, no entanto, é apresentada como um monstro isolado. As relações possíveis
fora de um escopo humano só ocorrem, a princípio, com animais silvestres e com o
contato com a natureza. Isolada, Tina tem uma existência semelhante à de personagens
de filmes como Mask (Peter Bogdanovich. 1985) e Wonder (Stephen Chbosky, 2017). As
tramas dos dois filmes são semelhantes em alguns aspectos que quero explorar e dão conta
da vida de personagens jovens acometidos por síndromes raras, que resultam em
deformidades físicas aparentes.

Figura 25: Rocky e Auggie.


Fonte: Fotogramas de Mask (Peter Bogdanovich. 1985) e Wonder (Stephen Chbosky, 2017).
175

Mask acompanha a vida de Rocky (Eric Stoltz), um adolescente que sofre de


displasia craniodiafisária, uma desordem óssea que aumenta os ossos do crânio,
deformando o rosto. Por conta da pressão na espinha dorsal, a expectativa de vida de
Rocky é reduzida. No filme, o adolescente vive com a mãe, Rusty (Cher), que enfrenta
resistências à vida normal do filho. Na trama, vemos a insistência da mãe em matricular
Rocky em uma escola regular de ensino médio, em detrimento de uma escola específica
para alunos com deficiência, e uma resistência aos discursos médicos que desumanizam
o filho. O garoto anseia por uma cirurgia plástica que pode diminuir o impacto da
aparência. O procedimento arriscado é desencorajado pelos médicos, pois os ossos do
personagem ainda estão em fase de crescimento.
Rocky vive distante do pai, e relaciona-se com uma comunidade de amigos da
mãe, um grupo de motoqueiros que se encontram regularmente para beber, ouvir rock e
consumir drogas. A comunidade marginalizada destoa da cidade em que vivem, cujos
moradores são de maioria branca e de classe média. O filme explora esse movimento de
Rocky que é acolhido como um tipo de filho pelo grupo de motoqueiros, ao mesmo tempo
que enfrenta resistências à sua aparência na escola. A figura paterna é distribuída entre os
homens e mulheres do grupo, em eco à presença forte da mãe. A resistência é vencida aos
poucos, em parte pela candura e bom humor do personagem, e pela sua inteligência
excepcional, que garante um lugar de destaque no colégio.
A socialização de Rocky, no entanto, é sempre marcada pela aparência disforme
e pelos sintomas da doença. O envolvimento social e amoroso principal do personagem
se dá em um acampamento para crianças deficientes visuais, em que ele se voluntaria
como monitor e engata um namoro com uma jovem que não enxerga, Diana (Laura Dern).
Fora do condicionamento visual, Diana pode conhecer de fato a humanidade de Rocky,
endossada pela personalidade dele. Rocky morre ao final do filme, ainda adolescente,
confirmando as expectativas médicas.
Wonder, filme lançado mais de duas décadas após Mask, apresenta similaridades
com a obra de Bogdanovich, tanto narrativas como formais. O filme conta a história de
August ‘Auggie’ (Jacob Tremblay), um menino de 10 anos, que sofre da Síndrome de
Treacher Collins, uma condição genética que altera o formato dos ossos e causa
deformidades severas, que levou o menino a passar por diversas cirurgias ainda na
primeira infância. Diferente de Rocky, Auggie vive em uma família de classe média
tradicional, e é educado em casa pela mãe Isabel (Julia Roberts). O filme é narrado pelo
menino e começa com a entrada dele em uma escola presencial. A criança é bem recebida
176

pelo diretor, que mobiliza outros estudantes para recepcioná-lo. Os conflitos com a
aparência dele, no entanto, povoam toda a narrativa, ao passo que ele vai se tornando uma
figura popular na escola, tanto pelo êxito intelectual quanto pela personalidade divertida
(não muito diferente de Rocky). O final do filme coincide com o final do ano escolar,
com Auggie sendo aplaudido pela escola como um aluno de destaque, em um arco
narrativo em que a diferença é louvada e o estigma é criticado.
As semelhanças entre os dois filmes parecem aproximá-los em uma escalada
histórica da inclusão a partir da repetição de temas: a maternidade, o discurso médico, a
escola, a socialização etc. Rocky encontra maior resistência nas instituições, a escola o
rejeitaria se não fosse a insistência da mãe. O jovem fica de fora da descoberta sexual dos
romances do ensino médio até conhecer uma garota deficiente visual. Além da
possibilidade recíproca em que dois jovens com deficiências físicas possam se amar, o
discurso de que a falta de visão revela a verdadeira personalidade de Rocky, a “alma
humana”, é notório.
A realidade de Auggie é mais protegida, sobretudo em termos de classe e da
operação do conceito de inclusão. O diretor da escola o recebe com entusiasmo, é a mãe
que teme que o filho possa sofrer. É possível perceber, na transformação dos discursos
sobre tolerância e inclusão, um tipo de maior abertura que ocorre a partir do
condicionamento da anomalia: Rocky e Auggie são lidos como humanos por trás da
carapaça monstruosa. Diferente da teratologia do século XIX, que evidencia o embrião
por trás do monstro, o discurso da tolerância vai identificar a condição humana naquele
corpo deformado. O valor humano dos personagens é medido pelo intelecto, pela
docilidade e por características morais e emocionais.
A moeda de troca da humanidade dos dois personagens é a inteligência e a
personalidade. Em outros termos, a capacidade de razão, que vai ser critério de diferença
entre humanos e monstros (basta lembrarmos do Minotauro), bem entre humanos e
animais, e a docilidade. Rocky e Auggie são instados a desejar a normalidade, de modo
oposto aos personagens de Freaks. Se em Freaks há um momento em que eles aceitam
um elemento de fora como um dos deles, Mask e Wonder empenham em demonstrar que
os monstros podem ser aceitos pela coletividade humana.
O fenômeno não ocorre de modo idêntico. Para Rocky, as reais possiblidades de
filiação são com outros outsiders como ele, tendo uma relação complexa de parentalidade
e de cuidado com toda uma comunidade de motoqueiros. As experiências de Rocky
passam por uma escalada de melancolia que destoam da personalidade divertida e
177

otimista do jovem. A sensação de não pertencimento é constantemente acionada: ser


carismático e admirado não torna o personagem parte da comunidade de humanos. Há
sempre um impeditivo. O grau de inclusão é espelhado pelo desenvolvimento da ciência.
Wonder narra fatos contemporâneos ao contexto atual, em que a medicina tem mais
ferramentas de cura e de adaptação do corpo disforme às exigências da sociedade. Neste
filme, a diferença é celebrada como uma raridade positiva (o título em português do filme
é Extraordinário) e o final festivo parece dirimir as dificuldades enfrentadas pela criança.
A melancolia em Wonder é negociada pela moral humana que aceita o
extraordinário garoto de rosto disforme, na condição de sua personalidade e seu intelecto.
Em Mask, um processo semelhante parece ser anunciado, mas é impedido pela morte
precoce do adolescente. Contudo, ainda que em proporções distintas, o que os dois filmes
colocam, e que quero relacionar com Border, é que os personagens estão sempre sendo
instados a participar das instituições. Não cabe a eles uma vida independente das
instâncias oficiais de socialização (como em Freaks ou em Inferninho). Ou uma vida
dupla, fora do radar das instituições, como em As Boas Maneiras. Os distintivos sociais
de reconhecimento são forçosamente investidos nos três personagens, Rocky, Auggie e
Tina. A socialização dos personagens se dá a partir de espaços tradicionalmente
disciplinares como a escola, o hospital, o trabalho e a polícia.
Linhas de fuga são desenhadas: Rocky e os motoqueiros; Auggie e o apego por
ciência e ficção científica; Tina e a natureza. Contudo, a equação que inclui docilidade e
melancolia é acionada nas três biografias. De algum modo, os três devem servir como
corpos dóceis e utilitários para serem mantidos em sociedade e para participarem da
socialização que é, ao mesmo tempo, coercitiva e interdita. A balança não parece
equilibrada, e a melancolia do não pertencimento é constitutiva de seus modos de ser.
Sabemos pouco sobre a adolescência e infância de Tina (explorarei fatos de sua
infância mais adiante). Em um diálogo com o pai ela diz: “Toda minha vida me senti feia.
Uma aberração. Trataram-me mal desde que me lembro”. O sentimento de inadequação
e de inferioridade permeia o modo que a personagem se entende no mundo. Podemos
conjecturar uma adolescência não tão diferente dos dramas que Auggie e Rocky
passaram, mesmo que a “doença” de Tina não causasse risco de morte. No que podemos
resguardar as diferenças de país e cultura, Rocky e Tina nasceram em épocas similares,
por volta da década de 1970. Falo isso como um recurso para tentar imaginar a
adolescência da personagem. O carisma e o bom humor não parecem ter destacado Tina
como uma pessoa amada e simpática, e o olfato, útil à polícia, deve ter sido motivo de
178

bullying na escola. Ainda assim, Tina precisa se esforçar para cumprir as demandas de
sociabilidade, capturada por mecanismos disciplinares contínuos e repetitivos.
Gostaria de sugerir que a melancolia de Tina não é resultado apenas da
inadaptabilidade social e da aparência. O drama sexual, que não é vivido por Rocky e
Auggie, e que aparece como resolvido em Freaks, tem papel importante na vida da
personagem sueca. A melancolia, nesse sentido, assume um caráter de melancolia de
gênero, um interdito ao prazer sexual e ao desejo, mas não apenas. Trata-se de uma
incongruência entre possibilidades sexuais, condições anatômicas e genitais e a demanda
por performar uma heterossexualidade, ao mesmo tempo compulsória36 e incompleta.
A vida de Tina como uma mulher heterossexual é marcada por esse sentimento de
incompletude — sexualidade interrompida, esterilidade, aparência física e inadequação
ao gênero feminino nos moldes como a coletividade demanda. Se Tina fosse identificada
como uma mulher lésbica, talvez o sentimento de inadequação pudesse ser explicado pela
homofobia estrutural. A insistência em apresentar o cotidiano dela como uma mulher
cisgênero heterossexual endossa a noção de uma melancolia constitutiva. O sentimento é
resultado da imposição coercitiva de um gênero inteligível, ao mesmo tempo que a
aderência a esse gênero é impossível à personagem.
Enredada entre um emprego formal e uma anomalia cromossômica, Tina é
capturada por mecanismos jurídicos e médicos que reduzem a potência de vida do
monstro. Afirmar que o poder disciplinar dociliza e empalidece o monstro indica que há
algo próprio da monstruosidade que está sendo perdido ou que não é vivenciado por Tina.
É nesse sentido que utilizo a ideia de “potência de vida”, ainda que o termo seja
escorregadio, pois pode indicar que há uma monstruosidade essencial e verdadeira presa
em um corpo forçosamente civilizado. O que quero sugerir afasta-se dessa noção
substancialista da monstruosidade e, sobretudo, da ideia de que pensar o monstro como
forma de vida é tornar a monstruosidade uma identidade. Trata-se de um movimento
contrário: há um modo de vida possível que é negado à Tina. Um modo de vida que
constantemente tenta escapar da coerção do poder disciplinar e que é próprio às
qualidades perspectivas da personagem. A condição monstruosa é socialmente interdita
à personagem pelo poder disciplinar.
A potência do monstro pode indicar uma abertura ou uma linha de fuga da
incessante individuação disciplinar e dos interditos sociais próprios à noção de cultura.

36
Sobre heterossexualidade compulsória, cabe destacar o trabalho de Adrienne Rich (2010).
179

Em uma linha que conecta o pensamento de Foucault ao de Bataille, a ideia de uma fuga
em relação à norma parece indicar um caminho possível em direção ao que é chamado
aqui de “potência de vida”. Em Foucault, essa fuga é expressa pela ideia do cuidado de
si, e em Bataille pelo erotismo.
Em Border essa abertura se dá por uma experiência de erotismo que conduz o
monstro ao próprio corpo, e pela vivência de formas propriamente monstruosas de
sexualidade e de gênero. A perturbação na alteridade é estabelecida a partir do encontro
com Vore, com quem Tina vive um romance e cuja relação redistribui os predicativos até
então atribuídos à personagem.

5.3 A VIDA SEXUAL DOS TROLS

A chegada de Vore é percebida por Tina pelo olfato antes que ele apareça no
campo de visão — dela e do plano fílmico. Vore chega pelo comprido corredor de
desembarque de passageiros, na área fiscalizada por Tina. Sozinho, carregando apenas
uma mala de mão, o personagem aciona a percepção de Tina: as narinas dilatadas e os
lábios erguidos são disparados de modo mais intenso que o normal e denunciam um tipo
de perturbação nos sentidos dela. Um cheiro novo, suspeito, e que demanda uma
investigação. O olfato de Tina parece convocado de modo involuntário, como se farejasse
algo bastante fora do comum. Cabe reforçar essa sensação, sobretudo pela aparente
sobriedade de Tina no trabalho. Em uma cena anterior, ela intercepta, no cartão de
memória do celular de um passageiro, conteúdo de pornografia infantil. A personagem
realizou sua inspeção com um comportamento sóbrio e frio. De modo oposto, a presença
de Vore no corredor de desembarque perturba Tina de modo notório.
Fisicamente, Vore apresenta características semelhantes às de Tina — a mesma
fisionomia que lembra um homem de Neandertal. Uma primeira observação do
personagem indica um homem alto, corpulento, de aparência descuidada e um tanto
assustadora. O rosto exibe os traços já vistos em Tina: pele branca, cabelos castanhos
claros de tamanho médio, que caem despenteados sobre o rosto, a testa larga, o nariz
grosso e a mandíbula levemente projetada para a frente, revelando dentes amarelados. Os
dedos das mãos estão permanentemente sujos de terra. De um modo geral, é possível
supor que ele possui a mesma síndrome rara que acomete Tina e a fisionomia releva um
outro masculino da personagem, um tipo de duplo ou de irmão de outro gênero. Contudo,
180

enquanto Tina é mostrada de modo sóbrio, asseado e polido (ou pálido, dócil e
melancólico), Vore apresenta-se de modo grosseiro, desafiador e descuidado.

Figura 26: Vore


Fonte: Fotogramas de Border (Ali Abbasi, 2018)

O encontro é breve. Não há nada na bagagem de Vore que poderia levantar


suspeitas, apenas uma pequena lata de metal que ele afirma ser uma incubadora de
minhocas. Em um segundo encontro, outros detalhes do corpo do personagem são
evidenciados. De modo semelhante, a presença dele no corredor de desembarque perturba
os sentidos de Tina que inspeciona novamente sua mala, sem encontrar irregularidades.
Tina insiste, certa de que há algo errado com ele (até então o olfato dela não apresentou
falhas). O colega de Tina leva Vore para uma sala restrita para uma revista íntima, que
também não revela problemas.
O colega, no entanto, fala para Tina que ela deveria ter conduzido a revista pois,
em “termos científicos”, Vore é uma mulher, com uma vagina e não um pênis. O guarda
não encontra os pronomes apropriados para referir-se a Vore, não sabe se utiliza “ele” ou
“ela” para indicar adequadamente o sexo do personagem. A presença de uma vagina
surpreende o guarda, além de indicar que uma mulher devesse realizar a revista. Ou seja,
Tina. O guarda comenta com Tina que não sabe precisar se Vore fez algum tipo de
cirurgia de redesignação sexual, mas que possui uma cicatriz acima do cóccix. A
informação desperta a curiosidade de Tina, que possui marca semelhante, ainda que esse
tipo de cicatriz não tenha relação com os órgãos genitais de Vore.
Nesse diálogo, após descobrir que Vore tem uma vagina, Tina utiliza o pronome
pessoal feminino (em sueco, hon) para designar o personagem, enquanto o colega
demonstra não saber como referir-se a Vore, alternando entre o feminino e o masculino
(em sueco, han). O idioma sueco reconhece um pronome neutro, hen, utilizado para
referir-se a pessoas que não se identificam com as designações tradicionais de gênero, ou
181

que optam por não tornar pública essa informação37. O termo foi incorporado à norma
culta da língua, mas não é falado no diálogo entre Tina e o colega. Em português, é
equivalente a “elu/delu”, utilizado por pessoas de gênero não binário, por pessoas
transgênero, ou por quem não se reconhece na designação binaria masculino/feminino do
par sexo/gênero.
Nenhum desses parece ser o caso de Vore, que, a princípio poderia ser identificado
como um homem transgênero. Essa designação, contudo, não é trazida para o filme e a
presença de um homem com vagina perturba, por motivos distintos, Tina e o colega. A
possibilidade de tratar-se de uma pessoa transgênero acende um cuidado formal do colega
de Tina, como um modo de conduzir Vore a uma designação apropriada: uma pessoa com
vagina não deveria ser revistada por um homem cisgênero. Vore, contudo, abstém-se de
qualquer explicação e os documentos de identidade do personagem não são mostrados.
Há uma mudança, a princípio sutil, no modo como Vore é codificado como um corpo
monstruoso — uma passagem rápida de um corpo masculino disforme e desagradável
para possivelmente um homem com vagina.
Qualificar Vore como um homem transgênero, na minha leitura, apaziguaria as
dúvidas sobre sua identidade, sobretudo em uma sociedade racional, burocrática e laica,
como a que é mostrada no filme. A transgeneridade identificaria o personagem com uma
identidade reconhecida pela ciência. O personagem, contudo, causa um efeito de dúvida
em Tina e no colega, e mostra-se alheio aos procedimentos de legibilidade dos corpos e
dos sujeitos. Os modos correntes de atribuir uma identidade ao sujeito são desativados
pela entrada de Vore. Do ponto de vista de Tina, o olfato perde a eficácia, e aquele sujeito
semelhante a ela — possivelmente também semelhante do ponto de vista do cheiro —
coloca em questão a sua própria identificação como sujeito. Do ponto de vista do colega,
a dúvida denota o ponto de vista humano, os modos como aquela sociedade recebe e
interpreta corpos ininteligíveis como o de Vore, que está longe da adequação social
performada por Tina.
A partir deste encontro, Tina sente-se visivelmente atraída por Vore e perturbada
com essa sensação. A atração aparenta ter uma natureza dupla: um interesse fortemente
físico, como o cio de um animal, ao mesmo tempo que denota uma curiosidade e uma
dúvida crescentes diante de um semelhante. Em uma ocasião, Tina rastreia Vore com o
olfato, forçando um encontro. O momento ocorre em uma área arborizada, um tipo de

37
Mais informações encontram-se na notícia: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/03/dicionario-
sueco-incluira-pronome-para-genero-neutro.html
182

jardim, próximo ao albergue em que Vore está hospedado. Tina aborda o personagem que
coleta minhocas de uma árvore e guarda em um depósito. Vore come uma das minhocas
e sugere a Tina fazer o mesmo. Após hesitar, ela cede à sugestão de Vore e engole uma
pequena larva amarelada, ainda viva. Esse gesto denota uma abertura para a civilizada
Tina, como uma passagem para experiências associadas à natureza e à vida animal.
Neste encontro, Tina convida Vore a ocupar uma pequena cabana de hóspedes no
jardim de sua casa. O convívio com Vore opera uma força de deslocamento nas
atribuições sociais de Tina. A relação dos dois apresenta uma intimidade crescente,
possibilitada pela partilha das características comuns. Em um dia, logo após a mudança
de Vore para a casa de hóspedes, durante uma tempestade, Tina mostra-se bastante aflita:
fora atingida por um raio na infância, que resultou em uma cicatriz na altura da testa. De
modo inexplicável, seu corpo parece atrair raios com frequência. Visivelmente temerosa,
a personagem desliga todos os eletrodomésticos das tomadas e é interpelada por Vore,
que bate à sua porta buscando abrigo. Os dois escondem-se embaixo da mesa da cozinha,
abraçados e tremendo, perturbados pelo barulhos dos trovões e pela luz dos relâmpagos
que iluminam todo o espaço.
Após a chuva, e mais calmos, os dois saem da casa em direção à vegetação da
floresta, aproximam-se afetuosamente e começam um ato sexual, prontamente
interrompido por Tina. A personagem alega que é “deformada”, referindo-se aos genitais
que, a princípio, estariam deformados devido à anomalia genética. Diante disso, não
poderia dar continuidade ao ato sexual. Vore questiona Tina e não recua no investimento.
Os dois parecem tomados pelo desejo, as narinas dilatadas, os dentes expostos, rosnando
enquanto cheiram e lambem os corpos um do outro. A personagem cede à excitação,
avança sobre Vore e abaixa a própria calça: entre as pernas de Tina desponta um pênis
ereto, fino e pontiagudo, que cresce na proporção da excitação sexual dela.
A reação da personagem deixa explícito que aquela era a primeira vez que aquilo
ocorria. Até então, ela entendia seu órgão genital como uma vulva deformada. O rosto de
Tina, diante da visão do próprio pênis, aparenta um sentimento complexo de surpresa e
êxtase, emoção e desejo. Durante o ato sexual, Vore é penetrado por Tina. Os dois urram
selvagemente durante o ato e toda a performance dos personagens remete a uma
animalidade, os dentes expostos, os rosnados e urros, o gesto de cheirar intensificado, a
ausência de palavras. Ao mesmo tempo, o ato denota uma despersonalização intensa
causada pelo erotismo e pela abertura de Tina a um corpo e a uma sexualidade que até
então era desconhecida para ela.
183

Os atributos que elenco como animais são reiterados pela singularidade do corpo
dos personagens e pelo ato sexual ocorrer na floresta. A gestualidade que eles apresentam
não é de todo estranha ao sexo dos humanos, contudo o ato torna singulares os
predicativos sexuais dos dois. O contato sexual entre os dois redistribui os predicativos
presumidos de sexo, gênero e genitalidade. Isso não ocorre, contudo, como um modo de
recompor esses predicativos em um outro formato coerente e estável. O que é apresentado
é uma abertura para a materialização de formas corporais e sexuais que não estão
previamente codificadas.

Figura 27: O ato sexual entre Tina e Vore.


Fonte: Fotogramas de Border (Ali Abbasi, 2018).

Não estou seguro de que Border pode ser entendido como uma metáfora da
transexualidade, ainda que o filme tenha sido recebido assim por uma parte da crítica.
Pensar a partir desse questionamento não é o interesse desta pesquisa. Diante disso, não
utilizarei os pronomes neutros (elu/delu) para referir-me aos personagens. Antes,
interessa-me apontar como as noções de sexo, gênero e sexualidade são desestabilizadas
a partir da relação entre Tina e Vore. O filme não conduz esse conflito em direção a um
significado estável e final sobre o que seria o verdadeiro sexo dos trols. A obra não elabora
184

uma explicação, se são transexuais ou intersexuais, e esse entendimento parece não ser
importante ou cabível aos personagens.
Border redistribui os predicativos culturalmente distribuídos para sexo, gênero e
sexualidade de modo dinâmico. Isso rompe com a dicotomia corrente que relaciona sexo
com natureza e gênero com cultura. Nesse pensamento, sexo seria a unidade biológica
estável, natural, materializada e identificada pelos órgãos genitais. Gênero seria a
consequência cultural dessa materialização, a atribuição de papéis e expectativas sociais
a partir do sexo. Essa relação, que estabelece uma continuidade entre corpo e sentido,
pode ser aproximada do modo como que natureza e cultura são entendidas pelo
pensamento antropológico tradicional.
Essa cisão natureza/cultura reflete no modo como a ideia de gênero é produzida
culturalmente. A natureza, nessa visão, seria, paradoxalmente, a unidade estável e regida
por leis, ao mesmo tempo caótica, pois carece de um significado em si. A cultura passa,
então, a ser entendida como um modo de dar significado às formas naturais. Essa equação
traz uma recorrente noção de sexo como algo imutável e o gênero como uma construção
cultural. Essa dicotomia interessa pelo modo com que sexo e natureza são posicionados
em relação a gênero e cultura.
Butler (2019a) elabora um contraponto à noção estruturalista que divide
natureza/cultura e sexo /gênero. As discussões da filósofa podem ser relacionadas com as
críticas pós-estruturalistas sobre o conceito cultural de natureza, notadamente como
exposto por Viveiros de Castro (2018; 2020), e discutido anteriormente. Para ela, “sexo
é um constructo ideal forçosamente materializado ao longo do tempo” (BUTLER, 2019a,
p.16). A autora discute que não se trata de um fato biológico e estático do corpo, em que
órgãos genitais e órgãos sexuais são tidos como sinônimos, mas sim um processo
regulatório constante que materializa o sexo no corpo dos indivíduos.
No pensamento de Butler, sexo e gênero são os marcos identificadores dos sujeitos
e requisitos para a legibilidade de um indivíduo como humano, em detrimento das formas
abjetas e ininteligíveis de vida. A materialização do sexo ocorre de modo performativo,
como um processo de reiteração da norma em uma temporalidade contínua.
185

Nesse sentido, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus


movimentos, será algo totalmente material desde que a materialidade seja
repensada aqui como o efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder.
Não há forma alguma de entender o “gênero” como um constructo cultural
imposto sobre a superfície da matéria, seja ela entendida como “o corpo” ou
como seu suposto sexo. Ao contrário, uma vez que o “sexo” em si é entendido
em sua normatividade, a materialidade do corpo já não pode ser pensada
separadamente da materialização dessa norma regulatória. Portanto, o “sexo” é
não apenas o que se tem ou uma descrição estática do que se é: será uma das
normas pelas quais o “sujeito” pode chegar a ser totalmente viável, o que
qualifica um corpo para a vida dentro do domínio da inteligibilidade cultural
(BUTLER, 2019a, p.16-17).

Tina e Vore performam uma vida corporal que entra em conflito direto com a
noção de corpo humano. Em parte porque eles foram codificados como humanos.
Defeituosos, anômalos, mas humanos. Ao reconhecer — e o reconhecimento é
condicionado à reciprocidade — que não são humanos, e sim trols, eles lançam mão de
outros modos de designar e vivenciar a sexualidade. Tina e Vore podem ser mulher e
homem, ou macho e fêmea, se utilizarmos um vocabulário estritamente humano. Eles
podem ser, mas em um tipo de configuração que ser mulher e ser homem é uma coisa
toda outra. As noções de mulher, fêmea e feminino, do mesmo modo que homem, macho
e masculino, não são cadência ou gradações de um mesmo estatuto, mas predicativos,
funções e performances culturais flutuantes, dinâmicas e intercambiáveis. Do mesmo
modo, é possível que, em termos trols, os conceitos de masculino e feminino inexistam
ou sejam configurados a partir de outros critérios completamente distintos dos humanos.
Na mesma noite, após a relação sexual, ainda sobre a vegetação rala, Vore revela
detalhes da natureza dos dois. A explicação surge após uma pergunta de Tina: “quem sou
eu?38”. “Um trol, como eu”, é a resposta de Vore. A explicação dele para a condição física
compartilhada pelos dois rompe com a narrativa da alteração cromossômica. Eles são
trols e não estão sozinhos. Há um grupo na Finlândia, país vizinho, que leva uma vida
nômade e são difíceis de serem encontrados. De acordo com Vore, os humanos fizeram
experiências com seus pais trols em um hospital nos anos 1970, mantendo-os vivos por
uma década. Após a morte deles, resultado das experiências médicas, Vore fora mandado
para orfanatos, onde sofreu diversos abusos.
A narrativa breve sobre a infância de Vore justifica o modo com que ele se refere
aos humanos, como uma raça ou espécie totalmente distinta, rival, predadora, e contra
quem uma vingança está sendo orquestrada. Essa vingança, em parte, é perpetrada por ele
mesmo, que age de modo a causar danos aos humanos. Os fatos também nos dão pistas

38
Pergunta que ecoa a voz do monstro de Frankenstein apresentada na introdução dessa tese.
186

sobre a infância de Tina e sobre a nebulosa natureza dos trols. A revelação acentua o
movimento de ruptura de Tina com a vida humana: ela confronta o pai sobre seu passado,
expulsa Roland de sua casa e aprofunda a intimidade com Vore.
As informações sobre a origem da protagonista são reveladas pelo pai já no final
do filme. Para contextualizar, me antecipo na narrativa. A estrutura de Border constrói
uma atmosfera de suspense, em que as informações são reveladas nos momentos de
clímax. Desse modo, os poucos elementos da biografia de Tina são conhecidos pelo
espectador, e por ela, nos momentos de conclusão da narrativa.
Tina fora adotada ainda criança. O pai adotivo não é nomeado no filme e a mãe já
está morta a essa altura dos acontecimentos. Ele conta que era porteiro em um hospital
psiquiátrico, em que estavam internados diversos trols. Cabe dizer que o homem não se
refere aos internos como trols, possivelmente ele não tem essa informação. Os pacientes,
ele conta, não sobreviviam muito tempo e, diante da morte dos pais biológicos de Tina,
ele se ofereceu para adotá-la. Ele e a esposa tinham o sonho de criar uma menina, uma
filha. O nome dado à personagem pelos pais biológicos foi Reva, e substituído por Tina
após a adoção. Os trols mantidos internos no hospital psiquiátrico estão enterrados como
indigentes em um pequeno cemitério. Pedras disformes ocupam o lugar da lápides, e não
há nomes gravados ou qualquer identificação de quem está enterrado ali. Os túmulos são
numerosos, algo entre 40 ou 50 pedras demarcam, sobre um gramado, o lugar em que os
trols submetidos à internação e experimentos estão sepultados.
Diante dessas informações, podemos especular alguns elementos sobre o passado
de Tina. É possível que esse grupo de sujeitos que remetiam aos neandertais foram
descobertos ou capturados de algum modo. Eles teriam sido forçados à internação e a
experimentos científicos violentos demais para que sobrevivessem, mas por tempo
suficiente para que tivessem filhos. Esses trols possuíam caldas e não tinham o
comportamento disciplinar que Tina apresenta. É possível supor que não falassem sueco
e que possuíssem idioma próprio. Os filhos foram dados para adoção, após terem a cauda
amputada, e garantido que seriam inofensivos desde que fossem criados como seres
humanos. A anomalia cromossômica, justificativa para a aparência deles, não seria
motivo de preocupação.
Trols são criaturas do folclore nórdico e escandinavo, e bastante disseminadas na
cultura popular e midiática como um tipo de monstro gigante, geralmente antagonista, em
narrativas de fantasia. A grafia do termo pode variar, trols, trolls, trölls, dentre outras, e
remete etimologicamente à ideia de magia ou de encantamento (LINDOW, 2001; 2014).
187

O termo pode designar uma sorte diversa de criaturas mágicas que vivem na natureza,
como gigantes, elfos, gnomos etc. Há uma genealogia específica sobre os trols nas
mitologias nórdica e escandinava, que os antagoniza em alguns momentos ao deus Thor
e outras figuras heroicas desse panteão. O folclore nórdico também aponta para a
existência de um mundo de gigantes, Jötunheim, topografia geralmente relacionada aos
trols. Esses monstros, no entanto, estão muito mais disseminados no cotidiano humano
do que as figuras canônicas das lendas escandinavas. “No mundo dos humanos há muitos
lugares onde os trols devem habitar: montanhas, florestas, e assim por diante — qualquer
região não povoada nas imediações das fazendas (LINDOW, 2001, p. 206).
A tarefa de precisar o que são trols, do ponto de vista das ciências do imaginário
e do folclore, escorrega na própria variedade semântica do termo. Contudo, o que parece
comum às interpretações é que eles são criaturas antropomorfizadas em algum grau, estão
sempre mudando a forma física e são difíceis de fixar em uma imagem concreta, “exceto,
talvez pelo o que eles não são: humanos, normais, prestativos” (LINDOW, 2014, p 12).
Se a etimologia expande a interpretação sobre o trol, a imaginação popular parece ter
fixado um arquétipo da criatura como uma variação dos antigos gigantes, que vivem em
florestas e são particularmente hostis aos seres humanos, especialmente os desavisados
que perdem-se nas florestas e montanhas. Nesse sentido, o monstro passa a ter parentesco
com outras criaturas de significado igualmente poroso como ogros e trasgos.
A disseminação da imagem do trol em contextos diversos aos do folclore
escandinavo reforça essa ideia de um monstro da floresta. Um exemplo pode ser
encontrado na representação conhecida de J. R. R. Tolkien, em O Hobbit, publicado em
1937, em que três grandes trols raptam os personagens em uma floresta para jantá-los. O
protagonista do livro, Bilbo, os mantém acordados com uma longa conversa até que o sol
nasce e os monstros são transformados em pedra. Essa interpretação faz eco à imagem
dos trols como figuras igualmente violentas e tolas — eles são levados na conversa por
Bilbo e não se dão conta do nascer do sol. Essa imagem é endossada pela representação
pictórica dos trols, especialmente na literatura infantil39. A narrativa de Tolkien, no
entanto, remete igualmente à Odisseia de Homero, em que Polifemo, um ciclope gigante
é enganado pela palavra ardilosa de Ulisses, que cega o único olho do monstro. No

39
Outros contextos, no entanto, atualizam essa figura, como na franquia Shrek, produzida pela
Dreamworks. Na série de filmes, um ogro, figura naturalmente antagônica nos contos maravilhosos, torna-
se protagonista de uma comedia romântica.
188

inventário de seres imaginários feito por Borges (2007), os trols são tidos como
descendentes dos gigantes mitológicos, mas como uma decadência em formas rústicas.

Na cosmogonia que fundamenta a Edda maior lê-se que, no dia do


crepúsculo dos deuses, os gigantes escalarão e derrubarão Bifrost — o
arco-íris — e destruirão o mundo, secundados por um lobo e uma
serpente; os trolls da superstição popular são elfos malignos e estúpidos
que vive nas cavernas das montanhas ou em casebres desmantelados.
Os mais ilustres contam com duas ou três cabeças (BORGES, 2007,
p.204)

A imagem popularizada do gigante, dos ciclopes, assim como as dos trols, endossa
uma criatura violenta e ignorante. Uma genealogia dos gigantes talvez desmentisse esse
estereótipo, como no estudo de Cohen (1999) ou na investigação sobre os gigantes de
Rabelais feita por Bakhtin (2010). No entanto, o monstro é comumente codificado como
um ente sem razão, principalmente diante da fala, do direito à palavra e da engenhosidade
do herói, como ocorre com Teseu e o minotauro, mas também com Bilbo, Ulisses e tantos
outros. Essa relação, sem dúvida, é utilizada como um modo de contrapor humanidade e
monstruosidade no nível da razão e, portanto, da política. Se remonto essas referências
distintas é para chamar atenção para o fato de que os trols em Border foram internados
em um hospital psiquiátrico e a rede de relações sociais a que Tina foi entregue impediu
a personagem de conhecer e contar a própria história.
Os monstros, no filme e nas lendas, são codificados pelo corpo, mas é pela noção
de racionalidade e pela palavra que eles são capturados pelo poder disciplinar. A relação
do monstro com a ciência tem uma longa trajetória, da mesa de dissecação de
Frankenstein às internações psiquiátricas em Border, passando pelos cursos de anatomia
e os laboratórios de genética. Interessa, aqui, pensar a história e a biografia desses
monstros a partir de uma tomada da palavra. É a versão de Vore que, discursivamente, é
tomada como verdade para Tina e para o espectador.
Não sabemos nada sobre os trols de Border. O nosso referencial é baseado na
cultura popular. Não sabemos que tipo de sujeitos Tina e Vore seriam se nascidos e
criados em condições próprias à organização social dos trols. Qual tipo de identidade de
gênero performariam? Em qual idioma se comunicariam? Qual o modelo de família e
organização política adotariam? O que sabemos é que Tina e Vore foram criados em um
modelo de sociabilidade incompatível com a qualidade perspectiva que são capazes e com
a condição monstruosa em que nasceram. Possivelmente os trols tem outro sistema de
parentesco (Tina e Vore podem ser irmãos e toda a discussão sobre família e organização
189

social com base na proibição do incesto torna-se inócua), outra organização de gêneros e
sexos, outro idioma, outros modos de nutrição, estratégias outras de produção de mundo,
de relação com o ambiente (umwelt), de cuidado e proteção recíproca.
Não sabemos também a verdade da palavra de Vore. Isso tornaria a anomalia
cromossômica mais complexa e o discurso médico poderia ser verdadeiro, em parte.
Contudo, isso importa pouco às discussões travadas aqui. A condição monstruosa não
pode ser confundida com uma taxonomia. Identificar Tina e Vore como trols importa na
medida em que eles experienciam o ambiente de um modo outro que o humano. A filiação
entre os dois semelhantes abre a possibilidade para outras formas de proteção e
sobrevivência e para a partilha de um modo comum de entender o mundo e a si mesmos.
Até então, toda a singularidade de Tina era incomunicável. A partir da filiação, que em
Border é disparada pelo sexo, os monstros podem imaginar outros futuros que não sejam
dependentes da reprodução das formas humanas de humanidade.

5.4 O FUTURO DOS MONSTROS

A relação entre Tina e Vore desencadeia em um tipo de romance breve e que tem
um efeito nitidamente positivo em Tina. Em lugar da figura melancólica e disciplinada
do começo do filme, a protagonista aparenta uma crescente felicidade, que parece estar
relacionada com o abandono dos signos ligados à norma: a vida conjugal infeliz, os cães
adestrados de Roland, o uniforme do trabalho, o espaço doméstico. As cenas que
intensificam essa alegria da personagem mostram ela e Vore correndo pela floresta, sem
roupas, ou tomando banho no rio em um dia de chuva, intercalando as risadas com uivos
e urros. O abandono gradual de uma vida disciplinar e humana em favor de uma vida trol
endossa a relação entre a felicidade de Tina e um outro tipo de monstruosidade. Não mais
a monstruosidade codificada pelo discurso médico como anomalia, mas um modo de vida
em que Tina é capaz de se reconhecer e de ocupar os espaços de modo excessivo e não
mediado pelo poder disciplinar.
O romance entre os dois vai resultar em um filho, gestado no corpo de Vore, que
possui sistema reprodutor feminino e foi fecundado por Tina. O filho dos dois será
revelado para o espectador e para Tina apenas no final do filme e retornarei a ele em
seguida. O corpo de Vore apresenta estruturas equivalentes ao útero e aos ovários. Em
uma cena, antes que ele e Tina tivessem tido a primeira relação sexual, o personagem é
mostrado no quarto, contorcendo-se de dor, desconfortável e inquieto. Vore sai de casa
190

em direção à floresta. A dor o faz errar pela vegetação, ofegante, abafando os urros. Em
um ponto, ele despe a calça e realiza algo semelhante a um parto: a dor aumenta, o
personagem urra com os dentes cerrados, como se estivesse fazendo força, e de sua vagina
algo é expelido. Vemos dois pequenos tentáculos, ou pernas, esbranquiçadas e finas,
fracamente iluminadas pela luz da noite. Após o ato, Vore desfalece exausto.
O fruto do aparente parto é mostrado cenas depois, quando Vore e Tina já estavam
envolvidos. Uma tarde, Tina persegue um cheiro estranho até o quarto de visitas ocupado
por Vore e lá, dentro de uma pequena geladeira, encontra algo semelhante a um bebê
recém-nascido. Trata-se de um bebê disforme, a pele pálida e esmaltada, como um
plástico, ou uma borracha. Olhos cerrados, aparentemente cegos. A figura não possui
cabelos. Tina toca a barriga da criatura, a pele afunda e apresenta uma textura gelatinosa.
A aparência geral é a de um bebê disforme e pálido, ou de um boneco que simula um
recém-nascido, exceto pelo fato de que a criatura aparenta estar viva: move os braços
finos e balbucia alguns sons como um bebê real.

Figura 28: Um hiisi.


Fonte: Fotogramas de Border (Ali Abbasi, 2018)

Diante desta imagem, Tina assusta-se e confronta Vore. A pequena criatura,


explica o trol, não é um bebê humano, mas um óvulo não fecundado que sai do corpo de
Vore com periodicidade, uma função orgânica comum e regular de seu sistema
reprodutor. A criatura é chamada por ele de hiisit. O termo remete a uma entidade do
folclore escandinavo, também chamada hiisi, figura comumente associada aos trols,
quase como um sinônimo. O sentido mais disseminado do hiisit é o de um pequeno
demônio ou espírito maligno que habita florestas e são, também eles, hostis aos humanos.
Na explicação de Vore, o hiisit é apenas um óvulo não fecundado de seu corpo, incapaz
de sentir dor e que não vive por muito tempo. A criatura é alimentada por minhocas —
as mesmas que vemos sendo coletadas no começo do filme — cuidadosamente amassadas
com uma colher e levadas à boca semiaberta do hiisit.
191

Nesse diálogo, Vore revela que utiliza os hiisit que saem do seu corpo em um
esquema de tráfico de crianças. O personagem rapta crianças humanas e as substitui pelos
hiisit, como um modo de despistar as famílias e ganhar tempo na fuga. As crianças
raptadas são vendidas pelo trol em um esquema de tráfico de crianças por pedófilos. Cabe
dizer que, a essa altura da narrativa, Tina está colaborando com a polícia em uma
investigação de crimes sexuais contra crianças. A personagem utiliza o olfato na busca
por provas e no interrogatório dos suspeitos. Diante da revelação de Vore, ela percebe
que ele é uma peça importante na investigação em curso e confronta o monstro. A cena
exibe uma explosão de raiva da personagem, em que os dois trocam rosnados, exibindo
os dentes ferozmente um para o outro. Gradativamente, Tina passa a rosnar mais alto e
com mais ferocidade que Vore, fazendo-o calar-se, como se o subjugasse de algum modo.
Essa cena demarca uma ruptura entre os dois personagens.
A justificativa de Vore à interpelação de Tina expõe o plano de vingança do trol
em punir crianças humanas com sofrimentos semelhantes aos que eles sofreram ao serem
tirados dos próprios pais. Vore não qualifica o próprio ato como criminoso ou imoral,
uma vez que não é humano e que não tem que viver sob o mesmo código de conduta que
a humanidade. Na visão dele, ele contribui para que os humanos, espécie que ele odeia e
despreza, machuquem uns aos outros e a seus próprios filhos (entendendo filhos como
qualquer criança humana, em um sentido especista e generalizante). Vore entende o
próprio gesto como um ato político. Ele coloca-se em guerra contra a espécie humana e
está retaliando um gesto há muito tempo perpetrado contra os trols pela humanidade.
Vore atualiza a narrativa folclórica da troca de crianças, comum nos contos
maravilhosos europeus, em que uma entidade da floresta (trols, fadas, ogros, goblins)
raptam crianças humanas (figura 29). O tema da troca de crianças foi representado em
diversas ilustrações de contos maravilhosos e, possivelmente, remete ao infanticídio e à
mortalidade infantil frequentes na Europa rural pré-capitalista. Ao atualizar um tema
mítico, Border retoma a relação ambígua entre história e mitologia presente na biografia
dos dois trols do filme.
192

Figura 29: Crianças sequestradas por criaturas mágicas.


Fonte: Em sentido horário, Henry Fuseli (1781), John Bauer (1913), Maurice Sendak (1981), Gustave
Doré (1862).

De modo diverso aos contos de fada, Vore não rapta crianças humanas para viver
na floresta dos trols, mas para vendê-las a criminosos sexuais. Ao trazer essa relação, o
filme contrapõe duas formas de monstruosidade: o corpo do trol e a monstruosidade moral
do pedófilo. A ideia de uma monstruosidade moral reflete um dispositivo sociológico de
produção e enquadramento de anomalias sociais. Trata-se de um processo discursivo que
identifica determinados sujeitos ou modos de vida como gravemente disruptivos do ponto
de vista da ordem social. A construção desse tipo de monstruosidade elabora uma
complexa equação que envolve corpo, estigma, marcadores da diferença e valores morais
de um grupo social. Alguns exemplos foram discutidos ao longo desta tese, como no caso
das roaches em Black Mirror, ou ainda em como Girard (2004) discute a teoria do bode
expiatório.
Para Foucault (2010), o monstro moral emerge como um problema social a partir
do século XIX como um tipo de sujeito que rompe com os pactos sociais. O autor observa
uma constante relação entre monstruosidade e criminalidade que, a essa altura, ganha
193

outros contornos. Se o monstro humano poderia ser visto com potencialmente criminoso,
a partir do surgimento do monstro moral o delinquente comum passa a ser suspeito de
uma monstruosidade intrínseca. A emergência do monstro moral coloca em pauta a
aplicabilidade das leis punitivas: como punir um sujeito que coloca-se fora do pacto
social? Como lidar com um monstro moral que é identificado como inimigo absoluto de
uma sociedade?
O monstro moral, continua Foucault (2010), passa a fazer parte do quadro geral
da criminalidade moderna e é identificado como parte da genealogia da anormalidade. O
anormal surge a partir de um pano de fundo em que as patologias sexuais são codificadas
pela medicina e pelo direito, mais especificamente pela psiquiatria penal ou psicologia
criminal (FOUCAULT, 2010). O autor não discute raça diretamente, mas devo
acrescentar que a produção de uma monstruosidade moral, a saber, a codificação de
determinados sujeitos desviantes como monstros, portadores de uma patologia
irreversível, implica em um atravessamento entre sexualidade, raça, classe e outros
marcadores sociais da diferença.
A pedofilia, contudo, parece denotar o grau mais radical e mais inaceitável da
monstruosidade moral no século XXI. O crime é perpetrado em Border por humanos,
europeus de classe média, em um país de baixa desigualdade social e que não remetem a
nenhum estereótipo conhecido de criminoso. Vore acentua esse contraponto ao reiterar
que a humanidade efetua crimes contra suas próprias crianças com a mesma intensidade
que o fez contra as crianças trols. Border não propõe um juízo elaborado sobre a pedofilia,
não busca relativizar como questão de saúde psíquica. O ponto de vista dos criminosos
não é apresentado e eles não demonstram arrependimento, tampouco são psicopatas
caricatos frios e indiferentes à dor do outro. São sujeitos comuns, ordinários, que jamais
atrairiam olhares desconfiados na rua, como ocorre com Tina e Vore. O posicionamento
da pedofilia no filme denota um limite incontornável para a moral humana.
O juízo exibido sobre a pedofilia é o juízo do senso comum que vê o crime como
algo que extrapola o entendimento dos códigos penais, algo hediondo. Quem pratica esse
crime é imediatamente tido como um sujeito monstruoso. O crime contra a infância
perverte a continuidade da vida social. O crime é praticado contra as vítimas mais
indefesas e vulneráveis, e fere diretamente a constituição da família, do indivíduo e a
preservação do futuro. A atuação de Vore realiza um espelhamento entre a rede de
criminosos pedófilos e a rede institucional que capturou famílias trols e expôs seus filhos
à violência humana. Esse espelhamento, perpetrado pelo que o monstro entende como
194

uma vingança justa, demonstra a dependência radical do sujeito diante de redes de amparo
e de socialização (BUTLER, 2021).
Essa noção é explorada por Butler a fim de entender a relação entre
interdependência entre sujeitos e a precarização da vida. O argumento da filósofa reforça
a ideia de que os corpos são precários diante da estrutura social que o mantém vivo
(BUTLER, 2021). Interessa-me não tanto refletir sobre o conceito de interdependência
em Butler, mas sim pensar no gesto reproduzido em Border de interrupção e perversão
dos processos de individuação. Quando nascemos somos entregues a alguém e
dependemos dessa estrutura de cuidado para sobreviver e emergir como um sujeito. O
rapto de crianças — crianças humanas e crianças trols — interrompe a cadeia de cuidado
e de socialização e implica em uma sobrevivência igualmente degenerada e precarizada.
Tina e Vore têm sua existência como trol interrompida e diminuída. Do mesmo modo que
as crianças raptadas pelos criminosos estarão sujeitas a uma violência inimaginável.
Para Vore, a violência opera uma simetria, com a diferença de que o sofrimento
que ele sofrera na infância foi promovido institucionalmente pelo Estado. É esse mesmo
Estado, sob a força policial, que é acionado para desmontar a rede de pedófilos com quem
Vore atua. O crime contra as crianças humanas implica, também, em um dispositivo de
destruição social do futuro. Uma ameaça concreta ao corpo das crianças individualmente
e à continuidade corpo social como um todo. Diante disso, a pedofilia é apresentada no
filme como o epítome da monstruosidade moral. Border posiciona essas ações de modo
paralelo, não como um modo de igualar as experiências dos humanos com as dos
monstros. Não há a identificação de um fundo comum humano, como os discursos
históricos e científicos sobre a anomalia tendem a proferir. Ao comparar ou intercalar as
experiências humanas e monstruosas, a narrativa acentua o caráter assimétrico dessas
realidades, ainda que no discurso de Vore ele esteja procedendo de modo paritário.
Ao trazer a pedofilia, e não outro crime qualquer, o filme realiza uma
desconstrução radical entre a monstruosidade discursiva e a monstruosidade como um
modo de vida. A primeira consiste em uma construção social/moral que atribui valores
radicalmente negativos a alguns sujeitos em detrimento de outros, e que equaciona
monstro e monstruosidade de modo causal. A segunda, a monstruosidade como modo de
vida, expressa por Tina e por Vore, implica em uma relação própria entre sujeito e
ambiente, uma relação perspectiva que produz modalidades de mundo. Isso sugere pensar
o monstro ontologicamente, partir de outros pontos de referência, de intencionalidade e
de autodescrição, e não a partir de um atributo moral.
195

A partir do ponto de vista dos trols, a monstruosidade moral pode ser atribuída
unicamente a sujeitos humanos. Vore realiza uma ação criminosa, hedionda para a cultura
humana, e ainda assim não contradiz a moral dele. Não se trata de uma relativização
gratuita. Vore não é um animal irracional inconsciente dos seus atos. Ele realiza uma ação
intencional a partir de um conjunto de valores que não é o humano e não tem razão de
ser. Ainda assim, seus atos são entendidos como uma resposta à humanidade, e, por isso
mesmo, reativo e condicionado pela moral humana. O ato de Vore parece nos conduzir
para um dilema ético próprio da humanidade e do humanismo. Se pudermos considerar o
ato de Vore tão hediondo quanto o dos pedófilos do filme, faremos isso entrando em
defesa absoluta das vítimas. Diante disso, estaremos equiparando esse crime com a
violência que Vore, Tina e o extenso grupo de trols sepultados em um cemitério anônimo
sofreram. A violência do Estado e a violência dos pedófilos estariam em um mesmo
patamar moral. Esse é o argumento de Vore.
Se recorro a essa inversão é para explorar com mais intensidade o ponto de vista
de Vore. Concepções que pensam o estado como monstruoso não são novas, podem ser
encontradas, por exemplo, na obra do Marquês de Sade, como evidenciado por Foucault
(2010). Do mesmo modo que pensar a violência do monstro (a criatura) como uma reação
reparadora ou justa pode ser entendido como um modo de humanizar a criatura, como no
caso do monstro de Frankenstein. Ou ainda como um modo de responsabilizar a
humanidade por problemas criados por ela, como no caso de Godzilla. Contudo, esse
raciocínio, mesmo que entendido pela tomada de posição política de Vore (uma posição
de guerra), é condicionado pela influência humana na socialização do monstro.
O contraponto proposto por Tina, no entanto, lida com esse paradoxo a partir de
uma recusa a tomar parte no conflito humanos-trols. Após a discussão mencionada
anteriormente, em que Tina confronta Vore sobre o rapto de crianças, ela descobre que o
filho recém-nascido de seus vizinhos fora raptado. Em seu lugar fora posto a figura pálida
do heesit, vestindo roupas de bebê. A criança é filha de um jovem casal, personagens que
são mostrados anteriormente como amigos próximos de Tina. Na ocasião do rapto da
criança, Vore desaparece e deixa um bilhete para Tina: “Você não é humana. Me encontre
no barco”. Acompanhada pela polícia, Tina vai ao encontro de Vore em um grande barco
de passageiros. Vore convoca Tina a tomar parte na guerra contra os humanos: “Nós
temos uma obrigação. Podemos dar continuidade à nossa espécie. Você e eu. Voltaremos
a ser muitos”.
196

Diante do discurso de Vore podemos entender o propósito dele em relação à


própria espécie. Tina recusa tomar parte no projeto de Vore, uma recusa que implica
objetivamente em não tomar parte na violência e em não retornar ao modo de vida
humano. Vore escapa, atirando-se na água, antes que pudesse ser preso pela polícia. O
encontro marca a ruptura final de Tina com os elementos que a rodeiam: o emprego, o
relacionamento com Roland, o pai e, agora, Vore. A ruptura parece ser o passo definitivo
da personagem que a liberta da estrutura disciplinar em que cresceu, como o
atravessamento de uma fronteira em direção a um território ainda inexplorado.
A cena final de Border salta alguns meses no tempo. A passagem temporal é
marcada pela mudança climática. No começo do filme a vegetação ao redor da casa de
Tina é abundante, como se o filme ocorresse na primavera ou no verão. O final do filme
mostra uma paisagem mais próxima do inverno, com uma grande quantidade de folhas
mortas no chão e manchas de neve branca no telhado da casa e no jardim. Sobre esse
cenário, Tina caminha sozinha, descalça, protegida por uma roupa comum, e não mais o
uniforme do trabalho. A personagem passeia pelo jardim como se procurasse algo entre
a folhagem e alimenta-se dos musgos das raízes das plantas. Ela não demonstra mais a
aparência asseada do começo do filme, como denota o cabelo desgrenhado e a busca por
alimentação na natureza.
O jardim tampouco está ordenado. A vegetação cresceu de modo livre, sem podas,
e ocupa todo o espaço por onde Tina caminha sozinha. Uma raposa anda de modo
tranquilo próxima ao espaço que anteriormente era ocupado pelos cães de Roland. O
automóvel da personagem aparece com aspecto abandonado, as portas abertas e coberto
de neve. Pelo estado do veículo, podemos supor que não é utilizado há bastante tempo.
Tina provavelmente não saiu de sua casa próxima à floresta desde os conflitos descritos
anteriormente. O cenário, contudo, não é exatamente de abandono, mas sim de um
crescimento livre e intenso da vegetação. Há uma crescente aproximação do espaço do
jardim com a floresta densa ao fundo da casa.
Ao voltar da caminhada em que coleta de alimentos, Tina depara-se com uma
caixa grande na varanda da casa. Após cheirar atentamente o objeto, ela abre a caixa:
dentro há uma criança recém-nascida. Nos braços de Tina, vemos detalhes da criança. As
partes do corpo semelhantes à de um bebê humano, do mesmo modo que os sons
balbuciados por ela. O rosto apresenta um nariz largo, testa curta e cenho enrugado. O
rosto também possui pelos, como uma barba rala que encontra os cabelos da cabeça. Nas
costas, na base da coluna, um rabo fino pende do corpo do bebê. Tina examina o corpo
197

do recém-nascido com atenção e desconfiança. Pelo cheiro, ela reconhece a criança como
o filho que tivera com Vore, gestado no corpo dele. Na grande caixa em que veio a
criança, um cartão postal da Finlândia, país vizinho onde, segundo Vore, encontram-se
comunidades nômades de trols.

Figura 30: Tina segura o bebê troll recém nascido.


Fonte: Fotogramas de Border (Ali Abbasi, 2018).

Tina passeia com o filho pelo jardim, na tentativa de acalmar o choro da criança.
A personagem repete de modo instintivo o gesto que dá início ao filme: recolhe da
vegetação um inseto, idêntico ao do começo da narrativa, e alimenta o filho, que come o
bicho calmamente. O ato de nutrir não vem pela amamentação. Sequer sabemos se é algo
que o corpo de Tina é capaz, ou se Vore poderia amamentar um recém-nascido gestado
no corpo dele. O gesto, contudo, imprime um sentido para ações da personagem que
pareciam desconexas. A conclusão do filme encena a formação de uma família e a
possibilidade da continuidade e do futuro, tanto de Tina e do filho, quanto da
monstruosidade como um modo de vida.
O futuro que é aberto como possibilidade não é o mesmo proposto por Vore, como
reação e guerra à humanidade. O cenário está ausente de humanos e há a possibilidade de
um investimento no mundo a partir do corpo, da qualidade perspectiva daqueles dois
personagens restantes em um jardim ocupado pela natureza. Não temos certeza se a
personagem vai procurar outros trols na Finlândia, mesmo que o cartão postal indique
essa possibilidade. O futuro colocado em aberto talvez seja a imagem mais importante da
cena de Tina com um filho no braço. Não estou seguro se podemos chamar essa relação
de maternidade pois não temos acesso a um vocabulário específico à vida trol. Não
sabemos, também, se esse léxico é realmente necessário. O que vemos é a realização de
198

uma cena parental, em que os requisitos de cuidado e proteção tornam possível o


desenvolvimento daquela vida de modo oposto à infância de Tina/Reva.
A cena coloca diante do espectador a produção de laços de cuidado e de
manutenção da vida que torna aquele corpo monstruoso recém-nascido uma vida possível.
Do mesmo modo, a vida de Tina deixa de ser a de um monstro solitário na orla da floresta
e passa a ocupar um espaço de vida política mais propriamente. A chegada do trol recém-
nascido abre a possibilidade de partilha do mundo com um outro. Essa partilha possibilita
a produção de laços sociais a despeito da sociedade humana estruturada em que Tina
cresceu. Uma sociedade que agora é posicionada como o lado externo desse mundo em
que Tina e o bebê vivem. Vida política, nesse contexto, refere-se diretamente à produção
de laços sociais e de significados para esses laços, bem como modos de viver juntos no
mundo. A imagem traz a possibilidade de uma comunidade, seja com os trols em
paisagens distantes, seja na floresta que margeia a casa de Tina. Entendo esse gesto como
um ato fundante da possibilidade de família e de futuro, e que não é definido pelos
marcadores culturais da vida, como a construção edipiana da família e a presença do
estado como regulador dos corpos. Outro modo de vida estende-se diante de Tina, fora
das estruturas disciplinares e humanas.
Tina e o filho fazem coro ao conjunto de mães monstruosas que essa tese visitou,
ainda que seja indefinido propor a noção de maternidade à personagem. A ausência de
um nome para designar o parentesco com o filho denota a possibilidade de modos
próprios de transmissão da parentalidade. Quando comparamos Tina com Pasífae, mãe
do minotauro, que deu origem a um filho com cabeça de animal, ou com Úrsula, cujos
temores diziam respeito a gerar uma criança com rabo de porco, estamos diante de um
modo distinto de produção de família e de comunidade. Para Pasífae e Úrsula, o monstro
é o resultado de uma transgressão, capaz de interromper a futuridade das instituições
humanas, o Estado e a descendência patriarcal da família. De modo diverso, a relação
entre Clara e Joel é construída como um modo de dar continuidade às vidas desamparadas
que são codificadas como danosas às instituições sociais.
O futuro de Tina abre-se como utopia, a possibilidade de comunidade e de
produção de mundo alheio aos critérios de transmissão do tempo e da vida humanos. A
pequena família trol abre um precedente para imaginar comunidades possíveis, imaginar
possibilidades de vida, uma vida amparada, que não esteja sujeita à precariedade, aos
modos de reconhecimento socialmente estabelecidos e que não são condenadas à abjeção.
Se, em famílias como Clara e Joel, trata-se da promoção mesma da vida em um contexto
199

de abjeção e de precariedade, em Border, o monstro habita o mundo a partir de um centro


de intencionalidade, capaz de produzir conhecimento sobre esse mundo, e gerar modos
criativos de vida comum e de futuro.
200

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mas os monstros gritaram: "Oh por favor não vá embora... nós


vamos comer você...gostamos tanto de você!" (Onde Vivem os
Monstros, Maurice Sendak).

Em A Noiva de Frankenstein (James Whale, 1935), um pequeno grupo de pessoas


reúne-se na frente da mansão da família Frankenstein para prestar condolências ao
herdeiro, Henry, que ficara gravemente ferido no conflito com o monstro. Esses eventos
são consequência da cena final de Frankenstein (James Whale, 1931), em que uma
multidão consegue encurralar a criatura em um velho moinho e atear fogo à construção.
A edificação em que o monstro está preso é consumida pelas chamas. A multidão é
dispersa e encontra-se novamente para oferecer apoio à família e ao cientista ferido. A
Noiva de Frankenstein dá sequência aos eventos do filme predecessor.
O lamento da população é cortado pelos apelos de Minnie (Una O’Connor),
empregada da família. A mulher corre pelos portões da cidade em direção à mansão dos
Frankenstein em claro desespero. Na porta da casa ela dirige-se ao mordomo e diz com a
voz tomada por pânico: “Está vivo! O monstro está vivo!”. O anúncio de Minnie é
recebido com incredulidade. Aquelas pessoas tinham visto o monstro desaparecer entre
as chamas e estavam certas de que ele estava, finalmente, morto. Minnie, no entanto,
testemunha o monstro erguer-se dos escombros do moinho incendiado e retornar para a
cidade. Vale lembrar que a empregada foi uma das entusiastas do linchamento que tentou
dizimar o monstro. Diante das chamas que consumiam o moinho, ela aparece exultante e
diz: “fico feliz de ver o monstro torrado até a morte diante dos meus olhos”. Não deixa
de ser irônico que a mesma mulher grite por toda a cidade que o monstro retornou.
O retorno do monstro, como anunciado por Minnie, antes de ser uma confirmação
de sua invulnerabilidade física é um estatuto de sua existência: está vivo! Há algo naquele
vivente que insiste em tornar-se viável e permanecer no mundo que espanta os moradores
da pequena cidade. O retorno endossa uma das teses que Cohen (2000) propõe para
entender o monstro. A tese afirma que o monstro sempre escapa. A assertiva de Cohen
diz respeito a certa imaterialidade do monstro, que desaparece e reaparece em contextos
e tempos históricos distintos. Cohen entende o aparecimento do monstro como um
amálgama de elementos culturais próprios a cada tempo, de modo que o surgimento da
criatura monstruosa pode ser entendido sempre como um retorno do mesmo tema.
201

As teses de Cohen foram discutidas no primeiro capítulo desta tese, onde detalhei
a epistemologia proposta pelo autor e expressei alguns pontos de discordância com o
pensamento proposto por ele. A ideia de que o monstro surge nos espaços culturais como
uma reação a afetos históricos, como um tipo de sintoma ou corporificação de relações
sociais complexas, e a ideia que essa reação goza de relativa universalidade na cultura
ocidental são os dois pontos em que o esforço desta pesquisa se distanciou das assertivas
de Cohen. Não acredito que o aparecimento do monstro esteja isento totalmente de um
caráter histórico reativo, a noção mesma de alteridade surge a partir do encontro com a
diferença, como reação ao encontro com o outro. Contudo, o monstro elabora modos de
pensar a alteridade que demanda entendê-lo como algo mais que um sintoma cultural.
Cohen defende que “os monstros devem ser analisados no interior da intrincada
matriz de relações (sociais, culturais e lítero-históricas) que os geram” (COHEN, 2000,
p.28). Minha proposta buscou descobrir se o monstro é capaz de produzir outras matrizes
de relações que não as culturais/humanas. O interesse que motivou esta pesquisa foi
descobrir se essas outras relações são possíveis e se o monstro pode ser entendido a partir
delas. Se retomo aqui o pensamento de Cohen é pela importância da obra dele para os
estudos sobre monstruosidade.
A defesa do autor é a de que monstro sempre escapa da morte, ainda que o corpo
pereça. Assim, o monstro torna a perturbar a cultura condensando no seu corpo temores
e questões críticas próprias ao contexto histórico em que surge. De fato, a permanência e
a insistência da cultura midiática contemporânea em atualizar o tema do monstro inquieta
esta pesquisa. Ao olharmos para obras audiovisuais recentes, por exemplo, encontramos
um número significativo de personagens ou elementos monstruosos em destaque.
Dragões, sereias, vampiros, híbridos, zumbis. Essa recorrência parece endossar a tese de
Cohen, ainda que de modo parcial, pois a repetição do tema deixa um rastro de
indiscernibilidade que me interessou particularmente.
A morte do monstro, para Cohen, o desmaterializa em forma de afeto, como uma
ideia ou sensação que retorna diversas vezes. Contudo, enquanto vivo o monstro habita o
mundo com um corpo e em relação com outros corpos e com o ambiente. Esse corpo
perturba os sistemas culturais ao mesmo tempo que vive sensações e experiências que lhe
são próprias: dor, prazer, amor, ódio, fúria, medo, desejo, vingança, esperança.
Sentimentos experimentados por todos os personagens que essa pesquisa se dedicou a
investigar. Nesse sentido, a partir da tese de Cohen, eu gostaria de acrescentar que o
monstro escapa não apenas da morte. O monstro escapa, sobretudo, dos regimes de
202

inteligibilidade e de classificação. O sujeito monstruoso é aquele a quem as categorias


culturais falham em reconhecer humano. O monstro escapa desses mecanismos de
reconhecimento. Ao fazer isso ele perturba a norma e propõe formas outras de entender
a vida e as relações entre os indivíduos.
A minha proposta destoa do que entende Cohen. O autor propõe uma
epistemologia que busca ler os monstros intrincados em uma matriz cultural, como um
afeto histórico ou sintomático. O caminho que propus nesta tese foi, em certa medida, o
oposto: ler o monstro a partir de sua ininteligibilidade e pensar modalidades de vida e de
política que são consequência desse aspecto ininteligível. Diante disso, a pesquisa partiu
de um conceito de monstro que prioriza essa capacidade de escapar de modelos de
classificação e de codificação sociais. Entendo o monstro como forma de vida, e não
como signo, afeto, sintoma etc. Uma forma de vida concreta que habita o mundo a partir
de pontos de referência e de intencionalidade que lhes são próprios. Dito de outro modo,
o monstro é uma forma de vida que se constitui à revelia dos esquemas de codificação,
classificação e reconhecimento normativos.
O objetivo desta tese, portanto, foi buscar entender a experiência dessas formas
de vida como um tipo de narrativa política. Investigar a vida política dos monstros implica
pensar como pessoalidades monstruosas produzem formas de sociabilidade em um
contexto de constantes disputas com o poder normativo. Interessou-me, sobretudo, pensar
formas criativas de relações políticas que partem do monstro ou são disparadas pela sua
existência. A ideia de filiação como um modo de equacionar a alteridade torna-se um
operador central nessa investigação. Em lugar de formas de política baseadas na norma,
na identidade ou na concentração de poder, o monstro propõe relações baseadas no
reconhecimento e na multiplicação das zonas de diferença. Em resumo, o objetivo desta
pesquisa foi o de investigar como pessoalidades monstruosas imaginam e habitam
comunidades.
Para refletir sobre essas experiência, a tese investiu em analisar sujeitos
monstruosos da ficção, notadamente da literatura e do cinema, com incursões
comparativas com o mito e com as artes visuais. O percurso realizado pela tese dividiu-
se em quatro capítulos de análise, organizados de acordo com a distribuição do corpus
escolhido: o mito do minotauro e a leitura deste feita por Jorge Luís Borges; a iconografia
colonial; monstros em Black Mirror; os personagens monstruosos no romance Cem Anos
de Solidão (Gabriel García Márquez); e os longas-metragens Freaks (Tod Browning,
203

1932), Inferninho (Pedro Diógenes e Guto Parente, 2018), As Boas Maneiras (Juliana
Rojas e Marco Dutra, 2017) e Border (Ali Abbasi, 2018).
O conjunto de objetos investigados na tese apresenta formas e abordagens muito
distintas de monstruosidade. A natureza desta pesquisa e a variedade de monstros
investigados faz com que uma conclusão convergente e definitiva seja não apenas
impossível mas também indesejável. Interessou-me pensar a pluralidade das formas de
política empreendidas pelos sujeitos monstruosos, de modo que a diversidade apresentada
condiz com o esforço de investigação. Contudo, as vizinhanças possíveis entre as obras e
as experiências indicam alguns caminhos que estabilizam o percurso de pesquisa em
algumas considerações finais.
O percurso dos capítulos de análise contempla um arco de instituições culturais
que passa pelas instâncias do mito, do corpo, da comunidade, dos espaços, da família, da
ciência, do estado e da natureza. Estas categorias são pontos de tensão importantes e
atravessam todos os objetos, ainda que em alguns tenham mais destaque que em outros.
O monstro é capaz de perturbar os conceitos usuais e normativos dessas categorias e, ao
fazer isso, entra em conflito com a norma e com os modos normativos de definir e
reconhecer esses elementos. Dito de outro modo, a presença do monstro é lida pela norma
como uma perversão ou subversão do que pode ser entendido como corpo, comunidade,
família, espaço, estado e natureza. O monstro ocupa essas instituições sociais como
mácula ou como uma experiência degenerada.
Do ponto de vista do monstro, no entanto, o que pode ser observado é uma relação
outra do vivente com as instituições, um tipo de relação que propõe outros usos e
significados para elas. O monstro experiencia uma relação sujeito-ambiente que parte de
pontos de referência, de intencionalidade e de perspectiva que lhes são próprios. Ao fazer
isso, o monstro produz outro tipo de mundo e saberes e experiências sobre esse mundo,
que tornam inócua a noção de um centro hegemônico para onde convergem as instituições
e práticas de poder e saber.
Diante disso, o monstro é capaz de tensionar a noção de pessoa e a noção de vida,
dois estatutos ligados ao humano que repousam sobre certa estabilidade e naturalidade
em sua concepção. Um recém-nascido com cauda de porco ou uma criança que alterna
entre humana e lobisomem podem ser entendidas como vidas humanas pela biologia?
Qual taxonomia é possível a elas? Ou ainda, uma pequena família composta por um trol
e seu filho, habitando a borda de uma floresta, conta como uma vida de fato para a
204

sociedade? Ainda assim, o monstro está vivo, produz relações e negocia circunstâncias
que garantem sua permanência no mundo.
O que o conjunto de objetos torna evidente é o papel da alteridade na constituição
de formas políticas pelo monstro. Contudo, a alteridade nesse contexto não diz respeito
aos modos como a cultura percebe o outro, ou como a relação entre humano e monstro
negocia a diferença. O que importa é a relação que o monstro estabelece com outras
formas de vida dissidentes, ou ainda com outros monstros. Trata-se de um delicado modo
de lidar com a alteridade, uma vez que o contato entre monstros não significa o encontro
com um igual, mas sim uma relação que é estabelecida a partir do reconhecimento
recíproco e da intensificação de zonas de diferença.
Essas filiações baseadas no reconhecimento a partir da dessemelhança tornam as
relações monstruosas possíveis. Os monstros analisados no começo da tese, notadamente
o minotauro e o nascido monstro de Cem Anos de Solidão, perecem rapidamente. Morrem
silenciosos sem produzir descendência, ou sem serem nomeados, como ocorre no
segundo caso. A partir de Freaks começamos a perceber o tipo de aliança e de filiação
que produz estruturas seguras o suficiente para garantir a vida e a continuidade do
monstro. Essas filiações ganham contornos de coletividade e assembleia em Freaks, de
comunidade em Inferninho, de família em As Boas Maneiras e de espécie em Border. O
que é central nessas relações é a possibilidade de um engajamento coletivo que torna a
vida possível e que produz modos outros de desenvolver e viver essas vidas.
A filiação com elementos não antropocêntricos me parece o mais importante no
que toca a vida política dos monstros, sobretudo pela possiblidade de produzir laços
afetivos e políticos baseados em outros modos de reconhecimento que não estão sujeitos
ao imperativo da identidade e da inteligibilidade. Diante disso, o monstro coloca em
evidência que as categorias culturais falham em reconhecer um número significante de
sujeitos e falha ao tentar reconhecer os sujeitos como uma coletividade unificada. O
monstro coloca-se como uma possibilidade de abrir essas categorias normativas do
reconhecimento, colocar-se como um empecilho ao seu funcionamento regular e propor
outras modalidades de reconhecimento, bem como outros léxicos para entendê-las.
Gostaria de retomar a pergunta que abre essa investigação: qual política é possível
aos monstros? Ao tomar o conjunto de objetos e de sujeitos monstruosos que essa tese
acompanhou, é possível entrever modalidades e variações políticas possíveis a essa
pergunta. Em conjunto, no entanto, os monstros parecem equacionar de modo
heterogêneo ontologia e política. A condição monstruosa e as práticas sociais engajadas
205

pelos monstros são constantemente acionadas como modos inventivos de propor relações
outras de sociabilidade e de subjetivação.
O percurso desenhado pela tese evidencia os modos em que a alteridade é acionada
como um dispositivo de produção de relações. Os monstros que acompanhei empreendem
em suas práticas cotidianas modos de vida condicionados por um tipo de fuga da morte,
ou luta por sobrevivência que é salutar apontar. Criaturas como os nascidos monstros em
Cem Anos de Solidão, ou mesmo o Minotauro e as roaches de Black Mirror, perecem ou
são exterminadas compulsoriamente. Formas de engajamento coletivo, como os que
ocorrem em Freaks e Inferninho, ou modos de produzir família, como vemos em As Boas
Maneiras, agem como dispositivos de gestão da precariedade. Trata-se de modos de
proteção e de manutenção da vida que tornam a existência material dos monstros viável.
Border, por sua vez, ensaia um passo além dessa relação. Tina e o filho apresentam
um tipo de futuro e de composição social que, até então, não fora vista. Ao espectador e
ao investigador, cabe apenas elucubrar que tipo de vida política pode ser desenhada a
partir do final do filme. Em certo sentido, Border realiza a utopia abortada do romance
Frankenstein. Nos eventos do romance de Shelley, a criatura pede ao cientista que
produza uma companheira. Com ela, o monstro deveria ir viver nos confins da América
do Sul. Como sabemos, o plano é interrompido. Border realiza o gesto ao trazer a pequena
família de trols no limiar da floresta. Os monstros não estão mais fugindo da morte, mas
sim diante de um futuro aberto.
Com isso, não quero sugerir que a negação total da cultura e da civilização seja a
resposta possível para a política dos monstros, mas sim, a invenção de modos de vida que
não dependam dos interditos reiterados da cultura, como o tabu do incesto e o monopólio
da violência pelo Estado. Border traz a utopia para o horizonte da política do monstro e
propõe um tipo de futuro e de relações sociais até então desconhecidas. Com Tina, o
inimaginável torna-se um possibilidade concreta. Nesse sentido, os trols apresentam um
tipo de comunidade que varia não mais em graus ou valências de alteridade. Trata-se de
uma natureza outra que é apresentada. Com ela, outros modos de humanidades e de
pessoalidades são propostos em detrimento de qualquer noção hegemônica e teleológica
do sujeito antropológico. O futuro aberto por Tina e pelo filho denota a necessidade de
novas antropologias. Uma ciência dos monstros deverá estar atenta a essa demanda.
Pensar a vida política dos monstros implica um movimento de perceber esse
conjunto de pessoalidades dissidentes que reivindicam práticas de vida e de visibilidade
em um contexto social maior, que inclui não apenas homens e monstros, mas outras
206

formas possíveis de vida. Ao mesmo tempo, implica também pactuar conceitualmente


com a categoria monstro, termo que resiste a uma captura teórica ou conceitual fechada,
e que está em constantes disputas quanto aos seus usos e sentidos políticos. Pensar o
monstro abre a possibilidade para entender práticas sociais que rompem o pacto político
com o avatar do homem universal. Nesse sentido, é possível uma aproximação final do
monstruoso com o queer, não em um sentido estrito relacionado à sexualidade e gênero.
Trata-se de um modo de expandir categorias e taxonomias, e produzir práticas e modos
de vida que excedem esses léxicos culturais de reconhecimento. A queeridade do monstro
e a monstruosidade do queer apontam para modos de vida e epistemologias que têm como
fundamento a constante resistência aos aparelhos de codificação e de classificação dos
corpos e dos sujeitos.
O monstro oferece alternativas e desvios na concepção de sujeito humano. Com o
monstro, temos a possibilidade de pensar o humano e a humanidade, e em consequência,
o social e o cultural, fora do escopo restrito do homo sapiens. O monstruoso coloca os
corpos do parque humano em variação e inconstância, e sugere que é possível produzir
mundos e filiações sem a demanda de uma versão acabada de humano. O homo monstrum
aponta para a possibilidade de pensar humanidades em variação e inacabamento, bem
como a proliferação de mundos perspectivos habitados pelos sujeitos monstruosos.
A partir do monstro podemos pensar outros modos de conceber os sujeitos, modos
que não estão restritos à ideia hegemônica de humanidade. O monstro pode ser uma
oportunidade para o pensamento de investir em outros léxicos que deem conta da
multiplicidade de sujeitos, de humanidades e de monstruosidades possíveis, uma abertura
para um tipo de política não antropocêntrica florescer sobre as rachaduras das categorias
normativas ou contra sua ação coercitiva. O monstro faz vacilar a linguagem, comporta-
se de modo esquivo e escorregadio. Ao escapar das tentativas de encarceramento e de
codificação, a criatura endossa a fala assustada de Minnie: o monstro está vivo.
207

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

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