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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

BADRA EL CHEIKH TANURE AMORA

QUANDO É A PALESTINA?
O tempo palestino através da ficção científica de Larissa Sansour

Niterói, RJ
2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

BADRA EL CHEIKH TANURE AMORA

QUANDO É A PALESTINA?
O tempo palestino através da ficção científica de Larissa Sansour

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Comunicação. Área de
Concentração: Mídia, Cultura e Produção de
Sentido.

Orientador: Prof. Dr. Fernando Antônio Resende

Niterói, RJ
2022

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Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor

A524q Amora, Badra El Cheikh Tanure


Quando é a Palestina? : O tempo palestino através da
ficção científica de Larissa Sansour / Badra El Cheikh
Tanure Amora ; Fernando Antônio Resende, orientador.
Niterói, 2022.
123 f.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,


Niterói, 2022.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGCOM.2022.m.10161357776

1. Palestina. 2. Ficção científica. 3. Tempo perturbado.


4. Distopia. 5. Produção intelectual. I. Resende, Fernando
Antônio, orientador. II. Universidade Federal Fluminense.
Instituto de Arte e Comunicação Social. III. Título.

CDD -

Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368


UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Programa de Pós-Graduação em Comunicação


Instituto de Arte e Comunicação Social

Niterói, 31 de março de 2022

Banca examinadora:

Prof. Dr. Fernando Antônio Resende – orientador


Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Roberto Robalinho Lima – examinador


Universidade Federal Fluminense

Prof.ª Dr.ª Ana Caroline Almeida – examinadora


Universidade Federal de Pernambuco

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RESUMO

No contexto histórico da ocupação colonial israelense, diferentes percepções do tempo são


manifestadas. O projeto sionista se orienta pela lógica linear inerente ao sistema
moderno/colonial (MIGNOLO, 2005), enquanto submete o povo palestino ao que Edward Said
(1999) chama de “tempo perturbado”. É partindo desse conceito que a pesquisa busca refletir
sobre a experiência temporal palestina apresentada em três curtas-metragens da diretora Larissa
Sansour: “A Space Exodus” (2008, 5 min), “Nation Estate” (2012, 9 min) e “In the Future They
Ate From the Finest Porcelain” (2015, 29 min). Sob a ótica da ficção científica, os filmes
expõem marcas da ocupação colonial em todos os aspectos da vida palestina, especialmente
em sua relação com o tempo: como lidar com o presente quando o passado é contestado e o
futuro inviabilizado? Como hipótese, a dissertação sugere que, dentro do tempo perturbado, a
experiência palestina é forçada a um tensionamento entre real e ficção que aproxima sua
realidade concreta dos cenários distópicos dos curtas. Apesar das circunstâncias da ocupação,
os palestinos seguem resistindo ao controle do tempo e ao seu apagamento da História.

Palavras-chave: Tempo perturbado; Ficção científica; Palestina; Distopia.

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ABSTRACT

In the historical context of Israeli colonial occupation, different perceptions of time are
manifested. The Zionist project is guided by a linear logic inherent to the modern/colonial
system (MIGNOLO, 2005), while it submits the Palestinian people to what Edward Said (1999)
calls “disturbed time”. It is from this concept that the research seeks to reflect upon the
Palestinian temporal experience presented in three short films by director Larissa Sansour: “A
Space Exodus” (2008, 5’), “Nation Estate” (2012, 9’) and “In the Future They Ate from the
Finest Porcelain” (2015, 29’). From the point of view of science fiction, the films expose marks
of colonial occupation in all aspects of Palestinian life, especially in its relationship with time:
how to deal with the present when the past is contested and the future unfeasible? As a
hypothesis, the dissertation suggests that, within the disturbed time, the Palestinian experience
is forced to a tension between real and fiction that brings its concrete reality closer to the
dystopian scenarios of the movies. Despite the circumstances of the occupation, Palestinians
continue to resist the control of time and their erasure from History.

Keywords: Disturbed time; Science fiction; Palestine; Dystopia.

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| AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Fernando Resende, por todo o aprendizado nesses anos de
mestrado e pela sensibilidade que viabilizou a escrita desse trabalho. Especialmente em tempos
de pandemia, sua atenção e compreensão se fizeram essenciais.

Ao DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst), pela bolsa oferecida através do


Programa International Study and Training Partnerships (ISAP) que me proporcionou um
semestre do mestrado na Universität Tübingen, realizado à distância por conta da pandemia.

À coordenação, ao colegiado do PPGCOM-UFF e ao secretário Matheus Aguiar, pela


disponibilidade, atenção e consideração ao lidar com as situações imprevistas provocadas pela
pandemia.

Aos colegas que o PPGCOM me proporcionou, pelos debates e trocas feitas nos encontros do
LAN.

Aos colegas do grupo de extensão Debates Pós-Coloniais e Decolonias da UFRJ, e aos nossos
orientadores, Renata Reynaldo e Pablo Fontes. Pelas rodas de conversa, provocações,
aprendizados e por criarmos juntos um espaço horizontal e muito potente.

À Shakila, pela inspiração, carinho e amizade. Por cada conversa que me ajudava a recalcular
rota, reencontrar o propósito e a continuar escrevendo. O que Said uniu, ninguém separa!

Aos amigos e companheiros que a luta pela libertação palestina me apresentou. Em especial à
professora Muna Muhammed Odeh por todas as conversas e pela parceria, sua história me
inspira profundamente.

Às minhas queridas amigas, Amani e Aya, que me fazem ter saudade diária de tudo que o
Líbano poderia ser. Dividir as angústias próprias da nossa diáspora com pessoas tão incríveis
me ajudou profundamente nesse período. Sem dúvida nenhuma, vocês representam o que há de
melhor na nossa shatat.

Aos amigos que tornaram esse “mestrado pandêmico” menos conturbado, muito obrigada. Tudo
teria sido ainda mais pesado se não fosse por vocês, Ana Beatriz, Bruna, Carol, Cassiane,
Daiana, Duda, Henrique, Ivo, Juliana, Lucas, Mariana, Marinne e Matheus.

À minha família no Líbano, em Aparecida de Goiânia, em Oxford e no Rio. Independente da


localização geográfica, a pandemia nos forçou a um relacionamento exclusivamente à distância,
mas cada mensagem e ligação nos aproximou um pouco mais. Ao meu jiddo Naim, meu tio
Mozart e meu pai Gil cujas memórias se fazem presentes todos os dias.

Ao meu irmão Raphael, por ter despertado minha curiosidade sobre o desconhecido desde
pequena.

Ao Willian, Abdias e meu afilhado Danilo, meus maiores exemplos de que família se faz pelo
afeto do dia a dia.

À Antônia, por tanta coisa que não caberia nem em uma tese de doutorado. Mas para arriscar
um resumo, agradeço por todas as palavras de incentivo não só nesses anos de trabalho, mas

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durante a vida toda. Pelo carinho e acolhimento que tornaram a rotina menos penosa. Por ser
mãe, amiga e companheira de cafezinhos e fofocas a qualquer hora do dia.

Ao Victor, por me ajudar a reunir forças todos os dias e por escutar as diversas e intermináveis
versões alternativas desse trabalho. Por discordar contundentemente de mim toda vez que eu
afirmava que não daria conta de tudo. Pelo amor, paciência e leveza que me ajudaram a chegar
até aqui. Obrigada por dividir a vida comigo.

À minha mãe Márcia, por sempre me apoiar em tudo. Por me ensinar desde cedo a ter orgulho
da história da nossa família e a seguir os passos de empatia e integridade trilhados pelos meus
avós. Pelos incontáveis revezamentos dentro de casa entre trabalho online e cuidados com
minha avó. Ao final, conseguimos equilibrar tudo. Juntas!

À sitty, minha avó. Dona Badra, foi com você o meu primeiro contato com o anticolonial, antes
mesmo de saber o que isso significava. Sem jargões acadêmicos e com um português arabizado,
você me conta e reconta as infinitas histórias da vida em um Líbano recém-criado e dominado
pela França. Sou eternamente encantada pela sua coragem, que desde criança te fazia confrontar
quem fosse necessário, preferindo ser punida do que forçada a aprender a língua do colonizador.
Sua alma revolucionária nunca se contentou com as limitações que te impuseram. É por tudo
isso e muito mais que carregar o seu nome é meu maior orgulho.
Merci beaucoup, não.
Shukran jazilan, ya Badoura!

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| SUMÁRIO

Apresentação | 10

I | Projeções de futuros: os velhos irão morrer e os novos irão esquecer | 18


1.1 As perturbações, o tempo e a narrativa | 24
1.2 As possibilidades da forma | 31
1.3 A Palestina por vir | 40

II | Contestações de passados: eles nunca existiram | 55


2.1 O corte pela raiz | 58
2.2 Da terra eleita ao território | 63
2.3 Escavar em legítima defesa do passado | 78

III | Distopias do presente: vocês estão aqui por acidente | 90


3.1 Para narrar a distopia do real | 92
3.2 Homônimos da distopia | 99
3.3 A porcelana que se exuma no presente | 109

Considerações Finais | 116

Referências bibliográficas | 118

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Ele diz: O poema pode hospedar perda
Como um raio de luz
Brilhando dentro de uma guitarra, ou um messias
Em um garanhão ferido com uma bela metáfora,
A estética é apenas a presença do real na forma/
Em um mundo sem céu, a terra se torna
Um abismo, e o poema uma dádiva de consolação,
E um dos atributos do vento,
Um vento sul ou um vento norte.
Não descreva o que a câmera vê de suas feridas.
Grite para que você possa ouvir a si mesmo,
Grite para que você perceba que ainda está vivo,
Vivo, e que a vida nesta terra ainda é possível.
Invente esperança para as palavras,
Crie uma direção ou uma miragem que prolongue a esperança.
Cante, estética é liberdade

Mahmoud Darwish – Antithesis

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| APRESENTAÇÃO

Em árabe, a palavra diáspora (‫الشتات‬, al-shatat) pode ser traduzida literalmente para
“fragmentos”. A forte carga semântica do idioma permite incorporar a uma só palavra a
multiplicidade de sentimentos que atravessa as gerações – dos que saem (ou são forçados a
sair) de sua terra natal, aos que são criados em um novo país, na fronteira entre o lá e o aqui.
A pesquisa aqui apresentada nasce dos fragmentos espalhados pelo espaço-tempo que conecta
minha família vinda do Líbano com a estabelecida no Brasil ao longo dos anos. Como neta
dessa diáspora, a questão palestina sempre esteve no centro da minha narrativa familiar,
apresentando-se como um trauma fundante também da história dos meus avós, apesar de sua
origem libanesa. A colonização europeia e sua empreitada sionista não afetou somente a
população autóctone do território palestino, como também afundou as recém-criadas nações
vizinhas no revés da dominação e subjugação.
Os milhares de imigrantes libaneses, sírios e palestinos precisaram adaptar costumes
tradicionais à nova realidade, mas jamais abandonando-os completamente. Para meu avós e
tios que puderam escolher o Brasil como morada, o fortalecimento da cultura árabe foi crucial
para viabilizar sua permanência em um país completamente diferente de tudo que lhes era
familiar. Visitar uma casa de imigrantes (ou crescer em uma), é estar rodeada por fragmentos
do passado, objetos, pinturas, símbolos políticos, cheiros e sons únicos e plurais, é como
entrar em um portal, uma janela espaço-temporal que nutre a nostalgia. Nostalgia essa que
por sua vez, intensifica o desejo pelo retorno ao mesmo tempo em que o suaviza. A voz de
Fairouz e Wadih el Safi – cantores favoritos da minha avó – ecoando pela casa me faziam
questionar as distâncias do entre o passado de lá e o presente aqui. Da mesma forma, o cheiro
do pão com za’atar me fazia sentir saudades da vida no Líbano antes mesmo de ter feito a
minha primeira viagem para lá.
Mas toda essa experiência de diáspora carrega também um fardo inerente, uma
afetação que toma conta do corpo e da mente quando somos forçados a acompanhar de longe
bombardeios contra civis, confrontos diretos entre forças militares e as corriqueiras invasões
de espaço aéreo que aterrorizam cidades do Líbano, Síria e da Palestina ocupada. A imersão
abrupta nesses cenários de extrema violência também funciona como uma janela no espaço-
tempo, mas que nos força a testemunhar o horror que não cessa. Independente do período
histórico, a apreensão e o constante estado de alerta jamais foram amortecidos pela distância.

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Pelo contrário, todas as camadas dessa vivência diaspórica sempre foram exacerbadas pelos
quilômetros entre nós daqui e os que ficaram lá. Nesses momentos, é sempre para a Palestina
que o pensamento se volta.
Para nossa família, e para tantas outras fragmentadas, a Palestina traduz o sentimento
complexo da experiência colonial na região. O grito pela libertação palestina carrega a
esperança comum de um retorno ao passado, à realidade interrompida pela imposição violenta
do poder colonial. Como se a Palestina fosse o nó central a ser desatado para libertar toda a
região do emaranhado colonial que aprisiona, explora e extermina. Falar da Palestina confere
ao presente um prolongamento do passado enquanto reserva ao futuro incertezas angustiantes
em proporções maiores do que para qualquer outro povo da região. As consequências do
imperialismo europeu continuam ceifando o território palestino, surrupiando
progressivamente o pouco que ainda resta da terra para qual se deseja retornar. Se a cada dia
que passa a ocupação avança, para onde voltar? Se o futuro parece cada vez mais impossível,
e se o passado colonial prolongado é contestado, para quando voltar?
Essas reflexões suscitadas dentro do contexto familiar da diáspora sempre provocaram
um desconforto particular por suas formas de nutrir um apego ao passado vivido lá e
interrompido involuntariamente. A partir das aulas do mestrado, comecei a localizar esse
desconforto com a condição do tempo como algo que está em todo lugar – um desconforto
coletivo imposto pela lógica da modernidade/colonialidade. É a partir disso que passei a
entender a Palestina não só como um ponto central para minha experiência particular, mas
também como a epítome do Sul Global (RESENDE, 2014, p. 20). Nesse período, conheci a
obra da diretora palestina Larissa Sansour na Mostra de Cinema Árabe Feminino, realizada
no Centro Cultural Banco do Brasil em 2018. Os três curtas-metragens exibidos na época
ainda eram os únicos dentro da ficção científica e me despertaram o interesse em trabalhar
mais de perto com a questão da temporalidade na Palestina. A trilogia composta por “A Space
Exodus” (Palestina, Dinamarca, 2008, 5 min), “Nation Estate” (Palestina, Dinamarca, 2012,
9 min) e “In the Future They Ate From the Finest Porcelain” (Palestina, Reino Unido,
Dinamarca, Qatar, 2015, 29 min) aborda futuros possíveis para a Palestina.
No primeiro curta, uma astronauta, interpretada por Sansour, tenta completar uma
missão até a lua. Com referências à “2001: Uma Odisseia no Espaço” (Stanley Kubrick, 1968,
142 min) e “Apollo 13” (Ron Howard, 1995, 140 min), “A Space Exodus” traz reflexões sobre
a falta de mobilidade o território ocupado. Em “Nation Estate”, também estrelado pela
diretora, encontramos uma solução vertical para a disputa entre israelenses e palestinos: esses
últimos são acomodados em um arranha-céu que comporta todo o novo Estado da Palestina.

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Apesar das regalias presumidas em um ambiente moderno como o Estate, as restrições,
controles e punições contra os palestinos permanecem operantes. Por fim, no terceiro curta, a
personagem principal autointitulada “Terrorista Narrativa”, copia uma estratégia política
muito utilizada por Israel, ao travar a disputa pelo território através da implantação de
artefatos arqueológicos no solo. A cooptação dos usos da arqueologia como ferramenta
epistemológica para postular um novo povo completamente fictício provoca uma discussão
extensa sobre identidade, pertencimento e nação que se comunica com a disputa narrativa
pelo território da Palestina.
A complexidade e profundidade dos curtas me fizeram repensar o papel do cinema,
especificamente do palestino, na minha vida e, por consequência, na pesquisa. Antes do
contato com a ficção científica de Larissa Sansour, eu cultivava um certo desinteresse pelo
cinema palestino e árabe em geral por sentir através das suas imagens, uma angústia
indescritível. O impacto causado pelos documentários, dramas e mesmo comédias acerca da
vida no Oriente Médio assistidos pela minha família me intimidava. Em meio a tantas reações
intensas, era difícil compreender a dimensão de um filme quando ele diz tanto em tão pouco
tempo, fosse este um curta ou longa-metragem.
Contemplar pela primeira vez os curtas de Sansour afastou a percepção do cinema
apenas como um meio de reforçar a dor, sem uma finalidade, e me fez entendê-lo como
potência política. A forma aberta como o cinema de Larissa Sansour é pensado possibilitou
essa mudança. Utilizando-se da ficção científica para escapar da “armadilha territorial”
(TAWIL-SOURI, 2014) imposta aos palestinos pela ocupação colonial israelense, Sansour
tensiona realidade e mito, memória e perda, com variadas referências religiosas, culturais e
políticas.
O caminho de Sansour até o cinema como ferramenta para narrar a Palestina, começa
nas artes visuais. Nascida em Jerusalém Ocupada, Sansour estudou Belas Artes em
Copenhagen, Londres e Nova Iorque. Antes de ingressar no circuito internacional de cinema,
seu trabalho era voltado para as artes visuais, tendo exposto suas obras em diversas cidades
pelo mundo. Seus trabalhos não são limitados a uma área só, e transitam das telas para
galerias, embaralhando história e mito. Sobre o uso da ficção científica, inesperado quando
o assunto é Palestina, ela explica: “Sempre que falamos da Palestina, nunca é no presente,
mas ou relembrando um passado ou imaginando um futuro melhor” (SANSOUR, 2013,
tradução nossa). Portanto, é partir do encontro com seus filmes que o cinema palestino
tornou-se um terreno inesperado, mas oportuno para trabalhar as inquietações sobre tempo,
trauma e política.

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Para explicar o caminho que farei a partir daqui, é importante trazer uma breve
contextualização histórica. Não é possível falar da Palestina sem falar do sionismo,
movimento político europeu, de caráter colonial, que conduziu a ocupação gradativa dos
territórios e até hoje condiciona a política administrativa de Israel. Desenvolvido em 1896
pelo austríaco Theodor Herzl, o sionismo tem como principal objetivo o estabelecimento da
Erezt Israel (Grande Israel), uma pátria exclusivamente judaica em uma região de extrema
importância para as três maiores religiões monoteístas.
Herzl transformou o movimento sionista em uma dinâmica política e foi responsável por
seu desenvolvimento e conquistas futuras, atento para a necessidade de contar com o apoio de
governos das grandes potências europeias (MASALHA, 2012). Em 1896, Herzl publicou o
livro-base da ideologia, intitulado “Der Judenstaat” (O Estado Judeu) e no ano seguinte formou
o Primeiro Congresso Sionista na Suíça. Nesse congresso, a Organização Mundial Sionista foi
fundada e consagrada o braço político do povo judeu, sob a direção de Herzl como seu primeiro
presidente. Anos depois, Chaim Weizmann, quarto presidente da Organização, tornou-se
também o primeiro presidente do Estado de Israel em 1949. Apesar de ter falecido antes de
presenciar o triunfo de seu projeto, Herzl marcou a história do sionismo e suas ações afetaram
profundamente o futuro da região.
Desde sua criação no século XIX, o sionismo é liderado por europeus que decidiram
pela colonização da Palestina antes mesmo do final da Segunda Guerra Mundial. Nur Masalha,
historiador palestino e membro do Centro de Estudos Palestinos (SOAS) da Universidade de
Londres, explicita as semelhanças entre a narrativa sionista e o colonialismo, citando como o
projeto de Herzl era baseado na repulsa à cultura árabe e na transmissão da missão civilizatória
dos judeus europeus para o “Oriente atrasado” (MASALHA, 2012, p. 34, tradução nossa).
Enquanto o movimento sionista ganhava força pela Europa, a Palestina, então governada
pelo império Otomano, foi repartida mais uma vez em 1916 pelo acordo secreto de Sykes-Picot
(KHALIDI, 2010, p. 160, tradução nossa). Durante a Primeira Guerra Mundial, o diplomata
inglês Mark Sykes e o francês François Georges-Picot partilharam regiões do Império Otomano
em áreas de influência de seus exércitos, mantendo a Palestina sob administração conjunta.
O acordo permitiu que, em 2 de novembro de 1917, a Declaração de Balfour fosse
assinada pelo governo britânico, garantindo aos sionistas a criação de um Estado nacional
judaico na região da Palestina. A declaração foi emitida pelo então secretário do Exterior,
Arthur James Balfour, para um dos representantes sionistas britânicos, Lionel Walter
Rothschild. O projeto de Herzl teve enorme influência nesse tratado, pois foi através dele que

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os sionistas ganharam voz nas negociações com grandes líderes europeus, tornando possível
legitimar o movimento e a criação de sua Nação.
A Declaração de Balfour envolve uma série de polêmicas a respeito das ações militares
do Reino Unido, considerando que este já havia prometido aos árabes sua independência do
Império Otomano e aos franceses, uma administração internacional da Palestina. (KHALIDI,
2010, p. 22, tradução nossa). No entanto, a correspondência entre Balfour e Rothschild afirma
que a Palestina seria comandada pelos britânicos e não se tornaria independente, além de
garantir aos sionistas o “lar nacional dos judeus”, desconsiderando os árabes que representavam
mais de 90% da população na época (KHALIDI, 2010, p. 160, tradução nossa). Apesar da
Declaração de Balfour ser datada de 1917, a criação efetiva do Estado de Israel foi realizada
em 1948 após muita resistência árabe, estabelecendo então o primeiro Estado religioso na
região, precedendo uma república islâmica por mais de um quarto de século.
Em um cenário pós-Segunda Guerra Mundial, um grande fluxo de vítimas da
perseguição do Holocausto transportou judeus para a Palestina. A região estava sob o Mandato
Britânico na Palestina e todas as decisões tomadas, inclusive o controle de entrada de
imigrantes, dependiam do governo da Inglaterra. Desde 1939, o Mandato Britânico tentou
contornar a situação através da criação do Livro Branco – documento que visava favorecer a
Palestina, tornando-a independente e restringindo a entrada de judeus. Contudo, tal solução foi
rejeitada por líderes sionistas que defendiam os direitos dos judeus, tornando cada vez mais
difícil o encargo britânico nesse conflito. Dessa forma, o governo do Reino Unido finalizou o
Mandato Britânico na Palestina em 1947, considerando ser incapaz de agradar ambos os lados.
Em 1947, concomitante com o fim do Mandato Britânico na Palestina, a recém-criada
ONU (Organização das Nações Unidas) aprovou a Resolução 181, que consistia na divisão da
Palestina em dois Estados, um árabe e um judeu. Dessa forma, os judeus, representantes de um
terço da população na Palestina, ficaram com 56% do território enquanto os palestinos – dois
terços da população do país – receberam 44% da terra (AGNU, 1947). Novamente, um acordo
proposto foi rejeitado, dessa vez pelos palestinos que consideravam a divisão injusta e
inadequada. Apesar disso, o novo e autodeclarado independente Estado de Israel foi fundado
por David Ben-Gurion em 14 de maio de 1948. A formação do Estado de Israel marca para os
palestinos a Nakba, ou catástrofe – referindo-se à série de expulsões e desapropriações de
territórios, que somam cerca de 800.000 palestinos refugiados e 531 aldeias destruídas
(PAPPÉ, 2016, p. xiii).
Nesse sentindo, é possível afirmar que a Nakba na realidade não começa com a criação
de Israel, mas antes disso, quando os planos do sionismo começam a colocar em prática a

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destruição de vilas por todo o território palestino. A título de exemplo, quando os primeiros
membros dos grupos sionistas Irgun e Lehi 1 invadiram Deir Yassin, em 8 de abril de 1948,
eram os caminhos para Erezt Yisrael que estavam sendo abertos entre as ruínas do povoado
palestino. O vilarejo próximo a Jerusalém estava fora da área destinada ao futuro Estado
Judaico pelo plano de partilha da ONU e, em acordo com a Haganá (forças oficiais do
movimento sionista), havia assinado um pacto de não-agressão. Ainda assim, os habitantes
foram atacados pelos extremistas, no intuito de limpar o território e apagar do mapa a presença
palestina. O massacre em Deir Yassin aconteceu semanas antes do fim do Mandato Britânico
na Palestina, deixando mais de 200 vítimas brutalmente assassinadas e o vilarejo
completamente destruído. O que o Irgun e o Lehi arquitetaram em conjunto foi um prelúdio da
limpeza étnica na Palestina que se sucede até hoje (PAPPÉ, 2016). As vítimas de Deir Yassin
somam-se aos 250 mil palestinos expulsos de suas casas durante o funcionamento do Plano
Dalet de 1948, organizado pela Haganá para destruir vilas palestinas (PAPPÉ, 2016, p. 40).
Nur Masalha (2008), reitera que Deir Yassin permaneceu para os palestinos como um símbolo
potente da Nakba coletivo, compondo uma coletânea de fragmentos sobre todos.
Perceber o papel de Deir Yassin na memória palestina abriu caminhos para
questionamentos sobre tempo e trauma antes mesmo de pensar na minha pesquisa de mestrado.
Localizar na história um massacre tão violento antes da catástrofe me fez refletir sobre a
construção do imaginário coletivo palestino e sua relação com o tempo. Encontrei algum
direcionamento para essa questão a partir do livro “Searching Jenin” (BAROUD, 2003), onde
é feita uma coletânea de relatos em primeira pessoa sobre a invasão israelense no campo de
Jenin, ao norte da Cisjordânia, em 2002. Lena Jayyusi (2007, p. 114, tradução nossa) destaca
algo muito sintomático nos relatos, que reverbera a experiência dos palestinos com o tempo,
“baseada em um senso de passado dentro do presente, o presente como uma continuação do
passado e 1948 como uma data focal”. A catástrofe de 1948 é algo muito maior, contínuo e que
atravessa violentamente a vida palestina. Mas onde entra o futuro nessa dinâmica? Como é
possível encontrar, nessa experiência coletiva de trauma, as possibilidades de um horizonte por
vir? O que significa pensar a experiência de ser palestino em um território onde passado e
futuro se misturam no presente?
O massacre em Deir Yassin e em tantos outros vilarejos palestinos, marca o prelúdio
do Estado de Israel como conhecemos hoje: construído e almejado a partir das ambições do

1
Irgun (Organização Militar Nacional) e o Lehi (Lutadores pela Liberdade de Israel, também conhecido como
Stern Gang), forças judaicas sionistas formadas por grupos extremistas.

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sionismo, para o qual o futuro é claro. Enquanto empreitada colonial, seu projeto busca a
dominação total dos territórios palestinos e o apagamento de todo o seu povo, enquanto os
usurpa de todas as possibilidades de futuro. Ao perceber as proximidades do sionismo com o
pensamento colonial europeu, pude enfim entender melhor como a questão do tempo se
colocava na Palestina.
Retorno então aos filmes de ficção científica de Larissa Sansour, nos quais o
cruzamento dos regimes de visibilidade e temporalidade permite questionar e tensionar a
divisão entre real e ficção. Ao longo da dissertação, espero delinear a aproximação e
distanciamento entre ficção e realidade para, através disso, alcançar uma leitura política da
experiência temporal palestina, interrompida pelo projeto de criação do Estado de Israel. Nesse
sentindo, a hipótese que se apresenta é que, por conta da imposição da ocupação colonial na
Palestina, marcada pela catástrofe de 1948, o tempo na Palestina é perturbado, desarranjado
por um regime de tempo linear imposto pelo sionismo. A ideia de tempo perturbado é
apresentada por Edward Said, no livro “After the Last Sky” (1999), e colocada por mim como
uma maneira de nomear o que o cinema palestino nos apresenta. Os filmes de Sansour estariam,
portanto, circunscrevendo, a partir da ficção cientifica, formas de abordar essa experiência
temporal desestruturada. Como esse tempo perturbado se apresenta e representa a realidade
palestina? Qual papel a ficção científica ocupa na narrativa nacional e quais possibilidades sua
forma oferece? Como narrar a Palestina cronologicamente se é justamente no tempo perturbado
que a vida nela se encontra?
A escrita é estruturada através do desarranjar do tempo, sem seguir uma ordem
cronológica, respeitando alguns dos caminhos sugeridos pelos filmes, mas sem esgotá-los de
suas possibilidades. No primeiro capítulo, Projeções de futuros: os velhos irão morrer e os
novos irão esquecer, nos debruçamos sobre as utopias do projeto sionista, sua visão linear e
seu impacto na representação da realidade palestina na ficção de modo geral. A ideia do
controle sobre o futuro por parte da ocupação é o ponto de partida desse capítulo, começando
a discussão pelo seu suposto fim. Se o futuro é cooptado pela ordem colonial, como o tempo
pode ser usado como forma de resistência? De que forma o tempo palestino contesta a lógica
linear israelense? Como abrir as possibilidades para futuros outros?
Em seguida, no capítulo Contestações de passados: eles nunca existiram, atentos aos
debates sugeridos pelas próprias imagens, abordamos mais a fundo a disputa travada pelo
projeto sionista, que insiste em construir uma cronologia legitimadora de seu direito divino e
exclusivo sobre a Terra Santa. Usufruindo dos conceitos de identidade raiz de Édouard Glissant
(2005; 2021), nos aprofundamos nas estratégias de limpeza étnica e de instrumentalização da

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arqueologia, usada pelos sionistas para disputar o controle do tempo. Como essas contestações
entram em atrito com o tempo palestino? Por fim, o último capítulo Distopias do presente:
vocês estão aqui por acidente, se desdobra pela necessidade de repartir tudo aquilo que se
acumula no futuro e no passado. Nesse sentido, retomamos a atenção ao papel da ficção
científica nas narrativas palestinas e como ela revela a distopia do real.
Consideramos importante atentar-nos para a relevância histórica do cinema palestino
que, enquanto ferramenta narrativa, está inevitavelmente atrelada à questão política, de acordo
com Hamid Dabashi (2006). Para ele, o cinema palestino é caracterizado por “in/coerências
temáticas e im/possibilidades estéticas” pois se constituiu como a marca de uma presença em
relação à ausência geográfica (DABASHI, 2006). Somando esses fatores aos recursos
narrativos utilizados em seus filmes, Sansour oferece um amplo campo para análise e
reflexão teórica, reverberando no uso da ficção e na construção de cenários distópicos, as
palavras de Hamid Dabashi. O intuito do trabalho é dialogar com as imagens apresentadas e
viajar pela temporalidade palestina através dos filmes de Sansour. Com isso, o que buscamos
é encontrar na ficção científica o desarranjo e as negociações da ideia de um tempo perturbado
particular à Palestina, mas que se comunica com a experiência coletiva do que entendemos por
Sul Global.

17
I
Projeções de futuros: os velhos irão morrer,
os novos irão esquecer

Eu não te esqueço, Palestina


A distância me é cruel
Estou em suas sombras, rosas perfumadas
Sou a rosa dos espinhos, sou as flores
Vamos derrubar as paredes, vamos nos inspirar naquela caverna
Retornaremos ao lar, e apagaremos o fogo com fogo
Deixe ranger, deixe as trombetas soarem, e os sinos tocarem
O sangue dos livres celebra!

Fairouz - Sayfon Fal Youch’ha

No romance futurista “Altneuland” (1902), Theodor Herzl retrata uma mudança


completa na Palestina após a chegada de judeus europeus que, em duas décadas, transformam
o local em um oásis do progresso científico baseado em ideais europeus. Do alemão “Velha
Nova Terra”, a obra traduzia as ambições futuras de Herzl para o território palestino, então
ainda dominado pelo Império Otomano. A história gira em torno de Friedrich Loewenberg, um
jovem judeu de Viena que conhece a Palestina pela primeira vez e fica decepcionado com o
atraso do local. Vinte anos depois, Lowenberg desembarca no porto de Jaffa e encontra uma
realidade completamente diferente. No intervalo entre sua primeira e segunda visitas à
Palestina, a organização judaica “New Society” revitalizou e modernizou da região,
incentivando sua repopulação por judeus europeus, recebidos de braços abertos pelos poucos
árabes que ali habitavam.
O livro ressalta de diversas formas os impactos positivos causados pela chegada dos
europeus e sua visão progressista, suscitando uma inquestionável semelhança com outras
empreitadas coloniais pelo mundo. Desde sua criação no século XIX, o sionismo é liderado por
europeus que decidiram pela colonização da Palestina antes mesmo do final da Segunda Guerra
Mundial. Nur Masalha, historiador palestino e membro do Centro de Estudos Palestinos
(SOAS) da Universidade de Londres, explicita as semelhanças entre a narrativa sionista e o
colonialismo, citando como o projeto fundado por Herzl era baseado na repulsa à cultura árabe
e na transmissão da missão civilizatória dos judeus europeus para o “Oriente atrasado”
(MASALHA, 2012, p. 34, tradução nossa). Como utopia, “Altneuland” expressa o desejo por

18
uma sociedade sem conflito que esconde determinados processos, como a remoção da
população nativa nesse caso. Assim, a utopia de Herzl – enquanto símbolo do desejo sionista
– também pode ser entendida como o que Frederic Jameson chama de “protótipo da colônia de
ocupação e um precursor do imperialismo moderno” (JAMESON, 2005, p. 205, tradução
nossa).
Anos antes, em 1896, Herzl havia publicado o “Der Judenstaat” (O Estado Judeu),
onde apontava que o estabelecimento da Eretz Yisrael (Grande Israel), uma pátria
exclusivamente judaica em uma região de extrema importância para as três maiores religiões
monoteístas. Nas palavras de Herzl, o estabelecimento do Estado de Israel seria a “ponta de
lança da civilização europeia contra a barbárie.” (HERZL apud SAHD, 2014, p. 204). Apesar
de diferirem no gênero literário, as duas obras deixam clara a visão de Herzl para a Palestina,
apostando que a população nativa “poderia ser removida para além das fronteiras”
(MASALHA, 2021, p. 18). Com base em arquivos públicos do Estado de Israel e documentos
britânicos, Nur Masalha (2018; 2021) explica que o projeto sionista de Herzl precisou se
adaptar a análises mais realistas sobre a presença dos palestinos na região. Para tanto, o
conceito de transferência foi introduzido ao pensamento sionista, visando realocar as pessoas
que ali habitavam na esperança de que suas gerações futuras se desenvolvessem na
Transjordânia, Síria e Iraque. Diferente de “Altneuland”, onde os nativos receberiam os
colonos europeus com gratidão, a implementação real do sionismo pensada por Herzl e seus
aliados contava com propostas concretas de remoção dos palestinos e inviabilização de seu
sustento na região. O seguinte relato do “pai do sionismo político” data de 12 de junho de
1895:

Quando ocuparmos a terra, deveremos trazer benefícios imediatos ao Estado


que nos receber. Devemos expropriar as propriedades privadas nas áreas
designadas para nós. Devemos incentivar os despossuídos a cruzarem as
fronteiras, para procurar trabalho em países de trânsito, enquanto lhes
negamos emprego em nosso próprio país. Os proprietários virão para o nosso
lado. Ambos, o processo de expropriação e remoção dos pobres, devem ser
feitos discreta e cautelosamente. Deixemos os proprietários de imóveis
acharem que estão nos passando para trás, que estão nos vendendo algo muito
além do seu valor real. Mas nós não venderemos nada de volta a eles.
(MASALHA, 2021, p. 25).

19
O futuro projetado por Herzl ressoa nas famosas palavras atribuídas a Ben-Gurion,
que dão nome a este capítulo: os velhos irão morrer, e os novos irão esquecer. 2 O projeto
sionista foi e é amparado pelas inúmeras estratégias de limpeza étnica, assentamentos e
desapropriações, aliadas ao desejo impraticável de que um povo esqueça a si mesmo. Os votos
de Ben-Gurion se ancoravam na expectativa pelas políticas planejadas ao longo de décadas
para o esvaziamento total da região. O destino dos palestinos pouco importava, porque a certeza
era de que independente de onde estivessem, o tempo os faria esquecer. No entanto, nos mais
de 70 anos da criação de Israel, a Palestina tomou variadas formas, foi partida e repartida sem
o consentimento de seu povo, mas nunca foi esquecida. O que Herzl, Ben-Gurion e qualquer
outra liderança sionista nos mostra, é que a disputa pelo território se dá pela construção do
tempo. É a ideia de um futuro sionista que colide com o passado, presente e futuros palestinos.
A imposição da temporalidade colonial sionista desarranja a vida palestina, enquanto
usurpa sua população de todas as possibilidades de futuros fora de um regime opressor.
Palestinos passam a ser um “problema demográfico” a ser resolvido no caminho para o
estabelecimento de Israel. Nesse cenário, podemos identificar então duas temporalidades que
se atravessam: o tempo linear de Israel – limitado pela visão colonial de começo, meio e fim,
que começa com a criação do sionismo e do Estado, que vive um presente de ocupação para
alcançar um futuro idealizado nos moldes coloniais –; e o tempo não-linear da Palestina. Este
último, por sua vez, não serve ao projeto colonial, mas por ele é afetado ao mesmo passo em
que existe apesar dele.
Amal Jamal (2016), aponta para a relevância das disputas acerca das percepções do
tempo em situações de conflitos, e como estas refletem nas relações de poder. Para ele, o
sionismo se baseia numa narrativa progressiva de construção da Nação. No caso da ocupação
colonial, o tempo é utilizado como ponto central de dominação e poder, e seu controle torna-
se uma fonte política poderosa (JAMAL, 2016). A ideia do controle sobre o futuro por parte
da ocupação é o ponto de partida desse capítulo, começando a discussão pelo seu suposto fim.
A questão temporal é central para a compreensão da experiência de ser palestino, pois
essa se dá em meio a temporalidades conflituosas, o desencontro de um tempo desarranjado
pelo sionismo com uma busca interminável pelo retorno ao que passou. Nas palavras de Amal
Jamal:

2
Apesar de recorrentemente citada, não há nenhuma confirmação de que Ben-Gurion teria de fato dito ou escrito
que “os velhos irão morrer, e os novos irão esquecer”. Em uma matéria de 2013 do portal Electronic Intifada, os
pesquisadores Avi Raz e Avi Shlaim explicam que tal expressão não foi encontrada nos diários de guerra de Ben-
Gurion, mas que ela reflete seu pensamento. Recorro aqui a uma espécie de licença poética, considerando que
essa frase resume o anseio sionista para o futuro de seu projeto (WINSTANLEY, 2013).

20
Grupos nacionais hegemônicos em conflitos assimétricos buscam impor suas
próprias percepções temporais como “tempo hegemônico”, como a
perspectiva pela qual organizam sua presença ontológica e epistemológica,
determinando as unidades de tempo e eventos que constroem sua
autopercepção, como indivíduos e grupos, seja consciente ou
inconscientemente, justificando autopercepções superiores e exclusivas.
Nações hegemônicas em conflito buscam esvaziar ou suspender o fluxo de
tempo de seus inimigos. (JAMAL, 2016, p. 366, tradução nossa3).

A criação do Estado de Israel impôs ao corpo social palestino uma mudança drástica
na sua percepção de tempo. Para eles, o fluxo do tempo é interrompido. No labirinto formado
por muros, checkpoints, assentamentos e constantes transformações da paisagem, a experiência
temporal dos palestinos se atém a um passado-presente sem perspectiva de futuro. O tempo
marcha para a frente em Israel, transformando as vilas palestinas em assentamentos ilegais na
Cisjordânia e cemitérios islâmicos em parques para a população judaica 4, e assim apagando o
passado palestino para que seu futuro não seja possível. Jamal (2016, p. 366, tradução nossa)
entende esse processo como esvaziamento ou suspensão do tempo, sendo o primeiro uma forma
de “apagamento de eventos e ocasiões que substanciam a consciência histórica e a memória
coletiva de seus inimigos”, e o segundo relacionado a uma “parada do movimento no espaço,
refletida melhor pela espera”.
No intuito de analisar a temporalidade em situações de conflitos assimétricos, como é
o caso da Palestina, Jamal (2016) estipula duas noções centrais sobre o tema, sendo a primeira
concentrada nas diferentes concepções de tempo das partes envolvidas e seus diferentes usos
para manter o controle sobre a realidade. A segunda, concentra-se no fluxo do presente e
controle do futuro. Nesse caso, enquanto os grupos dominantes visam “roubar de seu ‘inimigo’
o controle sobre seu tempo para retardar seu movimento e desenvolvimento” (JAMAL, 2016,
p. 365, tradução nossa), os subordinados utilizam o tempo como mecanismo de resistência.
Esses movimentos traduzem a tentativa por parte dos grupos dominantes de manter os
subordinados imobilizados perante a continuidade do seu projeto colonial. Em contrapartida,
os oprimidos buscam a todo tempo retomar o controle de sua temporalidade.

3
Hegemonic national groups in asymmetric conflicts seek to impose their own temporal perceptions as
“hegemonic time,” as the perspective through which they organize their ontological and epistemological
presence, determining the time units and events that construct their self-perception, as individuals and groups,
whether consciously or unconsciously, justifying superior and exclusive self-perceptions. Hegemonic nations in
conflicts seek to empty or suspend the time flow of their enemies.
4
Uma prática comum do projeto sionista é construir parques e museus em cima de cemitérios islâmicos. Um dos
casos mais recentes aconteceu em outubro de 2021, no cemitério Al-Yusufia (Jerusalém), quando corpos
palestinos foram exumados em plena luz do dia diante dos olhos de seus parentes, que lutavam contra sua remoção.
Dentre outros casos, a construção do “Museu da Tolerância dos Direitos Humanos” também se destaca por ter
sido realizada em cima de outro cemitério palestino (MEMO, 2021).

21
No entanto, a ideia de “suspensão do tempo” não pressupõe que os palestinos assistam
passivamente ao roubo de seu tempo. Pelo contrário, a todo momento e de diversas maneiras,
o povo palestino resiste à ordem temporal imposta por Israel, recusando-se a ter sua realidade
controlada. Pensando as temporalidades conflituosas na Palestina, Diego Amaral (2020)
afirma:
A produção cultural palestina e os numerosos protestos em Gaza demonstram
que a anomia implicada pela noção de “tempo suspenso” não abrange a
totalidade da experiência palestina do tempo. Na verdade, ilustra uma
condição estrutural, que é desafiada pela experiência cotidiana em que as
pessoas jogam pedras nos tanques ou encontram formas criativas de se
locomover pelo território e continuar vivendo suas vidas, apesar das
imposições brutais. Na verdade, o que pode ser percebido como “espera” é
um elemento no processo de sobrevivência em circunstâncias hostis - e
sobreviver nunca pode ser uma tarefa estática. (AMARAL, 2020, p. 181,
tradução nossa5).

Dentre tantos outros, um exemplo que pode ser dado é o que movimentos
revolucionários palestinos têm chamado de “Intifada da União” (Intifada, do árabe “levante”,
em alusão às duas Intifadas de 1987 e 2000, respectivamente). Em 2021, a ameaça de
demolições ilegais de residências palestinas nos bairros de Sheikh Jarrah e Silwan, em
Jerusalém, mobilizou a população em todo território palestino, reiterando que este não cedeu e
nem cederá à tentativa sionista de fragmentá-los. As famílias de palestinos que atualmente
residem em Sheikh Jarrah são refugiadas, vítimas da limpeza étnica israelense durante as
expulsões em massa da Nakba. Demolir esse último refúgio seria uma forma de apagar a
história palestina para construir em Jerusalém Oriental – região que não está sob o domínio de
Israel – mais uma parte do futuro sionista. Nos últimos setenta anos, são movimentos como
esses que têm impedido a concretização do futuro traçado pelo projeto sionista:

Em oposição à soberania temporal hegemônica, que impõe a coerência


temporal e silencia as ordens temporais em conflito, os grupos suprimidos
exigem seu retorno à história por meio da construção de uma consciência
alternativa, que se torna a pedra angular da luta contra a subjugação. Assim,
a luta contra o esvaziamento ou suspensão do tempo representa uma estratégia
importante na luta pela eliminação das regras básicas, que mantêm a ordem

5
Palestinian cultural production, and the numerous protests in Gaza, demonstrate that the anomy implied by the
notion of “suspended time” does not encompass the totality of the Palestinian experience of time. It does indeed
illustrate a structural condition, which is challenged by the quotidian experience where people are throwing
stones on tanks or finding creative ways to move throughout the territory and to keep on living their lives, despite
the brutal impositions. In fact, what might be perceived as “waiting” is one element in the process of survival
under hostile circumstances – and surviving can never be a static task.

22
do tempo. Desse modo, a narração se torna uma ferramenta central para lutar
contra a suspensão do tempo (JAMAL, 2016, p. 366, tradução nossa 6).

Amaral (2020) traz um diálogo com a análise de Jamal, afirma que o pensamento do
autor palestino converge com o entendimento do filósofo francês Paul Ricoeur sobre o lugar
crucial da narrativa na percepção humana do tempo: “Narrar, escreve Ricoeur, ecoando
Aristóteles, é uma forma de organizar eventos presentes, passados e futuros. A narração do
tempo como forma de resistência aparece na cultura palestina pelo menos desde a Nakba.”
(AMARAL, 2020, p. 182, tradução nossa). Desse modo, a narrativa palestina se coloca para
além de um suporte artístico. É nela e através dela que a Palestina como território, identidade
e memória se sustenta e desafia o futuro do projeto sionista há mais de sete décadas.
Se narrar é uma forma de estar no mundo, e assim, entendê-lo (RICOUER, 1984),
dirigimos nossa atenção agora para as formas de narrar a Palestina, e como elas nos permitem
compreender seu tempo desarranjado. Como o tempo é compreendido nas narrativas oriundas
da Palestina? Como essa narrativa resiste ao controle do futuro? De que forma ela traduz a
experiência temporal palestina?

6
In opposition to hegemonic temporal sovereignty, which imposes temporal coherency and which silences
contending temporal orders, suppressed groups demand their return to history through the construction of an
alternative awareness, which becomes a cornerstone for the struggle against subjugation. Mimicking the powerful
becomes an important component of the identity construction of the controlled people. Thus, the struggle against
the emptying or suspension of time represents an important strategy in the struggle to eliminate the basic rules,
which maintain the order of time.

23
| As perturbações, o tempo e a narrativa

Na tentativa ambiciosa de falar sobre tempo e narrativa na Palestina, começamos o


percurso com questionamentos suscitados pelo livro “After the Last Sky” (1999). Nele, Edward
Said e o fotógrafo suíço Jean Mohr constroem em conjunto uma coletânea das experiências
palestinas através da interlocução entre fotografia e prosa. Resultante da colaboração entre os
dois, o livro revela camadas de um tributo ao exílio dos palestinos e uma nostalgia pela pátria,
que de forma alguma busca ser objetivo, mas sim dizer algo que ainda não havia sido dito sobre
os palestinos. Trabalhando sempre com o problema da política, Said e Mohr atentam para o
fato de que escrever sobre a Palestina, já naquela época, não era algo inédito, mas ainda assim,
os palestinos continuavam sendo um tópico desconhecido, especialmente no Ocidente. Através
do hibridismo das formas de arte, “After the Last Sky” desenha um terceiro espaço para
significação dos processos palestinos, como exposto por Homi Bhabha. Segundo ele,
“intervenção do Terceiro Espaço de enunciação, que torna a estrutura de sentido e referência
um processo ambivalente, destrói esse espelho de representação em que o saber cultural
costuma se revelar como um código integrado, aberto e expansivo.” (BHABHA, 2004, p. 54).
Inspirado no poema “The Earth is Closing in on Us”, do poeta nacional palestino
Mahmoud Darwish (2005, tradução nossa), o título do livro remete às perguntas por ele feitas:

Para onde devemos ir depois das últimas fronteiras?


Para onde os pássaros devem voar depois do último céu?
Onde as plantas devem dormir após a última respiração?
Vamos escrever nossos nomes com vapor escarlate.
Vamos cortar a mão da música para ser concluída por nossa carne.
Morreremos aqui, aqui na última passagem.
Aqui e aqui nosso sangue plantará sua oliveira.

O sentimento do deslocamento forçado, exílio e as incertezas em torno da terra são


tratados entre escrita e imagem, de forma a projetar o poema supramencionando de Darwish.
Durante uma conversa sobre identidade palestina com Edward Said, o ensaísta britânico de
origem indiana Salaman Rushdie, introduz o livro em questão afirmando que a resposta para
os questionamentos de Darwish é que “depois do último céu não há céu e depois da última
fronteira não há terra.” (SAID, 1994, p. 176, tradução nossa). De certa forma, o movimento de
Said ao colocar em prosa as fotos de palestinos tiradas por Jean Mohr, e sua declaração sobre
a vida cotidiana dos palestinos nos Territórios Ocupados, diverge da resposta dada por Rushdie.
A ideia de finitude expressa nas perguntas de Darwish são contrariadas pela frase final de seu

24
poema. Depois do último céu, o sangue palestino plantará sua oliveira, não permitindo que se
esgotem assim, suas possibilidades de existência. Mais do que isso, Darwish acena para a
resistência palestina que finca suas raízes na terra apesar do constante desarranjo de sua
experiência temporal.
Durante todo o livro, Said remonta a uma noção fragmentada da experiência palestina
que inevitavelmente transborda em suas narrativas. Composições fragmentadas e narrativas
quebradas que refletem a descontinuidade da vida dispersa dos palestinos, em contraste com a
continuidade oferecida e assegurada aos colonos israelenses. A foto que conversa com o texto
nessa página mostra uma mulher palestina no Campo de Ein el-Hilwé, no sul do Líbano,
caminhando em primeiro plano e, ao fundo, as ruínas de construções civis compõem a imagem
que carrega a legenda “Sidon, Sul do Líbano, 1983. O tempo passa: destruição, reconstrução,
redestruição.” (SAID, 1999, p. 39, tradução nossa). Ein el-Hilwé é o maior campo de
refugiados palestinos no Líbano (UNRWA, 200-) e, como a maioria deles, foi estabelecido
ainda em 1948 para prover abrigo para os palestinos expulsos durante a Nakba. Precisamente
35 anos após a Catástrofe, a vida segue em meio aos fragmentos inerentes à experiência
palestina, onde quer que estejam. A foto abaixo retrata a suspensão do tempo palestino em sua
forma mais clara: já fora da Palestina, num exílio forçado que os realoca para outro país,
vivendo sob a constante sensação de não-pertencimento, à espera eterna do retorno.

25
Figura 1: Fotografia de Jean Mohr

Em 1982, durante a invasão israelense ao Líbano, campos de refugiados palestinos,


como Ein el-Hilwé, tornaram-se alvos das operações militares israelenses. A deterioração da
já precária vida nesses campos onde os palestinos se encontravam foi acelerada com os ataques
israelenses, como se suas ações militares estivessem tentando alcançar aqueles que escaparam
da limpeza étnica. Famílias inteiras à deriva do tempo, reunidas pela espera do eterno retorno
ao que Israel destruiu. No tempo do campo de refúgio, dentro ou fora da Palestina, a experiência
da Nakba é revivida independente do território em que se encontram. Como tal experiência
pode ser representada se há nela algo de impossível?
Uma ideia crucial no livro, apontada por Rushdie durante sua conversa com Said, diz
respeito ao significado da experiência palestina em relação às obras de arte feitas por nacionais.
Referindo-se à ideia de descontinuidade dessa experiência exposta por Said, Rushdie implica
que as regras clássicas sobre forma ou estrutura não podem ser verdadeiras para essa
experiência; em vez disso, é necessário trabalhar em meio a uma espécie de caos ou

26
instabilidade (SAID, 1994). Said desenvolve esse ponto, aprofundando-se na questão da
instabilidade da experiência fragmentada dos palestinos, resultante de exílios e deslocamentos:

O que é impressionante sobre a prosa palestina e a ficção em prosa é sua


instabilidade formal: nossa literatura, em um certo sentido muito restrito, é a
realidade elusiva e resistente que tantas vezes tenta representar. A maior parte
dos críticos literários em Israel e no Ocidente se concentram no que é dito na
Palestina escrita, quem é descrito, o que o enredo e os conteúdos
proporcionam, seu significado sociológico e político. Mas é a forma para
onde deve se olhar. Particularmente na ficção, a luta para alcançar a forma
expressa os esforços do escritor para construir uma cena coerente, uma
narrativa que pode superar a impossibilidade quase metafísica de se
representar o presente. Uma obra típica palestina sempre estará preocupada
com este problema peculiar, que é tanto um problema de enredo quanto uma
encenação do empreendimento do escritor (SAID, 1999, p. 38, tradução
nossa7).

Nesse sentido, é possível pensar com Jacques Rancière (2012) sobre quais condições
e acontecimentos podem ser declarados irrepresentáveis, sem deixar de considerar um olhar
mais restrito sobre a representação como regime do pensamento na arte. Segundo Rancière,
quando se fala que um acontecimento é irrepresentável pelos meios da arte, entende-se que,
por um lado, é impossível tornar presente o caráter essencial da coisa em questão. Nesse
primeiro momento, há uma menção ao impoder da arte, considerando que não se pode colocar
tal situação diante dos olhos, nem encontrar um representante à sua altura (RANCIÈRE, 2012).
Por outro lado, aproximando-se um pouco mais da questão exposta por Said, a ideia
de que algo é irrepresentável pelos meios da arte se dá em virtude da natureza desses meios,
pois nela há um excesso de presença que carrega um status de irrealidade, além de que, seu
jogo próprio do excesso e da falta, é incompatível com a gravidade da experiência que contém
(RANCIÈRE, 2012). A questão então se volta para a ideia de um novo mundo da arte, definida
por Rancière como a arte sublime, que testemunha o “impensável em geral, o desacordo
essencial entre o que nos afeta e aquilo que nosso pensamento pode dominar” (RANCIÈRE,
2012, p.121). Algo que chama atenção quando mencionamos a impossibilidade quase

7
The striking thing about Palestinian prose and prose fiction is its formal instability: Our literature in a certain
very narrow sense is the elusive, resistant reality it tries so often to represent. Most literary critics in Israel and
the West focus on what is said in Palestinian writing, who is described, what the plot and contents deliver, their
sociological and political meaning. But it is form that should be looked at. Particularly in fiction, the struggle to
achieve form expresses the writer's efforts to construct a coherent scene, a narrative that might overcome the
almost metaphysical impossibility of representing the present. A typical Palestinian work will always be
concerned with this peculiar problem, which is at once a problem of plot and an enactment of the writer's
enterprise.

27
metafísica de representar a experiência palestina ou, nos termos de Rancière, a
irrepresentabilidade de um acontecimento, é a importância da forma, mencionada por Said.
O impasse encontrado por Said e Rancière exige uma reflexão sobre modos de
expressão que escapem às limitações impostas entre excesso e falta, e que consigam capturar
outro ponto crucial exposto por Said e Mohr: a experiência temporal-espacial na Palestina. Esse
ponto é ressaltado durante o livro, de diversas maneiras. A questão da vida descontínua
condensa o sentimento exposto de uma experiência fragmentada pelo constante movimento de
imposição do deslocamento, pela força abrupta da ocupação que atravessa todas as camadas da
sociedade palestina, independente de sua localização geográfica, dentro ou fora dos Territórios
Ocupados. A foto de duas crianças palestinas brincando na carcaça de um carro abandonado
no Campo de Bourj Shemali, sul do Líbano, compõe a ideia de vidas desconexas da Nação,
distantes de casa, buscando nas frações a sustentação de um todo. Estabelecido em 1948, Bourj
Shemali recebeu palestinos de Hawla, Tiberias, Saffuri e Lubieh (UNRWA, 200-), e, assim
como Ein el-Hilwé, também foi alvo das agressões sionistas durante 1982.

Figura 2: Fotografia de Jean Mohr

A legenda lê “o pneu do carro testemunha um drama, circunstâncias desconhecidas. As


flores: mês de maio, é primavera. As crianças: vestindo roupas elegantes, quase com certeza

28
doadas por uma caridade. Eles são refugiados - filhos de refugiados” (SAID, 1999, p. 20,
tradução nossa). Na composição da imagem, podemos identificar fragmentos do passado,
presente e futuro, embaralhados entre as crianças – já representando a segunda geração de
refugiados palestinos – e a carcaça de um carro abandonado. Descontinuidade e fragmentação,
dois elementos que transbordam na imagem de Mohr, e revelam no texto de Said sua
importância para a compreensão da experiência palestina:

Como nossa história é proibida, as narrativas são raras; a história das origens,
do lar, da nação fica oculta. Quando aparece, é quebrada, muitas vezes
instável e sinuosa ao extremo, sempre codificada, geralmente em formas
ultrajantes - piadas épicas, sátiras, parábolas sardônicas, rituais absurdos - que
fazem pouco sentido para quem está de fora. Assim, a vida palestina é
dispersa, descontínua, marcada pelos arranjos artificiais e imposições do
espaço interrompido ou confinado, pelos deslocamentos e ritmos não
sincronizados do tempo perturbado (SAID, 1999, p. 20, tradução nossa8).

Tempo perturbado. Pensar a experiência temporal como algo desarranjado permite


uma inserção no problema central da pesquisa, e na busca pela compreensão do impacto do
projeto sionista na vida palestina. O que Said classifica como perturbado é resultado do
encontro forçado entre os tempos linear e não-linear da ocupação e da Palestina,
respectivamente. Sua perturbação é fruto da imposição de regimes temporais do capitalismo
globalizado que “se fundem com formas divergentes de temporalidade, cuja persistência e
resiliência determinaram as suas formas emergentes ao longo do período de colonização e
neocolonização.” (RESENDE; THIES, 2017, p. 7).
As noções temporais de desenvolvimento, progresso e modernidade em oposição ao
“atraso” e ao “caos” só são sustentáveis nas formações sociais que, sob essa lógica linear,
convergem em um único ponto (MBEMBE, 2017). Na contemporaneidade palestina, podemos
observar as marcas das ausências do passado e, através delas, perceber uma sobreposição de
camadas temporais, quando nesse enredamento do tempo, presente, passado e futuro se
entrelaçam (MBEMBE, 2017). Como explica Carol Greenhouse (1996), a relação entre essas
temporalidades se dá a partir do momento em que o desejo de agência de culturas ocidentais a
partir de sua estrutura linear, marginaliza a concepção temporal de outros povos.

8
Since our history is forbidden, narratives are rare; the story of origins, of home, of nation is underground. When
it appears it is broken, often wayward and meandering in the extreme, always coded, usually in outrageous forms-
mock-epics, satires, sardonic parables, absurd rituals -that make little sense to an outsider. Thus, Palestinian life
is scattered, discontinuous, marked by the artificial and imposed arrangements of interrupted or confined space,
by the dislocations and unsynchronized rhythms of disturbed time.

29
No contexto histórico abordado aqui, entendemos o sionismo como parte dessas
culturas ocidentais (MASALHA, 2012; 2018), considerando a vasta influência do pensamento
colonialista europeu na ideologia fundadora do Estado de Israel. O futuro imaginado por Herzl
foi e continua sendo o elemento norteador que guia o projeto sionista. Assim, damos destaque
à ideia de tempo perturbado, no contexto da esfera moderno/colonial, pois olhar para a
Palestina como espaço da empreitada colonial do sionismo é essencial para enxergar as
camadas de impacto das forças desse poder. A ocupação colonial israelense atua em diversas
frentes na tentativa de apagamento do povo palestino e, como aponta Amal Jamal (2016), atua
também a partir de uma construção temporal fixada em uma narrativa progressiva da
construção da Nação. Considerar o tempo perturbado quando tratamos da experiência palestina
é o que nos permite adentrar as suas narrativas. Como estamos voltados para o cinema, é a
partir dele que queremos pensar a importância da forma em dizer o que em outra situação seria
impossível.

30
| As possibilidades da forma

Cada vez mais reduzida, a geografia da Palestina resulta das disputas em torno de
todos os elementos que a compõem: suas camadas, marcas, identidades, imaginários e
territorialidades. Nesse sentido, é possível pensar como “geografia violentada”, ideia
desenvolvida por Resende (2017, p. 108) a partir do termo exhausted geografy, de Irit Rogoff
(2000):
São infindáveis as tramas que tecem um território no qual a articulação de
poderes políticos e econômicos – o Estado de Israel e seus aliados – se
amalgamam a dinâmicas culturais e religiosas, para dizermos o mínimo em
relação aos imaginários que convergem, por exemplo, na cidade de
Jerusalém. Falamos, portanto, de várias camadas de narrativas, desejos e
poderes que se inscrevem e se instalam, há séculos, em uma geografia que se
encontra exaurida (RESENDE, 2017, p.108).

Tais disputas são travadas na narrativa sionista que, desde os primórdios do projeto
no século XIX, busca construir o vazio na Palestina, um deserto à espera de um povo que
soubesse fazê-lo florescer. Desde que sua tão contestada existência tornou-se obstáculo para o
sionismo, palestinos tornaram-se sujeitos de uma narrativa como rebeldes, terroristas, seres
desprovidos de cultura, tão capturados pela narração alheia a ponto de simplesmente deixarem
de existir.
Ainda assim, a Palestina que remanesce é fruto de um acordo coletivo baseado na
premissa de narrar a si própria e no desejo de permanecer visível (SAID, 1999). A partir da
perspectiva da narrativa, pode-se explorar expressões socioculturais que excedem os limites
desse espaço-tempo. No escopo do Sul Global, a região do Oriente Médio desvela uma série
de narrativas e, segundo Fernando Resende (2014), localiza no território palestino uma espécie
de epítome para esse Sul:

Como uma arena de grandes disputas e conflitos, domínios colonialistas,


privações econômicas e diversas outras formas de crueldades impostas, o
território palestino, infelizmente em sua pior dimensão, representa boa parte
daquilo ao qual o “Sul” como um todo, tem sido submetido (RESENDE,
2014, p. 20, tradução nossa9).

9
As an arena of great disputes and conflicts, colonialist dominances, economic privations and many other forms
of imposed cruelties, the Palestine territory, unfortunately in its worst dimension, signifies much of what the
'South', as a whole, has been submitted to.

31
A imposição do Estado israelense se amplifica pela militarização de todo o território,
e através dela mantém os palestinos nos territórios ocupados em um estado de vigilância,
segregação e reclusão (MBEMBE, 2018). Em meio às anexações ilegais para construções de
assentamentos israelenses, os palestinos são forçados a viver uma constante desterritorialização
de suas vilas históricas para a vida em exílio ou nos campos de refugiados. É a partir da
resistência ao esvaziamento do território palestino que Resende e Robalinho (2014, p. 4)
sugerem a reterritorialização criativa como um “processo constante de reinvenção da
identidade palestina”. A disputa de poder encontra na narrativa a possibilidade de revelar uma
história sequestrada em 1948 e, como o romance de Ghassan Kanafani, incorpora em si os
espaços interrompidos e os tempos perturbados (SAID, 1999), intrínsecos à vida palestina.
Sendo atravessados pelas disputas territorial e narrativa, os palestinos encontram no
cinema não só um espaço para essa reterritorialização, mas também uma forma de escapar, nas
palavras de Tawil-Souri (2014), da armadilha territorial imposta pelo Estado de Israel. A
narrativa oferece as ferramentas para a retomada do controle do espaço e do tempo palestino:

[...] desde a perda de um estilo de vida particular em 1948 ao fervor


revolucionário dos anos 1960 e 1970, do caos confinador da vida campesina
à fragmentação territorial entre Israel-Palestina à desordem do exílio. (...)
Mais propriamente, ela [a Palestina] é a negociação desses espaços e as
i/mobilidades que eles engendram que fazem parte da espacialidade palestina.
Em outras palavras, a Palestina real e a cinematográfica são diversas e multi-
situadas (TAWIL-SOURI, 2014, p.172, tradução nossa10).

Na disputa travada pelo projeto sionista pelo controle do tempo, o cinema opera, desde
seus primórdios, um papel fundamental. A Terra Santa se tornou o terreno perfeito para
experimentações durante a consolidação da indústria cinematográfica, eternizando cenas do
cotidiano em Jerusalém no imaginário da época. Ainda em 1896, a câmera dos irmãos Lumière
capturaram o testemunho da Cidade Velha de Jerusalém e toda sua pluralidade, assim como
fizeram outros cineastas. As imagens míticas da Palestina alimentavam o imaginário
orientalista dos cineastas do Ocidente. A expansão do cinema permitiu também que os
palestinos registrassem suas próprias imagens, como o primeiro filme feito por um palestino
ainda no século XIX. O cineasta Ibrahim Hasan registrou a visita do Rei Abd al-Aziz bin Abd
al-Rahman bin Faysal al-Saud à Palestina, e seus caminhos para Jerusalém e Jaffa (DABASHI,
2006).

10
[...] from the loss of a particular way of life in 1948 to the revolutionary fervor of the 1960s and early 1970s,
from the confining chaos of camp-life and the territorial fragmentation within Israel-Palestine to the disorder of
exile. (…) Rather it is the negotiation of these spaces and the im/mobilities they engender that are part and parcel
of Palestinian spatiality. In other words, the real and the cinematic Palestine is multi-fold and multisituated.

32
O cinema faz-se presente na interseção entre invisibilização e a estereotipagem dos
palestinos na mídia (SAID, 2006). De forma muito significativa, a filmografia palestina emerge
como meio de documentar a violência da Nakba, tornando visível o “apagamento histórico, na
tentativa de encontrar uma base segura, para lutar por reconhecimento e libertar a pátria.”
(TAWIL-SOURI, 2014, p. 177, tradução nossa). A partir da década de 1960, e com a fundação
da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), organizações internas e externas passaram
a investir nas produções cinematográficas, registrando os acontecimentos contemporâneos e
também com o intuito incentivar a movimentação política entre árabes-palestinos pela causa
nacional, como Helga Tawil-Souri explica:

É na década de 1960 que surge um cinema palestino “nacional”, nos filmes


revolucionários que fizeram parte da luta armada. Isolados de Israel e dos
Territórios Ocupados, enfrentando condições política e economicamente
debilitantes, esses primeiros filmes retratavam ações militares e a vida nos
campos de refugiados. (...) o cinema palestino revolucionário era
"desterritorial" e abordava as mudanças geográficas de várias maneiras, seja
por meio de estruturas de financiamento externo, estética, ideologia ou tropos
diegéticos (TAWIL-SOURI, 2014, p. 177, tradução nossa11).

Nas duas décadas seguintes, o cinema palestino seguiu os mesmos trilhos, narrando
a história através de documentários, com poucas exceções ficcionais e, como aponta Joseph
Massad (2006), a instrumentalização política definiu a estética nesse período. Como um todo,
o repertório imagético palestino segue em disputa com a narrativa sionista de filmes
comerciais, mais bem recebidos nos grandes mercados da Europa e dos Estados Unidos.
Ao tratar do lugar do cinema como uma arma cultural, Joseph Massad (2006) diz não
identificar nos diversos filmes palestinos uma representação concreta da Nakba, à exceção dos
documentários. Mesmo citando filmes como “Wedding in Galilee” (Michel Khleifi, 1987, 100
min) e “Four Songs for Palestine” (Nada el-Yassir, 2001, 13 min), entre outros, Massad não
enxerga neles a presença da Catástrofe. O que ele busca nas imagens é representação fiel da
Nakba e, sem ela, o cinema palestino “falha em dizer o que deve, mas não consegue dizer.”
(MASSAD, 2006, p. 72, tradução nossa). A visão de Massad parece estar presa a uma noção
específica de narrativa, como se os horrores da Nakba só pudessem ser traduzidos em imagens
literais. Segundo ele,

11
It is the 1960s that sees the birth of a ‘national’ Palestinian cinema, in the revolutionary films that were part
and parcel of the armed struggle. Cut off from Israel and the Occupied Territories, facing politically and
economically debilitating conditions, these early films depicted military actions and life in the refugee camps. (…)
the revolutionary Palestinian cinema was ‘de-territorial’ and addressed changing geographies in multiple ways,
whether through external funding structures, aesthetics, ideology, or diegetic tropes.

33
[...] a narrativa de exílio e expropriação palestina está por ser contada em
filme, seja para um palestino ou por uma audiência internacional. Diretores
palestinos, como é o caso de diretores árabes, não tentaram retratar o trauma
fundador da Nakba, a não ser através de documentários. A não-representação
da Nakba nesse domínio estético assombra os cinemas palestino e árabe como
nenhuma outra dimensão da história palestina (MASSAD, 2006, p. 43,
tradução nossa12).

Tal concepção remonta ao impoder da arte evocado Rancière (2012). No entanto, o que
Massad faz é fixar a Catástrofe palestina ao status de irrepresentável, desconsiderando, nos
termos do autor francês, as possibilidades de uma arte sublime que possa superar esse impoder.
Em contramão ao pensamento de Massad, Ella Shohat (2010) traz uma visão mais aberta sobre
a representação da Catástrofe. Shohat aponta que filmes como “Divine Intervention” (Elia
Suleiman, 2002, 92 min), “Route 181” (Eyal Sivan e Michel Khleifi, 2003, 272 min), entre
outros, abordam a fragmentação contínua da Palestina através da violência dos checkpoints,
muros e cercas (SHOHAT, 2010). Citando documentários e filmes de ficção, Shohat não
restringe a representação da Nakba a uma forma específica, mas entende que esses filmes “não
se concentram na expropriação à escala da Nakba, mas na violência do legalismo assimétrico,
as imagens de uma macro-Nakba do passado dão lugar a contos de micro-Nakbas em curso.”
(SHOHAT, 2010, p. 295, tradução nossa). A ideia de micro-Nakbas representados nos filmes
palestinos contesta as considerações de Massad nos campos da imagem e do tempo, como se
através deles, os filmes chegassem mais perto de dizer sobre aquilo que é impossível de ser
dito. Pensar essas micro-Nakbas em curso nos ajuda a conceber a Catástrofe contínua e sua
relação com o tempo perturbado da Palestina.
Nesse sentido, nos interessa localizar a forma da experiência temporal palestina no
cinema, especificamente, como um terceiro espaço (BHABHA, 2004). A relação que Said e
Mohr fazem em “After the Last Sky”, seria a mesma travada em outras narrativas palestinas,
que considera o tempo perturbado e negocia os significados e as representações (BHABHA,
2004). Dentro da perspectiva decolonial, Walter Mignolo e Rolando Vazquez (2019) trabalham
um olhar sobre essa forma a partir da crítica ao conceito de estética cunhado pelo projeto
moderno/colonial. A estética é imposta como um “aspecto da matriz colonial do poder, da
estrutura imperial de controle que começou a ser implantada no século XVI com o surgimento
do circuito comercial atlântico e a colonização do Novo Mundo, e que se transformou e

12
[...] the Palestinian narrative of exile and dispossession is yet to be told in film, whether to a Palestinian or an
international audience. Palestinian directors, as is the case with other Arab directors, have not attempted to
represent the foundational trauma of the Nakba, except with documentary footage.

34
expandiu-se ao longo dos séculos XVIII e XIX e até hoje.” (MIGNOLO; VAZQUEZ, 2019, p.
4, tradução nossa). Aqui é importante ressaltar a relação feita por Mignolo entre modernidade
e colonialidade como conceitos indissociáveis, precisamente por estas representarem “dois
lados da mesma moeda, e não dois pensamentos separados” (MIGNOLO, 2005, p. 6). O autor
argentino descreve a lógica da colonialidade, ou matriz de poder colonial, que se apresenta
através da retórica moderna:

A lógica da colonialidade pode ser compreendida atuando através de quatro


domínios da experiência humana: (1) o econômico: apropriação de terra,
exploração de trabalho, e controle de finanças; (2) o político: controle de
autoridade; (3) o social: controle de gênero e da sexualidade; (4) o epistêmico
e subjetivo/pessoal: controle do conhecimento e da subjetividade
(MIGNOLO, 2005, p. 11, tradução nossa13).

Pensar a aesthesis decolonial como ponto de partida é importante para analisar as obras
cinematográficas que serão discutidas a seguir, a partir da noção de tempo, e seu papel
intrínseco a narrativa. Mignolo e Vazquez (2019) então apresentam a aesthesis decolonial
como um pensamento que desafia e subverte a hegemonia da estética moderno/colonial,
apresentando-se como saída para este impasse. Nas palavras dos autores:

A estética decolonial é uma opção que oferece uma crítica radical à estética
moderna, pós-moderna e altermoderna e, simultaneamente, contribui para
visibilizar subjetividades decoloniais na confluência de práticas populares de
re-existência, instalações artísticas, performances teatrais e musicais,
literatura e poesia, escultura e outras artes visuais (MIGNOLO, VAZQUEZ,
2019, p. 5, tradução nossa14).

A questão da estética impõe-se através da consciência de que o projeto


moderno/colonial implica no controle não somente da economia, política e conhecimento, mas
também nos sentidos e percepções. A separação entre ficção e realidade instrumentaliza a
Nakba e busca alcançar nela uma totalidade, enquanto, olhando para as inúmeras produções
cinematográficas palestinas, é possível identificar em cada uma delas as marcas da Catástrofe,
representada de diferentes formas em metáforas e alegorias. O tensionamento ou a manutenção

13
The logic of coloniality can be understood as working through four wide domains of human experience: (1) the
economic: appropriation of land, exploitation of labor, and control of finance; (2) the political: control of
authority; (3) the civic: control of gender and sexuality; (4) the epistemic and the subjective/personal: control of
knowledge and subjectivity.
14
Decolonial aestheSis is an option that delivers a radical critique to modern, postmodern, and altermodern
aestheTics and, simultaneously, contributes to making visible decolonial subjectivities at the confluence of
popular practices of re-existence, artistic installations, theatrical and musical performances, literature and
poetry, sculpture and other visual arts.

35
dessa dicotomia ficção/realidade não permite enxergar no imbricamento dos dois as
possibilidades de narrar a Palestina em seu próprio tempo perturbado. O esforço de separá-las
parece ainda mais destoante no caso palestino, quando na percepção hegemônica de conflito
entre duas partes, a distinção entre real e fictício está sujeita à interpretação e aos interesses do
público. Além disso, o cinema palestino carrega em cada filme não só a questão política
marcada em cada imagem, mas a subjetividade de cada diretor. Como Omar Al-Qattan explica:

Uma das coisas que eu aprendi ao longo dos últimos catorze anos
fazendo filmes como um palestino é o quanto organicamente ligadas
são a subjetividade e a objetividade, o metafórico e a militância, o
estético e o político e certamente o esforço pela Palestina e as
estratégias empregadas para fazer filmes sobre ela e dentro dela (AL-
QATAN, 2006, p. 110, tradução nossa15).

Os retratos da experiência palestina vivida sob o domínio dos colonos israelenses


exploram como a memória é inserida nos eventos que marcam a vida de exílio pós-1948. No
esforço por uma reterritorialização criativa, a ficção palestina, no filme ou no texto, busca
sempre construir “uma narrativa que possa superar impossibilidade quase metafísica de
representar o presente.” (SAID, 1999, p. 38, tradução nossa). Dessa forma, a percepção do
tempo na Palestina é essencial para a construção de uma narrativa. Quando, em “Voltando para
Haifa”, Ghassan Kanafani (2000) sobrepõe os acontecimentos de 1948 e 1967, ele articula a
violência da tomada de Haifa pela Haganá e a expulsão dos palestinos de suas casas com a
perda da Palestina. Essa interação temporal evoca o tempo perturbado descrito por Edward
Said ao passo que utiliza da flexibilidade do tempo na Palestina para representá-lo. Retomando
as observações de Helga Tawil-Souri (2014) sobre o cinema palestino, é importante notar que:

O cinema palestino não é um cinema que necessariamente (ou apenas)


lida com as tensões decorrentes das mudanças espaciais, mas com suas
consequências: como a tensão da espacialidade é experimentada,
praticada, comunicada, negociada etc. a partir de uma pan-(de-)
territorialidade. (TAWIL-SOURI, 2014, p.177, tradução nossa16).

15
One of the things that I have learnt over the last fourteen years making films as a Palestinian is how organically
linked are the subjective and the objective, metaphor and militancy, the aesthetic and the political, indeed the
struggle for Palestine and the strategies deployed for making films on and in it.
16
Palestinian cinema is not a cinema that necessarily (or only) deals with tensions arising of spatial shifts, but
with their consequences: with how the tension of spatiality is experienced, practiced, communicated, negotiated,
etc. out of a complicated pan-(de-)territoriality.

36
Assim, o cinema palestino apresenta múltiplas possibilidades de narrar as camadas que
compõem sua experiência temporal própria, negociando através das imagens as implicações e
consequências da ocupação israelense:

[...] fazer um filme sobre ou para a Palestina não é uma tarefa fácil. Estamos
diante de muitos elementos internos e externos de nossas múltiplas histórias:
uma história definida diferentemente por diferentes pessoas – israelenses ou
palestinos, judeus ou árabes, árabe-muçulmano e judaico-cristianismo
ocidental. Estamos diante de máquinas de guerra comerciais, tecnológicas,
ideológicas e históricas. Nós, malditos cidadãos deste mundo
subdesenvolvido, deste Terceiro Mundo de misérias, o que podemos fazer?
Devemos continuar produzindo, criando e lutando pela vida. Devemos fazer
parte de um dos movimentos intelectuais mais dinâmicos e progressistas, seja
cultural, estético ou filosófico. Devemos nos apropriar do mundo, tomar conta
dele. O pensamento não reconhece fronteiras, é livre como o vento, pronto a
abandonar qualquer língua ou região se for derrotado pela repressão
(KHLEIFI, 2006, p.49, tradução nossa17).

Nos filmes de ficção, a Palestina imaginada parece tentar desviar-se da armadilha


territorial para poder narrá-la em primeiro lugar, alguns deles buscam ainda criar novas rotas e
formas de sobreviver às fragmentações inseridas em seu espaço e tempo. Nesse sentido, a
ficção científica dá um passo adiante e, no contexto histórico do cinema, o gênero substitui “o
foco na psicologia individual por uma visão mais ampla das operações culturais e participou
da "moratória do passado" ao insistir no futuro como seu princípio estruturante”
(BUKATMAN, 1993, p. 7, tradução nossa). A ficção científica opera entre passado, presente
e futuro, expressando as tensões do contemporâneo (LE BRETON, 2003). Considerando os
estudos sobre o gênero, a partir de Le Breton (2003) e Bukatman (1993), podemos entender a
ficção científica como um campo sublime para explorar as questões do tempo. De acordo com
Le Breton:

Não apenas a ficção científica não se opõe mais ao real, mas parece às vezes
estar colocando em evidência fundamentos sociais da existência
contemporânea. A apropriação dos imaginários que organizam as orientações
coletivas futuras encontra na ficção científica um caminho mais fácil de
desenvolvimento e de projeção em uma trama social. Ela experimenta os
cenários do futuro próximo e já esclarece os processos em jogo no presente
(LE BRETON, 2003, p. 161).

17
making a film about or for Palestine is not an easy task. One is faced with many internal and external elements
of our multiple histories: a history defined differently by different people – Israelis or Palestinians, Jews or Arabs,
Arab–Muslim and Western Judeo-Christianity. One is faced with commercial, technological, ideological, and
historical war machines. We, cursed citizens of this under-developed world, this Third World of miseries, what
can we do? We must keep on producing, creating, and fighting for life. We must be part of one of the most dynamic
and progressive intellectual movements, whether cultural, aesthetic or philosophical. We must appropriate the
world, take charge of it. Thought does not recognize borders, it is as free as the wind, ready to abandon any
language or region if it is defeated by repression

37
A ficção científica (FC), portanto, permite uma abertura ao diálogo entre mito e
realidade, favorecendo a experimentação do contemporâneo (LE BRETON, 2003). É partindo
dessas interseções que a cineasta Larissa Sansour encontra na FC um campo mais adequado
para narrar a Palestina por oferecer “uma sensação nostálgica que está sempre presente quando
se trata da Palestina, visto que quando falamos sobre a Palestina, nunca é no presente, está ou
lembrando um passado ou imaginando um futuro melhor.” (SANSOUR, 2013, tradução nossa).
Recorrendo às reflexões de Giorgio Agamben (2009), contemporâneo é aquele que possui uma
“singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma
distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que este adere através de uma
dissociação e um anacronismo.” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Nesse sentido, podemos
identificar Sansour como uma contemporânea de seu tempo: ciente de que não pode fugir dele,
torna-se capaz de percebê-lo, e assim, o transmite em seu trabalho.
Larissa Sansour iniciou sua carreira no cinema produzindo documentários na tentativa
de levar a experiência palestina para o mundo. Em documentários de curta-metragem como
“Tank” (2003, 6 min) e “Happy Days” (2005, 3 min), a diretora expôs atritos entre ativistas
pacíficos e tanques de guerra do exército israelense e a vida cotidiana de palestinos sob
ocupação. Através desses filmes, Sansour deparou-se com as consequências das conexões
citadas por Al-Qattan, descobrindo um público que projetava em seu trabalho uma visão
unilateral e, portanto, inválida da situação palestina. Partindo para a ficção científica, Sansour
descreve nos curtas “A Space Exodus”, “Nation Estate” e “In the Future They Ate from the
Finest Porcelain”, futuros possíveis para a Palestina:

Submeter a política arenosa do Oriente Médio à ficção científica de alta


produção dessa maneira não apenas sublinha o absurdo da situação, mas traz
um cenário futuro distópico. Enquanto o reino ficcional como tal permite que
os obstáculos da política atual sejam alterados, negligenciados e negociados
à vontade, a ficção científica parece incorporar ideais, expectativas e medos
do futuro que são bastante adequados para descrever a situação palestina. De
alguma forma, conseguindo fundir nostalgia e esperanças de um futuro
melhor e mais eficiente, a ficção científica parece se prestar a capturar as
décadas de anseio palestino por uma utopia que quase parece datada agora
(SANSOUR, 2013, tradução nossa18).

18
Submitting gritty Middle Eastern politics to high production sci-fi in this manner not only underlines the
absurdity of the situation but brings about a dystopian future scenario. While the fictional realm as such allows
for the obstacles of present-day politics to be altered, neglected, and negotiated at will, sci-fi seems to embody
ideals, expectations, and fears of the future that are quite adequate for describing the Palestinian predicament.
Somehow managing to fuse nostalgia and hopes for a better and more efficient future, sci-fi seems to lend itself
to capturing the decades of Palestinian yearning for a utopia that almost seems dated by now.

38
Perceber a elaboração dessa utopia do retorno a partir do futuro distópico é o que nos
importa nesse primeiro momento, levando em consideração a potência das narrativas sobre o
tempo como mecanismo de resistência, nos termos de Jamal (2016). A partir dos cenários
esboçados pela diretora palestina, pretendemos nos aprofundar e desenvolver as questões
abordadas até então sobre o tempo perturbado. O que significa pensar futuro(s) para a
Palestina? O que esses futuros projetados nas imagens de Larissa Sansour nos dizem sobre a
experiência temporal palestina?

39
| A Palestina por vir

O universo futurista criado por Larissa Sansour é inaugurado com o curta “A Space
Exodus”. Com o próprio corpo em cena, a cineasta interpreta a primeira astronauta palestina a
pisar na lua. As cenas iniciais acompanham o processo de aterrissagem da nave enquanto uma
alternância de planos em close up no rosto da protagonista e na superfície lunar cria uma
expectativa pelo pouso e as possibilidades que ele apresenta. Como o título já nos antecipa, a
viagem de uma tripulante palestina à lua, resgata o sentimento do êxodo palestino durante a
Nakba e o realoca em um cenário distópico, onde as opções para o refúgio palestino se esgotam
na Terra. Acompanhamos momentos de tensão antes do pouso ser efetivado, quando uma leve
turbulência leva a astronauta a contatar a base:

– Jerusalém, nós temos um problema (A Space Exodus, 2009, 00:29 min,


tradução nossa19).

Mas, antes mesmo de obter uma resposta, ela contorna a situação e afirma, ainda sem
retorno, que o problema foi resolvido. Após o pouso ser efetuado, a câmera revela em plano
detalhe, fragmentos essenciais do traje da astronauta enquanto ela prepara-se para pisar na lua.
A bandeira e um bordado tradicional palestino estampam o uniforme de Sansour, cujo sapato
é um outro elemento que remete à cultura árabe. Do mesmo modo, o sapato que compõe o traje
espacial remete à estética excessivamente orientalizada. Todos esses recursos convergem para
a construção de uma narrativa que acena para a identidade nacional palestina ao mesmo tempo
que usa de seus elementos de forma irônica. Após o pouso, ela anuncia:

– O Pássaro do Sol pousou (A Space Exodus, 2009, 01:39 min, tradução


nossa20).

A disposição de elementos como a bandeira palestina fincada na lua e costurada no


traje espacial tem a mesma função imagética de replicar a identidade nacional e carregam, nos
primeiros minutos do filme, uma utopia. Novamente, uma voz feminina em voice over declara:

– Um pequeno passo para uma palestina, um salto enorme para a humanidade


(A Space Exodus, 2009, 02:00 min, tradução nossa21).

19
Jerusalem, we have a problem.
20
The Sunbird has landed.
21
That’s one small step for a Palestinian, one giant leap for mankind.

40
As frases mimetizam célebres expressões usadas por astronautas estadunidenses
durante as missões para a lua – ou suas adaptações para filmes, como no caso de “Apollo 13”
(Ron Howard, 1995, 140 min), – substituindo Houston, centro de controle da missão Apollo
13, por Jerusalém, e a famosa águia americana pelo Palestine sunbird, ave símbolo da
Palestina.
No cenário da corrida espacial entre os Estados Unidos e os cosmonautas da União
Soviética no século XX, a lua passou a ser constituída como um território de relações de poder.
Embora a famosa frase de Neil Armstrong “um pequeno passo para um homem, um salto
gigante para a humanidade” aponte para uma conquista do corpo coletivo, as imagens da
bandeira dos Estados Unidos sintetizam essa conquista como um feito do capitalismo,
reforçando acima de tudo o poder de uma única Nação. A escolha da ficção científica não é por
acaso, e acessar esse gênero pela temática espacial também não. No imaginário coletivo de
ficção científica, odisseias espaciais ocupam um lugar especial. Narrar o futuro através da
ficção científica permitiu imaginar o uso das tecnologias para desvendar o espaço,
considerando que o gênero se tornou o caminho mais utilizado no cinema do século XX para
explorar e descrever os mitos da Era Espacial (BUKTMAN, 1993).
Interessa pensar que, enquanto a bandeira estadunidense era fincada na lua em 1969, o
apagamento da identidade nacional palestina estava em amplo funcionamento: Golda Meir,
então Primeira-Ministra de Israel, reafirmava a não-existência do povo palestino ao mesmo
passo que as forças de seu governo destruíram mais de sete mil casas de palestinos (SAID,
2012). Os filmes usados por Sansour como referência ocupam um lugar muito específico em
relação ao imaginário nacionalista em suas épocas. Segundo Ella Shohat e Robert Stam, podem
ser entendidos como filmes que comunicam:

[...] o “tempo do calendário” de Anderson, uma noção do tempo e de sua


passagem. Assim como as ficções literárias nacionalistas inscrevem em uma
infinidade de eventos a noção de um destino linear e compreensível, os filmes
organizam eventos e ações em uma narrativa temporal que se move em
direção à realização e, assim, moldam o pensamento sobre o tempo histórico
e a história nacional. Os modelos narrativos no cinema não são simplesmente
microcosmos reflexivos de processos históricos; então, eles também são
grades experienciais ou modelos através dos quais a história pode ser escrita
e a identidade nacional figurada. (SHOHAT; STAM, 2014, p.102, tradução
nossa22).

22
Anderson's "calendrical time," a sense of time and its passage. Just as nationalist literary fictions inscribe on
to a multitude of events the notion of a linear, comprehensible destiny, so films arrange events and actions in a
temporal narrative that moves toward fulfillment, and thus shape thinking about historical time and national

41
O futuro apresentado por Sansour, sua viagem pelo espaço e a ambientação da questão
palestina em um cenário distópico são muito influenciados por “2001: Uma Odisseia no
Espaço” (Stanley Kubrick, 1968, 142 min). Lançado um ano antes do pouso da Apollo 11 na
lua, a obra de Kubrick é um marco no cinema de ficção científica que ironiza a então atual
relação com o futuro e o avanço da humanidade. Robert Kolker (2006) explica que o filme
desmantela o mito do tecnocrata e sua pretensão de superar os limites do conhecimento,
especialmente no contexto da corrida espacial:
Ao contrário de qualquer filme já lançado por Hollywood, 2001 oferece uma
representação abrangente, ainda que provocativamente redutiva e, em última
análise, ambígua da história humana que é profundamente Spengleriana em
sua crítica a valores iluministas, como progresso, humanismo e até civilização
(KOLKER, 2006, p. 15-16, tradução nossa23).

De forma satírica, esses valores também são questionados na própria premissa do filme
de Sansour, que encontra no êxodo espacial, uma alternativa para superar as consequências da
“civilização” – configurada no projeto sionista – partindo de uma utopia para a distopia. Mas
a influência de “2001: Uma Odisseia no Espaço” não se atém às imagens e seus significados
no contexto palestino. A sonoridade do filme é adaptada com elementos da música árabe
através do bassoon e instrumentos de corda, e intercala com o silêncio do espaço sideral
(TAWIL-SOURI, 2014). Sansour compõe o curta com elementos sonoros marcantes,
adaptados de forma ironicamente orientalista:
Como contexto musical de sua obra, Sansour escolheu as notas iniciais do
poema sinfônico de Richard Strauss, Thus Spoke Zarathustra, usado
anteriormente por Stanley Kubrick para o tema de abertura de seu filme 2001:
Uma Odisseia no Espaço (EUA/Reino Unido, 1968). Nessas notas iniciais
alternam-se os famosos intervalos de quarta e quinta, resolvendo-se então a
indeterminação entre modo maior e menor nos compassos que se alternam
entre si em oscilação, após uma breve ênfase dos tímpanos na repetição da
quarta e intervalos de quinta, quando um acorde de terça menor se torna
maior, definindo agora a tonalidade sem qualquer ambiguidade (GIULIANO,
2011, p. 306, tradução nossa).24

history. Narrative models in film are not simply reflective microcosms of historical processes, then, they are also
experiential grids or templates through which history can be written and national identity figured
23
Unlike any film ever released by Hollywood, 2001 offers a sweeping if provocatively reductive and ultimately
ambiguous representation of human history that is deeply Spenglerian in its faulting of Enlightenment values,
such as progress, humanism, and even civilization.
24
The soundtrack of the video is clearly a parody. As the musical context of her work, Sansour has chosen the
initial notes of Richard Strauss’s tone poem Thus Spoke Zarathustra, previously used by Stanley Kubrick for the
opening theme of his film 2001: A Space Odyssey (US/UK, 1968). In these initial notes the famous intervals of the
fourth and fifth alternate with each other, then resolving the indeterminacy between major and minor mode in the
bars that alternate with each other in oscillation, after a brief emphasis of the timpani in the repetition of the
fourth and fifth’s intervals, when a minor third chord becomes major, now defining the tonality without any
ambiguity.

42
Da sonoridade, ao uso de frases marcantes da Era Espacial até a composição de
elementos visuais no uniforme da astronauta, “A Space Exodus” ironiza a identidade nacional
palestina. Helga Tawil-Souri (2014) considera a falta de retorno da base espacial um
movimento proposital. Ao analisar o curta, Tawil-Souri afirma que a ausência de retorno sobre
o pouso do sunbird comunica “a ironia de aterrissar naquele que claramente não é o planeta
(semântico) de ninguém” (TAWIL-SOURI, 2014, p. 183, tradução nossa). Apesar da falta de
retorno, a astronauta segue sua missão e o movimento de câmera acompanha sua caminhada
da nave até o momento em que ela finca a bandeira palestina no solo lunar.

Figura 3: Imagem capturada de “A Space Exodus” (02:17 min)

O tom satírico do filme se dissipa ao mesmo passo em que, em plano aberto, vemos a
astronauta flutuando no espaço, sem conseguir retornar para casa. Sem retorno da base e à
deriva pelo cosmos, o destino da astronauta interrompe as possibilidades apresentadas no início
do filme. Cercados de mais perguntas do que respostas sobre a odisseia espacial da astronauta
palestina, seguimos para outro futuro imaginado por Sansour, no segundo filme de sua trilogia,
“Nation Estate”.
Da mesma forma em que as discussões sobre nacionalidade, temporalidade e
espacialidade preenchem o cenário cósmico de “A Space Exodus”, o curta seguinte configura
um outro futuro para a Palestina, apresentando uma possibilidade mais concreta para a situação
no território. “Nation Estate” reitera em um futuro distópico que a Palestina não é uma questão
somente do território, mas da narrativa.

43
Elaborado a partir das ilegais e cada vez mais constantes anexações israelenses na
Cisjordânia, o curta de nove minutos sugere que o único caminho para um Estado palestino
seria a construção de um arranha-céu futurista às margens de Jerusalém, que comportasse toda
sua população, subtraindo de vez os palestinos espalhados pelo “território israelense”. Nesse
futuro, a protagonista, novamente interpretada pela diretora, encontra um espaço de vigilância
e reclusão, que assim como o presente, é marcado pela ausência de tudo que um imaginário
coletivo palestino entende como familiar.
A realidade do Nation Estate consiste em uma geografia dividida por um muro que
separa os dois povos em diferentes coordenadas: de um lado, o “território israelense” disposto
horizontalmente, e de outro, a Palestina vertical, estranha e inorgânica, que impõe na paisagem
uma violenta cisão. O futuro distópico de Sansour marca em seu próprio nome o revés de um
Estado palestino, sendo ele um “Estate”, um empreendimento imobiliário, repleto de regalias
modernas e cenários higienizados, muito distante da Palestina para qual seu povo busca
retornar. Em sua estrutura, o arranha-céu comporta todas as cidades da Palestina pré-1948 e
ambientes públicos como universidades e escolas, cada um em um andar, e pelo uso do
elevador, os palestinos podem se locomover verticalmente entre eles.
O espectador é apresentado à geografia do Nation Estate através do percurso feito pela
protagonista, que retorna de viagem à Palestina. Usando uma vestimenta que mistura a estética
tradicional com uma configuração futurista, ela caminha pelo primeiro andar do prédio em
direção ao elevador. No frame abaixo, a luz branca que ilumina o lobby é contraposta à luz
natural, em tons quentes, do sol que se põe no horizonte. Através da enorme janela, podemos
localizar pela primeira vez o cerco militar que envolve o arranha-céu.

44
Figura 4: Imagem capturada de “Nation Estate” (01:36 min)

A sonoridade é acionada por todo o curta como uma estratégia de regulamentação de


emoções para o espectador. Como parte dos elementos narrativos, ela aumenta a tensão através
do som da respiração da protagonista da mesma maneira que o faz em trechos em que a música
de suspense toma conta da cena. Em determinados momentos, o enquadramento em plano
aberto permite ver a enumeração das cidades milenares, dispostas em diferentes andares pelo
arranha-céu. Neste sistema vertical, os palestinos podem acessar outras cidades sem passar pela
violência direta dos checkpoints e suas intermináveis filas. Por conta da reclusão máxima
imposta aos palestinos no Nation Estate, a violência continua presente, mas se dá no panorama
macro: não há necessidade de tais estratégias pois as redes viárias palestinas e israelenses já
estão definitivamente desencontradas.
Além das cidades, diversos andares aparecem como objetos simbólicos de atenção às
especificidades deste território vertical, como “Vertical Urban Planning” e “Energy and
Sanitation”, mas também retoma a memória coletiva palestina nos andares “Heritage Museum”
e “National Archives”. Esse recurso narrativo expressa a relação entre o território e a memória,
que nesses andares, como presença física, reitera a disputa por essa geografia violentada. Em
meio aos apagamentos constantes, os palestinos se prendem a marcas de sua nacionalidade. A
distribuição desses componentes propositalmente exagerada, aciona a imobilidade que eles
podem trazer:

Fotografias, vestidos, objetos cortados de sua localidade original, os rituais


da fala e dos costumes: muito reproduzidos, ampliados, tematizados,
bordados e repassados, são fios da rede de afiliações que os palestinos usamos
para nos ligar à nossa identidade e entre si. Às vezes, esses objetos, pesados
com memória - álbuns de memória, contas de rosário, xales, caixinhas - me
parecem um estorvo. Nós os carregamos, penduramos em cada novo conjunto
de paredes em que nos abrigamos, refletimos amorosamente sobre eles. Então
não percebemos a amargura, mas continua e cresce mesmo assim (SAID,
1999, p. 14, tradução nossa25).

Em “A Space Exodus”, e em maior escala, “Nation Estate”, Larissa Sansour faz a


escolha consciente de sobrecarregar a imagem com objetos que marcam a identidade nacional,
a ponto de parecer uma sátira ou crítica, banalizando seu lugar na causa pela

25
Photographs, dresses, objects severed from their original locale, the rituals of speech and custom: Much
reproduced, enlarged, thematized, embroidered, and passed around, they are strands in the web of affiliations we
Palestinians use to tie ourselves to our identity and to each other. Sometimes these objects, heavy with memory-
albums, rosary beads, shawls, little boxes-seem to me like encumbrances. We carry them about, hang them up on
every new set of walls we shelter in, reflect lovingly on them. Then we do not notice the bitterness, but it continues
and grows nonetheless.

45
libertação. Escancarar a dinâmica de poder que se dá na narrativa é constitutivo do cinema, e é
esse o movimento do curta. Narrado a partir do tempo perturbado da Palestina, “Nation Estate”
apresenta os tensionamentos da sociedade palestina marcada pelo projeto colonialista,
aproximando a distopia de um arranha-céu da vida cotidiana nos Territórios Ocupados. A
modernização do estilo de vida palestino no curta se dá às custas da reclusão, a mesma que
dificulta a movimentação dos moradores na Cisjordânia. A inserção de recursos narrativos
como este tensionamento das paisagens orgânica e inorgânica, sustenta as mediações entre
representação e realidade. A música vai desaparecendo à medida em que o som do salto da
protagonista ecoa pela entrada do Nation Estate, e nesse momento de transição, o silêncio
permite a produção de múltiplos sentidos ao espectador, e existe em diferentes formas, pois ele
é o que há entre as palavras, a música e os seres, e não somente os efeitos produzidos após a
alteração no plano sonoro entram em evidência, como aqueles produzidos entre a música e o
ruído (ORLANDI, 2007). Entre silêncios e memórias gritantes, o testemunho de Lina Meruane,
escritora chilena de origem palestina:

No cemitério abandonado, um silêncio espesso infiltrando-se pelos galhos das


velhas oliveiras que ainda restavam de pé. Silêncio entre os escombros de
bairros destruídos na beira das estradas para evitar o retorno de seus
moradores. (...) Chaves que ninguém guardou, que não tilintam mais entre os
dedos. Ruínas mudas da história palestina: objetos caídos em desuso que
urdem nosso esquecimento e a necessidade de lembrar (MERUANE, 2019,
p. 113).

Para além dessa marca inicial de desconformidade com a ideia de Palestina, o foco na
bandeira nacional em posição vertical também aparece com estratégia visual semelhante.
Remetendo à nova disposição do território, sua imagem ganha destaque ao passo em que a
sonoridade ressalta somente os ruídos ao redor da protagonista. Novamente, são os elementos
de identidade nacional que foram o “fio de afiliações” mencionado por Edward Said, e que no
filme compõe de forma irônica ou satírica a ideia de que eles são suficientes para a formação
da Nação palestina.

46
Figura 5: Imagem capturada de “Nation Estate” (02:11 min)

Outros recursos narrativos estão presentes nos planos detalhe de elementos que
marcam a identidade política palestina: a chave da casa é convertida em um cartão eletrônico,
a oliveira é cultivada no chão da sala, e o keffiyeh é usado como estampa decorativa de seus
pratos que contém a comida árabe. As mediações entre representação e realidade se dão de
várias formas no curta, nos mínimos detalhes de elementos como o pôster exibido no frame
abaixo.

Figura 6: Imagem capturada de “Nation Estate” (02:40 min)

47
A protagonista olha em direção à releitura de um famoso pôster sionista de 1936. O
pôster original de Krausz encorajava não só visitas, mas também a imigração de judeus à
Palestina, como parte do movimento sionista crescente na época. A arte exibia a paisagem de
Jerusalém ao fundo, emoldurada por uma oliveira.

Figura 7: Pôster “Visit Palestine”, Franz Krausz, 1936.


Fonte: Palestine Poster Project

O contexto da criação do pôster remonta às projeções futuras do projeto de Herzl para


a Palestina, quando o “movimento sionista passou a produzir suas próprias imagens daquele
território, projetando um futuro promissor em modernização, desenvolvimento e sonhos
coletivistas de um povo que criaria um vínculo com a terra pelo labor.” (DE CAMPOS, 2019,
p. 28). Os esforços da Organização Mundial Sionista e da Agência Judaica em estimular a
colonização da Palestina foram ilustrados em diversos pôsteres de Krausz ao longo dos anos,
sempre carregados de frases motivadoras, como “O país do nosso futuro” na figura 8, e “Invista
na Palestina – construa o Estado judeu”, na figura 9. Em cada um deles, a promessa de uma
Nação judaica reiterava o anseio pela Velha Nova Terra, a Israel do futuro.

48
Figuras 8 e 9: Pôster “Eretz Yisrael”, 1934 e “Invest in Palestine”, 1935.
Fonte: Palestine Poster Project

Diferentemente do pôster original de Krausz, a versão do Nation Estate apresenta uma


nova paisagem, substituindo Jerusalém pelo conglomerado de prédios que compõem o arranha-
céu, cercado dessa vez não pela muralha histórica, mas pelo muro que assegura e reitera a
separação da Palestina de Israel. Os dizeres “Nation Estate - Living the high life” orientam uma
percepção positiva de seus habitantes sobre o estilo de vida luxuoso e moderno oferecido pelo
empreendimento imobiliários. O pôster torna-se quase uma súplica, uma tentativa de convencer
os palestinos que o arranjo vertical seria o mais proveitoso para todos.
Continuando seu percurso, a protagonista pega o elevador com destino a sua cidade,
Belém, onde a arquitetura original é rearranjada nas dimensões da arquitetura moderna do
prédio como uma decoração de um pavilhão em uma exposição colonial do século XIX.
Chegando em sua casa, ela utiliza um cartão eletrônico com a bandeira palestina para destrancar
a porta. A partir de então, ela realiza tarefas cotidianas como preparar refeição e regar o pé de
oliveira, único item orgânico do cenário, cujas raízes insistem em crescer num solo improvável.
A personagem, por fim, vai até a janela de seu apartamento observar a vista do território
horizontal abaixo de seus pés. Pela primeira vez no filme, ela passa a mão em sua barriga e
revela uma gravidez, gestação de um futuro e a continuidade do tempo. Em um movimento de
zoom out, a câmera afasta-se do apartamento da protagonista para enquadrar em completude o
Nation Estate reafirmando, portanto, uma limitação da potencialidade do futuro palestino.

49
Figura 10: Imagem capturada de “Nation Estate” (07:31 min)

Seja na desterritorialização literal em “A Space Exodus” ou no apogeu das anexações


de territórios palestinos em “Nation Estate”, a diretora coloca o próprio corpo em cena,
amplificando através de si a experiência de palestinos como um todo. Os filmes de Sansour
permitem-nos pensar nas ausências do passado que são constantemente atualizadas no presente
palestino – o passado é constantemente acionado pelas diferenças que a realidade do presente
determina, além disso, o objetivo do “futuro” palestino pode ser visto como uma vontade de
recuperar o que foi perdido no passado, pois é a metafísica do retorno constantemente adiado
que está sempre presente nas narrativas palestinas.
Um tempo linear que leva os palestinos de uma ruptura na Nakba a uma imposição
modernizada a partir de uma verticalização de seu território não contempla o modo como estes
atores sociais vivem seu tempo. Na realidade, a ocupação israelense da Palestina não prevê um
futuro em que os colonizados possam existir no mesmo território pois ela atua com o objetivo
de dominação total em detrimento das vidas palestinas onde essas de fato deixem de existir.
Essa imposição do tempo linear é constantemente marcada nos futuros narrados por Sansour,
e suas consequências se desdobram e interpelam os fenômenos sociais independentemente dos
palestinos e sua experiência temporal. Na lua, a astronauta perde contato com a terra e é largada
à deriva no tempo-espaço, enquanto em “Nation Estate”, a protagonista perambula por um
território limitado e desfigurado, ressaltando algo de impossível nesses futuros.
No terceiro curta, “In the Future”, a personagem principal, autointitulada Terrorista
Narrativa, busca retomar o controle de seu tempo através de uma intervenção na percepção

50
futura da história política de um território. O curta explora a estratégia de um grupo de
resistência que deposita no subsolo louças de porcelana com o padrão da keffiyeh, para que
futuros arqueólogos ratifiquem a existência de uma civilização passada que de fato nunca
existiu. O objetivo do grupo liderado pela Terrorista Narrativa é causar um desarranjo no curso
da história, criar uma contradição temporal como a do título: entrar em uma disputada
arqueológica, para provar, no futuro, que tal civilização comia na melhor porcelana. Inserido
na paisagem de um território nebuloso e apocalíptico, “In the Future” é o único filme da trilogia
que possui diálogo, uma interação quase terapêutica entre a protagonista e uma segunda voz
feminina que a interroga, diálogo esse que começa e termina com o mesmo relato da Terrorista
Narrativa:

– Às vezes sonho com porcelana caindo do céu, como chuva de cerâmica. No


começo, alguns pedaços caem lentamente como folhas de outono. Estou nele,
desfrutando silenciosamente. Mas ele aumenta o volume e é uma monção
pobre... como uma praga bíblica. (In the Future..., 2016, 02:20 min, tradução
nossa26).

Figura 11: Imagem capturada de “In the Future” (10:13 min)

O sonho descrito pela protagonista se intercala com as outras cenas no decorrer do filme
(figura 11), reforçando a incerteza do espectador sobre quais imagens são memória, imaginação
ou realidade. No curso do filme, a Terrorista Narrativa discorre sobre as ações de seu grupo,
transitando entre motivações pessoais e coletivas que lidam com memória, trauma e resistência.

26
Sometimes I dream of porcelain falling from the sky, like ceramic rain. At first it’s only a few pieces falling
sloowly like autumn leafs. Im in it... Silently enjoying it. But then the volume increases and it’s a porcelain
monsoon… like a biblical plague.

51
O que ela faz é criar possibilidades de futuro a partir de uma elaboração fictícia de passado. Se
para o projeto sionista o destino dos palestinos é a extinção então, tal como o sangue palestino,
que no poema de Darwish, plantará sua oliveira após o último céu, a porcelana plantada no solo
erguerá uma civilização inteira no futuro.
Em uma interposição de CGI e fotografias históricas, o filme explora um anacronismo
proposital, segundo a diretora: “[...] é difícil falar sobre o trauma palestino sem abordar vários
tempos. A psique palestina parece estar plantada nos eventos catastróficos de 1948 e amarrada
à constante projeção do futuro, ainda assim, o presente é um limbo constante”. (SANSOUR,
2018, tradução nossa). Anacronismos esses que encontramos nas imagens de meninas
palestinas trajando vestimentas tradicionais deslocadas em uma temporalidade que não parece
as pertencer. São as memórias da heroína escapando de seu passado, convergindo no presente
e no futuro imaginado por ela. Elas compõem, no centro da narrativa, seu trauma fundante: o
assassinato da irmã mais nova da Terrorista Narrativa. Incluir imagens de arquivo ao lado de
CGI futurista também destaca um aspecto importante da experiência palestina. A Palestina está
temporariamente suspensa entre passado e futuro, entre história e ambição, com o presente
reduzido a um estado de limbo, um estágio de transição que liga os outros dois.
Apesar do filme não fazer nenhuma clara menção à questão palestina e a disputa
narrativa imposta pelo projeto sionista, as imagens usadas alteram entre a era otomana, o
mandato britânico e a colonização israelense. Além disso, figuras bíblicas, beduínos e a
paisagem de campos de refugiados ao fundo, desarranjam a noção do tempo que estamos
assistindo. As imagens parecem familiares e estranhas ao mesmo tempo.

Figura 12: Imagem capturada de “In the Future” (23:03 min)

52
Como a fala da diretora e o título do filme enfatizam, passado e futuro estão
entrelaçados, e cabe à protagonista embaralhar ainda mais suas camadas para substituir um
mito pelo outro, alterando a datação desses objetos enterrados através do carbono. Durante o
diálogo, a Terrorista deixa claro que a tática usada por seu grupo para criar uma civilização não
é inventada por eles. O que eles fazem é apropriar-se de seu poder constitutivo de verdades
para plantar as evidências de um passado que nunca existiu:

– O que você está imaginando não é apenas uma utopia polêmica?

– Este não é apenas um exercício acadêmico. Não estou defendendo uma tese
aqui. Estamos depositando fatos no solo para futuros arqueólogos escavarem.
Esses fatos confirmarão a existência desse povo que estamos postulando. (In
the Future, 2016, 06:55s, tradução nossa27).

A chuva de porcelana atinge o solo como a tempestade de uma praga bíblica. Com a
datação falsificada, os fragmentos das futuras evidências arqueológicas repousam na terra e o
mito de um povo que nunca existiu é plantado para a posterioridade. Na última cena, uma mesa
composta por soldados – otomanos ou britânicos –, um homem com terno formal, duas jovens,
uma freira e duas crianças faz uma outra alusão bíblica, dessa vez a iconografia da Santa Ceia.
As questões provocadas por essas imagens são as mesmas durante todo o filme: essas imagens
representam a civilização perdida? São memórias que não existem e estão sendo encenadas?
Ou são fragmentos da civilização cuja existência será apagada pelo mito criado com as
porcelanas?
Como produção narrativa, os filmes de Larissa Sansour são contemplados por uma
potência política muito forte. Sob influência da subjetividade da diretora, e da ligação entre
estético e político inerente ao cinema palestino, os curtas são atravessados pelos impactos da
questão temporal na Palestina. Quais são as possibilidades para a Palestina à medida em que a
“terra se fecha ao redor”? Retomando o lugar da forma na narração da experiência temporal
palestina, podemos olhar para os filmes analisados imagens de resistência às imposições
temporais do projeto sionista. Seus filmes não são apenas projeções futurísticas, mas uma
provocação ou um convite a olhar para o tempo como um mecanismo de resistência na
esperança de rearranjar e desvendar suas camadas sobrepostas. Entre utopias futuras e distopias

27
-Isn’t what you’re envisioning just a polemic utopia?
-This isn’t just an academic exercise. I am not defending a thesis here. We are depositing facts in the ground for
future archaeologists to excavate. These facts will confirm the existence of this people we are positing.

53
reais, faremos agora um retorno ao passado cronológico para desenterrar do solo da história as
evidências do tempo perturbado palestino.

54
II
Contestações de passados:
eles não existiram

Ah, você! Ah, você íntimo e distante!


Você não se lembra da coalescência
De nossos espíritos nas chamas?
Do meu universo com o seu?
Dos dois poetas?
Apesar da nossa grande distância,
a Existência nos une.

Fadwa Tuqan - Existance

A concepção linear do tempo que rege a ocupação colonial na Palestina delega ao


passado a tarefa de sustentar a legitimidade de seu presente e garantir seu futuro. Nessa lógica,
é preciso que haja uma historiografia coesa que elimine questionamentos e alternativas ao que
é contado e preservado como verdade absoluta. O futuro utópico de Theodor Herzl – não aquele
imaginado em “Altneuland”, mas o fundamentado no livro “Der Judenstaat” – não poderia ter
sido consolidado sem a construção do mito de Eretz Yisrael, a “terra prometida” do povo judeu,
o único, dentre tantos que a povoaram, merecedor de sua posse. Sob a égide de profecias
bíblicas e das concepções da geopolítica contemporânea, os palestinos foram (e estão sendo)
removidos da história enquanto um mito do pertencimento fabrica um Estado cuja
autodeterminação é exclusiva a um só povo.28 Nas palavras de Lina Meruane, “fundar um
espaço exigia fazer desaparecer o passado (o próprio e o alheio).” (MERUANE, 2019, p. 135).
Para que europeus pudessem mais uma vez clamar seu direito sobre um território já
povoado, a justificativa precisava dar voltas na história, se apropriar da narrativa bíblica –
mesmo que os criadores do movimento fossem seculares, como Herzl – e invalidar tudo o que
acontece fora dela. Desde que a Palestina foi escolhida pelo sionismo como lar do povo judeu
fora da Europa por ser a terra bíblica, sua narrativa passou a ser construída a partir desse direito
do povo judeu, os “‘israelitas bíblicos’ retornando (a partir do final do século XIX) para
‘redimir a antiga pátria’ e ‘restaurar o estado judaico’ após dois milênios de ausência e ‘exílio’”

28
Dentre as Leis Básicas de Israel, componentes do direito institucional israelense, estipula-se que “direito à
autodeterminação nacional no Estado de Israel é exclusivo do povo judeu” (KNESSET, SEM ANO).

55
(MASALHA, 2014, p. 52). Essa contestação do passado, que consiste no apagamento do povo
palestino e na construção de um vínculo entre o sionismo e essa “terra sem povo”, é a fonte do
tempo perturbado que Said se referia. Os palestinos não são apenas jogados para fora do
território, mas também do tempo. A história milenar dos habitantes de várias religiões que
compunham o corpo social daquele território é incompatível com a história costurada pelo
projeto sionista, portanto, ignorada.
No primeiro capítulo, entramos na discussão sobre o tempo na Palestina a partir das
projeções de futuro feitas através da ficção científica na tentativa de retomar o controle de sua
narrativa. Os esforços agora convergem para o resgate do passado, das contestações lançadas
contra ele e nos aprofundamentos da experiência temporal perturbada da Palestina. A ideia aqui
é traçar o lugar dessas disputas na experiência temporal palestina e suas formas de
representação no cinema com o qual estamos trabalhando. Na introdução de “Dreams of a
Nation”, Hamid Dabashi (2006) nos lembra que a trajetória do cinema palestino antecede a
desapropriação e aos horrores da Nakba. No entanto, é depois de 1948 que a representação
visual da Palestina passou a ser assombrada pela falta, na tentativa de contradizer, através das
imagens, o que a narrativa sionista contestava. Segundo Dabashi (2006, p. 11, tradução nossa),
“o trauma central da Palestina, a Nakba, é o momento decisivo do cinema palestino – e é em
torno dessa lembrança da pátria perdida que os cineastas palestinos articularam sua cosmovisão
estética”. O trauma da Catástrofe e todas as incertezas geradas por ela em torno da identidade,
a Nação, seu lugar na história, assegura ao cinema palestino o lugar para lidar essas questões
sintetizadas por Said:

Quão rica nossa mutabilidade, quão facilmente mudamos (e somos mudados)


de uma coisa para outra, quão instável nosso lugar – e tudo por causa da falta
de fundamento de nossa existência, o terreno perdido de nossa origem, o
vínculo quebrado com nossa terra e nosso passado. Não há palestinos. Quem
são os palestinos? “Os habitantes da Judéia e Samaria.” Não-judeus.
Terroristas. Encrenqueiros. DPs. Refugiados. Nomes em um cartão. Números
em uma lista. Elogiado em discursos el pueblo palestino, il popolo palestino,
le peuple palestinien - mas tratados como interrupções, presenças
intermitentes (SAID, 1999, p. 26, tradução nossa29).

29
How rich our mutability, how easily we change (and are changed) from one thing to another, how unstable our
place-and all because of the missing foundation of our existence, the lost ground of our origin, the broken link
with our land and our past. There are no Palestinians. Who are the Palestinians? 'The inhabitants of Judea and
Samaria.' Non-Jews. Terrorists. Troublemakers. DPs. Refugees. Names on a card. Numbers on a list. Praised in
speeches el pueblo palestino, il popolo palestino, le peuple palestinien -but treated as interruptions, intermittent
presences.

56
O caminho que queremos fazer parte do reconhecimento do(s) evento(s) que forçam
essa instabilidade sobre a experiência palestina para entender como seu tempo perturbado
transborda nas imagens. A existência palestina, questionada de várias formas, apesar das
imagens, também marca presença no cinema nacional. Inspirados nas questões levantadas
pelos filmes de Sansour, buscamos evidenciar o que as projeções futurísticas nos revelam sobre
a construção do mito de Israel e o apagamento da Palestina na narrativa sionista. Quais
passados essas imagens nos mostram? Como essas contestações entram em atrito com a
experiência temporal palestina? De que forma isso é retratado nas imagens? Anteriormente,
falamos sobre o cinema como lugar de resgate da história, porque é em meio a tantas
negociações em torno de sua existência, que a experiência do trauma é transmitida para o
cinema palestino. Como parte do cinema nacional, os filmes de Larissa Sansour nos mostram
que duas coisas são essenciais (e intercambiáveis) na produção sionista e sua emulação pelo
controle do tempo sustentação do mito de Israel: o apagamento dos vestígios palestinos através
da limpeza étnica e o uso da arqueologia como ferramenta epistemológica.

57
| O corte pela raiz

Em “In the Future”, a Terrorista Narrativa e seu grupo de ativistas colocam em


evidência a fundação do mito e seu papel na constituição de um povo. A implantação da
porcelana no solo e a disrupção que se pretende causar no curso da história mimetiza, como ela
mesma conta, as ações desse poder que os governa. O que está em disputa é o caminho da
história – o controle do tempo –, e a Terrorista enfrenta essa questão enquanto ironiza a
legitimidade autodesignada a esse povo-ficção que agora a domina. Um mito pelo outro – um
povo que não pode existir em relação a outro: as regras desse jogo são estabelecidas pelos
governantes, e é através da cooptação de sua estratégia, que a Terrorista Narrativa cava sua
contra narrativa. Durante o diálogo com sua interlocutora, a protagonista revela um ponto
essencial para entender seu plano e o contexto no qual o curta se insere:

– Nossas vidas já são determinadas por uma ficção forçada sobre nós. Nossos
governantes desveem qualquer coisa inconsistente com sua própria verdade
(In the Future..., 2016, 14.56 min, tradução nossa30).

Em algum momento do passado, o povo da protagonista sofreu o mesmo processo de


apagamento que ela agora tenta reproduzir. Entre a invisibilização e a limitação de
possibilidades imposta por esse regime opressor, a Terrorista Narrativa percebe seu povo refém
de uma mitologia excludente, uma ficção imposta como fato, criada para dominar tudo a seu
alcance.
Da mesma maneira, o projeto sionista atribui aos palestinos um status descartável; sua
história e seu passado são roubados, tornando possível seu extermínio total, a depender de sua
interferência na ficção por eles inventada. Os palestinos são retirados de cena, seus nomes são
apagados da história, dos mapas, sua presença é substituída por um novo passado que justifica
o estabelecimento da nova velha terra. A ocupação colonial israelense se alastrou pelo espaço
com o aval sacro que reuniu fragmentos da narrativa bíblica para santificar a destruição causada
por bulldozers e o massacre realizado pelas mãos de líderes eleitos. A vida do povo palestino
passou a estar reduzida à função de algoz de Eretz Yisrael. A ficção criada incumbiu aos
palestinos o papel de inimigos da verdade sagrada, sua própria existência tornou-se uma

30
Our lives are already determined by a fiction forced upon us. Our rulers unsee anything inconsistent with their
own truth.

58
profanação, e qualquer ato de resistência ao avanço iminente do povo escolhido, passou a
reproduzir a dinâmica mítica do gigante Golias contra Davi:

[...] nós mesmos não fornecemos presença suficiente para forçar a desordem
da vida a um padrão coerente de nossa própria criação. Na melhor das
hipóteses, a julgar simplesmente pelo meu caso, podemos nos comparar com
o padrão de outro povo, mas como não é nosso, embora sejamos seu inimigo
designado, surgimos como seus efeitos, suas erratas, suas contra-narrativas.
Sempre que tentamos nos narrar, aparecemos como deslocamentos em seu
discurso (SAID, 1999, p. 140, tradução nossa31).

Essa não é uma problemática restrita a “In the Future”. É esse mesmo vínculo entre
mito e legitimação histórica que impede a astronauta de se fixar no solo (terrestre ou lunar), e
que viabiliza a segregação especial de um território horizontal, extenso e ilimitado em oposição
a outro vertical e restrito. No entanto, antes de retomarmos o encontro com os três filmes de
Sansour, buscamos um suporte teórico e conceitual que, assim esperamos, possa nos auxiliar
na nomeação desse mito na criação do imaginário sobre um povo. Nos debruçamos sobre as
provocações epistemológicas das poéticas de Édouard Glissant (2005; 2021) para então pensar
os usos do mito fundador na construção de territórios como espaços a serem conquistados.
Filósofo, poeta, romancista e antropólogo, Édouard Glissant nasceu em 1928 na
Martinica e faleceu em Paris em 2011. Sua produção foi fortemente influenciada pela violência
vivida em decorrência do passado colonial francês na região caribenha. A Martinica, enquanto
Estado de território arquipelágico, orienta a racionalidade do pensamento de Glissant: o
conjunto de ilhas, em oposição à unidade continental ou de apenas um Estado insular é parte
da influência do ambiente sobre a obra do autor (SANTOS; OLIVEIRA, 2018). Enxergando o
Caribe como um espaço de trânsito, Glissant colocaria que nele há uma constante troca entre
múltiplos pensamentos locais e externos (CHAVES, 2017). Sua escrita é essencial para
diferentes gêneros tanto na filosofia, história, antropologia, apresentando conceitos como
Relação, Diverso, Todo-Mundo e Crioulização para, através deles, expor identidades fixas e
unitárias.
Partindo das problemáticas em torno do exílio e da errância, Glissant (2005; 2021)
começa a discutir as noções de raiz única e de rizoma como apresentadas por Deleuze e Guattari
no livro “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2”. Para os autores franceses, a raiz única é

31
(...) we ourselves provide not enough of a presence to force the untidiness of life into a coherent pattern of our
own making. At best, to judge simply from my case, we can read ourselves against another people's pattern, but
since it is not ours even though we are its designated enemy-we emerge as its effects, its errata, its
countemarratives. Whenever we try to narrate ourselves, we appear as dislocations in their discourse.

59
aquela que elimina o que há à sua volta, que se apodera e domina tudo ao seu redor. Em
oposição à relação binária da raiz que é vinculada à unidade, o rizoma:

[...] conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus
traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em
jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O
rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. Ele não é o Uno
que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três, quatro ou
cinco etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se
acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes
de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio
pelo qual ele cresce e transborda (DELEUZE; GUATARRI, 1995, p. 31).

O rizoma, portanto, se traduz na raiz que se entrecruza, que vai ao encontro de outras
raízes. Em sua essência, rizoma é o que Glissant vai chamar de poética da Relação, um processo
que renega o absolutismo da raiz única, que permite o enraizamento sem o caráter restritivo e
excludente. Desenvolvendo esse pensamento dentro do escopo colonial e das consequências
sobre esse período, Glissant aplica as imagens da raiz única e do rizoma ao princípio de
identidade, indicando a identidade-raiz como sendo “fundada remotamente em uma visão, em
um mito, da criação mundo; santificada pela violência oculta de uma filiação (...); ratificada
pela pretensão a legitimidade (...) e preservada pela projeção sobre outros territórios [...].”
(GLISSANT, 2021, p. 160). Essa é a identidade que prevalece no sistema colonial, e mais
especificamente nas culturas ocidentais, onde prevalece o pensamento do absoluto do ser.
Assim, a “noção de ser e de absoluto do ser está associada à noção de identidade-raiz única e
à exclusividade da identidade” (GLISSANT, 2005, p. 37). A Relação desconstroi a ideia de
identidades unitárias e abre espaço para outra dimensão de identidade, que permeia o encontro
com as diferenças. Assim, a identidade-relação se dá a partir de uma “vivência consciente e
contraditória dos contatos entre as culturas” (GLISSANT, 2005, p. 37), afastando-se do
pensamento continental e absoluto da identidade-raiz.
Atrelada aos princípios de identidade, também está a categorização de culturas feita por
Glissant, onde a raiz única é inseparável do que ele chama de “culturas atávicas”. Estas são
baseadas na ideia de Gênese e no princípio de filiação, produzindo um contínuo e, portanto, a
legitimidade sobre um território. Seriam atávicas as culturas ameríndias, asiáticas, europeias e
da África negra. Em contrapartida, as “culturas compósitas”, como sugeridas por Glissant, são
oriundas da crioulização32, e às quais “qualquer ideia de Gênese só pode ser ou ter sido
importada, adotada ou imposta.” (GLISSANT, 2005, p. 43).

32
Glissant defende que, após os processos culminados durante período colonial, o contato forçado entre as culturas
colonizadas teria resultado na valorização de elementos heterogêneos colocados em relação. A crioulização

60
Aqui, a concepção de cultura atávica faz-se importante por conta dos princípios de
Gênese e filiação e seu impacto nos “mitos que traçaram o caminho da consciência da História
com H maiúsculo” (GLISSANT, 2005, p. 74). O autor defende que, dentro dos mitos que
compõem essas culturas atávicas, existe uma diferença importante a ser ressaltada entre os
mitos fundadores e os mitos de elucidação. Esses últimos, estabelecem relação, que
correspondem aos diversos elementos da estrutura social de uma dada cultura. Já o papel dos
mitos fundadores é:
[...] consagrar a presença de uma comunidade em um território, enraizando
essa presença, esse presente a uma Gênese, a uma criação do mundo, através
da filiação legítima. O mito fundador tranquiliza obscuramente a comunidade
sobre a continuidade sem falhas dessa filiação e a partir daí autoriza essa
comunidade a considerar como absolutamente sua essa terra tornada
território. Ampliando essa legitimidade (...), pode acontecer que, passando do
mito à consciência histórica, a comunidade considere que adquiriu o direito
de aumentar os limites de seu território (GLISSANT, 2005, p. 74).

Assim, a História passa a ser entendida como oriunda do mito fundador, influenciando
o desenvolvimento da identidade da comunidade em questão em torno do eixo de filiação e da
legitimidade (GLISSANT, 2005). É por conta dessa ideia de universal, de generalização de um
absoluto que, segundo Glissant, se fundamenta na expansão colonial: “o que será a consciência
histórica, senão o sentimento generalizado de uma missão a ser realizada, uma filiação a ser
mantida, uma legitimidade a ser preservada, um território a ser ampliado?” (GLISSANT, 2005,
p. 75-76). No contexto colonial, onde há uma predominação da identidade-raiz, a exclusão do
outro é assegurada pela instrumentalização dos livros épicos fundadores. A poética da Relação,
portanto, seria um convite à ruptura da raiz única – e da tangibilidade de extermínio de suas
vítimas –, indo em direção oposta a tudo que violenta o diverso.
Enquanto ideologia europeia, o sionismo é pautado na exclusividade da identidade-raiz
única. Uma ínfima brecha à relação faria desmoronar todo o projeto sionista, portanto mesmo
as propostas iniciais de transferência já resumiam nas palavras de Israel Zangwill a
inviabilidade do encontro com o outro: “Se quisermos dar um país para um povo sem país,
seria uma grande estupidez que esse fosse um país com dois povos.” (MASALHA, 2021, p.
26). A premissa da “terra judaica” infligia um corte certeiro no rizoma.
Seus usos (e alterações) dos livros fundadores para a sustentar uma legitimidade
inventada sobre o território interrompe a possibilidade de qualquer rizoma a ser desenvolvido

traduziria a situação atual do mundo justamente por permitir a relação de elementos culturais heterogêneos, que,
diferente da mestiçagem, produz resultados imprevisíveis (GLISSANT, 2005; 2021).

61
na Palestina. Sua orientação beneficia-se da universalização do tempo linear enquanto sua
própria Gênese é forjada, adequada para se encaixar em uma narrativa que mistura direito
divino e reparação histórica. Sua sustentação implica na eliminação não só dos palestinos, mas
das próprias comunidades judaicas cujas narrativas divergem da versão europeia, realizando
uma disputa pela “hegemonia da minoria Ashkenazi dentro do judaísmo, com o apagamento
de outras narrativas de judeus não-europeus” (SHOHAT, 2010, p. 257, tradução nossa). Um
exemplo pontual é o direcionamento de comentários racistas de Golda Meir não somente aos
palestinos, mas também aos judeus Mizrahim. 33 O sionismo se constitui como uma identidade-
raiz que seculariza e nacionaliza uma religião enquanto se beneficia da aplicação de seu mito
fundador. Por sua vez, o mito transformado em consciência histórica orienta a exclusão do
outro em sua comunidade.

33
Judeus originários de comunidades do Oriente Médio e do Norte da África.

62
| Da terra eleita ao território

Uma etapa importante para a fundamentação do mito de Eretz Yisrael foi (e continua
sendo) a conquista do território. Apropriando-nos da equação sugerida por Glissant (2005), a
terra eleita por uma cultura atávica se iguala a um território a ser conquistado a partir do
princípio de Gênese e filiação. Assim, a eliminação dos palestinos tornou-se essencial para que
não restassem provas contrárias à legitimidade dos sionistas sobre a terra. Como já abordamos
de outras formas, o contexto histórico da Palestina, o avanço do projeto colonial sionista no
território palestino diferencia-se um tanto das outras regiões afetadas pelo imperialismo e
colonialismo no Sul Global, por conta do período no qual a ocupação veio a dominar a
Palestina, de forma anormal, precisamente quando as nações dominadas conquistavam sua
independência (SAYEGH, 1965).
Em busca de entender esta “anomalia colonial”, diversos acadêmicos palestinos
desenvolveram ao longo dos anos estudos focados no funcionamento da ocupação colonial
israelense a partir da perspectiva nativa. Fayez Sayegh, um dos principais nomes desta
temática, apresenta três características principais do que chama de “Estado de Ocupação
Sionista”: (1) um padrão de conduta racista; (2) apego à violência; e (3) postura expansionista
(SAYEGH, 2012, p. 21, tradução nossa). Para o autor, o sionismo é intrinsicamente ligado ao
imperialismo europeu, mimetiza seu empreendimento colonial e principalmente, utiliza o
colonialismo como ferramenta para a construção de sua Nação – e não como um subproduto
de um nacionalismo já concretizado (SAYEGH, 1965).
Traçando um paralelo entre o histórico colonial dos Estados Unidos e Israel e
localizando suas estratégias militares e políticas, Deleuze (1982) localiza a violenta remoção
da população palestina dentro do capitalismo, para além de um movimento motivado apenas
pelo desejo de expansão territorial:
Pegar um povo em seu próprio território e fazê-lo trabalhar, explorá-lo, para
acumular um excedente; isso é o que normalmente é chamado de colônia.
Agora, ao contrário, trata-se de esvaziar um território de seu povo para dar um
salto adiante, mesmo que isso signifique transformá-lo em força de trabalho
em outro lugar. A história do sionismo e de Israel, como a da América,
aconteceu da segunda maneira: como fazer um espaço vazio, como expulsar
um povo? (DELEUZE, SANBAR, 1998, p. 26, tradução nossa34).

34
Taking a people on their own territory and making them work, exploiting them, in order to accumulate a surplus;
that’s what is ordinarily called a colony. Now, on the contrary, it is a matter of emptying a territory of its people
in order to make a leap forward, even if it means making them into a workforce elsewhere. The history of Zionism
and Israel, like that of America, happened the second way: how to make an empty space, how to throw out a
people?

63
De acordo com Patrick Wolfe (1999; 2006), antropólogo australiano que desenvolveu
a teoria sobre o papel das ocupações em sociedades coloniais, ao mesmo tempo em que estas
aspiram à dissolução das comunidades nativas, instituem nas terras expropriadas uma nova
sociedade colonial (WOLFE, 2006, p. 388, tradução nossa). Wolfe explica que a ocupação
colonial é um processo contínuo sem fim, para o qual a conquista territorial é essencial:

[...] o objetivo primário de uma ocupação colonial é a terra em si, ao invés do


valor excedente a ser derivado de sua mistura com a força de trabalho nativa.
Embora, na prática, força de trabalho nativa tenha sido indispensável para os
europeus, a ocupação colonial é em sua essência um projeto de “o vencedor
leva tudo”, cuja característica predominante não é exploração, mas
substituição. A lógica desse projeto, uma tendência institucional contínua de
eliminar a população autóctone, informa uma série de práticas históricas que
em outra situação poderiam parecer distintas – a invasão é uma estrutura, não
um evento (WOLFE, 1999, p. 163, tradução nossa35).

A estrutura da ocupação sionista na Palestina começa a ser implementada ainda no


século XIX, como o estabelecimento de colônias agricultoras sionistas e imigração de judeus
europeus para a região entre 1878 e 1882. Os eventos seguintes, como a realização do primeiro
Congresso Sionista em 1897 e o aumento na imigração judaica a partir de 1904, visavam
efetivar a substituição mencionada por Wolfe décadas antes da criação de Israel. O movimento
duplo de expansão pelo território e de eliminação da população nativa contou com um suporte
narrativo muito bem elaborado pelos sionistas. Embora estes sejam processos ininterruptos
desde os primórdios do sionismo, destacaremos brevemente os percursos em torno da Nakba e
da Naksa36.
As décadas que antecederam seu estabelecimento foram preenchidas de esforços e
planejamentos políticos por parte de lideranças sionistas. Nur Masalha (2021) ressalta que nos
primeiros anos de agitação política do sionismo, ainda durante o século XIX, a presença de
uma população palestina na região a ser colonizada era pouco relevante. Já em 1914, durante
um discurso realizado em reunião da Federação Sionista Francesa, em Paris, Chaim Weizmann,
futuro primeiro presidente de Israel, declarou:

35
The primary object of settler-colonization is the land itself rather than the surplus value to be derived from
mixing native labour with it. Though, in practice, Indigenous labour was indispensable to Europeans, settler
colonization is at base a winner-take-all project whose dominant feature is not exploitation but replacement. The
logic of this project, a sustained institutional tendency to eliminate the Indigenous population, informs a range of
historical practices that might otherwise appear distinct – invasion is a structure not an event.
36
Definição na página 67.

64
No seu início, o sionismo foi concebido por seus prisioneiros como um
movimento completamente dependente de fatores mecânicos: existe um país
que acabou por se chamar Palestina, um país despovoado, e por outro lado,
existe o povo judeu, que não tem um país. O que mais é necessário para
encrustar a pedra no anel, para unir esse povo a esse país? Os donos do país
(os turcos) precisam, assim, ser persuadidos e convencidos que esse
casamento será vantajoso, não apenas para o povo (judeu) e para o país, mas
para eles também (LITVINOFF apud MASALHA, 2021, p. 22, grifo nosso).

As palavras de Weizmann reverberavam o famoso slogan “uma terra sem povo para um
povo sem terra”. Criado por Israel Zangwill, escritor anglo-judeu, conhecido como porta-voz
do sionismo na Grã-Bretanha, o bordão propagava os ideais sionistas, cujos líderes buscavam
apoio a suas propostas no Ocidente (MASALHA, 2021). O povo judeu, portanto, seria o único
capaz de enxergar o verdadeiro potencial daquela terra, podendo oferecer uma reconstrução
digna do território para “dar-lhe um lugar a família moderna das nações.” (SAID, 1978, p. 4,
tradução nossa).
A realidade demográfica da Palestina contradizia o emblema sionista e era conhecida
por seus líderes, mas uma análise mais aprofundada não os interessava. Ainda assim, apesar de
uma população composta por 689.272 habitantes em 1914 (SAID, 2012), a Palestina era lida
como terra nullius, um território vazio, através das mesmas lentes imperialistas que
condenaram terras indígenas em todo Sul Global a violência colonização. Segundo Masalha,
os dirigentes sionistas “não queriam dizer que não havia pessoas na Palestina, mas que não
havia um povo que merecesse consideração dentro das noções de supremacia europeia
dominantes à época” (MASALHA, 2021, p. 22, grifo nosso). O status do povo palestino
transitou entre abstrato e concreto inúmeras vezes na narrativa sionista. Da completa ausência,
“o problema árabe” passou a ser tratado como “simples acampamentos beduínos pelo deserto”
até se tornar alvo efetivo das elaboradas propostas de transferência.
Como previamente mencionado, planos de transferência aliados à limpeza étnica de
vilarejos palestinos prepararam o terreno para a colonização sionista no período pré-1948.
Todo o processo foi amparado por um planejamento metódico organizado pelo Fundo Nacional
Judeu, organização fundada em 1901 para executar um inventário com todos os vilarejos
palestinos a ser conquistados. Segundo Ilan Pappé (2016) o Fundo Nacional Judaico (FNJ) foi
essencial para a colonização da Palestina, servindo como

[...] agência do movimento sionista para a compra de terras na Palestina, na


qual então assentaram-se os imigrantes judeus. Inaugurado pelo 5º Congresso
Sionista, o fundo foi a ponta de lança da significação da Palestina ao longo
dos anos do Mandato. Desde seu início, foi projetado para reter, em nome do

65
povo judeu, a “custódia” da terra cuja posse os sionistas objetivaram na
Palestina (PAPPÉ, 2016, p. 37).

Além do suporte ofertado pelo FNJ, outras instituições foram criadas parar auxiliar na
implementação do Estado exclusivamente judeu. Entre as décadas de 1910 e 1920, enquanto o
“êxodo árabe” era planejado por Zangwill 37 e outros sionistas, grupos paramilitares israelenses
eram fundados com o intuito de garantir o esvaziamento do território de outra forma. O mais
antigo deles, a Haganá, foi fundada em 1920, somava 12 mil homens em 1937 e, durante a
Segunda Guerra, passou por treinamento do exército britânico (KANAFANI, 2015). A
expedição da Declaração de Balfour, a queda do Império Otomano, o subsequente Mandato
Britânico e os desdobramentos da Segunda Guerra eventualmente culminaram no cenário
propício para a criação de Israel. Ao longo de todo esse período, o projeto sionista seguiu
operando com o objetivo de conquistar o maior de território possível na região.
Entre a aprovação da Resolução 181 em 1947 e a declaração de “independência” de
Israel em 15 de maio de 1948, 250 mil palestinos já haviam sido expulsos de suas terras por
forças judaicas (PAPPÉ, 2016). Os palestinos enfrentaram uma força desproporcional,
culminando em uma série de massacres e na aniquilação de vilarejos inteiros:

Em outras palavras, durante os estágios iniciais da limpeza étnica (até maio


de 1948), alguns milhares de palestinos e árabes irregulares estavam
enfrentando dezenas de milhares de tropas judaicas bem treinadas. À medida
que os próximos estágios evoluíram, uma força judaica de quase o dobro do
número de todos os exércitos árabes combinados teve pouca dificuldade em
completar o trabalho. Nas margens do principal poder militar judaico
operavam dois grupos mais extremos: o Irgun (comumente referido como
Etzel em hebraico) e o Stern Gang (Lehi). O Irgun se separou do Haganá em
1931 e na década de 1940 foi liderado por Menachem Begin. Ele havia
desenvolvido suas próprias políticas agressivas tanto para a presença britânica
quanto para a população local. A Gangue Stern era uma ramificação do Irgun,
que deixou em 1940. Juntamente com o Haganá, essas três organizações
foram unidas em um exército militar durante os dias da Nakba (PAPPÉ, 2016,
p. 65).

As décadas seguintes reservaram mais desapropriações e transferências internas aos


palestinos que ainda não haviam sido removidos de suas vilas. O Fundo Nacional Judaico,
juntamente ao exército israelense, era a instituição responsável por assegurar que os deslocados
internos não retornassem às suas casas por meio de uma “política de destruição de aldeias

37
Israel Zangwill foi um dos grandes entusiastas da transferência palestina para outros países árabes. Nur Masalha
cita que, em um livro publicado em 1920, Zangwill defende esse “‘êxodo árabe’ que seria uma ‘redistribuição
racial’ [...] literalmente a única ‘saída’ para a dificuldade de se criar um Estado judeu na Palestina”. Ver Masalha,
2021, p. 29.

66
palestinas e sua transformação em assentamentos judaicos e parques nacionais, plantando
florestas nas áreas despovoadas aldeias para esconder a existência palestina” (MASALHA,
2012, p. 233, tradução nossa). Nem todos os vilarejos depopulados foram posteriormente
habitados por judeus, como foi o caso de Lifta, vila ao noroeste de Jerusalém. Após invadir e
expulsar os mais de 2500 habitantes palestinos, as forças sionistas dispararam bolas de canhão
nos tetos das casas, tornando-as inabitáveis. No livro “All that Remains”, Walid Khalidi (1992)
faz um apanhado histórico e detalha a destruição de 418 aldeias despovoadas por Israel dentro
das linhas do armistício de 1949. Dentre elas, 293 (70%) foram completamente dizimadas e 90
(22%) foram parcialmente destruídas (KHALIDI, 1992; MASALHA, 2014). As poucas vilas
que restaram foram tomadas e remodeladas por colonos israelenses. A partir de 1949, a
mudança na paisagem da Palestina começou a se dar de forma mais acelerada:

A geografia humana da Palestina foi forçada a mudar de conjunto. A feição


árabe das cidades foi apagada pela destruição de grandes setores, incluindo o
espaçoso parque de Jaffa e os centros comunitários de Jerusalém. Essa
transformação foi movida pelo desejo de exterminar a história e a cultura de
uma nação e substituí-la por uma versão fabricada de outra, da qual todos os
traços da população autóctone foram silenciados (PAPPÉ, 2016, p. 251, grifo
nosso).

Os palestinos que remanesceram continuaram sendo um problema a ser resolvido


depois de 1948, mas a contínua expansão territorial de Israel só encontrou seu segundo grande
marco em 1967, durante o que os palestinos conhecem como Naksa, ou “o revés”. Em 5 de
junho de 1967, Israel lançou um ataque contra Egito, Jordânia, Iraque e Síria. Após derrotar as
defesas aéreas desses países, ocupou Jerusalém Oriental, Cisjordânia e Faixa de Gaza, assim
como as Colinas de Golã, da Síria, e a Península do Sinai, do Egito. Como em 1947, os mesmos
aparatos internacionais que permitiram a criação de Israel recusaram os direitos palestinos e
colaboraram para a expansão do projeto sionista. A Resolução 242 do Conselho de Segurança
da ONU, aprovada após a guerra de 1967, desconsiderou os direitos palestinos, referindo-se
aos 400 mil deslocados apenas como refugiados:

A Resolução 242 do Conselho de Segurança tratou toda a questão como uma


questão de Estado para Estado entre os países árabes e Israel, eliminando a
presença de palestinos. O texto não se refere aos palestinos ou à maioria dos
elementos da questão palestina original (...) Por suas omissões, a Resolução
242 consagrou um elemento crucial da narrativa negacionista de Israel: como
não havia palestinos, a única questão genuína era que os estados árabes se
recusaram a reconhecer Israel e usaram um fantasma “problema palestino”
como pretexto para essa recusa. Na batalha discursiva sobre a Palestina, que
o sionismo dominava desde 1897, a UNSC 242 deu validade a essa brilhante

67
invenção, desferindo um poderoso golpe nos palestinos deslocados e
ocupados (KHALIDI, 2020, p. 170, tradução nossa38).

O deslocamento forçado de palestinos, lidos como refugiados dentro e fora de seu


território, foi amplificado pela expansão progressiva das fronteiras de Israel após 1967. Houve
também um aumento na violência contra os palestinos sitiados na Cisjordânia, nas Colinas de
Golã, no Sinai e na Faixa de Gaza: “[...] nada foi poupado aos árabes, da tortura aos campos
de concentração, passando por deportação, vilas arrasadas, campos devastados (...), casas
destruídas, terras confiscadas, populações ‘transferidas’ aos milhares.” (SAID, 2012, p. 138).
Em Israel, esses avanços violentos sobre a população que resistia, foram associados a um
aparato legal para proibir sua presença no país, minar suas possibilidades de trabalho e posse
de terras, visando seu desaparecimento de toda forma possível.
Um dos maiores representantes do expansionismo sionista no pós-1967 foi o general
Moshe Dayan. Apontado como Ministro da Defesa antes do início da guerra de 1967, Dayan
manteve-se no posto até 1974. Nesse período, dedicou-se a integrar os territórios ocupados às
linhas que delimitavam Israel, sendo responsável pela política de “creeping annexation”, ou
anexação gradual (MASALHA, 2012, p. 132, tradução nossa). Esse processo consistia na
imposição progressiva da jurisdição israelense sobre a Cisjordânia e Gaza, esquivando-se
sempre de sua responsabilização. Os planos de Dayan expressavam a determinação de Israel
em manter controle total, visando alteração das “realidades demográficas e físicas dos
‘Territórios Administrados da Judéia e Samaria.’” (MASALHA, 2012, p. 132, tradução nossa).
Mantendo a mesma apatia sobre a situação dos palestinos que outros líderes sionistas que o
antecederam, Dayan resumiu o apagamento das vilas palestinas na seguinte declaração de
1969:

Viemos para este país que já era povoado por árabes e estamos estabelecendo
um hebreu, isto é, um Estado judeu aqui. Em áreas consideráveis do país [a
área total era de cerca de 5 por cento] compramos as terras das aldeias árabes.
Você nem sabe os nomes dessas aldeias árabes e eu não o culpo, porque esses
livros de geografia não existem mais; não só os livros não existem, as aldeias
árabes também não existem. Nahalal [a aldeia de Dayan] surgiu no lugar de
Manalul; Gevat - no lugar de Jibta (Kibbutz) Sarid - no lugar de Haneifs e

38
Security Council Resolution 242 treated the entire issue as a state-to-state matter between the Arab countries
and Israel, eliminating the presence of Palestinians. The text does not refer to the Palestinians or to most elements
of the original Palestine question (...) “By its omissions, Resolution 242 consecrated a crucial element of Israel’s
negationist narrative: since there were no Palestinians, the only genuine issue was that the Arab states refused to
recognize Israel and wielded a phantom “Palestine problem” as a pretext for this refusal. In the discursive battle
over Palestine, which Zionism had dominated since 1897, UNSC 242 gave validity to this brilliant fabrication,
delivering a powerful blow to the displaced and occupied Palestinians.

68
Kefar Yehoshua - no lugar de Tell Shaman. Não há um lugar construído neste
país que não tenha uma antiga população árabe. (DAYAN apud SAID, 1978,
p. 4, tradução nossa39).

Além desses vilarejos citados por Dayan, e tantos outros que foram eliminados, um
exemplo que epitomiza o expansionismo israelense sobre o território palestino e as formas de
“desarabizar” a paisagem é a disputa pela capital, que acontece até hoje. No período pós-Nakba,
o sequestro de Jerusalém como “capital exclusiva” do Estado judeu já havia se iniciado. Marcos
da herança palestina na cidade começaram a ser visados e destruídos, como o Cemitério de
Mamilla, localizado na Cidade Velha de Jerusalém. Como outros locais sagrados da Palestina,
o cemitério pertencia à comunidade islâmica pela waqf 40, mas depois de 1948 o terreno foi
submetido ao controle israelense em 1948, demolido e transformado em estacionamento em
1964. Essa prática de demolir zonas históricas das cidades palestinas era uma estratégia
amparada pela empreitada arqueológica bíblica de Israel, como veremos mais à frente, na
próxima seção desse capítulo.
Em 1967, após completar a ocupação na parte oriental de Jerusalém, o exército
israelense anexou cerca de 70 quilômetros quadrados de terra e “incorporou aproximadamente
69.000 palestinos dentro dos limites recém-expandidos do município israelense anteriormente
ocidental de Jerusalém” (WEIZMAN, 2007, p. 25, tradução nossa). O controle de Jerusalém
era essencial para o projeto sionista, que em 1968 desenvolveu um plano de reformas urbanas
para cercar as vilas palestinas ainda remanescentes e impedir uma futura possível repartição da
cidade:

O problema dos planejadores e arquitetos não era apenas como construir


rápido nesse terreno 'politicamente estratégico', mas como naturalizar os
novos projetos de construção, fazê-los aparecer como partes orgânicas da
capital israelense e da cidade sagrada. A arquitetura - a organização, a forma
e o estilo pelos quais esses bairros foram construídos, a forma como foram
mediados, comunicados e compreendidos - formaram uma linguagem visual
que serviu para borrar os fatos da ocupação e sustentar as reivindicações
territoriais de expansão. Este projeto foi, portanto, uma tentativa de sustentar

39
We came to this country which was already populated by Arabs, and we are establishing a Hebrew, that is a
Jewish state here. In considerable areas of the country [the total area was about 5 percent] we bought the lands
from the Arab villages. You do not even know the names of these Arab villages and I don't blame you, because
these geography books no longer exist; not only do the books not exist, the Arab villages are not there either.
Nahalal [Dayan's own village] arose in the place of Manalul; Gevat - in the place of Jibta (Kibbutz) Sarid - in
the place of Haneifs and Kefar Yehoshua - in the place of Tell Shaman. There is no one place built in this country
that did not have a former Arab population.
40
Sob a lei islâmica, waqf é a doação de uma propriedade para fins de caridade.

69
narrativas nacionais de pertencimento enquanto curto-circuitava e até
bloqueava outras narrativas (WEIZMAN, 2007, p. 26, tradução nossa41).

A vida para os palestinos se tornava cada vez mais impossível, independente da


localidade. O descarte da existência palestina no território ficou marcado também na fala de
líderes sionistas, como Golda Meir. Dois anos depois da Guerra de 1967, Meir, então Primeira-
Ministra israelense afirmou ao jornal “The Sunday Times of London” que “Não existia um povo
palestino… Não era como se houvesse um povo palestino se considerando um povo palestino
e nós viemos e os expulsamos e tiramos seu país deles. Eles não existiam.” (THE TIMES,
2005). A repetição em seu discurso é quase uma tentativa de provar a si mesma sobre o vazio
do território, mesmo tendo completa ciência da materialidade desse povo-fantasma que
assombrava a “terra prometida”. Anos mais tarde, quando questionada sobre a polêmica frase
que nomeia esse capítulo, Meir muda o tom, mas mantém a essência da mensagem: “Eu disse
que nunca existiu uma Nação palestina.” (THE NYT, 1972). De fato, não existia uma Nação
palestina baseada nos moldes europeus de Estado, logo a relevância da presença palestina é
condicionada à compatibilidade com ideais etnocêntricos do sionismo. Os dois sucessores de
Meir no cargo de Premiê israelense também carregaram nas nomenclaturas escolhidas para os
palestinos o racismo inerente ao sionismo e o desprezo por sua existência. Yitzhak Rabin se
adereçava à população nativa como os “chamados” palestinos, enquanto Menachem Begin,
depois dele, referia-se a eles como árabes da Terra de Israel ou “próprios negros de Israel.”
(SAID, 2012).
Depois que sua existência é negada e seu direito à terra também, o que resta aos
palestinos? Um êxodo? Seu estabelecimento em outro lugar, numa outra geografia? As
respostas dessas perguntas pouco importam para líderes sionistas como Golda Meir: “Eu não
me importo. Não é problema meu. Eles não terão isso em Israel.” (THE NYT, 1972). As falas
de Zangwill, Weizmann, Meir e as ações do projeto que representam, reiteram a identidade-
raiz que rege o sionismo – enquanto cultura atávica – em relação ao outro, ao povo palestino:

[...] por toda parte onde aparecem mitos fundadores, no seio dessas culturas
que chamo de culturas atávicas, a noção de identidade se desenvolverá em

41
The problem of planners and architects was not only how to build fast on this 'politically strategic' ground, but
how to naturalize the new construction projects, make them appear as organic parts of the Israeli capital and the
holy city. Architecture – the organization, form, and style by which these neighborhoods were built, the way they
were mediated, communicated and understood- formed a visual language that was used to blur the facts of
occupation and sustain territorial claims of expansion. This project was thus an attempt to sustain national
narratives of belonging while short-circuiting and even blocking other narratives.

70
torno do eixo da filiação e da legitimidade; profundamente, trata-se da raiz
única que exclui o outro como participante (GLISSANT, 2005, p. 75).

Refém da violência dessa filiação, a existência palestina é marcada pelo constante


apagamento do que está ali. Seu passado pode ser roubado, apagado ou mesmo negociado –
sem a sua autorização – enquanto seus vestígios são eliminados ou ressignificados. As
consequências da desterritorialização transborda em sua relação com o tempo. Se o passado
não existiu, para onde querem retornar? As escavadoras israelenses extirpam da terra casas
centenárias, milenares enquanto as famílias guardam por quase oito décadas suas chaves. Para
quando retornar? Said sintetiza esses questionamentos em “After the Last Sky” ao tratar do
despovoamento, da memória e da identidade, Said pondera:

Nós existimos? Que prova temos? Quanto mais nos distanciamos da Palestina
de nosso passado, mais precário nosso status, mais perturbado nosso ser, mais
intermitente nossa presença. Quando nos tornamos “um povo”? Quando
deixamos de ser um? Ou estamos no processo de nos tornarmos um? O que
essas grandes questões têm a ver com nossos relacionamentos íntimos uns
com os outros e com os demais? (SAID, 1999, p. 34, tradução nossa42).

O caminho para a construção do mito de Israel foi aberto por cima dos escombros do
povo palestino. O futuro idealizado por Herzl e o passado descrito por Meir convergem para a
limpeza étnica e apagamento histórico perpetrados na Palestina, pois seu projeto de Nação é
incompatível com a existência de um grupo que desafie a narrativa fundante do sionismo.
Recorrendo a Amal Jamal (2016), entendemos a narrativa nacional e o controle do fluxo
temporal como alicerces centrais para o domínio de um povo sobre outro. A Palestina, outrora
tão plural, é transformada no Estado de um povo só – e no lugar do que não está mais lá, ergue-
se o mito de Eretz Yisrael. Nos termos de Édouard Glissant, a consciência histórica atrelada ao
mito fundador se transforma no “sentimento generalizado de uma missão a ser realizada, uma
filiação a ser mantida, uma legitimidade a ser preservada, um território a ser ampliado
(GLISSANT, 2005, p. 75-76).
Em nome da manutenção da filiação e da consagração do mito fundador, toda a
trajetória sionista na Palestina se resume ao horror do massacre e do memoricídio. A relação
com a Catástrofe, as expulsões em massa e todo o apagamento dos palestinos por conta da
limpeza étnica, se traduz no cinema palestino em geral. Nos filmes de Larissa Sansour, a

42
Do we exist? What proof do we have? The further we get from the Palestine of our past, the more precarious
our status, the more disrupted our being, the more intermittent our presence. When did we become 'a people'?
When did we stop being one? Or are we in the process of becoming one? What do those big questions have to do
with our intimate relationships with each other and with others?

71
ambiguidade da existência palestina também está atrelada às imagens futurísticas, que nos
mostram à sua maneira, as consequências da terra eleita transformada em território. “A Space
Exodus”, como o nome do filme nos informa, transfere a impossibilidade palestina para um
cenário cosmológico. Se a continuidade da limpeza étnica continua inviabilizando a vida na
Palestina, se transferência após transferência, o retorno à Palestina (da imaginação e a material)
parece mais impossível, por que entender a busca por um território na lua como uma mera
hipérbole?

Figura 13: Imagem capturada de “A Space Exodus” (04:36 min)

Nas brechas do tempo perturbado da Palestina, a imagem de uma astronauta fincando


sua bandeira na lua transporta para um cenário extraterrestre a desterritorialização de um povo,
carregando na narrativa todo o peso da Nakba – sem o trauma fundador da causa palestina, não
haveria necessidade de busca constante pela reterritorialização. A desterritorialização literal
dos palestinos apresentada no filme pelo êxodo espacial, reitera ainda as problemáticas do
movimento, centrais para a vida palestina. O curta de Larissa Sansour representa, de certo
modo, a ontologia de ser palestino, sempre em “constante negociação com as tensões entre
mobilidade e imobilidade.” (TAWIL-SOURI, 2014). Nas palavras de Hamid Dabashi:

No centro da presença histórica palestina está, portanto, uma ausência


geográfica. A presença dominante de uma ausência está no cerne criativo do

72
cinema palestino, o que o tornou tematicamente in/coerente e esteticamente
impossível. (DABASHI, 2006, p. 10, tradução nossa43).

A “conquista” da lua simultaneamente representa a ausência de um território. A


narrativa de ruptura com Jerusalém e a incapacidade de constituir um lar para os palestinos
pode aludir aos eventos a partir de 1948 quanto ao futuro distópico de “A Space Exodus”. Nesse
sentido, não é possível enxergar o que Massad sugere como uma não-representação da Nakba,
ela está em todas as narrativas palestinas de alguma forma, como micro-Nakbas (SHOHAT,
2010). A Catástrofe está na chegada da astronauta na lua, na assertividade de cada elemento
representante da nacionalidade palestina e na sua conquista interrompida. A inconclusiva
jornada ao espaço reitera a descrição de Edward Said da vida palestina como dispersa e
descontínua, constitutiva de sua identidade.
Numa outra lente, as consequências do projeto de aniquilação da Palestina se traduzem
na imagem da astronauta flutuando no vazio do espaço sideral – sem lugar, excluída de toda
possibilidade de filiação, sem território. Por que não entender a deriva da astronauta como
resultado da limpeza étnica sem fim, do avanço da raiz sionista que captura a presença palestina
e arremessa para o vazio? A imposição do mito fundador de Israel captura o oxigênio dos
palestinos e inflige a eles a impossibilidade de respirar.
A construção do “Nation Estate” é uma outra forma de identificar as marcas da limpeza
étnica e da expulsão no imaginário palestino, já que o arranha-céu se apresenta como única
solução possível após anos de anexações, transferências e desapropriações. Da janela dos
apartamentos, os palestinos são forçados a confrontar diariamente o território perdido por conta
da expansão desenfreada israelense. Expansão essa que decretou, na realidade do filme, a
sentença palestina de viver verticalmente nos arredores da cidade que um dia foi sua capital.
Pelas frestas das janelas em cada frame do curta, podemos ver partes de Jerusalém como
pretendida pelos governantes que arquitetaram sua conquista total ainda em 1967. Se tudo que
é derivado da Palestina está amontoado no Estate, o território horizontal cumpre finalmente a
promessa da capital exclusivamente judaica. Aos palestinos restam as amostras abreviadas de
seus marcos históricos, como o Domo na Rocha em Jerusalém, ou as paredes da Igreja da
Natividade, em Belém – cada um em seu devido andar.
Novamente, os elementos nacionais esboçam um resgate da identidade palestina apesar
das consequências da expansão e domínio israelense. Na cena abaixo, a protagonista cultiva a

43
At the core of the Palestinian historical presence is thus a geographical absence. The overriding presence of
an absence is at the creative core of Palestinian cinema, what has made it thematically in/coherent and
aesthetically im/possible.

73
oliveira, símbolo da Palestina, de costas para a paisagem de um território que ela não pode mais
reconhecer como seu. Ela nutre um sentimento nostálgico por um período que se opõe à
realidade mostrada pela janela.

Figura 14: Imagem capturada de “Nation Estate” (05:47 min)

A oliveira, e todo o ritual em torno dela, parecem constituir uma geografia para a
protagonista, assim como o outrora imperceptível aroma de café produziu para o poeta
palestino Mahmoud Darwish uma reflexão geográfica durante o cerco de Beirute em 1982. No
poema “Memory for Forgetfulness”, Darwish demonstra encontrar no aroma do café uma
geografia espacial e temporal, porque, como explica Tahrir Hamdi (2017), é isto que conecta a
geografia palestina a seu não-espaço ao mesmo passo em que também conecta seu passado a
seu presente:
O aroma do café é um retorno e um resgate das primeiras coisas porque é filho
do primordial. É uma jornada, iniciada há milhares de anos, que ainda
continua. Café é um lugar. Café são poros que deixam o interior penetrar para
o exterior. Uma separação que une o que não pode ser unido senão pelo seu
aroma. Café não é para desmame. Pelo contrário, o café é um seio que nutre
profundamente os homens. Uma manhã nascida de um gosto amargo. O leite
da masculinidade. Café é geografia. (DARWISH, 2013, p. 20, tradução
nossa44).

44
The aroma of coffee is a return to and a bringing back of first things because it is the offspring of the primordial.
It's a journey, begun thousands of years ago, that still goes on. Coffee is a place. Coffee is pores that let the inside
seep through to the outside. A separation that unites what can't be united except through its aroma. Coffee is not
for weaning. On the contrary, coffee is a breast that nourishes men deeply. A morning born of a bitter taste. The
milk of manhood. Coffee is geography.

74
Aqui, o aroma do café apresenta para Darwish uma forma de escapar do cerco
israelense, onde ele se reencontra com a violência sionista fora da Palestina. Apesar das cenas
das bombas caindo na capital libanesa, o aroma do café resgata o sentimento de resistência no
poeta (HAMDI, 2017). No Nation Estate, a oliveira é uma lembrança do que se perdeu, mas
seu cultivo esboça a recusa em aceitar em totalidade as condições impostas pela expansão
israelense. Se no decorrer dos últimos setenta anos cada assentamento pode ser entendido como
um ato de apagamento e re-habitação (WEIZMAN, 2007), o Nation Estate nada mais é do que
a concretização da ocupação em seu último estágio.
As consequências do domínio territorial afetam a vida palestina de diversas formas,
continuamente. Suas memórias são roubadas, sua conexão com a terra é constantemente
interrompida, sua identidade é questionada e seu direito à vida é negado. Em “After the Last
Sky”, Said se refere a esses sentimentos:

A expropriação e a dispersão significaram uma discrepância


fundamental entre "nós" e onde quer que cada um de nós esteja agora.
Cada um de nós suporta a perda do lugar e da história de forma aguda,
o dado que compartilhamos na raiz de nossas várias vidas. Não há
como sentirmos as acumulações de nosso passado a não ser como uma
lacuna, um abismo aparentemente imutável que nos separa da
realização nacional que ainda não conseguimos alcançar. (SAID, 1999,
p.149, tradução nossa45).

A limpeza étnica e a ocupação provocam a continuidade do sentimento de perda. Em


“In the Future”, toda a motivação por trás das ações da Terrorista Narrativa é localizada nas
perdas do passado. O solo no qual ela pretende implantar as porcelanas já pertenceu ao seu
povo, à sua história. Ao mesmo tempo, ela lida com o próprio passado, com a morte da irmã,
que também representa a perda do todo. O abismo mencionado por Said parece ser evocado
nas imagens, quando o passado da protagonista se infiltra nas cenas na forma do luto. De quem
é a memória que a terrorista narrativa busca garantir? A do povo que comia na melhor
porcelana ou a da sua irmã, assassinada ainda criança? A resposta aparece em voice over sobre
a imagem das duas irmãs em pé, de mãos dadas:

45
Dispossession and dispersion have meant a fundamental discrepancy between 'us' and wherever each of us now
happens to be. Each of us bears the loss of place and of history acutely, the given we share at the root of our
various lives. There is no way for us to feel the accumulations of our past except as a gap, an apparently
unchanging abyss separating us from the national fulfillment we have not yet been able to attain.

75
- Depois de um certo ponto, a morte não é mais sobre a única vida perdida.
Não é nem pessoal. É o que somos como um todo que nos qualifica como
alvos (In the Future, 2016, 11:04 min, tradução nossa46).

Figura 15: Imagem capturada de “Nation Estate” (10:58 min)

Após essa fala, a irmã caçula rompe o contato e cada uma caminha em direções opostas.
A perda, que pode ser individual, torna-se algo maior, coletivo. Um trauma que reverbera em
cada ausência particular, a dor do luto compartilhado por tudo aquilo que lhes foi extirpado em
nome de uma ficção incontestável. Em outro momento, escutamos o seguinte diálogo enquanto
a tela acompanha a Terrorista Narrativa caminhando pelo território sob a luz do sol se pondo:
– Este lugar sempre foi uma distopia que mal funcionava... se aprofundando
no apocalipse, um microcosmo acelerado... Tudo desaparece pouco a pouco.

– O apocalipse nunca é esse único evento cataclísmico. Ele te pega de


surpresa.

– Desde que me lembro, foi uma época de desaparecimento. O luto é material


e estético. Cheiros, sons, vistas, a própria sensação de movimento. Tudo se
foi. (In the Future..., 2016, 13.00 min, tradução nossa47).

46
After a certain point, death is no longer about the single life lost. It's not even personal. It's what we are as a
whole that qualifies us as targets.
47
- This place was always a barely functioning dystopia... deeper into the apocalypse, an accelerated microcosm.
It all disappears little by little.
- The apocalypse neve is that single cataclysmic event. It sneaks up on you.
- Ever since I can remember, it was a time of disappearance. The bereavement is both material and aesthetic.
Smells, sounds, views, the very sense of motion. All gone.

76
Quase como uma confissão, a Terrorista Narrativa justifica as ações de seu grupo. A
ficção que parece ter surgido como uma utopia para quem oprime, transforma em distopia a
realidade dos grupos oprimidos por sua imposição. A vida interrompida pela fábula dessa outra
comunidade, torna-se gradativamente intragável. O luto domina todas as esferas da experiência.
A protagonista e seu povo vivem nas margens essa ficção, sem poder resgatar dela o passado
que lhes foi roubado. Como na vivência palestina:

Não há grande episódio em nossa história que estabeleça imperativos para


nosso curso futuro, em parte porque nosso passado ainda é esfarrapado,
desacreditado e não assimilado, em parte porque suportamos as dificuldades
da dispersão sem sermos forçados (ou capazes) de lutar para mudar nossas
circunstâncias. Não temos uma teoria dominante da cultura, história e
sociedade palestinas; não podemos confiar em uma imagem central (êxodo,
Holocausto, longa marcha); não há um discurso completamente coerente
adequado para nós, e duvido que neste ponto, se alguém pudesse formar tal
discurso, poderíamos ser adequados para ele. Diversos, os espaços aqui e ali
em nosso meio incluem, mas não compreendem o passado; representam um
edifício sem propósito geral, em torno de um território inexplorado e apenas
parcialmente explorado. Sem um centro. Atonal (SAID, 1999, p. 129,
tradução nossa48).

As palavras de Said descrevem um tipo de apocalipse, como esse descrito no diálogo


entre a Terrorista Narrativa e sua interlocutora. É a cena da irmã caçula soltando a mão da mais
velha, deixando-a sozinha na escuridão de um vazio. Não se alcança a irmã, a realização
nacional, o controle sobre o tempo. O que resta? O que é único da experiência palestina, que
atravessa o tempo e o espaço, parece ser o desaparecimento. Em termos literais, é a
consequência última da colonização que usurpa seu território, sua memória, seus cheiros e
vistas, deixando-os dispersos, sem um centro.

48
There is no great episode in our history that establishes imperatives for our future course, partly because our
past is still ragged, discredited, and unassimilated, partly because we endure the difficulties of dispersion without
being forced (or able) to struggle to change our circumstances. We have no dominant theory of Palestinian
culture, history, society; we cannot rely on one central image (exodus, holocaust, long march); there is no
completely coherent discourse adequate to us, and I doubt whether at this point, if someone could fashion such a
discourse, we could be adequate for it. Miscellaneous, the spaces here and there in our midst include but do not
comprehend the past; they represent building without overall purpose, around an uncharted and only partially
surveyed territory. Without a center. Atonal.

77
| Escavar em legítima defesa do passado

Para que o mito fundador de Eretz Yisrael consagrasse a presença sionista na Palestina,
uma outra ferramenta essencial no processo foi a arqueologia. O tema, explorado no terceiro
curta de Larissa Sansour, é um elemento constitutivo da política e história israelense, mas a
sua instrumentalização para a construção da uma identidade nacional não teve início com o
projeto sionista.
Em “Facts on the Ground” (2001), a antropóloga Nadia Abu el-Haj traça um paralelo
entre a arqueologia e seu desenvolvimento enquanto campo de estudo nas universidades
europeias no início do século XIX, impulsionado pelos crescentes ideais nacionalistas. De fato,
o primeiro ímpeto de escavar a história da Palestina, ainda sob domínio otomano, partiu dos
ingleses. Em 1865, o Palestine Exploration Fund (PEF, ou Fundo de Exploração Palestina) foi
inaugurado na Inglaterra por um grupo de clérigos protestantes, geógrafos e teólogos. O que
começou com o intuito de realizar um simples mapeamento da região, se transformou num
esforço maior que reunira práticas etnográficas, arqueológicas e geográficas. Lançou-se então
um novo projeto visando resolver seguintes inquietações:

Enquanto uma milha quadrada na Palestina permanecer inexplorada,


enquanto um monte de ruínas em qualquer parte, especialmente em qualquer
parte consagrada pela história bíblica, permanecer não escavado, o chamado
da investigação científica, e podemos acrescentar, a grande curiosidade de
cristandade, permanece insatisfeita. (WATSON apud ABU EL-HAJ, 2001, p.
22, tradução nossa49).

Os trabalhos do PEF tiveram início em 1871, com auxílio do Departamento de Guerra


Britânico, mas suas expedições arqueológicas não foram as únicas, e a Palestina também se
tornou campo de estudo para exploradores estadunidenses e franceses ainda na segunda parte
do século XIX (MASALHA, 2014). Apesar de haver ali um povo, uma sociedade constituída
(fora dos moldes ocidentais, mas ainda assim uma sociedade), a Palestina era “controlada na
mente ocidental não por suas realidade e habitantes presentes, mas por seu passado portentoso
e o potencial de seu futuro.” (SAID, 1978, p. 4, tradução nossa). Logo, a “terra da Bíblia”
ocupava um lugar muito específico no imaginário ocidental-cristão, e a possibilidade de

49
So long as a square mile in Palestine remains unsurveyed, so long as a mound of ruins in any part, especially
in any part consecrated by the Biblical history, remains unexcavated, the call of scientific investigation, and we
may add, the grand curiosity of Christendom, remains unsatisfied.

78
comprovar sua ligação com a região-berço do Cristianismo reforçaria uma característica
essencial para seus ideia: a continuidade histórica. Abu el-Haj ressalta que para esses
pesquisadores e oficiais cristãos, “[...] a Palestina seria finalmente trazida, através do
mapeamento, de volta à geografia histórica que eles já conheciam” (ABU EL HAJ, 2001, p.
25, tradução nossa). E da mesma maneira que a Terra Santa representava para eles um artigo
de fé político [e cultural] (HERZFELD apud ABU EL-HAJ, 2001, p. 25, tradução nossa),
também passou a ser entendida dessa forma pelos sionistas.
As autoridades britânicas deram continuidade ao projeto do PEF durante seu Mandato
na Palestina, resultando em um grande material cartográfico coletado sobre a região. Inspirado
pelo uso da arqueologia na constituição de um sentimento nacional, profissionais sionistas
também investiram nessa estratégia para começar a construir as bases do Estado do povo judeu.
Segundo Masalha (2018), o período que antecedeu a criação do Estado de Israel contou com
alguns elementos-chave para a preparação do terreno, dentre eles, o desenvolvimento das
narrativas-mito atreladas à hebraicização dos toponímios árabes. Ideais nacionalistas europeus
que se baseavam na construção de uma cultural nacional com o auxílio de mitos históricos
(HOBSBAWN, 1990), fundamentaram a construção do sionismo como um projeto Étnico-
nacional.
No entendimento de líderes sionistas como Ben-Gurion, a Bíblia hebraica foi
incorporada ao movimento como um texto sagrado nacionalizado e racializado, essencial para
os mitos fundacionais modernos do sionismo secular (MASALHA, 2018). A construção de
uma Nação e a invenção da tradição dependia da subversão desse livro em uma ferramenta
narrativa excludente, uma elaboração que possibilitasse a reivindicação histórica a partir de
interpretações do sagrado. Para Glissant, (2005):

Os grandes livros épicos fundadores da humanidade são livros que dão


segurança à comunidade quanto ao seu próprio destino e que,
consequentemente, tendem, não em si mesmos, mas através do uso que deles
será feito, a excluir o outro dessa comunidade (GLISSANT, 2005, p. 80).

A questão religiosa sempre gerou debates e controvérsias que afetaram a região do


Oriente Médio. No caso específico da Bíblia como livro épico, ela incorpora uma coletânea de
textos e passagens oriundas da tradição oral, reunida “ao longo de séculos por muitos autores
em diferentes línguas e deriva de múltiplas tradições culturais e religiosas: Oriente Próximo,
Cananeu, Hebraico, Aramaico e Grego helenístico.” (MASALHA, 2014, p. 22, tradução
nossa). A discussão teológica em torno da Bíblia e de outros livros sagrados, suas várias

79
interpretações e instrumentalizações é muito extensa e não é compreendida em nosso corpus.
No entanto, consideramos importante ressaltar que o postulado de uma interpretação de um
livro religioso como certificado legitimador – especialmente na Palestina, local relevante para
as três maiores religiões monoteístas do mundo –, é certamente uma afirmação perigosamente
supremacista, pois reitera que um povo, dentre tantos outros, é meritório do direito divino de
posse exclusiva. Para isso, a padronização linguística era necessária para a construção de fatos:

A verdade da nacionalidade judaica (de ocupação) residia na credibilidade


dos fatos. E o próprio trabalho de coleta de fatos, seja por meio da escavação
da terra em busca de restos materiais ou "resgate" de nomes hebraicos, havia
estabelecido a matriz de um terreno dentro do qual as práticas de
nacionalidade (de ocupação) e uma disciplina arqueológica-nacionalista mais
completa levariam lugar e forma no estado judeu recém-fundado. (ABU EL-
HAJ, 2001, p. 98, tradução nossa50).

Lina Meruane (2019) divide a fundação léxica de Israel em três pontos de apoio, sendo
eles: 1) a revitalização do hebreu clássico, língua até então quase morta, utilizada apenas em
rituais religiosos. O hebraico moderno, segundo a autora, conferiria uma identidade linguística
única aos judeus israelenses; 2) A hebraicização dos nomes dos novos judeus de Israel para
distanciá-lo da imagem do velho judeu europeu. Grandes figuras sionistas alteraram seus
nomes, buscando outros mais “bíblicos”: Ariel Scheinermann passou a se chamar Ariel Sharon;
Golda Mabovitch, tornou-se Golda Meir; David Green, virou David Ben-Gurion; entre outros;
e 3) A “desnomeação” e consequente renomeação de regiões e bairros, para suprimir qualquer
vestígio árabe. Em resumo, esses tópicos foram de grande auxílio na transformação progressiva
da Palestina.
Questionando a veracidade das ascendências atribuídas pelo Ocidente às suas
descobertas, Glissant (2005; 2020) ressalta o papel da ideia de filiação e sua força linear sob o
território. No caso de Israel, os imigrantes europeus recém-chegados à Palestina (pré ou pós
Nakba) precisavam de um denominador comum com aquela terra para justificar sua ocupação.
A resposta estava na produção de uma imaginação nacional coesa, atrelando os judeus
europeus a uma categoria étnica e nacionalizando a Bíblia hebraica:

O fenômeno israelense, uma nação que retorna à sua velha-nova terra não tem
paralelo. É uma nação em processo de renovação do conhecimento de suas
próprias terras e aqui a arqueologia desempenha um papel importante. Nesse

50
The truth of Jewish (settler) nationhood resided in the credibility of facts. And the very work of fact collecting,
whether through excavating the land for material remainders or "redeeming" Hebrew names, had established the
matrix of a terrain within which the practices of (settler)nationhood and a more fully nationalist-archaeological
discipline would take place and shape in the newly founded Jewish state.

80
processo, a arqueologia faz parte de um sistema maior conhecido como
yedi’at há-Aretz, conhecimento da terra (o termo hebraico é derivado
provavelmente do alemão Landeskunde) … Os imigrantes europeus
encontraram um país com o qual sentiam, paradoxalmente, afinidade e
estranheza. A arqueologia em Israel, estado sui generis, serviu como meio
para dissipar a alienação de seus novos cidadãos (BROSHI apud SAID, 2014,
p. 41, tradução nossa).51

A continuidade do empreendimento arqueológico na Palestina permaneceu com todo


investimento após a Nakba. Com o Estado judeu estabelecido, era preciso judaizar a região o
mais rápido possível, produzir a ligação histórica bíblica e escavar as provas de seu
pertencimento. Nadia Abu el-Haj (2001) explica que havia algumas diferenças entre a prática
especializada judaico israelense nesse período e a de seus antecessores anglo-cristãos. Dentre
elas, a transferência do título de autóctone ou nativo dos palestinos para os judeus, mudança
de paradigma importante porque resume o método sionista de apropriar-se da narrativa
religiosa para satisfazer seu objetivo político.
Mesmo quando suas práticas científicas se assemelhavam àquelas usadas pelo PEF, os
arqueólogos israelenses precisaram lidar com algumas mudanças na dinâmica. Por exemplo, o
trabalho cartográfico-linguístico em Al-Naqab (hebraizado para Negev) não contou com o
“conhecimento local” da população porque a maioria dos habitantes dessa região já havia sido
deslocada no período pós-1948 (ABU EL-HAJ, 2001). A partir da década de 1950, os
arqueólogos sionistas dedicaram suas escavações à busca de resquícios do final da Idade do
Bronze, período em que o “grupo étnico” israelita teria entrado na região da Palestina (ABU
EL-HAJ, 2001). A década de 1960 deu início a uma mudança nas atitudes de historiadores e
cientistas políticos europeus e norte-americanos em relação às ex-colônias, mas como
mencionamos previamente, a relação do projeto sionista com a Palestina representa uma
anomalia colonial. Em contramão às reavaliações tardias de outros países, os israelenses
consolidaram a ocupação colonial na Palestina e sua relação com a narrativa mitológica,
fazendo-as convergir:

Enquanto as atitudes coloniais de historiadores e cientistas sociais europeus e


norte-americanos em relação às ex-colônias do Ocidente começaram a ser
reavaliadas criticamente desde a década de 1960, os israelenses optaram por
consolidar a tradição colonial e a historiografia colono-colonial na Palestina-

51
The Israeli phenomenon, a nation returning to its old-new land, is without parallel. It is a nation in the process
of renewing its acquaintance with its own land and here archeology plays an important role. In this process
archeology is part of a larger system known as yedi’at ha-Aretz, knowledge of the land (the Hebrew term is
derived most probably from the German Landeskunde).… The European immigrants found a country to which
they felt, paradoxically, both kinship and strangeness. Archeology in Israel, a sui generis state, served as a means
to dispel the alienation of its new citizens.

81
Israel. Em Israel, sempre houve uma obsessão com a “memória bíblica” e a
convergência entre as escavações bíblicas e a colonização judaica sempre foi
grande, mas tornou-se mais pronunciada após as conquistas pós-1967. Além
disso, a arqueologia bíblica israelense permaneceu central para a política de
identidade sionista secular e as atividades dos colonos israelenses.
(MASALHA, 2018, p. 375, tradução nossa52).

O período que sucedeu as conquistas israelenses de 1967, reforçou o lugar da narrativa


bíblica na construção da identidade israelense e no incentivo à expansão do território para além
das fronteiras já delimitadas pelas anexações. A instrumentalização da arqueologia foi crucial
nesse momento. Ainda em junho de 1967, quando Jerusalém foi anexada a Israel, sítios
arqueológicos e históricos da Cisjordânia foram declarados como propriedade nacional e
cultural do Estado, “principalmente aqueles de relevância cultural judaica ou israelita.”
(WEIZMAN, 2007, p. 40, tradução nossa). Nesse estágio, duas das maiores escavações
arqueológicas foram realizadas em Jerusalém entre 1968 e 1969, lideradas por Benjamin Mazar
e Nahman Avigad, respectivamente (ABU EL-HAJ, 2001, p. 130, tradução nossa).
Esse movimento do governo israelense consolidou a anexação sob os Territórios
Ocupados. Gradativamente, o controle sobre a região foi sendo tomado, e dois meses após a
guerra, toda a Cidade Velha foi interditada e nenhuma construção foi permitida até que as
pesquisas arqueológicas fossem realizadas. Essa é uma outra faceta da arqueologia, que
continua servindo como valiosa ferramenta para a ocupação até hoje: a interdição do território.
As mesmas justificativas dadas para esvaziar bairros inteiros ou exumar corpos de cemitérios.
O crescimento do território israelense, portanto, fomentou ainda mais o incessante desejo
expansionista do sionismo. Masalha (2014) lista os motivos que reacenderam a busca pelo
controle total do território entendido como Grande Israel, de acordo com a narrativa bíblica:

Primeiro, as reivindicações dos “direitos históricos dos judeus em toda a Terra


de Israel” tinham uma base profunda no sionismo trabalhista secular
dominante. Em segundo lugar, as consequências espetaculares e múltiplas dos
sucessos militares de 1967 sublinharam o sucesso do sionismo e a criação de
uma sociedade colonizadora dinâmica, poderosa e expansionista. Terceiro, a
mobilização de forças políticas e sociais neo-sionistas e fundamentalistas
judaicas em Israel foi altamente eficaz. Quarto, de acordo com Amos Elon, o
território de Israel antes das conquistas de 1967, embora rico em locais e
locais históricos romanos, bizantinos, nabateus, cruzados e muçulmanos, na

52
While the colonial attitudes of European and North American historians and social scientists towards former
colonies of the West has begun to be re-evaluated critically since the 1960s, the Israelis have chosen to consolidate
the colonial tradition and settler-colonial historiography in Palestine–Israel. In Israel, there has always been an
obsession with ‘biblical memory’ and the convergence between biblical excavations and Jewish settler-
colonization has always loomed large but became most pronounced after the post-1967 conquests. Furthermore,
Israeli biblical archaeology has remained central to secular Zionist identity politics and Israeli settler activities.

82
verdade quase não tinha monumentos históricos que testemunhassem um
passado judaico antigo (MASALHA, 2014, p. 132-133, tradução nossa53).

O sentimento expansionista ficou marcado na imagem de líderes sionistas que


conduziram e incentivaram as buscas arqueológicas no solo recém-ocupado. Yigael Yadin,
acadêmico, militar e chefe de estado-maior do exército israelense desempenhou um papel
fundamental no estabelecimento da arqueologia bíblica em Israel, popularizando a prática.
Nesse campo, Yadin seguia os passos do famoso arqueólogo bíblico americano William
Albright e suas concepções sobre a conquista israelita de Canaã. Entre 1962 e 63, Yadin foi o
responsável pela escavação de Massada 54, sítio arqueológico que marca o imaginário coletivo
bíblico do sionismo. Outro líder sionista muito engajado nas descobertas arqueológicas, foi
Moshe Dayan, o mesmo responsável pela política de creeping anexation. Diferente de Yadin,
Dayan não possuía nenhuma formação acadêmica no campo da arqueologia, mas nutria um
interesse pelos artefatos encontrados em escavações. De acordo com Masalha (2014), Dayan
saqueou diversas áreas conquistadas sob seu próprio comando e após 1967, também passou a
investir na compra de antiguidades em lojas palestinas da Cisjordânia e de Gaza. Fosse na
figura de Yadin, Dayan ou de outros líderes sionistas, o compromisso com a arqueologia foi
firmado, envolvendo sempre

[...] a resolução de quebra-cabeças, o que continuamente estendeu a base empírica da


teoria original, uma prática na qual as principais suposições de fundo, nacionalistas e
nacionalizantes, nunca foram questionadas. Simultaneamente, esse debate acadêmico
talvez seja melhor entendido como uma prática contínua da nacionalidade dos
colonos, que repetidamente reencenou e restabeleceu o "coletivo nacional" em forma
empírica, fatos da ciência positiva que surgiram como uma base de evidência
independente sobre a qual o próprio trabalho da arqueologia doravante confiaria e
dentro do qual a antiga nação israelita emergiria como visível. (ABU EL-HAJ, 2001,
p. 100-101, tradução nossa55).

53
First, the claims of “Jewish historical rights in the whole Land of Israel” had a deep basis in mainstream
secular Labour Zionism. Second, the spectacular and manifold consequences of the 1967 military successes
underlined the success of Zionism and the creation of a dynamic, powerful and expansionist settler society. Third,
the mobilization of neo-Zionist, Jewish fundamentalist political and social forces in Israel were highly effective.
Fourth, according to Amos Elon, the territory of Israel prior to the 1967 conquests, though rich in Roman,
Byzantine, Nabatean, Crusader and Muslim historical sites and locations, actually had almost no historical
monuments testifying to an ancient Jewish past.
54
Massada é uma fortaleza que data de 73 d.C., localizada no litoral sudoeste do Mar Morto. Durante a guerra
judaico-romana, cerca de 1000 soldados judeus teriam cometido suicídio após a fortaleza ser cercada pelos
inimigos, em um gesto de heroísmo e martírio que foi cooptado pela narrativa sionista.
55
[...] involve puzzle solving, which continually extended the empirical basis of the original theory, a practice in
which key background assumptions, nationalist, and nationalizing, were never questioned. Simultaneously, this
scholarly debate is perhaps best understood as an ongoing practice of settler nationhood, one that repeatedly
reenacted and reinstantiated the "national collective" in empirical form, facts of positive science that emerged as
an independent evidentiary basis upon which the work of archaeology itself would henceforth rely and within
which the ancient Israelite nation would emerge as visible.

83
Ciente da potência epistemológica da arqueologia, Larissa Sansour (2013) resgata seu
lugar na determinação de DNAs culturais. 56 Em “In the Future”, a protagonista se apodera do
método usado pelo inimigo para disputar, no seu nível, o controle da narrativa. O enterrar das
porcelanas e toda a performance por trás da estratégia indicam como a arqueologia pode ser
instrumentalizada para confirmar só uma verdade já pré-estabelecida, e no caso de Israel, com
carácter excludente. Na realidade do Estado sionista, escavações como as lideradas por Avigad
ou Mazar, em Jerusalém ou em outras partes do território, interpretavam os vestígios
encontrados de acordo com os eventos históricos baseados em acontecimentos bíblicos. Nos
termos de Nadia Abu el-Haj, em “tais argumentos e interpretações, os textos-chave (históricos)
e as evidências-chave (arqueológicas), permanecem em uma relação circular de descoberta,
explicação e prova” (2001, p. 146, tradução nossa). As provas garantem que aquela terra
pertence aos israelitas e a mais nenhum outro povo. Os elementos imagéticos como a
sobreposição de colagens e CGI, compõem um dos objetivos do curta que é expor o caráter
elástico de vestígios arqueológicos e do arquivo:

Um dos pontos de partida foi um amplo arquivo de fotos da vida palestina ao


longo dos séculos passados. Antes que a ideia de um roteiro surgisse, a
intenção era fazer um grande tableau vivant de uma cena de rua palestina
intertemporal, com habitantes de diferentes décadas e séculos reunidos em
um quadro discretamente animado, dando vida ao passado e fazendo uma
ponte temporal. Essa ideia ficou conosco e entrou no roteiro. Como as ações
da protagonista pretendem ser uma intervenção histórica, as revisões futuras
que ela espera causar mudariam efetivamente o passado. Usar o arquivo para
ilustrar o passado em revisão não só pareceu conceitualmente interessante,
mas também aborda o conceito de arquivo em si. O filme explora o impacto
do mito e da ficção no fato e na história, tornando o arquivo e o documentário
instituições maleáveis, sujeitas a narrativas e agendas políticas dominantes
(SANSOUR, 2018, tradução nossa57).

No filme de Sansour, toda a tática da Terrorista Narrativa expõe ao longo de suas falas
a violência oculta do mito fundador que ela implanta no solo: as escavações futuras vão

57
One of the starting points was a comprehensive photo archive of Palestinian life throughout the past centuries.
Before the idea for a script emerged, the intention was to make a grand tableau vivant of a cross-temporal
Palestinian street scene, with inhabitants from different decades and centuries coming together in one discretely
animated frame, breathing life into the past and bridging a temporal gap. This idea stayed with us and made it
into the script. As the protagonist’s actions are intended as a historical intervention, the future revisions she hopes
to cause would effectively change the past. Using archive to illustrate the past undergoing revision not only
seemed conceptually interesting, but also addresses the concept of archive per se. The film explores the impact of
myth and fiction on fact and history, making archive and documentary malleable institutions, subjected to
dominant narratives and political agendas.

84
comprovar a existência de um povo que antecede o atual proprietário da terra. O nome
“Terrorista Narrativa”, as aeronaves militares e as bombas contendo as porcelanas constroem
um clima de combate – mas o confronto não se dá no campo de batalha literal. A luta travada
pela protagonista acontece no centro da narrativa histórica, uma disputa pela legitimidade da
filiação. A comunidade postulada automaticamente anulará a legitimidade de sua antecessora.
Mais do que especular “uma utopia polêmica”, como sugere a interlocutora, a Terrorista desafia
o paradigma imposto e defende sua própria existência apesar dele. O que torna a sua ficção
legítima? Quanto tempo as porcelanas precisam ficar enterradas sob o solo para serem
consideradas reais? A ameaça de sua missão não passa despercebida pelas autoridades locais,
mas a emissão de seu mandado de prisão não paralisa a protagonista. Não há nada mais a ser
perdido, senão a possibilidade de infligir aos seus opressores o mesmo destino ao que foi
condenada: toda a ausência e sofrimento será devolvida no futuro, quando as evidências de sua
invenção forem descobertas. Jogando o mesmo jogo – ou, nas suas palavras, “bagunçando com
a matemática” de seus algozes –, a Terrorista Narrativa assiste ao nascimento de sua nova
ficção:

Figura 16: Imagem capturada de “In the Future” (17.08 min)

No decorrer do filme, a estratégia é posta em prática. A cena do frame acima (figura


16) revela o interior das aeronaves gigantes que aparecem no início do curta, dessa vez
sobrevoando o território e lançando aos poucos as bombas, recheadas de vestígios do povo que
ainda não existe. Ao longo da cena, o diálogo entre as duas personagens segue em voice over,
quando a interlocutora questiona a Terrorista Narrativa:

85
– Por que você fez da arqueologia seu campo de batalha?

– Já era uma linha de frente. Nossos governantes construíram uma Nação


com base na arqueologia. Não se trata mais de história. É uma
epistemologia, uma ferramenta para moldar uma imaginação nacional.
Projetar um estado no passado apoia a ideia de direito histórico. É muito
inteligente.

– Mas cientificamente infundado.

– O rigor científico é irrelevante.

– Estou apenas tentando entender.

– Na sua forma mais pervertida, a arqueologia galvaniza o sentimento


público... confirma mitos do passado e os defende contra o escrutínio.
Agora também fazemos parte desse jogo.

– Por que porcelana?

– A louça ressoa com a nossa ideia do passado. Toda civilização tem louça.
A porcelana passa a ser a marca registrada desse povo. Toda civilização
também tem esqueletos, mas até agora não enterramos nenhuma pessoa. (In
the Future, 2016, 17:57 min, tradução nossa58).

Na trajetória arqueológica sionista, a cerâmica ocupa um lugar fundamental, e Larissa


Sansour faz dessa escolha da Terrorista Narrativa uma referência direta, apontando para a
“vulnerabilidade do método científico a sequestros politizados.” (SANSOUR, 2018, tradução
nossa). Ao longo do filme, a diretora ressalta a crítica à instrumentalização da arqueologia e
como isso resulta, no cenário distópico do curta, em uma “tentativa radical do protagonista de
mudar o equilíbrio de poder, adulterando uma disciplina historicamente instrumental para a
construção da Nação na região.” (SANSOUR, 2018, tradução nossa).
Durante as escavações voltadas para a reconstrução do que chamam de “período
israelita”, arqueólogos sionistas direcionavam suas buscas a artefatos que comprovassem a

58
Why did you make archaeology your battleground?
- It was already a frontline. Our rulers built a nation on archeology. It’s no longer about history. It’s an
epistemology, a tool for shaping a national imagination. Projecting a state into the past supports the idea of
historical entitlement. It’s very clever.
- But scientifically unsound.
- Scientific rigor is irrelevant.
- I’m just trying to understand.
- In its most perverted form, archaeology galvanizes public sentiment… confirms myths of the past and defends
them against scrutiny. Now we are part of that game, too.
- Why porcelain?
- Crockery resonates with our idea of the past. Every civilization has crockery. Porcelain happens to be the
trademark of this people. Every civilization also has skeletons, but so far, we haven’t buried any people.

86
existência de assentamentos puramente israelitas na terra de Canaã. Grandes jarros, resquícios
de cerâmica e fragmentos de artefatos encontrados nas escavações eram encaixados na
cronologia, fundamentando a presença do projeto sionista na Palestina, já que representariam
os descendentes do povo israelita:

Foi interpretando objetos específicos como uma classe de tipos, regularmente


encontrados em tipos particulares de assentamentos de Ferro I, que ele fixou
o alcance cronológico e a etnicidade dos níveis iniciais de ocupação desses
locais de assentamento da Alta Galileia. E, neste trabalho de cerâmica
comparativa, ele se baseou mais centralmente na tipologia e cronologia da
cerâmica apresentada por William F. Albright, o arqueólogo bíblico
amplamente creditado por ter identificado pela primeira vez uma forma
distinta de "cerâmica israelense" (ABU EL-HAJ, 2001, p. 108, tradução
nossa59).

Em suma, o projeto sionista escavava em defesa do seu suposto vínculo com a terra
eleita. Cada jarro, panela e bacia encontradas estimulavam o imaginário dos israelenses,
reiterando que, independente de seu país de origem, os resquícios divinos do seu povo
escolhido ainda estavam ali, uma continuidade sem falhas que só precisava ser escavada. No
mito da terra eleita para o povo escolhido. Em paralelo, o processo é científico também é
invertido no curta e, como a diretora explica, a narrativa a ser confirmada é estabelecida “antes
da escavação dos artefatos que a confirmam”. A Terrorista Narrativa subverte o paradigma,
garantindo que a legitimidade do povo por ela inventado não poderá ser questionada por
ninguém no futuro, nem pelo próprio povo que se inventou antes dele.
Retomamos os relatos de “After the Last Sky” que, aliados aos registros de uma
população dispersa, expressam a recusa em sucumbir a violência oculta do mito fundador de
Israel. Ao lado da foto de um vendedor de água trabalhando nas ruas de Jerusalém em 1984
(Figura 17), Said revela o poder que a imagem tem em desmantelar o argumento de um filósofo
político de que Israel seria o sonho realizado:

Para tal teoria, a presença de um simples vendedor palestino não judeu,


claramente um cidadão de segunda classe - é uma falha séria, e assim a teoria
deve ser cercada com várias proteções que colocam o palestino fora dos
limites, o tornam marginal. Por quê? Porque o palestino, que pode parecer
pitoresco para a maioria das pessoas, é um lembrete de que antes da existência

59
It was by interpreting specific objects as a class of types, ones regularly found in particular kinds of Iron I
settlements, that he fixed the chronological range and ethnicity of the initial occupation levels of these Upper
Galilean settlement sites. And, in this work of comparative ceramics, he drew most centrally on the pottery
typology and chronology laid out by William F. Albright, the biblical archaeologist widely credited with having
first identified a distinctive "Israelite pottery" form.

87
do Estado de Israel havia nativos na Palestina; em vez de reconhecer que
Israel governa uma população colonial, o filósofo deve agora voltar aos seus
próprios argumentos anteriores contra o colonialismo, descobrir méritos na
comunidade colonizadora e depois dizer que, uma vez que o colonialismo é,
afinal, praticado por uma comunidade de pessoas com inegáveis direitos
morais, não pode ser tão ruim. O vendedor ambulante, porém, anda pela rua,
apregoa suas mercadorias e continua como era. Os argumentos não o tocam
(SAID, 1999, p. 141, tradução nossa60).

Figura 17: Fotografia de Jean Mohr

A raiz única insiste em exterminar tudo a seu redor enquanto reitera sua legitimidade
através da arqueologia, da renomeação, da limpeza étnica e do despovoamento. As provocações
de Glissant nos ajudam a localizar as violências desse mito, e o cinema de Sansour nos permite
percebê-las como não tão ocultas assim. Ainda assim, apesar da força linear da raiz única, a

60
Take the case of a political philosopher who argued that Israel was the Zionist dream fulfilled. For such a
theory, the presence of a simple Palestinian vendor-non-Jewish, clearly a second-class citizen - is a serious flaw,
and so the theory must be hedged with various protections that put the Palestinian out of bounds, render him
marginal. Why? Because the Palestinian, who may seem only picturesque to most people, is a reminder that before
the state of Israel existed there were natives in Palestine; rather than acknowledge that Israel rules a colonial
population, the philosopher must now go back over his own earlier arguments against colonialism, discover
merits in the colonizing community, and then say that since colonialism is, after all, practiced by a community of
people with undeniable moral rights, it cannot be so bad. The street vendor, however, plies the street, hawks his
wares, and goes on as he was. The arguments do not touch him.

88
porcelana desafiará a ficção que eliminou o povo da Terrorista Narrativa, e o vendedor de água
desafia a ficção.

89
III
Distopias do presente:
vocês estão aqui por acidente

O peixe,
Mesmo na rede do pescador,
Ainda carrega,
O cheiro do mar

Mourid Barghouti

Na linha do tempo sionista, o presente é o tempo da ação. É nele que se desdobram as


consequências de suas estratégias passadas e é através dele que, por sua lógica, se alcançará o
futuro de Eretz Yisrael. É no presente que líderes se movimentam para manter viva a utopia
dos pais fundadores de Israel, confrontando-se a todo momento com os resquícios da limpeza
étnica e transferência forçada não terminadas. Um exemplo claro disso aconteceu em outubro
de 2021, durante uma sessão do parlamento israelense (Knesset) que discutia um projeto de lei
sobre a imigração para o país. Uma legislação apresentada ao Knesset pelo partido de extrema-
direita sionismo Religioso, visava limitar e restringir a imigração, e durante a discussão,
Bezalel Smotrich, líder do partido, afirmou que Israel deveria permanecer um Estado judeu
para com uma maioria judaica. Ao ser refutado por membros árabes do Knesset, Smotrich
respondeu: “Não estou falando com vocês, antissionistas, apoiadores do terrorismo, inimigos.
Vocês estão aqui por acidente, é um erro que Ben-Gurion não tenha terminado o trabalho e não
tenha os expulsado em 1948.” (SPIRO, 2021).
A fala de Smotrich, que intitula esse último capítulo, sintetiza o lugar ocupado pelos
palestinos no imaginário sionista, aqueles cuja presença é um obstáculo para a completude do
mito do povo escolhido. Smotrich é conhecido por seus pronunciamentos agressivos e
frequentemente fala em uma “segunda Nakba” no intuito de ameaçar os membros árabes do
Knesset. Podemos identificar dois tipos de discursos extremistas na política israelense, sendo
o primeiro deles representado por aqueles que negam a Catástrofe palestina na tentativa de
sustentar o mito da construção pacífica de Israel – quando palestinos teriam voluntariamente
deixado suas casas para acolher imigrantes europeus. Esse grupo reproduz uma violência por
negar aos palestinos o direito de reconhecer seu passado e sua memória. O segundo grupo, no

90
qual Smotrich se encaixa, é composto por israelenses que não só reconhecem a Catástrofe como
sentem-se no direito de evocá-la para manter os palestinos em um constante estado de terror e
vulnerabilidade.
Assim como as falas de Ben-Gurion e Golda Meir, citadas nos capítulos anteriores, a
de Smotrich não existe no vácuo e não deve ser entendida como uma frase atípica, dita por um
representante radical do governo israelense. 61 Em suma, a condição de “acidente” da presença
palestina é uma questão a ser resolvida no presente. Se os palestinos ainda estão ali, por
acidente ou não, o propósito da ocupação colonial é fazer com que eles não mais estejam. Para
isso, todos os aspectos da vida palestina são condicionados a uma realidade distópica, cercados
por aparatos militares de controle e punição.
A fala de Smotrich revela a violência que sonda o presente palestino; Ela expõe o tempo
perturbado da experiência palestina, onde um erro do passado – a não eliminação total dos
palestinos – retarda o futuro utópico imaginado pelos criadores do sionismo, se revela no
presente. O que resta então, para o presente palestino se o futuro já está definido e seu passado
é contestado? Como a ficção cientifica nos ajuda a ver isso? Que partes desse presente estão
nos filmes?

61
Mesmo que os detalhes da política interna israelense não façam parte do escopo dessa pesquisa, cabe ressaltar
que o pensamento radical de Smotrich em relação aos árabes (nos termos dele, pois não se faz o uso do termo
palestinos) não é exclusivo dos políticos de extrema-direita. Sua fala reverbera críticas históricas de membros do
Knesset (como Meir Cohen e Ariel Sharon, de moderados a extremistas) aos políticos trabalhistas, como era Ben-
Gurion, em finalizar o trabalho pela transferência forcada ou pela limpeza étnica. (MASALHA, 2021). E mesmo
os que se dizem sociais-democratas, subvertem a lógica das legendas que supostamente defendem para que a
remoção ilegal dos palestinos continue acontecendo. Essa fala representa a continuidade do projeto sionista,
independente da vertente política que determinado partido diga defender.

91
| Para narrar a distopia do real

No primeiro capítulo, mencionamos que a ficção científica não era a primeira escolha
de Sansour no cinema. A transição para o gênero foi motivada pelos constantes
questionamentos a respeito da veracidade de seus documentários, aos quais eram atribuídos
aspectos tendenciosos e desonestos. A inserção de Sansour na FC promoveu um
aprofundamento ainda maior na questão tempo, questionando, através das imagens, o lugar
dado à Palestina pelos palestinos na linha do tempo: “[...] sempre que falamos da Palestina,
nunca é no presente, mas ou relembrando um passado ou imaginando um futuro melhor”
(SANSOUR, 2013, tradução nossa). A partir desse impulso em direção à FC, fizemos um
trajeto pelos futuros possíveis que seus filmes apresentavam e pelos passados disputados que
resultaram nisso que entendemos como tempo perturbado. Nesse último capítulo, a intenção é
reunir todas as informações para identificar as heranças do passado e as expectativas do futuro
e seu impacto no presente palestino, em seu tempo perturbado do agora.
O presente palestino se torna um lugar de sobrevivência pois as consequências da
ocupação, como o exílio e o deslocamento, fazem com que os palestinos busquem a todo custo
“abrir um caminho para si mesmos na existência, o que para eles não é de forma alguma uma
realidade dada ou estável.” (SAID, 1999, p. 28, tradução nossa). Em “After the Last Sky”,
Edward Said faz uma leitura da condição palestina a partir de sua relação aos tempos e à
continuidade do trauma. Pensando sobre o lugar do retorno no imaginário palestino, Said
ressalta seu impacto no presente palestino, o tempo/espaço no qual as tentativas de retornar são
constantemente frustradas:

A severidade e o rigor na série de verdades difíceis para os palestinos são,


acredito eu, absorvidas em nossa noção de presente. O que existiu no passado
para nós - o lá de nossas memórias - ainda está lá, mas porque é irremediável
e inacessível, adquiriu a textura complexa e impessoal de um muro antigo:
não se pode tê-la e nem penetrá-la. Ainda sim, curiosamente, esse aspecto do
passado pode ser reinscrito no presente. De fato, afeta nosso senso de onde e
como cada um de nós é agora. Você aprende uma forma de cuidar e dar
atenção a sua situação imediata se entende que com o passar do tempo, este
pode também se tornar o lugar que perdeu para sempre, o lugar cuja
identidade está retida somente na experiência repetida de permanecer e depois
seguir em frente. O retorno está fora de questão. Você aprende a transformar
os mecanismos de perda em uma metafísica do retorno constantemente adiada
(SAID, 1999, p. 150, tradução nossa62).

62
The severity and rigor of this series of Palestinian truths is, I believe, absorbed in our notion of the present.
What existed in the past for us - the there of our memories - is still there, but because it is irremediable and

92
Esse adiamento do retorno acontece paralelamente ao avanço do projeto sionista na
Palestina. Enquanto as engrenagens da ocupação seguem em pleno funcionamento,
controlando o território, expandindo assentamentos e segregando o espaço, as possibilidades
palestinas ficam cada vez mais escassas. Em oposição ao tempo da ação que guia o presente
sionista, a experiência temporal palestina pode ser lida como um estado de suspensão:

[...] o caso da Palestina é emblemático por sua condição de estado de exceção


normalizado. Um oximoro apoiado pelo sistema legal israelense e pelas
alianças geopolíticas da região. Segundo essa lógica, a temporalidade na
Palestina teria zonas de suspensão e ilustradas pela figura de um indivíduo
esperando. Eles esperam em postos de controle, em aeroportos, esperam que
os portões sejam abertos para que eles possam cruzar uma estrada israelense
em direção às suas próprias terras cultivadas. As mesmas pessoas esperam
fora das fronteiras israelense / palestina para ter o direito de retornar ou
receber uma autorização de viagem e um visto para poder deixar os territórios.
(AMARAL, 2021, p. 179, tradução nossa63).

A imposição do tempo linear da ocupação israelense atua com êxito ao sustentar a


estrutura violenta da ocupação colonial no território. A suspensão, nesse sentido, é colocada
como consequência do poder israelense e não como uma inércia palestina – é uma interrupção
que não se encerra em si mesma. Por esse motivo, a leitura trazida por Amaral não se opõe, ao
menos conceitualmente, à ideia proposta por Nadia Yaqub (2012), de que os palestinos estão
em uma eterna jornada. Tratando da literatura palestina, focando em autores como Kanafani,
Yaqub ressalta as narrativas “on the road” como próprias da experiência palestina. Para ela, as
narrativas palestinas contemplam as mais variadas formas de percurso, como o exílio e o
retorno, que ainda assim, não garantem uma resolução final para sua questão central. Ao
identificar essa falta de solução, Yaqub defende que:

inaccessible, it has acquired the complex and impersonal texture of an ancient wall: you cannot have it, nor
penetrate it. Yet, curiously, this aspect of the past can be re-inscribed in the present. In fact, it affects our sense
of where and how each of us is now. You have a way of immediately caring and paying attention to your situation
if you understand that over time, this can become the place you lost forever, the place whose identity is retained
only in the recurring experience of staying and then moving on. Return is out of the question. You learn to turn
loss mechanisms into a constantly postponed metaphysics of return.
63
the case of Palestine is emblematic for its condition of a normalized state of exception. An oxymoron supported
by the Israeli legal system and the geopolitical alliances in the region. According to this logic, the temporality in
Palestine would have zones of suspension and illustrated by the figure an individual waiting. They wait in
checkpoints, in airports, wait for gates to be opened so that they might cross an Israeli road towards their own
cultivated land. The same people wait outside of the Israeli/Palestinian borders to have the right to return or to
receive a travel permit and a visa to be able to leave the territories.

93
A existência continuada de milhões de refugiados palestinos sugere que,
metaforicamente falando, os palestinos ainda estão “na estrada”, no sentido
de que não voltaram para seus lares originais nem encontraram novas pátrias
nos lugares em que agora residem. Em vez disso, eles estão presos em um
espaço liminar; o estado de estar “na estrada” é constitutivo de sua identidade.
Além disso, embora nem todos os palestinos sejam refugiados, politicamente
falando, todos os palestinos permanecem “na estrada” na medida em que
ainda não houve uma resolução para os eventos históricos que levaram à sua
desapropriação. Em outras palavras, a condição de ter sua identidade moldada
pelas aspirações de uma pátria e não pela fundação de um Estado pode ser
traduzida metaforicamente como uma jornada em andamento (YAQUB,
2012, p. 306, tradução nossa64).

A suspensão e o movimento, mesmo que fundamentalmente opostos, estão


concomitantemente presentes na experiência palestina, mas de forma alguma estão atrelados à
apatia em relação à situação imposta. Diversos são os métodos de resistência praticados
diariamente pela população que vive sob ocupação que desafia a realidade distópica a eles
imposta:
Após a criação de Israel, os sionistas pretendiam que a espera dos palestinos
se tornasse absurda e que eles finalmente sucumbissem ao tempo matemático
dos sionistas. Isso nunca aconteceu e a resistência do tempo dos palestinos
tornou-se seu sumud65 (firmeza). Isso ficou evidente não apenas pela
resistência contra o colonizador, mas também por várias outras formas de arte,
cinema e literatura (SINGH, 2019, p. 322, tradução nossa66).

O presente palestino está em constante choque com a realidade sionista, a mesma que
designa sua existência como um acidente, um erro histórico a ser corrigido. A experiência
palestina – seja ela de adiamento, suspensão, jornada em processo ou de uma mistura dos três
– transborda nas narrativas. A arte, e aqui podemos relembrar o conceito de arte sublime de
Rancière, se apresenta no campo de batalha da narrativa na tentativa de superar o que Said

64
The continued existence of millions of Palestinian refugees suggests that metaphorically speaking the
Palestinians are still ‘on the road,’ in the sense that they have neither returned to their original homes nor found
new homelands in the places they now reside. Rather, they are caught in a liminal space; the state of being ‘on
the road’ is constitutive of their identity. Moreover, while not all Palestinians are refugees, politically speaking,
all Palestinians remain ‘on the road’ in that there has not yet been a resolution to the historical events that led to
their dispossession. In other words, the condition of having one’s identity shaped by aspirations for a homeland
rather than by the founding of a state can be rendered metaphorically as a journey in progress.
65
Preservo a nota de rodapé do texto: “Isso significa firmeza ou perseverança e é característico da resistência
palestina diante da opressão. Isso originalmente tomou forma como uma ferramenta política e tema ideológico
após a Guerra dos Seis Dias de 1967.”
66
After the creation of Israel, the Zionists intended that the waiting of the Palestinians would be made absurd and
that they would finally succumb to the mathematical time of Zionists. This never happened and the Palestinians’
endurance of time became their sumud18 (steadfastness). This was made evident not only through their resistance
against their colonizer but also through various other forms of arts, movies and literature.

94
(1999) chama de impossibilidade quase metafísica de representar o presente. Falar sobre a
Palestina em termos de ficção cientifica não é fazer um grande esforço, é só retratar a realidade
a partir das lentes de quem vive a distopia do real.
É fato que a ficção científica, enquanto gênero, nunca dominou as narrativas palestinas.
No entanto, essa realidade começa a ser revertida à medida que autores e diretores passam a
identificar a proximidade entre distópico e real e as possibilidades que a FC oferece à Palestina.
Um exemplo disso é a recém-lançada antologia intitulada “Palestine +100”. Editada por Basma
Ghalayini. Ela reúne 12 contos palestinos que especulam sobre futuros variados para a
Palestina em 2048, 100 anos após a Nakba.
Autores como Saleem Haddad, Majd Kayyal, Selma Dabbagh, Rawan Yaghi entre
outros, utilizam-se da ficção especulativa para retratar a catástrofe do presente distópico
palestino. Do ponto de vista literário, “os mundos futuros apresentados em ficções
especulativas são invariavelmente o resultado de extrapolações ou acelerações das atuais
tendências sociais e políticas” (HILDEBRAND apud BOTTEGA; STANKIEWICZ, 2020, p.
111). O gênero, ou subgênero, pode ainda ser entendido das seguintes formas:

O termo “ficção especulativa” tem três significados historicamente


localizados: um subgênero de ficção científica que lida com problemas
humanos e não tecnológicos, um gênero distinto e oposto à ficção científica
em seu foco exclusivo em futuros possíveis e uma supercategoria para todos
os gêneros. que deliberadamente se afastam da imitação da “realidade
consensual” da experiência cotidiana (OZIEWICZ apud GADPAILLE, 2018,
p. 20, tradução nossa67).

Na introdução do livro, Ghalayini traça um breve panorama da FC nas narrativas


palestinas, explicando que um dos motivos pelos quais o gênero se popularizou entre palestinos
é que “o presente cruel (e o passado traumático) tem um domínio muito firme na imaginação
dos escritores palestinos para aventuras fantasiosas em futuros possíveis” (GHALAYINI,
2019). Citando obras como “A Cry in a Long Night” e “In Search of Walid” Masoud, de Jabra
Ibrahim Jabra, ou “Homens ao Sol” e “Voltando para Haifa”, de Ghassan Kanafani, Ghalayini
articula o peso do passado, e mais diretamente da Nakba, nas narrativas centrais da Palestina.
Essa suposta incumbência atribuída aos palestinos por eles mesmos em relembrar o passado

67
The term “speculative fiction” has three historically located meanings: a subgenre of science fiction that deals
with human rather than technological problems, a genre distinct from and opposite to science fiction in its
exclusive focus on possible futures, and a super category for all genres that deliberately depart from imitating
“consensus reality” of everyday experience.

95
teria uma influência prolongada na cronologia da literatura e do cinema palestinos. Em outras
palavras, a FC se apresentaria quase como um privilégio, um luxo que os palestinos
considerariam difícil de bancar. Além disso, Ghalayini supõe ainda que a “falta de um ajuste
óbvio” da FC à situação palestina, pode ter contribuído para esse distanciamento:

Na FC clássica, as linhas de batalha são traçadas de forma rápida e simples: a


oposição moral entre um protagonista típico da FC e a distopia ou inimigo
que ele se encontra enfrentando é diametralmente. Mas na ficção palestina, a
ideia de um “inimigo” está em grande parte ausente. Os israelenses quase
nunca aparecem como indivíduos e, quando o fazem, raramente são retratados
como vilões declarados (GHALAYINI, 2019, introdução, tradução nossa68).

De fato, em clássicos da FC, seja no cinema ou na literatura, geralmente acompanhamos


a trajetória de heróis que lutam contra invasões extraterrestres ou inimigos poderosos que
contam com um aporte tecnológico para destruir seus alvos. No entanto, nos filmes de Sansour,
o inimigo não aparece em destaque nem mesmo em “In the Future”. O foco das narrativas é
sempre nos palestinos, seja na astronauta, nos habitantes do Nation Estate ou na Terrorista
Narrativa e sua irmã. Esse inimigo, o carrasco das histórias palestinas, ocupa uma presença-
ausente: depois do muro que separa o arranha-céu do território vertical ou nas colagens
estáticas que compõe o cenário de “In the Future”. Mas a ausência de um inimigo não é a única
ausência na ficção palestina, de acordo com Basma Ghalayini:

Você pode até dizer que a ausência geralmente é uma das características
definidoras da ficção palestina – que é onde a ficção científica pode
contribuir. A ausência, e os sentimentos de isolamento e distanciamento que
a acompanham, são fáceis de ampliar em um contexto de tecnologia galopante
e futura (GHALAYINI, 2019, introdução, tradução nossa69).

Assim como nos contos de “Palestine +100”, a ausência marca toda a trilogia de
Sansour. Ela ocupa o centro da narrativa em “In the Future”, se dividindo entre a supressão do
povo da Terrorista Narrativa e a morte de sua irmã. “A Space Exodus”, o sentimento de
isolamento é elevado ao máximo quando a astronauta é lançada ao vazio espacial depois de

68
In classic SF, the battle lines are drawn quickly and simply: the moral opposition between a typical SF
protagonist and the dystopia or enemy he finds himself con fronting is a diametric one. But in Palestinian fiction,
the idea of an 'enemy' is largely absent. Israelis hardly ever feature, as individuals, and when they do, they are
rarely portrayed as out-and out villains.
69
The absence of an 'enemy' isn't the only absence in Palestinian fiction. You might even say absence generally
is one of the defining features of Palestinian fiction - which is where science fiction might be able to contribute.
Absence, and the feelings of isolation and detachment that come with it, are easy to magnify in a context of
galloping, future technology.

96
perder o contato total com Jerusalém. Em “Nation Estate”, de forma ainda mais pontual que
nos outros dois, a tecnologia por trás da high life acentua a ausência do território, da identidade
e da. Esse movimento do curta se assemelha ao que ocorre na antologia quando “a tecnologia
do futuro, embora projetada para aliviar conflitos ou amenizar traumas, só consegue exacerbá-
los.” (GHALAYINI, 2019, introdução, tradução nossa). Em geral, os usos da tecnologia são
chaves essenciais em narrativas de FC. Ao longo da história, utopias foram imaginadas com
base nas expectativas sobre os avanços tecnológicos:

O desenvolvimento tecnológico permitir-nos-ia atualizar as nossas aspirações


de melhoramento da condição humana ou, no limite, de escape a esses
mesmos condicionamentos. A ideia de “salvação” é então, literalmente,
transposta da teologia para a tecnologia, acompanhando a própria utopia da
transcendência, de viver eternamente num espaço perfeito (o Paraíso). [...] Ao
desenvolver-se historicamente, a utopia transforma-se em ficção científica e,
no mesmo gesto, em distopia. Desemboca, por fim, no ciberespaço, momento
em que a utopia se aproxima do aqui e agora (MOURA, 2014, p. 104).

Já nos cenários distópicos, a tecnologia protagoniza histórias de controle e vigilância


em sociedades fictícias dominadas por governos autoritários e opressores, como é o caso das
obras de Margaret Atwood, por exemplo. Por conta desses usos da tecnologia nas narrativas de
FC, Ghalayini afirma que o disfarce de ficção científica não é uma “mudança drástica de
figurino” para palestinos (GHALAYINI, 2019, introdução, tradução nossa). Como já
mencionamos em outros momentos, os postos de controle espalhados, os checkpoints,
distribuição de soldados fortemente armados pelo território, entre outros fatores, submetem a
vida palestina a uma distopia real. No primeiro capítulo, quando trouxemos o conceito de
aesthesis decolonial para a discussão, o intuito era ressaltar seu papel em decolonizar os
sentidos que, de acordo com Mignolo e Vazquez, estariam presos à estética moderna, pós-
moderna e altermoderna. Escolher a opção da aesthesis decolonial é optar por uma intervenção
crítica no mundo da arte contemporânea, permitindo que o artista confronte a hegemonia da
estética moderna e suas limitações (MIGNOLO; VAZQUEZ, 2019). Essas limitações impostas
dificultam o entendimento da relevância da FC no contexto palestino, não simplesmente como
um gênero cinematográfico fechado que produz metáforas surreais da realidade palestina. O
que queremos dizer é que, indo ao encontro com a aesthesis decolonial, o uso da FC no
contexto palestino não se reduz a uma metáfora sobre a sociedade em questão, porque ela
elimina de vez a divisão entre real e fictício porque tudo que se vive é distopia. Nas palavras
da diretora:

97
Trabalhar com ficção científica oferece muita maleabilidade na forma como
escolho comentar as questões atuais. Há uma tendência ao abordar temas
políticos acalorados ou urgentes a cair em um discurso já estabelecido e não
flexível. Geralmente, é preciso aceitar a premissa dos argumentos que
precederam sua contribuição. A ficção científica me ajuda a postular uma
nova equação na qual uma nova abordagem pode ser formulada. Assim, o
trauma, o medo e as fantasias pretendem ocupar o espaço embaçado entre a
fantasia e a realidade e, como na maioria dos meus trabalhos, questionar a
base de nossa compreensão do que significa realidade (SANSOUR, 2018,
tradução nossa70).

Se a imagem, como nos diz Rancière (2012, p. 14), nunca é uma realidade simples e
sim um conjunto de “operações, relações entre o dizível e o visível, maneiras de jogar com o
antes e o depois, a causa e o efeito”, o que a complexidade da trilogia de ficção científica nos
revela sobre o presente? O que a deriva de uma astronauta palestina diz sobre as consequências
da ocupação no cotidiano palestino? O que a solução vertical nos aponta sobre as invasões
ilegais do território? E de que forma as escavações da Terrorista Narrativa nos mostram a
atualidade de um mito que não cessa em se construir?

70
Working with science fiction offers a lot of malleability in how I choose to comment on present day issues. There
is a tendency when addressing heated or urgent political topics to fall into an already established and non-flexible
discourse. One then generally has to accept the premise of the arguments that preceded your contribution. Science
fiction helps me posit a new equation in which a new approach to can be formulated. So, the trauma, fear and
fantasies are intended to occupy the blurry space between fantasy and reality and, like in most of my work, to
question the basis of our understanding of what reality means.

98
| Homônimos da distopia

Em abril de 2020, a organização Human Rights Watch lançou o relatório “Um limite
ultrapassado: autoridades israelenses e os crimes de apartheid e perseguição”, denunciando a
prática do apartheid contra os palestinos. Nas 213 páginas do relatório, a HRW traça um breve
panorama histórico e cita políticas israelenses voltadas para o estabelecimento de uma maioria
judaica na Palestina. No entanto, o apartheid denunciado pela HRW não é diretamente
atribuído ao sionismo, e sim tratado como uma consequência da política israelense, na qual
figuras como Shimon Peres, Benjamin Netanyahu, Ariel Sharon e Bezalel Smotrich colocaram
e seguem colocando em prática a intenção de dominar, uma das caraterísticas do regime de
apartheid. Considerando a Convenção do Apartheid e o Estatuto de Roma como fontes, a HRW
define o crime de apartheid a partir de três elementos primários:
a intenção de manter um sistema de dominação de um grupo racial sobre
outro; opressão sistemática de um grupo racial sobre outro; e um ou mais atos
desumanos, conforme definidos, realizados de forma generalizada ou
sistemática de acordo com essas políticas. de reservas separadas e guetos” e
negação do “direito de sair e retornar ao seu país, [e] o direito a uma
nacionalidade.” (HRW, 2021, p. 6, tradução nossa)

O relatório foca em três pontos principais para justificar a acusação contra Israel, sendo
elas a “Intenção de manter dominação”, “Opressão sistemática e discriminação constitucional”
e “Atos desumanos e outros abusos de direitos fundamentais”. Na mesma linha, denúncias
semelhantes foram feitas por outras instituições nacionais e internacionais, como a B’Tselem,
organização não-governamental israelense, que em janeiro de 2021, lançou a publicação
intitulada “A regime of Jewish supremacy from the Jordan River to the Mediterranean Sea:
This is apartheid”. De maneira menos direta que a HRW, B’Tselem não traz análises históricas
e nem mesmo cita o sionismo em seu relatório, justificando que essas questões estão “para
além do alcance de uma organização de direitos humanos.” (B’TSELEM, 2021). A denúncia
mais recente do apartheid israelense foi feita pela Anistia Internacional em fevereiro de 2022.
O relatório “Apartheid de Israel contra os palestinos: sistema cruel de dominação e crime contra
a humanidade” faz um caminho semelhante ao do HRW, com um aprofundamento histórico e
conceitual do apartheid na lei internacional.
A análise minuciosa das práticas de apartheid realizadas contra os palestinos, o próprio
título do relatório da HRW ignora que o “limite” foi ultrapassado quando o Estado israelense
se instituiu através da limpeza étnica e da transferência forçada. Como Dalya Al Masri (2022)

99
aponta, o relatório da Anistia Internacional, e das outras organizações em geral, falha em
“capturar com precisão qual é o problema, em detrimento dos palestinos, mas para o conforto
do público ocidental”. Masri ressalta ainda que, décadas antes desses relatórios, pesquisadores
palestinos já faziam a correlação entre o regime de apartheid instaurado na África do Sul e a
prática sionista na Palestina. Ainda em 1965, Fayez Sayegh escreveu que

(...) em sua prática de discriminação racial contra os vestígios de árabes


palestinos, o Estado colonizador sionista aprendeu todas as lições que os
vários regimes discriminatórios dos estados colonizadores brancos na Ásia e
na África podem ensinar. E provou-se neste esforço um aluno ardente e apto,
não incapaz de superar seus professores. Pois, enquanto os apóstolos
africânderes do apartheid na África do Sul, por exemplo, proclamam
descaradamente seu pecado, os sionistas praticantes do apartheid na Palestina
protestam sedutoramente sua inocência! (SAYEGH, 1965, p. 27, tradução
nossa71).

Analisar o desenvolvimento e expansão do Estado de Israel desde a Nakba ajuda a


entender que a aplicabilidade do regime de apartheid não é recente, e esse ponto sempre esteve
claro para autores como Sayegh. Para Masri, além do diagnóstico tardio, as ONGs também
ignoram o fato do apartheid não representar a totalidade da realidade distópica palestina, mas
sim um de seus sintomas:
Israel não está “praticando o apartheid”, mas sim sustentando a ocupação
colonial através do sistema de apartheid, assim como faz com detenções
administrativas e execuções. [...] O objetivo geral do sionismo é a eliminação
da população autóctone na Palestina e a manutenção de uma ocupação
permanente. É o que motivou a limpeza étnica que criou Israel, bem como as
décadas de apartheid que se seguiram. Assim, o apartheid em Israel não pode
ser descrito adequadamente sem mencionar sua relação com o sionismo
(MASRI, 2022, tradução nossa72).

Embora o reconhecimento do regime de apartheid seja extremamente importante para


a causa palestina – pelo menos como embasamento de argumentos contra financiamento militar
a Israel –, as ONGs entram para o debate de uma forma superficial, desviando-se do problema

71
in its practice of racial discrimination against the vestiges of Palestinian Arabs, the Zionist settler-state has
learned all the lessons which the various discriminatory regimes of white settler-states in Asia and Africa can
teach it. And it has proved itself in this endeavor an ardent and apt pupil, not incapable of surpassing its teachers.
For, whereas the Afrikaner apostles of apartheid in South Africa, for example, brazenly proclaim their sin, the
Zionist practitioners of apartheid in Palestine beguilingly protest their innocence!”
72
Israel is not ‘practicing apartheid,' but instead sustaining settler colonialism through the system of apartheid,
just as it does with administrative detention and executions. [...] The overarching goal of Zionism is the
elimination of the Indigenous population in Palestine, and the maintenance of a permanent occupation. It's what
motivated the ethnic cleansing that created Israel, as well as the ensuing decades of apartheid. So, apartheid in
Israel can't be properly described without mentioning its relation to Zionism.

100
central que é a ocupação. Como Masri cita em seu texto, a própria Anistia Internacional
declarou em suas redes sociais que seu posicionamento não é sobre a ocupação, mas sobre as
“obrigações do governo israelense, como potência ocupante, sob a lei internacional”. Sem um
verdadeiro aprofundamento no impacto da ocupação, essas mesmas organizações que
supostamente denunciam os abusos de poder israelenses, equiparam qualquer movimento de
resistência por parte da população palestina à violência propagada pelo exército israelense.
Além disso, as recomendações das ONGs incluem pedidos para que os palestinos aguardem o
fim da ajuda militar e a venda de armas a Israel, pressionando essas ações por meio de políticas
eleitorais e lobby (HRW, 2021; ANISTIA INTERNACIONAL, 2022).
O estado de suspensão dos palestinos também é preservado por essas movimentações
políticas que se desviam da resolução concreta e se aprofundam na camuflagem da estrutura
opressora. Esse impasse político imposto aos palestinos pela comunidade internacional se
aproxima do que Larissa Sansour chama de limite na discussão sobre a Palestina. Aos
palestinos cabe aguardar pequenas demonstrações de apoio enquanto suas narrativas são
ignoradas e sua resistência é desencorajada. Durante uma entrevista, Sansour justifica o uso da
ficção científica pelas diversas possibilidades que o gênero oferece ao tratar da questão
palestina, sem nunca a separar da realidade política (SANSOUR, 2018, tradução nossa).
Nesse sentido, a protagonista de “In the Future” toma para si, e para o grupo de
resistência que ela lidera, o dever de solucionar aquilo que parece então ter solução. A disputa
que ela trava pelo controle do tempo e da narrativa de seu próprio povo denuncia o abandono
sentido pela população palestina. Abandono esse que se renova a cada semana em Sheikh
Jarrah, onde a corte israelense trabalha a favor das demolições ilegais de casas palestinas. A
situação em nesse bairro de Jerusalém, que atraiu considerável atenção internacional em 2021,
segue deteriorando. Em janeiro de 2022, oficiais israelenses travaram uma guerra particular
contra a família Salhiyeh, cuja propriedade em Sheikh Jarrah abrigava cerca de 40 pessoas.
Frente à invasão e demolição iminente de sua casa, Mahmoud Salhiyeh entrincheirou o terreno
e subiu no telhado com um tanque de gás, ameaçando atear fogo a si mesmo e à sua residência
(MEMO, 2022). As Forças de Ocupação deixaram o local após 10 horas de impasse, mas
retornaram durante a noite para demolir a casa. Durante uma entrevista ao jornal “Middle East
Eye”, Mahmoud afirmou: “Eu ia me incendiar, porque todos os dias estou morrendo, estou
morrendo há 25 anos” (AL-SHAMANI, 2022, tradução nossa).
O que pode ser entendido como extremismo da parte de Salhiyeh, é a resposta possível
em face do horror da ocupação que se estende por décadas. Em “In the Future”, podemos
identificar situação semelhante quando a protagonista afirma que o mandado de prisão não lhe

101
assusta, e muito menos importa-se em discuti-lo. O ato extremo da Terrorista Narrativa também
se configura na elaboração de um plano que devolve, na mesma medida, a violência imposta
ao seu povo no passado. Durante o diálogo, quando questionada pela interlocutora se, ao dar
origem a um povo falsificado, ela não estaria aceitando o apagamento do seu próprio, a
Terrorista responde: “É justamente o contrário. Eles são nós, e nós somos eles. Eles
reivindicarão a terra em nosso nome” (In the Future, 14.33 min). Assim como Mahmoud
Salhiyeh não se importa em morrer pela sua casa – que equivale a sua liberdade, ao seu direito
que é negado –, não importa se o outro povo vai pleitear o direito à terra, porque o que os
extremos das duas situações revelam é a impossibilidade da vida nas condições que se
apresentam, é o ápice desse impasse causado pela ocupação. O que importa é não ceder à
opressão, é disputar as narrativas e o controle do tempo ao passo que também disputam o direito
de aterrorizar seu algoz, das formas que forem possíveis.
Esse sentimento de distopia atrelado à experiência temporal palestina – o mesmo que
permite uma identificação automática entre os filmes de Sansour com a realidade palestina – é
implementando e reforçado diariamente pela estrutura da ocupação colonial israelense. Reiterar
esse ponto pode parecer repetitivo, mas faz-se necessário para que haja uma compreensão
extensiva da relação temporal com a situação política à qual os palestinos estão submetidos.
Corroborando com as análises de Wolfe, Masalha e Sayegh, Andy Clarno traz uma definição
para a ocupação colonial como uma estrutura que gira em torno de etnia e território:

A ocupação colonial é uma forma de colonização marcada por esforços


contínuos para deslocar populações locais e expropriar suas terras para
estabelecer ou expandir uma sociedade dominada por colonos. [...] No centro
dos projetos coloniais de assentamento estão a terra, a raça e o Estado. A
colonização, nesse sentido, refere-se ao processo de estabelecimento do
controle da terra por meio do deslocamento, expropriação e assentamento.
(CLARNO, 2017, p. 5, tradução nossa73).

Em meio a essas estruturas racializadas da dominação colonizadora, a geografia


violentada (RESENDE, 2017) da Palestina é recortada por muros, túneis e postos de controle
estrategicamente posicionados para interromper o trânsito ou dificultar a locomoção no espaço.
A ocupação colonial de Israel na Palestina atua para fragmentar seu território, vigiar os

73
Settler colonialism is a form of colonization marked by ongoing efforts to displace local populations and
expropriate their land in order to establish or expand a society dominated by settlers. [...] At the core of settler
colonial projects are land, race, and the state. Colonization, in this sense, refers to the process of establishing
control over land through displacement, expropriation, and settlement.

102
palestinos e mantê-los em reclusão. Em “Necropolítica”, Achille Mbembe (2018) faz uma
distinção entre a ocupação colonial moderna e o que chama de ocupação colonial tardia. A
primeira seria aquela realizada pelos Impérios para demarcar e afirmar controle geográfico e
físico, cuja territorialização resultou na criação de fronteiras e hierarquias, categorização dos
indivíduos, extração de recursos naturais. A segunda, difere da primeira por aspectos como
“combinação disciplinar, biopolítica e necropolítica”:

[...] a ocupação colonial contemporânea é uma concatenação de vários


poderes: disciplinar, biopolítico e necropolítico. A combinação dos três
possibilita ao poder colonial dominação absoluta sobre os habitantes do
território ocupado. O “estado de sítio” em si é uma instituição militar. Ele
permite uma modalidade de crime que não faz distinção entre o inimigo
interno e o externo. Populações inteiras são o alvo do soberano. As vilas e
cidades sitiadas são cercadas e isoladas do mundo. O cotidiano é militarizado.
É outorgada liberdade aos comandantes militares locais para usar seus
próprios critérios sobre quando e em quem atirar. O deslocamento entre
células territoriais requer autorizações formais. Instituições civis locais são
sistematicamente destruídas. A população sitiada é privada de seus meios de
renda. Às execuções a céu aberto somam- se matanças invisíveis (MBEMBE,
2018, p. 48).

Tratando-se da disputa territorial na Palestina, umas das possíveis imagens acionadas


na memória é o terror e o caos da Faixa de Gaza. Naquele espaço de confronto e reclusão as
vidas palestinas tentam seguir seu caminho apesar das faltas que aparecem em todo canto.
Hamid Dabashi (2006) afirma que o cinema palestino tem em seu núcleo criativo a presença
dominante de uma ausência, corroborando com a visão de Ghalayini sobre a FC palestina. As
mesmas ausências do passado persistem no futuro de Larissa Sansour, e ainda são inflamadas
pela atmosfera futurista e moderna de seu novo lar. Novamente, é possível notar que no
estabelecimento dessas faltas constantemente marcadas, o curta de Larissa Sansour apresenta
sua principal ligação com a atualidade da questão palestina.
Logo no início do curta, os trilhos do metrô que leva a protagonista para seu destino
final expõem as proximidades entre a realidade dos palestinos e a distopia narrada podem ser
notadas, na medida que se constrói uma reflexão sobre o mundo a partir deste lugar particular
escolhido pela diretora. Ao enunciar o nome da companhia “Ammam Express” como a
responsável pela linha de trem que leva os palestinos ao Nation Estate, o relaciona com o fato
de, na realidade, a cidade de Amã, na Jordânia, ser o único portão de entrada e saída de
palestinos da Cisjordânia. Da mesma forma, o enquadramento de câmera mostra em plano
detalhe os dispositivos de identificação impostos à personagem na chegada ao novo território,
acionando um jogo de memória com os atuais checkpoints espalhados pela Cisjordânia com o

103
intuito de controlar a entrada e saída de todos os habitantes palestinos, destituindo o Nation
Estate de qualquer soberania concedida a uma Nação.
Ainda nesse jogo de constituição e formulação, é possível encontrar no Nation Estate
algumas outras similaridades com a Palestina do presente. Semelhante ao território da Faixa de
Gaza, o prédio é perfeitamente controlável, tanto por sua disposição vertical quanto pelo único
acesso possível - além do enorme muro que o cerca e das torres de controle que marcam a
constante vigilância. Por tais características, a Faixa de Gaza é chamada por seus residentes de
“a maior prisão a céu aberto do mundo”. A sensação de enclausuramento na Palestina vertical
do futuro produz sentidos semelhantes a esse, mesmo que lá os palestinos não estejam
constantemente sob o alvo de soldados israelenses e expostos à violência como em Gaza.
Lembrando Michel Foucault (2007, p. 7), “no mundo das prisões, como no mundo dos
cachorros, a verticalidade não é umas das dimensões do espaço, é a dimensão do poder”. A
presença do muro ao redor do prédio é exibida pela primeira vez no início do curta, como
mostrado previamente, mas na cena final, fica mais clara. Em um movimento de zoom out, a
câmera afasta-se do apartamento da protagonista para enquadrar em completude o Nation
Estate reafirmando, portanto, o lugar do palestino aprisionado em seu próprio território.
Novamente, através desse jogo com o futuro distópico, a diretora constrói uma ponte
entre o Nation Estate e o “espaço interrompido ou confinado” da Palestina. O futuro distópico
parece se misturar com o presente concreto, onde a (re)instauração de um Estado palestino é
inviabilizada pelo poder colonialista de Israel. No curta de Larissa Sansour, é possível analisar
drasticamente os impactos homogeneizadores do tempo globalizado, ao mesmo tempo em que
pode-se observar a persistência das culturas temporais palestinas. Segundo Resende e Thies,

O modo como o tempo é vivenciado e negociado por atores sociais, portanto,


difere muito no que diz respeito aos contextos culturais, geográficos e
situacionais. O tempo pode ser entendido como um produto das práticas
comunicativas que exprimem certas competências (interculturais) em nome
dos atores sociais (RESENDE; THIES; 2017, p. 5).

A lógica linear que sustenta a ideia de sociedades complexas como superiores às


simples é expressa no cerne do filme, através da imposição do arranha-céu como estilo de vida
ideal para os palestinos, onde estes “finalmente” podem ter um alto padrão de vida. A
construção, símbolo da modernização e do desenvolvimento para o mundo globalizado,
interfere na paisagem e no modo de vida dos palestinos que ali são obrigados a viver. O controle
social é feito tanto pelo espaço quanto pela imposição dessa lógica temporal, atuando sob uma

104
violência diferente da ocupação colonial da realidade, mas ainda sim de grande impacto no
novo Estado vertical.
Através do caminho feito pela protagonista, podemos identificar resquícios da
ocupação no presente no Nation Estate. Ainda no lobby do prédio, os indicadores dos andares
que compõem o arranha-céu listam opções como “Missões diplomáticas”, “Auxílio e
desenvolvimento” e “ONGs”. As instituições que prestam tais serviços na Palestina ocupada,
uma continuidade do estado de vulnerabilidade no qual a população ainda se encontra. Em
outra cena, já dentro do elevador – ou na principal avenida vertical do Nation Estate –, uma
tela mostra diferentes anúncios sobre problemas enfrentados pelos palestinos. O close up na
tela primeiro mostra na Figura 18, um anúncio da empresa “Norwegian Fjords” como
fornecedora de água da semana oferece uma solução ao problema da água que se estende ao
futuro. No presente, a falta do recurso é causada pelo desvio anual de 80% da água feito no
aquífero da Cisjordânia por parte de Israel, reduzindo o uso diário dos palestinos a 70 litros por
pessoa, quando a recomendação da OMS é de 100. Na região onde o arranha-céu se encontra,
não existe escassez natural de água pois o volume de chuva anual chega a 619mm, sendo mais
do que suficiente para abastecer a população (VP, 2013).

Figura 18: Imagem capturada de Nation Estate (03:01 min)

Novamente, a tecnologia imaginada na FC serve para exacerbar a realidade da vida


sob ocupação. O anúncio seguinte é um lembrete da limitação à qual a população do Estado
vertical está submetida. “Lembrem-se de validar seus documentos para viagem” – informa o
anúncio. Esses pequenos detalhes infiltrados na vida cotidiana do Nation Estate, são versões
amenizadas da presença da ocupação na vida palestina. É possível fazer uma relação com o

105
exposto por Said em “After the Last Sky”: “a violência contra nós continua atingindo cada
pequeno canto de nossas vidas, intervindo e estabelecendo uma presença inimiga onde
pensávamos estar mais seguros” (SAID, 199, p. 135, tradução nossa).

Figura 19: Imagem capturada de “Nation Estate” (03:07 min)

A forte marca das ausências combinada ao extremismo repetitivo dos modelos lineares
(MBEMBE, 2017), revela o que há de tão familiar entre a ficção científica de Sansour e o
presente palestino. Segundo Achille Mbembe (2016), a ocupação israelense na Palestina
funciona atualmente como uma espécie de laboratório para técnicas de controle e vigilância e
separação que constituem um devir terrível para os palestinos. Tal colocação permite também
pensar na sobreposição temporal, pois este futuro que se espera para a Palestina já está atuante
no presente. Mesmo no curta de Sansour, onde um futuro é imaginado, tais características
parecem atravessar o tempo, excluindo a possibilidade da linearidade temporal, como se o
futuro estivesse sobreposto ao presente, e apresentando a estética do filme nesse tempo
perturbado. De certa forma, a imposição de uma estrutura temporal homogeneizadora e o não-
rompimento com essa ordem, resultam em um esvaziamento do futuro palestino, onde as
possibilidades do retorno a um horizonte livre são dissolvidas em face à verticalidade imposta.
A sobreposição de regimes e estratégias que compõem a estrutura da ocupação colonial
israelense também é o que torna mais tangível a metáfora por trás de “A Space Exodus”. “É
mais fácil chegar na lua do que em Jerusalém” é uma frase comum entre os palestinos, e pode
ser adaptada para qualquer outra cidade ou vila dos Territórios Ocupados. Aos palestinos que
permanecem, a locomoção entre cidades é fracionada em diversos checkpoints espalhados pelo

106
território, e aos que recorreram à diáspora, o retorno esporádico para reencontros é comumente
interrompido ainda na chegada à Israel ou à Jordânia. Larissa Sansour refere-se ao curta em
questão como uma espécie de “autobiografia” 74, pois mesmo tendo nascido em Jerusalém, não
retorna à cidade há mais de quinze anos porque as autoridades israelenses não lhe autorizam a
entrar na cidade desde que começaram a construir o “Muro da Separação”. 75 Sobre seus filmes
e a relação com os cenários exagerados para relatar a situação palestina, Sansour afirma que:

Também sou muito fascinada pela ideia de hipérbole no assunto, bem como
na produção. Gosto da ideia de exagerar na produção de uma obra de arte e
gosto da maneira como ela afasta o trabalho de um espaço meditativo de
reflexão para uma ferramenta mais direta e impactante que pode competir
com o mainstream. Eu gosto de todos esses jogos de poder, que têm muito a
ver com contextualização (SANSOUR, 2013, tradução nossa76).

Se o acesso a Jerusalém ou à Cisjordânia já é dificultado, a entrada e saída de Gaza


torna-se praticamente impossível. Por conta do cerco imposto por Israel há 15 anos, a situação
em Gaza é ainda mais drástica do que nas outras partes do território. Os 365 km 2 da Faixa de
Gaza, que comportam cerca de dois milhões de palestinos, são totalmente controlados por
Israel. As condições impostas pela ocupação israelense transformam “A Space Exodus” de uma
metáfora para uma hipérbole em 2021, quando um engenheiro aeroespacial natural de Gaza se
tornou o primeiro palestino a participar das missões da NASA para Marte. Loay Elbasyouni,
nascido em Beit Hanoun, em Gaza, fez parte da equipe responsável pela viagem do helicóptero
Ingenuity ao planeta vermelho. Elbasyouni, que deixou Gaza para estudar nos Estados Unidos
em 1998, relata que “é mais fácil chegar a Marte, do que retornar à Palestina” (ELBASYOUNI,
2021). A única vez que o engenheiro retornou a Gaza foi ainda em 2000, antes do início da
Segunda Intifada e da imposição do cerco israelense. Elbasyouni conta que, pela
imprevisibilidade na liberação de sua saída de Gaza, não pode visitar sua terra natal pois pode
perder o emprego foi contratado por uma empresa de tecnologia que desenvolvia aeronaves
elétricas, em 2012.

74
Fala da diretora Larissa Sansour na Masterclass ministrada na Segunda Mostra de Cinema Árabe Feminino, em
22 de maio de 2021.
75
O “Muro da Separação”, como é conhecida a muralha que divide comunidades palestinas dentro da Cisjordânia,
começou a ser construído em 2002. Considerado ilegal pela Corte Internacional de Justiça desde 2004, o muro
ultrapassa as linhas definidas pela Linha Verde (que delimita a fronteira entre Cisjordânia e Israel desde 1967).
76
I am also very fascinated by the idea of hyperbole in subject matter as well as production. I like the idea of
going overboard in producing an art piece and I like the way it brings the work away from a meditative space of
reflection to a more direct, impactful tool that can compete with the mainstream. I like all these power plays,
which have a lot to do with contextualization.

107
A dificuldade encontrada pelo engenheiro palestino aproxima, mais uma vez, a
realidade palestina do mundo distópico criado por Larissa Sansour. São os reflexos da
ocupação, que perturbam a experiência temporal palestina e impõem a eles espaços
interrompidos e confinados (SAID, 1999). Em “A Space Exodus”, a comunicação da astronauta
com Jerusalém é interrompida por uma falha desconhecida, mas que lhe decreta a pena
irreversível de nunca mais retornar. Para Elbasyouni e os outros habitantes de todo território
palestino aos quais o direito de retorno ainda é negado, a esperança supera a distopia da
realidade.

108
| A porcelana que se exuma no presente

No decorrer de “In the Future”, a imagem de uma espécie de leito aparece intercalada
entre as memórias da protagonista e as cenas pelo território distópico. Em um primeiro
momento, ele aparece vazio, como na figura abaixo, enquanto a Terrorista Narrativa e sua
interlocutora conversam em voice over:

- Você estava falando sobre ser enterrada como parte de sua própria ficção.

- Certo. Muitas vezes me imagino envolta em panos no meu leito de morte...


febril e suada, meu corpo deixando marcas no tecido... tornando-me o Sudário
de Turim da minha própria civilização. Nós ainda não aperfeiçoamos o
método para manipular a datação por carbono... então meus ossos trairão a
ficção (In the Future, 2016, 06:33s, tradução nossa77).

Figura 20: Imagem capturada de “In the Future” (05:23 min)

Assim como a relação feita entre a porcelana e pragas bíblicas, ou a referência à Santa
Ceia nas cenas finais do curta, a menção ao Sudário de Turim reforça o lugar da narrativa
religiosa na disputa pelo território palestino. O mito fundador que sustenta a ocupação colonial
israelense não é forjado apenas pelos achados arqueológicos, mas aliado ao imaginário
religioso que o blinda de qualquer contestação. A verdade bíblica e sua compreensão como fato
histórico está a todo momento presente no curta de Sansour. No caso em questão, o Sudário de

77
- You were talking about being buried as part f your own fiction.
- Right. I often picture myself draped in cloth on my deathbed... feverish and sweating, my body making imprints
in the fabric ... becoming my own civilization’s Shroud of Turin. We just haven’t perfected the method to
manipulate carbon dating yet... so my bones will betray the fiction.

109
Turim refere-se ao tecido de linho cujas marcas correspondem à imagem de Jesus Cristo.
Acredita-se que este seja a mortalha usada para cobrir o corpo de Jesus após sua execução,
portanto a forma estampada na peça é reverenciada por fiéis católicos como uma das provas de
sua existência e martírio. A origem histórica do Sudário, no entanto, ainda é muito debatida.
Para religiosos cuja única verdade é aquela que compõe o mito, pesquisas científicas
não comprovam nem reprovam nenhuma teoria. O papel de evidência cumprido pelo Sudário
é o que a Terrorista Narrativa busca, seguindo a mesma lógica mitológica que guia sua
estratégia de alteração histórica. Justamente por sua procedência dúbia, não comprovada por
nenhum estudo, o Sudário é a metáfora perfeita para a realidade criada pela Terrorista
Narrativa. “Nunca foi uma questão de legitimidade”, como a própria reitera ao ser questionada
pela interlocutora. O critério que sustenta o mito é a crença no seu poder de filiação àquela
terra.
Posteriormente, em cenas distintas, o leito aparece ocupado pela protagonista e por sua
irmã. Os corpos estirados sobre ele permitem interpretá-lo como uma mesa de necrópsia,
inserida no cenário distópico do filme. Como a temporalidade do filme varia de acordo com as
lembranças narradas pela protagonista, mas nem sempre correspondem exatamente ao que as
imagens nos mostram, o espectador é deixado com dúvidas. Esse cenário vazio, onde a cama
estranha é a imagem central em meio ao breu, representa uma memória ou uma alucinação? O
que vemos são recordações da irmã em seu leito de morte ou cenas dos experimentos com
datação de carbono para tornar concreta a evidência de um Sudário próprio? Ser enterrada
como parte de sua própria ficção não é um trabalho fácil. A dificuldade em desenvolver um
método que manipule a idade de seus ossos atrasaria o processo e faria o Sudário se
desencontrar de seu corpo na linha do tempo. A falha na datação do carbono é ressaltada em
um momento posterior, quando as duas conversam sobre a escolha da porcelana como objeto
da modificação histórica:

- Como você manipulou a idade da porcelana?

- Não é brincadeira de criança, mas também não é alquimia. Um objeto


enterrado absorve água e radiação a uma taxa constante. A datação cerâmica
simplesmente mede as quantidades. Ao saturar a porcelana com altas doses,
acrescentamos séculos à sua idade.

- E a datação por carbono?

110
- Nosso método ainda não é confiável, mas faremos mais testes à medida que
mais cadáveres se tornarem disponíveis... E, eventualmente, os espalharemos
ao longo dos tempos. (In the Future, 2016, 20:09 min, tradução nossa78).

Entre memória e ficção criada, a imagem da sua irmã reaparece em algumas cenas como
flashbacks prolongados do processo de luto toda vez que a interlocutora insiste em retomar o
assunto. Quando perguntada sobre o papel dela em tudo aquilo, a Terrorista Narrativa indaga:
“A maioria das atividades radicais não se baseia em trauma?”. A câmera sai do zoom in no
rosto da protagonista e aos poucos revela a imagem abaixo, onde ela se encontra frente a um
poço cercado pela porcelana que se fez chover. Lá dentro encontramos uma criança, com as
mesmas vestimentas tradicionais usadas em outros momentos do curta, mas que não reconhece
a mulher que a olha de cima. Novamente, a protagonista é confrontada pelo fantasma da sua
irmã, aquela memória da qual ela corre atrás, mas nunca consegue alcançar. A interlocutora
reafirma que sua irmã não pode se comunicar com o futuro e que a tentativa de se comunicar
com passado e futuro é impossível. Mas nada disso importa para a Terrorista Narrativa. O fato
é que só no futuro será conhecido que esse povo comeu da melhor porcelana, porque esse
tempo reserva a esperança de reverter os traumas passados. É um esforço para enterrar e
desenterrar do abismo a porcelana e os cadáveres que vão transformar toda perda em evidência
do que um dia lhes foi roubado.

78
- Crockery resonates with our idea of the past. Every civilization has crockery. Porcelain happens to be the
trademark of this people. Every civilization also has skeletons, but so far, we haven’t buried any people.
- How did you manipulate the age of the porcelain?
- It’s not children play, but it's no alchemy either. A buried object absorbs water and radiation at a steady rate.
Ceramic dating simply measures the amounts. By saturating the porcelain with high doses, we add centuries to
its age.
- And the carbon dating?
- Our method is not yet reliable, but we will do further tests as more corpses become available…And eventually
scatter them across the ages.

111
Figura 20: Imagem capturada de “In the Future” (20:47 min)

Na Palestina distópica fora dos filmes, Sansour reproduz a ação da Terrorista Narrativa,
mas sem manipular a idade da porcelana. Como seu trabalho está sempre alinhado com sua
formação em artes visuais, as porcelanas, vistas pela primeira vez em “Nation Estate”, e
utilizadas como arma narrativa em “In the Future”, também se tornaram objeto no projeto
“Archaeology in Absentia”, de 2016. A instalação criada por Sansour e Søren Lind, consiste
em quinze réplicas da munição de bronze, que vemos em “In the Future”. Dentro de cada uma,
estão cravadas as coordenadas dos quinze pratos de porcelana que a diretora enterrou pelo
território ocupado. 79 Talvez uma intervenção artística com ossos palestinos, da forma como a
Terrorista Narrativa cogita fazer, não seja tão necessária, pois ela já ocorre naturalmente, sem
precisar do desenvolvimento de um método mais elaborado na datação por carbono.
Do solo no qual o Estado de Israel foi criado, não emergem apenas vestígios
arqueológicos incorporáveis à sua narrativa. O caminho traçado até agora, deixou (e continua
deixando) rastros das escavadeiras e as pegadas de soldados e das milícias que aniquilavam
cada vilarejo palestino encontrado. Portanto, desse solo emergem também as marcas da
imposição do tempo linear, fendas nessa linha do tempo que expõem a fragilidade da
legitimidade sionista sobre o território. O ápice da ofensiva sionista contra as comunidades
palestinas em 1948, a série de massacres resultou em centenas de corpos depositados em valas
coletivas abertas no mesmo chão em que suas casas se encontravam. Segundo Nur Masalha,
historiadores israelenses como Arieh Yitzhaki e Uri Milstein reconhecem a brutalidade

79
Fala da diretora Larissa Sansour na Masterclass ministrada na Segunda Mostra de Cinema Árabe Feminino, em
22 de maio de 2021. Como ela explica durante sua apresentação, para que a todas as peças de porcelana pudessem
ser de fato enterradas em cidades sob o controle israelense, como Jerusalém e Eilat, Sansour contou com o auxílio
de colegas israelenses, já que sua entrada em tais lugares era vetada pela ocupação.

112
aplicada aos palestinos nesse período: “Em todas as guerras de Israel, massacres foram
cometidos, mas eu não tenho dúvidas que a Guerra da Independência foi a mais suja de todas.”
(MILSTEIN apud MASALHA, 2012, p. 78).
Nos vilarejos de Nasr Al-Din, Ayn Al-Zaytoun, Kabri, entre diversos outros, massacres
em menor escala foram realizados pelas forças israelenses, mas salvo Deir Yasin, nenhum foi
tão brutal quanto o de Tantura, dilacerada pelo 33º Batalhão da Brigada Alexandrina das Forças
Israelenses entre os dias 22 e 23 de maio de 1948 (MASALHA, 2010; PAPPÉ, 2016).
Localizada ao sul de Haifa, Tantura era um dos maiores vilarejos da costa palestina, habitado
por cerca de 1500 pessoas que dependiam da agricultura e pesca para sobreviver. Por seu
tamanho e localização, a vila era um “espinho na garganta” do projeto sionista e sua conquista
era essencial para o plano de “independência” israelense (PAPPÉ, 2016). Segundo Ilan Pappé,
a brigada Alexandroni que comandou a ação, realizava sua missão de limpar as vilas designadas
com uma rapidez assustadora, e a violência necessária para essa agilidade não foi poupada em
Tantura. Durante a noite do dia 22, o Batalhão cercou o vilarejo por completo, poupando apenas
mulheres e crianças, que foram transferidas para o vilarejo vizinho enquanto soldados puniam
e matavam à sangue frio aqueles que restavam. Ao final do massacre, dois palestinos ficaram
encarregados de cavar uma vala comum para mais de 200 cadáveres (PAPPÉ, 2016).
Atualmente, a vala comum de 35 metros de comprimento e 4 de largura, se encontra abaixo do
estacionamento construído para os frequentadores da Praia Dor. Tantura foi apagada do mapa
de acordo com o procedimento padrão sionista: seu nome árabe foi trocado por um hebraico e
sob as ruínas da vila palestina, ergueu-se uma nova sociedade israelense.
Embora testemunhos sobre Tantura tenham sido recolhidos e registrados por palestinos
desde 195080, a história do vilarejo só se tornou mais conhecida quando, em 1999, o então
mestrando da Universidade de Haifa, Teddy Katz, teve sua pesquisa desqualificada depois de
realizar entrevistas com sobreviventes e perpetradores. Katz foi processado por difamação por
parte de veteranos israelenses, gerando um enorme debate em Israel sobre a memória e a
historiografia da chamada Guerra de independência. Recentemente, em janeiro de 2022, o
debate sobre Tantura voltou à mídia israelense quando o jornal israelense “Haaretz” publicou
um artigo com testemunhos de veteranos admitindo novamente o massacre em Tantura. Mas
como Hashem Abushama (2022) aponta, tais relatos atrelados ao descaso de testemunhos

80
Abushama (2022), cita o livro “Min Athar al-Nakba” (Consequências da Nakba), escrito pelo Haj Muhammad
Nimt al-Khatib em 1950. Membro do Comitê Nacional Árabe de Haifa e influente figura política e religiosa, al-
Khatib reuniu uma série de testemunhos de refugiados e sobreviventes de Tantura, destacando o estupro de
mulheres palestinas pelos soldados da IDF.

113
palestinos, acabam reduzindo a violência sistemática de Israel a “eventos excepcionais que
aguardam a confirmação de perpetradores israelenses, avaliação de acadêmicos israelense e
reconhecimento da mídia israelense.” (ABUSHAMA, 2022).
A exumação das valas de Tantura não interessa a Israel como a retirada de corpos em
cemitérios muçulmanos ou cristãos de Jerusalém, quando o intuito é construir um parque ou
museu para uso exclusivo de habitantes judeus. Diferente das convenientes descobertas de
sítios arqueológicos abaixo de casas palestinas, os vestígios de Tantura não possuem nenhum
valor para a narrativa sionista. Da terra só se retira aquilo que endossa o mito de Eretz Yisrael,
e os ossos enterrados em Tantura desestabilizam completamente essa lógica. Reconhecer o
massacre é aceitar que a presença palestina que persiste até hoje, é um acidente, uma falha de
Ben-Gurion e de outros líderes sionistas ainda hoje que não tiveram êxito nem finalizar e em
mascarar completamente a limpeza étnica.
No presente, a porcelana que desarranja a narrativa colonizadora toma forma nos corpos
palestinos enterrados em vala comum, mas a única ficção que os ossos de Tantura trai é o mito
de que em 1948 houve uma “guerra pela independência israelense”, quando não havia do lado
palestino nem o conhecimento, o preparo ou o aparato militar necessário para o confronto
(PAPPÉ, 2016). Ainda como a porcelana, as evidências da existência palestina estão por todo
lado e, como representado pela metáfora da praga bíblica, não cessam de se manifestar.
Novamente, sob a sombra dos horrores praticados pela ocupação, a experiência palestina é
submetida a uma realidade distópica criada pela imposição da utopia sionista. Sobre o balanço
entre essas duas categorias, a diretora afirma:
Historicamente, Israel/Palestina tem sido um terreno fértil natural para
utopias e distopias em medidas iguais, variando de contos bíblicos
apocalípticos a aspirações ideológicas de um Estado. Por mais que as utopias
sejam provavelmente necessárias para a construção da nação, meus filmes
raramente possuem contornos ou definições utópicas, mas tendem a adotar
uma abordagem distópica, sugerindo que o apocalipse é a primeira parada no
caminho para um futuro aceitável (SANSOUR, 2018, tradução nossa81).

Sobre a construção de nações, Glissant nos diz que a busca pela filiação de um povo
transforma a terra escolhida em território. Para o projeto sionista, a identidade-raiz forjada brota
de um solo contaminado pelo produto dos massacres cometidos em seu nome. Como diz a

81
Historically, Israel/Palestine has been a natural breeding ground for utopias and dystopias in equal measures,
ranging from biblical doomsday tales to ideologically founded aspirations of statehood. As much as utopias are
probably needed for nation building, my films rarely hold any utopian outlines or definitions, but tend to embrace
a dystopian approach, suggesting that the apocalypse is the first stop on the road to an acceptable future.

114
Terrorista Narrativa, o apocalipse não é uma catástrofe única. E na Palestina, ele se estende
pelo tempo e pelo espaço, prolongada a Nakba e criando novas tecnologias para transformar o
presente palestino em uma distopia inconcebível fora da ficção científica. Como os três filmes
nos mostram, os vestígios da ocupação colonial estão marcados em todos os aspectos da
experiência palestina. A questão a ser resolvida não deve ser quando no futuro eles serão
descobertos, mas quando eles não serão mais soterrados.

115
| Considerações Finais

“Tempo é um riacho para os desapercebidos; é uma


correnteza para quem o vê e é pego pelo abismo/

Abismo é a sedução das profundezas e a atração


gravitacional do que não se sabe, quando o céu se
torna uma fenda aberta, densa de nuvens”

Mahmud Darwish – Da presença da ausência

Quanto tempo precisa passar para que o apocalipse se complete? Ou, nos termos da
Terrorista Narrativa, quanto tempo para que a porcelana seja desenterrada? Em nossa jornada
pelo tempo perturbado da Palestina, pudemos entendê-lo também como um tempo que perturba
a lógica linear da ocupação. Na disputa pelo controle do tempo, iniciada pela inserção do
sionismo na Palestina, a relação com o tempo se transforma. É como se da perturbação surgisse
a motivação para resistir aos impulsos coloniais.
Analisar o tempo na Palestina através do cinema – especificamente da trilogia de
Sansour – nos permitiu refletir acerca do lugar da distopia na experiência anômala criada pela
ocupação. Enquanto resistem às anexações, assentamentos, prisões administrativas e toda
estrutura que sustenta o apartheid israelense, palestinos ainda são forçados a ocupar o papel de
antagonistas no mito do povo escolhido e intocável, cuja história é incontestável. Mas para que
o controle do tempo não lhes escape completamente, produções palestinas continuam a
derrubar os muros metafóricos e concretos da ocupação. O mais recente curta-metragem de
Sansour, “In Vitro” (Palestina, Dinamarca, Reino Unido, 2019, 28 min), trabalha ativamente a
questão da nostalgia e do trauma que atravessam gerações a partir da ótica da ficção científica.
Irrompendo as barreiras e entrando nos catálogos de grandes plataformas e nos circuitos
internacionais por conta do esforço de décadas de cineastas, produções sobre e da Palestina
tornam-se cada vez mais difundidas.
A memória da Nakba está no centro do cinema palestino, e intrínseca a ela está a
mensagem de que há uma luta justa travada por um povo que há décadas demanda o fim desse
trauma contínuo. Sozinhas, as imagens não libertam ninguém. Elas precisam ser sentidas por
pessoas que se afetem, façam novas perguntas e questionem os papéis atribuídos aos palestinos
frente à ocupação. Para o cineasta Michel Khleifi, a mensagem central do cinema palestino é
expressa na mensagem de Gilles Deleuze, quando ele diz que “o grito dos sionistas para
justificar sua violência racista sempre foi ‘nós não somos um povo como qualquer outro’,

116
enquanto o grito de resistência palestino sempre foi ‘nós somos um povo como todos os
outros’” (DELEUZE apud KHEIFI, 2006, p. 73).
As imagens de “A Space Exodus”, “Nation Estate” e “In the Future” revelam ausências,
questionamentos, ambições e acima de tudo, o desejo palestino de resistir à forte corrente que
os lança à deriva no espaço sideral ou na História das Nações. Elas permitem aflorar no
espectador um sentimento de reconhecimento com um povo que tem tradições, costumes e
afetos como todos os outros. Revelam também infinitas nuances sobre o surrealismo do
cotidiano sob ocupação, a violência de viver o que se considera exclusivo da ficção. Pegamos
emprestado de Hamid Dabashi (2006, p. 26, tradução nossa) uma última colocação sobre o
cinema palestino: “O que acontece quando a realidade se torna fictícia demais para ser
ficcionalizada (...)? Os cineastas palestinos pegaram essa crise mimética e a transformaram em
uma das aventuras mais extraordinárias da história cinematográfica”.
Nos voltamos para o cinema palestino na esperança de que este pudesse nos responder
à pergunta do título – quando é a Palestina? Sabemos o que a Palestina foi, as imagens de
arquivo traem a ficção sionista por mais que esta reinvente formas de retomar o controle da
narrativa. Imaginamos futuros plurais para a Palestina sem garantia nenhuma porque assim
como a Terrorista Narrativa, não podemos nos comunicar com o que ainda está por vir. Grande
parte do receio que recai sobre essa pergunta é fruto dos dobramentos históricos, dos acordos
políticos e massacres realizados pela ocupação. Seguindo essa lógica, a solução para o
questionamento não parece favorável. No entanto, para uma pergunta sobre o tempo
perturbado, a resposta não pode ser linear.
Relembramos então a fala de Larissa Sansour sobre tentar fazer o futuro parecer
diferente e não conseguir pois quanto mais próximo de uma ficção futurística, mais próximo
de representar a realidade. Nessa relação conturbada com o tempo, quando então é a Palestina?
A Palestina é a distopia do real e também é todo lugar que tem como utopia a sua libertação. É
a própria fenda aberta no último céu, a oliveira que cresce a partir do sangue derramado, porque
não se pode controlar um tempo não-linear. A Palestina é passado, presente e futuro quando
parece não restar mais nada porque diferente da ocupação, seu tempo é inesgotável. A Palestina
é e continuará sendo (a distopia do) agora.

117
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| Filmografia

A SPACE Exodus. Direção: Larissa Sansour. Palestina, Dinamarca, 2008. 5 min.

IN the Future They Ate From the Finest Porcelain. Direção: Larissa Sansour e Søren Lind.
Palestina, Reino Unido, Dinamarca, Qatar, 2015. 29 min.

NATION Estate. Direção: Larissa Sansour. Palestina, Dinamarca, 2012. 9 min.

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