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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

CENTRO DE ARTES – CEART


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT

PALOMA BIANCHI

DA IMPOTÊNCIA AO IMPOSSÍVEL:
A ARTE DE ENFEITIÇAR A REALIDADE

FLORIANÓPOLIS
2021
PALOMA BIANCHI

DA IMPOTÊNCIA AO IMPOSSÍVEL:
A ARTE DE ENFEITIÇAR A REALIDADE

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Teatro do Centro de Artes
da Universidade do Estado de Santa
Catarina, como requisito para o grau de
Doutora em Teatro.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Tereza Mara
Franzoni
Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Sandra Meyer
Nunes

FLORIANÓPOLIS
2021
Ficha catalográfica elaborada pelo programa de geração automática da
Biblioteca Central/UDESC,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

Bianchi, Paloma
Da impotência ao impossível : A arte de enfeitiçar a
realidade / Paloma Bianchi. --2021.
200 p.

Orientadora: Tereza Mara Franzoni


Coorientadora: Sandra Meyer Nunes
Tese (doutorado) --Universidade do Estado de Santa
Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em
Teatro, Florianópolis, 2021.

1. dança contemporânea. 2. política. 3. processo de


criação. 4. perspectivismo. 5. impossível. I. Franzoni, Tereza
Mara. II. Meyer Nunes, Sandra. III. Universidade do Estado de
Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de
Pós-Graduação em Teatro. IV. Titulo.
PALOMA BIANCHI

DA IMPOTÊNCIA AO IMPOSSÍVEL:
A ARTE DE ENFEITIÇAR A REALIDADE

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Teatro do Centro de Artes
da Universidade do Estado de Santa
Catarina, como requisito para o grau de
Doutora em Teatro.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Tereza Mara
Franzoni
Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Sandra Meyer
Nunes

BANCA EXAMINADORA:

Orientadora: Profª. Drª. Tereza Mara Franzoni


Universidade do Estado de Santa Catarina

Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Sandra Meyer Nunes


Universidade do Estado de Santa Catarina

Membros:
Profª. Drª. Victoria Pérez Royo
Universidad de Zaragoza

Profª. Drª. Michele Louise Schiocchet


Universidade Federal do Paraná

Prof. Dr. Casé Angatu Xukuru Tupinambá (Carlos José Ferreira dos Santos)
Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC

Profª. Drª. Fátima Costa de Lima


Universidade do Estado de Santa Catarina

Florianópolis, 23 de março de 2021


Dedico esse trabalho aos povos indígenas
do Brasil que há mais de quinhentos anos
vivem apesar de tudo que o Estado
brasileiro tem feito. Que suas visões
ecoem por todos os cantos do mundo,
assim como ecoou nessa tese.

Dedico esse trabalho a artistas que


seguem produzindo outros mundos. Que
suas criações sigam transformando as
percepções de quem se dispõe a fruir da
arte.

Dedico esse trabalho aos outros-que-


humanos que há séculos são
compreendidos como recurso por parte da
humanidade. Que suas agências sigam
resistindo. Que não haja mais extinções.
Quem encontrem refúgios.

Dedico esse trabalho a todas as pessoas


que lutam pela equidade radical.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos povos indígenas do Brasil. O pouco que aprendi do tanto que vocês
têm para ensinar guiou essa tese, mudou minha percepção de mundo e transformou
meu viver.

Agradeço aos outros-que-humanos que me acompanharam no meu caminho. À


amoreira, às jiboias, às samambaias – principalmente à renda portuguesa que me
acompanha há quase 20 anos e tem filhas e netas espalhadas pela cidade –, à
avenca, à hortinha que me dá temperos e banhos de ervas e a tantas plantas que não
sei o nome. Vocês me ensinam sobre responsabilidade e tempo. Aos pássaros que
visitavam diariamente o jardim, cantam e comem frutas, e às corujas que vêm a noite
com tanta elegância e precisão de gestos, realmente majestosas. Às minhas mais
novas companheiras Pachamama e Selvagem que vieram dividir teto comigo e me
fizeram perceber quão instigantes são os invisíveis, basta querer ver.

Agradeço aos inumanos. À minha casa que oferece refúgio; à máquina de costura,
bem como agulhas, linhas e tecidos, que possibilitam pausas dos meus pensamentos;
aos materiais de aquarela, minha terapia ocupacional para os momentos em que a
realidade me come por dentro; aos materiais de jardinagem que mediam meus
cuidados com as plantas que me circundam; ao chuveirão de água gelada que esfria
minhas confusões e ansiedades; a tudo que compõe minha morada, que materializam
memórias, dão conforto e me permitem descansar.

Agradeço às minhas orientadoras Tereza Mara Franzoni e Sandra Meyer Nunes pela
atenção, interesse, cuidado, doçura, rigor e respeito em suas maneiras de me
acompanhar por quase cinco anos. Nem sei o que seria dessa pesquisa sem vocês.
Minha gratidão profunda.

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),


ao Programa de Bolsas de Monitoria de Pós-Graduação (Promop) e ao Programa de
Doutorado-Sanduíche no Exterior (PDSE) da Capes pelo apoio financeiro
imprescindível no Brasil e na Espanha. Espero que as pesquisas realizadas nas
universidades brasileiras sejam sempre apoiadas em suas diversas áreas de
conhecimento nesse Brasil que tem muito a oferecer ao mundo, mesmo em situações
adversas.

Agradeço às (es/aos) técnicas (es/os), terceirizadas (es/os), bolsistas, docentes da


Udesc pelo trabalho de sustentar a qualidade dessa universidade. Especialmente
agradeço às pessoas que compõe a equipe do Programa de Pós-Graduação em
Teatro pelo trabalho, apoio, competência e disponibilidade ao longo de todo o período
de doutorado, são elas: Alessandro Moraes, Celia Maria da Silva, Fernanda Guidarini,
Rodrigo, Renata Patrão, Felipe Fonseca e Tony Alano.

Agradeço à banca de qualificação, Victoria Pérez Royo, Fátima Costa de Lima, Vera
Torres e Zilá Muniz – foi muito importante escutá-las à época. Agradeço imensamente
à banca de defesa, Victoria Pérez Royo, Fátima Costa de Lima, Michele Schiocchet e
Casé Angatu Xukuru Tupinambá. Obrigada por aceitarem e lerem minhas palavras.

Agradeço à Gabriela Carneiro da Cunha pela disponibilidade em conversar comigo


sobre seu espetáculo Altamira 2042, um dos trabalhos discutidos na tese. Agradeço
ao Grupo Cena 11 de dança pela acolhida nos primeiros anos de pesquisa. Apesar
de não figurar nesse texto, Protocolo Elefante é um dos trabalhos mais incríveis de
dança que pude presenciar; ainda quero morar nele.

Agradeço à minha turma de doutorado, que fez de tudo para a vida ficar mais leve. À
Jussy, Jenny, Rique, Adri, Laine, Jucca e Vivi especialmente. Nossas conversas,
festas, danças, encontros, cafés, praias, foram e são importantíssimos. Agradeço à
Ines Saber, que tem o saber no nome, por toda a ajuda e o apoio nas escritas de
projetos e nas traduções de Donna Haraway e de muitas por vir. Por dividirmos o vício
em coca, memes e figurinhas, e a admiração por gatos.

Agradeço às membras do Projeto corpo, tempo e movimento – Sansan, Didi, Milady


– por serem quem são e por fazerem o que fazem. Eu sem vocês nem sei o que seria,
e nem quero saber. Agradeço também a todas as pessoas que passaram pelo
Coletivo Mapas e Hipertextos, esse lugar sem lugar onde a arte é toda uma outra
cousa. É muita provocação e samba na cara da sociedade.
Agradeço à Rosa Casado pela tutoria na Espanha e por ser a artista arguta e
comprometida que é; à Diana Delgado-Ureña pela acolhida, trocas e seu espírito leve;
mais uma vez à Victoria (esse já é o terceiro agradecimento a ela!) por me aceitar
como estudante na Espanha, pelas conversas, aulas, trocas e tutorias. Agradeço a
minha turma de máster pela companhia, diversões e invenções em solo espanhol.
Agradeço especialmente à Flor, Sofi e Alvarito, com quem compartilhei teto, comidas,
cigarros, cafés, tudo isso com muita conversa e trocas fundamentais na arte, na vida,
na politica e nos sonhos. Viva VP!

Agradeço a minha mãe por ser quem é e pelo amor que temos. Logo poderemos estar
juntas, estou com muitas saudades (VEM VACINA!). Agradeço ao meu pai pelo apoio
e a confiança. Finalmente fiz uma coisa que admira: doutorado. Pronto pai, daqui a
pouco serei doutora!

Agradeço especialmente e imensamente à Hedra Rockenbach pela disponibilidade


incansável em me ajudar com os trabalhos que deram corpo à tese e em me ouvir
tanto e por tanto tempo sem reclamar, pelo contrário, estando a meu lado a cada
hesitação ou ideia louca. Agradeço pela presença nos momentos em que nada faz
sentido. Você me ensina sobre amor, companheirismo e generosidade diariamente.
Que que eu vou te dizer? Oiiiiii, obrigada amorrrrrrrrr.

No mais agradeço à vida, à potência da arte, à potência dos sonhos. Que possamos
sonhar sempre e fazer existir esses sonhos.
Talvez a gente esteja muito
condicionada a uma ideia de ser
humano e a um tipo de existência. Se
a gente desestabilizar esse padrão,
talvez a nossa mente sofra uma
espécie de ruptura, como se
caíssemos num abismo. Quem disse
que a gente não pode cair? Quem
disse que a gente não caiu já?
Ailton Krenak (2017, p.137)

“Talvez a única função real da arte


seja exatamente esta, nos fazer
passar da impotência ao impossível.”
Vladimir Safatle (2016, p.36)
RESUMO

E se os impossíveis não forem tão impossíveis como imaginamos? E se os


impossíveis forem apenas regimes de existência que todavia não ganharam
materialidade na realidade de certo contexto? Essa pesquisa discute a tentativa
de fazer o impossível, possível por meio da arte. Diante da exploração, da
expropriação, da assimetria, da desigualdade e da extinção em massa, a tese
propõe que a arte deve assumir sua responsabilidade pelo viver e morrer em um
planeta devastado, e produzir outras atualizações nas imaginações e nas
percepções de quem compartilha da experiência artística. A pergunta que
mobilizou a pesquisa foi: Que proposições que podem incidir na realidade e
permitir a emergência do que se considera improvável ou ainda impossível de
acontecer? Em busca de respostas, a tese aborda três trabalhos de arte - carnet
de desidentidad planetaria e hacia, fruto de proposições da autora, e Altamira
2042, de Gabriela Carneiro da Cunha. Os trabalhos emergem como força que
impele à variação dos possíveis em certos contextos. As considerações
realizadas têm como referência Aílton Krenak, Donna Haraway, Viveiros de
Castro, Suely Rolnik, Vladimir Safatle, dentre outras. Por fim, o texto expõe
alguns desdobramentos animados pelas práticas artísticas e pelas reflexões
realizadas durante a busca pelas co-incidências entre arte contemporânea e
pensamentos indígenas.

Palavras-chave: Dança contemporânea. Impossível. Perspectivismo. Política.


Processo de criação.
RESUMEN

¿Y si los imposibles no fueran tan imposibles como imaginamos? ¿Y si los


imposibles fueran tan solo regímenes de existencia que todavía no cobraron
materialidad en la realidad de cierto contexto? Esta investigación discute el
intento de hacer lo imposible posible, por medio del arte. Ante la exploración, la
expropiación, la asimetría, la desigualdad y la extinción masiva, la tesis propone
que el arte debe asumir su responsabilidad por el vivir y morir en un planeta
devastado y producir otras actualizaciones en las imaginaciones y en las
percepciones de quienes comparten la experiencia artística. La pregunta que
movilizó esa investigación fue:¿qué proposiciones pueden incidir en la realidad
y permitir la emergencia de lo que se considera improbable o aún imposible de
suceder? En busca de respuesta, la tesis aborda tres trabajos artísticos - carnet
de desidentidad planetaria y hacia, ambos resultado de proposiciones de la
autora, y Altamira 2042, de Gabriela Carneiro da Cunha. Los trabajos surgen
como fuerza que impele a la variación de los posibles en determinados
contextos. Las reflexiones realizadas tienen como referencia Ailton Krenak,
Donna Haraway, Viveiros de Castro, Suely Rolnik, Vladimir Safatle, entre otras.
Por fin, el texto expone algunos despliegues/desdoblamientos animados por las
prácticas artísticas y las reflexiones realizadas durante la búsqueda de co-
incidencias entre el arte contemporáneo y los pensamientos indígenas.

Palabras clave: Danza contemporanea. Imposible. Perspectivismo. Política.


Proceso de creación.
ABSTRACT

What if the impossibles are not as impossible as we imagine? What if the


impossibles are just regimes of existence that have not yet came to existence in
the reality of a certain context? This research discusses the effort of doing the
impossible possible, through art. In the face of exploration, expropriation,
asymmetry, inequality and mass extinction, the thesis proposes that art should
assume its responsibility for the ways of living and dying on a devastated planet,
and aim to produce other actualizations on the imaginations and perceptions of
those who share the artistic experiences. The inquiry that mobilized this research
was: What propositions can incur in the reality and allow the emergence of what
is considered unlikely or yet impossible? In search of answers, the thesis
addresses three art works - carnet de desidentidad planetaria and hacia, both
produced by the author of this research, and Altamira 2042, by Gabriela Carneiro
da Cunha. The considerations made have as reference Ailton Krenak, Donna
Haraway, Viveiros de Castro, Suely Rolnik, Vladimir Safatle, among others.
Lastly, the text points out some unfoldments animated by the artistic practices
and reflections developed during the search for the co-incidences between
contemporary art and indigenous thoughts.

Keywods: Contemporary dance. Impossible. Perspectivism. Politics. Creation


process.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: imagem da instalação em Garaion...................................................... 86


Figura 2: imagem do email enviado .................................................................... 94
Figura 3: Gabriela Carneiro da Cunha no espetáculo Altamira 2042, projeção
do rosto de Raimunda Gomes ................................................................... 120
Figura 4: RUC Jatobá, reassentamento onde ribeirinhos passaram a morar
após o alagamento da região de Altamira ................................................ 132
Figura 5: a hidrelétrica em construção ............................................................. 133
Figura 6: casas de palafita em Altamira ........................................................... 134
Figura 7: árvores mortas como efeito dos alagamentos .................................. 135
Figura 8: uma de muitas ilhas alagadas na região de Altamira ....................... 136
Figura 9: exemplo do desmatamento realizado para a construção de Belo
Monte .......................................................................................................... 137
Figura 10: Altamira 2042 ................................................................................... 141
Figura 11: Altamira 2042 ................................................................................... 145
Figura 12: Altamira 2042 ................................................................................... 146
Figura 13: Altamira 2042 ................................................................................... 147
Figura 14: ocupação mágica (eu [Paloma Bianchi] e Diana Gilardenghi,
Florianópolis, 2020).................................................................................... 155
Figura 15: ocupação mágica (02) (eu [Paloma Bianchi] e Diana Gilardenghi,
Florianópolis, 2020).................................................................................... 157
Figura 16: ocupação mágica (01) (eu [Paloma Bianchi] e Diana Gilardenghi,
Florianópolis, 2020).................................................................................... 158
Figura 17: ocupação mágica (03) (eu [Paloma Bianchi] e Diana Gilardenghi,
Florianópolis, 2020).................................................................................... 158
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABA Associação Brasileira de Antropologia


APIB Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
ATL Acampamento Terra Livre
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CCBM Consórcio Construtor de Belo Monte
CNV Comissão Nacional da Verdade
COICA Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
DNI Documento Nacional de Identidad
EIA Estudo de Impacto Ambiental
Funai Fundação Nacional do Índio
Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ISA Instituto Socioambiental
LP Licença Prévia
MIT-SP Mostra Internacional de Teatro de São Paulo
MME Ministério de Minas e Energia
MP Ministério Público
MPE Ministério Público Estadual
MPF Ministério Público Federal
MPP Migrant People Party
MXVPS Movimento Xingu Vivo para Sempre
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONG Organização não governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PAC Programa de Aceleração do Crescimento
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PSOL Partido Socialista
PT Partido dos Trabalhadores
Resex Reservas Extrativistas
RUC Reassentamento Urbano Coletivo
SPI Serviço de Proteção aos Índios
TI Território Indígena
TSE Tribunal Superior Eleitoral
UC Unidade de Conservação
UFPA Universidade Federal do Pará
UHE Usina Hidrelétrica
UNI União das Nações Indígenas
UNI União das Nações Indígenas
USP Universidade de São Paulo
VAR-Palmares Vanguarda Armada Revolucionária Palmares
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 16
1 DESIDENTIDADE E INDIFERENCIAÇÃO ................................. 37
1.1 DO IMPOSSÍVEL ABSTRATO À DESIDENTIDADE .................. 40
1.2 LOS PAPELES Y LA IDENTIFICACIÓN ..................................... 50
1.3 A PERSPECTIVA DA DESIDENTIDADE .................................... 57
2 PODRÍA NO HABER NI SUJETO NI OBJETO ........................... 66
2.1 AS ALIANÇAS AFETIVAS ........................................................... 69
2.1.1 dar passagem ao que me destitui ............................................. 75
2.2 UM ESFUERZO HACIA ALGO .................................................... 84
2.3 O FEITIÇO OCORRE SE HÁ DISPONIBILIDADE ....................... 95
2.4 A RESPONS-HABILIDADE DE FAZER PARENTESCO ........... 101
3 COMO QUEBRAR BARRAGENS ............................................ 108
3.1 O CENTRO DO MUNDO É AQUI .............................................. 115
3.2 A ARTE NÃO IMITA A REALIDADE .......................................... 137
CONSIDERAÇÕES, DESDOBRAMENTOS, REVERBERAÇÕES ............... 150
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 164
APÊNDICE: A KARARAÔ DE BELO MONTE ............................................... 175
16

INTRODUÇÃO

Florianópolis, Brasil, janeiro de 2021

Estou sentada de frente para a porta de entrada de casa. Ela está aberta e, ao
olhar para fora, vejo a amoreira. Há um ano atrás ela havia dado muitos frutos –
foi a maior colheita de amoras desde que vivo aqui – e tinha acabado de passar
por uma poda drástica; dela só se via o tronco principal e algumas ramificações
maiores. A ausência da sombra da árvore estava começando a afetar o
filodendro; a incidência do sol começava a queimar as folhas quase pretas da
planta.

Hoje a amoreira está do tamanho que tinha antes da poda. Os muitos galhos
novos estão com suas folhas amarelando e caindo aos poucos, formando um
tapete marrom na grama. O filodendro está recuperado, repleto de folhas
brilhantes e escuras.

Entre esses dois momentos a amoreira ganhou galhos novos, se encheu de


folhas verdes, floresceu e deu frutos, pequenas frutinhas verdes da cor das
folhas que foram crescendo e mudando de cor, passando para rosa, para
vermelho, chegando a um roxo tão profundo que parece preto. Passarinhos e
morcegos vinham se alimentar de seus frutos todos os dias. Em um momento
achei que o filodendro tinha morrido de tão seco e sem folhas que estava, mas
conforme a sombra da amoreira voltava ao jardim, foi recobrando suas folhas.
De início eram folhas verdes pois o sol não deixava suas folhas ficarem escuras.
Agora ele está robusto e com coloração roxo-avermelhada à sombra da
amoreira.

A amoreira do jardim foi parâmetro para o tempo que passou desde que a
pandemia de Covid-19 se instaurou em nossas vidas. Sentada à mesa da sala,
com olhos entre o computador e a amoreira, escrevi a maior parte do que vocês
leem. Escrevo sobre o impossível, na verdade sobre a potência da arte em dar
a ver impossíveis para tencionar o que se considera os únicos possíveis na
realidade. Os impossíveis aos quais me reporto insistentemente são concretos,
17

apesar da ideia de impossível ser abstrata. O impossível não é algo fechado,


definido e aplicável a toda e qualquer situação. Uma árvore é uma árvore em
todos os lugares do mundo, ao menos para os humanos. O impossível não. Em
um contexto ele aparece com certos contornos, mas esses mesmos contornos
em outro contexto podem não engendrar impossíveis, mas possíveis, aquilo que
pode ser esperado de acordo com as condicionantes da situação.

Por mais que se transforme de acordo com o contexto, o impossível nesse


trabalho emerge a partir de alguns parâmetros. Ele não se aproxima das lógicas
de salvação, de redenção ou de merecimento, tampouco se trata de milagre ou
de recompensa, talvez seja até seu oposto, pois a ativação do impossível é
imanente à própria situação. Também não se alia a ideia de fantasia sem
qualquer relação com os aspectos sociais, políticos e culturais, muito pelo
contrário, ele é antes uma aposta na transformação de realidades sociais,
políticas e culturais.

Nesta tese o impossível aparece como força que impele à variação dos
possíveis. Mais do que qualquer outra área de conhecimento, a arte possui
ferramentas para fazê-lo, porque ela incide diretamente na percepção e na
imaginação do público; e não seriam a percepção e a imaginação efetivamente
os materiais da arte? Na arte não existe um pacto inviolável com o que se
considera possível em um contexto porque ela está assentada no regime da
ficção. Então, como ela poderia propor uma mudança no estatuto do que se
considera possível em uma situação? Quais são as maneiras da arte mobilizar
processos imaginativos para que estes não sejam tão unidirecionais? Como a
arte instaura outras imaginações? De que modo a arte pode desvelar outras
variantes de possíveis?

A pesquisa aborda três trabalhos artísticos que procuram mobilizar os


impossíveis de certo contexto na tentativa de expandir a percepção do que se
considera possível àquela situação. São eles carnet de desidentidad planetaria,
hacia e Altamira 2042, os dois primeiros realizados por mim durante o
intercâmbio do Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior (PDSE-Capes)
em Madrid (Espanha), onde tive a oportunidade de participar do Mestrado em
18

Práticas Cênicas e Cultura Visual1 e desenvolver proposições artísticas, e o


terceiro de autoria da artista carioca Gabriela Carneiro da Cunha. Além da
tentativa de mobilizar impossíveis, o que há de comum entre eles é que são
informados por perspectivas indígenas e indigenistas, cada um a seu modo.

Da impotência ao impossível

O filósofo e professor brasileiro Vladimir Safatle (2017) oferece algumas pistas


sobre a potência do impossível. Em Só mais um esforço o autor apresenta uma
análise de conjuntura sobre a situação política representativa brasileira,
principalmente ao que diz respeito às tentativas de conciliação de classes que a
esquerda do país tentou realizar nos últimos 20 anos, durante as presidências
de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, ambos do Partido dos
Trabalhadores (PT), maior partido da esquerda brasileira contemporânea. Para
Safatle (2017, p. 75) a esquerda representativa brasileira esqueceu de que
política não é somente uma disputa na partilha de recursos e poder, ela “é uma
luta a respeito de formas de vida e modos de existência. Ela não é apenas um
problema de redistribuição, mas um problema ligado à possibilidade de criar
formas de vida novas”.

Safatle (2017, p. 85) coloca que os governos do PT não puseram em pauta


qualquer tentativa de transformação estrutural ao que diz respeito à gestão do
poder, conservando os modelos e as estruturas oligárquicas do Congresso
Nacional e do Judiciário, isto é, os núcleos de poder e os modelos de negociação
política continuaram os mesmos em nome de um avanço no processo de
ascensão social. O autor conclui com isso que o lulismo2, usando políticas

1
O máster em Práctica Escénica y Cultura Visual é efeito da colaboração entre a Universidade
de Castilla-La Mancha e o grupo de investigação Artea, cujo objetivo é oferecer um espaço para
o desenvolvimento de investigações em colaboração por meio de laboratórios, oficinas,
residências, seminários e grupos de leitura e discussão crítica. O ano em que participei do máster
foi coordenado pela filósofa e pesquisadora espanhola e coorientadora durante o intercâmbio de
doutorado sanduiche Victoria Pérez Royo, e Diana Delgado-Ureña, curadora, gestora e jornalista
espanhola.
2
Termo cunhado por André Singer, cientista político, jornalista, Secretário de Imprensa do
Palácio do Planalto (2005-2007) e porta-voz da Presidência da República do governo Lula, se
refere às práticas dos governos do PT nas quais há uma busca pela redução da desigualdade
social sem transformar as estruturas de poder e o capital. Isso seria o que Safatle chama de
tentativa de conciliação de classes, pois tenta agradar a classe trabalhadora e a elite brasileira.
19

econômicas liberais3, não se tratou de “uma política de combate à desigualdade,


mas uma política de capitalização dos pobres” (p.89). Processos de instauração
política efetivos seriam aqueles que promovem transformação no modo como
cada pessoa compreende a si própria, no modo de se relacionar com a história
e com sua própria potência. Para Safatle nada disso teria sido fomentado pelos
quatro mandatos da esquerda brasileira, tendo como resultado o esgotamento
da política representativa da esquerda, principalmente a adotada pelo PT.

Nas últimas páginas de Só mais um esforço, Safatle (2017, p.132-133) coloca a


pergunta: O que fazer? Em vez de responder, expõe outra dimensão para a
questão:

... a política não é apenas a abertura a alternativas produzidas por


pensamentos estratégicos imersos na análise de situações que exigem
ações e reações. Ela é também a insistência em coordenar ações a
partir da pressão por outros modos de existência. Toda traição política
começa com o esquecimento de tal insistência, com sua
desqualificação como mera “abstração” ou “utopia”. No entanto, essa
é a dimensão mais concreta da política, pois é daí que ela tira sua força
para continuar a ser “política”, com seu impulso de luta pelo
igualitarismo radical. […] Na verdade, e isto não podemos nunca
esquecer, a política é a crença improvável e aparentemente louca de
podermos ser outros, viver de outra forma. Nada de realmente grande
no mundo foi feito sem essa paixão. Há de se deixar para trás o culto
da finitude e não temer o que é desmedido em nós. Nada da força
concreta da política retornará a nossas vidas se não formos capazes
de escutar a pressão por outros modos de existência.

O que Safatle realiza nas últimas palavras de seu livro é mais que um convite, é
um chamamento. Ao menos eu me senti convocada a voltar a sonhar por outros
mundos mesmo que eles pareçam impossíveis no contexto atual. Porque não se
trata de lutar por mais igualdade, há de se lutar pela igualdade radical; tampouco
se trata de lutar por uma melhor democracia, mas por uma democracia real;
sequer se trata de tentar diminuir a pegada humana na terra que tem
transformado o planeta em níveis geológicos4, mas de considerar que todas as

3
A reforma da previdência e o aumento do superávit primário são alguns exemplos dados por
Safatle.
4
Aqui me refiro ao que se convencionou denominar por Antropoceno. A ciência vem investigando
como a ação de uma parte da humanidade tem transformado o planeta em níveis geológico,
atmosférico, litosférico, etc. Existem nomenclaturas alternativas, como por exemplo,
capitaloceno. As discussões sobre antropoceno e capitaloceno estão apresentadas no capítulo
três.
20

pegadas são igualmente importantes pois todos os existentes devem ter


igualdade no direito à vida. A desmesura do impossível não deve ser esquecida,
ao contrário, deve ser ativada uma e outra vez, uma e outra vez, uma e outra
vez, mesmo quando fracassar pareça garantido.

Perante a desigualdade crônica, a democracia parcial, a exploração, a


expropriação, o etnocídio, a extinção em massa, como a arte poderia incidir
sobre o mundo em ruínas5 (TSING, 2019)? Qual poderia ser a ação da arte que
não apenas fizesse refletir sobre o que vivemos, mas permitisse a emergência
do que se considera improvável ou ainda imaterializado?

Em O circuito dos afetos, no capítulo em que discorre sobre política6, Vladimir


Safatle (2016, p. 36) escreve:

[...] talvez a única função real da arte seja exatamente esta, nos fazer
passar da impotência ao impossível. Nos lembrar que o impossível é
apenas o regime de existência do que não poderia se apresentar no
interior da situação em que estamos, embora não deixe de produzir
efeitos como qualquer outra coisa existente. O impossível é o lugar
para onde não cansamos de andar, mais de uma vez, quando
queremos mudar de situação. Tudo o que realmente amamos foi um
dia impossível.

O texto segue com o autor (SAFATLE, 2016) dizendo que para se criar outros
circuitos dos afetos, é preciso que os corpos sejam quebrados, decompostos,
despossuídos; precisam realizar gestos impossíveis e necessários para se
abrirem ao que que ainda não se percebeu como possível7. Posto de outra

5
A antropóloga estadunidense usa o termo damaged world, mundo danificado ou deteriorado. O
livro Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno, editado no Brasil, traduziu por
mundo em ruínas.
6
Nessa publicação, mais uma vez o autor apresenta a política não como um sistema de leis e
normas, mas como redes de afetos que circulam entre corpos produzindo regimes de implicação
e de identificação. A hipótese defendida por ele concerne na ideia de que a adesão social e a
organização da vida se constroem a partir de afecções específicas, criando, como consequência,
um campo limitado de possíveis, isto é, os afetos que circulam determinam “certas possibilidades
de vida a despeito de outras” (SAFATLE, 2016, p. 16). Em O circuito dos afetos, Safatle
apresenta o medo como afeto político hegemônico intrinsicamente ligado à ideia de indivíduo e
de propriedade. Em contraponto ao medo o filósofo não pressupõe a esperança, mas o
desamparo, desenvolvido como afeto político a partir das teorias de Freud.
7
Maurizio Lazzarato (2006), no trilho de Deleuze, coloca a discussão utilizando-se de outros
termos: realização e atualização. A realização se efetiva a partir de fundamentos
predeterminados, isto é, há uma preconcepção do que pode ser possível em uma determinada
situação, basta apenas que ela se materialize no plano da existência. Como é uma efetuação do
que já existe, as lógicas vigentes se mantém – como por exemplo as oposições entre natureza
21

maneira, uma outra sensibilidade é exigida, uma que desarticule a gramática8


que determina o que pode ou não ter existência material na atualidade; uma que
faça emergir outros modos de compor com aquilo que não é si mesma (e/o) e de
outros modos de se posicionar perante situações dadas.

Dentre as muitas funções da arte, uma delas é a possibilidade de dar a ver o


impossível. Na arte o impossível pode se atualizar em ato, o impensável pode
se tornar materialidade, o inimaginável pode ganhar forma. A arte pode fazer
isso porque sua ação incide nas percepções, nas imaginações e nas emoções,
e nós nunca devemos esquecer que estas são agentes políticos. Atualizar as
percepções, as imaginações, as emoções, bem como os esquemas mentais e
as representações de como compreendemos e agimos no mundo é esforço
indispensável para reconstruir o que se perdeu e inventar o que nunca aconteceu
(HERRERO, 2018, p. 21).

O próprio modo de produção da arte, seus artifícios, materiais e matérias –


perceptivas, sensoriais, visuais, discursivas –, excedem a objetividade, a
racionalidade, a moralidade e a lógica. Sua ação é micropolítica, mas como a
pesquisadora brasileira Suely Rolnik (2018) diz, não há transformação na
macropolítica sem a transformação micropolítica. A arte pode informar a
realidade e expandir nossa capacidade de imaginar e de fabular mundos. Ela
pode construir outros imaginários políticos e com isso revelar realidades
divergentes das existentes no aqui e agora do mundo. E assim, talvez, os

e sociedade, entre trabalho e lazer, entre intelectualidade e manualidade –, e com elas também
se conservam os modos de perceber, de se afetar, os desejos, os papeis, etc (LAZZARATO,
2006, p. 17). Esse regime não agrega o que ainda não existe, e seu fazer político é mera
efetuação de um projeto preconcebido. Em contraponto 1a realização está a atualização. Na
atualização de possíveis o que se efetua não está subordinado a alternativas preconcebidas, ao
contrário, ele se desloca das lógicas vigentes e expressa uma descontinuidade na experiência,
criando novas potencialidades de vida, novas relações e outros agenciamentos. Em termos
políticos, o regime de atualização é uma operação que contestar o preestabelecido e uma
abertura para além do que já é dado (LAZZARATO, 2006, p. 19).
8
Para Safatle uma sociedade se fundamenta, entre outras coisas, em uma gramática de
inscrição, isto é, em modos específicos de articulação que condicionam toda experiência política.
Operando de maneira similar a uma gramática linguística – com sua sintaxe, suas semânticas,
seus princípios de relação –, a gramática que articula a experiência política determina quem são
os atores políticos e quais seriam suas agências, e designa o que pode ser percebido e o que
pode nos afetar, ela “determina os limites do que é possível e do que é impossível de uma
sociedade realizar e imaginar”.
22

impossíveis poderiam ser percebidos já-não-tão-impossíveis, ou ao menos


podem ser tensionados e questionados.

A quem faz arte então cabe tentar abrir uma lacuna, encontrar uma brecha para
o exercício de transformação, mesmo que seja mínima, mesmo que não seja. A
quem faz arte cabe seguir tentando criar outros modos de engajamento para
com o mundo, sem se desencantar caso nada ocorra, porque a responsabilidade
de quem faz arte não é a de garantir um acontecimento, mas seguir produzindo
um campo de afecção onde ele possa emergir.

O impossível comprometido na transformação das realidades sociais, políticas


também requer da pessoa artista que seu trabalho esteja fundamentado e
implicado no trânsito entre arte e vida, entre ficção e realidade: a pessoa artista
se atenta aos aspectos da realidade e, a partir deles, propõe desvios,
dissonâncias, diferenças. O trabalho artístico então deixa de ser um discurso
sobre algo ou a materialização de uma crítica9, e se torna uma proposição de
uma outra versão da situação, uma que até aquele momento não se encontrava
nas esferas dos possíveis daquele contexto.

No entanto, os impossíveis aos quais insistentemente me reporto não poderiam


ser mais discrepantes do impossível que se instaurou. Viver esses últimos
meses consistiu em estar na permanente tensão entre impossíveis, os que se
direcionam à potência da vida, e os que intensificam a níveis inadmissíveis o

9
Em Artist at Work: Proximity of Art and Capitalism, a pesquisadora Bojana Kunst (2015) propõe
pensar o político na dança para além da ideia de interrupção, de ruptura ou de desconstrução
(do aparato teatral, da ideia de espectador, assim como da ideia de contexto). Sugere ainda que
devemos repensar o que seria uma arte crítica, noção que se tornou um dos modos mais
relevantes da arte: assumir posições políticas na tentativa de se conectar com as formas de vida
na contemporaneidade. A arte provoca, mostra visões diferentes, dá visibilidade e assume
posições críticas, mas, mesmo assim, segundo a autora, ainda há poucas produções artísticas
que provoquem oportunidades para que a vida que está por vir – aquilo que é de outra ordem –
emerja. Kunst afirma que, nas artes performáticas, o político não diz respeito ao reconhecimento
de uma comunidade que já existe, nem ao reconhecimento das pessoas que “estão certas”,
tampouco ao reconhecimento do que há de comum entre quem que compartilham o trabalho no
aqui/agora. Para a pesquisadora (p.16) a arte estaria “entrelaçada com questões relativas às
condições e às possibilidades da própria vida; a arte intervém no revelar de modos potenciais de
realidades comuns. A arte não se articula, portanto, nos contextos discursivos autorreferenciais
ou na crítica distanciada de si mesmo, mas desafia e destrói, de maneira direta, uma variedade
de contextos em que aparece e se torna visível e, ao mesmo tempo, não permite sua redução a
uma postura moral e didática”.
23

horror do viver e morrer em um mundo deteriorado. É como se a vida tivesse se


tornado ficção científica, e essa ficção no Brasil se expressa como uma ficção
científica anticientífica10 operada por um estado genocida11 que atua ativamente
para aprofundar ainda mais o apartheid não-oficial do país (BRUM, 2020)12.

Sobre os impossíveis em contexto

Os trabalhos discutidos por mim nessa investigação começaram a tomar corpo


a partir das leituras sobre o perspectivismo ameríndio. Não lembro13 como
exatamente cheguei ao perspectivismo multinaturalista, conceito desenvolvido
pelo etnógrafo Eduardo Viveiros de Castro e pela etnógrafa Tânia Stolze Lima,
a partir da noção yudjá de ponto de vista. Eu lia, relia, lia mais uma vez e nunca
conseguia agarrar completamente a ideia de perspectivismo. Quando tentava

10
Não cabe a esse estudo expor profundamente os atos do atual governo federal, mas para que
essa afirmação não recaia numa abstração, ou uma declaração leviana, é necessário elencar
algumas posições anticientíficas do governo federal em relação à pandemia de Covid-19. Jair
Bolsonaro, contrariando os dados sobre a letalidade e a facilidade de contágio, chamou o Covid-
19 de gripezinha. Bolsonaro demitiu dois médicos que presidiram o Ministério da Saúde por eles
estarem tentando seguir as diretivas da Organização Mundial de Saúde (OMS); no lugar de
ministros técnicos, a pessoa que ocupa a cadeira de presidente do Brasil instituiu um militar sem
qualquer histórico na área da saúde. Bolsonaro não usa máscaras e tampouco pratica o
distanciamento social, diretivas da OMS para evitar a rápida propagação do vírus. O governo
informou não confiar na vacina produzida na China, por ser um país comunista. Contrariando
muitos estudos científicos que confirmam a ineficácia da hidroxicloroquina para o combate ao
COvid-19, o governo federal comprou milhares de doses do remédio num valor superfaturado.
Bolsonaro insistentemente declara que não irá se vacinar, contrariando mais uma vez pesquisas
realizadas no mundo inteiro e incentivando o rompimento do pacto social sobre a necessidade
da vacinação.
11
Em entrevista à jornalista Eliane Brum para o site El País, a jurista especialista nas relações
entre direito internacional e pandemias, Deisy Ventura (2020) elenca indícios de que o governo
federal brasileiro tem agido de forma intencionalmente genocida no contexto da pandemia de
Covid-19. Dentre as ações que tipificam genocídio estão: o ataque sistemático às tentativas de
controle de propagação da doença; a demora no repasse financeiros a estados e municípios; a
manipulação de dados referentes ao Covid-19; a omissão de auxílio sistemática aos povos
indígenas.
12
Com essa afirmação a jornalista Eliane Brum expõe que a pandemia de Covid-19 revela a
desigualdade do Brasil, onde se explicita quem tem o direito de não se contaminar e quem não.
Brum nos lembra que a primeira pessoa que morreu de Covid-19 no Brasil, foi uma mulher negra
que trabalhava como empregada doméstica na casa de uma mulher que havia recentemente
visitado a Itália, onde contraiu a doença. Mesmo com sintomas e sabendo de seu contágio, a
mulher não avisou à funcionária que estava infectada, expondo-a ao vírus.
13
Tentando fazer uma arqueologia da memória, suponho que tenha sido em 2014, quando
participei virtualmente do colóquio internacional Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade
da Terra, realizado no Rio de Janeiro. O colóquio reuniu pesquisadoras e pesquisadoras de
diferentes áreas de conhecimento de diversos países para discutir o antropoceno a partir de
múltiplas perspectivas. Para mais informações sobre o evento, acesse o site
https://osmilnomesdegaia.eco.br/page/2/. No site estão também os vídeos e os textos das
palestras e dos grupos de discussão.
24

explicar o conceito para alguém14, me embananava toda e sempre saía o sentido


contrário do conceito. O perspectivismo opera na lógica oposta do pensamento
ocidental. Se para o pensamento ocidental hegemônico e de cunho determinista
o mundo é dado, estável e imutável, o que muda é a percepção de quem ocupa
o lugar do ponto de vista; no perspectivismo, o ponto de vista é o mesmo para
todos existentes, o que muda é o mundo. Foram literalmente anos para
conseguir entender completamente o conceito sem me confundir, o que
evidencia o quanto meu pensamento está – ou estava, assim espero –
colonizado por apenas uma compreensão de mundo. Ali tinha algo que me
atraía, mas não sabia como manuseá-lo.

Lembro de uma conversa com Tereza Franzoni, minha orientadora, em que


disse que gostaria de trazer o perspectivismo para a pesquisa, mas não sabia
como. Ela me respondeu que, por ser uma proposição muito difícil de trabalhar,
talvez o perspectivismo não necessariamente devesse aparecer na tese, mas
poderia ser como um pano de fundo da pesquisa. A conversa em vez de me
acalmar, porque era isso que Tereza estava tentando fazer, me desafiou. Seguia
estudando e tentando trabalhar ao menos com partes desse conceito tão amplo
e diferente para mim. Tentei levar a noção de equívoco15 de Viveiros de Castro
às pesquisas do Coletivo Mapas e Hipertextos 16, na vontade de desenhar
parâmetros para transpor o conceito ao trabalho artístico. Conseguimos produzir
proposições de composição nas quais o equívoco ganhava forma (embora às
vezes só criasse confusão). Ainda assim o que desejava investigar não era a
produção de um jogo performático; na transposição do conceito à performance,
algo se perdia. Perder algo na transposição entre linguagens não é exatamente
a questão, pois no trânsito algo sempre se ganha e algo sempre se perde. O

14
Lembro de tentar explicar para Adriana Miranda Cunha, amiga querida e companheira de
doutorado, durante um dos nossos muitos almoços juntas depois das aulas na Udesc. Eu
explicava e depois dizia “não, não é isso”. Isso se repetiu muitas vezes com diferentes pessoas
ao longo dos anos.
15
Viveiros de Castro (2015, p. 92) desenvolve uma conceituação de equívoco ao longo de
algumas páginas do livro Metafísicas Canibais, no qual afirma que “equívoco não é um erro, um
logro ou uma falsidade, mas o fundamento mesmo da relação que o implica, e que é sempre
uma relação com a exterioridade. Um erro ou um engano só podem se determinar como tais
dentro de um mesmo “jogo de linguagem”, ao passo que o equívoco é o que se passa no
intervalo, o espaço em branco entre jogos de linguagem diferentes.”
16
O Mapas e Hipertextos é um coletivo de pesquisa e criação que atua nas bordas entre dança,
performance e teatro, do qual faço parte desde que cheguei à ilha do Desterro em 2014.
25

problema residiu no que foi perdido: o próprio cerne do perspectivismo: a


dimensão cosmopolítica na qual o antropocentrismo desaba, pois no
perspectivismo todos os existentes disporiam do “mesmo conjunto básico de
disposições perceptivas, apetitivas e cognitivas” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015,
p. 43). O equívoco nos trabalhos do Mapas e Hipertextos aparecia como efeito
do encontro entre proposições contrastantes – o que o aproximava mais de um
jogo entre desacordos –, e não como o feito do encontro entre proposições cujas
naturezas não são as mesmas.

O equívoco encarnado

A noção de equívoco se evidencia no artigo Natureza Incomum: histórias do antropo-cego de


Marisol de la Cadena (2018) quando a antropóloga peruana discorre sobre a situação da
campesina Máxima Chaupe, no Peru. A história de luta da campesina tem início em 2011
quando a mineradora Yanacocha tenta comprar suas terras com objetivo de drenar diversas
lagoas para a extração de ouro 17. Em contrapartida a destruição daquele ecossistema, a
mineradora oferece a construção de reservatórios cuja capacidade de captação de água é
muito maior do que aquelas das lagoas. Além das óbvias objeções de ambientalistas em
relação a destruição do ecossistema local – a destruição da natureza –, as pessoas que
moram na região norte do Peru apontaram outra questão, uma que irrompe a compreensão
usual da situação: as lagoas não são apenas água, são relação. Evidentemente o que as
pessoas campesinas trazem também tem caráter ecológico, mas o excede. Para a população,
a lagoa não é natureza externa que deve ser preservada para garantir a manutenção da
biodiversidade local. Substituir água por água não funciona, porque lagoa e água estão longe
de serem a mesma coisa. A lagoa é si mesma, e toda uma outra coisa.

Máxima Chaupe, diz de la Cadena (2018) é a última barreira que impede a mineradora de se
instalar na região. De la Cadena conta que Máxima recusou vender sua propriedade por
quantias exorbitantes de dinheiro, mesmo vivendo sob cerco policial por mais de três anos.
Tendo suas colheitas destruídas, seus animais mortos, sofrendo diversas ações judiciais, tudo
sob influência da mineradora, Máxima insiste “Eu não vou parar; eles podem acabar comigo.
Mas vou morrer com a terra”. Dependendo da ótica que se escolhe usar, Máxima pode ser
vista ou como uma ambientalista que protege o ecossistema local, ou como uma
aproveitadora que espera um preço melhor, ou ainda como uma heroína disposta a grandes
sacrifícios. Marisol de la Cadena (2018, p. 108) coloca que estes modos de entender a relação
entre Máxima e lagoa compartilham a gramática que prevê sujeito – Máxima – e objeto –
lagoa. Mas De la Cadena insiste em outro modo de perceber a situação:

A recusa de venda também pode recusar a gramática que transforma as


entidades em corpos individuais, unidades da natureza ou do meio
ambiente, que, quando são parte uns dos outros, não são. Assim analisado,
a recusa de Máxima seria o ato de um pensador particular, aquele que
pensa com suas próprias forças para promulgar uma natureza ecologizada

17
A situação pode ser melhor compreendida nas matérias deste link da revista Ecologia Política
https://www.ecologiapolitica.info/?p=729 e neste link do jornal La República
https://larepublica.pe/politica/858259-el-pantanoso-caso-chaupe/. Há um documentário peruano
de 2018 dirigido por Mariel Sosa que conta a história de Máxima e da situação local. Para mais
informações, acessar o site do documentário por este link:
https://www.maximathislandofmine.com/. Hija de la Laguna (2015) é um documentário situado
na mesma região do território de Máxima e aborda a mesma temática tendo como protagonista
a campesina Nélida Ayay que também luta contra as investidas das mineradoras.
26

localmente (entidades interdependentes umas das outras) que


simultaneamente coincide, difere e até ultrapassa (também porque inclui
humanos) o objeto que o Estado, a empresa de mineração e os
ambientalistas traduzem em recursos, exploráveis ou a serem defendidos.
Construindo “um tipo de linguagem estrangeira dentro da linguagem”, ela
também se torna agramatical no que diz respeito à relação entre sujeito e
objeto e ao social que disso decorre. Sua resposta é impulsionada por uma
lógica que excede a do lucro e do ganho, e a do meio ambiente e de sua
defesa.

O ato de Máxima que irrompe as lógicas predeterminadas é anterior à recusa. Máxima não se
relaciona com seu território em termos de posse, ela não seria o sujeito proprietário do objeto
território (DE LA CADENA, 2018). Insisto: lagoa não é apenas uma lagoa, ela é toda uma
outra coisa. É aqui que o equívoco acontece: a ideia lagoa para certas pessoas resulta em
uma materialidade específica, e para outras, uma materialidade completamente diversa. Por
exemplo, para mim e para a maioria das pessoas ocidentais, colocando de maneira simples,
lagoa é um espaço delimitado por bordas que contém água doce. Para Máxima lagoa é algo
bem diferente. A questão é existencial: Máxima é com o território, uma composição composta
por e de, são, portanto, inseparáveis.

Como se poderia esperar o equívoco também revela uma relação de poder, ele incide nas
convenções do que é, e do que não é uma coisa, e, consequentemente, afeta as tomadas de
decisões, como explica de la Cadena (2018, p. 99): “o mal-entendido no equívoco emerge
quando corpos que pertencem a mundos diferentes usam a mesma palavra e nomeiam
entidades que não são as mesmas porque elas também, como os corpos que as nomeiam,
pertencem a mundos diferentes”. A lógica vigente nas políticas e nas leis compreende lagoa
como uma porção de água a ser explorada, isto é, a toma como recurso, e desconsidera os
modos de compreensão diferentes desses (nesse caso a compreensão dos povos originários
do Peru).

Ainda assim, não podemos negar que as razões que levam Máxima a não sair podem gerar,
e geraram, efeitos em pelo menos duas instâncias: a jurídica e a jornalística. O que Máxima
traz é impensável e inexistente nos termos das leis, pois na lei (ao menos a do Peru) sempre
há um proprietário e uma propriedade, qualquer ação que saia desse parâmetro se torna
praticamente ininteligível. Sua ininteligibilidade força a um outro tipo de pensar as relações
jurídicas de posse, ou pensar que há relações que não podem ser enquadradas como posse18.
A imprensa peruana também não consegue compreender ou definir a ação de Máxima,
produzindo uma pausa inflexiva, uma interrupção cognitiva naquilo que se tem por conhecido.

Da mesma maneira que o perspectivismo não conseguiu ganhar forma nas


práticas do Mapas e Hipertextos, no material entregue na qualificação ficou
evidente a minha incapacidade em incluir o perspectivismo no próprio texto. Ele
apareceu na maneira sugerida por Tereza: como pano de fundo. Para explicitar
a relevância do perspectivismo e dos pensamentos de Ailton Krenak e de Daví
Kopenawa, escrevi um pequeno capítulo de cinco páginas, quase um anexo
inserido no meio do material em processo.

18
Já existem algumas decisões jurídicas que partem de uma compreensão diferente da lógica
do recurso. Por exemplo, a Declaração dos Direitos da Natureza foi incluída na constituição
federal do Equador e um rio na Nova Zelândia foi reconhecido como detentor dos mesmos
direitos que uma pessoa. Algumas dessas mudanças nas leis de alguns países aparecem no
documentário Rights of Nature (GOECKERITZ; BERRO; CRIMMEL, 2018). Disponível em
https://youtu.be/kuFNmH7lVTA. Acesso em 10 de jan. de 2020.
27

Nascida e criada na lógica das ciências biológicas e no pensamento ocidental,


até meu contato com as ideias perspectivistas, nunca questionei se a natureza
é outra coisa senão algo dado, imutável, universal e objetivo. Para mim, o que
mudaria era a percepção de mundo, não o mundo – afinal uma abelha veria o
mundo completamente diferente de mim porque seu aparato perceptual é
diferente do meu, não porque o mundo dela é diferente; uma pessoa de cultura
diferente da minha possui um arcabouço cultural que a faz perceber o mundo
diferente de mim, ainda que o mundo seja o mesmo. A proposição perspectivista
desestabiliza a base do pensamento ocidental pois leva plasticidade à natureza
– porque o mundo não é algo dado e estável, ele depende de quem ocupa o
ponto de vista de pessoa –, e unicidade à cultura – porque todos os existentes
disporiam das mesmas capacidades e aparatos para ler o mundo. Pondo de
outra maneira, todos os existentes são potencialmente pessoas e enxergam o
mundo a partir deste ponto de vista, assim, “não há, então, garantias de que o
modo como nos vemos seja o modo verdadeiro de ver, pois este é o modo como
todos os seres vivos se veem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 96). Uma
posição ao mesmo tempo assustadora – porque remexe completamente o que
tomamos como verdade – e libertadora – porque revela que não há nada fixo e
unidirecional19.

À época da qualificação vinculei o perspectivismo à noção de impossível, vi nele


uma proposição que excedia os possíveis, ao menos os meus do mundo
ocidental e seu paradigma de natureza fixa e única e de cultura mutável e
múltipla. Não se tratava exatamente de um exemplo de impossível, porque se
fosse apenas isso haveriam muitos outros exemplos; me direcionava às
especificidades dos pensamentos ameríndios que tensionam os possíveis do
pensamento ocidental e poderiam produzir transformações em aspectos sociais,
políticos, culturais e ecológicos no mesmo.

19
Importante frisar que não se trata de trocar uma perspectiva pela outra, ou seja, não é sobre
passar acreditar no perspectivismo como verdade unívoca, mas de incluí-lo como possibilidade,
dentre tantas possibilidades.
28

O perspectivismo ameríndio desloca a humanidade do centro, quebrando com o


antropocentrismo, a compreensão da espécie humana como a mais evoluída
dentre todas as espécies. Se tudo é humano, ninguém é especial, ou melhor
dizendo, tudo tem a mesma importância. Se todos os existentes são pessoas,
então todos detém agentividade e potência para agir no mundo e responder ao
contexto20.

Uma outra diferença apontada por Aílton Krenak diz respeito a compreensão de
meio ambiente. Aílton Krenak pertence ao povo Krenak, descendentes dos
Botocudos, naturais do território situado a beira do Rio Doce que hoje se
denomina Minas Gerais. Krenak é uma das lideranças indígenas mais ativas no
território nacional desde a década de 1970. Participou da elaboração da
Constituição Brasileira de 1988 e fundou ao menos duas instituições que tratam
da causa indígena e seus aspectos políticos, culturais e sociais, a UNI (União
das Nações Indígenas)21 e a Aliança dos Povos da Floresta22. Krenak traduz com
muita propriedade os modos de vida e a cosmologia indígenas para os povos
não-indígenas, da mesma maneira que traz questionamentos sobre os modos
de vida e as cosmologias do povo branco, tecendo relações entre colonialismo,
antropocentrismo, capitalismo e branquitude, em uma leitura de conjuntura ímpar
e fundamental que nos ajuda a enfrentar tanto a crescente desigualdade social,
quanto a urgência climática do antropoceno/capitaloceno. Para o ambientalista
(KRENAK, 2015), as pessoas brancas consideram o meio ambiente como

20
Ideias razoavelmente análogas foram desenvolvidas nos anos 1970 pelo cientista e ecólogo
britânico James Lovelock e a microbióloga estadunidense Lynn Marguilis na reconhecida
hipótese de Gaia. Nessa hipótese, hoje tomada como uma teoria científica, diferentemente de
outros planetas próximos, a Terra possui uma composição atmosférica única somente explicada
a partir da ação de organismos vivos no ambiente inorgânico, transformando-o em seu benefício.
A teoria de Gaia inclusive questiona as definições do que seria um organismo vivo. O termo vem
sendo usado e desenvolvido tanto no campo das ciências biológicas como da filosofia por
pessoas como Bruno Latour, Isabelle Stengers e Donna Haraway.
21
Primeira organização indígena institucionalizada a defender as necessidades e os interesses
dos diversos povos indígenas brasileiros. Composta por mais de 180 grupos indígenas, a UNI
representou as vozes indígenas na construção da Constituição de 1988, que garantiu a
autonomia dos povos e assegurou os direitos à cultura, ao território e aos modos de vida
tradicionais.
22
Movimento que reuniu indígenas, pessoas ribeirinhas e seringueiras na luta pela preservação
da floresta amazônica e da biodiversidade local. Na Aliança dos Povos da Floresta também
estava o ambientalista, sindicalista, ativista e seringueiro Chico Mendes, assassinado a tiros em
1988 por sua atuação contra a grilagem de terras na Amazônia. Mendes foi e é uma referência
de luta socioambiental na Amazônia. Hoje seu nome figura na instituição federal responsável
pela preservação ambiental, a ICMBio, Instituto Chico Mendes de Biodiversidade.
29

recurso natural, “como se fosse um almoxarifado onde você vai e tira as coisas,
tira as coisas, tira as coisas (...) Você tira minério, você tira floresta, você tira
água. Você bombeia tudo, exaure. Isso é o ‘meio-ambiente’”23. Em
contraposição, “pro pensamento do índio, se é que existe algum lugar onde você
pode transitar por ele, é um lugar que você tem que pisar nele suavemente,
andar com cuidado nele, porque ele está cheio de outras presenças. Então não
existe o meio ambiente”. A experiência do meio ambiente para os povos
indígenas, continua Krenak, “é uma experiência mais do ambiente integral, do
ambiente integrado ao ciclo da vida, e não a uma ideia do recurso natural”.

O líder xamã do povo Yanomami Daví Kopenawa24 apresenta uma percepção


similar à de Krenak. Para ele (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 484–485), o meio
ambiente das pessoas brancas é “o que resta da terra e da floresta feridas por
suas máquinas. É o que resta de tudo o que eles destruíram até agora”. Até o
contato com pessoas brancas, o povo Yanomami não possuía conceituação para
natureza, meio ambiente ou ecologia. Os termos mais semelhantes são urihi a
pree ou urihi a pata, traduzíveis por mundo inteiro, terra-floresta, floresta,
território (KOPENAWA; ALBERT, 2015). Na tradução, todos esses termos
adquiriram também conotações metafísicas; mais do que espaço topográfico e
para além de uma conexão de codeterminação, urihi é contexto de trocas, de
lutas, de guerras, de desacordos, de morte, de vida, de alianças, de implicação
múltipla e mútua.

A noção de meio ambiente, e mesmo a proteção dele, tem o antropocentrismo


como pressuposto, meio ambiente é uma exterioridade cujo sujeito-centro é a
sociedade-mercado industrial global (ALBERT, 1995). O antropólogo francês
Bruce Albert (1995, p. 20–21) alerta que também a proteção do meio ambiente
remete “à noção de uma Natureza produtiva em vias de colapso, cujos ‘recursos’

23
Krenak aponta que a noção de meio ambiente como recursos naturais foi por muito tempo
defendida pelos programas das Organização das Nações Unidas (ONU), agora substituída por
desenvolvimento sustentável.
24
Junto ao etnógrafo francês Bruce Albert, escreveu o livro A queda do Céu24 que aborda a
cultura do seu povo e suas cosmovisões, assim como revela como seu povo enxerga a civilização
ocidental, denominada por ele como povo da mercadoria. Em 2020, Kopenawa foi eleito a
Academia Brasileira de Ciências, instituição não governamental composta por cientistas cujo
trabalho consiste em oferecer subsídios científicos para a formulação de políticas públicas.
30

rarefeitos são passíveis de um gerenciamento econômico esclarecido


(‘sustentável’)”, e conclui que o modo como a sociedade ocidental fetichisa a
natureza “enquanto exterioridade selvagem do mercado e da sociedade”, nos
coloca “entre a predação cega, a utopia da fusão total e o meio termo pós-
moderno do ambientalismo gerencial”.

O povo Yanomami e a maioria dos povos indígenas do Brasil, tiveram que se


inserir em lógicas às quais não compartilham para poderem defender seus
modos de vida, suas visões de mundo, sua educação e seus territórios
tradicionais. Os povos indígenas tiveram que aprender a falar como as pessoas
brancas, tiveram que traduzir seus pensamentos e cosmologias à gramática e à
semântica ocidentais para se fazerem ouvir e se tornarem sujeitos políticos e
jurídicos de direito em Estados-nação, como o brasileiro, que por séculos insistiu
– e em certa medida ainda insiste – em subjugá-los a regimes legais de tutela
por não reconhecer suas capacidades para a vida cívica25. Mas na tradução
intercultural as palavras brancas ganham outros sentidos, ecologia para
Kopenawa, por exemplo, adquire camada espiritual: “ecologia são as palavras
de Amomë” (Kopenawa apud ALBERT, 1995, p. 22), retraduzida por Albert
(1995, p. 24) como o “poder de proteção dos espíritos xamânicos”.

O que poderia acontecer se nós, as pessoas que pertencem à branquitude


ocidental, abdicássemos, ou no mínimo problematizássemos, nossas
cosmovisões autocentradas e nos puséssemos em relação mais simétrica com
os outros-que-humanos? O que ocorreria se nossas categorias sofressem
influência das categorias indígenas? Se, por exemplo, ecologia, meio ambiente
e recursos naturais fossem informados pelas experiências indígenas? Quais
seriam as mudanças nos possíveis da branquitude ocidental se nossa
cosmologia se informasse pelos possíveis das visões indígenas? Será que
alguns dos nossos impossíveis, como a desconstrução do antropocentrismo ou
da compreensão de natureza como recurso, sofreriam alguma transformação e
poderiam passar a figurar entre os possíveis?

25
Primeiro pela instituição do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1910, e depois pela
Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967.
31

Viveiros de Castro (2015, p. 21–22) nos lembra que experiências de outras


culturas são ocasiões para experimentarmos a nossa própria cultura, um modo
de experimentar outras imaginações. Isso não diz respeito apenas à inclusão de
outras variáveis ou conteúdos diversos a nossa imaginação, inclui também a
possibilidade de nossa imaginação conceitual entrar em “regime de variação,
assumir-se como variante, versão, transformação”26.

A estrutura da tese

No primeiro capítulo da tese abordo o trabalho carnet de desidentidad planetaria,


uma proposição/estudo desenvolvida nos primeiros meses de minha estadia em
Madrid e realizada durante uma oficina no Museu Reina Sofia27. O carnet de
desidentidad foi a primeira tentativa de acionar o impossível e consistiu em um
convite feito às (aos) companheiras (es/os) de máster no qual propus uma troca
de documento. O impossível emerge da vontade de desestabilizar algumas
categorias identitárias, a saber, classe, gênero, raça, nacionalidade e espécie, a
partir de uma desidentidade: o documento de desidentidade planetária. O
trabalho parte de uma ideia de indiferenciação – apresentada, embora pouco
desenvolvida, por Vladimir Safatle – e se direciona à uma leitura aberta da noção
de sujeito do perspectivismo ameríndio, no qual todos os existentes são
potencialmente sujeitos e não há uma condição à priori. O carnet de desidentidad
planetaria é um convite para as pessoas se colocarem em um campo imaginativo
de indiferenciação, de indistinção, em que não há uma posição
diferenciada/especial, pois a multiplicidade exponencial de existentes produz a
indiferenciação entre todos eles.

O segundo capítulo trata da instalação coreográfica hacia, último trabalho


realizado durante o doutorado sanduíche, que ocorreu nas dependências do
Museu Reina Sofia ao longo de uma semana. Diferentemente do carnet de

26
A antropologia, diz Viveiros de Castro (2015, p. 231), não trata de explicar os mundos dos
outros povos e culturas, cabe a ela multiplicar o nosso próprio, pois “não podemos pensar como
os índios; podemos, no máximo, pensar com eles”.
27
Um dos maiores museus de Madrid, o Reina Sofia possui um grande acervo de arte moderna
e contemporânea europeia. Muitas das aulas e oficinas do máster ocorrem ali devido ao acordo
de colaboração entre o Centro de Estudios (área de formação e de investigação do museu) e o
máster.
32

desidentidad planetaria, que parte das lógicas ocidentais identitárias para


tensioná-las, hacia está imersa em perspectivas indígenas e indigenistas. O
trabalho busca fomentar o encontro entre dois existentes de naturezas
diferentes. Com o encontro há uma aposta na desconstrução de relações
pautadas hierarquicamente, como sujeito-objeto, natureza-cultura, objetividade-
subjetividade.

Com o desenvolvimento da pesquisa, a investigação se distanciou das teorias


políticas ocidentais para adentrar um campo em que os vínculos se dão entre a
multiplicidade de existentes: humanos, outros-que-humanos, mais-que-
humanos. Nos pensamentos indígenas abordados nessa pesquisa, a
espiritualidade não é compreendida como exterioridade, ao contrário, é imanente
e intrínseca à experiência da vida. Vínculos de cooperação e alianças afetivas
se estabelecem em uma lógica de conhecimento que se dá pelo reconhecimento
da subjetividade, e não a partir da objetividade, como no nosso pensamento
ocidental. Assim, outros elementos e outros modos de conhecer irromperam a
produção artística, a investigação e a escrita. Busquei desviar de uma lógica de
apropriação dos modos de fazer e de pensar indígenas para compreender como
esses fazeres e pensares colocavam a minha perspectiva em perspectiva, e
informavam, afetavam e transformavam o meu próprio fazer como artista mulher
branca de arte contemporânea ocidental. Dessa maneira, hacia é uma tentativa
de instaurar um modo de relação que a mim e à maioria das pessoas ocidentais
é impossível, e que esse impossível instaurado poderia vir a transformar o nosso
modo de perceber e agir no mundo.

Se a humanidade é compartilhada entre todos os existentes, todas as relações


são sociais. Os vínculos de cooperação e as alianças afetivas então, poderiam
ser compreendidos também em termos políticos, porque, como salienta o
antropólogo Renato Sztutman (2020) é necessário considerar as consequências
de afirmações como a de Daví Kopenawa (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 390):
33

“Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama 28 e dos xapiri29
que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que
preferimos, pois são nossas mesmo”30. Sztutman (2020, p. 187) apresenta a
política yanomami como “um grande esforço diplomático de composição entre
mundos, que tem no xamanismo um sustentáculo fundamental”, o que o leva a
pensar a política destacada de sua origem grega, domínio exclusivo da
humanidade (aqui compreendida sob a ótica ocidental).

A proposição de Sztutman ressoa com a maneira de compreender política de


Susan Buck-Morss, filósofa e historiadora estadunidense. Para a autora (BUCK-
MORSS, 2013, p. 348), a política não é uma ontologia ou, em suas palavras, “o
ontológico nunca é político”; a tentativa de criar uma ontologia política tanto (1)
falha politicamente – na produção metafísica de uma verdade ontológica da vida
vivida –; quanto (2) falha socialmente – na tentativa de compartimentar as
estruturas das existências para descobrir a natureza essencial de que seria o
político –; e também (3) falha criticamente – ao que diz respeito a revelação de
múltiplas formas de ser político em configurações culturais, temporais e
particulares. Diz Buck-Morss (2013) que a filosofia política está enganada em
assumir que seja proveitoso o movimento de produzir uma abstração ontológica
a partir de um contexto real para sua possível aplicação posterior ao mesmo

28
Omama é o primeiro homem, o demiurgo Yanomami, que surgiu junto com Hutukara, o
mundo/universo (KOPENAWA; ALBERT, 2015) Omama é o primeiro homem, o demiurgo
Yanomami, que surgiu junto com Hutukara, o mundo/universo (KOPENAWA; ALBERT, 2015).
29
Kopenawa (KOPENAWA; ALBERT, 2015) diz que são seres minúsculos como poeira e só
visíveis para xamãs, seriam o que nós acidentais chamamos de espíritos, mas não exatamente.
Eles têm morfologia múltipla, como colocado em uma nota de rodapé na página 622 de A queda
do céu: “Além dos espíritos/ancestrais animais (yarori), que dominam largamente (mamíferos,
pássaros, peixes, insetos, batráquios, répteis, quelônios e crustáceos), e dos demais espíritos
da floresta (árvores, folhas, cipós, méis selvagens, cupinzeiros, pedras, terra, água, corredeiras),
incluem-se entre os xapiri todos os personagens/entidades (maléficos ou não) da mitologia e da
cosmologia yanomami. Somam-se à lista espíritos de todos os tipos, dos mais domésticos (cão,
fogo, cerâmica) aos mais exóticos (ancestrais dos estrangeiros/brancos, dos bois, cavalos,
carneiros)”.
30
Não posso deixar de mencionar que o discurso indígena contemporâneo é informado tanto por
categorias brancas quanto por suas cosmologias. Bruce Albert (1995, p. 4) o compreende a partir
de um duplo enraizamento simbólico que tanto há uma auto-objetivação por meio de “categorias
brancas da etnificação (‘território’, ‘cultura’, ‘meio ambiente’)”, quanto há “uma reelaboração
cosmológica dos fatos e efeitos do contato”. Albert diz ser impossível separar os dois tipos de
registros, são interdependentes e equivalentes, e conclui que “se o discurso político indígena se
limitar à mera reprodução das categorias brancas, ele se reduzirá a uma retórica oca; se, por
outro lado, ele permanecer no âmbito exclusivo da cosmologia, não escapará do solipsismo
cultural”.
34

contexto ou a outro, porque não existe uma humanidade ontológica, ou, um ser
humano ontológico (p.351). Se não há uma ontologia humana, não há como
existir uma ontologia política31. A política, nos termos de Buck-Morss (2013) é
imanente, isto é, emerge do contexto.

Mesmo que possa existir no pensamento ocidental alguma definição de política


passível de ser aplicada a situações e contextos globais, a produção de uma
ontologia política universal é um ato no mínimo ingênuo, e de fato muito perigoso.
Ou seria uma desconsideração completa a outros modos de existência não-
ocidentais e a todas as formas de vida com as quais esses modos se relacionam;
e essa desconsideração seria uma atitude colonizadora per se. Ou, ainda pior,
seria compreender que os povos não-ocidentais não fazem política, porque seus
modos de fazer política não se adequam às lógicas ocidentais. O que talvez seja
o efeito mais perverso da insistência em uma ontologia política.

Como será possível ver no segundo capítulo em que discorro sobre o trabalho,
com hacia tentei tangenciar esse pensamento político que inclui os humanos, os
outros-que-humanos, os mais-que-humanos. Não sei dizer até agora se hacia
chegou a incidir diretamente na percepção de um fazer político que integra
existentes de naturezas diversas; o que de fato o trabalho aborda diz respeito a
relações menos hierárquicas, o que considero como um tensionamento dos
atores políticos porque, para que outros existentes sejam considerados atores
políticos, é preciso antes reconhecê-los como sujeitos com agentividade. hacia
se prestou a isso: a tentativa de mobilizar afetos e imaginações para o
reconhecimento mútuo de agentividades diversas.

O terceiro e último capítulo – Como quebrar barragens – discorre sobre a minha


experiência no evento Amazônia centro do mundo, realizado no final de 2019 em
Altamira, cidade situada no centro da Amazônia brasileira onde o Governo

31
Usando uma analogia, Buck-Morss (2013) cita o escritor nigeriano Wole Soyinka quando ele
faz uma crítica à ideia de uma negritude ontológica ao dizer que “um tigre não proclama sua
tigretude, ele ataca”, ou seja, ele não anda pela floresta dizendo que é um tigre, em vez disso,
quando se anda pela floresta e se encontra um cadáver de um animal, se percebe sua tigretude
imanente. A negritude para Soyinka é imanente, é do contexto, não uma abstração aplicável a
um contexto.
35

Federal junto à iniciativa privada instalou no leito do rio Xingu a segunda maior
usina hidrelétrica (UHE) do mundo, a UHE Belo Monte, cuja construção foi
cercada de ilegalidades ambientais e sociais e à revelia de inúmeras pesquisas
científicas que comprovaram sua ineficiência hídrica. No evento tive a
oportunidade de participar de Altamira 2042 da artista carioca Gabriela Carneiro
da Cunha, espetáculo criado a partir de pesquisas de campo realizadas ao longo
de 3 anos na região de Altamira.

Em Altamira 2042 a política da mata aparece reiteradas vezes, o ativismo político


se mescla ao xamanismo e à feitiçaria nas falas e nas imagens que compõem o
espetáculo. Gabriela Carneiro da Cunha atua como organizadora de uma
situação, projetando os depoimentos das pessoas e dos outros-que-humanos
que ali vivem, e materializando as histórias contadas e as entidades protetoras
da região. O trabalho expõe a interdependência entre mundos e a implicação
múltipla entre existentes de naturezas diversas. Ao final do espetáculo nós do
público somos convidadas (es/os) a uma ação impossível, a qual aceitamos, mas
isso é assunto para o terceiro capítulo.

Na última parte da tese teço algumas considerações sobre os três trabalhos


artísticos que essa tese aborda, identificando os modos como eles tentaram
ativar o impossível. Também apresento os desdobramentos dos quase cinco
anos de pesquisa no contexto do fazer artístico durante a pandemia de Covid-
19. A arte, principalmente as performáticas que têm por princípio a relação em
tempo real com o público, tiveram que se adaptar às condições do isolamento
físico para evitar a propagação da epidemia. ocupação mágica é um projeto
desenvolvido em resposta à situação, realizado por mim, Diana Gilardenghi e
Hedra Rockenbach. Nele, o impossível ganha contornos e dimensões
particulares. Discorro também como o impossível não se circunscreve ao
universo da arte, é um esforço que atravessa a vida e reverbera no meu estar
no mundo, se atualizando em ações como a minha participação em uma
campanha eleitoral em Florianópolis, e na formação de um grupo de trabalho
para traduzir e divulgar a luta indígena brasileira a pessoas que não falam
português.
36

Não posso deixar de mencionar esses quadros cinzas com fonte em branco que já aparece
logo no início dessa introdução, interrompendo o desenvolvimento da escrita. Enquanto
escrevia a tese percebi a necessidade de uma estrutura hipertextual para apresentar algumas
discussões e observações pertinentes à tese embora tangentes a ela. São assuntos que
atravessam o percurso do pensamento, mais relevantes do que uma nota de rodapé, embora
não configurem um subcapítulo por justamente ser uma interrupção. As caixas apresentam
um aprofundamento de um conceito, como no caso do equívoco da introdução, ou discorrem
sobre uma situação, ou trazem uma contextualização, ou ainda problematizam o trabalho.
37

1 DESIDENTIDADE E INDIFERENCIAÇÃO

Em uma sala ampla no andar mais alto do Museu Reina Sofia em Madrid, estão
cerca de 15 pessoas sentadas ao chão dispostas em círculo. Uma delas tem um
documento nas mãos, nenhuma das outras pessoas consegue ler ou saber que
tipo de documento é aquele. A pessoa em posse do documento começa a falar
às outras:

Estou aqui para fazer o impossível, possível. Isso não se trata de magia. Também não me coloco
em uma posição de poder, tenho tanto poder quanto qualquer uma de vocês: não represento o
Estado ou qualquer instituição legal ou pública.

Como vocês sabem, há algum tempo venho recebendo desejos impossíveis de diversas
pessoas. Dentre tantos, escolhi um que pedia o fim da ideia de nacionalidade e sua
operacionalidade no mundo. Pensei que se é para por fim à nacionalidade, também poderia dar
fim às outras categorias que insistem em nos identificar.

Tenho em minhas mãos um documento de desidentidade planetária. Nele está escrito: sem
gênero, sem classe social, sem nacionalidade, sem raça e sem espécie. Alguém de vocês se
interessaria por essa desidentidade?

A maioria das pessoas levantaram as mãos, outras permaneceram olhando. A


pessoa em posse do documento seguiu:

Mas para isso proponho uma troca, ofereço esse documento de desidentidade planetária em
troca de qualquer documento que vocês tenham. Pode ser um DNI32, um passaporte ou um
documento de habilitação. Quem se interessa em fazer a troca?

O grupo ficou em silêncio. As pessoas se olhavam e pareciam se perguntar se


aquilo era uma brincadeira. Aquela que estava em posse do documento de
desidentidade repetiu a pergunta. A falta de explicação e talvez o longo silêncio
fez com que outros comentários e questionamentos emergissem. Uma pessoa
afirmou que aquele documento não possuía legalidade alguma pois era apenas
um pedaço de papel. Outra perguntou se o documento válido seria devolvido.
Uma terceira disse que poderia fazer a troca pois tinha três documentos de
identificação, mas que não a faria justo porque romperia com o pacto da troca
da identidade pela desidentidade, posto que sua identidade oficial estava
garantida por ao menos outros dois documentos. Outra ainda, visivelmente

32
DNI (Documento Nacional de Identidad) é cédula de identidade espanhola, seria como o CPF
para o Brasil.
38

incomodada, começou a dizer que a pessoa que propôs a troca não poderia
fazer aquilo, não poderia brincar de deus, e que aquilo era uma espécie de
coação. Disse também que a proposta estava no mesmo registro de os trabalhos
de Santiago Sierra33, e que a tensão com a realidade era demasiada e isso a
fazia ser antiética.

Sem entrar em maiores detalhes, a pessoa que estava em posse do documento


de desidentidade se limitou a dizer que gostava dos trabalhos de Santiago Sierra
e perguntou porque o documento de desidentidade teria menos validade que
outros, sendo que esses outros também, ao fim e ao cabo, são apenas papeis,
tanto quanto aquele que oferecia.

A discussão se seguiu com pessoas respondendo às perguntas umas das


outras, até que em um determinado momento uma das pessoas presentes se
levantou, pegou seu passaporte chileno e o ofereceu para troca. A troca se
realizou.

1.1 DO IMPOSSÍVEL ABSTRATO À DESIDENTIDADE

A situação acima34 aconteceu em um dia dos primeiros três meses do Máster en


Práctica Escénica y Cultura Visual, e foi uma das primeiras proposições
performativas que realizei ao longo de 9 meses de estadia em Madrid durante o

33
Santiago Sierra é um artista visual e da performance espanhol que costuma trabalhar a partir
de proposições que tensionam os aspectos ficcionais da arte abordando questões sobre poder
e classe. Em muitos de seus trabalhos Sierra contrata pessoas marginalizadas para realizarem
trabalhos braçais e inúteis, ou a se submeterem a situações em troca de dinheiro. Em Linha de
160 cm tatuada sobre quatro pessoas (2000), o artista pagou o equivalente ao valor de duas
doses de heroína à quatro prostitutas viciadas, em troca de poder tatuar em seus corpos uma
linha que somasse 160 centímetros (para mais imagens do trabalho, acesse:
https://www.santiago-sierra.com/200014_1024.php). Em 25,000,000 ₴ (2017), Sierra contratou
3 mulheres ucranianas para contarem 25 milhões de Hryvna ucraniano, o equivalente a 1 milhão
de dólares, durante a conferência de Yalta (para imagens e vídeos desse trabalho, acesse:
https://www.santiago-sierra.com/201709_1024.php?key=28). Em 586 horas de trabajo (2004), o
artista contratou trabalhadoras/es braçais para construir um cubo pintado de negro de 4m x 4m
x 4m de cimentos sólido, em uma de suas faces se lê 586 horas de trabalho, somatória das horas
de trabalho de todas as pessoas que participaram da construção, sem contar as horas extras
(para ver fotos e vídeos do trabalho, acesse: https://www.santiago-
sierra.com/200416_1024.php).
34
Voltarei a discutir o carnet de desidentidad planetaria em breve, primeiro é preciso situar onde
estava e como cheguei até ali.
39

intercâmbio de doutorado sanduíche na Espanha, entre os anos de 2018 e 2019.


O máster é uma proposta para artistas e pessoas ligadas à arte desenvolverem
suas pesquisas com o apoio de pessoas da academia, da crítica cultural, da arte,
dos estudos sociais e filosóficos e da tecnologia. Cheguei à Madrid com essas
duas tarefas que acabaram por se tornar uma. Como cada estudante do máster
deveria desenvolver uma investigação artística, decidi trazer uma das questões
que estavam me movendo como artista e pesquisadora: fazer do impossível,
possível por meio da arte, ou melhor, tentar fazer com que a pessoa que
compartilha de uma proposta artística comece a acreditar que algo impossível
pode se tornar possível. Refiro-me à compreensão de arte como contexto
singular onde pode ser possível materializar o que ainda não tem existência
factual em nossas experiências e em nossas percepções de mundo. Também
diz respeito à tentativa artística de mover outras realidades35 e outros modos de
vida para além desses que conhecemos, diz respeito também à tentativa de
transformar a percepção do que é possível em dado contexto.

À época essa minha vontade era ainda muito abstrata, não entendia como dar
materialidade a ela. A primeira oportunidade que tive em mobilizar a ideia de
impossível, foi na oficina de dois dias com a artista espanhola Rosa Casado 36,
com a qual experimentamos uma prática de escuta em dupla. Ao longo de 10
minutos uma pessoa da dupla contava a outra sobre o seu projeto de
investigação a ser desenvolvido no máster, um espaço para expor desejos,
sensações e motivações. Passados os 10 minutos, a pessoa que escutou
elaborava uma lista de perguntas que só seriam entregues ao final da oficina.
Na segunda prática, a ouvinte elaborava uma pequena ação a partir do que
entendeu do projeto da outra. A estratégia de trabalho proposto por Rosa fazia
com que as pesquisas ganhassem materialidade, primeiramente, através da

35
As proposições sobre essas tais outras realidades são sempre contextuais. Cada proposição
artística dará a ver uma certa proposta de realidade específica. Isso irá ser desenvolvido ao longo
do texto.
36
Rosa Casado é uma artista multidisciplinar que trabalha a partir de contexto produzindo
trabalhos em que o espaço é compreendido como lugar de relações, negociações e práticas de
participação. A artista não se utiliza de uma linguagem artística específica. Casado também é
doutora em Theatre and Performance Studies pela University of Glasgow, cuja tese discute
noções como site específico, arte em contexto e participação. Seus interesses incluem ecologia,
meio ambiente e antropoceno.
40

compreensão de outra pessoa, abrindo então a possibilidade da emergência de


algo novo, não necessariamente igual à concepção original, uma outra via de
abordagem. Além disso, ela possibilitava também que cada pessoa trabalhasse
para uma outra, dando vida a algo que não lhe dizia respeito e que talvez nem
lhe interesse.

Rosa Casado insistia para que não produzíssemos uma composição, nos pedia
para colocarmos em marcha uma intenção para que a partir dela fosse possível
começar uma investigação. A partir de tudo que falei acerca dos meus desejos
de acionar o impossível, Ulises37, minha dupla, propôs uma ação em que pedia
que cada pessoa (éramos cerca de 20) colocasse sobre seu corpo algum objeto
enquanto ele caminhava de um ponto a outro da sala. Ele não poderia derrubar
nenhuma das coisas colocadas sobre ele. Durante a caminhada de Ulisses,
contudo, muitas coisas foram ao chão.

No terceiro exercício proposto, Rosa pedia que a pessoa que realizou a ação
escrevesse o programa38 da ação realizada por ela a partir da primeira escuta
em dupla, ou seja, a pessoa incumbida de escutar deveria descrever em texto
um programa de ação ou ações de maneira precisa e explícita, a ponto de
qualquer pessoa que lê-se as diretrizes descritas pudesse realizá-lo. Os
programas foram colocados em um monte e cada pessoa sorteou um programa
aleatoriamente. Assim, os programas seriam re-acionados por alguém que não
teve nenhum acesso aos desejos e às temáticas que moveram a produção do
programa em questão, isto é, quem pegasse o programa escrito por Ulises não
teria acesso ao que expus do meu desejo de mover o impossível a partir de
práticas artísticas, só teria acesso ao programa de ações que ele escreveu. José

37
Ulises Vargas é ator e diretor de teatro no México, seu país de origem. Sua investigação ao
longo do máster iniciou com a ideia de reinventar sua própria identidade em Madrid, se tornou
uma investigação sobre muros, numa evidente citação ao muro entre EUA e México, e acabou
por se tornar um trabalho sobre intimidade e bordas.
38
Programa é um termo usado por Eleonora Fabião (2013) para uma prática do campo da
performance na qual as ações são previamente estipuladas e realizadas pela pessoa artista sem
ensaio prévio ou qualquer suposição do que pode acontecer a partir do momento em que é
acionado. Um exemplo de programa seria: “Vou sentar numa poltrona por 3 dias e tentar fazer
levitar um frasco de leite de magnésia. No sábado às 17:30 me levantarei” (FABIÃO, 2013, p. 4)
41

Miguel39 foi a pessoa que refez o programa escrito por Ulises, sua ação consistiu
em engatinhar de quatro pela sala e ir colocando sobre suas costas o que
encontrava pelo caminho. O dia terminou com Rosa pedindo que voltássemos
no dia seguinte com alguma ação do nosso próprio projeto pensada a partir das
ações das duas pessoas, informada pelo que contamos a nossa dupla no
exercício de escuta.

Voltei para casa me perguntando o que as ações propostas pelos meus dois
colegas traziam de impossível, o que elas tensionavam, como elas convidavam
a alguém acreditar no impossível. Mesmo que eu não soubesse exatamente o
que fazer para mobilizar o impossível, entendia que se tratava de produzir
propostas que tentassem engajar as pessoas em algo aparentemente
impossível. Num primeiro momento resisti muito às propostas dos meus colegas,
não via onde estava o impossível em suas ações, por outro lado, elas me
deixavam mais tranquila porque me ofereciam um campo delimitado de ação, ou
seja, eu não necessitava criar uma ação no nada, mas fazer uso das propostas
oferecida pelos colegas.

Sabia que não se tratava apenas de executar uma ação, mas de fazer algo que
instituísse um campo de implicação entre pessoas, uma espécie de convite para
fazermos juntas. Desde aí delineei duas proposições. A primeira consistia em
me deitar de bruços no chão e pedir para que todas deitassem sobre mim, depois
disso eu iria engatinhar de um ponto a outro da sala com todas as pessoas sobre
mim. Essa proposta era uma réplica, quase literal, das proposições de Ulises e
José Miguel, a diferença estava na proposição de envolver as pessoas e não
mais os objetos. Isto significava que eu teria que carregar cerca de 15 pessoas
de um lado a outro da sala. Entendia que o peso total a ser transportado por uma
pessoa deitada ao chão transformaria a proposta em algo impossível de ser
realizado. Além disso a proposta trazia aspectos de cooperação, pois as pessoas
teriam que negociar o modo de se posicionar sobre mim para nos movermos

39
José Miguel Neira é um diretor de teatro chileno que trabalha com propostas site specific que
acionam as memórias do espaço público. Seu interesse abre questões relacionadas às ditaduras
latino-americanas e espanhola. No máster desenvolveu uma rádio clandestina em Lavapiés,
bairro reconhecido por ter grande número de imigrantes.
42

juntas. Algumas pessoas optaram por deitar sobre meu corpo todo e outras em
partes específicas, braço, bacia etc. Uma negociação começou então a aparecer
com pessoas dando sugestões de como conseguir concretizar a proposta mas,
a esta altura, o peso já era excessivo, comecei a ter dificuldade em respirar e a
sentir muita dor devido a uma crise aguda na cervical. Por esses motivos
interrompi a proposta antes que pudesse ser melhor desenvolvida, e que outros
desdobramentos fossem propostos.

De imediato, antes mesmo que todas as pessoas se colocassem sobre mim, a


ação se mostrou inviável. Sequer pude testar sua impossibilidade em relação ao
deslocamento com tanto peso. Fiquei sem saber se a ação funcionaria se não a
tivesse interrompido e todas as pessoas se deitassem sobre mim. Era
perceptível contudo que na condição de única responsável por transportar tanto
peso de um lado a outro da sala, o intento fracassaria. Mas se todas as pessoas
cooperassem para conseguirmos juntas realizar a ação, talvez um outro possível
emergisse. O impossível se transformaria em possível por meio da implicação e
da cooperação de todas.

A segunda proposição acessou outro tipo de registro. Pedi que cada pessoa
trouxesse um objeto qualquer e o colocasse num certo ponto do espaço
formando uma pilha de coisas, e anunciei que moveria a pilha de um ponto a
outro, cerca de um metro, com o poder da mente. Ajoelhei-me entre os dois
pontos e me concentrei. Percebi que se eu não acreditasse que conseguiria, não
valeria fazer o esforço, assim, me convenci que seria possível. Depois de um
certo tempo, percebi que precisava mais intensidade no intento e convidei as
outras pessoas a tentarem mover a pilha com o poder da mente junto comigo.
Algumas se aproximaram e olharam fixamente para a pilha tentando,
aparentemente, tentando movê-la. Senti que o tempo começou a correr com
outro ritmo, como se estivesse mais denso, percebi uma atmosfera de atenção
conjunta. Permanecemos assim por cerca de 10 minutos. Num dado momento
deixei de me concentrar, parei de tentar mover a pilha e agradeci a todas.

Em função da pergunta de Rosa sobre o porquê de eu ter parado a ação, percebi


que poderia ter continuado por muito mais tempo. A intenção não era
43

exatamente mover a pilha de coisas, mas fomentar um espaço para o


engajamento, em que as pessoas se implicassem e acreditassem que aquilo
poderia acontecer. Optei por interromper quando percebi que esse estado se
instaurou. A devolutiva das pessoas confirmava a minha suposição: elas
acreditaram que iríamos mover a pilha.

Se por um lado a proposta provocou envolvimento e implicação das pessoas a


ponto de acreditarem que poderíamos mover objetos com o poder da intenção
(telecinesia), por outro abriu um novo campo para refletir sobre a construção de
outros possíveis, em campos que não apenas o da racionalidade ocidental, mas
outros: o sobrenatural, o misticismo, as práticas paranormais. De qualquer
maneira, essas temáticas, naquele momento, não estavam entre os modos de
dar a ver ou mover impossíveis com os quais eu me envolvia na pesquisa.

Além disso, por mais que não soubesse exatamente como pôr em marcha, como
materializar em arte, o tornar possível o impossível, e tampouco soubesse
especificamente qual impossível abordaria, sabia que não me referia a um
impossível genérico. Não era qualquer ação impossível que me interessava, mas
aquelas que possuíssem aspectos ancorados nas problemáticas do viver e
morrer juntas (es/os). Em um mundo marcado por desigualdades e injustiças
sociais e pela exploração dos humanos e dos outros-que-humanos, aqueles
existentes geralmente considerados como recursos, commodities, produtos, as
ações que importavam deviam envolver a superação de desigualdades e de
injustiças. Isto é, um impossível com implicações políticas-sociais-ambientais
que reverberasse em alguma possibilidade de transformação de mundo.

Essa vontade de mover o impossível também dizia respeito à situação


sociopolítica do Brasil, onde em 2016, teve início um processo de instabilidade
democrática e de retirada de direitos a partir do impedimento da então presidenta
Dilma Rousseff por parte da Câmara dos Deputados e do Senado Federal sem
fatos que o justificassem40. O que para mim parecia improvável no final do ano

40
Dilma Rousseff, a primeira presidenta eleita no Brasil, sofreu impedimento na Câmara dos
Deputados e depois no Senado Federal sob a alegação de ter realizado “pedaladas fiscais”,
como ficaram conhecidas as práticas de improbidades administrativas, que consistem em um
44

de 2015, se efetivou poucos meses depois, em junho de 2016. Da mesma


maneira que a eleição daquele que ocupa hoje a cadeira de presidente da
república, o sr. Bolsonaro, que a mim parecia inimaginável no início de 2018, se
concretizou em novembro do mesmo ano. As fake news propagadas em redes
sociais e em aplicativos de conversa em grupo estavam se tornando agentes
decisivos nas eleições nacionais e internacionais41, disseminando notícias falsas
sobre concorrentes a cargos políticos eletivos, assim como criando falsas
“verdades científicas” como a ideia de que o planeta Terra é plano. Acreditar em
“Terra plana” e em uma suposta distribuição de um “kit gay” pelo governo a
escolas da rede pública, também me pareciam improváveis.

Em retrospecto, talvez a ingênua fosse eu em não acreditar que certas coisas


poderiam acontecer, como o impedimento de Dilma e a eleição de Bolsonaro, ou
que certas notícias poderiam ser tomadas como verídicas. De qualquer maneira,
se aquilo que me parecia inimaginável, de fato ocorreu, me pus a pensar quais
seriam as realidades ainda impossíveis que poderiam ser mobilizadas, ou, mais
modestamente falando, quais impossíveis poderiam se tornar virtualmente
possíveis na imaginação e na percepção das pessoas a partir de uma ação em
arte. E, desta forma, quem sabe, tornar-se uma possibilidade em um projeto
coletivo. Os trabalhos artísticos seriam então a criação de um campo de
implicação e de comprometimento em que o público pudesse ser impelido a

atraso de pagamento de dívidas a bancos públicos com objetivo de maquiar as contas públicas,
procedimento até então já realizado por outros presidentes da república. Contudo, este não foi o
argumento da maior parte de quem votou a favor do impedimento, as pessoas declaravam seu
voto em nome de deus e ou de suas famílias, dos valores cristãos e de uma suposta “família
brasileira”. O processo de impedimento da presidenta foi o mote para o documentário
Democracia em Vertigem dirigido pela cineasta mineira Petra Costa (2019) e disponível na rede
de streaming Netflix. Nele se vê imagens das votações tanto na Câmara como no Senado.
41
Em seu livro A máquina do ódio, a jornalista e escritora Patrícia Campos Mello (2020) expõe
como as fake news afetaram radicalmente os resultados das eleições brasileiras de 2018. Diz
ela que por meio do uso de sistemas automatizados, isto é, robôs (bots) e pessoas contratadas
(trolls), é possível forjar engajamentos a certos temas ou notícias em redes sociais como
Facebook e Twitter. Essa situação se intensifica mais no Brasil onde o acesso a essas redes
sociais e ao WhatsApp não é descontado dos dados fornecidos pelas operadoras de celular. Ou
seja, a população tem acesso gratuito aos conteúdos publicados nessas redes, diferentemente
do que acontece ao acessarem determinadas plataformas jornalísticas. Soma-se a isso a
dificuldade em controlar o conteúdo circulado pelo WhatsApp, como o aplicativo usa a proteção
da criptografia de ponta a ponta, não há como controlar legalmente o que se propaga por ele
porque a justiça não tem acesso às trocas de mensagens. Processos parecidos ocorreram nas
eleições dos Estados Unidos da América que elegeu Donald Trump.
45

tomar uma posição perante uma situação42, como um salto imaginativo e


perceptivo a algo aparentemente impossível; estratégias em arte que
funcionassem como espécies de “antídotos” para o presente, mas também de
perspectivas presentes e futuras.

A partir dessa proposição por nada simples e fácil, pedi ajuda às minhas
amizades no Brasil e posteriormente as da Espanha no intento de incluir outras
pessoas na tarefa de fazer o impossível possível, e na vontade de que os desejos
não se restringissem aos meus. Escrevi um email pedindo tanto ações
impossíveis, quanto ações de insistência e de repetição pois, àquele momento a
pesquisa também incluía não desistir perante adversidades. Meu círculo de
amizades é composto majoritariamente por pessoas de visão crítica e do campo
das artes, companheiras de trabalho, colegas da pós-graduação e professoras
(es), assim as proposições recebidas integram aspectos poéticos e políticos,
bem como já indicam programas performáticos. Ao todo foram 56 proposições.

As 56 proposições em suas línguas de origem

1 - Cantar uma música que faça sentido pra você, num local movimentado.
2 - Pôr um fone de ouvido com uma música de sua preferência e dançar em um local público
e movimentado.
3 - Tentar eleger-se em um cargo político usando a arte como bandeira da campanha.
4 - Escreva todas as formas possíveis de DIZER (com palavras) eu te amo.

42
Não se trata aqui exatamente de interatividade pois há trabalhos interativos que não
demandam uma posição da pessoa espectadora, como por exemplo o espetáculo Tratando de
hacer una obra que cambie el mundo. (El delirio final de los últimos románticos) (2010) da
companhia chilena La Re-sentida, no qual as atrizes e atores quebram a quarta parede e
estabelecem diálogos com o público sem demandar uma posição (Mais informações sobre a
companhia estão disponíveis no site https://teatrolaresentida.cl/). A implicação e a
responsabilidade compartilhadas dizem respeito antes em oportunizar uma ação/posição direta
do público, como no caso do trabalho Tatlin’s Whisper # 6 (Havana version) da artista cubana
Tania Bruguera, ou uma disponibilidade de estabelecer relações menos hierárquicas nas quais
artista e não-artista sejam corresponsáveis pelo que pode acontecer ou não, como por exemplo
muitas das proposições da artista carioca Eleonora Fabião, nas quais o trabalho só toma
existência quando uma outra pessoa se dispõe a acioná-lo com a artista. Fabião trabalha
propondo pequenas ações, geralmente de um pra um, majoritariamente em espaço público,
dentre elas estão troco tudo, em que a artista sai de casa e só retorna depois de ter todos as
suas roupas e acessórios trocados com pessoas; converso sobre qualquer assunto, em que
coloca duas cadeiras uma de frente para outra e se oferece a conversar com qualquer pessoa
que também se disponha; e ação carioca #6: arquivo, na qual distribui pequenas imagens de
diferentes momentos históricos do Largo da Carioca no Largo da Carioca, e se disponibilizar a
conversar sobre a história local e as transformações já efetuadas e futuras. Discussões sobre
essas e outras ações de Fabião podem ser encontradas em seu livro Ações: Eleonora Fabião
(FABIÃO; LEPECKI, 2015).
46

5 - Depois que se esgotam todas as possibilidades de dizer eu te amo como se diz "eu te
amo" sem dizer (com palavras)
6 - Tente convencer esgotando todos os seus recursos a fazer o PRÉDIO da JUSTIÇA (pode
ser um tribunal) a mover-se em direção aos que estão sendo injustiçados (pode ser uma outra
região, um presídio, um albergue, o Brasil....)
7 - Quando se esgotam todas as possibilidades de absorver cerveja e seu corpo insiste em
investigar o espaço-tempo ao som de Bia Ferreira ou alguém que manda ver (melhor fazer
essa com supervisão)
8 – Mudar a corrente: Fazer as águas de um rio ou grande conjunto de água (cachoeira/mar...)
correrem no sentido inverso. A ideia é salvá-las do "abismo" ou da "secura da terra" que a
corrente de "ideias" dela as está levando.
9 – Prisão de si: Desenvolver uma pequena sequência de movimentos com começo/meio/fim.
Repetir eles e a cada repetição limitar o espaço disponível na sala até que o espaço disponível
final seja apenas teu próprio corpo.
10 – Alcançar o infinito: Desenvolver uma pequena sequência de movimento com
começo/meio/fim e repetir ela infinitamente. O desafio é que esta sequência ocorra pelo maior
tempo possível. A sequência não precisa ser realizada sempre pela mesma pessoa, pode
convidar outras para assumirem o papel de executá-la desde que não haja interrupção. O
propósito é mantê-la infinitamente.
11- Proposi(ação): cruzar fronteiras internacionais sem documentos que o permitam.
12 - Encontrar alguém que não tenha nenhuma língua falada em comum com você (e que
venha de uma cultura distinta da sua) e tentar explicar algo processual de sua escolha, ou
contar um fato. OBS: não usar gestos ou corporeidade, apenas o verbo, e talvez expressões
faciais.
13 - Ninguém solta a mão de ninguém. Quanto tempo leva pra soltar a mão de alguém? Qual
a quantidade de suor e calor que pode ser produzida entre mãos.
14 - La acción que te propongo la puedes hacer donde quieras y es llevar alegría a la gente.
Que por donde tus pases, le dibujes una sonrisa a alguien que no esté alegre.
15 - Hacer una trenza de cenizas.
16 - Untangling /cutting/separating a steal rope without tools, only using your body and mind...
17 - Make two people fall in love; you can try different methods for example, cooking food,
transmitting thoughts, smells, creating situations for them.
18 - Spend a whole day in horizontal, never having your head above your hips
19 - Emptying a whole package of rice, count the rice grains, then throw it out of the window
and find each grain of rice back
20 - Intentar habitar dos espacios a la vez. Es decir, estar aquí en Madrid y en Brasil al mismo
tiempo. De qué forma puedes lograrlo
21 - Pasar todo un día pegada al cuerpo de otra persona, por ejemplo, espalda con espalda,
brazo con espalda, etc, realizando tu día de manera cotidiana (me recuerda a las personas
que nacen pegadas por alguna parte del cuerpo)
22 - Intentar que veamos a un espíritu o fantasma
23 - Crear algún color que no exista
24 - Impedir que salga un vuelo de avión.
25 - Ingresar en medio de una sesión política (ya sea de diputados, senadores o lo que sea)
poner una música que te guste a todo volúmen y bailar.
26 - Sonhe um sonho deitada numa nuvem de algodão
- conte o sonho para alguém (com palavras)
- conte seu sonho para alguém (sem palavras)
27 - Fale uma língua que não saiba
28 - Pense em algo que nunca pensou
29 - Diga o que jamais diria
30 - Escreva 1000 vezes uma palavra desconhecida. Pronuncie 1000 vezes essa palavra.
Dance 1000 vezes a mesma palavra. Seja essa palavra
31 - Grave o som dos seus pensamentos. Dance ao som deles
32 - Comece pelo final. Não existe início. Termine no meio
33- Percorra a cidade e entre em cada buraco que encontre (pequeno, médio, grande). Pode
entrar com o corpo todo se o espaço permitir ou se for um buraquinho entre com uma parte
do corpo. Permaneça dentro até alguém tirar você dali. Esse alguém pode ser uma pessoa,
um barulho... Um sinal.
47

34 - Escute por um tempo o som dos pensamentos das pessoas na rua. Perceba o ritmo,
ruídos, silêncios, intensidades... Onde me levam? O que provocam?
35 - O que pediria para as pessoas? dar, reclamar, completar, tirar, desejar?
Poderia ser:
Faça um cartaz com as instruções: cole em mim parte da sua história/ complete em mim o
que acha que falta/tire de mim. Fique parada em algum lugar da cidade, pode ser caminhando.
Crie um dispositivo no seu corpo (que seja atrativo, que chame a atenção) para que as
pessoas colem em você alguma resposta em relação a sua proposta (um objeto, uma frase,
um poema)
36 - Beba como um cachorro
37 - Durma como um pássaro
38 - Corra como um felino
39 - Lembranças da vida que não vivi. recuerdos que no recuerdo
40 - Faça um buraco no tempo
41 - Faça um buraco no espaço
42 - Entre num quadro
43 - Entre num livro
44 - Entre num filme
45 - Viagem no tempo (para o passado, para o futuro)
46 - Viagem a lua
47 – Aliviando o peso da Terra: Convencer o maior número de pessoas possíveis em um
espaço relativamente amplo a darem um pulo juntos para que a Terra tenha um segundo de
descanso do nosso peso sobre ela.
48 - Acabar con la idea de nacionalidad
49 - Inventarte maneras para cambiar de cuerpo, como crecer, hacerte muy finita o muy
gigante, salir a la calle y ser otra, probar todos los días ser una mujer distinta, accionar como
tal. Poder entender todas las mentes, empatizar con todas las personas, entender todas las
posturas, todas. LO LOGRÁS.
50 - Averiguas de un modo secreto qué sucede después de la muerte y sos la única que lo
sabe. Lográs que todo se tiña de eso. La vida se transforma cuando sabemos eso que solo
vos vas a saber.
51 - A través de una consigna que todas las personas entienden que das en un espacio
público, lográs que la gente se comunique solo "haciendo" y no hablando, no pueden hablar
más ni hacer gestos que sean claros en su significado, pedirles que inventen un nuevo modo
de comunicarse.
52 - Escribís o ponéis en palabras o hechos una definición de ARTE que tiene el poder de
movilizar, emocionar, interpelar al mundo entero, a todas las personas les toca eso que
descubrís acerca del arte, su significado y su función.
53 - Conseguir una cita con los poderosos más grandes del mundo, Trump, Putin, las familias
más poderosas, los monopolios, Glovo, Clarín, Los Reyes de España, Multimillonarios, y
lográs convencerlos de que hay que cambiarlo todo, de que se tienen que retirar, de que hay
mucha gente más capacitada y con mejores objetivos para que el mundo sea maravilloso, y
ellos, aceptan. En pocas palabras, lográs terminar con la injusticia del mundo, todos los
pueblos se hermanan, las fronteras se diluyen, la lógica del mundo se mueve por el deseo,
nadie quiere ganar nada.
54 – Deshacer fronteras invisibles
55 - Vivís sin dinero, todo es a cambio de un beso, o dos, o tres. Cualquier cosa que hagas,
compres o consumas.
56 – Lográis erradicar el miedo como estado en el mundo, no existe más y es por algo que
inventáis o hacéis. Un mundo sin miedo queremos.

Minhas ideias sobre o impossível à época tinhas características totalizantes, um


desejo de transformação absoluta de muitos aspectos da realidade. Eram
abrangentes a ponto de eu não conseguir ancorá-las na realidade. Desejava e
sigo desejando, por exemplo, que as desigualdades de classe, de gênero e de
48

raça deixassem de existir por completo. Eu não conseguia encontrar a forma de


realizá-la, talvez (certamente) porque não há uma única ação que possa
desfazer as desigualdades, ao contrário, exige esforços coletivos e
heterogêneos estendidos no tempo, e não uma única ação pontual e individual.
Então a imensidão dos meus desejos, em vez de potencializar minha ação no
mundo, fazia me sentir incapaz e frustrada. Refletindo depois de mais de dois
anos do pedido que fiz às minhas amizades, percebo que minha vontade não
era apenas incluir mais gente no trabalho na tentativa de ser mais inclusiva e
menos autocentrada, eu pedia ajuda. Ajuda para fazer junto, ajuda para que
meus desejos desmesurados pudessem ser ancorados.

Confesso que ao receber as proposições das pessoas minha frustração


aumentou porque ainda não era capaz de redimensionar minhas expectativas.
As mais poéticas – como por exemplo faça um buraco no tempo, durma como
um pássaro, faça duas pessoas se apaixonarem – me emocionavam por demais,
mas na minha percepção não iriam transformar o mundo por completo. Por outro
lado, as que propunham ações pontuais e concretas – como por exemplo a que
pede para eu marcar uma reunião com os poderosos do mundo para pedir a eles
que se retirem da vida pública porque há gente mais capacitada e com objetivos
melhores para fazer o mundo maravilhoso, ou a que pede para eu desfazer
fronteiras invisíveis – me frustravam porque me sentia incapaz de realizá-las, o
que provavelmente é verdade.

Senti uma imensa frustração em relação às proposições que recebi. Mas essa
frustração não era exatamente sobre os conteúdos das propostas, por mais que
no primeiro momento eu tenha relegado a eles as minhas insatisfações. A
frustração era para comigo mesma, eu que não conseguia dar forma aos meus
desejos, era eu quem não sabia como operacionalizar o impossível. Meus
desejos eram tão enormes que nenhuma proposição poderia satisfazê-los.

Lendo e relendo o que me foi enviado, consegui encontrar uma maneira de dar
corpo a uma das proposições. O carnet de desidentidad planetaria adveio da
proposta de Ulises: acabar com a ideia de nacionalidade. O desejo impossível
de Ulises tem contexto: sendo mexicano, o artista conhece na própria carne os
49

efeitos de ter uma nacionalidade específica. Pessoas mexicanas e pessoas


latinas em geral, quando tentam cruzar a fronteira entre México e EUA são
perseguidas, presas, e em casos extremos até mesmo mortas pela polícia
estadunidense. A imigração ilegal de um país a outro se transformou em um
negócio muito rentável. Coiotes, como são conhecidas as pessoas
especializadas em “facilitar” a travessia da fronteira, cobram entre 20 e 25 mil
dólares para atravessar alguém para os EUA. Esse valor sobe a 35 mil dólares
para casamentos de fachada com estadunidenses. Com o governo de Donald
Trump, os processos migratórios se tornaram mais difíceis e endurecidos, até
mesmo as solicitações de asilo político, pedidos decorrentes de perseguição e
risco de morte43, estão sofrendo alterações legais para tentar impedir que
pessoas de certas nacionalidades, especialmente latinas e árabes, entrem
legalmente no país (THIS AMERICAN LIFE 688: THE OUT CROWD, 2019)44.

O controle das fronteiras da União Europeia (UE) também vem se intensificando


com a ampliação da vigilância marítima, terrestre e aérea, e o aceleramento na
expulsão de pessoas que entram irregularmente no território europeu, ambas
ações realizadas pela Frontex, Agência Europeia de Gestão da Cooperação
Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia,
em parceria com a polícia e o governo dos países fronteiriços. Ano a ano o
orçamento da Frontex aumenta, dos 6.2 milhões de euros iniciais em 2005
(FRONTEX, 2005), o valor alcançou a cifra de 460 milhões de euros em 2020
(FRONTEX, 2020)45. Tanto no caso dos EUA como a da UE, a situação das
pessoas imigrantes transformou-se em questão de segurança nacional e passou
a ser tratada por meio da militarização das fronteiras, em vez de ser
compreendida e tratada como um fenômeno social de origem econômica e
política.

43
Nos EUA, as perseguições podem ter naturezas diversas: religião, grupo social, raça,
nacionalidade, minorias sexuais.
44
O episódio The Out Crowd (2019), ganhador do prêmio Pulitzer de 2020 para áudio jornalismo,
do podcast This American Life, revela o que tem acontecido no lado mexicano da fronteira entre
México e EUA, especificamente no campo de refugiados Matamoros, onde a situação das
pessoas refugiadas é calamitosa, não há saneamento nem abastecimento de água regular, e
com a ausência de segurança suficiente, há muitos casos de estupro e de sequestro de pessoas.
45
Documentos descritivos dos orçamentos anuais da Frontex estão disponíveis do site da
agência, neste link: https://frontex.europa.eu/about-frontex/key-documents/?category=budget.
Acesso em 29 jan. 2021.
50

1.2 LOS PAPELES Y LA IDENTIFICACIÓN

Ulises, assim como outras pessoas do máster, estava tendo dificuldade em se


manter financeiramente na Espanha. Segundo as regras espanholas, o visto de
estudante só dá direito a trabalhar por poucas horas em uma área vinculada ao
que se está estudando, ou seja, ele apenas poderia trabalhar como professor de
artes ou como artista, tarefa difícil a quem acaba de chegar a um país estrangeiro
sem ter criado vínculos de trabalho. Para ele a questão da nacionalidade afetava
sobremaneira sua sobrevivência e a possibilidade de seguir seus estudos.
Comecei a pensar sobre o que identifica uma nacionalidade e o que é necessário
para se ter a autorização de livre circulação. Em bom espanhol: los papeles.
Papeles que digam de onde você é, papeles que te autorizem a entrar e a sair
de um país ou região, papeles que você deve apresentar para conseguir outros
papeles que te habilitem fazer certas coisas, como conseguir trabalhar, morar,
comer, enfim sobreviver.

De acordo com o sociólogo francês e ativista nos movimentos das pessoas sin-
papeles na Europa, Xavier Dunezat (2019), os papeles (mais precisamente a
ausência deles) são formas ou de privar direitos, como emprego, alojamento,
serviços sociais e cidadania, ou de precarizá-los, como o acesso à escola, à
moradia, à saúde e à circulação. A origem da opressão para com as pessoas
sin-papeles é estrutural, ou seja, produto das políticas e das normativas jurídicas,
materializadas pelas leis de migração de cada país. Para Duzenat (2019) a
condição das pessoas sin-papeles se compõe por três dimensões
interdependentes que juntas constituem um sistema de controle social altamente
efetivo. No que diz respeito à dimensão econômica, a impossibilidade de
trabalho legal leva as pessoas sin-papeles a trabalharem sob condições
precárias, sem garantia de direitos trabalhistas, como o resto da população con
papeles. No nível político as sin-papeles estão “privadas dos direitos e das
liberdades que definem a cidadania nas democracias representativas” (2019, p.
128), ou seja, essas pessoas não podem participar politicamente através do
voto, e também são inibidas de participar de manifestações e atos pelo medo de
51

serem presas e deportadas. A dimensão ideológica diz respeito aos preconceitos


e aos estereótipos atribuídos às pessoas sin-papeles, desde a falácia do roubo
de emprego que supostamente seriam ocupados por pessoas locais/legais, a
concepção de que são preguiçosas, até mesmo serem taxadas como possíveis
terroristas. O autor (DUNEZAT, 2019) ainda afirma que a classe social, o gênero,
a nacionalidade, a raça, a sexualidade e a idade são aspectos que afetam as
dinâmicas institucionais e sociais das pessoas sin-papeles.

Na Espanha el papel mais importante e que oferece o exercício da cidadania, de


ter direitos políticos, econômicos e sociais é o DNI. Para conseguir um DNI de
estrangeiro é necessário apresentar outros papeles: passaporte, comprovante
de pagamento de taxa, visto (para conseguir o visto, antes de sair do seu país
de origem, você deve apresentar papeles que certifiquem que tem dinheiro
suficiente para se sustentar, além de outros papeles que mostrem o que você
vai fazer em um país estrangeiro). Vale ressaltar que há diferenças grandes de
exigência de papeles, dependendo da nacionalidade de cada pessoa. Para
pessoas com cidadania europeia, devido ao acordo da UE, o trâmite é mais
simples e, de modo geral, são bem tratadas nos órgãos oficiais. Para pessoas
africanas, de origem árabe ou latinas, o trâmite é bem diferente.

Em um momento de minha estadia em Madrid tive que pedir extensão de visto de estudante,
tentei marcar hora na estranjeria46 pessoalmente, por telefone, pela internet. Em apenas um
dia fui a três diferentes lugares indicados pelo site do governo para tentar encontrar
informações, cada lugar me mandava para outro e assim consequentemente; ninguém era
capaz de dar qualquer tipo de informação. No outro dia fui com todos meus pepeles à sede
principal de Madrid, eu e outras centenas de estrangeiras, principalmente latinas e africanas,
ficamos em filas por horas. Quando finalmente cheguei a um funcionário, ele começou a gritar
comigo dizendo que eu deveria ter outros tipos de papeles, me empurrou para o lado para
“atender” outra pessoa e me mostrou um aviso na parede onde “informava” o que eu deveria
fazer. Tentei seguir as informações daquele cartaz, mas o sistema do site do governo não
possuía as informações que precisava. No dia seguinte fui ao lugar onde se oferece
informação a estrangeiros sobre os trâmites necessários, chegando lá me falaram que eu
deveria marcar hora pela internet para pedir informação. Entrei na internet e só havia agenda
para dali há dois meses. Segui buscando maneiras de tentar entender o que e onde deveria
fazer o que, e quais papeles eram necessários. Achei um telefone que estava praticamente
escondido numa página no site da estranjeria e decidi tentar ligar. Um rapaz me atendeu,
expliquei todas as minhas idas e vindas e os revezes das situações, os papeles que tinha e
não tinha. Estava muito nervosa e comecei a chorar no telefone, ele me acalmou e disse que
aquilo não era motivo para choro, que ele iria me ajudar. De fato me ajudou, muito. Deliguei o
telefone agradecendo que ainda havia pessoas como aquela, parecia impossível encontrar

46
A estranjería é órgão governamental que trata de todo e qualquer assunto referente a pessoas
estrangeiras residentes temporária ou definitivamente na Espanha.
52

alguém com um mínimo senso de educação e de respeito com pessoas estrangeiras


trabalhando para instituição governamental responsável pelo “acolhimento” de gente não
espanhola.

Partindo de minha própria experiência como estrangeira latina, na dificuldade em


entender o processo para obtenção dos papeles necessários para minha
permanência na Espanha, e observando a dificuldade que as outras pessoas do
máster, em sua maioria latino-americanas47, estavam passando para se manter
nesse país, comecei a pensar sobre o desejo impossível de Ulises. Uma
possibilidade de lidar com o desejo impossível de Ulises de desconstruir a ideia
de nacionalidade, assim como aquilo que ela acarreta a quem não pertence às
nacionalidades política-econômica-social-culturalmente bem-vindas à Espanha,
seria trabalhar com um tipo de documento de identificação, ou melhor, um tipo
de documento de desidentificação.

À época estava interessada nas discussões propostas pelo filósofo brasileiro


Vladimir Safatle (2016) em seu livro Circuito dos afetos, principalmente a um
termo pouco desenvolvido pelo autor: indiferenciação. Tal conceito aparece
como um desvio da oposição entre identidade e diferença, que seriam dois
“momentos do mesmo processo de determinação por predicação, ou ainda, da
determinação por possessão de predicados, por aquilo que indivíduos podem
possuir” (2016, p.25). Em seu livro, o filósofo defende a ideia de que uma política
que de fato se dispõe a transformar a sociedade não poderia se basear em
institucionalidades e normatividades que se organizam a partir das
predicabilidades do indivíduo. Tais predicabilidades funcionariam como um solo
pré-político que expressariam a autonomia e a autenticidade do indivíduo.
Safatle (2016, p. 23) aponta que o solo pré-político das predicabilidades

naturaliza não apenas uma antropologia, mas também um modo geral


de relação, já que pensar sujeitos a partir de sua predicabilidade é
pensá-los a partir de relações de possessão, um pouco como
indivíduos essencialmente definidos como “quem tem uma propriedade
em sua própria pessoa”. Um predicado é algo que possuo, que é
expressão do que faz parte das condições que estabelecem o campo
da minha propriedade. Por isso, ao definir a predicação como modo

47
No ano em que frequentei o máster haviam 6 pessoas espanholas, 3 chilenas, 1 uruguaia, 2
brasileiras, 1 austríaca, 1 alemã, 1 cubana, 1 mexicana, 6 argentinas e 2 italianas.
53

privilegiado de reconhecimento, eleva-se a possessão a um modo


naturalizado de relação.

Assim, para o autor, a transformação política só pode ocorrer desde um horizonte


antipredicativo e impessoal, fundamentado na política da recusa tanto de
afirmação da identidade, quanto do reconhecimento da diferença. Para tanto, ele
se baseia em uma certa teoria política freudiana em que o desamparo se
apresenta como afeto político central na promoção da emancipação. Um corpo
em desamparo é um corpo sem unicidade, atravessado por forças antagônicas
em contínua despossessão daquilo que o determina. Um corpo em desamparo,
então, é um corpo sem predicabilidades, marcado “por contingências que
desorganizam normatividades impulsionando as formas em direção a situações
impredicadas” (SAFATLE, 2016, p. 21).

A escolha dessas categorias (os predicados) que constam no carnet de


desidentidad planetaria não foi aleatória, queria incidir em alguns aspectos
histórico-sociais que afetam radicalmente (no sentido de base, fundamento) a
experiência de viver e morrer no mundo, e circunscrevem a pessoa a algo fixo e
muitas vezes inquestionável. Dentre as categorias que incluí nesse carnet de
desidentidad planetario estão nacionalidade, classe social, gênero, raça e
espécie.

Nacionalidade, classe social, gênero, raça e espécie.

O advento da ideia de nacionalidade decorre do processo histórico que constituiu os Estados-


nação, isto é, o que Benedict Anderson (2008) chama de “comunidades imaginadas” que são
territorialmente limitadas, supostamente política e economicamente soberanas, cuja
população se reconhece pertencente a elas. A ideia de nação ganha relevo com o Iluminismo,
como efeito principalmente da invasão e da exploração dos territórios não-europeus pelos
povos da Europa, do advento do capitalismo mercantil e posteriormente do industrial, e o
desenvolvimento de tecnologias de comunicação, sobretudo a desenvolvimento da imprensa
e do setor editorial. Benedict Anderson (2008) afirma que a alfabetização, o desenvolvimento
e a ampliação de publicações e a padronização de línguas corroboraram para a unificação
dos Estados nacionais, a constituição de nações e a consequente percepção de
pertencimento das pessoas a uma ideia de povo. Para este autor, os Estados-nação
constituem um poder unificado, separado e transcendente da vida social, que subordina as
pessoas que habitam suas fronteiras a leis e regras 48.

48
Essa tese não se propõe a tratar das minúcias do tema, para isso, indico a leitura de Benedict
Anderson (2008) e Alysson Mascaro (2013). Também é relevante citar o livro Sociedade contra
o Estado do antropólogo francês Pierre Clastres (1979). Nele Clastres argumenta que as
sociedades ameríndias se recusam em constituir um Estado separado de seu tecido humano.
54

O termo classe social tem como principal referência a teoria Marxista, sendo sistematizado
pelos teóricos alemães Karl Marx e Friedrich Engels para evidenciar quais eram os atores
econômicos no advento capitalismo industrial. Para eles,

A história de toda a sociedade até hoje é a história de lutas de classes. Homem


livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa
palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns
aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que
terminou sempre ou com uma transformação (Umgestaltung) revolucionária de
toda a sociedade, ou com o declínio comum das classes em luta” (MARX;
ENGELS, 1990, p. 66).

Nas relações de produção capitalistas uma pequena parte da sociedade, a burguesia, detém
o capital e explora a força de trabalho da grande maioria da população – a classe trabalhadora,
ou proletariado. A definição de classe social, neste caso, e nos desdobramentos posteriores,
remetem diretamente a condição econômica, onde cada pessoa pertence a uma determinada
classe de acordo com o que lhe cabe na divisão da riqueza que uma determinada sociedade
produz49.

A filósofa estadunidense Judith Butler ainda nos anos 1990 questionou a ideia naturalizada e
naturalizante de gênero binário ao perguntar se o sexo de fato seria uma coisa dada ou
construída histórica e culturalmente. Para ela tanto o sexo quanto o gênero não pertencem
apenas ao que se comumente denomina por natureza, tampouco são substâncias, eles se
fazem em ato, em performance. Para Butler (2015), a dupla oposta – homem/mulher – se
efetiva pela repetição de atos culturais muitas vezes impostos por práticas reguladoras, e
poderiam ser descontruídas ao serem performadas outras modalidades de gênero, e até a
ausência de gênero.

A ideia de Raça foi também historicamente construída e, na forma como a conhecemos hoje,
é fruto da herança colonial com objetivos econômicos, políticos e sociais para justificar a
exploração de populações não europeias, principalmente as africanas e as nativas do
Continente Americano. Foi tal invenção que permitiu o acúmulo de riquezas, o controle do
trabalho, a privação de liberdade, a violência e a instituição do capitalismo mercantil
(MBEMBE, 2014, p. 43). Como diz o filósofo sul-africano Achille Mbembe (2014, p. 40) o negro
não existe, é produzido: “Produzir o Negro é produzir um vínculo social de submissão e um
corpo de exploração, isto é, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do
qual nos esforçamos para obter o máximo de rendimento”.

O escritor brasileiro Daniel Munduruku compartilha do mesmo tipo de afirmação: não existem
índios. Índio, diz ele (MUNDURUKU, 2017), é uma palavra inventada com conotação
pejorativa que tem por trás uma série de preconceitos, como preguiçoso, atrasado, selvagem.
Munduruku insiste que esse tipo de nomenclatura tem objetivo de negar e invisibilizar a
diversidade de povos originários, seus modos de vida e suas concepções de mundo.

Espécie é uma categoria utilizada há séculos nas ciências, principalmente na biologia, que
ajuda a delimitar os campos de estudo sobre a diversidade biológica (DE QUEIROZ, 2005).
Ainda que a definição mais aceita de espécie seja a do pesquisador Ernst Mayr [1904-2005],
na qual se define uma espécie como uma população reprodutivamente isolada, há mais de
20 definições diferentes, algumas com base na reprodução, outras no tipo de ocupação, e
assim por diante; dependendo de onde se entende, uma criatura pode ser de uma espécie ou
de outra. Donna Haraway (2006) diz que viver como espécie já não é mais opcional, pois
somos compreendidos e nos compreendemos como espécie em um sentido Foucaultiano de
discurso que produz seus próprios objetos novamente. No Companion species manifesto,
Haraway (2003, p. 15–16) tenta implodir a distinção entre natureza e cultura e chama a
atenção para alguns aspectos problemáticos contidos no termo: (1) a historicidade do próprio
conceito espécie na biologia evolucionista, (2) a espécie como categoria ou tipo genérico na

49
Para aprofundar a compreensão de sociedade de classes, ver O capital (Marx e Engels, 2018)
e Grundisse (Marx, 2011) e o Manifesto Comunista (Marx e Engels, 1998) citado acima. Para
saber mais sobre a sociedade de classes na particularidade brasileira, ver Sociedade de classes
e subdesenvolvimento (2013) de Florestan Fernandes.
55

filosofia, (3) a semelhança a um tipo de relação religiosa que supõe uma presença real, (4)
evocando Marx e Freud, Haraway comenta que quando pensa em espécie, também lhe vem
à cabeça a ganância, os temperos, o ouro, a merda, a sujeira e a riqueza.

O objeto carnet de desidentidad planetaria já estava panejado, mas faltava saber


o que fazer com ele. Não bastava tê-lo em mãos, ele teria que ganhar
performatividade. A oportunidade pareceu na oficina da artista espanhola Silvia
Zayas50, na qual teríamos que elaborar uma ação relacionada ao projeto pessoal
desenvolvido ao longo do máster. Naquele momento pensei qual seria o público
da ação: as (es/os) companheiras (es/os) do máster, pessoas majoritariamente
latino-americanas jovens, estudantes de arte cuja inclinação política está mais
próxima de um pensamento crítico; pessoas que questionam a fixação de
identidade de gênero e as injustiças sociais advindas da divisão de classes, da
racialização e do lugar de nascimento. Enfim, pessoas que não só questionavam
a ideia de identidade, mas como também tentavam tencioná-la em seus
cotidianos e em seus trabalhos artísticos. Também tentei descobrir que tipo de
vínculo que poderia produzir entre o objeto e as pessoas. Decidi então propor
uma troca, ofereceria o carnet em troca de algum documento de identificação
oficial de alguém – a saber, um DNI, um passaporte, uma carteira de habilitação.

Nos dias que antecederam à ação artística ficava me perguntando como propor
a troca sem me colocar como onipotente ou como substituta do Estado no
processo de identificação de sujeitos. Eu não queria estar na condição de
autoridade, minha posição era de mediadora, a autorização de poder ser
outra/e/o viria da própria pessoa: ela deveria implicar-se com a situação e se
auto autorizar. À época receava entrar no registro da mágica, como se num
simples toque de varinha de condão, alguém perdesse diferentes aspectos da
identidade. No início da pesquisa eu não compreendia exatamente o que poderia
ser categorizado como ato mágico, para mim a mágica estava no regime da
fantasia e da ilusão.

50
Zayas trabalha nas fronteiras entre artes cênicas, vídeo e coreografia expandida, investigando
modos de traduzir a linguagem do cinema de não-ficção para outros dispositivos performativos.
56

Em português há uma distinção entre mágica e magia, diferentemente do inglês


ou do espanhol que possuem a mesma palavra para definir duas práticas
diferentes. Mágica está circunscrita às práticas de uma pessoa que atua para o
entretenimento de outras pessoas: corta corpos ao meio, faz desaparecer
objetos, faz flutuar pessoas e coisas, transforma uma coisa em outra, sai de
situações de risco de morte sem que o público tenha qualquer pista de como
conseguiu. Nesses casos mágica, truque ou ilusão são praticamente sinônimos.
Magia, por outro lado, está mais próxima de práticas de cura ancestrais, como o
xamanismo51, a wicca52 e diferentes linhagens que tem por objetivo a
transformação de um estado psíquico ou físico de alguém, ou a transformação
de uma situação específica. Mas isso é assunto para mais adiante. Meu desejo
era fazer uma proposta mais próximas dos trabalhos de artistas como Tania
Bruguera53 e Francis Alÿs54 nos quais a dimensão participativa exige

51
Xamanismo é um modo genérico de identificar práticas medicinais e espirituais realizadas por
pessoas que passaram anos aprendendo rituais e conhecimentos tradicionais sobre o poder
medicinal de plantas. O xamanismo também envolve relações extra-humanas, estabelecidas por
meio do transe. O xamanismo exercido no Brasil pelos povos indígenas tem por característica o
cruzamento de fronteiras interespecíficas para administrar as relações entre humanos, outros-
que-humanos, mais-que-humanos e extra-humanos (VIVEIROS DE CASTRO, 2015).
52
Wicca é uma religião politeísta neopagã do início do século XX que tem por base crenças pré-
cristãs da Europa Ocidental. Na Wicca a espiritualidade está ligada à natureza e aos ciclos
naturais e envolve práticas rituais de magia e de cultos à deusa. Existem diversas vertentes de
Wicca espalhadas pelo mundo todo.
53
Como em Tatlin’s Whisper # 6 (Havana version) (2009), em que a artista propôs uma situação
na Praça da Revolução onde colocou sobre um palanque, um microfone e duas pessoas vestidas
com uniformes da polícia cubana. Centenas câmeras fotográficas foram distribuídas às pessoas
do público com o objetivo de documentar o ocorrido. O trabalho oferecia ao público a
possibilidade de exercer liberdade de expressão: toda e qualquer pessoa poderia subir no
palanque e falar o que quisesse por um minuto. Em Tatlin’s Whisper # 6 (Havana version), o
público se torna responsável pelo trabalho: é ele que “escolhe” o que é dito, assim como é ele
que documenta a ação. O trabalho delega ao público “a responsabilidade, a autoria e a
propriedade de sua documentação” (BRUGUERA, 2009), assumindo, com isso, seu lugar de
cidadania. Fotos, descrições e comentários sobre esse trabalho podem ser encontrados no site
da artista clicando nesse link: http://www.taniabruguera.com/cms/112-0-
Tatlins+Whisper+6+Havana+version.htm
54
No trabalho When Faith Moves Montains (2002) realizado no Peru, Francis Alÿs convidou 500
pessoas voluntárias para mover uma duna de lugar usando poucas ferramentas e suas mãos. A
ação ocorreu nos últimos meses do governo Fujimori, como uma espécie de alegoria da situação
política peruana. Mais informações sobre o trabalho, acesse: http://francisalys.com/when-faith-
moves-mountains/. Em Don’t Cross the Bridge Before You Get to the River (2008) o artista
convidou crianças sediadas na Espanha e no Marrocos para formarem uma fila com pequenos
barcos de brinquedo nas mãos. O objetivo era que as crianças em fila se encontrassem no meio
do caminho entre Espanha e Marrocos, em uma alusão às migrações ilegais que ocorrem na
região do Estreito de Gibraltar. Para mais informações do trabalho, acesse:
http://francisalys.com/dont-cross-the-bridge-before-you-get-to-the-river/. O mesmo tipo de
procedimento foi usado no trabalho Bridge (ALŸS, 2006), dessa fez as pessoas envolvidas em
criar a ponte eram pescadoras(es) e ela ligaria os EUA à Cuba pelo mar. O vídeo do trabalho
está disponível nesse link: http://francisalys.com/bridge-puente/.
57

engajamento e compromisso de quem comparte a experiência artística. Quem


se responsabilizaria por reconhecer a validade ou não daquela desidentidade
seria quem se implicasse a ponto de fazer a troca. A tentativa era a de criar um
campo de implicação concreto, com consequências concretas. Proporcionar um
espaço para que cada pessoa se perguntasse o quanto estava disposta a abrir
mão de sua identidade para habitar uma não-identidade, um algo mais fluido.
Haveriam que renunciar, ao menos naquele momento, a sua identidade e sua
operacionalidade legal.

1.3 A PERSPECTIVA DA DESIDENTIDADE

Na oficina de Silvia Zayas a ação se desenvolveu como descrito no início do


capítulo. Iniciei contando todos os passos que me levaram até ali: falei que a
minha proposição era fazer o impossível possível e que recebi uma quantidade
grande de desejos de diversas pessoas e, dentre tantas, escolhi a que pedia o
fim da ideia de nacionalidade e sua operacionalidade no mundo. Disse que não
estava fazendo mágica e que a proposição era uma ação real para ser operada
na realidade. Falei também que não estava em posição de poder, eu tinha tanto
poder quanto qualquer outra pessoa naquela sala. Contei que aproveitei a
oportunidade de não só acabar com a nacionalidade, mas também com outros
aspectos que definem uma identidade: classe, raça, gênero, espécie. Para isso,
produzi um carnet de desidentidad planetaria. Perguntei se alguém se
interessava em ter esse carnet. Muitas pessoas se mostraram interessadas.
Então propus a troca: “troco esse documento por qualquer documento que vocês
tenham com vocês. Pode ser um DNI, um passaporte, uma habilitação”.

Em princípio as pessoas permaneceram caladas me olhando, provavelmente


duvidando que eu estivesse realmente propondo aquilo. Perguntei de novo se
alguém teria interesse em não ter mais identidade. A resposta foi menos
interessada que da primeira vez. Jose Miguel disse que aquele papel não tinha
qualquer legalidade, que era só um papel; Jimena, uma artista da dança
argentina perguntou se eu devolveria o documento oficial depois; Susanne, uma
artista da dança alemã, disse que poderia fazer a troca pois tinha três tipos de
58

documentação oficiais diferentes, mas que pensou que, se fizesse isso, estaria
“roubando” pois não estaria realmente abrindo mão de sua identidade, por isso,
optou por não fazer a troca de documentações. A professora Silvia Zayas disse
que eu não poderia fazer isso, não poderia brincar de deus, e o que eu estava
coagindo as outras, citou Santiago Sierra e falou que esse tipo de proposição
artística tensionava muito com a realidade e que não tinha ética. Algumas
pessoas respondiam às perguntas de outras e uma discussão começou a se
desenhar.

Não respondi a quase ninguém, optei por deixar a conversa tomar seu próprio
rumo e devolvi uma provocação perguntando porque esse documento teria
menos validade que outros sendo que esses outros também, ao fim e ao cabo,
são apenas papeis, tanto quanto o que eu oferecia como escambo. Em um
momento, Merce se levantou, pegou seu passaporte chileno e me deu, e eu dei
o carnet de desidentidad planetaria. Assim como as outras pessoas, fiquei muito
surpreendida que alguém de fato abriria mão de um documento de identidade
oficial para assumir uma desidentidade. Merce é ume artista chilene da dança,
descendente de mapuches, não-binárie. Merce está na Espanha há cerca de
quatro anos apenas com visto de estudante. A cada ano se inscreve em algum
curso para conseguir renovar seu visto e permanecer legal na Europa. Para uma
pessoa a quem as concepções normativas de gênero, de nacionalidade, de
classe e de raça não favorecem/facilitam sua existência e sua vida no continente
europeu, talvez o carnet de desidentidad seja mais pertinente do que seu
passaporte chileno.

Com o carnet de desidentidad planetaria tentei evidenciar aspectos


intrinsicamente conectados que afetam a experiência de viver e morrer no
mundo. Como já bem colocou a socióloga estadunidense Angela Davis (2016),
não basta pensarmos em termos de classe, há outros fatores que marcam e
conduzem a experiência do viver, e revelam desigualdades e opressões. O
termo interseccionalidade emerge na década de 1980 da luta do feminismo
negro estadunidense para evidenciar a impossibilidade de se pensar a estrutura
de classe separada do racismo e do machismo estruturais. Desde então as
discussões de ativistas e intelectuais sobre interseccionalidade se adensaram e
59

outros aspectos que produzem formas de opressão e de desigualdade foram


incorporados, como a nacionalidade, a etnia, a religiosidade/espiritualidade, a
capacidade e a idade. Angela Davis (2018, p. 256) insiste na compreensão das
interseccionalidades e das interconexões a partir da lógica de lutas e não
exatamente da de identidades per se, pois, diz ela, tais lutas, ideias e processos
não estão isolados e/ou dissociados, ao contrário, estão entrelaçados e
conectados. Para ela, é preciso apreender as categorias complexas para que
possamos superá-las, e isso apenas seria possível se encararmos o desafio de
criar solidariedade e conexões transnacionais.

Quando incluí ao carnet de desidentidad os termos sem classe, sem raça, sem
gênero, sem nacionalidade e sem espécie, meu objetivo não era concordar ou
discordar de Safatle quando ele diz que para haver uma transformação política
seria preciso uma identificação genérica com aquilo que se convencionou por
proletariado, definido pelo autor (SAFATLE, 2016, p. 234) como um tipo de
sujeito político, em realidade um “antisujeito político 55”, por seu caráter de
despossessão56 extrema (sem propriedade, pauperizado, sem vínculos com as
formas tradicionais de vida). Não há nada de genérico na inclusão nominal da
raça, da classe, do gênero, da nacionalidade e da espécie. Mas ao mesmo tempo
em que estava evidenciando as categorias, também estava convidando as
pessoas a um salto para um espaço-tempo onde tais categorias não
precisassem mais existir, a um futuro por vir, ainda impossível dado que tais
categorias estão longe de serem superadas.

Mais que isso, a desidentidade que estava propondo emerge das incursões à
noção de perspectivismo multinaturalista desenvolvida por Eduardo Viveiro de
Castro (2015) e Tânia Stolze Lima (2006) a partir da observação de diferentes

55
Conforme já indiquei, Safatle (2016) argumenta que a ideia de sujeito foi se construindo
historicamente a partir de predicados e lógicas de posse. Sujeito seria aquela pessoa que tem
posse de si mesma, autonomia. Para mais discussões sobre o tema ver Safatle (2016; 2019).
56
Para discussões acerca dos processos de despossessão a partir de uma perspectiva marxista,
ver David Harvey (2005).
60

cosmologias de povos originários57. No perspectivismo as noções sobre


identidades são provisórias e mutáveis pois dependem do ponto de vista de
quem anuncia. Aqui humano é posição situacional, um ponto de vista. Não existe
humano a priori porque tampouco existe natureza a priori. E é desse lugar que a
categoria espécie aparece no carnet de desidentidad.

Viveiros de Castro (2015, p. 43) expõe que o universo dos povos originários é
composto de agências e de agentes humanos e outros-que-humanos58 dotados
“de um mesmo conjunto básico de disposições perceptivas, apetitivas e
cognitivas”. Humanos, outros-que-humanos, mais-que-humanos e inumanos –
animais, mortos, fenômenos meteorológicos, plantas, deuses, artefatos e objetos
– se percebem como pessoas e são pessoas – seres dotados de alma, ou seja,
entidades complexas com agentividade – em situações e em condições
contextuais e específicas. Por que contextuais e específicas? Porque duas
espécies não podem ocupar o lugar de pessoa ao mesmo tempo. Porque “a
semelhança das almas não implica a homogeneidade ou identidade do que
essas almas exprimem ou percebem” (Viveiros de Castro, 2015, p. 44). Por
exemplo, se uma mulher59 se percebe como pessoa, ela não pode perceber um
jaguar ou um tatu como pessoa, ela os percebe como animais, sendo o jaguar
percebido como um animal predador e o tatu como presa. Por outro lado, um
jaguar em posição de pessoa, não percebe um humano como pessoa, mas como

57
O perspectivismo multinaturalista é um tema de imensa complexidade que requer grande
atenção e esforço para que seja compreendido. Não cabe a essa tese explicar todas as minúcias
dessa concepção, assim, sugiro a leitura do livro A queda do céu: Palavras de um xamã
yanomami (2015) de Davi Kopenawa e Bruce Albert; das obras de Viveiros de Castro, a saber,
A inconstância da alma selvagem (2017); Metafísicas Canibais (2015); e Araweté (1985). Os
livros de entrevista: Eduardo Viveiros de Castro - Coleção Encontros (2008) e La mirada del
jaguar (2013), O livro Um peixe olhou para mim (2006) de Tânia Stolze Lima.
58
Viveiros de Castro usa o termo não-humano, eu tenho preferido a proposta other-than-human
de Donna Haraway, que em português se torna outro-que-humano ou outros-que-humanos.
Haraway (2016) também utiliza os termos more-than-human (mais-que-humanos), inhuman
(inumano), e human-as-humus (humanos-como-húmus). Ela não define cada um dos termos,
assim suponho que os outros-que-humanos são viventes como animais e plantas; mais-que-
humanos são algo como espíritos, invisíveis e possivelmente também o ciborgue pode figurar
nessa nomenclatura; inumanos seriam máquinas, ferramentas e semelhantes; e humanos-como-
húmus são os humanos, dando ênfase a relação com a terra, ela também usa o termo compost
(composto) para evidenciar a materialidade humana. No campo da teoria crítica animal (critical
animal studies), o termo outros-animais (other-animals) também vem sendo usado na tentativa
de evidenciar que o humano é apenas um animal entre tantos outros animais (WESTERLAKEN,
2020).
59
Esse exemplo se refere a condições normais, posto que em situações de transe ou
enfermidade essa percepção pode ser diferente.
61

presa. Ou seja, o humano é um tatu para o jaguar porque, se para os humanos


o tatu é uma presa, para os jaguares, em sua posição de pessoa, os humanos
são percebidos como tatus, pois o humano é sua presa. Viveiros de Castro
(2015, p. 44-45) segue:

Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos – a seus respectivos


congêneres – que os animais e espíritos veem como humanos: eles se
percebem como (ou se tornam) entes antropomorfos quando estão em
suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos
e características sob uma aparência cultural – veem seu alimento como
alimento humano (os jaguares veem o sangue como cerveja de milho,
os urubus veem os vermes da carne podre como peixe assado etc.),
seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como
adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado
do mesmo modo que as instituições humanas (com chefes, xamãs,
festas, ritos…).

Pessoa é quem é capaz de ocupar um ponto de vista, com potencial de


enunciação, de estabelecer relações sociais, de ser agente. A ideia de que o
sujeito não é dotado de sentido e de significado por si mesmo, mas que depende
de um ponto de vista e de uma situação, cria um desafio não só epistemológico,
mas também ontológico para o pensamento ocidental. Na ontologia dos povos
originários a noção fundamental é a da transformação: processual, incompleta,
em devir, instável. Não tem nada a ver com essência. Não há um mundo dado e
estável a priori, ele depende de quem está em posição de sujeito, em posição
de pessoa. Mais que uma curiosidade antropológica, o perspectivismo ameríndio
trata de uma diferença ontológica que faz toda diferença porque traz implicações
políticas radicais, como pontua Viveiros de Castro (2016, p. 410):

O perspectivismo também tem implicações políticas, pois considera


cada lugar como um lugar privilegiado. Porque, efetivamente, há uma
ausência total de um lugar privilegiado, todo lugar ou ponto do universo
pode ser um sujeito, pode ser um ponto de vista. Generalizar a noção
de ponto de vista para além do humano, até mesmo para além do
animado, produz um mundo que é radicalmente não-monárquico – e
não-democrático, aliás – ontologicamente falando. O perspectivismo
equivale à anarquia ontológica. Peço desculpa a Pierre Clastres, o
perspectivismo é cosmologia contra o estado 60, o que significa que não
existe um ponto de vista transcendente capaz de abranger todos os
outros. Cada ponto do universo, cada ser, cada árvore, cada animal,
cada planeta é um sujeito, esse é o significado da ideia perspectivista:
o humano é o estado padrão do universo. Isso não significa que a

60
Viveiros de Castro faz uma analogia à Sociedade contra o Estado, título do livro de Pierre
Clastres.
62

humanidade esteja em uma posição privilegiada: se tudo é humano,


então o ser humano per se não constitui um caso especial.

Embora a capacidade de ocupar um ponto de vista seja uma potencialidade da


alma, a especificidade, a diferença, se dá nos corpos, depende do corpo que
ocupa o lugar da perspectiva. Viveiros de Castro (2015, p. 66) afirma que o
perspectivismo está mais próximo de um modo de corpo do que de um corpo
anatômico e morfológico. Obviamente a anatomia e a fisiologia são fatores
fundamentais que condicionam os maneirismos corporais, mas são seus modos
de ser em sociedade, seus costumes comportamentais e a maneira de como se
relacionam com o ambiente – a saber, “o que ele come, como se move, como se
comunica, onde vive, se é gregário ou solitário, tímido ou agressivo” –, que
agenciam suas capacidades, seus afetos, suas afecções 61 e suas
potencialidades. São esses modos de ser que permitem que outros-que-
humanos e humanos percebam da mesma maneira coisas com materialidades
diferentes.

Quando propus a troca de documentos estava mirando esse aspecto. Imaginei


a troca como um convite para que alguém se dispusesse a habitar um certo tipo
de despossessão de predicados, de despossessão de categorias62. Um convite
a pessoa se perceber diferente, menos definida, menos delimitada, menos
encerrada. Aceitar a troca, nas minhas suposições na época, seria assumir esse
compromisso para si mesma(e/o).

Mas o que de fato pus em marcha não chegou a alcançar o que estava
almejando e desejando, isto é, o ato artístico de propor a troca de um documento
de identidade por um documento de desidentidade não é por si mesmo um aceite
de quem realiza a troca a habitar um estado de despossessão. Primeiro porque
não há como controlar os efeitos de um ato artístico. Não há como presumir que
o aceite da troca de uma identidade por uma desidentidade resultaria na

61
Viveiros de Castro (2015, p. 66) remete ao conceito espinosistas de afecção.
62
Esse tipo de compreensão de despossessão está mais bem desenvolvido no livro-entrevista
Dispossession: The Performative in the Political (2013) de Judith Butler e Athena Athanasiou. De
maneira geral a conversa gira em torno da despossessão – o descentramento do sujeito – como
modo de mover uma responsividade política coletiva de ação e de resistência com objetivo de
lutar contra injustiças e opressões.
63

transformação da percepção dos predicados que uma pessoa tem de si mesma.


Segundo porque a troca proposta foi a de um documento, um papel que
representa como um Estado identifica os sujeitos, ou como não os identifica (a
situação das pessoas sin-papeles). Um documento é instrumento que institui
cidadania, acesso a certos direitos, legalidade e identidade a partir de um
acordo, muitas vezes coercitivo, entre Estados e sujeitos, apoiado em leis e
regras sociais.

O que talvez possa ter sido questionado pelo trabalho é a aderência a esses
acordos que coordenam e condicionam as experiências de uma pessoa no
mundo, experiências essas marcadas por aspectos como o lugar de nascimento,
a cor da pele, a condição socioeconômica, o sexo/gênero e a que grupo de
viventes pertence. Ou ainda uma vontade de recusa em se submeter – mesmo
que a recusa venha a fracassar – aos efeitos sociais, políticos e culturais
decorrentes do enquadramento de certos sujeitos a certas categorias. A
identidade como autopercepção não foi posta em causa de maneira precisa.

Um outro motivo pelo qual esse ato artístico se mostra precário é porque do
modo como foi acionado – direcionado a estudantes de arte em uma sala
fechada de um museu de arte contemporânea, durante uma oficina de um
mestrado em artes –, o carnet de desidentidad não criou tensão sociopolítica o
suficiente. Para isso ocorrer, ele deveria ser acionado de outra maneira.

Uma possibilidade seria fabricar falsificações de qualidade dos carnets de


desidentidad planetaria a ponto de poderem passar por um documento autêntico,
e convidar pessoas de diferentes fenótipos a acionar tais falsificações em
âmbitos onde ter certos tipos de predicados, onde se enquadrar a certas
categorias, incide diretamente no viver e morrer nesse mundo. Por exemplo, uma
pessoa latina tentar cruzar a fronteira dos EUA com a desidentidad. A ato
artístico aqui não seria exatamente cruzar a fronteira com um documento de
desidentidade. O ato artístico seria todo o processo e sua documentação. Essa
foi uma possibilidade que passou pela minha cabeça após realizar a ação. Mas
exigiria uma estrutura econômica e um apoio institucional que não tinha. Eu não
tinha dinheiro para fabricar as falsificações. Também não poderia colocar
64

qualquer pessoa, nem mesmo eu, em risco, sem apoio institucional para
assegurar que as pessoas não fossem presas ou sofressem sanções legais.

Para além da logística difícil, essa proposta não seria uma mobilização do
impossível, porque de fato ninguém conseguiria cruzar a fronteira usando esse
tipo de documentação, pois o governo estadunidense não reconheceria o
documento como válido. Para o impossível ocorrer nessa situação, ambas partes
deveriam assumir a desidentidade como possível, aí sim o que estava orbitando
na esfera do impossível se atualizaria como possível. Caso esse duplo
reconhecimento não ocorresse, o impossível não se pronunciaria, pelo contrário,
ele seria despotencializado.

O carnet de desidentidad foi uma primeira incursão para tentar pôr em marcha
um processo de indiferenciação por meio de uma ação de arte. Safatle (2016)
propõe a indiferença em vez de diferença na binaridade identidade-diferença,
dizendo que o oposto da identidade é a indiferença, e não a diferença. Talvez
seja possível pensar que não se trata exatamente de binaridades, de uma
situação que possui apenas dois aspectos que se opõe, e que se deve eleger
um entre dois. O feminismo reiteradas vezes afirma que o pensamento dual de
opostos é um modo de criar hierarquias, de separar e dividir a realidade, sempre
tendo um lado se sobrepondo ao outro (HERRERO, 2018). Talvez se possa
pensar que a indiferença, ou mais bem posto, a indiferenciação emerge do
reconhecimento das diferenças, na interconexão entre o que é diverso.

Me explico, não é tanto uma proposição filosófica, ou pode ser que seja. Quando
Angela Davis (2018) fala do reconhecimento de que as lutas não são tão distintas
uma das outras e da necessidade de se produzir vínculos de solidariedade, me
faz pensar nessa indiferenciação que se manifesta da diferença. E ainda, a
indiferenciação aparece quando o perspectivismo ameríndio explicita que
humanos são todos os existentes: humanos, outros-que-humanos, mais-que-
humanos, inumanos etc. A multiplicidade de naturezas, isto é, as diferenças
manifestas, encobrem um fundo comum compartilhado por todos os existentes.
Nessa proposição de mundo ameríndia também reconheço uma indiferenciação
na diferença. Então, a indiferenciação não se trata da falta de diferença, ao
65

contrário, ela só é possível porque há diferenças. A indiferenciação poderia ser


posta então como a equidade nas diferenças.

O carnet de desidentidad planetario pretendia mover essa noção de


indiferenciação em que até a ideia de antropos63 como centro é colocada em
xeque. A tentativa parte da vontade de mover a estabilidade de certos
pensamentos e representações que nos fazem entender e agir no mundo. Ela
também diz respeito ao desejo de reconfigurar a maneira de como nos
entendemos enquanto espécie, para então ser possível produzirmos modos de
parentesco64 a partir de outras lógicas de relação e, talvez, poder refazer
vínculos perdidos e fazer emergir novos vínculos que todavia não se firmaram.
Mesmo que pareça um ato de extrema ambição, e de fato é, e por mais que a
arte esteja no registro da micropolítica, não tendo o alcance de transformação
da política representativa ou da política das ruas dos movimentos sociais, ela
pode mobilizar afetos, emoções, percepções e existentes. A questão então se
volta não apenas a quais afetos, emoções e percepções queremos mobilizar
com a arte, mas ao modo de mobilizá-los e como considerá-los politicamente,
pois não há luta política sem mobilizações de paixões. Reconheço que para
ativar esse tipo de efeito, a proposição artística deveria ser posta de outra
maneira, possivelmente nem haveria a necessidade de um objeto como o carnet
de desidentidad. Qual? Não sei.

63
Donna Haraway (2016, p. 183) discute a ambiguidade existente na figura anthropos. Diz ela
que até mesmo a origem etimológica é contestada. Há uma perspectiva que afirma derivar da
palavra aner, homem, em oposição à mulher, deus ou menino. Outra coloca que anthropos é a
junção de aner e ops, que significa olho, cara, isto é, aquele que olha para cima. Seja qual for a
origem, em anthropos, afirma Haraway, não está figurada o espaço terreno rico e generativo
multi-específico.
64
Fazer parentesco alude tanto a proposta ao mesmo tempo humorada e séria de Haraway
quando diz “make kin not babies” (faça parentesco e não bebês), quanto à maneira de pessoas
indígenas chamarem uma a outra, sendo da mesma etnia ou não.
66

A mudança necessária é tão profunda que se


costuma dizer que ela é impossível. Tão
profunda que se costuma dizer que ela é
inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o
inimaginável nos é devido. O que era o mais
impossível e inimaginável, a escravidão ou o
fim da escravidão? O tempo de animalismo é o
do impossível e o do inimaginável. Este é o
nosso tempo: o único que nos resta.
Paul Preciado (2014)

2 PODRÍA NO HABER NI SUJETO NI OBJETO

Quando você chega ao lugar na hora combinada, uma pessoa te recebe no início
de umas escadas de granito cinza. Ela pede para que você deixe todos os seus
pertences com ela e te avisa que aquele espaço será só seu pelo tempo que
você quiser estar. Antes que você desça, ela te dá um texto em um papel A4
onde se lê:

esto no es una instalación


es una invocación de la imaginación
tal vez sea una invitación a la concreción
tal vez sea una posible alteridad
o un espacio para comprometerse

no es un juego entre sujeto y objeto


podría no haber ni sujeto ni objeto
probablemente es la activación de un régimen de existencia

no es sobre empatía
ni sobre fantasía
tampoco sobre abstracción

posiblemente es un desafío
o un esfuerzo hacia algo
es ciertamente una decisión de implicarse
es dependiente de la posición en que se elige estar

es abrirse a la emergencia de un encuentro


que puede ocurrir o no
requiere disponibilidad
exige cooperación65

65
isto não é uma instalação / é uma invocação da imaginação / talvez seja um convite à
concretude / talvez seja uma possível alteridade / ou um espaço para se comprometer / Não é
um jogo entre sujeito e objeto / poderia não haver nem sujeito nem objeto / provavelmente é a
ativação de um regime de existência / não é sobre empatia / nem sobre fantasia / tampouco
sobre abstração / possivelmente é um desafio / ou um esforço em direção a algo / é certamente
uma decisão de implicar-se / é dependente da posição em que se decide estar / é abrir-se à
67

Você começa a descer as escadas e se depara com um cartaz A2 onde se lê:

esto no es una abstracción


es un esfuerzo
tal vez sea una disponibilidad
tal vez sea una decisión
o un espacio para una posible alteridad

no es un juego de fantasía
podría ser otra realidad
probablemente es la activación de una
cooperación

no es sobre una instalación


ni sobre un objeto
tampoco sobre un sujeto

posiblemente sea una invitación


o una emergencia de una posición
es ciertamente una disponibilidad
depende de una invocación

es abrirse hacia algo


que puede comprometerse o no
requiere elegir estar con
exige otro régimen de existencia 66

Você continua descendo as escadas até chegar ao amplo e vazio subsolo


daquele prédio, cujas paredes e piso são feitos do mesmo granito cinza da
escada. Só há um corredor a sua direita. Antes de entrar nesse corredor, você
vê mais um cartaz, onde se lê:

esto no es una fantasía


es una cooperación
tal vez sea un desafío
tal vez sea un encuentro
o un espacio para la invocación

no es un juego de abstracción
podría ser una concreción
probablemente es la activación de una alteridad

emergência de um encontro / que pode acontecer ou não / requer disponibilidade / exige


cooperação
66
isso não é uma abstração / é um esforço / talvez seja uma disponibilidade / talvez seja uma
decisão / ou espaço para uma possível alteridade / não é um jogo de fantasia / poderia ser outra
realidade / provavelmente é a ativação de uma cooperação / não é sobre uma instalação / nem
sobre um objeto / tampouco sobre um sujeito / possivelmente seja um convite / ou a emergência
de uma posição / é certamente uma disponibilidade / depende de uma invocação / é abrir-se a
algo / que pode se comprometer ou não / requer decidir estar com / exige outro regime de
existência
68

no es sobre un sujeto
ni sobre un objeto
tampoco una instalación

posiblemente sea una disponibilidad


o una decisión
es ciertamente una invitación
depende de otro régimen de existencia

es un esfuerzo hacia algo


que puede concretarse o no
requiere comprometerse
exige una posición67

Ao fim desse corredor, você vê dois objetos pendurados por fios de nylon dando
a impressão de estarem flutuando no ar: um celular e um fone de ouvido. Você
pega o celular e coloca o fone de ouvido, nele se escuta uma frequência grave.
Em um pequeno cartaz há a seguinte instrução:

En este teléfono hay teclas numeradas y un control de volumen


Cuando entres en la siguiente sala haz clic en las teclas siguiendo la secuencia numérica. No
hay un intervalo de tiempo predeterminado entre cada una, puedes hacer cli cuando quieras
continuar la experiencia. 68

Na parede oposta há uma porta fechada com os dizeres “ENTRE AQUÍ”.

Ao abrir a porta, você entra em um pequeno cômodo que está quase


completamente na penumbra. No espaço só há uma pedra ao chão. Você fecha
a porta e fica com a pedra e a frequência soando em seus ouvidos. O que irá
acontecer a partir daí depende da disponibilidade de ambas.

67
isso não é uma fantasia / é uma cooperação / talvez seja um desafio / talvez seja um encontro
/ ou um espaço para a invocação / não é um jogo de abstração / poderia ser uma concretude /
provavelmente é a ativação de uma alteridade / não é sobre um sujeito / nem sobre um objeto /
tampouco uma instalação / possivelmente seja uma disponibilidade / ou uma decisão / é
certamente um convite / depende de outro regime de existência / é um esforço em direção a algo
/ que pode se concretizar ou não / requer compromisso / exige posição
68
Neste telefone há teclas numeradas e um controle de volume. Quando entrar na seguinte sala,
clique nas teclas seguindo a sequência numérica. Não há um intervalo de tempo predeterminado
entre cada uma, pode clicar quando quiser continuar a experiência.
69

2.1 AS ALIANÇAS AFETIVAS

Tem uma história contada por Ailton Krenak ao antropólogo Pedro Cesarino que
me acompanha há anos e é uma das razões dessa tese existir da maneira como
existe. A conversa entre o ambientalista indígena e o antropólogo aconteceu em
2016, durante a 32a Bienal de São Paulo intitulada Incerteza viva. A 32a edição
dessa que é a maior bienal de arte contemporânea do hemisfério sul trouxe a
incerteza como mote para pensar as condições de vida vigentes. Mais que isso,
a bienal de 2016 se perguntou como a arte pode lidar com as incertezas a partir
de seus próprios meios, considerando “o pensamento cosmológico, o ambiente
e a inteligência coletiva, e ecologias sistêmicas e naturais” (VOLZ, 2016)69.

Em dado momento, Krenak começa a falar sobre algo que ele define como
pensamento mágico por falta de termo melhor para dar conta de um tipo
comunicação que ocorre entre diferentes mundos e produz reações em cadeia:

Eu me lembro de estar cerca de dez, onze horas da noite, numa


cabeceira de rio, no alto rio Jordão, sob uma lua e ao redor de uma
fogueira, numa cerimônia que os parentes estavam fazendo para os
visitantes. Alguns desses visitantes tinham subido o rio arrastando
canoa, porque não havia água no rio, e então, às onze horas, meia-
noite, aqueles visitantes estavam preocupados porque no dia seguinte
teriam que começar uma viagem de volta, descendo o rio, e iam descer
o rio arrastando canoa de novo – já estavam calculando o tempo que
iam precisar até chegar à foz, ao lugar do embarque. Então, uma
pessoa maravilhosa, dessas que vivem o pensamento mágico a que
nós estamos nos referindo, calmamente disse: “Por que vocês estão
deixando de experimentar esse momento? De viver esse momento em
que estamos todos juntos aqui, agora, e se preocupando com o que
vai acontecer amanhã cedo?”. Então, as pessoas que estavam
preocupadas com o embarque nas canoas disseram: “O rio está vazio,
e nós vamos ter que baixar arrastando canoa. Se a gente subiu e
demorou quase um dia e meio arrastando canoa, é bem capaz que a
gente demore mais de um dia agora para baixar”. Ele falou assim: “Não
se preocupem, não. Nós vamos pedir uma chuva”. Olha o pensamento
mágico: “Nós vamos pedir uma chuva para vocês baixarem”. Alguns
ficaram pensando: “Você está brincando com a gente, olha o céu, olha
a lua...” Lá pela uma e meia, duas horas da madrugada, estavam todos
nas redes, se recolhendo porque iam ter que se levantar naquela
manhã. Algum tempo depois, com alguns de nós já cochilando, chegou
uma chuva maravilhosa e potente sobre a floresta, chacoalhando a
floresta, choveu tanto na cabeceira daquele rio, que você não acredita.

69
Para mais informações dessa edição da Bienal de São Paulo, acesse:
http://www.bienal.org.br/post/2355. No site da Bienal também se encontram duas publicações da
32ª edição, Incerteza Viva.
70

As nossas canoas, que estavam amarradas, estavam todas flutuando


sobre um volume de água que devia chegar, assim, a quase dois, três
metros. A mata, a vegetação da beira do rio, estava coberta de água.
Nós descemos às quatro e meia da manhã para apanhar as canoas, e
ele perguntava para nós: “Vocês vão poder descer surfando agora.
Está bom assim? (...) É uma fartura, uma riqueza, porque imagina um
amigo seu poder oferecer a você uma chuva? Tem coisa mais
maravilhosa do que essa? “Não se preocupe, eu vou chamar uma
chuva.” Aqui nós somos tão medíocres, o máximo que conseguimos
chamar é um táxi. O seu amigo está querendo ir embora de
madrugada? “Não se preocupe, vou chamar um táxi.” A tranquilidade
com que ele podia dizer que ia pedir uma chuva é a tranquilidade de
quem está interagindo com muitos mundos, inclusive com o mundo
daquela floresta que produz chuva, com a profunda conexão com
aquele lugar em que ele está presente e com todos os outros seres
que compartilham e que trocam com ele, porque não foi ele quem fez
chover. Ele negociou, mediou com todos os outros, buscou negociar
com todos os seus afetos aquele presente. Deu um presente para a
gente, uma chuva.” (KRENAK; CESARINO, 2016, p. 181–182)

As negociações se dão entre existentes de diferentes naturezas e condições. Na


história alguém se dispôs a estabelecer uma aliança afetiva com a chuva a ponto
de abrir uma comunicação entre mundos e algo se efetivar. Krenak (KRENAK;
CESARINO, 2016, p. 180) diz que a relação ocorre porque há uma espécie de
reconhecimento, de pertencimento, como sendo da mesma família, do mesmo
mundo. Na relação, as duas partes, chuva e pessoas, são sujeitos e agentes que
se implicam e estabelecem relações de cooperação.

Quando uma pessoa que tem como referência a racionalidade ocidental, como
eu, lê/escuta essa história, a compreende a partir da lógica do sobrenatural, do
divino ou do transcendente, percebendo a chuva como algo exterior, cujo
manejo/relação não é possível fora de um regime do extraordinário. Para as
pessoas indígenas a espiritualidade “é parte intrínseca do mundo natural,
imanente, e, portanto, manejável, por meio do conhecimento” (LUCIANO
[BANIWA], 2019, p. 14). O manejo, como colocado pelo antropólogo e educador
Gersem Luciano Baniwa (2019) envolve compreender o mundo e se alinhar a
ele por práticas de cooperação benéficas a ambas as partes. Para isso

é necessário ouvir, observar, compreender suas mensagens por meio


de vozes (trovões, cantos), sons (ruídos fortes de cachoeiras,
correntezas, ondas e banzeiros, ruídos de peixes no fundo do rio, ou
de animais de caça no mato, som de aves revoando ou em repouso
nas árvores, ou ainda o silêncio profundo no coração dos lagos e das
florestas), eventos majestosos por vezes belos e outras vezes
ameaçadores, assustadores e devastadores (tempestades, furações,
71

tufões, tsunamis) e, por fim, deixar compenetrar-se e interpenetrar-se


seguindo os seus ritmos, tempos, ciclos e forças. (LUCIANO
[BANIWA], 2019, p. 5)

Luciano Baniwa (2019)70 explica que não há dualismo ou hierarquização nos


modos indígenas de conhecer e de criar vínculos; manejar mundo é
compreender pelo sensível e entrar em consonância simétrica. Se algum
humano se conecta à água a ponto de pedir a ela que caia em forma de chuva,
é porque reconhece sua semelhança, reconhece que partilham algo em comum
com a água. Se a água responde ao pedido daquele humano é porque também
ela reconhece seu parentesco e admite seu pertencimento àquele mundo. Nessa
relação não há disparidade entre sujeito e objeto, ambos são sujeitos e têm
agentividade, cada um a seu modo.

Se pedir chuva e ser atendido é algo que está no campo do possível para as
pessoas indígenas envolvidas nessa história, para mim, e talvez para muitas
pessoas que vivem sob a cultura racional ocidental branca, ela está no território
do impossível. O máximo que percebo é que essas pessoas reunidas à beira do
rio conseguem criar vínculos específicos com a chuva a ponto de pedir para que
caia, e ela cair. Eu apenas sou capaz de notar que a chuva cai ou não,
independentemente de meu desejo ou da necessidade da situação. Krenak
(2019a) cita uma outra situação de pensamento mágico: os Maxacali seguem
nomeando os animais e as plantas que existiam antes de seus territórios no vale
do Mucuri (MG) serem devastados. Por meio dessa invocação constante de suas
presenças, os Maxacali recriam seu mundo diariamente, animando-o para que
seja possível seguirem existindo. Esses são alguns modos de criar realidades,
fazer existir algo que não estava, mas que passa a estar por meio de uma
implicação mútua; entre indígenas à beira do rio e a chuva, entre os Maxacali e
os animais e as plantas que não estão mais, se ativam circuitos de afetos71

70
Sendo educador com tese desenvolvida sobre o tema da educação indígena e os efeitos da
institucionalização do ensino, Luciano Baniwa (2019, p. 4) propõe a desobediência
epistemológica para evitar a aderência aos cânones científicos de “objetividade, imparcialidade,
apolítica, neutralidade, impessoalidade e laicidade”. Com isso ele não quer dizer que apenas as
visões indígenas são relevantes, ao contrário, afirma que todas as produções de conhecimento
devem ser reconhecidas e postas em relação, sendo hindus, chinesas, incas, astecas, africanas,
ou ocidentais brancas.
71
Tomo emprestado o termo circuito de afetos em alusão às reflexões de Vladimir Safatle,
embora o autor não aborde questões acerca das agentividades dos outros-que-humanos.
72

particulares em que sujeitos/agentes não são apenas pessoas, mas toda uma
miríade de existentes.

O trabalho hacia foi o último que realizei na Espanha, poucos dias antes de voltar
ao Brasil. Entre o carnet de desidentidad planetaria e hacia passaram-se 6
meses nos quais produzi ao menos outros três trabalhos com características
bem diferentes. A vontade de mover o impossível acompanhava cada tentativa,
porém se manifestava de maneira distinta sob a influência de fatores diversos:
as condições de criação que o máster ofertava (que eram precárias pois não
havia espaço para ensaios), as limitações financeiras, as leituras que realizava
à época, e os recentes acontecimentos na política representativa do Brasil.

As eleições presidenciais de 2018

O final de 2018 levou a ultradireita a ocupar o cargo mais importante da política representativa
brasileira; em poucos dias o então deputado carioca Jair Bolsonaro iria assumir a cadeira de
presidente da república, após uma disputa que dividiu o país, regada à fake news e a
processos judiciais duvidosos. A eleição de 2018 mostrou que cerca de 1/3 das pessoas
eleitoras optaram por não tomar parte na decisão de quem iria administrar a política nacional
pelos próximos quatro anos. As sensações de impotência, de frustração e de tristeza
profundas tomaram conta de parte da população brasileira, estávamos doentes de Brasil,
como bem nomeou o psiquiatra Fernando Tenório 72.

As ocorrências nas eleições presidenciais de 2018 que culminaram na eleição de Jair


Bolsonaro para o cargo de presidência da república não são fáceis de elencar, tampouco cabe
a essa tese fazê-lo. Para se compreender em sua completude, seria necessário contar a
história do Brasil desde o fim da ditadura militar, passando pelo impedimento/golpe sofrido
pela então presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Apesar disso, é necessário dedicar algumas
linhas para essa que foi uma das eleições mais emblemáticas desde a redemocratização do
Brasil, na década de 1980.

Entre os acontecimentos do jogo político partidário que pesaram para a ascensão da extrema-
direita ao posto mais relevante da política nacional está a prisão e a posterior decisão do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em impedir que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
concorresse a cargos políticos, eliminando assim o principal adversário de Bolsonaro. Lula
havia sido condenado por corrupção e lavagem de dinheiro em 2017 pelo então juiz Sérgio
Moro, que posteriormente tornou-se ministro da justiça do Governo de Bolsonaro. Moro era

72
Em sua coluna no jornal El País de 1 de agosto de 2019, a jornalista Eliane Brum (2019) cita
o psiquiatra Fernando Tenório em seu artigo Doente de Brasil no qual expõe, dentre outras
coisas, como os consultórios psiquiátricos e as clínicas de psicólogos vem recebendo cada vez
mais gente sofrendo de transtornos psíquicos decorrentes das políticas do Brasil da atualidade.
Nele, Brum entrevista 3 profissionais da saúde que confirmam que a população brasileira vem
sofrendo transtornos de ansiedade, depressão, esgotamento e angústia devido a polarização
política, a precarização do trabalho e a preocupação com os rumos do país. O texto que termina
com a frase “Não estamos mais lutando pela democracia. Estamos lutando pela civilização” está
disponível nesse link:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/01/opinion/1564661044_448590.html?fbclid=IwAR13zi0
2sCt9QNoTQRTl-vfmAI1BLrT3cPe1FhgL4ITcVMtuGwLdfAb6_N0
73

responsável pelas ações da Lava Jato 73. A condenação teve por base um apartamento no
litoral do estado de São Paulo que o ex-presidente teria supostamente recebido da empreiteira
OAS em troca de suposto favorecimento da empresa em contratos na Petrobras. A defesa de
Lula recorreu da decisão e afirmou que o processo tinha por objetivo impedir que o ex-
presidente concorresse de novo ao cargo. Em janeiro de 2018, Lula foi condenado na segunda
instância pelo mesmo juiz, tendo sua prisão efetivada, apesar de haver possibilidade de Lula
ser inocentado em terceira instância.

Embora sua prisão, à época, não impedisse Lula de concorrer a cargos políticos, o ex-
presidente foi impedido de dar entrevistas, receber visitas (fora as de seus advogados) ou
gravar programas políticos eleitorais. Essas foram as razões pelas quais os aliados do ex-
presidente afirmassem a prisão de Lula como uma prisão política.

O Partido dos Trabalhadores (PT) manteve Lula como candidato à presidência até o TSE
indeferir sua candidatura em agosto de 2018. O partido só anunciou seu novo candidato,
Fernando Haddad, um mês antes do primeiro turno das eleições. Além de Haddad não ter um
nome tão reconhecido nacionalmente, foi alvo inúmeras fake news, incluindo a do kit gay 74, e
uma acusação de estupro. Manuela D’Ávila, sua candidata a vice, também foi alvo de centenas
notícias falsas 75, como por exemplo, ter ligação com o atentado do então candidato Bolsonaro.

O atentado à faca sofrido por Bolsonaro em setembro de 2018 causou comoção nacional,
auxiliou a ascensão do candidato ao topo das pesquisas e evitou sua participação em debates.
A campanha do candidato se tornou um reality show transmitido do quarto de um hospital em
São Paulo. Militar reformado, Bolsonaro teve apoio de boa parte da polícia e do exército, assim
como de membros das igrejas evangélicas.

A ausência do debate político e a contra informação criminosa e milionária, pautaram as


eleições, seguidas de ameaças, constrangimentos e mortes alimentadas pelo discurso de ódio
da extrema direita. A situação de ameaças e violências se agravaram ainda mais nos primeiros
meses do governo eleito.

Tentei mover uma parede de 1 metro de largura do museu Reina Sofia,


empurrando, cavando o chão, usando da força do pensamento. Contudo, ela não
se moveu. Apenas mostrar o esforço operava contra a percepção da
possibilidade de fazer o impossível possível. Usei dos artifícios da teatralidade e
da performatividade para produzir no teatro uma figura heterotópica, na tentativa

73
Operação da Polícia Federal que vem desde 2014 investigando esquemas de lavagem de
dinheiro e de corrupção no Brasil.
74
O que foi pejorativamente chamado de kit gay fez parte do projeto Escola sem Homofobia, do
programa Brasil sem Homofobia do governo federal, cujo objetivo se voltava à formação de
professoras e professores para educação sexual de estudantes e era composto por boletins,
cadernos e cartazes. Ao contrário do que foi dito em vídeos que circularam pela internet do então
candidato Jair Bolsonaro, os materiais criados por especialistas e membros da sociedade civil
não se direcionavam a crianças, tampouco o livro Aparelho Sexual e Cia - Um guia inusitado
para crianças descoladas estava entre os materiais.
75
Manuela D’Ávila foi e continua sendo alvo de fake news. Em 2018 o TSE determinou a retirada
de mais de 30 notícias falsas que vão desde adulteração de fotos e discursos – afirmações
inverídicas – como a que diz que D’Ávila teria distribuído material pornográfico a crianças.
Recentemente Manuela D’Ávila concorreu a prefeitura de Porto Alegre, e sua campanha
continuou sendo alvo de fake news. Foram mais de 90 notícias falsas com mais de meio milhão
de compartilhamentos derrubadas pelo TSE durante a campanha. A política acaba de lançar E
se fosse você? Sobrevivendo às redes de ódio e fake news (2020), livro em que aborda os efeitos
das fake news na campanha de 2018.
74

de dar a ver que corpos não são unidades estanques, como se o jogo entre ficção
e realidade pudesse transformar a percepção do possível. Como resultado
percebi que o público se interessou mais pela minha performance como bailarina
do que pela possibilidade de um existente heterotópico que excede a si mesmo.
Também criei um ritual de produção coletiva de uma poção mágica durante a
residência em Garaion76, uma comunidade rural no país basco. Cada pessoa
presente contribuía com algum ingrediente da poção mágica. Ao colocar o
ingrediente no caldeirão que fumegava na fogueira que acendemos, fazia
mentalmente um desejo impossível. O ritual de criação de uma poção mágica
seguia a mesma lógica das fontes de desejos espalhadas ao redor do mundo,
onde cada pessoa joga uma moeda e faz um pedido, na espera de sua
concretização. Nessa fabricação, todas as pessoas se responsabilizavam pela
poção e aos desejos ali deixados. Ao fim e ao cabo, a criação da poção não se
tratou de mobilizar uma ação de transformação de algum aspecto da realidade,
consistiu em desejar/pedir algo para o universo, como ocorre nas fontes de
desejo.

A instalação coreográfica hacia foi a produção de um contexto que tenta


fomentar a relação entre existentes de naturezas diversas, uma pessoa e uma
pedra, por meio dos artifícios da arte contemporânea. O que se revela possível
entre pessoas indígenas, o reconhecimento de existentes como humanos, é
ocorrência impossível à maioria das pessoas ocidentais, como eu.

Situações que envolvem relações entre sujeitos e objetos não é incomum ao


campo da dança contemporânea. Em seu artigo Nove variações sobre coisas,
André Lepecki (2013) discute como a dança vem introduzindo maneiras de estar
com objetos a partir de uma relação mais ligada ao campo da política do que ao
da estética. Citando Agamben e sua teoria sobre dispositivo, na qual o
dispositivo é apresentado como um aparato de captura, de controle e, acima de
tudo, de comando do objeto/instituição sobre o corpo em todo e qualquer
momento de sua existência, Lepecki sugere que em alguns experimentos de
dança, como é o caso dos trabalhos mais recentes do coreógrafo português João

76
Voltarei a mencionar a residência ao longo do capítulo.
75

Fiadeiro, o objeto se torna simplesmente coisa. Liberto de sua utilidade, de sua


significação e de seu valor de uso e de troca, ele deixa de ser um instrumento
de captura para se tornar uma coisa qualquer. Em via de mão dupla, se o objeto
é manuseado como mera coisa, o corpo deixa de ser capturado pelo objeto, pois
não é mais possuído por ele. Nesse jogo de despossessão, Lepecki propõe que
“sujeitos e objetos podem se tornar menos sujeitos e menos objetos e mais
coisa” (2013, p. 96), e completa dizendo que “talvez, um devir-coisa não seja um
destino tão ruim assim para a subjetividade. Quando olhamos ao redor,
certamente parece ser uma opção melhor do que continuar a viver e a ser sob o
nome de ‘humano’” (2013, p. 97).

No pensamento ocidental que dispõe em polos binários e hierárquicos, os


sujeitos estariam em vantagem sobre os objetos, do mesmo modo que a
humanidade estaria em vantagem à natureza e assim por diante. Dessa forma,
a sugestão de Lepecki de coisificar o sujeito seria equiparar ambos em um
nivelamento desierarquizante que despotencializa o sujeito ao nível do objeto,
isto é, nivela por baixo. hacia tenta pôr em relação o jogo de equiparação
invertendo a lógica proposta: em vez de deshierarquizar pelo polo mais fraco, o
da coisa/objeto, equipara pelo polo mais potente, o do sujeito, isto é, não coisifica
nem objeto, nem sujeito, ao contrário, se dispõe a colocar em simetria ambos
como sujeitos, com subjetividade e agentividade.

2.1.1 Dar passagem ao que me destitui

Para chegar à estrutura e aos procedimentos de hacia, precisei me dar conta de


uma série de percalços. O primeiro foi posto por minha orientadora de projeto,
Rosa Casado, artista e pesquisadora espanhola cujo trabalho tem forte teor
político, abordando temas ligados à ecologia, às múltiplas agências existentes
no ambiente e às relações entre humano e contexto. Em nosso primeiro
encontro, contei da minha insatisfação para com os desejos impossíveis que
havia recebido de minhas amizades, tanto pela impressão de que por serem de
fato impossíveis de realizar no contexto em que estava, quanto pela ausência de
76

implicação político-social de outros77. Rosa me perguntou do porquê de eu


delegar a outras pessoas a decisão sobre os desejos impossíveis a serem
realizados por mim, se era eu a interessada no impossível. As pessoas não
estavam investigando o impossível, tampouco tinham acesso a qual tipo de
impossível me interessava, como então eu poderia responsabilizar outra pessoa
por algo que seria de minha atribuição? O questionamento parecia óbvio embora
eu não houvesse pensado nisso até então. Achava que ao delegar a alguém a
escolha de uma ação impossível, estaria provocando um descentramento da
posição de quem produz arte. A pergunta de Rosa me fez repensar qual seria o
lugar da outra pessoa no trabalho, será que seria esse de escolher o desejo
impossível? Certamente eu desejava produzir um espaço de implicação, como
na proposta do carnet de desidentidad planetaria, todavia ainda não sabia como.

Rosa propôs que eu anotasse diariamente um desejo impossível meu. No


primeiro momento senti muita dificuldade em definir um desejo impossível, ou
tudo era pequeno diante da realidade, ou ao contrário, tudo era grandioso
demais diante da realidade. Decidi então que os desejos decorreriam daquilo
que vivia a cada dia, ele seria contextual.

Não foram todos os dias que mereceram desejos impossíveis. Ao todo foram oito
desejos impossíveis contextuais: (1) Acabar con la dolor en el mundo. Sea en
quien, o que, sea78; (2) Que se acaben todas las burocracias del mundo79; (3)
Menos yo, más todos80; (4) Teletransporte; (5) Que los humanos estén siempre
en estado de embriaguez81; (6) Dar pasaje aquello que no es lo que nos
constituye cómo sujetos82; (7) Dejar de ser tan humana83; (8) Telepatía84.
Escrever diariamente me ajudou a delimitar um campo de trabalho; dos oito
desejos foram os últimos três que criaram o fundamento para hacia. Dar
passagem àquilo que não nos constitui como sujeitos foi o ponto de partida da

77
A lista completa de desejos está no primeiro capítulo.
78
Acabar com a dor no mundo. Seja em quem, ou em o que, seja.
79
Que se acabem todas as burocracias do mundo.
80
Menos eu, mais todos.
81
Que os humanos estejam sempre em estado de embriaguez.
82
Dar passagem àquilo que não é o que nos constitui como sujeitos.
83
Deixar de ser tão humana.
84
Telepatia.
77

ação, e deixar de ser tão humana e telepatia acabaram por se tornar a maneira
de acionar o trabalho.

Como dar passagem àquilo que não é o que me constitui como sujeito? Teria
que encontrar modos de tentar experimentar isso por mim mesma. A época na
qual estava tentando traçar práticas coincidiu com a vinda da pesquisadora e
esquizoanalista Suely Rolnik à Madrid para lançar seu livro Esferas de la
insurrección: Apuntes para descolonizar el inconsciente. Foram três encontros
com Rolnik: uma aula para as/es/os estudantes do máster, uma palestra no
Museu Reina Sofia e uma conversa na ocupação Centro Social La
Ingobernable85.

Na palestra Insurgencias macro y micropolítica: diferencias y entrelazamientos,


Rolnik (2019a) afirma a urgência em insurgir macro e micropoliticamente para
que seja possível uma transfiguração da realidade e a transvaloração de seus
valores. Sua contribuição a este problema seria pensar a micropolítica, e como
esta se articula com a macropolítica. Segundo a pesquisadora86, a macropolítica
se situa no âmbito do sujeito e atua na assimetria das relações de poder
manifestas por relações assimétricas de classe, raça, gênero, sexualidade,
religião, etnicidade e colonialidade. A ação macropolítica é realizada apenas por
humanos87 e se direciona ao Estado e às leis por meio de lutas contra a injustiça
social.

Nos últimos anos a pesquisadora vem redefinindo sua noção de micropolítica a


partir da língua guarani por considerar que nela as palavras possuem dimensões

85
O Centro Social La Ingobernable é uma ocupação autogestionada localizada no centro de
Madrid onde ocorrem inúmeras atividades culturais e sociais: aulas de yoga, teatro e dança;
palestras para discutir contextos sociais, saúde e política; oficinas de assessoria jurídica para
imigrantes e de desobediência civil; apresentação de vídeos com teor político, ecológico e social.
Para mais informações sobre esse espaço, acesse: https://ingobernable.net/
86
Nos últimos anos a pesquisadora transformou suas concepções de macro e micropolíticas. O
que considerava como micro, por exemplo as lutas identitárias, passaram a figurar na
macropolítica.
87
Rolnik (2019b) afirma que comumente a luta social é realizada por aquelas pessoas que estão
em posição subalterna no contexto social (mulheres, povo negro, indígenas, população
LGBTQIA+, pobres), mas há pessoas em posição de soberania que também lutam pela
igualdade de direitos. Da mesma, há pessoas em posição subalterna que estão aderidas às
dinâmicas do regime colonial-capitalista-escravocrata e não são agentes de luta.
78

micro e macro. Para exemplificar, Rolnik diz que o termo ñe’e, usado para
designar palavra – em um sentido amplo de linguagem: palavra, gesto, imagem,
modos de existência – e o termo anga, que designa alma, significam ambos
palavra-alma; palavra e alma sempre se acompanham. Ela coloca ainda que,
para os povos guaranis, todas as doenças, orgânicas, psíquicas e emocionais,
são efeito da comparação entre palavra e alma: as doenças ocorrem quando um
modo de existência perde sua alma, ou quando a alma não encontra sua palavra,
seu modo de se expressar. Por sua vez, garganta, em guarani, significa ninho
das palavras-alma. O ar do mundo entra em nosso corpo pela respiração,
fecundando-o. Isso quer dizer que as forças do corpo do mundo afetam nosso
corpo:

são como gérmen de futuro. Porque somos afetados pelo mundo como
corpo vivo, pelas forças vivas que estão aí, pelo tipo de composição de
força que estão aí. Isso produz no corpo um estado, uma afecção, um
efeito, dessas forças no corpo. É como um embrião: um estado ainda
sem palavra e sem imagem. Mas não é um nada, é algo com uma
qualidade específica; são embriões de um mundo por vir. (ROLNIK,
2019b)

Tais gérmenes são como um sinal de alarme vital, um nó na garganta, que gera
um desconforto e desestabiliza os modos de existência, pois emergem daquilo
que sufoca a vida. O sinal “desperta a pulsão vital que convoca o desejo a atuar
para recobrar um equilíbrio” (ROLNIK, 2019b). É nesse nó na garganta, nessa
força que ainda não tem forma e que gera desconfortos e desestabilizações,
onde atua a micropolítica, seja ativa ou reativamente.

A micropolítica situa-se na tensão entre sujeito – humano, outros-que-humanos,


mais-que-humano88 – e o fora-do-sujeito. A ação micropolítica insurge frente a
violência contra a vida e atua resistindo ao abuso da força vital de elementos
humanos – pessoas – e não-humanos – biosfera, atmosfera, hidrosfera, litosfera
–, dos quais a composição e a manutenção da vida dependem. Como exemplo
Rolnik (2019a) cita a resposta do Rio Doce em face a constante poluição da
mineradora Vale: o rio secou na superfície e insurgiu no subterrâneo na tentativa

88
Rolnik não utiliza especificamente esses termos, no entanto, a pesquisadora afirma que não
são apenas os humanos a fazerem micropolítica, outros existentes também a exercem a seu
modo. Escolho identifica-los dessa maneira para reforçar o descentramento do humano como
único agente micropolítico.
79

de se proteger dos efeitos venenosos das substâncias excretadas pela


mineradora.

A resposta micropolítica humana diante da violência varia de acordo com as


diferentes culturas/contextos. No regime dominante definido pela pesquisadora
(ROLNIK, 2019a) como colonialista, capitalista, escravocrata, antropo-falo-ego-
logocêntrico, as respostas micropolíticas humanas ocorrem, de maneira geral
por uma via reativa, na qual a subjetividade está agarrada ao status quo, aderida
ao trauma social e reduzida à experiência do sujeito, desconsiderando tudo que
é/está fora-do-sujeito. Em sua ação mais reativa, a micropolítica “vive o universo
exclusivamente como um objeto que lhe é exterior e o decifra apenas da
perspectiva de sua experiência como sujeito” (ROLNIK, 2018, p. 66). As
desestabilizações, ou o encontro com um outro, com o fora-de-si, geram medo
de dissolução de mundo e, consequentemente, de si, como se o mundo em que
se vive fosse o único mundo possível, e qualquer sinal de sua desestruturação
fosse também um sinal de seu fim. A pulsão, ou o desejo “é convocado a
recobrar um equilíbrio apressadamente e o faz orientado por uma bússola moral”
(p. 69) e tem como efeito “a diminuição da potência de condição do vivente,
produzindo uma espécie de anemia vital (...), resultando numa eterna
reprodução das formas do mundo em sua atual configuração” (p. 75). Ela atua
no abuso da vida, desde seu nascimento como potência criadora, à exploração
da vida e à expropriação da vida. Na micropolítica em seu polo reativo, os nós
na garganta assustam e “se tornam nódulos cancerígenos cujas metástases se
ramificam por todo nosso corpo-alma, se esparramam ao campo relacional e,
como uma peste, vão contaminando todo o corpo social”(ROLNIK, 2019a)89.

89
Na Ingobernable, Rolnik apresentou Jair Bolsonaro não como um estadista, mas como a
personificação e a mobilização mais acurada de uma subjetividade micropolítica reativa: racista,
antropocêntrica, capitalista, colonialista, machista. Isso ficou evidente em seu discurso na
abertura dos Debates Gerais da 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), que aconteceu
em Nova York, nos Estados Unidos, no dia 24 de setembro de 2019. Nele, teceu elogios ao
governo autoritário da Arábia Saudita e à época do golpe militar no brasil; discutiu a violência
social brasileira apenas expondo as mortes de policiais militares, sem mencionar as milhares de
mortes da população pobre e negra brasileira; defendeu que a Amazônia não é patrimônio da
humanidade mas pertence ao Brasil e que deve ser explorada; responsabilizou a seca, o vento
e os povos indígenas pelas queimadas da Amazônia; chamou a população indígenas de
“homens da caverna”; citou versículos da bíblia afirmando sua inclinação cristã e esquecendo
toda uma miríade de práticas religiosas brasileiras não-cristãs; exaltou o patriotismo bélico ao
declarar seu alinhamento com os então governos dos EUA (Donald Trump) e Israel (Reuven
Rivlin).
80

Na micropolítica em seu polo mais ativo, diz Rolnik (2018), a subjetividade


sustenta duas experiências simultâneas: a do sujeito e a do fora-do-sujeito. A
primeira diz respeito a sustentação da tensão entre forças emergentes da própria
subjetividade. A segunda consiste na manutenção da atenção aos efeitos dos
encontros turbulentos do sujeito com aquilo que não é o sujeito: o fora-do-sujeito.
A micropolítica ativa sustenta o desconforto e percebe os efeitos dele, dando o
tempo necessário para que novas configurações de vida ganhem potência e
forma, para que seja possível “a germinação de um mundo, sua língua e seus
sentidos” (p. 60). Ao ser destituída de seus parâmetros habituais, a subjetividade
busca modos de conectar pontos inabituais, atualizando mundo e dando
passagem a algo novo/outro, que pode se manifestar em diferentes formatos, a
saber, uma ideia, uma imagem, um gesto, uma obra de arte, um outro modo de
existência, de sexualidade, de alimentação, uma nova maneira de relacionar-se
com alguém, com o trabalho, com o Estado ou com qualquer outro elemento do
entorno. Rolnik (2018, p. 61) conclui:

Seja qual for esse algo, o que conta é que ele carregue consigo a
pulsação intensiva dos novos modos de ver e de sentir – que se
produziram na teia de relações entre os corpos e que habitam cada um
deles singularmente –, de modo a torná-los sensíveis, promovendo
desvios na superfície do mundo.

A transformação no conceito de micropolítica que Rolnik vem operando abre


espaço para a emergência de outros sujeitos que não humanos. Mais que isso
afirma como as relações entre existentes de naturezas diferentes pode produzir
afetos mútuos. Acima de tudo reconhece os outros-que-humanos como sujeitos
capazes de atuar politicamente. A torção conceitual veio ao encontro do que eu
estava tentando ativar com o desejo de deixar de ser tão humana. Esse desejo
diz respeito à possibilidade de ser afetada antes por minha condição de vivente
do que por minha condição cultural. Pode ser que seja impossível subtrair os
atributos sociais de nacionalidade, de sexualidade, de gênero, de classe social,
de espécie, dentre tantos outros, mas justamente por ser impossível que me
propus a isso. Mais do que me tornar algo que não sou, se tratava de tentar
mobilizar forças que comumente não mobilizo, e implicar-me com aquilo que me
desidentifica daquilo que eu sei de mim mesma e do mundo.
81

Precisava ter encontros com o fora-de-mim, buscar outros afetos para ativar o
que estava em mim, embora inativamente. Como prática me propus caminhar
diariamente pelo rio e pelo parque que ficavam perto de onde morava e me
deixar ser levada. Não queria fazer disso algo especial, não tinha intenção
alguma em fazer qualquer coisa que se assemelhasse a uma prática artística,
como entrar numa lógica de deriva. Não era nada disso. Era a tentativa de
retomada da vida que pulsa, por meio de algum tipo de vínculo não centrado no
que me define. Acima de tudo se tratava de tentar me implicar com o que não é
considerado como atributo exclusivo da humanidade, como na história de
Krenak.

Tais incursões diárias de ativação de vida me levaram a investigar práticas de


atenção, como a telepatia e a hipnose, e estudos de frequências binaurais.
Procurei praticar um deslocamento de mim mesma em direção a um outro.
Dependendo do dia, o outro era uma ave, uma pedra, uma planta, o vento. Nunca
era outro humano, talvez pela semelhança, talvez por minha incapacidade de
subtrair os atributos que nos identificam. Era uma tentativa de me implicar com
algo que não sou eu. Um esforço. As pesquisas sobre telepatia me levaram a
experimentos laboratoriais que tentavam provar a existência da telepatia,
principalmente estudos ligados à psicanálise90, além disso, levaram-me também
a práticas ligadas ao ocultismo. Nem um dos dois campos era o que buscava. O
que estava entendo por telepatia era a possibilidade de criar um tipo de
comunicação, na verdade um tipo de sincronia com outros-que-humanos. Ainda
assim encontrei alguns princípios que pareceram pertinentes, como o estado de
atenção, a tentativa concreta de envio e de recepção de pensamento e o
relaxamento.

90
O médico alemão Sigmund Freud [1856-1939], percursor da psicanálise, escreveu sobre a
relação entre sonho e telepatia por volta do ano 1922 em uma palestra que não chegou a ser
proferida denominada Dreams and Telepathy. Nela Freud (1955 [1922]) se abstém em definir
telepatia bem como não afirma acreditar ou não na possibilidade de sua existência. O
pesquisador Bartholomeu Vieira (2017) diz que Freud compreendia a telepatia como uma forma
de transferência de pensamento, um tipo de capacidade de captar afetos caracterizada por uma
troca psíquica da qual não se tem controle.
82

A hipnose também não dava conta do que estava buscando, mas foi nesta
investigação que encontrei as frequências binaurais, que são ilusões perceptivas
produzidas pelo cérebro quando cada ouvido de uma mesma pessoa está sob
efeito de uma frequência específica91. Por exemplo, se o ouvido direito escuta
uma frequência de 105 Hz e o esquerdo escuta uma de 112 Hz, o cérebro
percebe uma terceira frequência que é a diferença entre elas, ou seja, uma
frequência de 7 Hz (CRESPO et al., 2013). Os sons binaurais são diferentes dos
estéreos pois neles se incorporam sinais espaciais que imitam e aumentam os
sinais de localização espacial pelos quais os ouvidos são responsáveis92
(ROGINSKA, 2017). Cada gama de intervalo foi nomeada de acordo com as
frequências de funcionamento cerebral: delta (1-4Hz), theta (4-8Hz), alpha (8-
13Hz), beta (13-30Hz) e gamma (30-70Hz)93 (CRESPO et al., 2013).

Esses aparatos e técnicas não tinham como objetivo processos meditativos


ensimesmados, nem alcançar uma dita paz interior, tampouco o conforto
pessoal. Tentava encontrar um outro modo de implicação com algo outro mais
perto de um trabalho com campos de forças do que de um modo de conhecer
objetivista. Mais uma vez recorrendo às cosmologias ameríndias, tentava
conhecer a partir de outra operacionalidade. Viveiros de Castro (2015, p. 50)
coloca o xamanismo como um modo de ação que implica uma concepção de
conhecimento específica, oposta à epistemologia ocidental branca, definindo
essa última da seguinte forma:

conhecer é “objetivar”; é poder distinguir no objeto o que lhe é


intrínseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e que, como tal, foi
indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto. Conhecer, assim, é
dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito presente no objeto, de modo
a reduzi-la a um mínimo ideal (ou a ampliá-la demonstrativamente em

91
Prefiro o termo frequência a tom pois tom remete a intervalos preestabelecidos pela teoria
musical ocidental, usado comumente em escalas e métricas. Na música ocidental existem
apenas tons e semitons, diferentemente da música indiana ou na árabe, por exemplo, em que
existe uma maior gama de intervalos. As frequências binaurais não obedecem à lógica da música
ocidental.
92
Isso se deve ao fato de as frequências binaurais atuarem na percepção por meio da Diferença
de Tempo Interaural (ITD) – a diferença de tempo de chegada de um som em cada um dos
ouvidos – e da Diferença de Intensidade Interaural (IID) ou Diferença de Nível Interaural (ILD),
que corresponde à mudança de intensidade/nível do som em cada um dos ouvidos de acordo
com a relação espacial entre cada ouvido com a fonte do som (ROGINSKA, 2017).
93
A estimulação de ondas binaurais em diferentes frequências tem sido usada como terapia
auxiliar no tratamento de doenças e de dores, assim como para estimular relaxamento, atenção
e memória, promover estados meditativos e diminuir quadros de ansiedade e depressão.
83

vista da obtenção de efeitos críticos espetaculares). Os sujeitos, tanto


quanto os objetos, são concebidos como resultantes de processos de
objetivação: o sujeito se constitui ou reconhece a si mesmo nos objetos
que produz, e se conhece objetivamente quando consegue se ver “de
fora”, como um “isso”. Nosso jogo epistemológico se chama
objetivação; o que não foi objetivado permanece irreal e abstrato. A
forma do Outro é a coisa.

Por outro lado, no xamanismo ameríndio conhecer é subjetivar, se colocar no


ponto de vista do que se quer conhecer porque

a questão é a de saber “o quem das coisas” (Guimarães Rosa), saber


indispensável para responder com inteligência à questão do “por quê”.
A forma do Outro é a pessoa. Poderíamos dizer que a personificação
ou subjetivação xamânicas refletem uma propensão geral a
universalizar a “atitude intencional” identificada por certos filósofos
modernos da mente (ou filósofos da mente moderna) como um dos
dispositivos inferenciais de base. (...) Longe de buscar reduzir a
“intencionalidade ambiente” a zero a fim de atingir uma representação
absolutamente objetiva do mundo, faz a aposta inversa: o
conhecimento verdadeiro visa à revelação de um máximo de
intencionalidade, por via de um processo de “abdução de agência”
sistemático e deliberado. (...) O sucesso interpretativo é diretamente
proporcional à ordem de intencionalidade que se consegue atribuir ao
objeto ou noema. Um ente ou um estado de coisas que não se presta
à subjetivação, ou seja, à determinação de sua relação social com
aquele que conhece, é xamanisticamente insignificante – é um resíduo
epistêmico, um “fator impessoal” resistente ao conhecimento preciso.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 50–51)

O xamanismo ameríndio propiciava parâmetros epistêmicos e indicavam modos


de abordar a relação entre dois ou mais existentes. A intenção não era exercer
práticas xamânicas, mas sim ativar um outro modo de se pôr em relação, menos
objetivista e menos suscetível à coisificação do outro. Busquei práticas que
promoviam um tipo de conduta que amparavam e contribuíam no
reconhecimento do outro como sujeito, centros potenciais de agência e de
intencionalidade. O trabalho com algumas práticas oriundas da telepatia e o uso
de frequências binaurais se destinavam a pôr em marcha um tipo de atenção
estendida no tempo para acionar um estado de disponibilidade para a relação.
Mais do que deixar de ser tão humana, percebi que o desejo impossível dizia
respeito a deixar de ser tão antropocêntrica, ao compartilhar da posição de
sujeito com outros existentes, como indica as muitas cosmologias ameríndias
nas quais a noção de sujeito é explodida e generalizada entre os existentes:
sujeito é a pedra, a rã, o vento, o pote, a montanha. Sujeito é quem ocupa lugar
de pessoa.
84

2.2 UN ESFUERZO HACIA ALGO

Até aquele momento estava experimentado sozinha caminhando na rua ou


estando no parque. Em meados de abril de 2019 nós estudantes do máster
tivemos a oportunidade de realizar uma residência artística em um espaço
cultural rural perto da cidade de Vitória no País Basco. Iríamos compartilhar o
que estávamos desenvolvendo para o projeto do máster entre nós mesmas. A
proposta que levei se tratou do embrião do que se tornou hacia menos de dois
meses depois.

À época eu seguia fixada com a ideia de desejo impossível e me perguntava


qual seria o desejo impossível de uma certa planta, certo cachorro. Será que
apenas a humanidade seria capaz de ter desejos impossíveis? O lugar do desejo
é o lugar do sujeito? Quem/que é sujeito? Quem/que pode o que, e quem/que
não pode quase nada? Quem/que é considerada (e/o) um alguém e não uma
coisa? Coisas estão disponíveis para uso e descarte, estão em função de
alguém. Coisas ou algos poderiam ter lugar de fala? Afinal, quais existentes são
autorizadas (es/os) a ser sujeito no mundo?

Pensei em criar um espaço para fomentar a subjetivação de algo que


comumente é considerado sem subjetividade. Ou seja, a ideia era provocar por
meio de artifícios da arte um estado perspectivista em que qualquer existente é
sujeito em potencial. Busquei um espaço pequeno para criar a instalação onde
só uma pessoa poderia entrar por vez. Nesse espaço havia uma cadeira com
um fone de ouvido reproduzindo uma frequência binaural delta94, e uma luz
rosada, para distinguir aquele ambiente do resto do espaço da casa onde
estávamos95. Ao chão dispus uma sequência de instruções escritas em papéis
numerados:

94
Os dois tons de frequência produziam um intervalo de 3.0 Hz. Em minhas pesquisas descobri
que esse intervalo gerava uma frequência delta, estimuladora de estados de transe e de
relaxamento profundo. A frequência se encontra neste link:
https://www.youtube.com/watch?v=YbfgclQ-WSU. Acesso em: 13 out. 2020
95
Em hacia não realizei pesquisas em relação a cores, mas esse também poderia ser um viés a
ser investigado.
85

1) Por unos minutos ponga su atención en la frecuencia que suena en este espacio. Deje que
ella produzca un efecto en su percepción. Cuando esté lista, abra el papel 2.96

2) I Ahora perciba lo que está delante de ti. Mire con atención. Si lo desea, también puede tocar.
Cuando esté lista, abra el papel 3. 97

3) Usted es capaz de comunicarse con eso. Usted puede sintonizarse con eso. Cuando esté
lista, abra el papel 4.98

4) En este momento, habla contigo, te está contando su deseo más vital. Percibe su deseo.
Cuando esté lista, abra el papel 5. 99

5) Permanezca con ese deseo. Transforme ese deseo en su deseo también. Si deseas compartir
ese deseo, encuentre una manera de hacerlo. Puede ser con alguien, con algo, escribiendo,
hablando, pensando. Como te apetezca. 100

De frente a essa cadeira posicionei um tronco para aparar elementos de


diferentes naturezas. Durante o período em que a instalação esteve aberta
(quase 24 horas), mudei o elemento de tempos em tempos. Ao todo foram 4:
uma faca, uma pedra, um galho com fungos, cinzas de fogueira. A eleição de
elementos foi circunstancial, dependia do que o espaço dispunha, e genérica,
pois eu queria saber se qualquer elemento é potencialmente subjetivável. Nas
cosmologias ameríndias humanos, deuses, animais, mortos, plantas, fenômenos
meteorológicos, objetos e artefatos podem ocupar a posição de sujeito em
contextos específicos (VIVEIROS DE CASTRO, 2015), assim tentei dispor de
elementos naturais como a pedra, o bolor e as cinzas, e elementos
manufaturados como a faca. A faca também trazia aspectos simbólicos e um
modo de uso predeterminado, e eu estava interessada em descobrir o que um
elemento tão carregado de sentido e de função produziria na relação.

96
1) Por alguns minutos, preste atenção na frequência que soa neste espaço. Deixe que ela
produza um efeito em sua percepção. Quando estiver pronta, abra o papel 2.
97
2) Agora perceba o que está à sua frente. Olhe atentamente. Se desejar, você também pode
tocar. Quando estiver pronta, abra o papel 3.
98
3) Você é capaz de se comunicar com isso. Você pode se sintonizar isso. Quando estiver
pronta, abra o papel 4.
99
4) Neste momento, isto fala com você, está te contando seu desejo mais vital. Perceba seu
desejo. Quando estiver pronta, abra o papel 5.
100
5) Permaneça com esse desejo. Transforme esse desejo em seu desejo também. Se deseja
compartilhar esse desejo, encontre uma maneira de fazê-lo. Pode ser com alguém, com alguma
coisa, escrevendo, conversando, pensando. Como quiser.
86

Figura 1: imagem da instalação em Garaion

Fonte: acervo pessoal

Desde o primeiro momento em que formatei a instalação em Garaion sabia que


usar bilhetes de papel era uma solução ruim posto que as pessoas teriam que
parar de observar para ler, ou seja, os papéis criavam uma mediação
demasiadamente forte que interromperia a relação. Mesmo em condições
precárias, conversando com as pessoas que passaram pela instalação, pude
perceber que algo ocorria entre elas e os algos. Houve alguns comentários que
me ofereceram pistas de como seguir com essa prática. Algumas pessoas
falaram que a instalação gerava expectativa em relação ao que estava em sua
frente, como se alguma coisa fosse realmente ocorrer ali. Outras falaram do
estado de tuning101 gerado pelo design da instalação. Ainda comentaram sobre
o sentimento de responsabilidade que a proposta gerava. Também

101
A tradução literal para o português seria afinar, mas tuning é uma expressão que abarca mais
sentidos que apenas a afinação. Tuning é entrar em sintonia; estar em acordo; ajustar com
precisão; se harmonizar em relação à ressonância de uma frequência específica.
87

mencionaram o ceticismo como uma barreira que impede a ativação de um


estado de escuta da relação. A ergonomia também foi uma questão apontada, a
cadeira impunha um modo de se estar: sentar e olhar de frente. Por outro lado,
o tronco como aparador dava uma ideia de objeto, de escultura.

Muitas pessoas reclamaram dizendo que as instruções eram muito fechadas e


controladoras, falaram de criar instruções mais abertas, livres e convidativas. Por
outro lado, houveram pessoas que chamaram atenção para a diferença entre
guiar e controlar, e que eu não deveria ter medo de guiar a experiência, porque,
sem guia, nenhuma experiência ocorreria, ou pior, qualquer experiência
ocorreria. Eu não almejava qualquer experiência, não queria que a instalação
fosse um espaço lúdico onde qualquer coisa caberia. Não era sobre isso. Nessa
conversa, percebi que não estava em busca de que alguém descobrisse o desejo
impossível de um algo. Tampouco estava tentando criar um laboratório de
práticas de empatia. Era sobre ativar um modo de percepção. Mais que isso: era
sobre a possibilidade de implicar-se com algo outro, de dar tempo para que
revelasse sua própria agentividade, sobre a possibilidade de perceber a
subjetividade em algo que, comumente, não é visto como sujeito: subjetivar a
faca, a pedra, os fungos, as cinzas. Apesar de muitas falhas, a instalação parecia
promover uma mobilização.

Umas semanas depois tive uma conversa com minha tutora, Rosa Casado.
Contei a ela tudo o que aconteceu e o que estava pensando a partir dali. Essa
longa conversa foi de suma importância para o desenvolvimento do trabalho.
Uma das primeiras coisas que me disse que havia algo de antropocêntrico na
tentativa de não o ser. Quando o bilhete diz com todas as letras que aquele algo
está contando o seu desejo mais vital, acabo por sobrepor minha agência sobre
qualquer outra, não só tentando direcionar a experiência das pessoas que se
dispuseram a entrar na sala, como já me haviam dito as colegas do máster, como
presumindo, ou simplesmente não considerando, a própria agentividade do que
eu havia posicionado sobre o tronco. Não pode haver uma suposição de
disponibilidade a priori. Essa observação fundamental provocou um desvio no
modo de acionar a proposta. A certeza de que haveria alguma forma de
comunicação era impossível de garantir. O que poderia ser construído era a
88

produção de um espaço/tempo que estimulasse à disponibilidade e propiciasse


um encontro, ou seja, a criação de uma proposição que tinha como foco a
relação entre humanos e outros-que-humanos, e que dependia do engajamento
desses. Desde o meu ponto de vista, era uma tentativa, não uma certeza.

Contei à Rosa que minha ideia inicial era realizar a instalação em algum espaço
no teatro onde a maioria das apresentações de encerramento do máster
ocorreriam. As pessoas a frequentariam no intervalo entre as performances.
Rosa chamou a atenção para o fato de que o que eu estava propondo era, na
realidade, um convite ao comprometimento. Para que alguma coisa ocorra, um
(ou mais) deve assumir o compromisso e se disponibilizar. O comprometimento
deveria estar evidente desde o princípio, logo, não poderia se fazer caber em
intervalos curtos nos quais a atenção está dispersa entre várias performances,
em conversas de intervalo, refém da fome, da sede e do cansaço de um dia
inteiro de apresentações. Me sugeriu então que eu encontrasse um
espaço/tempo propício ao comprometimento para que de fato exista uma
decisão de ir à instalação, e não apenas ir porque há alguns minutos ociosos
entre apresentações. Da mesma maneira que alguém assume um compromisso
com um espetáculo – comprar entradas para certo dia e horário, se dirigir ao
teatro e disponibilizar ao menos uma hora de sua vida para desfrutar de um
trabalho artístico –, a instalação deveria demandar ao menos o mesmo
compromisso.

Refletindo sobre o que havia feito em Garaion, Rosa disse que a possibilidade
de encontro seria consequência de um processo, o trabalho não era só o
encontro, ele se iniciaria antes. Começa com a eleição de ir a um espaço
determinado em um horário pré-estipulado, mas não bastaria chegar à instalação
e adentrá-la. Deveria haver ainda outra espécie de preparação. De alguma
maneira eu deveria evidenciar que a instalação não é um trabalho de
observação, que demanda esforço, pois nada aconteceria se a pessoa que
entrasse na instalação não assumisse sua responsabilidade perante o encontro.
Rosa me disse que o trabalho se efetiva no trânsito entre o fora e o dentro da
instalação, na tomada de decisão de entrar e se comprometer com o encontro.
Mais do que me preocupar com o que ocorre no encontro – já que ele apenas
89

interessa a quem se encontra –, como artista propositora, eu deveria me atentar


ao que antecede a ele. Sugeriu que eu trabalhasse em duas textualidades, cada
uma com sua especificidade: uma que antecede à entrada e uma que ocorre já
no espaço do possível encontro (como os bilhetes da instalação de Garaion). Em
ambas textualidades pediu para que eu me atentasse à linguagem usada, sua
estrutura gramatical e sua sonoridade.

Nas semanas seguintes me ocupei de encontrar um espaço; em criar, junto a


artista Hedra Rockenbach102, que me visitava em Madrid, a frequência a ser
escutada no fone de ouvido e o dispositivo onde se escutaria as instruções de
dentro da instalação; e em escrever os textos. Andando pelo Museu Reina Sofia,
encontrei um banheiro usado apenas pelos funcionários no subsolo do edifício
Nouvel que tinha uma ante sala de 2x2m2, com paredes brancas e piso de
granito cinza. Além disso, todo aquele andar era restrito ao público do museu e
seu acesso se dava apenas por escadas também de granito. Ou seja, não
apenas o banheiro, mas todo aquele andar poderia ser usado para a instalação,
corroborando na criação de um espaço íntimo e privado.

Em relação à frequência, Hedra e eu optamos por usar em um lado do fone de


ouvido uma nota do sistema tonal ocidental – um Fá sustenido – cuja frequência
é de 92,5Hz. No outro lado do fone, usamos uma frequência de 97Hz – quase
um Sol no sistema tonal ocidental. Queríamos produzir um intervalo de 4.5 Hz
que, de acordo com minhas pesquisas sobre frequências binaurais, é o que ativa
um estado xamânico, sendo usado também nos cantos budistas tibetanos.
Hedra também produziu interferências na frequência usando o sintetizador digital
Minitaur.

Editei os textos que estavam nos bilhetes da instalação de Garaion tentando


encontrar formas de não ser tão prescritiva, mas de produzir uma guiança aberta
o suficiente para favorecer o encontro, e ao mesmo tempo fechada para que a

102
Hedra Rockenbach é designer de som, musicista, iluminadora, coordenadora e diretora
técnica de espetáculos. Desenvolve um trabalho singular ao campo das artes cênicas no qual
luz e som são criadores de dramaturgias e extensão da ação dos performers. Desde 2016
também atua no audiovisual criando trilhas sonoras para longas e curtas metragens.
90

situação não se tornasse qualquer coisa. Pedi para que Luciana Croatto103 os
narrasse, não queria que meu sotaque se tornasse uma interferência. As
gravações foram alteradas para a voz ficar irreconhecível. Usamos o aplicativo
Touch OSC104 para transformar um celular em um controle remoto que controla
o programa Live Ableton105, onde estavam as gravações de áudio e a frequência.
O uso de tecnologia facilita a mediação da relação, ninguém teria que ler
qualquer papel e poderia controlar o tempo entre cada instrução, e a frequência
continuaria soando no fone de ouvido.

Sendo a abertura de um marco e o convite para uma disponibilização, o pré-


texto tinha suma importância, seria ele a instalar a atmosfera de trabalho. Como
poderia dar ênfase e relevância ao pedido de implicação para que, no momento
de entrar na instalação propriamente dita, a pessoa reatualizasse a necessidade
de comprometer-se? Quais seriam as camadas a serem ativadas? O que é
importante ser dito? Que palavras usar? O que ajudaria alguém a se
disponibilizar ao encontro?

A filósofa belga Isabelle Stengers (2018), na esteira de discussões apresentadas


pelo ecólogo, filósofo e mágico estadunidense David Abram, compreende a
palavra como uma espécie de magia: quando lemos estamos ao mesmo tempo
animando o texto, e sendo animados por ele, como um certo tipo de feitiço capaz
de nos fazer testemunhar acontecimentos, ter visões fora do comum ou
experienciar outras vidas. Nas práticas de magia realizada por bruxas, feiticeiras
e xamãs, a palavra é usada para dar forma ao feitiço, uma afirmação precisa que
tem função de invocação e de encantamento, como se ao dizer a frase algo se
faz realidade, algo se transforma.

103
Luciana Croatto é uma artista da dança.
104
O Touch OSC é um aplicativo de criação de interface entre dispositivos diversos. No caso de
hacia conectou o computador ao celular, criando uma interface que permite que o computador
seja acionado por meio do celular.
105
Ableton Live é um software de edição e produção de áudio que possibilitou por meio do uso
de plug-ins simular as frequências utilizadas.
91

A bruxa, escritora, ativista e permaculturista estadunidense Starhawk106 (2020)


define magia como a arte de transformar a consciência intencionalmente. A
acepção se compõe por quatro noções: arte, transformação, consciência e
intenção. Um dos processos mais recorrentes na magia é o uso da imaginação
e a construção de imagens mentais, essa ferramenta Starhawk atribui à arte, isto
é, a possibilidade de imaginar. A transformação diz respeito a ideia de
dinamismo, atividade; sobre uma compreensão de mundo como um organismo
vivo sempre em transformação. Magia é também entender que há diferentes
estados de consciência107 que podem ser exercitados para serem acionados, ou
não, quando necessário. A intenção é a energia direcionada a um objetivo.
Embora seja um aspecto comumente encontrado no misticismo, Starhawk
(2020) afirma que magia não é sobre deixar as coisas seguirem seu fluxo, pelo
contrário, magia é ter objetivos e intenções, formulando-os com precisão e
cuidado, ao mesmo tempo em que se direciona energia a eles. Para a bruxa
(STARHAWK, 1983, n.p.), o ato de magia é um maneira de moldar (shape, em
inglês) a realidade: “podemos influenciar e, até certo ponto, moldar”.

Fazer magia não é empunhar uma varinha mágica e transformar a realidade com
apenas um gesto. Magia é primeiro compreender a vida como um campo de
afecção no qual os existentes estão em interconexão e suas agentividades
impactam a rede como um todo. Igualmente é compreender que nada é
estanque, dado, fechado, imutável, ao contrário, tudo está suscetível à

106
Junto à Diana Baker, Starhawk fundou na década de 1970 a Reclaiming Tradition, organização
de mulheres neopagãs ecofeministas que compreende o espiritual e o político como
inseparáveis, cujas ações unem magia e espiritualidade à militância política e à transformação
social, em práticas de desobediência civil. Starhawk começou seu ativismo político nas
manifestações contra a guerra do Vietnã na década de 1960, mesmo período que entrou em
contato com o paganismo. Desde então vem escrevendo livros de ficção e de não-ficção,
promovendo vivências e formações em diversos países, e participando de atos de ativismo
anticapitalista principalmente aqueles contra a injustiça social e o colapso climático. Nas últimas
duas décadas também se tornou permaculturista. Sua visão singular chama a atenção de
algumas intelectuais mais proeminentes da atualidade, como Isabelle Stengers, Silvia Federici,
Donna Haraway. Sua prática de bruxaria é um pouco diferente da maioria das práticas neopagãs
por não desassociar magia de política: “nossos rituais são informados por nosso ativismo e pelas
questões da vida real”. Por exemplo, para Starhawk (2003, n.p.) a privatização da água é um
problema tanto político quanto espiritual. Compreender água como sagrada não é uma abstração
ou fantasia, diz ela. A questão é concreta: a água é literalmente o sangue da vida.
107
Starhawk (1983, n.p.) coloca que um folheto, uma ação judicial, um ato ou uma greve, podem
ser compreendidos como magia porque têm a potencialidade de mudar a consciência de alguém
sobre algum contexto. Por outro lado, ela pode ser extremamente esotérica e abranger práticas
ancestrais de aprofundamento de consciência.
92

transformação. A partir destes fundamentos, magia é ativar um certo estado de


consciência imaginativa intencionalmente, precisamente e cuidadosamente,
com objetivo de influenciar e de reconfigurar uma situação. Magia é a produção
imaginativa de outros possíveis que tem como intenção reconfigurar certo
contexto.

A instalação coreográfica hacia intenciona agir sobre a percepção de quem a


frequenta tentando fomentar um estado no qual o que comumente se considera
inanimado, se revele animado não por uma fabricação imaginativa, mas pelo
reconhecimento de que os seres humanos não são os únicos detentores de
subjetividade. hacia pretende mobilizar esse tipo de estado usando artifícios da
arte contemporânea. O contexto da instalação já estava delimitado: onde se
realizaria – um espaço diminuto, em penumbra e íntimo – e quais seriam as
ferramentas utilizadas para nutrir esse estado – a frequência binaural e as
instruções diretas. Restava produzir o campo que prepara a possibilidade de
ocorrência, e nesse trabalho o campo era a textualidade que preconiza o
encontro. A textualidade deveria ter potência de feitiço no qual as palavras
deveriam atiçar intencionalmente a imaginação e a vontade de quem as lia a
ponto de influenciar o encontro e talvez afetar a relação.

Fui selecionando palavras-campo: invocación, invitación, desafío, imaginación,


alteridad, implicación, esfuerzo, decisión, disponibilidad, encuentro,
cooperación, concreción, activación, posición, sujeto, objeto, régimen de
existencia. Depois fui elencando contrapontos: fantasía, empatía, abstracción.
Aos poucos fui compondo frases com as palavras cuidando para não criar
definições tão fechadas, por isso o uso de tal vez, podría ser, posiblemente,
probablemente. Quando terminei o texto, percebi que poderia ir mudando
palavras de lugar e que isso poderia produzir uma certa confusão sem alterar
seu sentido, como que criando uma espécie de mantra que produzia diferença
em si mesmo108.

108
Os três textos estão no início deste capítulo.
93

Enviei os textos à Rosa para que me ajudasse a ver se estavam suficientemente


compreensíveis. Como Rosa havia me pedido um texto o mais simples possível,
em um primeiro momento, não entendeu onde eu queria chegar com os três
textos, colocou que não eram tão diferentes um do outro, que não tinham
simplicidade, nem eram diretos. Mas antes de mudar todo o texto para me
adequar ao que ela esperava do trabalho, ou ter muitas discussões sobre algo
que ainda não havia sido experienciado por ninguém, decidi ser fiel à proposta e
criei um protótipo da instalação para que ela a experienciasse antes de tecer um
comentário baseado em suposições.

Poucos dias antes da abertura da instalação, tive uma última tutoria com Rosa.
Montei o percurso da instalação como imaginava e ela experienciou o trajeto
antes de discutirmos o que funcionava ou não. Afinal suas dúvidas em relação à
quantidade de textos se dissiparam e ela entendeu que a insistência na repetição
trazia mais uma camada de comprometimento e uma ideia de processo. Caso
usasse apenas um texto, ele serviria apenas como instrução e não uma
insistência na implicação. Decidimos distribuir cada texto em um lugar do
espaço, corrigimos os erros do espanhol e editamos o que parecia excessivo do
mesmo.

Conversamos também sobre o que poderia estar na sala do encontro. Eu achava


que poderia ir mudando de objeto a cada vez pois qualquer coisa que estivesse
no espaço seria passível de subjetivação, ela concordava, mas achava
desnecessário. Experimentei a instalação com outras estudantes do máster e
percebi que para mudar de objeto a cada vez, teria que fazer uma pesquisa de
objetos. Por mais que partisse da compreensão ameríndia de que qualquer
existente pode ocupar o lugar de sujeito, centros potenciais de agência e de
intencionalidade, a aleatoriedade não beneficiaria o trabalho. Assim, decidi usar
apenas a pedra que recolhi no rio perto de onde vivia, uma pedra de rio com tons
brancos e amarelos, razoavelmente lisa, com uma circunferência de
aproximadamente 30 cm, pesando cerca de 5 quilos e com algumas marcas de
choque por contato.
94

Como dito anteriormente, as pessoas que quisessem frequentar a instalação


teriam que se dispor a isso, teriam que se implicar com o encontro desde o
primeiro momento. Para isso elaborei um calendário online e enviei a todas as
pessoas que conhecia em Madrid e ao mailing do próprio máster, que incluía
professoras (es), pesquisadoras (es) e estudantes do ano vigente e pregressos.
Ao todo disponibilizei 36 horários, com 30 minutos cada. O email enviado segue
abaixo:

Figura 2: imagem do email enviado

Fonte: acervo pessoal

Durante os cinco dias que a instalação estava aberta minha função eram apenas
receber as pessoas, garantir que ninguém descesse as escadas além da pessoa
que vivenciaria a experiência e explicar que o tempo e o espaço estavam à
disposição para fazer o que quiser. Assim, cada pessoa descia sozinha e poderia
estar ali o tempo que fosse, fazendo o que lhe conviesse. Tentei conversar com
a maioria das pessoas logo após saírem da instalação para compreender sua
reação ao que eu estava propondo. Colhi muitos depoimentos com as mais
diversas experiências de encontro com a pedra. Mas houve algo em comum
entre todas: todos os relatos e comentários apontaram para a pedra como
sujeito.

Um vídeo do trajeto da instalação gravado por mim e editado por Hedra


Rockenbach pode ser acessado neste link: https://youtu.be/ChtknFvO3h8
95

2.3 O FEITIÇO OCORRE SE HÁ DISPONIBILIDADE

Os relatos apresentaram uma pedra que contou sua história a algumas pessoas.
Para Amaia disse que era uma pedra vulcânica e que antes de estar ali, habitava
uma praia. Para Marie ela contou que há muito tempo atrás fez parte de uma
montanha. Já à Ulises, disse que era de outro planeta, declarou a mesma coisa
à Paola. À Paola ela disse mais coisas, que ela não era somente de outro
planeta, mas de outra galáxia, e que era na realidade uma pessoa, uma parente
dos incas. Disse à Paola também que eu, Paloma, era sua amiga. À Suzanne a
pedra confessou que na verdade não importava de onde ela vinha porque a
origem de qualquer coisa é sempre relativa, que a matéria vem de todos os
lugares e que o questionamento de onde ela vem é irrelevante.

Enquanto ouvia esses relatos, tinha a mesma impressão que uma das
professoras do máster que foi visitar a instalação, Maria Jerez. Ela disse que foi
difícil não impor algo à pedra, difícil não deixar a imaginação criar sentidos e
histórias. Ao mesmo tempo que eu duvidava dos sentidos e das histórias
contadas pelas pessoas, eu me questionava porque duvidava tanto delas; por
que eu duvidava da comunicação entre aqueles dois existentes que
compartilharam um mesmo tempo espaço? Viveiros de Castro (2015) escreve
que alguns povos ameríndios afirmam que todos os existentes se comunicam o
tempo todo, o problema é que não temos a habilidade de entender o que está
sendo dito. Há estudos na área de biologia que afirmam que as plantas se
comunicam entre elas por meio de uma rede subterrânea que se parece muito
com a rede neural do corpo humano. Por que a pedra não se comunicaria assim
como fazem as plantas? Por que não assumimos a nossa incapacidade de
comunicação e de compreensão em vez de decidirmos e definirmos
categoricamente o que tem vida e o que não, o que tem cultura e o que não, o
que tem capacidade e o que não?

Houve outras formas de comunicação que não a do discurso que usa a


linguagem. À Lucía, por mais que ela a tenha perguntado sobre sua vida, sua
96

idade e sua origem, a pedra não lhe respondeu nada, ela preferiu cantar. E as
duas cantaram juntas e começaram também a dançar ritmicamente pelo espaço
pequeno. Lucía disse que a pedra a fez se sentir como um animal, e que
começou a refletir sobre a origem da humanidade, de como os humanos iam aos
poucos descobrindo e inventando coisas. Algumas pessoas falaram da
comunicação por meio da transmissão de temperatura. Marie disse que se
surpreendeu ao perceber que cada parte dela, da pedra, tinha uma temperatura
e cada temperatura trazia uma vibração. Disse que, antes desse encontro, ela
achava que sabia o que era uma pedra, mas que descobriu que a pedra era
infinita: tem marcas, fendas, cores diferentes, feridas. Jimena disse que, assim
como nosso corpo tem que fazer um certo esforço para sustentar sua
temperatura, com a pedra ocorre o mesmo: a temperatura não é dada, ela produz
o próprio frio. E a troca de temperatura entre elas, deu muito prazer a Jimena.

Uma outra proposta feita pela pedra que apareceu algumas vezes foi o convite
a só estarem juntas. Maria Stadlober disse que a proporção entre ela e a pedra
não tinha qualquer relação com a potência de cada uma, elas apenas tinham
tamanhos diferentes, e era isso nenhuma era mais potente que a outra. Ninguém
tentou ser mais do que era, estavam juntas, compartilhando um momento.
Quando a pegou no colo, a pedra começou a se mover. Por um momento achou
que estava fabricando a sensação e deu um passo atrás e recolocou a pedra no
chão. Depois colocou sua cabeça sobre ela e percebeu que a pedra a estava
dizendo para não fazer aquilo porque a sufocava. Maria disse que percebeu que
a estava invadindo. A pedra também pediu que não a movesse do lugar, que
aquele era o lugar dela e seu modo de estar. Maria também perguntou à pedra
sobre a instalação, ela disse que era isso mesmo, que é o que é.

A pedra se tornou amiga de Amaia, elas estavam compartilhando um espaço-


tempo comum e estavam bem, juntas. Amaia me disse que não é comum, ao
menos para ela, compartilhar um momento com uma pedra, e por isso que se
tornaram tão amigas, a ponto de Amaia ter que se despedir duas vezes dela:
como se a primeira vez não tivesse bastado, ela voltou à sala e se despediu de
novo, e ficou triste em fazê-lo. A parceria também apareceu na experiência de
Jimena. Jimena e a pedra ficaram muito tempo deitadas juntas e isso trouxe
97

calma e tranquilidade a ela, disse que se não tivesse em companhia da pedra,


não se sentiria tão serena. E isso a emocionou, se sentiu presenteada e
agradecida pelo momento. Houve até um momento mais sexual entre elas.
Victoria também esteve junto com a pedra, disse que estavam ambas cansadas
e que traziam sensações anteriores àquele momento compartilhado, elas teriam
se consolado e se tranquilizado uma a outra, oras em uma relação de mãe e
filha, oras de amantes. Luciana também se apaixonou pela pedra, se aproximou
dela, a abraçou e a beijou. Depois dançaram e perderam o equilíbrio juntas.
Luciana pensou que muitas pessoas passaram por aquela pedra e cada uma
delas deixou algo. Luciana me afirmou que isso não era sua imaginação
atuando, era o poder ancestral daquela pedra; que ela, a pedra, tem muitas
histórias, ela ia durar para sempre, mesmo que perdesse a sua forma atual e se
tornasse poeira. Ela chorou ao ter que deixá-la.

Em algumas situações, certas pessoas se tornaram uma com a pedra, não havia
diferenciação entre dois, era tudo um ser só. Outras vezes a pedra deixou de ser
pedra, se metamorfoseando em muitas coisas: em pão – até cheiro de farinha
ela tinha –, em pessoa, em osso, em um país, em uma massa disforme, em um
coração. Houve uma outra metamorfose, não a da pedra, mas a da própria
pessoa: a pedra não deixou de ser pedra, mas as pessoas deixaram de ser
pessoas. Sofia deixou de ser Sofia e se tornou algo outro e isso a fez perceber
que ninguém é mais importante que ninguém: cada um é simplesmente algo. A
materialidade da pedra ajudou Suzanne a perceber que ela também é matéria,
assim como todos os elementos de sala. Isso permitiu a Suzanne entender que
tanto ela veste roupas como as roupas a vestem. A pedra também a fez perceber
seus ossos e a conexão entre eles.

Mas se houve uma coisa com a qual a pedra colaborou foi a transformação do
espaço: ela transformou o espaço e, com isso, mudou o estado das pessoas.
Daniel percebeu uma mudança de realidade. Antes de chegar ali seu dia
transcorria de uma maneira, e entrar naquele espaço o fez se dar conta de como
estava antes de estar ali. Ao estar ali, tudo mudou, estava em outro lugar, em
outra realidade, em outro universo, um espaço de segurança total. Jimena, junto
à pedra, percebeu que estava no centro do mundo. Quando começou a prestar
98

atenção à pedra, Ulises foi inundado pelo espaço e percebeu que estava em
uma nave espacial que o levava a outro lugar, que ele definiu como um outro
universo, um pesadelo ou um sonho; como se a pedra tivesse aberto um outro
canal. Silvia entrou em um estado muito incomum, a pedra perdeu seu contorno
e ela perdeu o chão. Tudo começou a vibrar e a se misturar: tudo se movia e se
mesclava em um processo alucinante. Disse ela que parou de pensar e começou
a perceber as coisas desde outro lugar. Ilaria disse que foi a outro mundo; a
pedra começou a flutuar, perdeu seus limites e ganhou os limites da sala. Ela
também se percebeu sem limites e muito livre em um estado de atenção e de
curiosidade. Ao ouvir esses relatos fiquei em dúvida se foi a percepção da
pessoa sobre o espaço que se transformou, ou se foi o próprio espaço que se
transformou. Esta talvez seja a explicação mais comum para a racionalidade
ocidental, assumimos que é a percepção que muda, e o ambiente permanece o
mesmo. Para os povos ameríndios, contudo, o olhar, a percepção é a mesma, o
mundo é que muda. A partir dessa lógica, poderíamos sim
entender/perceber/acreditar (talvez não haja um verbo justo para essa situação)
que não foi a percepção que alterou o espaço, mas foi o próprio espaço que
mudou por completo.

Essa dúvida se impõe na fala de Nina. No momento em que entrou no espaço


da instalação, Nina começou a torcer para que algo acontecesse a ela. Nina não
se ateve ao pequeno espaço da instalação, transitou por muitos lugares e
encontrou com muitas coisas: a pedra, um espelho, um urinol, uma lixeira, com
a água. Ela não soube dizer se estava ficcionalizando as coisas ou se as coisas
se ficcionalizavam a ela, mas sentiu que a cada encontro diferentes experiências
aconteciam. A lixeira é mais do que a funcionalidade que atribuímos a ela, disse
Nina. Assim como o urinol, este era um enorme ser futurista que convidou Nina
a colocar sua cabeça dentro dele. Na relação com o espelho, ela se viu refletida
muito diferentemente do que ela está acostumada. Nina me descreveu com
muitos detalhes a sua experiência com a água. Ela começou a tentar cortar o
fluxo da água que saía da torneira e percebeu que a água tem sua própria
agência: mesmo que ela tentasse cortar o fluxo, ele não se cortava. Percebeu
com isso que a água tem sua própria independência; ela não necessariamente
obedecia ao desejo de Nina. Nina completou dizendo que a água deixa de ser
99

independente de acordo com o uso e a funcionalidade que atribuímos a ela;


como se nós, humanos, inventássemos o que é e para que serve a água, e, ao
fazermos isso, a enclausuramos em um único sentido, bem limitado. Na
experiência Nina descobriu que a água é como uma pessoa, com suas próprias
características, independente do que atribuímos a ela. E com isso se questionou
sobre o que tem vida e o que não, e o porquê de ela dá por certo que algo é algo
e não outra coisa.

Nina me disse que sua experiência trazia algo que tem a ver com o religioso,
com um certo tipo de fé. Comentou os textos dispostos no espaço nos quais se
lia que a experiência era sobre disponibilidade, e que algo só poderia ocorrer se
houvesse disponibilidade entre duas ou mais partes. Marie também aludiu a um
estado similar quando disse que a tarefa de se comunicar com a pedra seria
aparentemente impossível, mas que em realidade não é. Teríamos apenas que
articular outros modos de comunicação, e isso é uma decisão de cooperação
mútua e não uma fantasia, como também dizia o texto. Ela se dispôs a fazer o
esforço de se comunicar com a pedra, e aconteceu. Disse também que cada
existente demandaria um tipo de comunicação singular: com a pedra a
comunicação ocorreu por meio de sons e da troca de temperatura, outro
elemento exigiria outro tipo de troca. Merce disse que se teria que estar sensível
à relação e que de alguma maneira teria que fazer uma invocação. Esse convite
a fez se perceber num espaço de incerteza e fragilidade, em que não sabia
discernir se era seu desejo ou a ação dos elementos sobre ela. Falou também
sobre o esforço que teve que fazer, e que a experiência de estar lá era sobre
isso também. Sofia discordou dos textos e disse que sim era sobre uma
experiência de abstração, uma abstração de si mesma para entrar em uma
imersão. Disse que isso se relacionava intimamente com o impossível, do fazer
o impossível possível. Maria Sabato disse que se sentiu convidada a cooperar,
a estar junto e se engajar com a situação, como uma espécie de produção de
outro paradigma mental. Para ela não era uma instalação, como o texto também
afirmava.

De uma maneira ou de outra as palavras-proposições que usei nos três textos


apareceram em praticamente todas as falas: invocação, convite,
100

comprometimento, esforço, implicação, encontro, disponibilidade, cooperação.


Jimena disse que as palavras a ajudaram a nomear o que ela estava vivendo ali
dentro, que era uma leitura muito física. Alesandra comentou que algo sempre
poderia ocorrer a qualquer momento. Para ela, o elemento, neste caso a pedra,
não era relevante no sentido de que só a pedra poderia proporcionar alguma
experiência, ao contrário, qualquer elemento tem a potencialidade de fazer
emergir uma experiência, necessário seria somente a disposição para tanto, um
pacto selado de se fazer responsável para que algo aconteça.

Carolina falou que passou por diferentes estágios. Primeiro ela percebeu que
deveria se comprometer com aquilo, se comprometer em comprometer sua
percepção. Ela repetiu os áudios muitas vezes principalmente aquele que pedia
para não desistir. Se perguntou quanto tempo leva para que ela deixe de se
comprometer com algo. Disse que em um momento algo aconteceu, não me
contou o que. Mas disse que apenas a latência da possibilidade já era suficiente
para que algo ocorra. Pensou na vida mesma, e concluiu que se nós não nos
implicarmos, nada acontece. Disse que o trabalho tinha uma perspectiva política
porque ativa um lugar de força; a instalação coloca em marcha essa implicação,
disse ela.

Outras reflexões apareceram. A primeira coisa que Diana me disse quando saiu
foi uma pergunta: a que ponto chegamos de manipular tanto e domesticar tanto
um material? Ela disse isso por causa da relação entre o chão de granito e a
pedra, ambos minerais, um domesticado outro não. Daniel falou da
desconstrução do antropocentrismo, de se sentir em igualdade com a pedra.
Disse ainda que isso era um ato político, mas não era restritivo, unidirecional ou
panfletário. Silvia também discutiu a questão política ao dizer que a política está
na liberdade de deixar a percepção ir para onde queira e não propriamente no
discurso. Maria Jerez pensou que uma coisa tão pequena e tão pesada, que
condensa tanta massa em tão pouco espaço, sobreviverá talvez à humanidade.
Possivelmente esta pedra, aparentemente inanimada e desimportante, existiu
antes de nós e vai seguir existindo mesmo depois de nosso desaparecimento.
101

2.4 A RESPONS-HABILIDADE DE FAZER PARENTESCO

Donna Haraway vem tecendo pesquisas de diversas áreas – biologia, filosofia,


física, literatura, artes visuais, performance – e conhecimentos sobre criaturas
de diferentes naturezas – pombas, corais, lulas, humanos, líquens, cachorros –
para refletir sobre as problemáticas do viver e morrer no mundo de hoje. Em
Staying with the trouble (2016) a autora se dispõe a permanecer com o problema
sem se situar em qualquer uma das duas respostas mais comuns à emergência
climática, às extinções e aos extermínios em massa de humanos e outros-que-
humanos: uma que acredita que a tecnologia e a ciência vão dar conta de
resolver a situação; e a outra que já desistiu, constatando que o fim é certo e que
não há mais nada a fazer.

Para ela (HARAWAY, 2016, p. 101), o desafio de atravessar esse período limite
depende tanto de profundo compromisso, como de trabalho colaborativo entre
criaturas de naturezas diferentes; é necessário fazer parentesco: fazer-junto-
com, tornar-se-com, compor-com outros-que-humanos, humanos-como-húmus,
mais-que-humanos e inumanos. Fazer parentesco não se trata de laços
ancestrais ou genealógicos, tampouco de uma relação apenas inter-humana. É
criar laços de obrigação, de prazer e de responsabilidade mútua e duradoura. A
responsabilidade para Haraway é compreendida como respons-habilidade, a
habilidade de responder ao contexto do viver e morrer em mundos nos quais
cada uma (ume/um) é para e com as (es/os) outras (es/os). Algo irredutivelmente
coletivo e em processo ininterrupto a partir de conexões parciais que criam uma
rede de laços situados em um contexto específico. Como camas-de-gato, temos
que reaprender como conjugar mundos para recuperar e restaurar as condições
que nos permite seguir vivendo (HARAWAY, 2020). É um tipo de atrair, de
desejar, de fazer-com.

Entendo que fazer parentesco e responder ao contexto com respons-habilidade


depende da criação de alianças afetivas: é necessário o reconhecimento de que
mesmo diferentes, se compartilha algo comum que deve ser cultivado e cuidado
mútua e conjuntamente. O reconhecer faz emergir uma disponibilidade ao
102

comprometimento e à implicação, cujo efeito é produzir vínculos menos


hierárquicos e mais simétricos para uma ação conjunta que responde ao
contexto do viver e morrer em um planeta devastado.

hacia se dispôs a produzir um campo onde o encontro é responsabilidade tanto


de quem entra na instalação, quanto da pedra que ali permaneceu por cinco dias.
Como artista fui responsável pela facilitação desse encontro. O meu desejo
impossível nesse trabalho era que o encontro fomentasse uma relação menos
pautada na lógica de sujeito e objeto, que fosse tornado possível o
reconhecimento de que a responsabilidade e a agência são mútuas. O aspecto
político de hacia se encontra nessa possibilidade de que algo comumente
reconhecido como coisa/recurso, começasse a ser percebido como sujeito, o
que foi indicado por muitas pessoas, de acordo com seus depoimentos.
Confesso que até a última pessoa frequentar a instalação duvidei do trabalho
que produzi, não sabia que efeitos que poderiam emergir dele. Embora tenha
criado artifícios para conduzir a experiência, muito do que poderia ocorrer não
estava sob o meu controle. Para mim como artista não bastava que quem
frequentasse tivesse uma experiência interessante com a pedra, era necessário
a compreensão da simetria entre existentes. Talvez a instalação pudesse ser
posta de uma maneira a ponto de que o tamanho do salto dado não exigisse
tanto esforço de quem se dispôs a frequentá-la. Pensando sobre essa
transposição da experiência artística para um possível efeito político, e depois
de mais de um ano passado desde a produção de hacia, ainda não consigo
encontrar uma maneira justa para facilitar esse percurso. Talvez também esses
meus pensamentos são apenas obsessões de uma artista, eu mesma, que não
consegue abrir mão dos efeitos de seu próprio ato; talvez essa pessoa artista,
eu mesma, tenha que confiar mais na experiência das pessoas do público,
confiar no que ela mesmo diz sobre não ser a única responsável pelos encontros.
Se artistas não são as únicas responsáveis pela obra, há de se confiar na
responsabilidade de quem compartilha da experiência artística, há de se confiar
que laços são construídos independentemente do desejo, da dúvida, da
incerteza de quem produz o trabalho artístico.
103

Poucos dias depois da mostra final do máster tive a oportunidade de fazer uma
oficina de uma semana com a artista Tania Bruguera. Em uma conversa me
disse que estava disposta a ir à instalação. Fique muito ansiosa por ela ser uma
das artistas referências da minha pesquisa. No dia marcada remontei o espaço
e esperei por ela. Bruguera chegou muito atrasada e apressada, muito
rapidamente ela desceu as escadas. Acho que ficou cerca de cinco minutos no
espaço, pouco tempo comparado às outras pessoas. Quando subiu eu estava
cheia de expectativa sobre sua opinião. Disse-me que gostou muito, que a
proposta era interessante. Perguntei se ela achava que um aspecto mais
conectado a um campo que muitas pessoas definiram como espiritual, mas que
eu coloco no campo da ação política sobre a subjetividade, se sobrepunha à
proposição política do trabalho. Ela disse que para ela não, que ficou bem
evidente, mas disse também que não sabia dizer até que ponto a pessoa artista
pode delegar ao público o trabalho da chegada ao político. Me sugeriu como
mudança possível alterar as instruções do fone de ouvido.

Hoje pensando sobre as colocações de Bruguera, entendo seu questionamento


e acho que repensar as instruções do fone de ouvido seria o lugar mais justo de
alteração. À época eu já não estava completamente satisfeita com as instruções,
hoje tentaria ser ainda mais sintética em relação às frases. Ao mesmo tempo,
não sei se me afilio a seu questionamento sobre artistas não delegarem tanto ao
público a chegada ao político. Talvez nós artistas devemos sim, não exatamente
delegar, mas admitir que as pessoas quando em contato com um trabalho
artístico têm suas próprias agências, e criam associações de acordo com sua
própria experiência no mundo. Por que nós artistas nos achamos responsáveis
por algo que de maneira alguma temos controle, como é o caso da experiência
de outra pessoa? Se por um lado essa responsabilidade diz respeito ao
comprometimento com o próprio trabalho, por outro essa responsabilidade pode
também trazer aspectos de onipotência. Nós artistas temos que nos lembrar que
somos responsáveis pelo nosso trabalho, e também temos que nos lembrar que
quando nosso trabalho é posto no mundo, ele deixa de pertencer a nós mesmas.
Então se trata de uma dupla ação: a de confiar de que nós artistas fomos tão
responsáveis quanto poderíamos ser por aquilo que colocamos no mundo como
obra artística; e a de admitir que a agentividade não é só nossa, é também de
104

quem compartilha do trabalho artístico, e também de todos os elementos que


envolvem esse trabalho artístico. Isso quer dizer admitir a agência de tudo que
está em relação, humanos, outros-que-humanos, mais-que-humanos,
inumanos.

Bruguera tem atuado cada vez mais no campo da macropolítica como fica
evidente em seus trabalhos de longa duração como o Immigrant Movement
International109 e o Migrant People Party (MPP)110, ambos sediados em Nova
Iorque (EUA), assim como no trabalho Tate Neighbours111 realizado na Tate
Modern em Londres (Inglaterra) entre 2018 e 2019. Embora possa incidir na
macropolítica, hacia tem ação na micropolítica, na política dos afetos. Como
afirma Suely Rolnik (2018), a micropolítica atua no âmbito de cada existente,
mas não deixa de produzir insurgências em contraposição ao sistema cultural-
sociopolítico vigente e seus desdobramentos colonialista, antropocêntrico e
machista. A micropolítica não se encerra nos sujeitos, nem se inicia neles, são
em realidade “efeitos das forças do mundo que habitam cada um dos corpos que
o compõem e seu produto são formas de expressão dessas forças” (2018, p.
38). Sua potência se alimenta de “ressonâncias de outros esforços na mesma
direção e da força coletiva que elas promovem – não só por seu poder de
polinização, mas também e sobretudo pela sinergia que produzem” (2018, p. 38).

Rolnik (2018, p. 88-89) afirma ainda que a luta macropolítica não deve ser a
única luta. Se faz necessário enfrentar a situação atual também no plano da
subjetividade, naquilo que nos constitui como sujeitos com agentividade, nos
desejos e nos pensamentos. E se levarmos a sério as cosmologias indígenas
nas quais sujeitos são humanos, mais-que-humanos, outros-que-humanos e
inumanos, a ideia de justiça social se expande a toda uma miríade de corpos de
diferentes naturezas, necessidades e agentividades. Sem considerarmos esses
muitos outros não há como lutar contra o capitalismo, não há como pensar outros

109
Para mais informações sobre movimento internacional imigrante acesse:
http://www.taniabruguera.com/cms/486-0-Immigrant+Movement+International.htm
110
Para mais informações do partido do povo imigrante, acesse:
http://www.taniabruguera.com/cms/586-0-Migrant+People+Party+MPP.htm
111
para mais informações sobre esse trabalho, acesse: https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-
modern/exhibition/hyundai-commission-tania-bruguera
105

modos de existência. Se não houver uma transformação em nossas percepções


e concepções do que pode ser definido como democracia radical, não haverá a
mudança necessária e urgente. Assim, para uma transformação macropolítica,
é imperativo também uma transformação micropolítica, a do sujeito, a dos afetos,
a da implicação genérica e mútua entre todos os existentes na resistência aos
abusos da força vital e na responsabilidade para com o viver e morrer bem nesse
mundo. É preciso que os laços que criamos e mantemos entre criaturas de
naturezas diferentes sejam reconfigurados a partir de uma posição mais
simétrica.

A cosmologia ocidental falha neste reconhecimento, inúmeras vezes falha em


até mesmo reconhecer diversos grupos da mesma espécie como humano. Isso
fica evidente na violência contra a população negra, indígena, estrangeira,
pobre, LGBTQIA+, mulheres, parece que tudo que não é ocidental-branco-
homem-cis não é considerado humano, tamanha a violência reiterada sobre
essa parte, essa maior parte, da população. Se nem a mesma espécie é
considerada humana, o que se pode dizer do que não compartilha a mesma
espécie? A falha no reconhecimento produz efeitos destrutivos: extinções de
espécies, destruição de biomas, poluição atmosférica, despejos de rejeitos
tóxicos em rios e em mares, dentre muitos outros exemplos.

O entendimento de que o humano tem exclusividade na posição de sujeito,


acarreta em um efeito de coisificação e abuso daquele que não é considerado
sujeito, como diz Krenak (2019, p. 49) “Quando despersonalizamos o rio, a
montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é
atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se
tornem resíduos da atividade industrial e extrativista.” Krenak (2019) ainda
problematiza a própria ideia de natureza apontando que tal nomenclatura
também é um modo de apropriação e de atribuição de valor de mercado:

A natureza é uma criação, é uma abstração de um mundo de ideias.


Em nenhuma tradição antiga, não só a nossa, não só a do ocidente,
essa coisificação da natureza se sustenta. Ela só existe como uma
idealização de uma cultura que quer incidir sobre a vida na terra de
uma maneira para alterar essa paisagem, se apropriar dela. É o
negócio do general: “eu vim aqui comprar sua terra”. Só essa
106

mentalidade pensa essa natureza. É como se fosse uma projeção para


além de nós mesmos, para gente se apropriar dela.

A ausência de relações pautadas na lógica de sujeito-objeto aparece


recorrentemente nas falas de indígenas, por exemplo o Manifesto do Piaraçu
resultante do encontro112 entre mais de seiscentas lideranças indígenas ocorrido
na Aldeia Piaraçu do TI Capoto Jarina, em São José do Xingu (MT), manifesta a
equidade entre indígenas e meio:

Não apenas defendemos o meio ambiente: somos a própria Natureza.


Se matar o meio ambiente, está matando nós. Sempre queremos
floresta em pé, não porque a floresta é bonita, mas porque todos os
seres que habitam a floresta fazem parte de nós e correm no nosso
sangue. (Manifesto do Piaraçu das lideranças indígenas e caciques do
Brasil, 2020)

O pesquisador Casé Angatu (2019) do povo Xukuru Tupinambá torce a lógica


do direito à terra quando afirmar que a luta indígena por demarcação não se trata
de propriedade, ou seja, não é sobre um sujeito em posse de um objeto: “Nós
não somos donos da terra, nós somos a terra. O direito congênito, natural e
originário é anterior ao direito da propriedade privada”. Nesse modo de colocar
a questão, nem a terra, nem tudo que está nela, é objeto, tampouco pertence a
alguém, pois a lógica de propriedade inexiste.

Onde há sujeito e objeto, onde há proprietária (o/e) e propriedade, onde há


humano e natureza, e assim por diante, há relações de dominação e de
subalternização (PLUMWOOD, 1993). A suspensão da lógica que contrapõe
sujeito e objeto, e todas aquelas que derivam desta, tensiona a noção de recurso
e provoca algumas mudanças nas políticas e nas leis de algumas nações. Por
exemplo, na Bolívia, na década de 2000 durante a guerra da água em
Cochabamba, os indígenas do povo Quéchua redigiram uma declaração dos
direitos da água (PFRIMER, 2008). Um caso análogo é a alteração da
constituição federal do Equador para incluir a Declaração dos Direitos da
Natureza (GARZÓN, 2017) em 2008, como efeito da luta indígena contra os
processos de exploração e de expropriação do território equatoriano por

112
Para mais informações do encontro das lideranças indígenas, acesse a matéria do site
Amazônia Real: https://amazoniareal.com.br/raoni-e-45-povos-indigenas-lancam-manifesto-
pela-vida/. Acesso em 13 jun 2020.
107

multinacionais. Em 2017 na Nova Zelândia, o rio Whanganui foi reconhecido


legalmente pelo Parlamento neozelandês como um indivíduo detentor dos
mesmos direitos de uma pessoa, após mais de um século de luta do povo Māori
contra a Coroa Britânica (BLANKESTIJN; MARTIN, 2018). O mesmo ocorreu na
Índia, também em 2017, onde a Corte Suprema do Estado de Uttarakhand
concedeu aos rios Ganges e Yamuna o status de pessoa jurídica com direitos a
existir, persistir, manter, sustentar e regenerar sua própria existência
(CUADROS, 2019).

Não é que a política representativa ou o sistema jurídico de algumas nações de


repente transformaram radicalmente as concepções ocidentais rompendo com
as relações sujeito-objeto, ou com a compreensão de natureza como recurso.
Talvez o aspecto ecológico que pauta a preservação do meio-ambiente seja a
camada mais óbvia nesse processo de transformação dos entendimentos de
como se pode lidar com a natureza, principalmente quando os efeitos da ação
humana no planeta se tornaram tão palpáveis. Mas há de se insistir que as
mudanças nas leis e no reconhecimento jurídico de existentes outros-que-
humanos se deve à luta e à pressão de povos tradicionais, de povos indígenas
e de pessoas que se afiliam às cosmologias que não pressupõem a assimetria
entre humano e outros que humanos.

Viveiros de Castro (2013, p. 276) pergunta: “O que acontece quando todo ponto
material do cosmos pode ser imaginado como o ponto a partir do qual alguém
descreve o resto? O que acontece quando se imagina que a cadeira pode ser o
sujeito da história?”. Sua ironia reitera a concepção de um dito protagonismo de
alguma espécie como uma atitude que é não somente problemática como
também ridícula, pois, se nós humanos podemos ser protagonistas do mundo,
porque uma cadeira também não pode o ser?

Aprofundando a questão, Viveiros de Castro (2013, p. 279) lança outra pergunta:

Como podemos hoje inventar uma versão equivalente daquela ideia de


que tudo é humano, que seja apetecível, digerível, aceitável e, ao
mesmo tempo, que pode ser materializada, atualizada politicamente?
Em relação a essa questão, nós não somos especiais. Não há uma
posição privilegiada de sujeito no cosmos. Portanto, não somos o único
108

sujeito do mundo. Como podemos operacionalizar isso sem cair em


misticismos impossíveis e desnecessários, em xamanismos tolos? 113

Desconstruir o antropocentrismo parece impossível, como um ato de magia. Pois


bem, hacia é uma tentativa de fazer essa magia por meio da arte. Mas quem faz
a magia não é a instalação em si, nem o ato artístico, tampouco a artista que
produziu a instalação. Quem faz a magia é quem entra e se dispõe a se implicar,
se esforça em ir em direção à pedra, em estar em relação simétrica àquela pedra.
Há uma mediação, mas quem realiza o ato é quem se compromete e se
responsabiliza.

113
Parece que aqui Viveiros de Castro se refere às apropriações de cosmologias e
conhecimentos tradicionais por algumas das pessoas brancas, que em vez de transformar a
percepção de mundo e desconstruir as lógicas antropocêntricas, sustenta o individualismo e o
desenvolvimento pessoal. Não é incomum observar que na apropriação, aspectos políticos se
perdem e as práticas acabam por atuar por meio de um registro individual ou de uma certa ideia
de comunhão com o universo, como se uma dita “conexão” fosse capaz de sanar as explorações,
as expropriações, as desigualdades e as assimetrias. A pesquisadora Geni Nuñez (2020) em
seu perfil no Instagram abordou o tema em uma postagem na qual escreve: “Muito conveniente
pra branquitude perdoar e ser perdoada pelo passado através de uma espiritualidade duvidosa,
que em nada altera as condições materiais de desigualdade do presente. Não existe evolução
espiritual se a dimensão e o alinhamento são individualistas. ‘Quitar’ a dívida histórica com o
poder da mente e alinhamento enérgico não é reparação histórica. Não haverá paz sem luta
anticolonial, nem sem regresso e desordem do ordenamento violento do mundo”.
109

3 COMO QUEBRAR BARRAGENS

Só quando o homem branco destruir a floresta,


matar todos os peixes, matar todos os animais e
acabar com todos os rios, é que vão perceber
que ninguém come dinheiro.
Cacique Bet Kamati Kayapó, Cacique Raoni
Kayapó, Yakareti Juruna 2010

A Amazônia e seus povos, para virar futuro,


precisam tornar-se passado.
Eliane Brum 2019

Na escuridão, sons de rio, pássaros, sapos, cigarras, e outros animais não


identificáveis invadem o espaço. Ficamos quietas escutando e nos deixando
invadir por esse bloco sonoro que nos coloca no meio da floresta amazônica. O
barulho é tão alto que não conseguimos ouvir qualquer outra coisa por muitos
minutos. Fecho os olhos e me deito tentando desvendar cada som.

Em dado momento, um pássaro se cala e em seu lugar ouvimos uma


motosserra. Pouco tempo depois os sapos dão lugar a britadeiras. Ainda há
floresta, mas não é mais a mesma: ela se mistura ao som de um tipo de
desenvolvimento humano. O rio segue soando embora o som de helicópteros
quase não nos deixa escutá-lo. Ouvimos tratores, caminhões, árvores caírem.
Volto a me sentar e procuro entender o que está acontecendo; percebo que não
há nem mais floresta nem seus habitantes, em seu lugar restam máquinas
trabalhando incessantemente. E o rio? “O rio morreu”114.

Esse é o início de Altamira 2042115, espetáculo criado pela artista Gabriela


Carneiro da Cunha como efeito de quase três anos de pesquisa de campo

114
Fala que escutei de uma ribeirinha durante o evento Amazônia centro do mundo. Não posso
identificá-la pois se deu em meio a outras falas e ela não disse seu nome.
115
O espetáculo faz parte do projeto de pesquisa Margens: sobre rios, buiúnas e vagalumes que
teve início com a peça Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos (2015). Fruto de uma
investigação bibliográfica e etnográfica, Guerrilheiras apresenta a história da Guerrilha do
Araguaia, movimento rural revolucionário iniciado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no
fim da década de 1960 na região amazônica, dando protagonismo às mulheres revolucionárias
ao qual tomaram parte na tentativa de revolução comunista. Gabriela Carneiro da Cunha (2020)
me contou que durante o processo de criação de Altamira 2042 percebeu que seu projeto de
pesquisa tomava outro rumo; o que era antes uma investigação de escuta de testemunhos das
pessoas que vivem na margem e à margem dos processos sociopolíticos, econômicos e
culturais, passou a ser uma escuta dos próprios rios e tudo e todos que o circundam. O
110

realizada na região de Altamira, no Estado do Pará116. Após todas as pessoas


entrarem em um pequeno auditório da Universidade Federal do Pará (UFPA), e
se sentarem ao chão ou em cadeiras, Gabriela começa o espetáculo distribuindo
pelo espaço aparelhos de som, daqueles que piscam luzes coloridas bem
comuns no Pará117. Em cada aparelho ela acopla um pendrive118. De cada um
sai uma sonoridade diferente da floresta, os sons vão se somando: pássaros,
sapos, águas, cigarras, vozes humanas. Aos poucos o espaço é tomado pelos
sons ensurdecedores do Xingu. Ficamos imersos na vida da floresta.

Alguns minutos transcorrem, Gabriela volta a se aproximar dos aparelhos de


som, e vai trocando um a um cada pendrive. Os sons do Xingu dão lugar aos
sons do progresso e do desenvolvimento predatórios; ouvimos motosserra,
helicóptero, britadeira, avião, tratores. A floresta se cala pela ação de uma
civilização que constrói obras imensas, como a hidrelétrica Belo Monte, que
muda o curso ou seca os rios amazônicos; que usa de aviões para jogar
pesticidas nas monoculturas que substituem as florestas; que passa o trator por
cima das florestas tombando árvores e com elas as outras espécies, humanas e
outras-que-humanas, que ali vivem. A arte aqui recria a realidade, não há
dúvidas do que se trata. Depois de uns minutos dessa composição

testemunho humano deixou de ter protagonismo para dar lugar a uma escuta dos testemunhos
humanos e não-humanos. Assim, rios são os próprios agentes do discurso, buiúnas são as
mulheres ribeirinhas e indígenas que compreendem o rio como ente e possuem linguagem para
conversar com ele, e vagalumes são os povos que estão sempre no limite de desaparecer,
aqueles que vivem nas e às margens.
116
O espetáculo está disponível integralmente na plataforma Vimeo no seguinte link:
https://vimeo.com/386781234. Acesso em 13 de jul. de 2020.
117
A escolha desse tipo de aparelho tem a ver com a pesquisa de campo realizada pela artista.
Gabriela (CARNEIRO DA CUNHA, 2020) me disse que teve o cuidado em colocar no espetáculo
apenas coisas que encontrou em campo. Em relação às caixas de som, em suas andanças por
Belém, Gabriela percebeu que a maioria dos comércios de rua que vendem produtos chineses,
principalmente audiovisuais e eletrônicos, fazem uso desse tipo de aparelho de som cheio de
luzes de led.
118
O uso de pendrive durante o espetáculo também diz respeito ao que Gabriela encontrou em
campo. Quando foi à TI, Terra Indígena, Araweté percebeu um uso específico dos pendrives.
Antes de chegar à TI, a artista foi informada que os pajés só cantavam na madrugada, mas
chegando lá, começou a ouvir cantos de pajé por diversas casas, viu que muitas pessoas
indígenas gravavam os cantos dos pajés em pendrives e ouviam a qualquer momento do dia:
era o pajé no pendrive (CARNEIRO DA CUNHA, 2020). Gabriela conta que as pessoas indígenas
compram pendrives com música de pessoas brancas e substituem por cantos de pajelança,
como uma espécie de operação mágica, dado que pajés cantam aquilo que veem em suas
atividades xamânicas, e as pessoas indígenas inventaram um modo de acessar os
conhecimentos quando lhes convêm. Gabriela em vez de ter pajé no pendrive, tem Xingu no
pendrive.
111

ensurdecedora, Gabriela vai desligando um a um os aparelhos, deixando apenas


o silêncio das pessoas presentes.

Para assistir ao trabalho estavam indígenas de diferentes etnias (Guajajaras,


Kaiapós, Jurunas, Xikrin, Xipaya), ribeirinhas, quilombolas, estudantes, ativistas
do clima, cientistas, pescadoras, ativistas de movimentos sociais, membros de
organizações não-governamentais socioambientais, membros de instituições
religiosas diversas (candomblé, umbanda, católica), pesquisadoras, jovens,
crianças. Altamira 2042 foi a última atividade do Amazônia centro do mundo,
evento criado em uma parceria entre a UFPA e mais de 25 organizações sociais
que ocorreu no mês de novembro de 2019 em duas etapas: a primeira119 no
centro da floresta amazônica, na Terra do Meio 120, e a segunda121 nas
dependências da UFPA, campus Altamira.

119
A primeira etapa tinha como objetivo o encontro entre as mais diversas pessoas que lutam
pela preservação do meio ambiente, desde lideranças indígenas, quilombolas e beiradeiras – a
saber, Davi Kopenawa Yanomami, Socorro de Barcarena, Anita Juruna, Isis Tatiane da Silva,
Bedjai Txucarramãe, Raimunda Gomes, Mitã Xipaya, Chico Caititu, Mukuka Xikrin – à
pesquisadoras amazônicos de diversas áreas – o cientista Antonio Nobre, o arqueólogo Eduardo
Neves, as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Tânia Stolze, o engenheiro florestal Tasso
Azevedo e o cientista social Maurício Torres – além de ativistas jovens de organizações
internacionais – do Fridays For Future, vieram Anuna De Wever, Adélaïde Charlier, Elijah
Mackenzie, do movimento Extinction Rebellion vieram Robin Ellis-Cockcroft, Alejandra Piazzolla
e Tiana Jacout, assim como a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot. A
ideia consistia em colocar em relação conhecimentos diversos para encontrar soluções comuns
contra o desmatamento e a favor da preservação da biodiversidade. Mais que tudo, visou o
reconhecimento de uma luta comum que vem sendo realizada de modo independente,
procurando estreitar relações entre pessoas que compartilham uma luta comum.
120
A Terra do Meio está localizada no sul do Pará e é uma das regiões de grande relevância em
termos de conservação da biodiversidade da Amazônia, onde estão localizadas as Reservas
Extrativistas (Resex) do Riozinho do Anfrísio, do Iriri e do Xingu e algumas Unidades de
Conservação (UC)
121
Depois de mais de uma semana na floresta, a maioria dos presentes seguiu para Altamira
para a segunda etapa, que reuniu muito mais gente e diversos movimentos socioambientais da
região. Nesse momento o cacique Raoni do povo Kayapó se juntou ao evento, assim como
diferentes povos indígenas – xikrin, xipaia, juruna, kayapó, arara –, e muitos movimentos sociais
como: Associação dos Moradores da Reserva Extrativista do Rio Iriri; Associação dos Moradores
da Resex do Riozinho do Anfrísio; Coletivo de Mulheres Negras; Coletivo de Mulheres do Xingu;
Comissão Justiça e Paz; Fórum da Amazônia Oriental; Fundação Viver Produzir e Preservar;
Instituto Socioambiental (ISA); Movimento dos Atingidos Por Barragens; Movimento Xingu Vivo;
Pastoral da Criança; Pastoral da Juventude; Prelazia do Xingu; Sociedade Paraense de Defesa
dos Direitos Humanos. A programação completa pode ser acessa por este link do ISA:
https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/amazonia_centr
o_do_mundo_programacao_completa.pdf. Estive presente na segunda etapa do encontro com
o apoio do Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa
Catarina.
112

Altamira é a maior cidade em dimensão espacial do Brasil e a segunda cidade


mais violenta do país122. Amazônia Centro do Mundo revela em seu próprio
nome que o que se entende por periferia do mundo é, em realidade, seu centro,
tendo Altamira como sua capital. No centro da cidade localizada no centro do
mundo, as ruas são largas, as calçadas, quando existem, são altas e
esburacadas. Sempre há alguém gritando em alto-falantes as últimas promoções
do comércio: “vem fazer uma linha de crédito”, “descontos imperdíveis”, “três
calças por preço de duas”. Se não são falas promocionais, são músicas que se
misturam umas às outras produzindo uma sonoridade caótica. As construções
parecem novas, mas tem aspecto de ruína. Caminhando pela cidade não é
possível perceber que se está no centro da Amazônia, não há muitas árvores ou
pássaros, no lugar há lojas de produtos chineses, mercadinhos, bancos de
crédito, igrejas pentecostais, casas comerciais fechadas para alugar, e
farmácias. Chama a atenção a quantidade de farmácias em Altamira, parece que
o povo está doente. E está, de Belo Monte.

A Usina Hidrelétrica (UHE) Belo Monte, erguida durante os governos do ex-


presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidenta Dilma Rousseff, foi
construída à revelia: à revelia dos povos da floresta, à revelia dos povos da
cidade, à revelia das inúmeras pesquisas de cientistas, à revelia dos estudos do
Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis) e da Funai (Fundação Nacional do Índio), à revelia da Constituição
Nacional, à revelia das inúmeras ações do Ministério Público, à revelia do rio
Xingu, à revelia dos outros-que-humanos, à revelia, à revelia, à revelia. Belo
Monte está acima da lei, acima dos povos e de todos os outros existentes da
região.

O projeto que hoje se materializa na UHE Belo Monte123 começou a ser desenvolvido nos
anos 1970, durante a ditadura militar brasileira, e diz respeito às políticas federais que tinham
por objetivo colonizar e desenvolver economicamente o território amazônico. Em 1988, no
governo transicional de José Sarney [1985-1990], estudos para instalar 40 hidrelétricas nos

122
o Atlas da Violência publicado pelo Ipea (BRASIL, 2019) em 2019 aponta a construção de
Belo Monte como fator decisivo para o aumento da violência na região.
123
Ao final da tese pode-se encontrar o Apêndice A Kararaô de Belo Monte, no qual consta uma
apresentação mais completa sobre o histórico do projeto e da construção de Belo Monte, assim
como seus efeitos sociais, ambientais e econômicos até o ano de 2019.
113

rios amazônicos foram finalizados concomitantemente à promulgação da Nova Constituição


Federal. Com os direitos indígenas garantidos pela Constituição de 1988 124, principalmente
aqueles que garantem a posse de terra, a implementação das usinas foi momentaneamente
freada, apesar de estudos de viabilidade seguirem sendo realizados ao longo de todo o
governo de Fernando Henrique Cardoso [1995-2002].

Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva [2002-2011], com a instituição do Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC), o Ministério de Minas e Emergia (MME), sob o comando
de Dilma Rousseff, em uma tentativa de sanar a crise energética do país, criou um plano
emergencial que previa a construção de 15 hidrelétricas, sendo a UHE Belo Monte prioridade.
Para driblar os direitos indígenas constitucionais e as consultas livres, prévias e informadas
garantidas pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho125, o projeto inicial
de Belo Monte sofreu uma adaptação e a área de alagamento prevista foi diminuída na
tentativa de evitar os Territórios Indígenas (TIs) (BERMANN, 2012).

Com um decreto do Congresso Federal seguido da liberação pelo Senado, os estudos


técnicos são liberados e realizados sem licitação pelas empreiteiras Andrade Gutierrez,
Camargo Correa e Norberto Odebrecht, a pedido da Eletrobrás. Os estudos se revelaram
insatisfatórios e superficiais. Não constava por exemplo o Estudo de Impacto Ambiental (EIA).
Após diversas ações civis do Ministério Público Federal (MPF), o EIA começa a ser realizado
e se inicia um processo incessante de aprovação e proibição da continuidade do projeto ao
longo da década de 2000.

No ano de 2009, a Eletrobrás entrega o relatório final do EIA ao Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que constatou que certos dados
estavam incompletos ou subdimensionados, assim como havia problemas em relação às
questões indígenas, principalmente ao item que garante acesso à informação. Percebendo a
falta de transparência e o subdimensionamento do impacto da construção de Belo Monte, os
movimentos sociais locais requisitaram um parecer técnico realizado por 40 especialistas em
Amazônia de diferentes áreas de conhecimento. A conclusão do Painel de Especialistas
(SANTOS; HERNANDEZ, 2009) revelou que o EIA da Eletrobrás subdimensionou: a área
afetada, a população atingida, o impacto na biodiversidade, as desapropriações e o
deslocamento compulsório das populações rurais e urbanas, o impacto da barragem principal,
e o custo social, ambiental e econômico da obra. O EIA também hiperdimensionou a produção
de energia da hidrelétrica.

Apesar de o próprio Ibama averiguar os grandes problemas do EIA, o Instituto, por pressão
federal, impõe quase setenta condicionantes para o início da construção, ao mesmo tempo
em que aceita o relatório e libera a Licença Prévia (LP), permitindo o leilão de Belo Monte em
abril de 2010. Surpreendentemente Belo Monte foi arrematada por um consórcio composto às
pressas por empresas de médio porte, o Consórcio Norte Energia, tendo como concorrente
perdedor o consórcio composto pelas empreiteiras que realizaram os estudos de viabilidade,
o Consórcio Belo Monte. Pouco tempo após o arremate, o consórcio ganhador foi remodelado,
tendo sua composição acionária majoritariamente formada por estatais, e contratou para a
construção da hidrelétrica o Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM), composto por
algumas das empreiteiras perdedoras do leilão, a saber, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa
e a Norberto Odebrecht.

124
O capítulo VII – Dos Índios, do título VII – Da Ordem Social, do artigo 231 da Constituição
Federal (BRASIL, 1988) reconhece pela primeira vez os direitos das populações indígenas do
Brasil, garantido o exercício de seus costumes, organizações, crenças, línguas e tradições.
Garante também o direito ao usufruto da terra e proíbe qualquer atividade de exploração das
riquezas naturais desses territórios.
125
A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho garante aos povos indígenas,
quilombolas ou tribais a consulta livre prévia e informada. Isso quer dizer que todas as decisões
que possam afetar seus direitos e territórios só podem se efetivar com sua concordância. Por
ser o Brasil signatário da convenção 169 da OIT, a hidrelétrica apenas poderia ser implementada
com a concordância das populações afetadas, e nenhuma delas estava disposta a concordar.
Com a mudança no projeto esses povos deixaram de ser considerados diretamente afetados,
mas localizados em área de influência direta (BERMANN, 2012).
114

O pesquisador Celio Bermann (2012) afirma que o processo do leilão revelou o motivo da
construção da UHE Belo Monte. Devido ao tipo de vazão do Xingu, que enfrenta longos
períodos de seca ao longo do ano, a capacidade de produção energética seria em média
pouco mais de 4 mil MW/mês, valor que não chega à metade do que os estudos da Eletrobrás
apontavam, 11 mil MW/mês 126. Somando-se a isso, quando as empreiteiras que realizaram o
estudo se retiram do leilão para logo após serem contratadas para a realização da obra pelo
consórcio vitorioso, agora composto por empresas estatais, Bermann afirma que a razão da
construção não é o potencial enérgico mas o lucro da construção em si, posto que a valor
previsto da obra inicialmente estimado em 4,5 bilhões de reais em 2005, passou para 19
bilhões de reais em 2010 na ocasião do leilão, e alcançou o montante de 44 bilhões de reais
ao final da obra, praticamente o valor inicial multiplicado por 10. Tais dados, diz Bermann,
demonstram que o lucro não estava na gestão de Belo Monte, uma hidrelétrica que gera uma
média anual baixa; o lucro estava em sua construção, e esta foi quase em sua totalidade
(80%) financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES). Além disso, o consórcio
construtor não responde judicialmente às várias ações ambientais e às centenas de multas,
quem responde é o Consórcio Norte Energia, aquele composto por empresas públicas.

Das quase setenta condicionantes exigidas pelo Ibama, pouco menos de trinta haviam sido
cumpridas pela Consórcio Norte Energia, dentre elas a proteção dos TIs e das Unidades de
Conservação (UCs), a consulta obrigatória aos povos indígenas, e as infraestruturas de
saúde, de educação, de saneamento e de segurança das áreas urbanas. Ainda assim o
governo federal, representado pela Presidenta Dilma Rousseff, solicitou ao Ibama uma
Licença Parcial, inexistente na legislação brasileira, para o consócio começar as obras. A
licença foi concedida e as obras começaram.

Muitas das ações que visavam a paralisação das obras por razões sociais ou ambientais
movidas pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual (MPE) foram acatadas em juízo. Mas
o governo brasileiro lançou mão das suspensões de segurança, instrumento jurídico que data
da época da ditadura militar que visa suspender decisões judiciais de instâncias inferiores que
lesionem a ordem, a saúde, a segurança e a economia gravemente, mesmo as decisões que
estivessem respaldadas na lei e na constituição brasileira. Foram sete suspensões de
segurança que mantiveram a construção ininterrupta de Belo Monte.

Até hoje muitas das condicionantes não foram cumpridas e outras foram cumpridas
parcialmente. Ainda existe esgoto a céu aberto na cidade de Altamira, há casas que não estão
ligadas à rede de esgoto e nem tem acesso à água potável, os reassentamentos rurais nunca
existiram, há pessoas que não foram indenizadas, há TIs sem acesso ao rio, os peixes do rio
estão contaminados pois as águas do Xingu recebem material sem tratamento, o
desmatamento aumentou, assim como a violência, os modos de vida das populações não
foram respeitados, as TIs não estão protegidas, estradas são abertas ilegalmente, aumentou
o número de queimadas, assim como o garimpo e a pesca ilegais.

Isso é Belo Monte: violação de direitos humanos, etnocídio, desrespeito a modos de vida
diferentes dos ocidentais, ilegalidades, autoritarismo, ecocídio, desenvolvimento
insustentável, inconstitucionalidade, progresso a qualquer custo. Parece que nos resta
esperar que as inúmeras ações que correm na justiça, um dia sejam julgadas, e consigam ao
menos algum tipo de reparação para o irreparável. Belo Monte é fato consumado.

Amazônia Centro do Mundo não foi o primeiro evento127 movido pelo impacto de
Belo Monte e provavelmente não será o último, mas foi o que precedeu o

126
O próprio Célio Bremann apresentou tais dados ao então Presidente Lula pessoalmente em
um encontro em 2009.
127
O evento que reuniu pela primeira vez povos indígenas, movimentos sociais, instituições que
defendem o meio ambiente e alguns artistas conhecidos nacional e internacionalmente (como o
cantor Sting), ocorreu em Altamira em 1989 e se denominou 1º Encontro dos Povos Indígenas
115

ligamento da última turbina, inaugurada por aquele que atualmente ocupa a


cadeira da presidência da república do Brasil, menos de uma semana após o
evento.

A inauguração da primeira turbina foi feita por Dilma Rousseff128 em 2016,


semanas antes de sofrer golpe/impedimento pelo Senado Federal. Em seu
discurso de inauguração, a presidenta Dilma Rousseff se diz orgulhosa de seu
legado ao povo de Altamira e do Xingu129, contudo, em sua fala fica evidente
para que e a quem Belo Monte foi construída:

Criamos aqui uma riqueza única, que é colocar à disposição das


empresas que quiserem vir aqui, colocar o seu negócio aqui, participar
desse estado que tem grandes reservas minerais, grande potencial
agrícola, podem vir aqui, porque não vai faltar energia. (ROUSSEFF,
2016)

A presidenta que sofreu e denunciou a tortura 130 repete o discurso


desenvolvimentista, exploratório e expansionista do mesmo governo militar que

do Xingu. O encontro teve por objetivo denunciar o governo por este desconsiderar a posição
dos indígenas em relação às decisões tomadas sobre o território amazônico, especialmente a
construção do Complexo Hidrelétrico nomeado por Kararaô, grito de guerra dos povos Kayapó.
Os kayapó não aceitaram que fosse usada uma palavra de sua língua para dar nome a um
projeto de usina ao qual estavam contrários; a UHE Kararaô passou a se denominar Belo Monte.
A notoriedade do encontro se deve à inesperada reação de Tuíra Kayapó, a indígena encostou
um facão no rosto do então presidente da Eletronorte José Antonio Muniz Lopes, expressando
sua indignação e raiva em reação à falta de comunicação entre governo e povos indígenas e à
construção da usina.
128
O discurso completo feito por Dilma está disponível transcrito nesse link da biblioteca da
presidência: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/dilma-
rousseff/discursos/discursos-da-presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-
durante-cerimonia-de-inicio-da-operacao-comercial-da-usina-hidreletrica-de-belo-monte-vitoria-
do-xingu-pa. O áudio do mesmo discurso está disponível nesse link:
http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/dilma-
rousseff/audios/audio-do-discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-
cerimonia-de-inicio-da-operacao-comercial-da-usina-hidreletrica-de-belo-monte-vitoria-do-
xingu-pa-32min35s
129
No dia da inauguração da primeira turbina, o Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS)
(2016) lançou uma resposta à presidenta na qual a acusa de violar o Estado Democrático. Nela
também comentam as diversas anulações de processos judiciais contra a construção de Belo
Monte feitas pela presidência da república. Ao final da carta lê-se “Que os Encantados tenham
piedade de nós, porque você nunca foi capaz”.
130
A ex-presidente Dilma Rousseff foi torturada durante a ditadura militar brasileira. Rousseff era
uma das líderes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Presa em
janeiro de 1970, Rousseff permaneceu encarcerada por três anos e afirma ainda sofrer sequelas
psíquicas e físicas das torturas, que incluíram choques, dentes arrancados, tapas. O depoimento
de Rousseff está no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), colegiado instituído em
2012 pela própria ex-presidente com objetivo de apurar as violações de direitos humanos
ocorridas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). No canal oficial da comissão no
YouTube (https://www.youtube.com/user/comissaodaverdade/) estão centenas de vídeos, entre
depoimentos e audiências públicas, que revelam as torturas, as mortes e os desaparecimento
116

a torturou. Dilma assumiu o lugar de seu algoz, mas não viu com os próprios
olhos o impacto de seus atos: do aeroporto pegou um helicóptero que a levou
direto à obra. Se viu a cidade, foi de cima, como foi lá de cima, primeiro como
ministra de Minas e Energia do governo Lula e depois como presidenta, que
decidiu sobre a vida e a morte de muitas e muitos.

3.1 O CENTRO DO MUNDO É AQUI

Durante os três dias do Amazônia centro do mundo a universidade foi tomada


por gentes de todos os tipos: gente de calça jeans, gente de cocar; gente de
cabelo tão loiro que chega a ser branco, gente de cabelo bem enroladinho; gente
pintada de urucum, gente pintada de jenipapo, gente com tatuagem; gente que
fala português, gente que fala jê, gente que fala francês, gente que não fala;
gente de religião, gente que não crê em nada; gente que produz da terra, gente
que estuda a terra; gente que conversa com o rio, gente que pesquisa o rio;
gente que não tem mais território; gente que faz arte; gente que faz comida;
gente que não tem mais casa; gente que não tem mais peixe para pescar; gente
que quase não usa dinheiro; gente que faz reza; gente que faz ativismo; gente
que faz remédio; gente que foi atingida pela barragem; gente que não tem mais
sustento.

Muitas vezes houve choro, o meu primeiro foi de tristeza, logo no primeiro dia,
quando presenciei indígenas cantando o hino nacional. Foi como se a faca do
colonialismo entrasse no meu estômago. Não sei se o hino estava previsto ou
não, mas fomos coagidas a cantar por um grupo de ruralistas da região que
invadiu a universidade e ameaçou não parar de gritar e de atrapalhar as recém-
iniciadas falas das lideranças, caso o hino não fosse cantado. Diziam que as
ONGs que trabalham em Altamira estão a serviço dos países estrangeiros que
querem pegar a riqueza da Amazônia e levá-la para fora do Brasil, o mesmo
discurso daquele que ocupa a cadeira da presidência quando fala sobre a
Amazônia. E assim foi, o hino foi cantado, mas, ao contrário do prometido, os
ruralistas seguiram tentando impedir as falas das lideranças respaldados pela

ocorridos no período. Além dos registros em vídeos, há uma página governamental


(http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/) onde se encontra o relatório final da comissão.
117

presença de Edward Luz131, um antropólogo famoso na região amazônica por


apoiar os ruralistas locais e por produzir laudos contra as TIs. Ninguém mais
conseguia falar até o momento em que o cacique Raoni Metuktire (2019) do povo
kayapó toma a palavra:

Peço para que todo mundo tenha calma. Quero dizer para os não-
indígenas que não sou uma pessoa que está tentando arrumar briga
entre as pessoas, peço que a paz venha até nós. Quero dizer para os
não indígenas, os ruralistas, os empresários, os grileiros, os
garimpeiros, os madeireiros, que respeitem as terras indígenas, que
respeitem os indígenas, que respeitem a mata. Porque a floresta, o rio
e o igarapé é a vida nossa. Se a Amazônia é do Brasil, então, que os
não-indígenas, que os garimpeiros, que os fazendeiros, que os
quilombolas e que os indígenas, defendam Amazônia, que fique em pé
a floresta. Quero dizer que a pessoa que tentou fazer confusão aqui,
Edward Luz, eu quero dizer pra ele, o que você está fazendo aqui, você
não está respeitando a população. Eu quero dizer que eu não tenho
raiva de você. Então é melhor você parar com isso. Se a Amazônia é
do Brasil, que vocês façam seu trabalho de defender a Amazônia, que
eu faço o meu de defender a Amazônia 132.

“Eu quero dizer que eu não tenho raiva de você”. Naquele momento entendi
muita coisa sobre os povos da floresta, e muita coisa sobre mim. Na sequência
da fala de Raoni, os muitos outros kayapós presentes, começaram a entoar um
canto como que intensificando as palavras de seu cacique por meio de uma outra
lógica. O ar mudou de densidade e as pessoas, todas elas, até mesmo os
ruralistas, se calaram. Fiquei pensando sobre os modos de reagir, sobre quais
modalidades de respostas podem ser dadas a certas situações. São muitas e
nenhuma deve ser negligenciada.

As falas se seguiram e fui percebendo algumas particularidades nos discursos


dos povos da floresta; pessoas indígenas, ribeirinhas, beiradeiras, pescadoras
incluíam em seus discursos atores políticos que inexistem nas falas dos
ativismos políticos com os quais estou acostumada. A ação humana no contexto
amazônico não é a única maneira de praticar política, aqui os encantados, os

131
Edward Luz é um antropólogo que defende os ruralistas e o atual executivo federal, que se
autoproclama antropólogo de direita. Como demonstra a matéria do Intercept, Edwald Luz
confirma ter trabalhado na nomeação do missionário Ricardo Lopes Dias para cuidar da pasta
de Índios Isolados e de Recente Contato. O antropólogo foi expulso da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) em 2013. A matéria do Intercept está disponível neste link:
https://theintercept.com/2020/02/13/audios-missionarios-converter-indios-amazonia/. Acesso
20/03/2020.
132
Transcrevi a fala de Raoni de um áudio gravado pelo celular.
118

espíritos, os outros-que-humanos (o rio Xingu, a mata, etc.), são lembrados e


considerados como atores políticos, não somente algo a ser defendido e
preservado, inerte e sem agentividade. No grupo de trabalho dos territórios
indígenas, uma mulher indígena133 começou sua fala comentando a chuva que
caía naquele momento: “nós estamos sendo agraciados com essa chuva que cai
agora, e talvez essa chuva possa estar aqui enchendo esse rio e indo romper a
barragem. Que ela seja bem-vinda.” Os povos da floresta são com o rio, com a
mata, com os igarapés, com os encantados. Quando agem politicamente, agem
com todos esses outros que para a maioria de nós pessoas brancas, são
invisíveis.

Em Altamira 2042 a ação dos invisíveis aparece reiteradas vezes. Após desligar
os aparelhos de som que propagavam os sons de máquinas, Gabriela acende
uma vela e liga outro aparelho de som que começa a reproduzir falas de uma
mulher ribeirinha. A voz feminina conta a história de uma menina que engravidou
de um padre jesuíta e, embora a família pedisse para que abortasse, a menina
decide ter a criança às margens do Xingu, deixando-a ali mesmo no rio. Segundo
a história, ao voltar pra casa, a menina sofre uma hemorragia e morre, enquanto
a criança se torna cobra134 e passa a viver nas profundezas dos rios. Em noites
de lua cheia, a cobra grande se torna mulher para encontrar alguém de quem
engravidar, pois sua maldição só terminaria quando ela parisse outra criança.

Enquanto ouvíamos a mulher contando a história e víamos a projeção de seu


rosto na parede, Gabriela, nua, acopla uma cabeça composta por dois alto-
falantes, um na frente de seu rosto e outro na parte de trás, formando uma
cabeça sem identidade certa. É desses aparelhos que a voz da mulher é
amplificada. Conversando com Gabriela (CARNEIRO DA CUNHA, 2020),
descobri que a mulher é Raimunda Gomes da Silva, uma das muitas pessoas
que tiveram suas vidas transformadas pela construção de Belo Monte.

133
Infelizmente não posso citar seu nome por ela não ter se apresentado. Transcrevi sua fala da
gravação de áudio que fiz do celular.
134
As histórias da cobra grande são amplamente conhecidas no norte do Brasil. Há inúmeras
versões, há a história de uma indígena que ficou grávida de uma cobra dando à luz a duas outras
cobras – Norato e Maria –; há outra que conta sobre uma mulher que se casou com um demônio
e tiveram um filho que foi transformado em cobra pelo pai.
119

Raimunda Gomes da Silva, brasileira, mais de 60 anos, casada com João Pereira da Silva,
brasileiro, mais de 60 anos 135. Raimunda e João tiveram por duas vezes suas casas
desapropriadas para a construção de hidrelétricas na Amazônia. A primeira vez ocorreu nos
anos 1980, na construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí. Raimunda e João, apesar
de terem o título da terra, não possuíam nem o conhecimento, nem dinheiro suficiente de
entrar com uma ação na justiça a fim de garantir um ressarcimento justo para seu pedaço de
terra. Tiveram que se contentar com o que a Eletrobrás Eletronorte 136 ofereceu: um outro
terreno, cheio de mosquitos e pragas, efeito do alagamento promovido pela construção das
barragens (BRUM, 2015). Ao casal não restou outra opção senão se mudar, perdendo tudo e
tendo que recomeçar a vida em outro lugar.

A segunda vez foi em Altamira, na construção de Belo Monte. Como muitas pessoas
ribeirinhas pescadoras, Raimunda e João tinham duas casas, uma na mata, de onde tiravam
o sustento plantando e pescando, e outra na cidade, onde vendiam suas produções. Quando
começaram as desapropriações, o Consórcio Norte Energia não reconheceu a dupla moradia
das pessoas ribeirinhas e pescadoras: ressarciu apenas uma e considerou a segunda como
ponto de apoio.

Dos três modos de compensar a realocação compulsória oferecidos pelo Consórcio Norte
Energia – reassentamento, ressarcimento financeiro e carta de crédito –, Raimunda e João
optaram por ressarcimento financeiro. O casal recebeu 23 mil reais pelo trabalho de uma vida.
Somando-se a isso, Raimunda foi tomada por mais um sobressalto. O Consórcio Norte
Energia dava prazos para que as pessoas retirassem seus pertences da região a ser alagada,
mas nem sempre cumpriam137. No dia acordado com a Consórcio Norte Energia, Raimunda
foi pegar suas coisas na ilha. Chegando lá viu sua casa e suas plantas queimando, tudo já
em cinzas. Raimunda conta a Bum (2015) que quando chegou a sua ilha, perdeu o chão. Em
frente a sua casa tinha plantado um pé de pinhão-pajé, que era seu amigo e seu pajé;
dependendo como estava o pinhão, ela decidia se iria para o rio ou não, eles se comunicavam
e o pinhão a indicava os caminhos a seguir. O pinhão-pajé se tornou cinzas. Ela diz “Agora
eu não tenho mais quem me guie”.

135
A história de Raimunda e João pode ser lida na matéria do jornal El País em 2015,
denominada por Vítimas de uma guerra amazônica, escrita pela jornalista Eliane Brum. Para
acessar a matéria, clique neste link:
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/22/politica/1442930391_549192.html
136
A UHE Tucuruí é de propriedade da Eletronorte, teve seu estudo e seu projeto realizado pelo
consórcio ENGEVIX-THEMAG, e sua construção realizada pela Camargo Corrêa S/A.
137
À época em que a casa de Raimunda foi queimada, o Consórcio Norte Energia estava proibido
legalmente pelo IBAMA de remover ou de demolir as casas das pessoas atingidas pela
barragem. Houveram outras denúncias sobre o mesmo procedimento empregado pelo
consórcio.
120

Figura 3: Gabriela Carneiro da Cunha no espetáculo Altamira 2042, projeção do rosto de


Raimunda Gomes

Fonte: site Cena Brasil Internacional. Foto de Nereu Jr. 138

Em nossa conversa, Gabriela Carneiro da Cunha (2020) contou a decisão de


abordar o Xingu como segundo rio do projeto Margens se deu depois de ler a
matéria Vítimas de uma guerra amazônica de Eliane Brum (2015) que tem como
protagonista o casal Raimunda e João. Após sua primeira viagem de pesquisa à
Altamira, Gabriela pensava em interpretar Raimunda e produzir uma peça de
teatro com personagens nos moldes mais tradicionais. Conforme o projeto foi se
desenvolvendo, percebeu que não se tratava apenas dos depoimentos e das
personagens humanas que vivem nas e às margens do Rio; sua pesquisa de
campo a levou a tomar caminhos para ela inesperados.

138
Disponível em: http://www.cenabrasilinternacional.com.br/2019/espetaculo/altamira-2042/.
Acesso em 14/06/2020.
121

Da mesma maneira que a etnografia na antropologia139 se divide em duas fases,


o campo e o processo de escrita, a pesquisa140 da arte de contexto específico141
também ocorre em duas etapas, em campo e no processo de criação. A
etnógrafa inglesa Marilyn Strathern (2017) chama atenção para o fato de que a
escrita etnográfica deve ser uma recriação imaginativa dos efeitos do campo na
qual os elementos se rearranjam para produzir um outro sentido. Assim, a escrita
não é uma derivação ou um relatório de uma experiência, mas a criação de um
segundo campo. O campo e a escrita se tocam sem se abrangerem por
completo; algo sempre se perde, algo sempre se ganha. Muitas vezes a
motivação inicial da investigação se transforma no encontro, levando a pessoa
pesquisadora a uma direção se não contrária, ao menos mais múltipla em
relação à motivação inicial.

Na primeira das três viagens que fez em sua pesquisa de campo, Gabriela
(CARNEIRO DA CUNHA, 2020) encontrou e conversou com pessoas chaves
dos movimentos sociais da região. Além de Raimunda, se aproximou de Antonia
Melo, fundadora do Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS) e uma das
pessoas mais atuantes em Altamira, tendo participado desde os anos 1970 dos
movimentos sociais da cidade, e Dom Erwin, bispo emérito do Xingu reconhecido
por lutar por justiça social e ambiental da região. Gabriela (CARNEIRO DA

139
Os modos de fazer etnografia foram e continuam sendo uma das problemáticas mais
evidentes na antropologia. Bronislaw Malinowski [1884-1942] (2018), uma das primeiras pessoas
a pensar os processos etnográficos, coloca a experiência etnográfica como um processo
impessoal na tentativa de assegurar um certo tipo de neutralidade, o sujeito que realiza a
pesquisa é compreendido como neutro. Clifford Geertz [1926-2006] (2015) sugere que a
etnografia é um trabalho de interpretação, de produções de ficções, ou seja, a pessoa etnógrafa
não é neutra, é situada em sua própria cultura, e sua pesquisa deve ser tomada como parcial.
James Clifford [1945-] (2011) propõe uma produção polifônica na tentativa de evitar uma
autoridade etnográfica única. Eduardo Viveiros de Castro [1951-] (2002) problematiza a
relação/comparação de culturas entre a pessoa antropóloga e a nativa quando indaga que a
própria concepção de cultura de uma pode ser diferente para a outra; a isso ele denomina por
equívoco antropológico.
140
Embora a pesquisa realizada pela artista se assemelhe em diversos pontos com práticas
etnográficas, opto por utilizar pesquisa de campo por Gabriela não ter nem treinamento
tampouco conhecimento sobre o que define uma pesquisa etnográfica. Há discussões nas áreas
da antropologia e da arte sobre os modos como a arte faz uso da etnografia. Hal Foster (1995)
foi um dos primeiros a criticar o uso da etnografia pela arte no artigo The artist as an
ethnographer? Desde então muitas críticas as suas colocações vêm sendo tecidas por Renée
Green (2014), Mathew Rampley (2000), George E. Marcus (2004) e Fiona Siegenthaler (2013).
141
Arte de contexto específico é o trabalho artístico feito a partir de um contexto sócio-político-
cultural de um determinado lugar. Diferentemente de um trabalho site specific, a arte de contexto
específico não ocorre necessariamente no espaço do contexto, mas o aborda.
122

CUNHA, 2020) conta que estava mais preocupada em se informar e obter o


maior número de dados possíveis. Um dia foi à casa de Raimunda com a
jornalista Eliane Brum e começou a reparar o modo que Brum se portava na
conversa, completamente oposto do seu. Enquanto Gabriela fazia perguntas
longas que eram mais “teses do que perguntas”, Brum se sentou no sofá e
escutou Raimunda contar suas histórias e novidades. Gabriela (2020) então
percebeu “o que era estar com alguém, quanto de silêncio você permite, como
uma escuta pode ir além da informação”.

Conhecer e conviver com Raimunda fez Gabriela perceber que não poderia
considerar apenas as lutas sociais no contexto da construção de Belo Monte no
rio Xingu. Diz a artista (CARNEIRO DA CUNHA, 2020) que nas conversas entre
as duas, a bruxaria, a feitiçaria, o xamanismo se misturavam com a militância e
o ativismo (Raimunda faz parte de alguns movimentos sociais de Altamira, como
o MXVPS). Isso fica evidente na sequência da própria peça: após contar o mito
da cobra grande, Raimunda começa a falar sobre os assassinatos de muitas
mulheres ativistas e da impunidade de seus assassinos. Lembra de Dorothy
Stang142, de Marielle Franco143, e de outras mulheres que foram assassinadas,
cujos assassinos permanecem livres. Na sequência diz não ter medo de morrer
de “morte matada”, porque ela também é mata, é floresta, e ambas, ela e a mata,
são vivas. Se morrer, renascerá no pensamento de alguém, da mesma forma
que as guerreiras que já morreram por defender as florestas encarnaram em
outras pessoas e seguiram sua luta. O fazer político de Raimunda entrelaça

142
A irmã Dorothy, como era conhecida, foi uma freira estadunidense naturalizada brasileira que
vivia na Amazônia desde os anos 1970, onde realizava trabalhos de desenvolvimento
sustentável, de reflorestamento, da mesma maneira que apoiava a comunidade local inclusive
lutando pela reforma agrária. Após receber muitas ameaças de morte dos fazendeiros da região,
foi assassinada em 2005 com seis tiros. Os mandantes e os assassinos foram julgados e
condenados, mas saíram logo da cadeia. Uma reportagem do Amazônia Real conta um pouco
mais da história de Dorothy Stang e de outros líderes da região amazônica:
https://amazoniareal.com.br/apos-15-anos-da-morte-de-dorothy-stang-a-impunidade-ainda-
persiste-em-anapu/
143
, Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL, foi assassinada à tiros em março
de 2018. Também foi assassinado Anderson Gomes, o motorista que dirigia o carro onde
estavam. As investigações indicam que tenha sido um assassinato político, decorrente das
constantes denúncias feitas pela então vereadora à ação de milícias no Rio de Janeiro. Os
assassinos de Marielle estão presos, mas os mandantes ainda não são conhecidos. Eu e muitas
pessoas brasileiras perguntamos: Quem mandou matar Marielle?
123

aspectos espirituais e animistas, nos quais os outros-que-humanos ocupam um


papel relevante.

Em sua segunda viagem, em 2017, a artista participou da Quarta Canoada do


Xingu144. O silêncio das canoas navegando pelo Xingu fomentou um outro tipo
de escuta à Gabriela: ela pode ver, ouvir e experienciar o Rio e os seres que ali
habitam (CARNEIRO DA CUNHA, 2020). Poucos meses depois retornou para
sua última pesquisa de campo. Dias antes da viagem Gabriela teve um sonho
com o rio Xingu. Em sonho, o Xingu lhe disse “tire a sua história de cima do meu
leito. O meu tempo não é um tempo histórico, você não tem linguagem para falar
comigo. Se você quiser me ouvir você vai ter que aprender uma outra
linguagem.” (apud CARNEIRO DA CUNHA, 2020). O sonho, diz ela, a fez
reconhecer sua própria surdez também em relação aos outros-que-humanos. A
artista percebeu então que teria que se colocar em um lugar de escuta145, tanto
em relação aos modos humanos de fazer política na região – que são geralmente
desclassificados pelos discursos políticos dominantes –, mas também perceber
que os outros-que-humanos também possuem seu lugar de fala, possuem sua
própria linguagem e seu modo de expressão146.

Altamira 2042 não se trata de dar voz a quem historicamente não tem voz, pois,
como já disse a artista e escritora queer Jota Moçamba (2017a), mais importante
do que saber quem pode falar, é reconhecer quem é capaz de escutar. Altamira
2042 procura possibilitar a escuta a quem não tem, principalmente aos povos do

144
A Quarta Canoada do Xingu é um evento anual, organizado pela Associação Indígena Yudja
Miratu em parceria com o ISA, no qual indígenas, pessoas ribeirinhas, cientistas, ativistas viajam
em canoas pela região da Volta Grande do Xingu para observar os impactos da UHE Belo Monte.
Em 2017 a expedição durou cinco dias em um percurso com mais de 100km e contou com 94
participantes. Para mais informações sobre está expedição, acesse:
https://medium.com/hist%C3%B3rias-socioambientais/os-donos-do-rio-aba9a693a4b9. Data de
acesso: 16/06/2020.
145
A questão do lugar de escuta emerge das problematizações que muitas pessoas intelectuais,
ativistas e acadêmicas (ver SPIVAK (2010); HILL COLLINS (2016); GONZALEZ (1984); e
ANZALDÚA (2000)) vêm realizado há algumas décadas sobre a histórica hierarquização dos
saberes, cujos privilégios de fala decorrem de relações de poder principalmente por, mas não
só, recortes de raça, de gênero, de cultura e de classe. Djamila Ribeiro (2017) coloca que o lugar
de fala considera a posição social que alguém ocupa a partir de uma estrutura de dominação e
é um modo de entender como opressões históricas e estruturais operam na invisibilização e na
desautorização de pessoas de certos grupos sociais.
146
De acordo com Viveiros de Castro (2015), para os povos ameríndios, os outros-que-humanos
estão se comunicando o tempo todo, a questão é que poucas pessoas detém a habilidade de
compreender o que está sendo dito.
124

sul e do sudeste do Brasil (CARNEIRO DA CUNHA, 2020), como ela e eu.


Gabriela percebeu a sua surdez e, a sua maneira, se colocou no lugar de escuta,
e desse lugar produziu o espetáculo.

Não deixa de ser uma situação contraditória per se que uma artista branca do sudeste do
Brasil, formada na Casa das Artes de Laranjeiras 147 realize um espetáculo a partir de sua
vivência em um território marcado pelo descaso, pelo colonialismo e pelo apagamento
histórico. Gabriela age ativamente na tentativa de “dar ouvidos a quem não tem”. De fato, ao
longo de todo o espetáculo a artista atua como mediadora, em nenhum momento profere
qualquer palavra, o que se ouve são os depoimentos colhidos ao longo de sua pesquisa de
campo: vozes de mulheres e de homens que ali vivem e se dispuseram a conversar com ela.
Gabriela está praticamente o tempo inteiro com o rosto coberto, ou pelas caixas de som, ou
por uma máscara-projetor que projeta nas paredes imagens do Xingu, e não há nenhuma luz
direcionada a ela. Seu trabalho em cena é articular e compor com sons e imagens, materializar
imagens e instigar a ação das pessoas presentes.

Todavia a problemática do lugar de fala e de escuta perpassam mais substratos do que o falar
e o ouvir. Moçamba (2017b) comenta o modo com que vozes historicamente subalternizadas
e invisiblizadas podem acabar sendo capturadas pelas estruturas contra as quais lutam. Outra
questão emerge quando discursos artísticos críticos, por exemplo, ao colonialismo e ao
racismo, se mantém no âmbito do discurso, sem alcançar e desestabilizar as próprias
condições que sustentam e fomentam o racismo e o colonialismo. Tais modos de atuar são
denominados pela escritora por “procedimentos extrativistas” (n.p.), pois no regime da
branquitude não há redistribuição de espaços e nem garantias ao acesso democrático. No
campo da arte na Europa, diz Moçamba (2017b, n.p.), o sistema desigual de distribuição
recursos permite que os debates raciais sejam controlados por pessoas brancas, a partir de
uma ótica e uma ética cuja adesão é “parcial, e algo oportunista, ao projeto de abolição do
mundo como conhecemos”.

Algo similar ocorre no campo acadêmico, em que conceitos como conhecimento, erudição e
ciências são racializados, como bem pontua Grada Kilomba (2019), escritora, teórica e artista
portuguesa de origem angolana. O que é não-branco se torna quase em sua totalidade objeto
de discursos e de estudos de pessoas brancas, tornando as pessoas brancas especialistas
em conhecimentos não-brancos. Kilomba (2019, p. 51–52) ainda explica que quando pessoas
não-brancas se tornam sujeitos de sua própria história, muitas vezes seus estudos são
tomados como pouco objetivos, pessoais e emocionais, quase o oposto do que se comumente
entende por produção de conhecimento: universal, neutra, objetiva, imparcial, factual,
racional.

Será que se pode considerar as pessoas que têm suas vozes amplificadas pelos alto-falantes
em Altamira 2042 como sujeitos de suas próprias histórias? Tendo assistido o espetáculo ao
vivo e algumas vezes em vídeo, não consigo afirmar indubitavelmente que sim, mas tampouco
identifico as vozes amplificadas como objetos do espetáculo. Voz é corpo, e no trabalho elas
são encarnadas em ondas sonoras e imagens projetadas. De uma maneira abstratamente
concreta, as pessoas estiveram virtualmente presentes em inúmeras cidades brasileiras onde
o espetáculo foi apresentado. Suas vozes e imagens chegaram aos ouvidos de outras
pessoas, se essas foram capazes de escutar, ninguém poderá afirmar além delas mesmas.
O esforço de Gabriela em não ser protagonista da obra, mas articuladora de uma situação, é
evidente. E talvez, em certos aspectos, ingênuo, pois seu corpo é de fato o único corpo que
lá está; embora acompanhada de muitas vozes humanas e outras-que-humanas, o espetáculo
não deixa de ser um solo.

147
Escola de teatro localizada em um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro, cuja mensalidade
gira em torno de 2 mil reais.
125

Se tomarmos o contexto econômico e estrutural precário em que as artes vivas se encontram


no Brasil há alguns anos, podemos compreender a dificuldade na produção e na circulação
de obras que envolvem muitas pessoas, ainda mais quando se trata de um trabalho situado
em um campo alternativo e experimental148. No entanto, em minha conversa com a artista em
nenhum momento apareceu a possibilidade de trabalhar com as pessoas locais na produção
da obra, a criação ocorreu majoritariamente na cidade de São Paulo 149, junto a pessoas
artistas que não são de Altamira. Gabriela (CARNEIRO DA CUNHA, 2020) ainda assim
comenta que tanto Raimunda quanto um rapper local chamado Rodrigo são co-criadores da
dramaturgia e trouxerem conceitos à obra; Raimunda trouxe os aspectos mitológicos,
enquanto Rodrigo150 trouxe a situação de guerra entre os progressianos e os aliendígenas,
exposta do meio para o final da peça.

Altamira 2042 não parece se propor a desestabilizar as estruturas do campo da arte que
sustentam a desigualdade ao acesso de recursos; é um espetáculo que atua nas lógicas
vigentes do sistema de circulação de espetáculos, isto é, circula em festivais nacionais e
internacionais e é vendido para instituições como o Sesc. Me pergunto se trabalhos que atuam
a partir o sistema de circulação e de acesso financeiro da arte, sistemas imersos na
branquitude como diz Moçamba (2017b), se tornam não apenas coniventes com os modos de
operar desse sistema, mas até mesmo são mantenedores de tal estrutura desigual.
Provavelmente sim. As pessoas artistas brancas devem reconhecer que o racismo e o
colonialismo estão presentes no campo da arte, bem como devem assumir sua
responsabilidade na luta antirracista e anticolonialista 151. Às pessoas brancas também cabe
lutar para que as agências de fomento, as políticas públicas culturais e os sistemas curatoriais
sejam de fato democráticos.

Se o espetáculo em si talvez não atue na pressão por outros modos de circulação e de


distribuição de recursos, Gabriela como artista vem atuando junto a outras mulheres artistas
ou não, ativistas ou não, na construção de um coletivo situado em Altamira, mas que também
se estende ao Tapajós. A Rede Buiúnas se inscreve como movimento político artístico, em
um trabalho que visa inventar coletivamente novas histórias, mitos e rituais que transitem na
borda entre política, ação social, arte e magia. As práticas da rede vão desde a ocupação do
museu histórico de Altamira 152 com o objetivo de contar o lado da história de Belo Monte que
o museu não quer mostrar, até a redação de uma ação judicial ao MP, criada a partir de rituais
para que a ação seja mais que mais uma ação judicial, os rituais outorgariam à ação a potência
de um feitiço.

Antes de inibir e evitar produzir arte em relação com contextos dos quais não fazemos parte
e/ou com pessoas ou povos que ocupam uma posição social historicamente invisiblizada e
subalternizada, nós pessoas artistas brancas de classe média, como eu, Gabriela e muitas
outras, precisamos entender que a nossa posição sempre será ambígua e contraditória. Em
vez de ser um impeditivo para a realização do trabalho, seria a própria condição de fazê-lo,
considerando sempre tanto de onde se fala e qual é a nossa capacidade de escuta. Parece-
me mais perversos e separatistas os outros dois caminhos: fazer sem refletir de onde se fala

148
Gabriela (CARNEIRO DA CUNHA, 2020) me informou que o custo do trabalho foi baixo, tendo
ela usado dinheiro pessoal durante o processo.
149
Um primeiro esboço do que é hoje o início do espetáculo foi criado e apresentado em Belém-
PA.
150
Ambos estão na ficha técnica de Altamira 2042 sob a nomenclatura tramaturgia, junto à João
Pereira da Silva, Povos indígenas Araweté e Juruna, Bel Juruna, Eliane Brum, Antonia Mello, Mc
Fernando, Thais Santi, Thais Mantovanelli, Marcelo Salazar e Lariza. A ficha técnica pode ser
encontrada no site da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MIT-SP), neste link:
https://mitsp.org/2019/altamira/. Acesso em 22/06/2020
151
Julianna Rosa de Souza (2020), pesquisadora das artes negras, sugere algumas práticas
antirracistas: desnaturalizar a ausência de pessoas negras no teatro; viabilizar a participação de
pessoas negras convidando-as para direção, atuação, iluminação, etc; montar espetáculos de
autoria negra; questionar estereótipos raciais em personagens.
152
O museu de Altamira foi construído pelo Consórcio Norte Energia, como uma espécie de
melhoria cultural para a cidade inundada por Belo Monte. Hoje esse museu é subutilizado e conta
a história da construção de Belo Monte sob a perspectiva do consórcio.
126

e de onde se escuta, isto é, passar por cima sem reparar em quais condições históricas
estamos vivendo; ou simplesmente não fazer trabalhos que perpassem essas situações para
não habitar tais ambiguidades e contradições.

“Eu proponho que a gente aprenda a ouvir o rio. Eu proponho que a gente
aprenda a ver o invisível. Não sei se é eficaz ou se não é, mas é o que proponho”
(CARNEIRO DA CUNHA, 2020). Quando nos propõe escutar ao rio e aos
invisíveis, além das pessoas que vivem na região do Xingu, independentemente
da eficácia da escuta, Gabriela realiza uma analogia entre práticas xamânicas e
a experiência de um trabalho artístico. Durante o processo, a artista (CARNEIRO
DA CUNHA, 2020) se perguntava o que seria “agir como xamã desde a
perspectiva de uma artista”. A antropóloga e etnógrafa carioca Tania Stolze
Lima, de quem a artista se aproximou para auxiliar em suas investigações,
propôs recolocar a questão a partir de outra relação: “no que o xamanismo
capacita o teatro a se tornar?” (apud CARNEIRO DA CUNHA, 2020)153. A
inversão faz toda a diferença: em vez de tentar atuar como xamã na arte, o que
seria no mínimo presunçoso, a questão se converte em o que o teatro pode
aprender com o xamanismo, o que o xamanismo pode ensinar, o que ele revela
a quem faz arte, e quais poderiam ser as aproximações possíveis entre
xamanismo e arte sem que seja uma apropriação de seus “efeitos”, ou uma
adaptação/transposição arbitrária e eticamente contestável.

153
O termo agir como xamã pode ser extremamente problemático para a campo da arte,
principalmente quando se considera as responsabilidades que tem uma pessoa xamã em relação
à comunidade ou ao povo ao qual pertence. Por exemplo, para o povo Siona, situado na região
de Putumayo no sul da Colômbia, as pessoas xamãs são as que têm mais poder da aldeia.
Responsáveis pela proteção da comunidade, realizam curas físicas e espirituais, rituais para
pesca, caça, colheita, cerimônias de negociação com os invisíveis e, são aquelas que têm
representatividade nas negociações com as instituições colombianas, isto é, fazem a mediação
política entre comunidade e Estado (LANGDON, 2016). Outro exemplo é o papel da pessoa
xamã para o povo Araweté, ela vive entre dois mundos e conhece os invisíveis da floresta com
quem negocia o convívio entre humanos e outros-que-humanos, Viveiros de Castro (2015)
inclusive sugere que o xamanismo Araweté seja uma espécie de diplomacia. No povo Araweté
há dois tipos de chefia: a do xamã, que lida com os invisíveis e os outros-que-humanos, e a do
cacique, responsável pela relação com os outros humanos (SZTUTMAN, 2005). O caso
Yanomami se assemelha, à princípio, ao Araweté: a pessoa xamã é responsável em manter o
céu suspenso, ato que se realiza por meio de rituais de contato com os espíritos das florestas,
os xapiri. Todavia, a partir do contato com pessoas brancas, e os efeitos de esse contato ao que
diz respeito aos processos de exploração de recursos naturais e as consequentes poluição do
ambiente, devastação das florestas e mortes de humanos e outros-que-humanos que tal contato
efetiva, a pessoa xamã yanomami se tornou um ator político de negociação entre culturas. Daví
Kopenawa Yanomami, xamã da aldeia Watoriki, localizada na TI Yanomami na fronteira com a
Venezuela, extremo norte do Brasil, é um exemplo de xamã que atua nas relações com os outros-
que-humanos e nas relações políticas com as pessoas brancas.
127

Uma das reverberações de práticas xamânicas foi a emergência de entidades


protetoras. A primeira é Dona Erondina154, entidade cabocla do Tambor de Mina
de regiões do Maranhão e do Pará, encantada do povo Karuê, mestre em magia
e protetora dos animais e da mata. Em Altamira 2042, a entidade tem cabeça de
alto-falantes e corpo de Cobra Grande; Dona Erondina, Raimunda, Cobra
Grande se tornam uma. Do mesmo modo que a criança deixada na beira do
Xingu se torna Cobra Grande, e esta se torna mulher, ouvimos a tríade Dona
Erondina-Raimunda-Cobra Grande contar que quando morrer irá se tornar
espírito que encarnará nas pessoas que defendem a mata, tornando-se seus
guias. Dona Erondina-Raimunda-Cobra Grande (CARNEIRO DA CUNHA, 2019)
fala que há entidades encarnadas em Thais Santi 155, procuradora do Ministério
Público Federal de Altamira, em Antonia Mello e em Eliane Brum; diz que não foi
o acaso que as trouxeram à Altamira, foi a força da entidade156.

Ô Herondina,
Ô não me toque, não me bule,
estou na ponta da agulha,
muitos trabalhos eu tenho dado,
muitas correntes tenho quebrado.
Eu mandei fazer uma flecha,
foi da pena de um gavião,
para flechar os feiticeiros,
na veia do coração.
Ô Herondina.157

154
Gabriela (CARNEIRO DA CUNHA, 2020) diz ter conhecido a entidade Dona Erondina durante
um ritual de ayahuasca (chá composto por uma erva e um cipó com potencial alucinógeno) no
qual participou em Belém, no momento em que seu ponto foi cantado. A presença de Dona
Erondina em Altamira 2042 atende um dos parâmetros delimitados por Gabriela ao longo dos
processos de investigação e de criação: Só pertence ao trabalho o que pertence ao território.
Mais a frente no texto irei pontuar outros parâmetros.
155
Thais Santi vem atuando em defesa dos direitos das populações de Altamira, além de criar
ações que tentaram barrar a implementação de Belo Monte. Como dito anteriormente, as ações
do MPF que tentaram paralisar as obras e a ligação da hidrelétrica foram suspensas pelo
instrumento jurídico criado durante a ditadura militar denominado suspensão de segurança. Em
uma entrevista realizada pela jornalista Eliane Brum, a procuradora expõe seu trabalho e as
dificuldades judiciais de Belo Monte. A entrevista pode ser acessada nesse link:
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086.html. Acesso
20/06/2020
156
Os textos que se seguem em itálico e sem recuo de citação são ou os cantos entoados durante
o trabalho, ou os testemunhos de pessoas que vivem na região, gravadas ao longo da pesquisa
de campo. Alguns cantos são entoados pela atriz, quando for este o caso, mencionarei. Um dos
parâmetros de Gabriela para este trabalho é não transcrever testemunhos pois a fala é mais do
que é dito, ela é incorporada. Reservo o direito de transcrever os testemunhos para registrar
parcialmente do que se trata o trabalho.
157
Ponto das religiões afro-indígena-brasileira da região norte do Brasil cantado para pedir
proteção à entidade Herondina. Conhecida como protetora de pessoas escravizadas, diz-se que
128

Ativismos sociais e ambientais, ações judiciais em defesa dos humanos e dos


outros-que-humanos, materialidade e espiritualidade, e xamanismo se misturam
no fazer político de Altamira, ao menos no de algumas pessoas da cidade, como
Raimunda. Tal fusão não poderia deixar de se revelar no espetáculo. Gabriela
leva à risca um dos parâmetros que perpassam a pesquisa e a criação do
trabalho158: só pertence ao trabalho aquilo que pertence ao território. E território
é mais que uma extensão de terra: é terra, habitantes – humanos e outros-que-
humanos) –, e contextos sócio-políticos-culturais-ambientais – sempre
dimensionado que qualquer um deles, terra, habitantes e contextos, não existe
sem a existência do outro, isto é, não há nenhuma existência a priori, se formam
nas intra-ações159 (BARAD, 2003).

Talvez não seja exatamente isso que Gabriela quis dizer quando delimitou o
parâmetro territorial, mas foi o que percebi ser realizado no trabalho. Se os atos
políticos em Altamira também consideram os invisíveis como agentes políticos,
uma arte que tenha implicações políticas informada por esse território também
deve considerá-los como agentes políticos e estar aberta a sua agência. Na
primeira meia hora do espetáculo o que se percebe é este entrelaçamento, há
um momento em que um vídeo é projetado. Nela, Gabriela está nua de frente
para o rio Xingu com um microfone e um gravador nas mãos apontados para o
rio, em uma evidente tentativa de capturar a sua fala. Sua ação corresponde a

Herondina em vida era filha de um rei e que lutava contra a escravidão. Quando se encantou,
tornou-se uma Maria Padilha, entidade que se comunica com os Orixás, como Exú. Herondina é
considerada uma conselheira sábia, conhecedora das ervas e dos remédios tradicionais, que
luta contra as injustiças e protege seus devotos armada com arco e flechas e seu bodoque de
atirar pedras, tendo como parceira uma onça-pintada. Esse ponto é uma canção cantada em
primeira pessoa por Dona Herondina. Esse ponto é veiculado primeiro em áudio e depois
cantado por Gabriela.
158
Os parâmetros são: (a) sonho como método de estudo; (b) escuta de seres não humanos:
invisíveis, mortos, espíritos, matéria e fenômenos da natureza (exige transformação na escuta e
na linguagem); (c) canto como linguagem de tradução entre mundos; (d) criação de entidades
mediadores; (e) não hierarquizar a presença humana em cena; (f) só pertence ao trabalho o que
pertence ao território; (g) deslocamento físico que gera um deslocamento total; (h) documentar
o invisível e o inaudível; (i) utilizar instrumentos tecno-xamânicos; (j) não transcrever
testemunhos, (k) não se restringir à informação do discurso, ao contrário, incluir o que não é dito
e o que excede ao significado; (l) inversão do pensamento.
159
O conceito de intra-ação de Barad (2003) se contrapõe à ideia de interação que supõe
entidades preexistentes à relação, onde cada entidades possui certa autonomia e
independência. Na proposta de Barad, é a relação que produz as entidades e suas
agentividades, na relação também se determina as propriedades das entidades que compõe um
phenomena. Karen Barad é uma física e filósofa da ciência feminista estadunidense.
129

outros dois parâmetros do trabalho: documentar o invisível e o inaudível, e utilizar


instrumentos tecno-xamânicos160 (CARNEIRO DA CUNHA, 2020). Gabriela usa
de instrumentos tecnológicos para tentar amplificar e documentar o testemunho
de um existente que não é humano, uma proposição que busca transitar entre
mundos distintos. O xamanismo faz isso usando de outros métodos, Gabriela
tenta se aproximar desse tipo de experiência utilizando das ferramentas que lhe
são possíveis como artista.

Se de fato é possível capturar o que o rio tem a dizer, nós do público nunca
saberemos, mas talvez o que mais interesse a quem compartilha o espetáculo,
nesse contexto, seja a disponibilidade da artista em documentar o que este rio
poderia ter a comentar. Sua ação nos faz tanto imaginar o que pode estar sendo
dito pelo Xingu, como o ato atiça a nossa própria disponibilidade de escuta. Não
sei se as outras pessoas presentes se perguntaram o que seria urgente para o
rio contar, posso afirmar por mim, eu me perguntei sobre suas considerações.
Dado o contexto da urgência climática e as experiências vividas nos três dias do
encontro Amazônia centro do mundo, imaginei que ele estaria xingando quem
decidiu instalar a hidrelétrica Belo Monte em seu leito, ou falando que se sente
sozinho porque não há mais peixes e outros animais vivendo em suas águas,
ainda pensei que talvez ele nem conseguisse mais falar de tão intoxicado e
debilitado pelas toneladas de dejetos tóxicos vertidas em seu corpo.

Minha imaginação colocou palavras em sua boca e talvez o tenha humanizado


em demasiado161. Certamente para conseguir escutar o rio, eu precisaria
desenvolver habilidades desconhecidas por mim, presentes na vivência das
pessoas xamãs. Em nossa conversa, Gabriela (CARNEIRO DA CUNHA, 2020)
lembra que Daví Kopenawa, ainda nos anos 1980, já falava da eminente
extinção das abelhas, pois ele havia desenvolvido a capacidade de compreendê-
las. Mesmo não tendo a capacidade de me comunicar com o rio, poder imaginar

160
Um exemplo de instrumento tecno-xamânico seria o xamã no pendrive, no caso das pessoas
indígenas que gravam o canto de xamãs, bem como o uso que a própria artista faz dos alto-
falantes recriando o som das matas. Pelo que me disse Gabriela (CARNEIRO DA CUNHA, 2020),
esses instrumentos teriam a função de trazer aspectos xamânicos para o trabalho artístico.
161
A pesquisadora e artista trans Dodi Leal, assim como eu, também interpretou o rio. Para ela
o Xingu estaria chorando e dizendo “eu sou o Muro de Berlin do Brasil” (apud LEAL, 2019).
130

essa escuta como algo possível me colocou em um campo de implicação com o


rio, situação particular e bem distante das relações que travo no cotidiano, em
que água é água, e nem penso em considerá-la como sujeito político capaz de
se posicionar perante o corpo social. A partir dessa nova relação com o rio, a
água deixou de ser apenas um recurso e se tornou sujeito com lugar de fala, e
eu momentaneamente saí da lógica de consumo de recursos e da preservação
de um bem, para uma posição de abertura à escuta. A arte aqui abre a
possibilidade de que uma relação entre dois diferentes, humanos e outros-que-
humanos, se instaure e que dela emerja uma troca que não é de uso, ao
contrário, é de disponibilidade e implicação.

Até esse momento de Altamira 2042 não há qualquer menção direta à


construção da hidrelétrica que alagou territórios e secou grandes porções do rio
Xingu. Belo Monte só se anuncia quando ouvimos uma mulher cantando uma
música enquanto Gabriela se desfaz da entidade Dona Erondina ao tirar a
cabeça alto-falante, se sentar ao chão junto às pessoas do público e começar o
trabalho de parto para dar luz a uma cobra. A performer começa a dispor ao chão
algumas ponteiras e marretas162, e a espalhar caixas de som nos braços de
pessoas do público.

Moro num lugar, um pedacinho aqui no beiradão 163,


tenho uma mata, um rio, um barco bom, e uma ilha.
Tenho tudo aqui, umas galinhas e os ovos pra comer,
peixe frito e uma água pra beber, e a farinha.
Que vida boa, que vida boa, peixe caiu na canoa,
sou eu no meu mundo no beiradão.
Mas tudo mudou, veio o progresso para a cidade nos levar.
Não tem mais mata nem rio para mim pescar em minha ilha.
Não sei onde vou, é tanta gente que não sei por onde andar.
Nosso sustento Belo Monte fez tirar, é nossa sina.
Sem o seu lugar e as lembranças que me diz
que um dia pude ser feliz e não sou mais.
Adeus vida boa, adeus vida boa, sem peixe, sem minha canoa,
só resta a saudade no coração. 164

Rio Xingu, estão querendo te acabar,


mas as mulheres não vão deixar, as mulheres não vão deixar.

162
Instrumentos da construção civil usados para demolição manual
163
Beira do rio Xingu.
164
Esta música é uma adaptação livre de uma canção da dupla sertaneja Victor e Leo. A
adaptação transforma a vida sertaneja cantada na versão original pela vida vivida no Xingu. A
versão está misturada a outras canções gravadas por Gabriela em Altamira, uma música que
parece ser evangélica e a outra um rap.
131

Rio Xingu, estão querendo te acabar,


mas as mulheres não vão deixar, as mulheres não vão deixar.
Rio Xingu, estão querendo te acabar,
mas as mulheres não vão deixar, as mulheres não vão deixar.

Gabriela acopla em sua cabeça um projetor, e se posiciona diante de um teclado


de computador. Do projetor vemos imagens do contexto de Belo Monte: pessoas
locais, matas, rios, polícias, tratores, postos de combustível, homens a cavalo,
hidrelétrica, Altamira, mata devastada, campo aberto de terra, campos alagados
pela barragem. Imagens contrastantes que revelam um antes e um depois da
construção da usina hidrelétrica. Enquanto vemos as imagens165, ouvimos
testemunhos de pessoas sobre Altamira e Belo Monte:

165
As imagens que se seguem não fazem parte do espetáculo. Pertencem a diferentes sites.
132

Altamira é uma cidade de defuntos andantes e de mortos vivos. Um filme de terror, digamos
assim.

Figura 4: RUC Jatobá, reassentamento onde ribeirinhos passaram a morar após o alagamento
da região de Altamira

Fonte: site Mongabey (Foto Aaron Vincent Elkaim/The Alexia Foundation) 166

166
Disponível em: https://brasil.mongabay.com/2018/06/legado-belo-monte-danos-causados-
pela-usina-na-amazonia-nao-terminaram-apos-construcao-historia-fotografica/. Acesso: 10 de
jul de 2020
133

Eu vejo assim Altamira: um centro energético de uma guerra entre dois mundos. É aqui, é o
centro de uma guerra mundial. Ela acontece em vários outros lugares do mundo, mas aqui a
dimensão dela é muito forte, porque as duas forças são enormes. Essas pessoas são vítimas de
guerra.

Figura 5: a hidrelétrica em construção

Fonte: site Greenpeace (foto Carol Quintanilha)167

167
Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/um-erro-chamado-de-hidreletrica/.
Acesso em: 10 de jul. de 2020
134

Eles mataram um monte de bicho, eles mataram um monte de gente

Figura 6: casas de palafita em Altamira

Fonte: Site El País (foto: Lilo Clareto) 168

168
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/14/politica/1526322899_121198.html.
Acesso em 10 de jul. de 2020
135

O rio Xingu tá morto pra tudo e pra todos, pra tudo e pra todos.
Ele não tem mais a potência que ele tinha, nunca vai ter mais.

Figura 7: árvores mortas como efeito dos alagamentos

Fonte: site Huffpost News 169

169
Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/entry/belo-monte-
altamira_br_5d6efef4e4b09bbc9ef644fd. Acesso em 17 de jul. de 2020
136

O peixe, que é o próprio peixe, de alimentar a população, não tem mais sossego, pro pouco que
tem... bilhões e bilhões de peixes morreram.
Os pássaro, os bode, os bicho nas ilha, morrendo de necessidade, de fome, preso sem poder
sair

Figura 8: uma de muitas ilhas alagadas na região de Altamira

Fonte: site médium (foto: Lilo Clareto) 170

170
Disponível em: https://medium.com/hist%C3%B3rias-socioambientais/belo-monte-um-
legado-de-viola%C3%A7%C3%B5es-43ea35c973b8. Acesso em: 10 de jul. de 2020.
137

Pra que uma coisa mais terrível do que é o rio ter a floresta dele se acabando toda desse jeito
aí? Toda morrendo desse jeito aí, caindo, acabando, morrendo as floresta, tudo.

Figura 9: exemplo do desmatamento realizado para a construção de Belo Monte

Fonte: site da revista Exame (foto: Marizilda Cruppe) 171

171
Disponível em: https://exame.com/brasil/o-impacto-de-belo-monte-pelas-lentes-de-
fotografos-do-greenpeace/. Acesso em 10 de jul. de 2020.
138

3.2 A ARTE NÃO IMITA A REALIDADE

Quem acompanhou à distância todo o processo para a construção de Belo


Monte por matérias de jornais e/ou por denúncias dos movimentos sociais da
localidade, dificilmente conseguiu absorver a perspectiva de quem/que ali vive e
convive com os efeitos da hidrelétrica. Embora à época, tenham circulado muitas
informações sobre os processos jurídicos e legais duvidosos, a destruição de
ecossistemas, o aumento do desmatamento ilegal, o impacto nas TIs, dentre
tantos efeitos que Belo Monte causou e causa, o ponto de vista visibilizado não
era o daquelas, daqueles e daquilos que foram e continuam sofrendo o ataque
de Belo Monte; mesmo que atenta aos acontecimentos que possibilitaram um
dos maiores crimes ambientais e sociais brasileiros, a perspectiva, de maneira
geral, era de fora. Por mais que as histórias, os acontecidos e os contextos de
quem/que é de lá figurassem nas notícias, eram sempre sobre, e não com; as
linguagens, as gramáticas, os modos de expressão, de quem/que é de lá não
apareciam. Altamira 2042 tenta falar com o contexto, junto com as pessoas e os
outros-que-humanos: Raimunda está presente, assim como seu marido João,
Bel Juruna172, Antonia Mello, Mc Fernando173, Marcelo Salazar174, Thaís
Mantovanelli175, o rio Xingu, a cobra grande, os peixes, os pássaros, as árvores,
os invisíveis.

Por não traduzir os testemunhos a uma linguagem teatral tradicional ou ainda a


uma linguagem política conhecida176, em Altamira 2042 os atores que agem e
vivem ali falam por si, e dessa fala emerge a política particular que decorre
dessas intra-relações. O espetáculo não está propriamente contando a história
de Altamira, do Xingu e de Belo Monte, ele busca fazer presente a linguagem e

172
Bel Juruna é agente de saúde e ativista indígena que luta pelos direitos de seu povo.
173
MC Fernando é rapper em Altamira
174
Marcelo Salazar é engenheiro que há anos trabalha com o desenvolvimento de produtos junto
aos povos indígenas da região do Xingu.
175
Thais Mantovanelli é antropóloga. Seu doutorado concluído em 2016 aborda a posição do
povo Xikrin sobre a política dos brancos na construção de Belo Monte. A tese pode ser lido neste
link: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9009
176
Uma linguagem política conhecida nesse contexto seria o embate entre movimentos sociais
e governo. Evidentemente esse tipo de luta política ocorre constantemente, mas, no contexto de
Altamira e dos atores políticos que lá existem, ela não é a única modalidade de luta política
presente.
139

a gramática locais, que destoam e excedem os modos de discursos e os atores


correntes nas lutas sociais, ambientais e políticas que nos são apresentadas
comumente.

Na sequência das imagens e dos testemunhos, Gabriela tenta evidenciar o


embate entre visões de mundo ao apresentar os progressianos e os
aliendígenas como atores de uma luta polarizada.

Como mencionado anteriormente os termos progressianos e aliendígenas foram cunhados


pelo rapper altamirense MC Fernando em uma conversa com Gabriela Carneiro da Cunha
(2020) enquanto liam o texto Involuntários da Pátria de Viveiros de Castro (2017). Da junção
de indígena à alienígena resulta uma contradição conceitual significativa. Indígenas, em sua
origem etimológica, refere-se às pessoas originárias de um território; alienígenas àquelas
exteriores a ele; como Viveiros de Castro aponta, alienígenas somos nós pertencentes à
branquitude, não as indígenas, como o termo aliendígena insinua. Na mescla das duas
palavras algo se perde: a relação com a terra. Em Involuntários da Pátria, Viveiros de Castro
(2017, p. 3) contrapõe indígena e alienígena:

O antônimo de “indígena” é “alienígena”, ao passo que o antônimo de índio, no Brasil, é


“branco”, ou melhor, as muitas palavras das mais de 250 línguas índias faladas dentro do
território brasileiro que se costumam traduzir em português por “branco”, mas que se referem
a todas aquelas pessoas e instituições que não são índias. Branco é um conceito político,
não cromático ou “racial”, ainda que a escolha da cor branca nada tenha de arbitrário no
batismo do conceito. (“Os brancos”, como disse um pensador karajá, povo do Brasil Central,
“são um povo que se caracteriza por não ter cultura.”) As palavras índias que os índios
traduzem por “branco” têm vários significados descritivos, mas um dos mais comuns é
“inimigo”, como no caso do yanomami napë, do kayapó kuben ou do araweté awin. Ainda que
os conceitos índios sobre a inimizade, ou condição de inimigo, sejam bastante diferentes dos
nossos — ou o eram até chegarem os brancos —, não custa registrar que a palavra mais
próxima que temos para traduzir diretamente essas palavras indígenas seja esta mesma:
“inimigo”.

É certo dizer que indígena como ideia generalizante surge para equiparar a multiplicidade de
povos e apagar suas diferenças e diversidades por meio de um projeto de poder do Estado
brasileiro (e de muitos outros Estados-nação) que trabalha para “desindianizar o Brasil” para
instituir um modelo único de civilização que serve a poucas pessoas (VIVEIROS DE CASTRO,
2017, p. 5). Refletindo sobre o termo índio, o escritor Daniel Munduruku (2019) expõe as duas
visões mais recorrentes, a romantizada, que ficcionalizar o personagem índio 177, e a que
denominou por “ideológica”, na qual índio é visto como preguiçoso, perigoso, atrasado, que
“atrapalha o progresso”. Esse tipo de visão, diz Munduruku, tem por objetivo oportunizar a
exploração do que se entende por recursos naturais.

Poder-se-ia supor que aliendígena pretende expor a percepção preconceituosa,


estereotipada, estigmatizante e redutora da branquitude em relação às pessoas não-brancas,
aquelas que têm como referência “a relação com a terra em que nasceu ou onde se
estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma
comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2017, p. 4). Para a branquitude progressiana, alienígenas são as pessoas
indígenas, e não Belo Monte, como bem lembrou a pesquisadora Dodi Leal (2019).

No entanto, o esforço em revelar o preconceito e a estigmatização acaba por ratificá-los, pois


insiste na exteriorização, em posicionar os povos indígenas à parte; a mesma meta que o

177
Ele cita a música Baila comigo de Rita Lee (disponível em: https://youtu.be/PwL5WGK-rBU,
acesso em 25/01/2020) e o escritor José de Alencar [1829-1877].
140

Estado brasileiro (e outros Estados-nação) vem se esforçando em cumprir há séculos:


transformar indígenas em pobres. Para isso, primeiro há de se transformar Munduruku,
Krenak, Kayapó, Tupinambá, Xikrin, Guajajara, etc, em índio, depois em índio administrado,
em índio assistido, em índio tutelado, em índio sem terra, em falso índio – de calça jeans, de
celular, citadino (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 5). Há de se transformar indígena em
alienígena, ou, como na peça, em aliendígena.

Em tempo real, a atriz começa a digitar uma outra versão da história de Belo
Monte: 1500, o navio aporta em terras além-mar. 2015, a nave progresso desce
em rio amazônico. Enquanto projeta uma imagem de Belo Monte toda iluminada,
escutamos um rapaz contar sua experiência de ver um objeto não-identificado;
Belo Monte e sua imensidão de concreto. Os progressianos, diz o texto, é um
povo puro de objetivo único que precisa que todos os outros povos deixem de
existir. Seu objetivo é produzir desertos usando a arma mais letal: a caneta –
“uma arma é um tiro, uma caneta milhões. (...) Uma caneta nada mais é que uma
arma”, ouvimos.

Depois lemos, aliendígenas, povos múltiplos que nunca foram puros, sua
missão: Amazonizar o mundo178, por meio do canto, da dança e do sonho. “Ele
é índio, provavelmente sim, mas também ele é outra coisa. Não é que ele é isso
e não é aquilo, ele é isso e aquilo. Ele é soma e não subtração.”

178
Amazonizar o mundo é uma expressão recorrente entre as pessoas ativistas amazônicas.
141

Figura 10: Altamira 2042

Fonte: screenshot do vídeo do espetáculo

Humanos e Terranos do Antropoceno/Capitaloceno: agentes do mundo por vir, criadores de


futuro

Antropoceno é como se tem denominado a época geológica que teria posto fim ao
Holoceno179. O termo Antropoceno, cunhado pelo químico holandês Paul J. Crutzen no início
dos anos 2000, pretende evidenciar que a ação humana vem interferindo radicalmente no
planeta, causando uma série de transformações biosféricas, hidrosféricas, pedosféricas,
litosféricas, dentre outras. Para determinar ou não se há uma mudança de época geológica,
cientistas das mais diversas áreas têm investigado diversos efeitos como: o aumento da
agricultura, principalmente as monoculturas e o empobrecimento do solo; o crescimento
populacional de humanos; a industrialização; o desmatamento; a mudanças atmosféricas
decorrentes das extrações de petróleo, de gás e de carvão; a emissão de gases e de
combustíveis na atmosfera terrestre; a acidificação dos oceanos e a morte de recifes de
corais, como efeito da emissão de dióxido de carbono; a extinção em massa de inúmeras
formas de vida em um espaço de tempo pequeno se comparado aos padrões de extinção até
então correntes. A própria ideia de um época denominada por Antropoceno é uma proposição
radical por entrelaçar instâncias comumente separadas: a história humana e a história natural
pois colocar a humanidade como agente geológico é quase uma transgressão nas fronteiras
intelectuais da modernidade (MOORE, 2016).

A UHE Belo Monte é a expressão exemplar e palpável dos modos como o planeta vem
sofrendo transformações tão intensas a ponto de um ambiente singular se converter em outro
por meio de interferências exercidas a partir de lógicas capitalísticas, como a do business as
usual, do lucro acima de tudo, do progresso e do desenvolvimento a qualquer custo, e das
desigualdades e das explorações, humanas e não-humanas, constitutivas e inerentes à ela.
As marcas da invasão e da exploração do que hoje se entende por América e as
consequências do colonialismo (inclusive contemporâneo) e dos regimes escravocratas

179
Época da era Cenozóica iniciada há quase 12 mil anos que marca o fim da era glacial pelo
aquecimento da superfície terrestre, e a consequente extinção de inúmeros animais e plantas,
bem como o advento das formas de vida que reconhecemos hoje, inclusive da humana.
142

(inclusive contemporâneos) estão literalmente presentes na história digitada em tempo real


no espetáculo, tendo seus efeitos materializados na imagem da hidrelétrica, essa que hoje
representa aquilo que um dia as caravelas portuguesas e espanholas representaram ao
aportarem nas terras do sul.

Em Altamira 2042 o processo do Antropoceno tem por protagonistas as figuras dos


aliendígenas e dos progressianos, como se estivessem em disputa dois tipos de humanidade,
uma indígena e uma branca europeia. Para efeito do espetáculo, as nomenclaturas
aliendígenas e progressianos são suficientes180, pois dão conta de apresentar modos de vida
diferentes cujas consequências também são diferentes, bem como é um convite para as
pessoas do público refletirem sobre o contexto, e fazerem conexões com a realidade. No
entanto, para essa tese é necessário adensar as divisões propostas; é preciso insistir que as
mudanças que inequivocamente têm deixado marcas em nível geológico não se tratam
exatamente e somente de uma diferença entre lugares de nascimento, tampouco se tratam
exatamente de pessoas, como o espetáculo deixa a entender.

O professor e pesquisador estadunidense Jason Moore181 e a bióloga, filósofa feminista


estadunidense Donna Haraway vêm tecendo críticas ao termo Antropoceno, propondo outro
termo: Capitaloceno182. Moore (2016) afirma que o termo antropoceno mantém as cisões entre
social e natural, humano e natureza, cultura e natureza, por meio de uma aritmética simples:
ação humana + natureza = crise climática. Ele questiona se não poderíamos compreender os
processos históricos não apenas como produtores, mas também como produtos das
transformações nas redes da vida. Nessa perspectiva, as generalidades de humanidade e de
natureza se tornam situacionais e específicas e os processos capitalistas passam a ser
compreendidos como modos de fazer funcionar a natureza. O Capitaloceno então é não
exatamente e somente o capitalismo como sistema social e econômico, mas “o capitalismo
como um modo de organizar a natureza – uma ecologia mundial capitalista situada e
multiespecífica” (MOORE, 2016, p. 6).

Haraway (2015a) aponta para o problema de antropos; seriam todos os homo-sapiens-


sapiens? A humanidade como um todo? Ela afirma que a mudança de época diz respeito às
práticas das redes do capital global, desde as redes financeiras, às práticas de extração, à
produção e à acumulação de riqueza e sua distribuição injusta tanto entre humanos quanto
entre humanos e outras criaturas. As extinções em massa se devem à extração e à exploração
de recursos outros-que-humanos e humanos – por meio do colonialismo e do escravagismo
– para a produção de commodities. A mudança de época geológica então não foi produzida
por toda a humanidade, mas por práticas específicas que visam objetivos específicos, como
o acúmulo de riqueza, e é por esses motivos que Haraway (2016) acredita que Capitaloceno
seja um termo mais preciso que Antropoceno183, por mais que também seja limitado e fatalista.
Em contraponto a ambos e mais para desenvolver uma problematização 184 do que lançar
outro termo entre tantos já sugeridos à era geológica na qual nos situamos, Haraway propõe
Chthuluceno, em alusão a uma espécie de aranha endêmica da região da Califórnia (EUA)
denominada Pimoa cthulhu, cujo primeiro nome identificador do gênero provém da língua do

180
Apesar do termo aliendígenas ser passível de crítica.
181
Moore é professor de história e ecologia mundial na Binghamton University, e escreve sobre
história do capitalismo, história ambiental e teoria social.
182
Existem outras nomenclaturas menos conhecidas que tentam propor outros marcos para a
época em que vivemos, por exemplo: Platationoceno, que afirma a origem nos processos de
monocultura; Androsceno, Patriarcoceno, Homemtropoceno, Misantropoceno, nomenclaturas
diversas que tem em comum evidenciar o gênero masculino como causador da mudança de
época; Antropobsceno, evidencia a obscenidade da situação; Econoceno, que coloca o advento
da economia como a conhecemos como fator fundante; Tecnoceno, em que a tecnologia é
apontada como paradigma definidor; Euroceno, implica os processos coloniais na transformação
geológica do planeta.
183
Importante frisar que a pesquisadora não recusa a nomenclatura Antropoceno por já estar
amplamente difundida em meios não-especializados.
184
Não é por acaso que o nome de seu último livro no qual a autora desenvolve esses temas é
denominado Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene, Permanecendo com o
problema/a enrascada: fazendo parentesco no Chthuluceno, em português.
143

povo Goshute de Utah (EUA), e o segundo nome, o epíteto específico, advém do termo grego
ctônico, que designa quem habita o mundo subterrâneo. Haraway transforma cthulhu em
chthulu e produz uma figura complexa com múltiplas camadas: a ideia de que ninguém vive
em qualquer lugar, ninguém está em todos os lugares, nem nada está conectado a tudo, mas
tudo está conectado a alguma coisa; a noção de tentacularidade que cria rede; e “um nome
para outro lugar e outro quando que foi, ainda é, e ainda pode ser” (HARAWAY, 2016, p. 31).
Assim Chthuluceno é um termo que evidencia a tentacularidade, as interrelações entre
diferentes, a necessidade de se fazer-junto, e a respons-habilidade. Também é uma tentativa
de retirar a humanidade do protagonismo 185 (seja este heroico ou trágico), realocando-a em
uma rede de inter e intra-relações nas quais a própria humanidade se aproxima mais da noção
de humusidade – feita de húmus e composto – do que de anthropos – aquele ser apartado
que olha desde cima186.

O antropólogo francês Bruno Latour (2014) afirma que a proposição de mudança de era
geológica de Holoceno para Antropoceno além de geológica é também política, mais que isso
é a confirmação que natureza e política nunca foram, não são e numa poderão ser
dissociadas. Latour (2013) também questiona o termo Antropoceno pelos mesmos motivos de
Haraway, somando a eles a impossibilidade da generalização de um anthropos. Para Latour,
o humano contido no termo deveria ser compreendido não como uma unicidade humana, mas
como uma agência unificada, uma entidade política virtual, um conceito universal a ser dividido
em muitas pessoas diferentes com interesses contraditórios. Se há a agência Humano, há a
agência Terrano em seu contraponto. Embora sejam agências contextuais, Latour (LATOUR,
2013, p. 119) oferece uma distinção. Atores terranos são os que vivem sob o estado de
exceção exercido pelos Humanos, eles também pertencem a um território, não no sentido de
Estado-nação, tampouco de divisões geográficas tradicionais. O território aqui se acerca das
propostas de Haraway, redes emaranhadas conflituosas e contraditórias não unificadas.
Atores humanos, por outro lado, não pertencem a nenhum território, e por isso são indiferentes
às consequências de suas ações, têm orgulho do que denominam por uma racionalidade que
os guia para um futuro, mirando sempre uma ideia de progresso.

Se Latour se furta de especificar os agente Humanos e Terranos, a filósofa carioca Débora


Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2014) citam nominalmente os agentes Humanos: as
grandes companhias que emitem gases de efeito estufa187, as que produzem pesticidas,
transgênicos e praticam monocultura agrícola 188, os bancos e corporações financeiras, os
governos de alguns países 189, dentre outros agentes. Os agentes terranos incluem os povos
indígenas e as populações originárias ao redor do mundo, porém não são só estes. Em Os
Involuntários da Pátria190, Viveiros de Castro (2017) dá pistas de quens podem se somar aos
terranos, os povos e os coletivos que se recusam a se inserir na lógica de Estado-nação,

185
Donna Haraway (2016; 2015b; 2015a) insiste em deslocar o protagonismo humano tanto do
lugar de destruição como o de salvação e reitera a relacionalidade entre existentes – humanos,
outros-que-humanos, mais-que-humanos, inumanos – a partir de noções como as de sym-
poiesis (fazer-com, making-with), de respons-habilidade (respons-ability), de feitojunto-com
(madetogether-with), e a de se-tornando-com (becoming-with).
186
As discussões sobre o Chthuluceno estão mais bem desenvolvidas em alguns textos e
entrevistas de Haraway, dentre eles, a entrevista com Martha Kenney (HARAWAY, 2015b); a
entrevista no evento Os mil nomes de Gaia (HARAWAY, 2014), no artigo Anthropocene,
Capitalocene, Plantationocene, Chthulucene: Making Kin (HARAWAY, 2015a) e no livro Staying
with the Trouble (2016).
187
Viveiros de Castro e Danowski (2014, p. 135) elencam “Chevron, Exxon, BP, Shell, Saudi
Aramco, GazProm, a Statoil norueguesa, a brasileira Petrobras, as estatais de mineração de
carvão de países como a China, a Rússia, a Polônia.
188
Dentre elas: Monsanto, Dupont, Syngenta, Bayer, Cargill, Bunge, Dow, Vale, Rio Tinto, Nestle
(DANOWSKI; CASTRO, 2014, p. 136)
189
Brasil, Canadá, Rússia, Estados Unidos, Austrália, dentro outros (DANOWSKI; CASTRO,
2014, p. 136).
190
Os Involuntários da Pátria foi uma palestra proferida durante o ato Abril Indígena, no dia 20
de abril de 2016, no Rio de Janeiro. Em 2017 foi publicado pela editora Chão de giz. Durante o
evento Amazônia Centro do Mundo, a artista trans Fernanda Silva realizou a performance
homônima em que lê o texto na íntegra.
144

como o Movimento Zapatista e o do Curdistão, as pessoas camponesas, ribeirinhas,


pescadoras, caiçaras, quilombolas, sertanejas, caboclas, curibocas, negras, as pessoas
brancas que não se identificam e nem se sentem representadas pelas lógicas do capital, do
Estado-nação, do colonialismo, da branquitude; ou seja, terranos são todas aquelas e aqueles
que preferem não (MELVILLE, 2014). Também não se pode deixar de mencionar as práticas
a agenciamentos sociotécnicos terranos, como os Black Block, os guardiões de sementes, os
sistemas de transferência financeira extra-bancários, o tecnoxamanismo, às economias
descentradas de moedas comunitárias (DANOWSKI; CASTRO, 2014, p. 131)191.

Humanos e Terranos se compõem por uma miríade de agentes, de existentes, que se


encontram no meio de uma guerra que vai materializar o futuro próximo da humanidade e de
uma série de existentes outros-que-humanos, mais-que-humanos etc. Essas agências vêm
definindo a vida e a morte no planeta Terra.

Quando o Xingu se deu conta que a coisa tava feia, já era tarde. Ele achou que ninguém ia fazer
maldade com ele. Ele foi usado, por conta disso ele tá amarrado. Ele nunca imaginou que alguém
ia trair ele. Quando ele se deu conta que tavam tentando matá-lo, já foi tarde. Ele não tá morto,
ele tá pulsando, ele tá vivo. Mas quando ele viu que tavam tirando a perna dele, ele quis puxar
o braço, foi tarde. Tiraram uma mas ele tem outra, e essa ele pode usar.

Belo Monte é guerra entre compreensões de existências. Essa é uma guerra de incorporação de
um modelo único. Esse é o pior resultado da guerra, que é o etnocídio.

Não está apenas afetando o mundo físico, mas está afetando também o mundo espiritual.

Estamos vivendo isso por causa de um sistema que nem o nome eu sei. A escravidão, a corrente
em nossos pés, nosso pescoço, nossos braços. Nem com isso ele vai me impedir de viver. Esse
é o maior problema do sufoco da história, porque ele mata, mas nós volta.

Eu não vou virar um livro de história.

Belo Monte é o fim de uma era, pode ser que Belo Monte seja o fim da raça humana.

Enquanto ouvimos os testemunhos:

191
Danowski e Viveiros de Castro Viveiros de Castro (2014, p. 134–135) também listam uma
série de existentes não-humanos que tem papel importante nas transformações do clima na
terra, como vírus, bactérias, armas atômicas, gás metano, pesticidas, sementes transgênicas,
abelhas, drones, enfim, muitos e diversos são os envolvidos nesse processo, e que podem
“mudar de campo (de efeito e do função das maneiras as mais inesperadas” (DANOWSKI;
CASTRO, 2014, p. 135)
145

Figura 11: Altamira 2042

Fonte: screenshot do vídeo do espetáculo


146

Figura 12: Altamira 2042

Fonte: screenshot do vídeo do espetáculo


147

Figura 13: Altamira 2042

Fonte: screenshot do vídeo do espetáculo


148

Gabriela invoca entidades nominalmente – a cobra grande, a cobra filha, Dona


Erondina e Seu Quebra-Barragem192 –, para logo em seguida pedir que nós do público
escolhamos um lado. A guerra está posta, quem guerreará também, sem dúvida não
se trata de uma guerra entre pessoas, há outros agentes envolvidos. Resta saber se
nós, as pessoas que estão ali naquela sala da universidade, iremos nos juntar e como.

A performer para de projetar e começa a distribuir instrumentos entre o público:


chocalhos, paus de chuva, barras de ferro. Começamos a tocar os instrumentos e o
espaço é tomado por um pulso ritmado ensurdecedor. Uma atmosfera de ritual se
estabelece. Depois ela coloca no centro da sala, entres as pessoas, um pedaço
grande de asfalto, como uma pedra arredondada de asfalto com cerca de 40
centímetros de diâmetros. Em seguida começa a distribuir martelos e ponteiras. O
convite estava feito. E nós aceitamos. Enquanto algumas pessoas seguem tocando
os instrumentos, outras se sentam perto da enorme pedra de asfalto e começam a
martelá-la. Quando alguém cansava de martelar, sempre havia outra pessoa para
tomar seu lugar. Em meio a esse processo vemos projetada a imagem da hidrelétrica
sendo explodida uma e outra vez de diversos ângulos e as águas do rio escoando
livre entre os escombros. Já sabíamos o que estávamos fazendo, mas ver o efeito de
nosso ato materializado com a implosão total de Belo Monte, redobrou nossa intenção.
Algumas pessoas gritavam, outras urravam ou batiam palmas. Vi pessoas chorarem
também, de alegria em realizar algo há muito desejado. Continuamos a tocar e a
quebrar Belo Monte até que cada centímetro estivesse esfacelado.

Os tradicionais aplausos teatrais de final de espetáculo se ocorreram, se misturaram


às palmas pela destruição de Belo Monte a ponto de não serem facilmente
discerníveis. Altamira 2042 termina com a oferta de um outro possível, um
reconhecimento de que há diversas maneiras de cultivarmos nossa respons-

192
Seu Quebra-Barragem não é uma entidade local, em realidade, esse invisível apareceu no processo
de criação do espetáculo, quando Gabriela trabalhou junto à Mafalda Pequenino, artista paulistana que
atua na Grande Companhia Brasileira de Mystérios e Novidades (grupo de teatro de rua) e participa do
Bloco Afro Ilú Obá de Min que anuncia o início do carnaval paulistano com um ritual de invocação de
orixás e outras entidades de matriz afro-brasileiras. No processo as duas artistas realizaram um ritual
de ilá para evocar seus guias e orixás no qual o Seu Quebra-Barragem apareceu e, aos poucos, foram
descobrindo quem era essa entidade, como ela anda, qual é seu instrumento. Seu Quebra-Barragem
foi incorporado ao trabalho e é peça dramatúrgica fundamental, pois é ele que carrega a marreta e a
ponteira.
149

habilidade (HARAWAY, 2016), a capacidade de responder no e com o contexto onde


a vida e a morte de todos os existentes dependem da criação de laços.

Parece pouco provável que uma barragem da dimensão de Belo Monte possa ser
quebrada em mil pedaços por um grupo pequeno de pessoas em posse de martelos
e ponteiras como suas únicas ferramentas. Antes de viver essa experiência
certamente eu diria que seria algo impossível, ou melhor, essa possibilidade nem
passaria por minha cabeça. Para que tal ato impossível saia do regime dos
impossíveis e passe a figurar como mais um possível dentre tantos possíveis contidos
no regime dos possíveis (nesse caso o pleonasmo cabe), foi necessário um tipo de
construção imaginativa que só adquire existência por meio de pensamentos mágicos
ou de algumas práticas artísticas, como é o caso de Altamira 2042.

Em Altamira 2042 a tarefa de instaurar o impossível ocorre no convite de romper Belo


Monte coletivamente usando ferramentas rudimentares. Para o público se
disponibilizar a acreditar que pode romper uma hidrelétrica da dimensão de Belo
Monte e se implicar nesse ato, a artista tentou produzir um ambiente propício fazendo
uso de diferentes artifícios cênicos como a contextualização a partir de imagens e
testemunhos do que significa Belo Monte para os humano e outros-que-humanos que
ali vivem, a materialização de entidades como agentes políticos, e a instauração de
uma espécie de ritual coletivo em que algumas pessoas se ocupam da demolição da
hidrelétrica com martelos e ponteiras, enquanto outras ficam responsáveis pela
manutenção de uma atmosfera de rito por meio do uso de instrumentos percussivos
que sustentam um ritmo constante e hipnótico.

Altamira 2042 traz questões sociais, políticas e culturais sobre um lugar e uma
situação específica, a saber, a cidade de Altamira e região e os efeitos que a
construção da UHE Belo Monte trouxe para aqueles, aquelas e aquilos que ali vivem,
entrelaçando arte e vida, ficção e realidade e materializando agentes humano e
outros-que-humanos que atuam nesse contexto. Para além da denúncia, o espetáculo
convida a quem compartilha o trabalho artístico a se envolver e a se responsabilizar
por uma outra proposição de possível, uma atualização de uma possível realidade.
Tal proposta pode vir a ativar percepções e imaginações que façam emergir outros
modos de se pôr em relação a uma situação. Altamira 2042 gerou comprometimento
150

quando apresentada na cidade em que se contextualiza, mas mais do que isso,


realizou aquilo que os órgãos executivos representativos do Brasil não quiseram
evitar, atuando insistentemente em favor da construção de Belo Monte, sem
considerar as consequências socioambientais catastróficas do empreendimento.
Realizou também o que os órgãos legais não foram capazes de evitar, posto que as
diversas e inúmeras ações legais do MP ainda seguem em trâmite na justiça, sem
qualquer efeito imediato.

Altamira 2012, para além de um trabalho de arte, é uma ação política que emerge e
se faz em diálogo com as políticas da mata, em que há mais agentes do que os
humanos e onde todos esses existentes são responsáveis por lutar, resistir e se
posicionar perante o irreparável. A arte aqui assume lugar de feitiço que enfeitiça a
realidade. Belo Monte é fato consumado e parece que pouco podemos fazer a não
ser algumas pequenas reparações ao irreparável. Mas a arte não tem pacto inviolável
com os possíveis.
151

CONSIDERAÇÕES, DESDOBRAMENTOS, REVERBERAÇÕES

Da impotência ao impossível: a arte de enfeitiçar a realidade trouxe reflexões acerca


de três trabalhos de arte que se propuseram a tensionar as bordas entre possível e
impossível em contextos específicos, na tentativa de transmutar as percepções do
que pode ser considerado possível em dada situação, por quem compartilha da
experiência.

A situação dos sin-papeles na Europa e o desejo impossível enviado a mim por Ulises,
no qual pedia o fim da nacionalidade e sua operacionalidade no mundo, ofereceu
contexto para o trabalho carnet de desidentidad planetaria. Nessa ação propus a troca
de um documento legal (DNI, passaporte, carteira de habilitação) por um documento
de desidentidade, onde se lia: sem classe, sem nacionalidade, sem gênero, sem raça
e sem espécie. O trabalho tencionava ser um convite, a quem aceitasse a troca, a
habitar um espaço-tempo ainda impossível onde categorias, atributos, que nos
definem como sujeitos, estariam superados.

No capítulo Desidentidade e indiferenciação no qual discuto o carnet de desidentidad


planetaria, evidencio a fragilidade do trabalho em mover o impossível. Primeiramente,
foi preciso lembrar algo que parecia dado, mas que talvez tenha sido efetivamente
sentido nesta proposição: não há como a pessoa artista controlar os efeitos de seu
trabalho e, neste sentido, nossa ação como artistas é sempre a de uma proposição.
Naquilo que o carnet de desidentidad propunha, algumas fragilidades se
apresentaram pois aceitar a troca de uma identidade institucional pelo carnet de
desidentidad, não implica, necessariamente, na disposição em habitar uma
despossessão de predicados de definição, tão pouco implica a transformação da
autopercepção. A proposição artística envolvia a troca de documentos: um
instrumento legal por outro não reconhecido legalmente. Este segundo suprimia, em
sua descrição, qualquer identificação pela via negativa, mantendo, contudo, as
categorias oficiais. Neste sentido, mesmo acionando o questionamento acerca da
atribuição e da cristalização de identidades institucionalizadas, predominantemente
atribuídas pela racionalidade ocidental e seus parâmetros categoriais, a troca de
documentos mais acionava a percepção sobre a legalidade dos mesmos e a
152

institucionalização de determinadas categorias, do que propriamente sobre a


transformação da identidade da pessoa que trocava ou não seu documento.

A fragilidade da proposta não deixou de oferecer pistas dos modos de como acionar
o impossível em uma proposição artística. O carnet de desidentidad planetaria me fez
perceber que para transmutar a percepção do impossível em possível é necessário
que a ação artística promova um campo de implicação com quem compartilha o
trabalho, ou seja, é necessário que o trabalho comprometa o público a tomar uma
posição perante uma situação dada.

O segundo trabalho abordado no capítulo Podría no haber ni sujeto ni objeto é hacia,


uma instalação coreográfica que tenta produzir um contexto que fomenta a relação
entre dois existentes de naturezas diversas: uma pedra e uma pessoa. Para instaurar
um ambiente propício à relação, hacia faz uso de artifícios que se inscrevem na lógica
da arte contemporânea somados a procedimentos inscritos em práticas mágicas,
como a ideia de textualidade como feitiço, o uso de frequências que estimulam
estados de atenção particulares e a guiança para direcionar a experiência.

O trabalho parte da ideia do perspectivismo ameríndio de que todos os existentes são


pessoas, isto é, são entidades complexas agentivas, detentoras das mesmas
capacidades perceptivas e cognitivas (VIVEIROS DE CASTRO, 2015). Parte também
da concepção ameríndia de que conhecer é subjetivar, reconhecer a intencionalidade
do existente com o qual se está em relação. hacia busca ativar um certo tipo de aliança
afetiva entre pessoa e pedra, um modo de fazer parentesco com o diferente.

hacia também pretende atuar na micropolítica, na política dos afetos, aquela na qual
se instaura uma implicação mútua e genérica entre existentes de diferentes naturezas,
para que juntos respondam ao contexto do viver e morrer no mundo com
responsabilidade e respons-habilidade. Nesse sentido, a micropolítica é o modo de
considerar os afetos, as emoções e as percepções politicamente; é ela que nos
possibilita atualizar nossas visões de mundo e nossas lógicas de relação para que se
torne possível nos realocarmos de maneira a recompor o que se desfez, imaginar
outros possíveis e inventar o que ainda não existe. Se à pessoa artista não cabe
prever os efeitos de uma ação artística, cabe a ela assumir seu lugar como
153

provocadora de um entre tantos possíveis. A quem faz arte cabe tentar instaurar um
campo propício para fomentar certo tipo de experiência, o salto perceptivo quem dá é
quem se dispõe a se relacionar com a obra, no caso de hacia, é quem se dispõe a se
abrir para a relação com a pedra.

O capítulo Como quebrar barragens reflete sobre minha ida a Altamira (PA) para o
evento Amazônia Centro do Mundo onde tive a oportunidade de assistir a Altamira
2042, um espetáculo de Gabriela Carneiro da Cunha criado a partir de algumas
incursões que a artista fez na região, onde se ergueu a maior hidrelétrica brasileira no
leito do rio Xingu, a UHE Belo Monte. O trabalho trata dos efeitos que a construção de
Belo Monte causou na região, mas não se restringe a eles. Ao longo de Altamira 2042
diferentes sujeitos são apresentados, desde pessoas como Raimunda da Silva, até
sujeitos que não são considerados sujeitos pelo pensamento ocidental hegemônico,
como a Cobra Grande, o rio Xingu e entidades de religiões brasileiras e afro-
brasileiras. Altamira 2042 ressoa o que pude perceber nos poucos dias em que estive
na cidade, ali os agentes políticos não se restringem a humanos, mas a uma miríade
de existentes.

O espetáculo composto por falas de diferentes pessoas da região e por imagens


locais, constrói, aos poucos, o universo que povoa e atua na Amazônia. A construção
desse campo culmina com o convite de quebrarmos Belo Monte com marretas e
pregos. O impossível se atualiza como possível e informa nossa percepção e
imaginação de que os impossíveis são somente um regime de existência que ainda
não tem corpo, mas que pode vir a ter.

Nas práticas artísticas discutidas nessa tese, carnet de desidentidad planetaria, hacia
e Altamira 2042, a transformação do impossível em possível parte primeiramente do
pacto de ficção entre artista e público. Mas tal acordo não é suficiente, é, contudo,
base e condição sine qua non. Outro aspecto seria a pessoa artista se disponibilizar
a imaginar e pôr em marcha uma outra possibilidade de configuração da realidade, ou
um outro modo de perceber a realidade. Embora possuam naturezas e propósitos
distintos, esta é a zona em que pensamento mágico e práticas artísticas coincidem,
ou melhor, é a zona de co-incidência entre práticas mágicas e práticas artísticas.
154

O fazer mágico, como diz Starhawk (2020), é definido por uma série de procedimentos
para a ativação de um estado de consciência cuidadoso, preciso e imaginativo cuja
intenção é influenciar e reconfigurar certo contexto, isto é, é um certo tipo de produção
imaginativa de outros possíveis para que estes saiam do campo da virtualidade e se
intensifiquem no real. As práticas artísticas sobre as quais me referi neste trabalho,
por outro lado, atuam na construção de um espaço-tempo singular que pode vir a
suspender provisoriamente a percepção do que se considera possível em dado
contexto, ou seja, elas agem no campo do sensível, do perceptível e da imaginação.
A incidência da arte está na percepção da pessoa que compartilha a experiência – o
público –, não sendo assim uma ação direta de ruptura ou de transformação de certas
realidades ou de uma situação específica. Desse modo, cabe à pessoa artista que se
dispõe a dar a ver o impossível investir em procedimentos, artifícios e estratégias para
que o impossível se instaure e seja percebido como possível. Neste caso é preciso
sempre considerar que se trata de uma tentativa que pode ou não se efetivar, pois à
pessoa artista não cabe garantir um acontecimento desse porte, cabe a ela seguir
tentando, criando modos de ativar outros possíveis. Isso envolve não qualificar as
pessoas do público apenas como pessoas que observam e fruem esteticamente, sem
necessariamente tomar posição. Ao contrário, a experiência artística que almeja o
impossível deveria se propor a instigar pessoas a se implicarem e se
responsabilizarem com o que o trabalho está a mobilizar193.

A experiência do impossível nos trabalhos hacia e Altamira 2042 põe em marcha


práticas de cooperação e de implicação. Se na arte, mover o impossível, significa criar
campo para o comprometimento e a corresponsabilidade, mover o impossível na vida
também não pode ser diferente. Há de se reconhecer a interdependência e a
reciprocidade como sendo as próprias condições da vida – seja humana, outra-que-
humana, mais-que-humana – e atuar a partir dessas condições. Como diz Haraway
(2016) o único modo de vivermos e morrermos bem no antropoceno/capitaloceno é
se fizermos parentesco ou, como diz Krenak (KRENAK; CESARINO, 2016), se
fizermos alianças afetivas.

193
Questões acerca das políticas do sensível são amplamente discutidas pelo filósofo francês Jacques
Rancière, principalmente em seu livro O espectador emancipado (2012).
155

Dentre tantas funções poéticas, sensíveis, críticas, éticas e políticas da arte, não
podemos esquecer de sua potência em criar outros possíveis, em dar a ver que o que
vivemos é apenas um possível dentre tantos. Não podemos esquecer de sua potência
em mobilizar imaginações que incidem na percepção da realidade. Não podemos
esquecer que elas podem mover outros mundos possíveis, mais justos, mais
simétricos, mais equânimes.

desdobramentos

Figura 14: ocupação mágica (eu [Paloma Bianchi] e Diana Gilardenghi, Florianópolis, 2020)

Fonte: acervo pessoal

Antes de continuar a leitura, peço que assista esse vídeo:

ocupação mágica
156

ocupação mágica é um trabalho realizado por mim, Diana Gilardenghi e Hedra


Rockenbach em meados de 2020, durante a pandemia de Covid-19 que desde janeiro
de 2020 vem transformando o viver e morrer no planeta. O vídeo acima é a primeira
de uma série de quatro experiências que interpelam o fazer artístico, o isolamento e
o encontro nesse período que se estende até o momento em que escrevo estas
palavras.

Como dançar juntas sem nos encontrarmos? Como a arte pode incidir sobre o
contexto para revelar outro possível? Essas eram algumas das questões que abriram
campo para indagarmos sobre nossa condição de vida em isolamento. Não
desejávamos transpor o fazer em dança a outra mídia, ignorando a realidade que nos
atravessa; para nós não fazia – e não faz – sentido dançar fora do contexto.

Em algumas passagens desses escritos mencionei que o impossível é contextual:


algo pode se mostrar impossível ou não, dependendo do que e de quem está em
relação. Com a pandemia de Covid-19, ações e situações corriqueiras como se
encontrar para ensaiar/dançar/socializar se tornaram impraticáveis, ao menos para a
parcela das pessoas que se comprometeu com a manutenção da vida e com aquilo
que lhe era possível fazer para evitar os processos de contaminação. Na pandemia,
muitas ações cotidianas nos foram interditadas, e o que era comum, se torna
impossível. Neste contexto, sair de casa para ensaiar, base de qualquer trabalho em
dança, precisava ser evitado. Como continuar dançando juntas sem comprometer a
vida?

A partir da provocação de como estar junto mesmo quando não se pode encontrar,
Diana, Hedra e eu começamos a ensaiar utilizando as câmeras de nossos celulares,
um aplicativo de conferência remota (Zoom) e um software gratuito de streaming e de
edição em tempo real (OBS). Com essas ferramentas tecnológicas, dois ambientes
distintos e distantes coincidem e se sobrepõem para criar um terceiro espaço, que
ganha existência apenas na virtualidade.

Fomos investigando maneiras de nossas casas comporem uma terceira casa – nem
a minha, nem a de Diana –, e desde aí fomos re-conhecendo esse espaço de móveis,
objetos, perspectivas e dimensões imateriais e diversas. Habitar essa casa
157

transformada, perceber a presença de um segundo corpo sem de fato enxergá-lo, se


relacionar com os invisíveis inscritos virtualmente, coincidir no que não existe como
matéria, demandou de nós o exercício da imaginação, da invenção e da adivinhação.
Percebemos que a dança que o contexto exigia não era a virtuosa, tampouco a que
explora o espaço de maneiras não-cotidianas, onde cadeiras, mesas, sofás são
superfícies a serem experimentadas de modos inusitados. Ao contrário, o contexto
demandava uma atenção aos encontros e desencontros, às presenças e ausências,
ao jogo entre realidade e invenção. A dança se dá nos olhares que se cruzam sem se
ver, no contato sem tato, nas esperas de uma outra pessoa que está em ausência.

Em nenhum momento conversamos ou intencionamos produzir sentidos expressos


nas ações, fomos criando uma coreografia a partir dos trânsitos por nossas casas em
busca de encontros. Era a possibilidade de dançarmos juntas, de nos encontrarmos,
de agirmos, de construirmos algo, mais do que sentido, havia uma provocação. Ao ver
o vídeo, ocupação mágica, não pude deixar de pensar na melancolia instaurada pelo
contexto pandêmico, especificamente na angústia de viver a pandemia em um país
governado por pessoas que, de forma criminosa, fingem desconsideram a potência
de transmissão e letalidade do vírus. Um vírus que mata ainda mais os seres que
vivem a extrema desigualdade e a exploração de um país como o Brasil.

Figura 15: ocupação mágica (02) (eu [Paloma Bianchi] e Diana Gilardenghi, Florianópolis, 2020)

Fonte: acervo pessoal


158

Figura 16: ocupação mágica (01) (eu [Paloma Bianchi] e Diana Gilardenghi, Florianópolis, 2020)

Fonte: acervo pessoal

Figura 17: ocupação mágica (03) (eu [Paloma Bianchi] e Diana Gilardenghi, Florianópolis, 2020)

Fonte: acervo pessoal


159

Os outros três vídeos ocupação mágica (01), (02) e (03), foram produzidos em
decorrência do primeiro, dialogando com ele e tentando perceber como poderíamos
excedê-lo a partir de outras perspectivas194. Em ocupação mágica (02)
experimentamos criar um terceiro espaço a partir da sobreposição dos quintais de
nossas casas, onde tentamos conviver e inter-agir entre janelas, cadeiras e
gramados195. A multiplicação de imagens tem relação direta com a tentativa de
intensificar nossas presenças para criar uma dança com menos melancolia e mais
humor, buscando assim contrapor a primeira ocupação mágica. Em ocupação mágica
(01) quisemos experimentar as co-incidências que poderiam emergir a partir da
sobreposição de nossos rostos, por vezes criando um terceiro rosto inexiste, por
outras criando imagens surreais e sobre-humanas196. Por fim, em ocupação mágica
(03)197 usa da mesma estratégia de foco no rosto, mas de modo diferente. Enquanto
alguém está com seu rosto em foco, outra pessoa transita por seu jardim encontrando
maneiras de incidir na imagem de maneira que o rosto deixa de ser humano por
completo, pois se torna também vegetação. Nessa ocupação mágica, corpo e
ambiente são emaranhados e se hibridizam: corpo é planta, flor é rosto, tronco é
membro. Humano e natureza deixam de ser categorias autônomas e independentes
para se tornar um outro que não existe.

Os trabalhos de ocupação mágica são quatro estabilizações de uma pesquisa em


andamento. A busca pelo encontro em um momento no qual corpos não devem se
tocar provocou possibilidades de co-incidências que excederam a própria tentativa do
encontro. As impossibilidades cotidianas se desdobraram em imaginações do que não
têm existência no plano de realidade, mas que irrompem como outras materialidades
possíveis. Quando duas existências co-incidem, uma outra realidade se revela
possível. Em tempos de isolamento físico, ocupação mágica é a invenção de um outro
possível e um convite à percepção de quem assiste.

194
Esses outros três vídeos foram criados concomitantemente, cada dia de ensaio trabalhávamos com
ao menos duas proposições diferentes, então não houve de fato uma ordem sequencial. A numeração
dos vídeos no canal do YouTube se deve a necessidade de nomeá-los para o edital emergencial
#SCulturaemsuacasa, do Governo do Estado de Santa Catarina, que viabilizou a investigação.
195
O vídeo pode ser visto no link: https://youtu.be/tkCjEoM3-RE
196
O vídeo pode ser visto no link: https://youtu.be/1qbacGP66SM
197
Para ver o vídeo acesse esse o link: https://youtu.be/ed0wb9rIxvg
160

Reverberações

Essa tese trata de proposições que se esforçam em fazer o impossível a partir de


práticas artísticas na tentativa de tencionar e alargar a percepção do que pode ser
considerado possível em contextos específicos. Como artista usei os artifícios da arte
para ativar impossíveis. Como pesquisadora refleti sobre o meu trabalho e o de outra
artista, Gabriela Carneiro da Cunha, no qual também percebo o mesmo tipo de
mobilização. Não obstante, tentar fazer o impossível possível não se circunscreve ao
universo da arte, pois esta é uma tarefa que atravessa a vida. A tentativa de fazer o
impossível possível acompanhou o meu estar no mundo nesses quase cinco anos de
pesquisa e se atualizou em ações enquanto escrevia essa tese.

Quando levada à realidade em que vivemos, a mobilização de impossíveis adquiriu


outra dimensão, que talvez possa parecer menos ousada do que as artísticas. Há de
se convir que quebrar uma hidrelétrica com ferramentas simplórias ou compreender
qualquer existente como sujeito são feitos grandiosos (ao menos na minha percepção
dos possíveis). Mas no campo do impossível também figuram atos com dimensões
diversas com efeitos palpáveis na realidade. São sonhos que se organizam a partir de
situações muito concretas, nas quais as urgências por mudanças se impõem e exigem
que sejam movidas.

Dentre tantos desejos impossíveis que recebi de amigas e amigos em 2018, um quase
se efetivou: eleja-se num cargo político tendo a arte como bandeira de campanha.
Recebi esse desejo de Fátima Costa de Lima, professora da Universidade do Estado
de Santa Catarina e membro da banca avaliadora dessa tese. A tentativa de fazer
este impossível possível foi de Elaine Sallas, mulher lésbica, negra, umbandista,
comunista e periférica, atuante nos movimentos sociais pelos direitos das mulheres,
do povo preto, da população LGBTQIA+, das trabalhadoras e trabalhadores da cultura
e da população de rua na cidade de Florianópolis. Elaine Sallas se candidatou à
vereadora nas eleições de 2020 com uma campanha criada e gerida coletivamente e
de recursos escassos que reuniu mais de 30 pessoas trabalhando voluntariamente
por pautas da cultura, da educação, da justiça social e do direito à cidade. Com este
impossível, que não era apenas de Elaine Sallas, eu me comprometi. Todas nós nos
dispusemos a intervir no processo político eleitoral a partir de uma proposta desviante
161

da hegemonia da política representativa brasileira, composta majoritariamente por


homens brancos heteronormativos que defendem os direitos de uma pequena parcela
da população, aquela que deseja manter seus privilégios de classe e vê a ilha de
Santa Catarina como um território a ser explorado e vendido.

Cada pessoa envolvida na campanha ofereceu o que tinha de melhor para eleger
alguém que de fato representasse aquelas pessoas historicamente esquecidas pelo
fazer político local. Cada pessoa envolvida na campanha fez o que antes não sabia
fazer e fez o que não sabia que sabia saber fazer. Criamos redes, construímos
alianças afetivas, e acreditamos que aquela mulher, com todas as pessoas que com
ela se apresentavam, poderia se eleger, e por pouco, não a elegemos. Faltaram
poucos votos para que o desejo impossível de Fátima se efetivasse como possível.
Aliás, Fátima também estava junto potencializando a rede coletiva que incidiu na
política representativa local. O fato de o feito não ter se concretizado na realidade não
diminui seu efeito na imaginação política daquelas e daqueles que ousaram sonhar
que outra política representativa é possível. Ao contrário, saímos com a certeza de
que a transformação está logo ali, depende da tomada de posição, do engajamento e
da responsabilidade.

Para além de meu fazer em arte e de minha pesquisa acadêmica, a aproximação dos
pensamentos indígenas também transformou meu ativismo. Desde o início de 2019
atuo junto a um grupo de pessoas de diferentes países como tradutora de inglês e
espanhol para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)198. O grupo de
tradução oportuniza que a luta indígena se torne conhecida a pessoas que não falam
português. No início de 2020, a artista russa da dança Dasha Lavrennikova 199, que
conheci durante o intercambio em Madrid, ingressou no grupo. Começamos a
conversar e a pensar maneiras de ampliar a divulgação das lutas indígenas. A APIB
concentra-se principalmente na divulgação de notícias e acontecimentos, e nós
sentíamos falta de difundir os pensamentos e as cosmovisões que fundamentam as

198
Criada durante o Acampamento Terra Livre (ATL) de 2005, a Apib é uma organização nacional
indígena com representatividade em todos os estados brasileiro cujo trabalho é dar visibilidade à
situação dos direitos indígenas e representar as demandas dos povos perante as instâncias públicas.
Para mais informações acesse: https://apiboficial.org/
199
Dasha Lavrennikova morou no Rio de Janeiro por quatro anos onde realizou sua pesquisa de
doutorado e entrou em contato com as lutas e as cosmovisões indígenas.
162

lutas indígenas. Acreditamos que tais pensamentos são imprescindíveis para a


compreensão da própria luta, e entendemos que os saberes indígenas são
indispensáveis no enfrentamento do antropoceno/capitaloceno.

A nós se juntaram as jornalistas Camila Rossi e Katherine Rothschild que atuam na


ONG Amazon Watch 200 e começamos a traçar planos de tradução e difusão. Desde
maio de 2020 traduzimos para inglês e espanhol duas entrevistas de Ailton Krenak201
e outros seis artigos de pessoas indígenas202 nos quais abordam a situação da
pandemia nas aldeias e a compreensão do que representa a pandemia a partir de
suas cosmovisões. À tradução somaram-se ainda Maria Tamarit203 e Diana
Gilardenghi204. Camila e Katherine se ocupam principalmente de difundir as traduções
em sites de luta indígena e de defesa do meio ambiente.

Na ação de traduzir e difundir os pensamentos das pessoas indígenas do Brasil às


pessoas que não falam português subjaz um desejo impossível desse grupo de
mulheres brancas ocidentais. Para além do amplamente conhecido e difundido
pensamento ocidental dominante, formamos nossa rede para mediar o acesso a
narrativas não-ocidentais, a outras perspectivas e outras visões de mundo. Também
parte da tentativa de viabilizar a inclusão e a simetria entre saberes de ordens
diferentes. Além disso, tem por objetivo combater o utilitarismo autocentrado de como
é considerada a Amazônia, e comunicar, principalmente à Europa, que há pessoas
que vivem na e com a floresta. Nos países do norte, a Amazônia muitas vezes é vista
como um local cuja preservação é imprescindível para evitar o aquecimento global,
mas pouco se fala de seus povos, os maiores responsáveis pela manutenção e a

200
Amazon Watch é uma organização sem fins lucrativos fundada em 1996 para proteger a floresta
tropical e apoiar os direitos dos povos indígenas na Amazônica. A ONG trabalha em parceria com
organizações indígenas e ambientais.
201
Krenak liberou seus textos para tradução. O primeiro é uma entrevista dada ao jornal Estado de
Minas, no qual Krenak faz uma análise do início da pandemia no mundo (disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2020/04/03/interna_pensar,1135082/funcionamento-da-
humanidade-entrou-em-crise-opina-ailton-krenak.shtml, acesso em 21/12/2020), o segundo é a
conversa entre Krenak e Pedro Cesarino na Bienal de 2016, já citada nessa tese.
202
Esses artigos é uma iniciativa do Grupo de Estudos da Amazônia Indígena da Universidade Federal
do Amazonas, os textos se encontram nos seguintes links: https://neai.ufam.edu.br/mapa-da-
pandemia-local/94-reflexoes-ameri.html; https://neai.ufam.edu.br/mapa-da-pandemia-local.html.
Acesso em 21/12/2020.
203
Artista espanhola da dança que foi minha colega no Máster.
204
Artista argentina da dança que vive na ilha Santa Catarina desde os anos 1990 e amiga de longa
dada com quem divido praticamente todos os trabalhos que fiz desde que cheguei à Florianópolis.,
163

ampliação da biodiversidade amazônica, do cultivo de plantas, do enriquecimento do


solo e do manejo de árvore que datam de ao menos 9 mil anos. As traduções e a
divulgação dos escritos de pessoas indígenas parte acima de tudo da vontade de
atuarmos como mediadoras para a descolonização do pensamento.

Além do trabalho no grupo de tradução, tenho contribuído com as mulheres da


Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (COICA), realizando
traduções simultâneas em suas reuniões205, e colaborando com a jornalista sueca
Ulrike McCullough que atua na área de ecologia e política e está produzindo um
documentário sobre como as práticas dos povos tradicionais podem ajudar frear o
aquecimento global. Nunca me considerei tradutora mesmo que vez ou outra me
atreva a atuar como tal, mas foi essa habilidade que me possibilitou criar alianças com
as lutas indígenas e poder responder ao contexto do viver e morrer nesse planeta
mesmo no período de isolamento físico. Nesse sentido, esses trabalhos paralelos são
fruto de práticas artísticas e acadêmicas, e se somam a elas sem qualquer hierarquia.
Pensar e mobilizar o impossível na arte produziu outros possíveis na minha atuação
na vida. Imaginar outras lógicas de mundo por meio da arte expandiu meu modo de
fazer mundo e me tornar responsável por ele.

Considerações

Os últimos parágrafos de uma tese deveriam tratar dos possíveis desenvolvimentos


da pesquisa. Acredito já ter indicado desdobramentos ao longo de todo texto a partir
dos meus questionamentos, minhas dúvidas e descobertas. Como consideração que
encerra minha investigação gostaria de insistir que essa tese, mais do que uma
pesquisa sobre ou de arte, é um trabalho sobre a vida, sobre me deixar ser
impregnada e questionada por outras formas de pensar, outros modos de ver o mundo
e de ver os outros existentes do mundo, e tentar fazer com que isso se realize em ato,
que no meu caso se dá na prática artística e reverbera em outros campos de atuação.
Espero que minhas reflexões reverberem em outros fazeres e que juntas, juntes e
juntos possamos refazer mundo.

205
Essas reuniões visam instaurar uma escola remota direcionada para o fortalecimento das ações das
mulheres ia luta pelos direitos indígenas, a partir de uma visão feminista. A COICA é uma organização
indígena internacional criada no Peru em 1984 que trabalha na promoção e na proteção dos povos e
territórios indígenas por meio da defesa de seus modos de vida, princípios e valores sociais, espirituais
e culturais. Para mais informações sobre a COICA, acesse: https://coica.org.ec/
164

Com uma reflexão sobre a possibilidade do encontro entre mundos diferentes de


Ailton Krenak (2019, n.p.)206, concluo com o mesmo desejo de encontro:

Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a


oportunidade de manter animem a nossa prática, a nossa ação, e nos deem
coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso
com a vida, em qualquer lugar, superando as nossas incapacidades de
estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e
onde vivemos, assim como às formas de sociabilidade e de organização de
que uma grande parte dessa comunidade humana está excluída, que em
última instância gastam toda a força da Terra para suprir a sua demanda de
mercadorias, segurança e consumo.

206
Essa fala foi proferida em Lisboa em 2017 durante o ciclo Questões indígenas – Ecologia, Terra e
Saberes Ameríndios, integrado na programação Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-Americana
da Cultura 2017. Posteriormente a palestra foi publicada em Ideias para adiar o fim do mundo, em
2019.
165

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176

APÊNDICE: A KARARAÔ207 DE BELO MONTE

Belo Monte é uma aberração, não há palavra mais justa para a hidrelétrica construída
na volta grande do Rio Xingu, a cerca de 40km da cidade de Altamira. As primeiras
medições na região datam da época da ditadura nos anos 1970 quando a Camargo
Corrêa elaborou um projeto para instalar 5 usinas hidrelétricas na bacia do Xingu. Os
embates entre governo e população local – indígenas, ribeirinhos, pequenos
agricultores – começaram ali, em plena ditadura militar e seguiram até os dias de hoje.
Durante o governo transicional de José Sarney208 [1985-1990], o projeto de
construção de hidrelétricas na Amazônia ganhou força, estavam projetadas 40 delas
apenas na região amazônica e cerca de 160 em todo o Brasil (FAINGUELERNT,
2016). A geógrafa e estudiosa da região do Xingu Maíra Fainguelernt (2016) comenta
que em 1988 o Relatório Final de Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia
Hidrográfica do Xingu foi aprovado pelo Departamento Nacional de Águas e Energia
Elétrica (DNAEE) no exato mesmo ano da promulgação da nova Constituição Federal.
À época, a nova Constituição foi um marco para os direitos dos povos indígenas 209.

207
Kararaô significa guerra em Jê, língua dos Kayapó. Foi o primeiro nome dado a usina que hoje se
chama Belo Monte. Ainda nos anos 1980, na primeira reunião da Xingu Vivo em Altamira, os povos
indígenas da região exigiram a mudança do nome da usina. Desde então ela foi denominada Belo
Monte. Belo Monte poderia se transformar em um léxico amazonês, deveria ser sinônimo de guerra, de
morte ou de devastação.
208
Apesar de não ter sido eleito por voto direto, o governo José Sarney foi o primeiro governo civil
depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Sarney era vice de Tancredo Neves, morto antes de
assumir seu mandato.
209
Na época da elaboração da Constituinte Ailton Krenak discursou em plenário no dia 4 de setembro
de 1987. Enquanto falava, pintava seu rosto com jenipapo, ao final do discurso diz: “O povo indígena
tem um jeito de pensar, um jeito de viver, condições fundamentais pra sua existência e pra
manifestação de sua tradição da sua vida, da sua cultura, que não coloca em risco e nunca colocaram
a existência sequer dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas, quanto mais de outros seres
humanos. E hoje nós somos alvo de uma agressão que pretende atingir na essência da nossa fé, da
nossa confiança de que ainda existe dignidade, de que ainda é possível construir uma sociedade que
sabe respeitar os mais fracos, que sabe respeitar aqueles que não tem o dinheiro pra manter uma
campanha incessante de difamação. Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em
esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como um povo que é inimigo dos interesses
do Brasil, inimigo dos interesses da nação, e que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo
indígena tem regado com sangue cada hectare dos 8 milhões de quilômetros do Brasil. V. Ex. São
testemunhas disso.” (KRENAK, 2015, p. 34–35). O filme Índio, Cidadão? (SIQUEIRA, 2013) documenta
a luta dos indígenas pelos seus direitos apresentando dois momentos importantes: a campanha dos
povos indígenas à época da Constituinte e as manifestações de 2013, cujo foco principal era a
revogação do Novo Código Florestal aprovado pelo Congresso Nacional e contra a Emenda
Constitucional 215, que outorga ao Congresso a demarcação de TIs (para mais informações sobre a
ocupação de 2013, ver o artigo A ocupação do Congresso: contra o quê lutam os índios? de Artionka
Capiberibe e de Oiara Bonilla (2015)). O documentário está disponível na íntegra no seguinte link do
site da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/tv/432678-indio-cidadao/, nele há a
gravação do discurso de Krenak supracitado.
177

Sob o Capítulo VII – Dos Índios do Título VIII – Da Ordem Social da Constituição
Federal (BRASIL, 1988), lê-se o artigo 231:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas
em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.
2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios
e dos lagos nelas existentes.
3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas
só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas
as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei.
4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os
direitos sobre elas, imprescritíveis.
5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad
referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que
ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após
deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o
retorno imediato logo que cesse o risco.
6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham
por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este
artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o
que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às
benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

Os recém legalizados territórios indígenas resguardaram provisoriamente a Amazônia


e evitaram a construção de hidroelétricas na região, mas não conseguiram evitar do
projeto seguir em desenvolvimento e se adaptar às novas leis federais, apesar das
diversas manifestações e protestos de indígenas, ambientalistas e pesquisadores. Os
anos 1990 foram marcados pelos luta dos movimentos socioambientais e pela
remodelação do projeto para tentar adaptá-lo às exigências ambientais e sociais. Um
dos momentos mais importantes da época foi o 1º Encontro dos Povos Indígenas do
Xingu210, realizado em fevereiro de 1989 em Altamira, com objetivo de denunciar o
governo por desconsiderar a posição dos indígenas em relação às decisões tomadas

210
A notoriedade do encontro se deve à inesperada reação de Tuíra Kayapó, a indígena encostou um
facão no rosto do então presidente da Eletronorte José Antonio Muniz Lopes, demonstrando a raiva e
a indignação de seu povo em reação à construção de hidrelétricas no rio Xingu.
178

sobre o território amazônico, especialmente a construção do Complexo Hidrelétrico


do Xingu.

No final do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), no início dos anos 2000,
a Eletrobrás e a Eletronorte elaboram os estudos de viabilidade técnica, econômica e
ambiental para o licenciamento de Belo Monte. O Ministério Público Federal (MPF)
investigou a situação e encontrou diversas irregularidades, culminando na primeira
ação civil pública contra o projeto, que levou a paralização total do projeto. O governo
federal tentou recorrer da decisão negativa à construção primeiro no âmbito regional
depois no federal. Recorreu uma terceira vez ao Supremo Tribunal Federal, mas este
declarou que o projeto era inconstitucional pois seria necessário a aceitação por parte
das populações afetadas e a autorização do Congresso Nacional.

Quem conseguiu fazer Belo Monte foi o Partido dos Trabalhadores sob o governo de
Luiz Inácio Lula da Silva [2003-2011] e de Dilma Rousseff [2011-2016], por meio do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Fainguelernt (2016) comenta que o
programa político do primeiro mandato de Lula em relação a Amazônia previa a
preservação e o respeito ao meio ambiente e aos povos, mas a crise energética, os
apagões recorrentes devido a insuficiência hídrica dos reservatórios brasileiros,
somados à deficiência na transmissão da energia, fizeram o governo repensar a
sustentabilidade energética do país. O Ministério de Minas e Energia, sob o comando
de Dilma Rousseff, elaborou um plano de emergência que incluía a construção de 15
hidrelétricas, Belo Monte era uma delas. Em 2005 Dilma informa ao Ministério do Meio
Ambiente e à Funai que Belo Monte é prioridade do governo. A destruição de uma
parte da Amazônia e seus habitantes foi justificada pelo potencial hidrelétrico dos rios
amazônicos211 e pelo desenvolvimento econômico brasileiro.

211
O plano de desenvolvimento se remete ao final da segunda guerra mundial, quando começou a se
pensar sobre a função dos países tidos como de terceiro mundo frente ao cenário econômico mundial.
Instituições financeiras, a saber, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), surgem para
acelerar um outro modo de acumulação de capital em escala planetária, que tem por base criar
investimentos de infraestrutura nos países tidos como de terceiro mundo, com vistas de intensificar a
expansão da produção industrial. Desde meados do século passado, esses países vêm recebendo
investimentos a fim de dar continuidade ao projeto desenvolvimentista. No Brasil, esse processo se
consolidou por meio da exploração de minério principalmente na região amazônica. Aos rios
amazônicos foi atribuída a exploração de energia, através da construção de hidrelétricas. Ao todo são
26 usinas hidrelétricas projetadas na região (BERMANN, 2012).
179

No mesmo ano, o Congresso lança mão de um decreto Legislativo e libera a


Eletrobrás e as empreiteiras Andrade Gutierrez, Camargo Correa e Norberto
Odebrech a seguirem os estudos técnicos (AGÊNCIA SENADO, 2010) do projeto de
Belo Monte. Logo em seguida o Senado aprova o decreto. Com a redução da área de
inundação prevista de 1200 km2 para 526 km2, evitando as TIs já demarcadas, o
projeto usa de um artificio para driblar os parágrafos 3º e 5º do Artigo 231 da
Constituição Federal (supracitados) e se livrar das consultas livres, prévias e
informadas dos povos indígenas garantida pela Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário (BERMANN, 2012). O
Ministério Público Federal entra com outras ações civis públicas contra o projeto, que
incluíam a falta do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e a contratação sem licitação
das empreiteiras Andrade Gutierrez, Camargo Correa e Norberto Odebrecht, pela
Eletrobrás. Entre os anos 2006 e 2007 foram muitas idas e vindas legais, ora liberando
o EIA, ora proibindo-o, entre o final de 2007 e o início de 2008, o Ibama envia o Termo
de Referência para os Estudos Socioambientais do Componente Indígena referentes
a diversas TIs.

Em resposta a progressão rápida do projeto nas instâncias governamentais, em 2008


ocorreu o Encontro Xingu Vivo para Sempre, congregando movimentos sociais,
pesquisadores, ambientalistas, populações atingidas, povos indígenas e
organizações da sociedade civil, quase vinte anos depois do Primeiro Encontro de
Povos Indígenas em Altamira. O governo federal foi convidado a participar, mas
ninguém foi. Desse encontro criou-se o Movimento Xingu Vivo para Sempre212, uma
das organizações mais atuantes até hoje na defesa dos povos e do meio ambiente da
região do Xingu. Após o evento, o Movimento divulga a Carta Xingu Vivo para Sempre,
na qual se avalia as ameaças ao rio, e se apresenta um outro projeto de
desenvolvimento, exigindo sua implementação pelas autoridades governamentais. Os
pontos das cartas são (XINGU VIVO, 2015):

1 A criação de um fórum de articulação dos povos da bacia que permita uma


conversa permanente sobre o futuro do rio e que possa caminhar para a
criação de um Comitê de Gestão de Bacia do Xingu;
2 A consolidação e proteção efetiva das Unidades de Conservação e Terras
Indígenas bem como o ordenamento fundiário de todas as terras públicas da
região da Bacia do Xingu.

212
O Movimento Xingu Vivo Para Sempre foi um nome dado pelos indígenas durante o evento.
180

3. A imediata criação da Reserva Extrativista do Médio Xingu.


4. A imediata demarcação da TI Cachoeira Seca, com o assentamento digno
dos ocupantes não indígenas, bem como a retiradas dos invasores da TI
Parakanã.
5. A implementação de medidas que efetivamente acabem com o
desmatamento, com a retirada de madeira ilegal e com a grilagem de terras.
6. O incremento de políticas públicas que incentivem o extrativismo e a
consolidação da agricultura familiar feita em bases agroecológicas e que
valorizem e estimulem a comercialização dos produtos da floresta.
7. Efetivação de políticas públicas capazes de promover a melhoria e
instalação de sistemas de tratamento de água e esgoto nos municípios.
8. O incremento de políticas públicas que atendam as demandas de saúde,
educação, transporte, segurança, adequadas às nossas realidades.
9. Desenvolvimento de políticas públicas que ampliem e democratizem os
meios de comunicação social.
10. O incremento de políticas públicas para a ampliação das experiências de
recuperação de matas ciliares e de áreas degradadas pela agropecuária,
extração de madeira e mineração.
11. Que nenhum outro dos formadores do Xingu venha a ser barrado, como
já aconteceu ao rio Culuene com a implantação da PCH Paranatinga II.
12. Proteção efetiva do grande corredor de sóciobiodiversidade formado
pelas terras indígenas e unidades de conservação do Xingu.

Assinam a carta: Kayapó da Aldeia Kriny, Kayapó do Bacajá Xikrin, Kayapó de Las
Casas, Kaiapó de Gorotire, Kayapó Kubenkrãkênh, Kayapó Moi-karakó, Kayapõ
Pykarãrãkre, Kayapó Kendjâm, Kayapó Kubenkàkre, Kayapó Kararaô, Kayapó
Purure, Kayapó Tepore, Kayapó Nhàkin, Kayapo Bandjunkôre, Kayapó Krânhãpari,
Kayapó Kawatire, Kayapó Kapot, Kayapó Metyktire, Kayapó Piaraçu, Kayapó
Mekrãnoti, Kayapó Pykany, Kayapó da Aldeia Aukre, Kayapó da Aldeia Kokraimoro,
Kayapo Bau, Kayapó Kikretum, Kayapó Kôkôkuêdja, Mrotidjam Xikrin, Potikr Xikrin,
Djudjekô Xikrin, Cateté Xikrin, Ôodja Xikrin, Parakanã da aldeia Apyterewa e Xingu,
Akrãtikatejê, Parkatejê, Munduruku, Ara-weté, Kuruwaia, Xipaia, Asurini, Arara da
aldeia Laranjal e Cachoeira Seca, Arara do Maia da terra Alta, Panará, Juruna do Km
17,Tembé, Kayabi, Yudja, Kuikuro, Nafukua, Kamaiurá, Kalapalo, Waurá, Trumai,
Xavante, Ikpeng, Apinayé, Krahô, Associação das Mulheres Agricultoras do Assurini,
Associação de Mulheres Agricultoras do Setor Gonzaga, Associação dos Moradores
do Médio Xingu, Associação dos Moradores da Resex do Iriri, Associação dos
Moradores da Resex Riozinho do Anfrisio, AFP - Associação Floresta Protegida do
povo Kayapó, Associação Indígena Kisedje - povo Kisedje (Parque Indígena Xingu),
Associação Pró-Moradia do Parque Ipê, Associação Pró-Moradia do São Domingos,
Associação Yakiô Panará - Povo Panará, Associação Yarikayu - povo Yudja (Parque
Indígena Xingu), Articulação de Mulheres Paraenses, Articulação de Mulheres
Brasileiras, ATIX – Associação Terra Indígena Xingu (Parque Indígena Xingu), CJP-
181

Comissão de Justiça e Paz, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Prelazia do


Xingu, CPT- Comissão Pastoral da Terra, FAOR – Fórum da Amazônia Oriental,
Federação de Assistência Social e Educacional (FASE), FETAGRI- Federação dos
Trabalhadores na Agricultura Regional Altamira, Fórum de Direitos Humanos Dorothy
Stang (FDHDS), Fórum Popular de Altamira, Fundação Elza Marques, Fundação
Tocaia, Fundo DEMA, Grupo de Mulheres do Bairro Esperança, Grupo de Trabalho
Amazônico Regional Altamira (GTA), IPAM - Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(COIAB), MAB- Movimento dos Atingidos por Barragem, STTR-Altamira, Pastoral da
Juventude, S.O.S. Vida, Sindicato das Domésticas de Altamira, Sindicato dos
Trabalhadores em Educação Pública do Pará – SINTEPP, Movimento de Mulheres
Trabalhadoras de Altamira Campo e Cidade – MMTACC, Movimento de Mulheres do
Campo e Cidade do Pará - MMCC, Movimento de Mulheres do Campo e Cidade
Regional Transamazônica e Xingu, Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense,
SDDH- Sociedade Paraense dos Direitos Humanos, MNDH- Movimento Nacional dos
Direitos Humanos, MMM- Movimento de Mulheres Maria Maria, SOS Corpo, Instituto
Feminista para a Democracia, Instituto Socioambiental – ISA, Fundação Viver
Produzir e Preservar (FVPP).

A ano de 2008 foi marcado pela troca incessante do EIA entre Eletrobrás e Ibama,
cujo assunto principal era a falta de comunicação que deveria ser feita por meio de
audiências públicas entre a empresa e as comunidades atingidas, pincipalmente
indígenas. Houveram encontros nas cidades, mas os povos que vivem em TIs não
tiveram acesso às informações, contrariando a Constituição e a Convenção 169 da
OIT. O mesmo problema seguiu no início de 2009: a Eletrobrás não ofertava as
informações às comunidades. As audiências públicas exigidas pelo MPF em onze
municípios atingidos pela barragem, foram realizadas apenas em quatro deles, em
espaços pequenos e sob forte cerco policial para impedir e/ou intimidar a participação
dos povos ameaçados. Um outro agravante foi a liberação tardia do EIA pelo Ibama,
apenas 4 dias antes das audiências, isto é, não havia tempo suficiente para analisar
o documento (SANTOS; HERNANDEZ, 2009).

À época, diversas lideranças indígenas soltaram um comunicado endereçado a


representantes do Governo Federal, da Procuradoria Geral da República e do
182

Supremo Tribunal Federal213, no qual acusam o governo brasileiro de desrespeito aos


povos indígenas e à convenção 169 da OIT, e dizem estar cansados de ver a
destruição das florestas “com a conivência das autoridades governamentais e
judiciária deste país” (POVO KAYAPÓ et al., 2009, n.p.). Comunicam também que a
partir daquele momento não vão mais

sentar mais com nenhum representante do governo para falar sobre UHE
Belo Monte; pois já falamos tempo demais e isso custou 20 anos de nossa
história. Se o governo brasileiro quiser construir Belo Monte da forma
arbitrária de como está sendo proposto, que seja de total responsabilidade
deste governo e de seus representantes como também da justiça o que virá
a acontecer com os executores dessa obra; com os trabalhadores; com os
povos indígenas. O rio Xingu pode virar um rio de sangue. É esta a nossa
mensagem. Que o Brasil e o mundo tenham conhecimento do que pode
acontecer no futuro se os governantes brasileiros não respeitarem os nossos
direitos como povos indígenas do Brasil (POVO KAYAPÓ et al., 2009, n.p.)

Em 2009 a Eletrobrás entregou o EIA ao Ibama, mais uma vez foram constatados uma
série de falhas em relação às questões indígenas, além de dados incompletos e
subdimensionamento dos efeitos da construção de Belo Monte, dentre eles os estudos
sobre o impacto das inundações e da proliferação de doenças, relatórios sobre a
qualidade da água, entre outros (FAINGUELERNT, 2016). O MPF volta a exigir as
audiências e, depois muitas liminares, elas aconteceram, mas as posições dos
atingidos não foram consideradas no parecer do Ibama de 2009, assim como não
foram consideradas as questões indígenas, tendo como justificativa a falta de tempo
de analise por pressão pela aprovação advinda da presidência da república (SANTOS;
HERNANDEZ, 2009).

Paralelamente os movimentos sociais da cidade de Altamira requisitaram um outro


parecer realizado por 40 pesquisadores especialistas na Amazônia de diferentes
instituições de ensino e pesquisa que trabalharam voluntariamente na investigação do
parecer entregue pela Eletrobrás. O Painel de Especialistas, como foi nomeado a
grupo, fez um estudo crítico para “evidenciar para a sociedade as falhas, omissões e
lacunas destes estudos e subsidiar um processo de decisão, que se espera seja

213
a saber, o então presidente Lula; Deborah Macedo Duprat (então vice-procuradora da república),
Edson Lobão (então Ministro de Minas e Energia); Carlos Minc (então Ministro do Meio Ambiente);
Marcio Meira (então Presidente da FUNAI); Roberto Messias Franco (então Presidente do IBAMA);
Tarso Genro (então Ministro da Justiça); e Gilmar Mendes (então Presidente do Supremo Tribunal
Federal)
183

pautado pelo debate público - sério e democrático” (SANTOS; HERNANDEZ, 2009,


p. 10). Dentre as conclusões chegadas por esses cientistas e pesquisadores em
relação ao EIA estão:

inconsistência metodológica; ausência de referencial bibliográfico adequado


e consistente; ausência e falhas nos dados; coleta e classificação
assistemáticas de espécies, com riscos para o conhecimento e a preservação
da biodiversidade local; correlações que induzem ao erro e/ou a
interpretações duvidosas; utilização de retórica para ocultamento de
impactos. (SANTOS; HERNANDEZ, 2009, p. 11)

O Painel também analisou as previsões de impacto do EIA e concluiu que houve

subdimensionamento da ‘área diretamente afetada’, subdimensionamento da


‘população atingida’; subdimensionamento da perda de biodiversidade;
subdimensionamento do deslocamento compulsório da população rural e
urbana; na negação de impactos à jusante da barragem principal e da casa
de força; negligência na avaliação dos riscos à saúde; negligência na
avaliação dos riscos à segurança hídrica; superdimensionamento da geração
de energia; subdimensionamento do custo social, ambiental e econômico da
obra. (SANTOS; HERNANDEZ, 2009, p. 11)

O estudo das pessoas especialistas em Amazônia revelou o que já estava sendo


discutido pelos movimentos sociais e o que muitas pessoas pesquisadoras214

214
Dentre eles: Celio Bermann, engenheiro, professor e coordenador da pós-graduação em Energia da
USP (http://lattes.cnpq.br/4429686299726303); Maira Borges Fainguelernt, geógrafa especialista cuja
pesquisa tem enfoque tem enfoque principal na dimensão ambiental, social e cultural das usinas
hidrelétricas amazônicas, especialmente (http://lattes.cnpq.br/3847540652543516); Philip Martin
Fearnside, biólogo, pesquisador titular do Instituto de Pesquisas da Amazônia, desde os anos 1970
estuda os problemas ambientais da região amazônica (http://lattes.cnpq.br/3176139653120353);
Carlos Nobre, engenheiro e doutor em meteorologia, foi pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia-INPA (1975-1981) e é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais-INPE
(http://lattes.cnpq.br/1608252203113404)
184

apontavam há tempos: a inviabilidade da usina em termos sociais215, ambientais216,


energéticos217 e econômicos218.

A despeito das manifestações civis, das incertezas do próprio Ibama em relação a


viabilidade ambiental de Belo Monte, e mesmo sem ter tido tempo de analisar o que
foi discutido tanto nas audiências públicas quanto nas tratativas com os indígenas
realizadas pela Funai219, sob pressão do governo federal, o instituto aceitou o relatório
e concedeu a Licença Prévia (LP) no início de 2010, ainda que tenha incluído uma
lista de quase setenta condicionantes em relação às populações locais, à fauna, à
água, à recuperação de áreas degradadas, à demarcação de TIs, à reassentamentos
de ribeirinhos, entre outras (FAINGUELERNT, 2016). A LP permitiu o leilão e, em abril
de 2010, Belo Monte foi arrematada pelo Consórcio Norte Energia SA apesar de duas
liminares terem sido acolhidas pela Justiça Federal e logo depois derrubadas por
recursos.

Tanto Lula quanto Dilma ignoraram completamente os alertas, o primeiro mentindo na


cara daqueles que tentavam evitar a construção, a segunda reagindo reativamente e

215
Mais de 25 mil pessoas teriam que ser realocadas para áreas urbanas pois suas residências seriam
diretamente afetadas pela obra, acarretando um problema para as cidades em termos de estrutura;
escolas, casas, hospitais, saneamento básico teriam que ser planejados. As cidades nas imediações
de Belo Monte sofreriam um boom populacional de pessoas em busca de emprego. Aumento da
proliferação de insetos e suas consequentes doenças.
216
Dentre os efeitos ao meio ambiente estão a grande emissão de gás metano advindo do
apodrecimento da floresta inundada, a extinção de espécies endêmicas, perda irreversível da
biodiversidade, grande aumento de desmatamento de florestas, poluição dos rios.
217
Devido o tipo de vazão do rio Xingu com grandes períodos de seca, a principal barragem de Belo
Monte se mantém fechada por cinco meses a cada ano. Estimava-se que capacidade de produção
alcançaria pouco mais de 11mil MW por mês, mas em realidade esse valor só é alcançado durante 3
meses do ano devido a vazão do Xingu, enquanto que nos meses de setembro e outubro, sua
capacidade de geração de energia será de pouco mais de 1 MW, ou seja, a média anual não chegaria
a 5 MW mensais (BERMANN, 2012, p. 12). No Painel de Especialistas (SANTOS; HERNANDEZ, 2009,
p. 197–200) há um powerpoint de Celio Bermann apresentado ao Presidente Lula pessoalmente em
uma reunião sobre Belo Monte em julho de 2009.
218
A potência energética produzida por Belo Monte não justifica o custo financeiro da obra. Em 2009
Celio Bermann (SANTOS; HERNANDEZ, 2009, p. 200) supôs através da análise de dados que a usina
poderia custar entre 20 e 30 bilhões de reais. O leilão de 2010 previa um custo de 19 bilhões de reais,
mas em realidade a obra hoje já está no patamar de 44 bilhões de reais. Para informações mais
completas ver a pesquisa Custos e benefícios do complexo hidrelétrico Belo Monte: Uma abordagem
econômico-ambiental de Wilson Cabral de Sousa Júnior, John Reid e Neidja Cristine Silvestre Leitão
(2006).
219
O laudo técnico 114/2009 expedido pelo Ibama em novembro de 2009 diz: “tendo em vista o prazo
estipulado pela Presidência, esta equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não
puderam ser analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as
contribuições das audiências públicas” (BRASIL, 2009)
185

fechada para qualquer tipo de diálogo220 (BRUM, 2019). As ações e as reações dos
governos do PT minimamente revelam a total incompreensão e desrespeito a outros
modos de vida e a ignorância em relação a importância da Amazônia no que diz
respeito ao colapso climático sob o qual vivemos hoje no planeta. Mas o leilão de Belo
Monte revelou ainda mais coisas.

Poucos dias antes do leilão ocorrer, as empresas Odebrecht e a Camargo Correa


optaram por ficar fora da disputa para a operação de Belo Monte, mesmo tendo elas
participado do estudo do projeto e serem empresas reconhecidamente experientes na
construção de usinas hidrelétricas. A justificativa que deram foi a de não encontrarem
“condições econômico-financeiras que permitissem sua participação na disputa"
(REUTERS BRASIL, 2010), embora Eliane Brum (2019, s.p.) tenha apurado junto a
um ambientalista que os empreiteiros das construtoras não tinham dúvida sobre a

220
Os encontros entre os governos de Lula e Dilma com cientistas, ativistas e povos amazônicos são
descritos no capítulo A Amazônia paga o custo da conciliação do livro Brasil, construtor de ruínas da
jornalista Eliane Brum. Nele Brum afirma que só o PT poderia fazer Belo Monte, pois muitas das
lideranças sociais de Altamira são fundadoras do PT e acreditavam que o projeto nunca sairia na gestão
do partido, assim, no momento em que Lula assume a presidência, os movimentos sociais relaxaram.
Quando souberam que o projeto de Belo Monte estava nas mãos da então Ministra de Minas e Energia
Dilma Rousseff, as lideranças regionais, organizadas no movimento Xingu Vivo Para Sempre, foram
até Brasília conversar primeiro com ele, depois com ela. Na conversa com Lula estavam Dom Erwin,
bispo emérito do Xingu reconhecido por lutar pela justiça social e ambiental da região, Celio Bermann,
dois indígenas, dois ribeirinhos, Antônia Melo (uma das pessoas mais atuantes da região, desde os
anos 1970 Antonia participa dos movimentos sociais de Altamira) e dois procuradores da República.
Dom Erwin (apud BRUM, 2019, s.p.) conta a história: “O povo falou de sua angústia, de que não podiam
deixar a sua terra. Depois, os procuradores da República falaram das inconstitucionalidades do projeto
de Belo Monte, de que os índios não tinham sido ouvidos. O Celio Bermann colocou então os pontos
técnicos e financeiros que tornavam o projeto inviável. E aí é que eu vi o Lula levando susto. Ele olhou
para a turma dele, dizendo: ‘Vocês vão ter que dar uma resposta imediata para o professor’. Mas essa
resposta não veio até hoje. Era teatro, jogo político. Depois, ele me segurou no braço e disse [imitando
mais uma vez a voz do ex-presidente]: ‘Dom Erwin... Primeiro: nós não vamos empurrar esse projeto
goela abaixo de quem quer que seja. Conte comigo. O diálogo tem que continuar. Segundo: o Brasil
tem uma grande dívida com os atingidos por barragens, e essa dívida, até hoje, não foi sanada. Tem
muita gente perambulando por aí que não recebeu a indenização, e a vida praticamente foi cortada pra
eles. Terceiro: nós não vamos repetir [a hidrelétrica de] Balbina. Balbina é um monumento à insanidade.
E quarto: o projeto só vai sair se for vantagem pra todos’ Ele disse isso textualmente, sentado ao meu
lado, me segurando nesse braço [mostra o braço esquerdo]”. O encontro com Dilma, quando ela ainda
era Ministra de Minas e Energia, teve outro teor. Antonia Melo (apud BRUM, 2019, s.p.) conta o caso:
“Quando chegamos à audiência, a Dilma demorou um pouco para aparecer. Aí veio, com um cara do
lado e outro do outro, como se fosse uma rainha cercada por seu séquito. Nós estávamos ali porque,
se era desejo do governo estudar esse projeto [de Belo Monte], queríamos ter certeza de que seria um
estudo eficiente, já que sabíamos que todos os estudos feitos até então eram uma grande mentira, sem
respeito pelos povos da floresta nem conhecimento do funcionamento da região. Então, já que o
governo queria estudar a viabilidade de Belo Monte, que o fizesse com a seriedade necessária. A Dilma
chegou e se sentou na cabeceira da mesa. O Zé Geraldo [então deputado federal pelo PT] nos
apresentou, e eu tomei a palavra. Eu disse: ‘Olha, senhora ministra, se este estudo vai mesmo sair,
queremos poder ter a confiança de que será feito com seriedade’. Assim que eu terminei essa frase, a
Dilma deu um murro na mesa. Um murro, mesmo. E disse: ‘Belo Monte vai sair’. Levantou-se e foi
embora.”
186

inviabilidade econômica da hidrelétrica, ela não geraria lucro quando em


funcionamento.

Com a saída das empreiteiras o leilão estava impossibilitado de acontecer pois


restaria apenas um consórcio interessado. A toque de caixa formou-se um novo
consórcio composto por empresas de médio porte e com pouca experiência na área
de hidrelétricas: o Consórcio Norte Energia S.A.221, constituído por nove empresas –
CHESF, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia, Mendes Junior, Serveng-Civilsan, J
Malucelli, Contern, Cetenco e Gaia Energia. Do outro lado da disputa estava o
consórcio das empresas que haviam realizado os estudos e já tinham muita
experiência com hidrelétricas, o Consórcio Belo Monte Energia, composto por
Andrade Gutierrez, Vale, Neoenergia, Companhia Brasileira de Alumínio (Votorantim),
empresas que compunham o consórcio perdedor Belo Monte Energia222. O
inimaginável aconteceu, o recém-criado Consórcio Norte Energia S.A. ganhou a
disputa contra as gigantes do Consórcio Belo Monte Energia.

Poucos dias após o leilão, o Consórcio Norte Energia S.A. começa a se remodelar, 7
das 9 empresas se retiraram do grupo. Hoje apenas a J Malucelli faz parte do
consórcio original, e cerca de 70% de sua composição acionaria atual são empresas
públicas e fundos de pensão223. Desde 2010 a Norte Energia SA passa por rearranjos
de capital consecutivos, o pesquisador e professor da USP Celio Bermann (2012)
justifica as constantes mudanças quando afirma que a construção de Belo Monte não
está limitada a produção de energia, mas também se trata de uma espécie de
compensação financeira às empresas que contribuíram com a campanha eleitoral de
Dilma Rousseff224.

221
O consórcio Norte Energia é formado por nove empresas: Companhia Hidro Elétrica do São
Francisco (CHESF), com 49,98%; Construtora Queiroz Galvão S/A, com 10,02%; Galvão Engenharia
S/A, com 3,75%; Mendes Junior Trading Engenharia S/A, com 3,75%; Serveng-Civilsan S/A, com
3,75%; J Malucelli Construtora de Obras S/A, com 9,98%; Contern Construções e Comércio Ltda, com
3,75%; Cetenco Engenharia S/A, com 5%; e Gaia Energia e Participações, com 10,02%. Um matéria
da Reuters brasil no porta IG apresenta cada empresa e aponta o Consórcio Belo Monte Energia como
favorito (REUTERS BRASIL; MARCONDES, 2010).
222
O Consórcio também era composto por Furnas e Eletrosul.
223
A Norte Energia SA é uma sociedade anônima de capital fechado, composta por Empresas de
diferentes segmentos de atuação e por fundos de previdência complementar. Neste link do site da
empresa pode-se verificar sua composição acionária (https://www.norteenergiasa.com.br/pt-
br/ri/composicao-acionaria)
224
cerca de 30% dos custos foram pagos por empreiteiras, como a Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez
e UTC Engenharia, como apurado pelo jornalista José Roberto de Toledo do Jornal Estado de São
187

Em agosto de 2010, para executar as obras civis e de engenharia, o Consórcio Norte


Energia S.A. contrata o Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM) liderado pela
Andrade Gutierrez – a construtora que perdeu o leilão – com a participação da
Camargo Corrêa e a Norberto Odebrecht – aquelas que desistiram do leilão dias antes
–, junto a mais oito empresas. Para atender as regras de concessão de empréstimo
do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), a Norte Energia criou uma
Sociedade de Propósito Específico (SPE) composta por 18 empresas, algumas delas
também participantes do CCBM acima citado. A partir da criação da SPE, o BNDES
pode custear 80% dos custos de Belo Monte (BERMANN, 2012)

O lucro de Belo Monte estava em sua construção, não em sua administração, como
explicado anteriormente sobre a ineficiência energética da usina devido a vazão do
rio. Além disso, por serem somente aquele que constrói, o CCBM não responde às
questões ambientais e às multas, quem responde judicialmente é o Consórcio Norte
Energia S.A., isto é, são as estatais e os fundos de pensões que arcam com as reiteras
multas recebidas por Belo Monte.

De volta as questões da liberação da obra, as condicionantes impostas pelo Ibama


em 2010 no momento em que o órgão outorgou a LP, foram ignoradas pelo Consórcio
Norte Energia e o poder público não só não pressionou o Consórcio para que as
condicionantes se efetivassem, como pediu ao Instituto do Meio Ambiente (Ibama)
uma “licença parcial” para liberação de desmatamento na região, licença essa que
não existe na legislação brasileira. O pedido causou tensão no instituto a ponto de seu
presidente pedir exoneração do cargo. Segundo matéria do jornalista Leonardo
Sakamoto (2011), até o final de 2011 apenas quatro condicionantes tinham sido
parcialmente realizadas, pouco menos de trinta não haviam sido cumpridas, a das
restantes não havia qualquer informação. Ainda assim, o Ibama outorgou a tal licença
parcial que não existia, mas passou a existir para liberar o desmatamento na
Amazônia, para barrar do rio e para transformar para sempre a vida daqueles e
daquelas que ali viviam.

Paulo e disponível no site do TSE (vide link: https://politica.estadao.com.br/blogs/vox-publica/metade-


do-financiamento-da-campanha-de-dilma-vem-de-apenas-27-empresas/).
188

De 2009 a 2011 foram muitas manifestações por todo Brasil, principalmente em


Brasília, e muitos pareceres e relatórios – desde o supracitado Painel de Especialistas
ao da Funai (Fundação Nacional do Índio)225 . Em 2011, já no governo da Presidenta
Dilma Rousseff, algumas organizações civis226 se juntaram para fazer uma denúncia
à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados
Americanos (OEA), cujo foco principal estava as TIs Paquiçamba e Arara, regiões
diretamente afetadas pelas obras. A CIDH (2011) pediu informações sobre as licenças
ambientais da construção ao governo brasileiro, sob o argumento de que as obras
causariam danos ao ecossistema e aos modos de vida dos habitantes da região –
indígenas, ribeirinhos, pescadores, pequenos agricultores. Exigiu também
informações sobre a condução do licenciamento, e indagou se as comunidades
afetadas estavam sendo ouvida. A Comissão também solicitou a suspensão do
processo de licenciamento e a paralisação total da obra até que as condições mínimas
fossem seguidas.

Em resposta, o Ministério de Relações Exteriores (BRASIL, 2011) lançou uma nota


afirmando que estava atuado com o rigor que a situação pedia, principalmente em
relação às comunidades, disse que as consultas foram feitas, e ainda citou os
pareceres do Ibama e da Funai. O tom da nota revela a posição do governo em relação
a CIDH. Abaixo coloco o texto completo com grifos meus:

O Governo brasileiro tomou conhecimento, com perplexidade, das medidas


que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicita sejam
adotadas para “garantir a vida e a integridade pessoal dos membros dos
povos indígenas” supostamente ameaçados pela construção da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte.
O Governo brasileiro, sem minimizar a relevância do papel que
desempenham os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos,
recorda que o caráter de tais sistemas é subsidiário ou complementar, razão
pela qual sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos
de jurisdição interna.

225
A Funai publicou um ofício em 2009 no qual afirmava que as condicionantes estavam em estado
grave. A Norte Energia SA não cumpria com a obrigação de consulta livre e informada como garante a
convenção 169 da OIT. O ofício UHE Belo Monte - Componente Indígena. Parecer técnico nº
21/CMAM/CGPIMA (2009) não está disponível no site da Funai, mas podem ser encontrada cópia do
mesmo no site do Instituto Socioambiental: https://issuu.com/instituto-
socioambiental/docs/130917201123-2eedf05d89f24dec832e4ee339da2ec1
226
A saber, Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira - Coiab, Prelazia do Xingu, o Conselho Indigenista Missionário-Cimi, Sociedade
Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), Justiça Global, e Asociación Interamericana para
la Defensa del Ambiente (AIDA).
189

A autorização para implementação do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo


Monte foi concedida pelo Congresso Nacional por meio do Decreto
Legislativo nº 788/2005, que ressalvou como condição da autorização a
realização de estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental, em
especial “estudo de natureza antropológica, atinente às comunidades
indígenas localizadas na área sob influência do empreendimento”, com a
devida consulta a essas comunidades. Coube aos órgãos competentes para
tanto, IBAMA e FUNAI, a concretização de estudos de impacto ambiental e
de consultas às comunidades em questão, em atendimento ao que prevê o
parágrafo 3º do artigo 231 da Constituição Federal.
O Governo brasileiro está ciente dos desafios socioambientais que projetos
como o da Usina Hidrelétrica de Belo Monte podem acarretar. Por essa razão,
estão sendo observadas, com rigor absoluto, as normas cabíveis para que a
construção leve em conta todos os aspectos sociais e ambientais envolvidos.
O Governo brasileiro tem atuado de forma efetiva e diligente para responder
às demandas existentes.
O Governo brasileiro considera as solicitações da CIDH precipitadas e
injustificáveis. (BRASIL, 2011)

Os pareceres da Funai e do Ibama citados na nota justamente informavam que as


condicionantes exigidas para a construção de Belo Monte não estavam sendo
cumpridas: nem a população estava sendo ouvida, nem as TIs estavam sendo
protegidas. Em vez de tomar as devidas precauções, o governo brasileiro,
representado pela Secretária dos Direitos Humanos da Presidência da República,
pelo Ministro de Minas e Energia e pelo presidente da subcomissão de
acompanhamento das obras de Belo Monte, preferiu chamar a CIDH de entrave para
o desenvolvimento do país, acusando-a de interferir na soberania nacional (VIEIRA,
2015, p. 184–185). Em vez de acionar judicialmente a comissão – o que seria a ação
mais justa caso a CIDH estivesse realmente impedindo o desenvolvimento do país e
interferindo em sua soberania –, o governo federal optou por (1) chamar de volta a
representante brasileiro da Organização dos Estados Americanos, (2) retirar sua
candidatura a uma vaga na CIDH, (3) não enviar representante na audiência que iria
discutir o caso, e (4) deixar de aportar sua cota anual de financiamento da OEA. A
reação do governo brasileiro é sem precedentes no histórico das relações entre Brasil
e OEA (VIEIRA, 2015).

Com a licença parcial nas mãos, os canteiros de obras começaram a ser instalados
no início de 2011, mesmo sem qualquer implementação das ações antecipatórias,
aquelas que visam preparar as cidades para a obra devido ao impacto do aumento
populacional, como por exemplo ações de saúde, de educação e de saneamento
básico. Tampouco haviam sido implementadas as ações de regulação fundiária, as
190

de proteção de TIs e as das Unidades de Conservação (UCs) (INSTITUTO


SOCIOAMBIENTAL, 2015).

Em 2015 o Instituto Socioambiental (ISA) elaborou um dossiê227 sobre as condições


da região do Xingu afetada por Belo Monte, apresentando o que o Consórcio Norte
Energia havia realizado até então em relação à saúde, à educação, ao saneamento
básico, à segurança pública, aos reassentamentos rurais e urbanos, às TIs e UCs,
aos povos indígenas e aos ribeirinhos e pescadores.

No que diz respeito à infraestrutura de saúde, o dossiê aponta insuficiência: alguns


hospitais não haviam sido entregues, embora tenham sido condicionantes anteriores
ao início da obra. A falta de hospitais gera até hoje superlotação228. Embora o
Consórcio Norte Energia tenha construído quase 400 novas salas de aula, o dossiê
aponta que houve uma sobrecarga por demandas de vagas e excesso de número de
alunos por turma, aumentando ainda mais a reprovação229 e a evasão escolar230.
Aponta também que não houve construção de nenhuma creche, pois não estava no
planejamento inicial. Além disso as prefeituras não conseguiram dar conta
financeiramente da contratação de novos professores devido ao aumento do número
de estudantes.

Em 2015 o dossiê apontava que as redes de esgoto e as estações de tratamento de


água não estavam funcionando, até o final de 2019 a situação continuava a mesma,
as casas seguem com fossa negra e há esgotos a céu aberto (PEIXOTO; JESUS;

227
O dossiê tem por base artigos escritos por pesquisadores, agentes públicos e representantes de
movimentos sociais que atuam na região, a convite do ISA. Os artigos estão copilados no anexo Vozes
do Xingu: Coletânea de artigos para o Dossiê Belo Monte, do dossiê. Os autores são: Ana De
Francesco (Unicamp); Ana Soares Barbosa (MXVPS); Andréia Macedo Barreto (DPE/PA); Antônia
Melo (MXVPS); Antônia Pereira Martins (MMTA-CC); Assis da Costa Oliveira (UFPA); Astrid Puentes
(Aida); Augusto Postigo (ISA); Biviany Rojas Garzón (ISA); Brent Millikan (IR); Carolina Reis (ISA);
Cristiane Costa Carneiro (UFPA); Flávia do Amaral Vieira (Aida); Francisco de Assis Nascimento
Nóbrega (DPU); Gracinda Magalhães Guilherme Orlandini Heurich (MN/UFRJ); Helena Palmquist
(MPF); Juarez Pezzuti (UFPA); Juan Doblas (ISA); Kerlley Santos (Ufopa); Leonardo Amorim (ISA);
Letícia Leite (ISA); Mauricio Torres (Ufopa); Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Raul Silva
Telles do Valle (ISA); Soeren Weissermel (Universidade de Kiel, Alemanha)
228
Devido ao aumento populacional, o número de atendimentos dobrou, as esperas aumentaram
sensivelmente, dificultando a acesso a saúde por parte dos indígenas que não vivem em perímetro
urbano. Como decorrência as enfermidades agravaram e o estado de saúde da população também.
229
A reprovação aumentou 40% no fundamental e 73% no médio.
230
Aumento de 57% no fundamental e 7,7% no médio. Muitos estudantes de ensino médio estão
deixando as salas de aula e trabalhando nas obras da usina.
191

JUNIOR, 2019). A falta de saneamento básico também prejudica a biodiversidade e a


saúde da população. A soma entre o lançamento de dejetos sem tratamento e o
barramento realizado no rio, piora sensivelmente a qualidade da água: afeta a fauna
– os peixes morrem pela poluição –, a flora e as pessoas, não apenas pela falta de
peixe para pescar, mas principalmente porque seguem usando a água do rio para
consumo231. Altamira hoje é a segunda cidade mais violenta do Brasil, o Atlas da
Violência publicado pelo Ipea (BRASIL, 2019) em 2019 aponta a construção de Belo
Monte como fator decisivo para o aumento da violência na região232. Entre 2011 e
2014 o aumento da violência foi de quase 80% (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL,
2015). Em julho de 2019 uma chacina decorrente de uma briga entre duas facções
criminosas no Centro de Recuperação Regional de Altamira deixou quase 60 mortos
(BBC BRASIL, 2019)233. Tais mortes devem ser creditadas a Norte Energia porque foi
a obra que em menos de 4 anos quase dobrou o número de habitantes da cidade,
trazendo no bojo facções criminosas como o Comando Classe A (CCA), responsável
pelo início da briga entre as facções. O consórcio também não havia construído a
tempo o presídio previsto para 2015 no projeto inicial234.

O modo como os reassentamentos ocorreram demonstraram falta de respeito e de


conhecimento em relação à população atingida. A população realocada tinha a opção
de escolher entre ou serem reassentadas em reassentamentos coletivos urbanos ou
rurais, ou serem compensadas financeiramente, através de uma análise do valor de
suas casas, ou por uma carta de crédito, nessa situação o reassentado buscaria seu
novo local e o consórcio faria posteriormente o ressarcimento. De início, já houve
falhas no processo de cadastramento, o consórcio não realizou a divulgação

231
O Ibama não iria liberar o funcionamento de Belo Monte sem que a situação do saneamento tivesse
sido sanada. A situação ainda não foi resolvida, mas o Ibama liberou o funcionamento da usina.
232
“O Sudoeste Paraense possui o município de Altamira com o maior índice do estado (133,7), que
forma com outros municípios vizinhos um cluster de territórios com alta prevalência de violência letal,
onde as taxas estimadas de homicídios situaram-se sempre acima de 56 homicídios estimados por
100.000 habitantes. Tal dinâmica resultou em parte da desorganização social, no rastro da construção
da Usina de Belo Monte.11 O Sudeste Paraense apresentou dois dos cinco municípios com taxa maior
que 100,0: Curionópolis (126,7) e Canaã dos Carajás (114,9). Esses municípios fazem fronteira um
com o outro e também com outros, que também apresentam altas taxas estimadas de homicídios.”
(BRASIL, 2019, p. 25)
233
Após a chacina o Ministra da Justiça Sergio Moro enviou ao local agentes federais da Força-Tarefa
de Intervenção Penitenciária (FTIP). Há indícios de tortura e maus tratos de presos. A bancada do Psol
fez uma denúncia na ONU pedindo ação da instituição.
234
Para mais informações sobre a chacina e como a Norte Energia está implicada, acesse a matéria
do Intercept Brasil: https://theintercept.com/2019/08/06/belo-monte-forjou-massacre-altamira/
192

necessária do processo e muitas pessoas não foram informadas de seus direitos.


Além disso muitas famílias não foram incluídas nos assentamentos porque não havia
ninguém em casa no momento que o consórcio passou para fazer o cadastro.

Embora previsto pela Consórcio Norte Energia os assentamentos rurais não foram
implementados, apenas os urbanos, desrespeitando o direito dos ribeirinhos, dos
moradores das ilhas e os pequenos agricultores de viverem em condições análogas
a que viviam antes de suas terras serem alagadas por Belo Monte. Essas pessoas
foram realocadas nos RUCs, como ficaram conhecidos os reassentamentos urbanos
coletivos, bairros que ainda hoje seguem sem transporte, sem saúde e sem educação
adequados. São muitos RUCs construídos pela Norte Energia para os expulsos de
Belo Monte, expulsos de suas ilhas, de suas terras, da beira do rio Xingu, da própria
cidade de Altamira, expulsos de suas vidas. O reassentamento foi feito
aleatoriamente, sem jamais pensar ou respeitar as comunidades que já haviam se
construído, “fragmentando relações sociais, familiares e afetivas, gerando um impacto
imaterial irreparável e de difícil dimensionamento” (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL,
2015, p. 35).

Em muitas dessas casas não chega água. Não chega água na casa das pessoas que
viviam à beira d’água. Não chega água na casa das pessoas que viviam à beira
d’água. Não chega água na casa das pessoas que viviam à beira d’água. Caminhões
pipas diariamente enchem imensas caixas d’água, mas a água não tem força
suficiente para passar pelo encanamento e chegar às casas. Não chega água na casa
das pessoas que viviam à beira d’água. Tampouco as construções habitacionais
correspondem ao modo de vida da região, por exemplo, não há nem espaço para
redes, evidenciando a incapacidade ou a vontade de reconhecer as especificidades
dos modos de vida amazônicos. Se não bastasse perderem seus modos de vida,
passados pouco mais de cinco anos desde a entrega das casas, já há algumas ruindo
devido a qualidade do material empregado.

Eliane Brum (BRUM; TORTURRA, 2019), moradora de Altamira e uma das principais
vozes do jornalismo que discute a Amazônia, diz que as indenizações da Norte
Energia S.A. foram baseadas em avaliações de técnicos vindos do sudeste do Brasil,
eles avaliavam a partir de uma visão e de um modo de vida de quem vive em São
193

Paulo ou Rio de Janeiro. Os técnicos não reconheciam a dupla moradia de muitas


famílias, uma urbana e outra rural, e por isso a Norte Energia ressarciu apenas uma
delas, considerando a outra como “ponto de apoio”, impedindo que, por exemplo, os
pescadores continuassem a exercer a pesca, tendo como consequência “a extinção
desse modo de vida tradicional e a pauperização dessa população, que não tem outro
ofício além da pesca” (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2015, p. 34).

Brum (BRUM; TORTURRA, 2019) também aponta que o custo de vida aumentou
muito, por exemplo, as pessoas expulsas de suas casa para a construção de uma
hidrelétrica, pagam muito mais por energia do que o resto do Brasil235. A população
também não teve o apoio jurídico necessário a esse tipo de negociação, quando viam
as casas de palafitas dos ribeirinhos, os técnicos subavaliavam as moradias. Os
valores oferecidos não chegavam a 20 mil reais, impossibilitando a compra de
qualquer outra moradia, devido o aumento vertiginoso do custo dos imóveis na região.
Brum suspeita também que os valores oferecidos foram golpes da Norte Energia S.A.
pois os avaliadores diziam que se os ribeirinhos não aceitassem o valor e não
assinassem o contrato, eles não ganhariam nenhuma indenização. Muitas dessas
pessoas são analfabetas, não entendiam o que dizia o contrato, o que outorga ainda
maior gravidade às ações da Norte Energia S.A.:

Então o ribeirinho analfabeto, em frente daqueles caras que chegam, que


baixam como alienígenas no meio da vida dele, ele assina com o dedo um
papel que ele não foi capaz de ler, que rouba toda a vida dele. E aí é jogado
na periferia. (...) Tem toda uma violência construída aqui, a violência do
processo, de cortar os laços comunitários, de cortar a vida das pessoas, de
cortar o modo de vida das pessoas. Isso é um processo de conversão de
povos da floreta em pobre urbanos, é uma produção de pobres urbanos.
(BRUM; TORTURRA, 2019, n.p.)

235
A Celpa, companhia energia que atende Altamira, cobra 0.68360 reais por kWh na tarifa residencial
normal (http://www.celpa.com.br/residencial/informacoes/cobranca-de-tarifas), enquanto a Celesc,
distribuidora de energia do estado de Santa Catarina, cobra 0,46978 reais por kWh pela mesma
tarifa(https://www.celesc.com.br/tarifas-de-energia#tarifas-vigentes), e a Enel da cidade de São Paulo
cobra 0,25971 reais por kWh (https://www.eneldistribuicaosp.com.br/para-sua-casa/tarifa-de-energia-
eletrica). A MPE do Pará entrou com uma ação civil pública contra a Celpa, alegando que a empresa
tem praticado crimes contra a população de Altamira, como acusar os moradores de violação de
medidor e extorsão por parte de funcionários, etc. Para ter acesso a ação, acesse o site do MP do
Pará:
http://www.mppa.mp.br/data/files/F9/00/DF/A8/985D361071785D36180808FF/Inicial%20ACP%20Cel
pa%20Altamira.pdf
194

Em relação à proteção das UCs e das TIs, o dossiê aponta que a extração ilegal de
madeira, que já era uma questão local, se intensificou com a construção de Belo
Monte. O empreendimento “preferiu” comprar madeira das madeireiras regionais 236,
notórias por realizar extração ilegal, do que reaproveitar as das árvores derrubadas
para a instalação da hidrelétrica, como exigido pelo Projeto Básico Ambiental
(PBA)237. A fiscalização do poder público não se atentou a degradação ambiental,
concentrado seus esforços em ações contra o desmatamento, mas nem isso foi
realizado a contento pois, desde que Belo Monte começou a ser implementada, as TIs
vem sofrendo um aumento considerável do desmatamento, no número de queimadas,
na aberturas de estradas, do garimpo e da pesca comercial, todos ilegais. A situação
coloca em risco a autonomia alimentar dos povos indígenas e a vida dos indígenas
isolados.

Um outro dado que não consta minuciosamente explicado no dossiê é a aplicação do


Plano Emergencial em relação aos povos indígenas, cujo objetivo era produzir
programas específicos para cada etnia afetada por Belo Monte, com vistas de
fortalecer as comunidades em suas relações com o empreendimento, por meio de
medidas antecipatórias como o fortalecimento da Funai, a proteção territorial e o
programa de etnodesenvolvimento (SANTI, 2014).

O que de fato aconteceu não foi nada parecido com isso. O Consórcio Norte Energia,
contrariando as tratativas com a Funai e desobedecendo as condicionantes, se
posicionou como “provedor universal de bens infinitos” (SANTI, 2014), criando uma
dependência proposital dos indígenas em relação ao consórcio. A procuradora Thais
Santi (2014) conta que a Norte Energia ligava para as chefias indígenas perguntando
o que eles queriam, pediam literalmente uma lista de tudo e qualquer coisa que eles
quisessem. E as coisas chegaram nas aldeias: alimentos industrializados, aparelhos
de TVs, voadeiras, carros, bebidas alcoólicas, tudo238. Cada vez que uma liderança

236
até o final de 2012 o Consórcio Norte Energia já havia comprado cerca de 17mil m3 de madeira de
fornecedores externos.
237
O dossiê (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2015, p. 36) aponta que, “segundo os técnicos do Ibama
responsáveis pelo monitoramento da questão, essas atividades chegaram a tal descontrole, que os
canteiros de obras teriam se transformado em um ‘sumidouro de madeira’. Boa parte da madeira gerada
pela obra apodreceu”.
238
Thais Santi (2014) comenta que os Araweté não fizeram sua lista “porque não havia coisas que eles
quisessem. Eles ficavam confusos, porque podiam querer tudo, mas não sabiam o que querer”. Ainda
assim coisas começaram a chegar em suas aldeias.
195

indígena se posicionava contra Belo Monte, a Norte Energia rapidamente oferecia


benefícios e bens de consumo. O objetivo era claro: tornar os indígenas dependentes
do consórcio para neutralizar sua força de mobilização. E conseguiram, muitos dos
povos começaram a apoiar a implementação de Belo Monte, enfraquecendo
sensivelmente as lutas sociais, tendo em vista que o movimento indígena é a
organização que tem mais força de mitigação dentre os movimentos sociais pois seus
direitos são assegurados pela Constituição e pela Convenção 169 da OIT. Thais Santi
(2014) conclui que o impacto do Plano Emergencial é maior que o impacto do
empreendimento em si por ter sido um agente etnocida que transformou radicalmente
os modos de vida dos povos indígenas. Conclui também que foi uma ação estratégica
para “afastar o agente que tinha capacidade de organização e condições de ser
ouvido”.

Essas são os principais efeitos da construção de Belo Monte, somam-se a eles


situações não menos relevantes como a das pessoas pescadoras, que perderam seus
meios de vida devido a mudança dos cursos dos rios; a falta de acesso à água
vivenciadas por alguns povos indígenas também derivada da nova arquitetura dos
rios; as greves recorrentes dos funcionários da concessionária protestando sobre as
condições de trabalho239; a escravidão sexual de mulheres e travestis; o aumento da
violência sexual infantil240; a depressão que se tornou epidemia dentre os atacados
por Belo Monte241.

Não posso deixar de mencionar o instrumento jurídico denominado suspensão de


segurança usado inúmeras vezes pelo governo federal por meio da Advocacia Geral

239
Para mais informações sobre as greves e seus contextos, ver a dissertação Trabalhadores dos
Canteiros de Obras de Belo Monte - Altamira: Condições de saúde e políticas públicas de Tania Sena
(2014)da UFPA
240
Mais informações sobre a situação de exploração sexual acessar as matérias do O Globo
(http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2014/06/obras-de-belo-monte-incentivaram-industria-de-sexo-no-
para-diz-estudo.html) e do jornalista Leonardo Sakamoto no portal Uol:
https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/02/14/policia-encontra-escravas-sexuais-que-
atendiam-trabalhadores-de-belo-monte/
241
Eliane Brum, Christian Dunker, Ilana Katz coordenaram um projeto de saúde mental junto aos
atingidos pela hidrelétrica, denominado por Clínica de Cuidado: escuta, tratamento e documentação do
sofrimento dos refugiados produzidos por Belo Monte. Orientado pela psicanalise, o projeto ofereceu
apoio psíquico presencial aos atingidos por Belo Monte. A Clínica de Cuidado possui um canal do
YouTube com uma série de vídeos. Entre aulas e conferências, há também o documentário EU+1, que
narra a processo da equipe da clínica, dirigido por Brum. Para acessar o canal da Clínica do Cuidado,
use esse link: https://www.youtube.com/channel/UCDgplNURWgtzbjfxu4mJjcA/featured. Todo o
projeto foi financiado por uma plataforma de financiamento coletivo.
196

da União para impedir a paralisação do processo de implementação de Belo Monte,


desde os estudos preliminares até a autorização de funcionamento. A suspensão de
segurança suspende decisões judiciais que lesionem gravemente a ordem, a saúde,
a segurança e a economia. A Articulação Justiça e Direitos Humanos242 (2019) coloca
que tal instrumento foi criado em 1964 durante a ditadura de militar para controlar as
decisões judiciais que iam contra o regime; com ele, uma instância judicial superior
pode suspender uma decisão de uma inferior, ainda que a decisão esteja aplicando
as leis brasileiras em vigor. O artigo O incidente da suspensão de segurança e seus
aspectos políticos: da sistematização procedimental à análise crítica do caso Belo
Monte de Twig Santos Lopes e Flávia do Amaral Vieira (2019) afirma que em Belo
Monte a suspensão de segurança tem sido usado menos como instrumento jurídico
do que como instrumento político. Foram sete suspensões de segurança concedidas
pela justiça do Brasil para manter Belo Monte funcionado em detrimento àqueles que
tiveram seus direitos violados – meio ambiente, população urbana, população rural
(indígenas, pescadores, ribeirinhos, pequenos agricultores). As justificativas do uso
das suspensões giram em torno da necessidade econômica da obra, de seu
cronograma e prazos, dos custos, do número de trabalhadores empregados em sua
construção. Nenhuma dessas justificativas parecem lesar gravemente a ordem, a
saúde, a segurança e a economia. A Procuradora da República de Altamira Thais
Santi (2014) explica que a justiça operou e segue operando a partir de uma lógica de
um Direito flexível de legitimidade em contraponto ao da legalidade, ou seja, fundado
em leis. Belo Monte não se sustenta juridicamente, é no Fato que ela se torna possível,
isto é, nas desculpas de urgências do governo e do Consórcio Norte Energia quando
insistem em dizer que parar a obra e sua operação é lesar gravemente a economia
brasileira. De acordo com a procuradora (SANTI, 2014), em detrimento dos direitos
do povo e do meio ambiente, dentre outros, o governo federal sempre se posicionou
e segue se posicionando do lado do Consórcio Norte Energia, como se Belo Monte
fosse uma obra governamental:

242
rede nacional que lida com direitos humanos, composta por entidades e organizações de assessoria
jurídica e movimentos sociais, dentre eles: Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA, Centro
Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social, Centro Indígena de Estudos e Pesquisa – CINEP,
Comissão Pastoral da Terra – CPT, Conselho Indígena Missionário – CIMI, Geledés – Instituto da
Mulher Negra, Justiça Global, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos –
SDDH, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH
197

Se o Ministério Público Federal entra com ações para cobrar a


implementação de alguma condicionante ou para questionar o processo,
mesmo que seja contra a Norte Energia, a União participa ao lado do
empreendedor. A Advocacia Geral da União defende Belo Monte como uma
obra governamental. Só que Belo Monte se apresentou como uma empresa
com formação de S.A., como empresa privada. E na hora de cobrar a
aplicação de políticas públicas que surgem como condicionantes do
licenciamento? De quem é a responsabilidade? Então, na hora de
desapropriar, a Norte Energia se apresenta como uma empresa
concessionária, que tem essa autorização, e litiga na Justiça Federal. Na hora
de implementar uma condicionante, ela se apresenta como uma empresa
privada e transfere a responsabilidade para o Estado. Essa mistura entre o
empreendedor e o Estado é uma das marcas mais interessantes de Belo
Monte.

À isso se agrava o fato de que as instâncias públicas que deveriam estar defendendo
os interesses públicos, a saber, Funai, Ibama, ICMBio, Polícia Federal, Defensoria
Pública da União, Defensoria Pública do Estado, foram esvaziadas, ao contrário do
que exigia o plano de estudos, inclusive uma das condicionantes consistia no
fortalecimento desses órgãos com vistas a garantir que não haveria abusos ou
ilegalidades durante o processo. Em Altamira e região nunca houve presença da
Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado parou de operar em
2013, no auge das obras de implementação de Belo Monte. Não há gestores do
ICMBio em grande parte das TIs e das UCs. A Funai não foi fortalecida, nem o Ibama,
tampouco a Polícia Federal. O conluio entre governo federal e o Consórcio Norte
Energia conseguiu suspender a lei e materializar Belo Monte. Se é tarde demais para
o Xingu, talvez está seja a única possibilidade de um futuro diferente do previsto para
outras situações análogas243.

243
No Xingu ainda há a ameaça da instalação de Belo Sun, uma companhia mineradora canadense.
No rio Tapajós já estão ocorrendo medições e negociações para a instalação de uma hidrelétrica.
198

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