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VITÓRIA
2018
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VITÓRIA
2018
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COMISSÃO EXAMINADORA:
DEDICATÓRIA
Dedico esta tese a tantas pessoas que nem posso listar, mas principalmente pessoas
que sempre estiveram me amparando em momentos em que pensei que nada mais pudesse
fazer. Deus, que me ampara em tempos em que pensei que pudesse enlouquecer; minha mãe
Maria Célia, que se foi sem que pudesse compartilhar o melhor da minha vida; meu marido
Nestor, que comigo tem compartilhado sucessos e fracassos com paciência, amor e felicidade;
e nosso filho, Chico, que nasceu depois que eu já havia começado o doutorado, provando para
mim que as crianças vêm sempre em primeiro lugar, ainda bem. Dedico este trabalho,
também, à minha orientadora, a professora Mónica, que me ajudou com palavras de incentivo
e sua característica e enorme gentileza, em muitos momentos em que desejei mandar tudo às
favas – sem sua ajuda esta tese não teria sido escrita. Dedico este trabalho a todas as horas
jogando e assistindo minha irmã jogar videogame, dedico muito do meu sucesso ao fato de ela
ter estado sempre ao meu lado.
7
AGRADECIMENTOS
Versão de Paul Anka da canção francesa Comme d‟habitude, de Claude François e Jacques
Revaux
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RESUMO
Através do exame de corpus composto de manual, textos, imagens e músicas do jogo, intenta-
se, através desta pesquisa, compreender como o videogame Castlevania: Symphony of the
Night (1997) consolida em seu conjunto sincrético um estilo artístico próprio de uma fase da
história da arte ocidental. O estudo tem, como ponto de partida, as premissas de que a) o
videogame, como objeto sincrético, carece de estudo multidisciplinar; b) assim como outros
objetos culturais contemporâneos, circunscreve-se dentro do circuito dos estudos textuais e de
leitura; e c) todo trabalho de autoria artística sofre influência do mundo que cerca o autor,
estando vinculado a uma rede de saberes e de cultura e, por isso, é tanto uma apropriação do
mundo que o cerca quando uma representação de si mesmo. Levando-se em conta o
surgimento da narrativa gótica na literatura com o primeiro romance de Horace Walpole, The
Castle of Otranto, de 1764, inicia-se a discussão com uma paralelização da emergência do
estilo gótico no romance epistolar Drácula, de Bram Stoker (1897), e a maneira como os
elementos antigos dessa cultura (por exemplo, a música, arquitetura e as figuras míticas)
foram reorganizados esteticamente, de modo a produzirem um efeito. Após revisão de
literatura que privilegiou a crítica pós-moderna (ANDERSON, 1999; JAMESON, 1985,
2004; LYOTARD, 1986; HUTCHEON, 2000; GIDDENS, 2002), além de outros estudos
teóricos (ROSEN, 2008; CERTEAU, 2000), observou-se que o processo de seleção e
organização de ―memórias‖ que farão parte de uma ―colagem‖, em um objeto cultural, é uma
experiência subjetiva. As razões que motivam a montagem dessas ―paródias‖ pós-modernas
escapam aos criadores, pois esses fragmentos remetem inconscientemente a vertigens de
chamadas ―nostalgias‖, acessadas por sensibilidade e tato.
ABSTRACT
Through the examination of a corpus composed of manuals, texts, images and music of the
game we intended to understand how the videogame Castlevania: Symphony of the Night
(1997) consolidates in its syncretic set an artistic style proper of a phase of Western art
history. The study has, as a starting point, the premises that a) videogames, as a syncretic
objects, lack multidisciplinary study; b) like other contemporary cultural objects, videogames
are circumscribed within the circuit of textual studies and reading; and c) all work of artistic
authorship is influenced by the world around the author, being linked to a network of
knowledge and culture and, therefore, this cultural object is both an appropriation of the world
that surrounds it as a representation of itself as well. Taking into account the emergence of the
Gothic narrative in literature with Horace Walpole‘s first novel, The Castle of Otranto, 1764,
the discussion begins with a parallelization of the emergence of the Gothic style in Bram
Stoker‘s novel Dracula (1897), and the way the ancient elements of that culture (eg, music,
architecture, and mythical figures) were aesthetically reorganized in order to produce an effect
in the videogame Castlevania: SoTN. After reviewing literature that favored postmodern
critique (ANDERSON, 1999; JAMESON, 1985, 2004; LYOTARD, 1986; HUTCHEON,
2000; GIDDENS, 2002), in addition other theoretical studies (ROSEN, 2008; CERTEAU,
2000), it was observed that the process of selection and organization of ―memories‖ that will
be part of a ―collage‖, in a cultural object, is a subjective experience. The reasons behind the
creation of these postmodern ―parodies‖ escape the creators, because these fragments
unconsciously refer to the vertigo of a so-called ―nostalgia‖, accessed by sensitivity and tact.
LISTA DE IMAGENS
LISTA DE TABELAS
NOTAS DA AUTORA
Palavras estrangeiras não foram italizadas por razão ideológica, como, por exemplo,
‗videogame‘ e ‗designer‘, já que, em obras especializadas, as palavras estrangeiras não ficam
em itálico: sua repetição extensiva (pelo uso recorrente) pode deixar o texto difícil de ser lido.
Assim como pontuou Lyotard (1986, p. 46), é nítido que na escrita acadêmica seja
preciso que haja uma despersonalização da fala; vemos isso no esforço que fazemos ao
escrever dissertações e teses que exprimem saberes que dependem da nossa própria
sensibilidade e capacidade hermenêutica para serem produzidos. No entanto, é preciso
elaborar nossa dialética na voz em primeira pessoa do plural para que possamos aludir nosso
discurso à fala de vários autores (eu, minha orientadora, os autores dos textos lidos etc), e para
extinguir o que se possa acreditar por subjetivo. Esforçamo-nos por galgar a legitimação num
regime institucional – nossa fala não pode deixar de ser burocrática e nem nossos resultados
verificáveis, sob o risco ficarmos desacreditados. Acreditamos que o trabalho aqui
desenvolvido é fruto de uma discussão entre pares e que, por isso, nossa autoria não
transparece como única na pessoa do discurso.
Em contrapartida, em muitos momentos a voz do texto se assume em primeira pessoa,
e decidi por deixá-los assim, já que se tratam de manifestações de experiências pessoais, sobre
as quais não posso atribuir afirmações a outrem.
14
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO P. 16
1.1 A CONTEMPORANEIDADE E O FUTURO DOS GAME STUDIES P. 19
6 REFERÊNCIAS P. 197
16
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa congrega o retorno ao debate acerca dos estudos textuais e dos game
studies desenvolvidos na dissertação e da leitura de outras pesquisas, que surgem no momento
do trabalho atual; mas, além disso, se preocupa em seguir adiante com a análise crítica do
corpus em questão – desejo esse, de certa forma, contido nas duas últimas pesquisas, focadas
em estabelecer o videogame enquanto objeto de estudo do campo acadêmico das Letras.
Castlevania: Symphony of the Night1 (1997) (Castlevania SoTN) reside em nosso imaginário
desde 2000, quando o jogamos pela primeira vez. Trata-se de um jogo construído a partir de
uma narrativa entremeada por coleta de itens e evolução de personagem. O videogame em
questão estabelece uma relação de intertextualidade com o romance epistolar Drácula, de
Bram Stoker. Aliás, ele é o pai do protagonista do jogo, Alucard. É por meio dele que o
jogador deve superar seus limites para acabar com a ameaça maligna, ou seja, matar o próprio
pai de Alucard.
Para além da discussão teórica sobre ler o videogame - que será empreendida mais
adiante com a retomada de textos e a coleta de tantos outros -, a crítica estética do jogo de
videogame, desta vez, exige que nos aprofundemos em outras searas: a da pós-modernidade é
uma delas.
1
(No original em japonês: 悪魔城ドラキュラX 月下の夜想曲; em escrita romanizada: Akumajō Dracula X:
Gekka no Yasōkyoku; tradução para o português: ―O maligno Castelo de Drácula X: Noturno à luz da lua‖).
17
massificados, dada a forma como acontece sua distribuição e venda, e por conta do seu
conteúdo – formatado para diluir culturas em imagens, cada vez mais rarefeitas, de tradições
localizadas. Mídias como estas, computadores e televisores, são, segundo Anderson (1999), a
última fonte de lucro do capitalismo globalizado avançado.
2
Não estamos entendendo o videogame como ―objeto artístico‖ dentro de um circuito que se restringe à arte
stricto sensu. A nossa concepção parte do pressuposto de que o jogo de videogame é criado por um corpo de
designers e diretores responsáveis pelo projeto estético (político, moral etc.) de maneira que essa autoria
compartilhada similar à direção cinematográfica (e, em alguns casos, à autoria literária – segundo a compreensão
de teóricos como Roger Chartier, em Languages, Books, and Reading from the Printed Word to the Digital Text,
de 2004). Sendo um objeto cunhado por autores, concebemo-lo como produto cultural do homem - assim sendo,
obra. O termo ―artístico‖ se refere ao fato de que se trata de uma arte popular; políticas próprias que regem o
estatuto da arte, com questões que concernem à ordem social dos produtos culturais, não estão em discussão.
18
É preciso que se retorne para o estudo das mais variadas formas de acesso ao saber,
para que possamos ter capacidade para fazer mais do que simplesmente reproduzir.
Por isso, esta pesquisa envolve a análise da narrativa em contraponto com o romance
Drácula, atentando para a intertextualidade, além do estudo das composições musicais da
trilha do jogo, os efeitos sonoros e o estilo estético. Serão abarcados, para composição dessa
leitura, textos que pertencem às disciplinas de Música, Artes e Literatura – todos agrupados,
de forma a dar volume à nossa percepção dos mecanismos, através dos quais a paródia,
segundo Hutcheon (2000), é criada e funciona em Castlevania SoTN.
empreendidas neste trabalho têm como foco o caráter estético em detrimento de interpretações
políticas no que concerne às teorias pós-modernas abordadas. Além disso, o estudo do
videogame não se encaminhará pelo que tange corporeidades envolvidas no processo de
interação jogador x videogame; compreende-se que há pesquisas que podem atender essa
demanda de forma mais aprofundada3.
As perspectivas para o futuro dos estudos dos videogames são amplamente discutidas
por Mia Consalvo em The Future of Game Studies (2012). Retomando o debate sobre como
pesquisar a mídia, algo bastante discutido na dissertação por nós defendida em 2015, a
pesquisadora chega ao cerne da problemática, de modo que enxerga – assim como nós – duas
frentes. Uma delas formada por estudiosos da área de game studies, que insistem em cercear
politicamente seu território. O interesse de outras áreas de saber é visto por tais sujeitos como
algo a ser enfrentado: ―resistir e batê-los é o objetivo do nosso primeiro jogo de sobrevivência
neste trabalho, porque esses estudos emergentes precisam de independência, ou pelo menos
relativa independência‖4 5
(ESKELINEN, 2004, p. 36, apud CONSALVO, 2012, p. 7). Para
Consalvo, esse tipo de posicionamento não enfrenta questões que tenham a ver com a
complexidade dos objetos culturais projetados para essa mídia. Para a autora, há que se levar
em conta tanto a jogabilidade e a interação do jogador quanto fatores que se relacionam com
representações e narrativas. Outra pergunta feita por Consalvo parece também bastante
pungente: Como se dão as interações feitas por jogadores ou por pessoas que assistem aos
outros jogarem6?
A pesquisadora entende que a outra frente, a do estudo das narrativas dos jogos, deve
ser tomada como importante:
3
Destaco, nessa seara, os artigos de Thomas Apperley ―The body of the gamer: game art andgestural excess‖,
Digital Creativity, 2013 e ―Rhythms of Gaming Bodies‖ Proceedings of IE2007, 2007.
4
―[…] resisting and beating them is the goal of our first survival game in this paper, as what these emerging
studies need is independence, or at least relative independence‖ (ESKELINEN, 2004, p. 36, apud CONSALVO,
2012, p. 7).
5
Salvo indicação em referências bibliográficas, todas as traduções neste texto são de nossa autoria.
6
Há um tipo de video no Youtube em que os ―youtubers‖, ou espécie de ―bloggeiros de youtube‖, jogam os
videogames. Às vezes aparece em tela o jogador e o jogo, simultaneamente, às vezes apenas a voz e a tela do
jogo e, em algumas raras vezes, apenas o jogo sem qualquer comentário.
20
[…] alinhados com os estudos narratológicos, não devemos omitir o estudo das
narrativas ou histórias na busca por compreender os jogos. Muitas vezes, como meu
próprio trabalho tem demonstrado, os jogadores citam as histórias dos jogos como
um elemento crítico na sua alegria e, para alguns jogadores, os jogos devem ter um
enredo ou narrativa forte que mantenha seu interesse, ou mesmo que o motive a
jogar, em primeiro lugar. [...] É claro que, do ponto de vista do jogador e do
designer, histórias ou narrativas têm um lugar nos jogos, e a maneira como jogo e
narrativa se encaixam (ou não) deve também ser estudada por pesquisadores de
forma ativa. Finalmente, nenhuma disciplina ou campo deve (ou pode) ter controle
sobre a pesquisa ou teorização de jogos, e o estudo dos jogos é enriquecido por
vários caminhos de investigação. Narrativas não são os únicos elementos
importantes para estudar em jogos, e nem apenas sua mecânica. Estudiosos que
trabalham em áreas tão diversas como o direito (Burk, 2005; Lastowka & Hunter,
2004), a filosofia (Ess, 2009; Reynolds, 2002), a antropologia (Boellstorff, 2010;
Malaby, 2009), a história da arte (Sharp, 2010), a sociologia (Simon, 2006; Taylor,
2006), a ciência da computação (Mateas, 2004; Wardrip-Fruin, 2009) e outras áreas
têm contribuído muito para o estudo dos jogos, desenvolvendo de suas próprias
perspectivas disciplinares, mas também adaptando essas práticas ao estudo da
prática lúdica. Tais atividades nos trazem uma visão muito mais variada, rica e
valiosa de jogos e jogadores do que jamais alguma disciplina ou campo de estudo
poderia, por conta própria, trazer (seja ela a área de comunicação ou de game
studies) 7 (CONSALVO, 2012, pp. 8-9).
Sobre o último, importa notar que a autora aponta para o fato de que grandes geradores
de cultura de massa midiática, como filmes e televisão, não detêm o mesmo monopólio
7
―[…] In line with the narratologists, we must not omit the study of narratives or stories from our understandings
of games. As my own work has demonstrated, players often cite the stories in games as a critical element in their
enjoyment, and for some players, games must have a strong storyline or narrative to hold their interest, or even
to motivate their gameplay in the first place. […] Clearly, from a player and developer perspective, stories or
narratives do have a place in games, and thus how they fit (or not) should be actively studied by researchers as
well. Finally, no one discipline or field should (or can) have control over game research or theorization, and the
study of games is enriched by multiple paths of inquiry. Narratives are not the only important elements of games
to study, nor are game mechanics. Scholars working in fields as diverse as law (Burk, 2005; Lastowka & Hunter,
2004), philosophy (Ess, 2009; Reynolds, 2002), anthropology (Boellstorff, 2010; Malaby, 2009), art history
(Sharp, 2010), sociology (Simon, 2006; Taylor, 2006), computer science (Mateas, 2004; Wardrip-Fruin, 2009)
and other areas have all contributed much to the study of games, drawing from their own disciplinary
perspectives yet also adapting those practices to the study of ludic practice. Such activities bring us a much more
varied, rich and valuable account of games and game players than one discipline or field (whether
communications or game studies) ever could on its own‖ (CONSALVO, 2012, pp. 8-9).
8
Um ícone ou figura que representa a pessoa física em alguma mídia (videogame, internet, fóruns etc).
9
Trata-se de narrativas ficcionais criadas por fãs, baseadas originalmente apresentadas em outras mídias.
21
cultural quando se trata de videogames. A mudança no eixo que origina tais produções sai do
mundo ocidental e passa para o oriental, com a difusão de objetos culturais projetados por
países que antes estavam à margem de potências midiáticas, como os Estados Unidos.
10
Preferindo deixar o termo original, já que não há correspondente em português. Runaway production é um
termo usado para se referir às produções cinematográficas feitas para o mercado norte-americano que são
filmadas fora dos Estados Unidos. Dois motivos principais levam a esse modelo de produção: a diminuição dos
custos da produção e o uso de incentivos fiscais de outras locações.
11
―Such developments speak to the importance of studying global media, and how such media travels and
mutates as it crosses various cultural and national borders. Given the recent fragmentation of the television
industry and increasing practices of runaway production in the film industry, the games industry and research
about it offers another model for understanding the complexity of contemporary global media and their
audiences‖ (CONSALVO, 2012, p. 13).
22
vibratória, estética e quaisquer outros indícios físicos que acompanhem esses objetos textuais,
como encartes (elementos paratextuais), por exemplo.
Tendo em vista, porém, que a revisão bibliográfica feita se encerrou em 2013 e que,
desde então, outras pesquisas foram publicadas, retomamos as buscas em sítios virtuais como
o Portal Scielo, o Google Acadêmico e periódicos da Capes. A catalogação, leitura e análise
crítica dessas pesquisas serão abordadas detalhadamente no capítulo 2 desta tese. A discussão
aqui empreendida se dá por meio de três linhas de leitura: a) o que os pesquisadores indicam
como imprescindível na criação de uma crítica estética específica para os game studies; b) a
proposta de pesquisadores em imiscuir conceitos de interatividade digital e textos dramáticos
ao estudar narrativa de videogames; e c) a leitura de estudiosos que aludem à leitura como
equivalente. A partir dessa revisão de literatura a tese se inicia, sendo o primeiro capítulo
dedicado à localização do nosso objeto de estudo no panorama teórico-crítico no que diz
respeito a: a) alguns aspectos dos estudos sobre leitura e mídia; b) discussões teóricas no que
tange aos estudos pós-modernos; e c) uma revisão de literatura sobre a literatura gótica e o
romance Drácula, de Bram Stoker. A partir do entrelaçamento desses três pilares, daremos
prosseguimento a outras análises, que permitirão tanto o delineamento quanto o
aprofundamento no nosso objeto de estudo: o videogame Castlevania: Symphony of the Night.
12
Digo campo problemático porque não há um estabelecimento de como os jogos de videogame devem ser
pesquisados, metodologicamente falando. A princípio esta parece ser uma discussão de fácil resolução, mas a
dificuldade parece emergir, a partir das leituras que temos feito, da polissemia do próprio objeto, que o joga em
diferentes campos de estudo. Além disso, sua ―funcionalidade‖ também faz com que os campos de estudo o
disputem em diferentes searas: seria um objeto de entretenimento, uma materialização de discurso, uma
ferramenta pedagógica, etc. De fato, nenhum objeto de estudo se situa unicamente em apenas uma vertente de
estudos, mas os videogames, enquanto corpus de pesquisa, têm sido matéria de disputa de diferentes áreas de
estudo, diferente de outros objetos, por exemplo, como a literatura, que naturalmente se situa no âmbito das
letras e das ciências humanas.
13
Apenas como referência, cito um levantamento mais aprofundado publicado no artigo de Adriana Falqueto
Lemos e Maria Amélia Dalvi, ―Videogames, leitura e literatura: aproximações bibliográficas multi e
transdisciplinares‖. (Con)textos Linguísticos, v. 7, pp. 6-27, 2013.
24
É urgente, portanto, situar os textos dos videogames no âmbito da crítica que pode ser
produzida no âmbito dos estudos literários, já que nestes tempos digitais, compreendemos,
junto com Chartier, que ―as mutações de nosso presente transformam, ao mesmo tempo, os
suportes da escrita, a técnica de sua reprodução e disseminação, assim como os modos de ler‖
(CHARTIER, 2010, p. 8). A ideia de que o videogame representaria mais um suporte na
história das materialidades escritas é da ordem natural e se dá, além disso, dentro da
concepção de que os suportes promovem diferentes leituras ao mesmo tempo em que
25
correspondem aos anseios da ordem das práticas que envolvem seus usos. Não há rupturas: lê-
se livros impressos em formatos múltiplos, assim como versões digitalizadas em diferentes
suportes. O que define o uso de um formato ou de outro é (e sempre foi) motivado pela
necessidade do usuário.
A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: é por em jogo o corpo,
é inscrição num espaço, relação consigo ou com o outro. Por isso devem ser
reconstruídas as maneiras de ler próprias a cada comunidade de leitores, a cada uma
dessas ―interpretative communities‖ de que fala Stanley Fish (CHARTIER, 1991, p.
181).
[...] uma função ―ontológica‖, ou seja, estende o nosso mundo: eles sustentam – nas
palavras de Brey – ―novas realidades sociais e virtuais‖ (2005: 397). Em outras
palavras, enquanto um processador de texto é apenas uma ferramenta, jogos de
videogame constroem experiências, e é este caráter experimental que os permite
aproximar da narrativa15 (CARACCIOLO, 2011, p. 1).
Ou seja: ao usar o videogame, o jogador não tem simplesmente acesso a uma interface
que lhe expõe informações em tela; diferente disso, o jogador tem contato com uma narrativa
que se desenrola conforme sua interação.
14 ―
[...] l‘interazione di un videogiocatore con il mondo del gioco è strutturalmente analoga al gioco che ogni
lettore fa con i significati di un testo letterario‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 1).
15
―[...] i videogiochi hanno una funzione ―ontica‖, cioè estendono il nostro mondo: essi sostengono – nelle
parole di Brey – ―nuove realtà sociali e virtual‖ (2005: 397). In altre parole, mentre un word processor è solo uno
strumento, i videogiochi costruiscono esperienze, ed è proprio questo carattere esperienziale che consente di
avvicinarli alla narrativa‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 1).
26
Eu poderia dizer muito mais, mas por agora basta dizer que qualquer sequência de
um videogame ilustra tanto a ideia de uma pequena história tanto no sentido espacial
quanto no sentido corporal, e que isso é desenvolvido pela interação entre um sujeito
(o personagem controlado pelo jogador) e o ambiente. Por sua vez, esse sentido é
projetado sobre a interação entre o jogador e o jogo em si. Simplificando, a morte do
personagem controlado pelo jogador (no sentido corporal) se torna um, ―eu perdi‖
(no sentido proposicional). É aqui que a interface assume um papel fundamental 16
(CARACCIOLO, 2011, p. 1).
16
―Potrei dire molto di più, ma per ora è sufficiente sottolineare che una qualsiasi sequenza da un videogioco
illustra bene sia l‘idea di una piccola storia spaziale sia quella di un senso corporeo che si sviluppa
dall‘interazione tra un soggetto (il personaggio controllato dal giocatore) e un ambiente. A sua volta, questo
senso viene proiettato all‘indietro, sull‘interazione tra il giocatore e il gioco stesso. Semplificando, la morte del
personaggio controllato dal giocatore (senso corporeo) diventa un‚ ho perso‛ (senso proposizionale). È qui che
l‘interfaccia assume un ruolo-chiave‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 1).
27
Fonte: Figura 2: ―Lo spazio ermeneutico come intersezione‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 5).
Há, à esquerda, o mundo do jogo e, à direita, o mundo do jogador. Entre eles, surge o
espaço hermenêutico e a interface seria o ponto de contato do jogador com o mundo do jogo –
e a estrutura através da qual ele pode construir sua compreensão através do mundo do jogo.
Caracciolo explica que a interface vai além do mundo do jogo e encontra o mundo do jogador.
Outro texto pertinente, intitulado ―Heavy Rain y Beyond: Dos almas. Dramas
Interactivos en la Narración Transmedia‖, de Jafet Israek Lara (2014), traz à tona discussões
marcantes sobre o que é leitura e texto nos parâmetros de um videogame. De partida, Lara
entende que é preciso estudar o videogame, assim como o texto, como um discurso, já que
17
―[...] leggere un testo narrativo e giocare a un videogame sono attività ermeneutiche. Ciò non significa, è
ovvio, sottovalutare le differenze tra di loro, ma solo cercare un terreno comune su cui possiamo delimitare
queste differenze‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 6).
18
―[...] ambos juegan um papel sustantivo, inseparable e inherente dentro de la creación ficcional uperponiéndo
se entre sí, pues el primero se configura em el nivel de la composición dirigiéndose a um usuario, mientras que el
segundo es el resultado del processo discursivo de interpretar el sentido ya construído‖ (LARA, 2014, p. 132).
28
Lara entende o texto do jogo como esta pesquisa, já que entende que o videogame
propõe uma sequência narrativa apreendida pelo usuário enquanto ele interage com as
estruturas propostas pelo designer. Define-se, portanto, que
19
―Así pues, la interacción discurso-texto dentro del videojuego lleva a definirlo como um cibertexto audiovisual
no lineal e interactivo em el que la intervención del usuario es esencial para que el discurso aparezca y pueda ser
modificado em virtudde las propias reglas de juego, establecidas en el mundo narrativo transmedial diseñado, y
que condicionan la participación del usuario en la experiencia de juego‖ (LARA, 2014, p. 134).
29
Assim sendo, quem é o mestre do sentido? Será ele o leitor, ―esse alguém que tem,
reunidos num mesmo campo, todos os vestígios do qual o escrito é constituído‖,
como o queira Roland Barthes? De fato, a mobilidade da significação é a segunda
instabilidade que preocupou ou inspirou os autores que nos fazem companhia
(CHARTIER, 2010, p. 23).
Depois das considerações sobre o autor, nada mais natural do que as considerações
sobre o leitor, figura que passa a ter o dever de revitalizar o sentido do texto a cada leitura.
Tais leituras – múltiplas – devem incluir ―a validade heurística da apropriação, que remete às
categorias intelectuais e estéticas dos diversos públicos, tanto quanto aos gestos, aos hábitos,
às convenções que pautam suas relações com os escritos‖ (CHARTIER, 2010, p. 23). Dessa
forma, o processo cognitivo para a emergência do sentido do texto ganha novos ares,
ampliando as postulações feitas pela Teoria da Recepção (e que serão mais bem discutidas
posteriormente). Apenas para estabelecer qual posicionamento pauta esta pesquisa,
concordamos com Chartier quando o autor afirma que ―as formas do escrito ou as
competências culturais dos leitores estreitam os limites da compreensão. Mas, sempre
igualmente, a apropriação é criadora, produção de uma diferença, proposta de um sentido
possível, porém inesperado‖ (CHARTIER, 2010, p. 25). É na interação com a obra que o
20
A tradução de um videogame se chama ―localização cultural‖ e pode ser feita, inclusive, com adaptações que
vão além do texto. ―Traduzem-se‖, de uma cultura para outra, os personagens, as roupas e a modelação do
design do jogo.
30
leitor faz emergir o significado da mesma (atualizado a cada leitura). Isso é possível graças à
decodificação, ou seja, uma interação guiada pelos dispositivos contidos no próprio objeto.
Entre a interação leitor e autor – intermediada pelo livro – emerge o sentido. O autor do livro
(e o editor, designer gráfico, revisor, tradutor etc) interage com a obra criando um objeto
cultural a ser lido. Esse objeto cultural possui dispositivos de leitura e está codificado; além
disso, a própria materialidade e os recursos gráficos que o compõem encerram possíveis
leituras. Esse autor, além disso, pertence a um contexto sócio, político, histórico, cultural e
econômico que influenciou o seu fazer. Do outro lado, o leitor, que, assim como o autor,
situa-se num contexto e faz parte de uma comunidade cultural.
A codificação do jogo projeta, a priori, a interação que o jogador poderá ter com a
interface do mundo virtual, a posteriori. Esse escopo de ações possíveis planejadas pelos
designers permite que o jogador interaja de certas formas (que não outras). Assim sendo, cada
videogame tem seu modo de jogar (sua jogabilidade) e uma progressão de dificuldade no
nível de tarefas possíveis dentro do escopo de possibilidades de interação. Além do avanço do
jogo (do sucesso, do desvelar narrativo), a jogabilidade estabelece que tipo de interação que o
jogador terá com o mundo virtual e implica uma lente para sua leitura, ou seja, também é um
componente a ser levado em conta na análise da compreensão do sentido do jogo (em
31
conjunto com os outros dispositivos da interface já apontados, compostos por texto, imagem,
vibração e som).
Videogames, segundo Grant Tavinor (2009), são criados para produzir experiências.
Essas experiências, segundo Espen Aarseth (1997), são ergódicas. Ergodicidade é o que faz o
jogo, através do seu código, ter objetivos e avaliar de que modo e quando o jogador os
cumpre. Miguel Sicart (2011, p. 3), que incorpora conceitos de Aristóteles para a leitura da
mecânica do jogo, explica que o jogo tem dois momentos: in potentia, ou ―adormecido‖, que
é quando o código está na mídia, e in actio, que é quando ele está em funcionamento. Dessa
forma, o artefato ergódico do jogo, a partir do código e do que sejam os critérios para o
sucesso, avalia se os jogadores conseguiram atingir as metas propostas ou não. Os artefatos
ergódicos são inseridos no código do jogo e são postos em atividade quando o jogo está em
funcionamento.
hermenêutica do jogador sobre o que é jogado. Cada ponto ( ● ) indica um elemento ergódico
que será encontrado pelo jogador e que receberá seu input. Caso o jogador tenha sucesso na
interação com o elemento ergódico (por exemplo, deverá abrir uma porta e, para abri-la, terá
que utilizar uma chave), ele prossegue no fio narrativo que dá continuidade à trama. Por outro
lado, caso não obtenha sucesso, poderá se encaminhar para outro percurso narrativo ou ter o
encerramento do jogo (com a morte do avatar).
Percebe-se, portanto, que não há liberdade real de interação do jogador com o mundo
do jogo: há possibilidades pré-estabelecidas que geram resultados conforme sucessos ou
insucessos no processo interacional – o que produz uma falsa impressão de liberdade. O que é
compreendido pelo jogador é o percurso narrativo do qual ele participa. Além disso,
compreende-se que o ato de criação de um jogo define o que é moral ou imoral no jogar, por
exemplo. O que é definido no código é que se tornará, posteriormente, uma narrativa. São os
artefatos ergódicos, ou seja, os pequenos desafios implantados aqui e ali durante todo o
percurso do jogo, que acionarão a sequência da história, dentre outras coisas. Por exemplo: Se
é preciso (ou possível) matar os reféns que estão na tela enquanto você os liberta, pode
indiciar o modo como os designers veem essas pessoas. Em Resident Evil 4, para Playstation
2, é possível matar os animais que estão no cenário. Quando isso ocorre, uma espécie de pedra
preciosa de valor ínfimo cai no chão. Esse elemento ergódico indicia uma premiação para um
ato violento, ou seja, o design do jogo é moral. Assim sendo, concorda-se com Luís Nogueira,
em Narrativas Fílmicas e Videojogos (2008), quando ele aponta que
[...] por um lado, todo o jogo é apresentado a um jogador através de um enredo; por
outro lado, todo o jogador inscreve as suas ações numa lógica de causa e feito típica
da ideia de história. Essa necessidade causal, que na primeira parte identificamos
como condição de inteligibilidade da ação, afigura-se, assim, como condição de
possibilidade quer da narratividade – pelos padrões que permite encontrar ao nível
da hermenêutica – quer da jogabilidade – pelos programas que permite delinear ao
nível do desempenho –, acabando por unir estes dois domínios. Esta dupla
narrativização do jogo teria como intuito final, para o jogador, uma espécie de
quimera narrativa: o que o jogador persegue e constrói para si próprio à medida que
joga é uma espécie de narrativa perfeita que lhe permita ganhar um jogo, um
domínio e harmonização absolutos das causas e dos efeitos, dos motivos e das
intenções, dos propósitos e das consequências, das decisões e das execuções – que
essa narrativa perfeita pareça sempre protelada, em consequência do erro, tal deve-se
ao facto de o jogo privilegiar o desafio como princípio. Daí que um jogo esteja,
como veremos depois, sempre em risco de ser perdido. E daí que, se o jogador
consegue desvelar (e implementar) essa narrativa perfeita, sob a forma de um
programa lúdico infalível, o jogo perca para ele qualquer interesse – carente de
mistério, dúvida, surpresa, risco ou dificuldade, nenhuma expectativa (e, logo,
nenhum desafio) resta ao jogador. Quer isto dizer que, do mesmo modo que
acontece na narrativa, também no jogo a previsibilidade de um desfecho inibe
qualquer desafio (2008, p. 100-101).
33
Concluímos esta sessão reafirmando que os estudos da história dos impressos, das
leituras e dos escritos nos são caros para a nossa concepção dos objetos a serem pesquisados,
porque
Se hoje o videogame, assim como outras materialidades textuais e culturais, ainda não
é um objeto naturalmente abarcado pelos estudos literários (dentro de um horizonte de
pesquisa), isso se deve ao fato de que há um sistema de representações sobre o que é texto e
seus suportes de leitura. São categorias mentais, esquemas que produzem e fixam imagens da
realidade. Objetivamente, esta tese dá sequência à pesquisa da dissertação, intitulada
Literatura, Videogames e Leitura: intersemiose e multidisciplinaridade, e se preocupa em
estabelecer formas de leitura para o videogame com base em pressupostos teóricos dos
estudos textuais, dos game studies e de leitura. Assim sendo,
Tais caminhos para estudos críticos nos interessam porque por meio deles podemos
entender os processos que tratam da leitura dos videogames como prática historicamente
determinada. Mas, além disso, somos forçados a perceber que o estudo dos videogames no
âmbito das Letras é parte do pensamento pós-moderno, assim como o próprio objeto o é. À
medida que nos aprofundamos nas possibilidades discursivas dessa mídia, encaminhamo-nos
para a compreensão das suas armadilhas.
em outros canais como a televisão e a fotografia. De maneira silenciosa, parece falar às várias
comunidades globais, de países na Europa Continental e América do Norte às populações
periféricas de países emergentes e culturalmente marginalizados da Ásia e África. Porém, de
maneira diferente de outras mídias de consumo, o videogame é produzido também fora do
eixo da cultura ocidental que prevaleceu como modelo de revolução industrial e de
colonização. Prossigamos para os estudos da pós-modernidade para que possamos discutir tais
conceitos de maneira mais intensa.
O que contribuiu para que as divisões de classes se tornassem cada vez menos claras,
segundo Anderson, foi a condição estável do pós-guerra. Essa diluição de classes parece,
portanto, incapaz de ―sustentar a tensão modernista‖ (1999, p. 19), que seria a ideia de
entender o percurso histórico, econômico e cultural da sociedade como sucessão de passos
evolutivos rumo ao equilíbrio. A tensão, portanto, é situada na necessidade de que a
humanidade caminhe para o avanço da ciência e das relações humanas. De acordo com Iná
Camargo Costa e Maria Elisa Cevasco, no prefácio da edição brasileira de 2004 de Pós-
Modernismo, de Fredric Jameson (2004), a perda de historicidade que deságua no pensamento
pós-moderno é causada pela ruptura com a lógica de progresso artístico (pp. 14-15).
A noção de pós-modernidade apenas ganharia difusão ampla depois dos anos 1970,
com o pensamento de Ihab Hassan. Para Anderson, o pós-modernismo começou a ser
encarado como um escopo no qual vários aspectos estéticos poderiam ser abarcados,
―tendências que ou radicalizavam ou rejeitavam as principais características do modernismo:
uma configuração que se estendia às artes visuais, à música, à tecnologia e à sensibilidade em
geral‖ (ANDERSON, 1999, p. 25). Para o autor, os estudos desenvolvidos por Hassan foram
importantes, pois estendiam o espectro pós-moderno à crítica de todas as formas artísticas (p.
27).
De acordo com Anderson, com a chegada dos anos 1980, Charles Jencks observou que
as cidades pareciam-se mais colagens de diversos momentos arquitetônicos na história.
Partindo deste prisma, Jencks enxergou a pós-modernidade como uma
tolerância pluralista [...], uma civilização que ―tornava sem sentido‖ polaridades
ultrapassadas como ―esquerda e direita; capitalista e classe operária‖. Numa
sociedade em que a informação importava agora mais que a produção, ―não há mais
vanguarda artística‖, uma vez que ―não há inimigo a derrotar‖ na rede eletrônica
36
global. Nas condições emancipadas da arte atual, ―há em vez disso inúmeros
indivíduos em Tóquio, Nova York, Berlim, Londres, Milão e outras cidades
mundiais que se comunicam e competem, assim como estão no mundo financeiro‖
(What is Post-Modernism?, Londres, 1986, p. 44-8). Era de se esperar que de suas
criações caleidoscópicas emergisse ―uma ordem simbólica comum do tipo fornecido
por uma religião‖ (p. 43) – Compromisso último do pós-modernismo.
(ANDERSON, 1999, pp. 30-31).
A informação, acima da produção, torna-se, portanto, bem mais caro na sociedade pós-
moderna – há uma rede plural globalizada que congrega diversas vozes sincréticas que se
sobrepõem umas às outras em diversas esferas culturais. Segundo Lyotard, há duas formas de
saber: a positivista e a hermenêutica. A forma positivista inquire com mais simplicidade e
objetividade do que a forma hermenêutica. Essa metodologia encontra sua utilidade com mais
facilidade nos métodos e materiais utilizados para fins produtivos. Assim sendo, tal forma de
saber é indispensável. A forma hermenêutica, por outro lado, inquire em busca de reflexões e
críticas sobre a importância ou a finalidade das coisas (LYOTARD, 1986, p. 24).
Pelo fato da maneira positivista chegar a resultados mais produtivos de modo mais
objetivo, Lyotard prossegue em suas reflexões, entendendo que decisões gerenciais, portanto,
passariam a ser tomadas por autômatos. Computadores, alimentados por dados, são capazes
de tomadas de decisão mais imediatas e produtivas, sendo fundamental apenas que seus
sistemas sejam supridos com informações21.
A partir desse raciocínio, Lyotard declara que os dirigentes, que gerenciam empresas e
órgãos governamentais, não serão mais políticos tradicionais, mas administradores
especializados – eles seriam os responsáveis por gerir as máquinas e interpretar seus dados
(1986, p. 27). Esse conhecimento, que são informações que circulam nesses redutos do poder,
é burocratizado; ou seja, para que possa ser absorvido no âmbito institucional, denotando o
que é admissível ou não nos discursos, ele deve seguir certos parâmetros formais. Assim
sendo, instituições diferem de discussões porque requerem
21
Cito livremente o filme Jogos de Guerra (1987), de John Badham. No longa-metragem, um computador é
utilizado para vigilância e supervisão do sistema bélico dos exércitos dos Estados Unidos da América após
alguns controladores terem problemas em seguir ordens. O computador tem um banco de dados e é capaz de
calcular movimentos de guerra antecipadamente. Dessa forma, passa a ser utilizado para a tomada de decisões.
37
Quando o conhecimento é capaz de otimizar alguma performance (ou seja, quando ele
é útil), é rentável; portanto, tem status de imprescindível em financiamentos, que podem ser
privados ou estatais. Dessa forma, se antes o conhecimento carecia de burocratização e
verificação para se legitimar, ao final do século XVIII é a performance do conhecimento que
assegura o seu valor. Assim,
o que está em questão não é a verdade, mas o desempenho, ou seja, a melhor relação
input/output. O estado e/ou a empresa abandona o relato de legitimação idealista ou
humanista para justificar a nova disputa: no discurso dos financiadores de hoje, a
única disputa confiável é o poder. Não se compram cientistas, técnicos e aparelhos
para saber a verdade, mas para aumentar o poder (LYOTARD, 1986, p. 83).
22
Ver as notas da autora.
38
Portanto, nos jogos de linguagem descritos por Lyotard, o de nível técnico, cuja ordem
é a do eficiente e não eficiente, acaba por sobrepujar os níveis denotativos e prescritivos
(verdadeiro/falso e justo/injusto) (LYOTARD, 1986, p. 83). O resultado disso é a divisão do
orçamento para pesquisas, que segue a lógica do aumento do poder: quanto mais técnica, mais
performance, mais lucro, mais poder; ou seja, ―o critério de bom desempenho é
explicitamente invocado pelas administrações para justificar a recusa de apoiar este ou aquele
centro de pesquisas‖ (LYOTARD, 1986, p. 85). Na pós-modernidade, o conhecimento não é
mais um bem em si mesmo; ele apenas pode se justificar sobre sua utilidade. Assim sendo,
―no contexto da mercantilização do saber, essa última questão significa comumente: isso é
vendável? E, no contexto do aumento do poder: isso é eficaz?‖ (LYOTARD, 1986, p. 93).
Segundo Anderson, ―para Lyotard, a chegada da pós-modernidade ligava-se ao surgimento de
uma sociedade pós-industrial [...], na qual o conhecimento tornara-se a principal força
econômica de produção‖ (1999, p. 32). E, finalmente, para Lyotard, as metanarrativas
[...] foram desfeitas pela evolução imanente das próprias ciências: por um lado,
através de uma pluralização de argumentos, com a proliferação do paradoxo e do
paralogismo – antecipados na filosofia por Nietzsche, Wittgenstein e Levinas; e, por
outro lado, por uma tecnificação da prova, na qual aparatos dispendiosos
comandados pelo capital ou pelo Estado reduzem a ―verdade‖ ao desempenho. A
ciência a serviço do poder encontra uma nova legitimação na eficiência. Mas o
autêntico pragmatismo da ciência pós-moderna está não na busca do performático,
mas na produção do paralogístico – na microfísica, os fractais, as descobertas do
caos, ―teorizando sua própria evolução como descontínua, catastrófica, incorrigível e
paradoxal‖ (The Postmodern Condition, Minneapolis, 1984, p. 60). Se o sonho do
consenso é uma relíquia da nostalgia da emancipação, as narrativas como tais não
desaparecem, mas se tornam miniaturas e competitivas: ―a pequena narrativa
continua sendo a quintessência da invenção imaginativa‖ (The Postmodern
Condition, p. 60). Seu análogo social, onde termina A condição pós-moderna, é a
tendência para o contrato temporário em todas as áreas da existência humana: a
ocupacional, a emocional, a sexual, a política – laços mais econômicos, flexíveis e
criativos que os da modernidade (ANDERSON, 1999, pp. 32-33).
Para Anderson, Lyotard ―deixou de fora‖ (1999, p. 34), em sua tentativa de entender o
conhecimento na pós-modernidade, as artes e a política. De acordo com o autor, tanto Lyotard
quanto Habermas teriam falhado em apresentar uma teorização que abarcasse o contexto
espaço-tempo, com falhas em explicar apropriadamente, no caso de Lyotard, a
―deslegitimação das grandes narrativas‖ e, no caso de Habermas (apud ANDERSON, 1999, p.
52), ―a colonização do mundo da vida‖. Fredric Jameson observou o
viagens, transações comerciais e sociais (possibilitados pela eficiência tecnológica dos meios
de transporte e de comunicação). Para o autor, o resultado é uma histeria que se contrapõe à
esquizofrenia, um exterior insensível com um interior fragmentado – tais imagens identitárias
são oportunamente esmiuçadas por Stuart Hall em A Identidade Cultural na Pós-
Modernidade.
Anderson entende que essa velocidade, alinhada à fragmentação, fez com que o vídeo
fosse a mídia da pós-modernidade (1999, p. 71). A fragmentação, por outro lado, tem uma
faceta positiva: torna a pós-modernidade mais democrática, já que ―a época das grandes
assinaturas individuais e obras-primas do modernismo estava encerrada‖ (ANDERSON,
1999, p. 76). O pós-modernismo é ―o éter cultural de um sistema global que rejeitava todas as
divisões geográficas‖ (ANDERSON, 1999, p. 87), ―uma época que cessaria o domínio
ocidental‖ e ―um momento em que o oriente e o terceiro mundo colonizam e são incluídos
culturalmente no imaginário cultural do ocidente‖ (ANDERSON, 1999, p. 88).
Esse pós-modernismo, que emergiu no início dos anos 1970, é a lógica cultural do
capitalismo avançado (ANDERSON, 1999, p. 93).
O pós-modernismo pode ser visto como um campo cultural triangulado, por sua vez,
em três novas coordenadas históricas. A primeira delas está no destino da própria
ordem dominante. [...] Uma segunda condição pode se relacionar à revolução da
tecnologia. [...] Uma terceira coordenada da nova situação está, claro, nas mudanças
políticas da época (ANDERSON, 1999, p. 100, 102, 108).
Assim, pode-se perceber que a degradação da ordem dominante é causada por uma
queda do establishment acadêmico. A TV entra como um ―divisor de águas tecnológico do
pós-moderno: ―[...] Outrora, em júbilo ou alarmado, o modernismo era tomado por imagens
de máquinas; agora, o pós-modernismo é dominado por máquinas de imagens‖
(ANDERSON, 1999, pp. 104-105). Finalmente, essa mudança política se caracteriza quando
―a modernidade chega ao fim, como observa Jameson, ao perder todo o contrário‖
(ANDERSON, 1999, p. 108). Ocorre que não há mais polarizações com a diluição das classes
e dos movimentos, completamente pulverizados.
Dialogando com o que Lyotard (1986) pontua como poder da informação pelo lucro,
Anderson acredita que o poder financeiro da informação aliada à tecnologia midiatizada é o
rosto da pós-modernidade.
As criações culturais são múltiplas – e não podem mais ser divididas em categorias de
classes ou binarismos. Segundo Anderson, a primeira obra a observar tais fenômenos é A
Condição Pós-Moderna, de Jean-François Lyotard.
O poder das imagens no capitalismo global é um dos assuntos discutidos por Linda
Hutcheon, em The politics of Postmodernism (2000). Essa excessiva exploração imagética,
típica do pós-modernismo, oferece um retorno à figuração nas artes e na ficção
(HUNTCHEON, 2000, p. 7). Na verdade, Hutcheon acredita que o exagero no uso de imagens
corrobora a ideia de que há um consenso sobre o poder das representações: elas ―não refletem
a sociedade tanto quanto dão sentido e o valor de uma sociedade em particular‖23
(HUNTCHEON, 2000, p. 8, grifos da autora). O problema é o paradoxo que gira em torno da
questão das representações: ―por um lado, há um senso de que nós nunca poderemos nos
libertar do peso de uma longa tradição de representações visuais e narrativas e, por outro,
parece que nós estamos perdendo a fé na inesgotabilidade e poder dessas representações‖24
(HUTCHEON, 2000, p. 8).
23
―[...] do not reflect society so much as grant meaning and value within a particular society‖ (HUNTCHEON,
2000, p. 8, grifos da autora).
24
―On one hand, there is a sense that we can never get out from under the weight of a long tradition of visual and
narrative representations, and, on the other hand, we also seem to be losing faith in both the inexhaustibility and
power of those existing representations‖ (HUTCHEON, 2000, p. 8).
25
―[…] a specific and historically determined distrust of ideologies of power and a more general suspicion of the
power of ideology‖ (HUTCHEON, 2000, p. 10).
26
―In whose institutions will faith be restored? In whose interest will such a restoration be? Do these institutions
deserve our faith? Can they be changed? Should they be? While postmodernism may offer no answers, these are
questions perhaps worth asking‖ (HUTCHEON, 2000, p. 15).
43
Para Jameson, seria possível ―sair‖ do universo cultural pós-moderno para estudá-lo,
de maneira que enxergaríamos uma macroestrutura dentro da qual fosse possível observar os
fenômenos desse estilo de vida do capitalismo globalizado. Jameson acredita na totalização
para escapar da alienação causada pela enorme fragmentação teórica. O desafio seria
entender, através de um exame geral, como a estrutura socioeconômica opera. Segundo Costa
e Cevasco,
Jameson não parece enxergar a cultura pós-moderna com otimismo, já que lhe parece
um misto de ―pastiche e esquizofrenia‖ (1985, p. 18). Para o autor, ―tanto pastiche quanto
paródia envolvem imitação ou, melhor ainda, o mimetismo de outros estilos, particularmente
27
―Representations are productive: photographs, far from merely reproducing a pre-existing world, constitute a
highly coded discourse which, among other things, construct whatever is in the image as object of consumption –
consumption by looking, as well as often quite literally by purchase. It is no coincidence, therefore, that in many
highly socially visible (and profitable) forms of photography women dominate the image. Where photography
takes women as its subject matter, it also constructs ―woman‖ as a set of meanings which then enter cultural and
economic circulation on their own account‖ (KUHN, 1985, p. 19, apud HUTCHEON, 2000, p. 22).
44
dos maneirismos e tiques estilísticos de outros estilos [...]. O pastiche é paródia lacunar,
paródia que perdeu seu senso de humor‖ (JAMESON, 1985, p. 18). Tal possibilidade é
desdobramento da queda do autor: já que qualquer um pode se apropriar do discurso do outro,
nada novo pode ser criado, então a história da estética se acabou. A sensação de esquizofrenia
é causada pela quebra na temporalidade do discurso, como se quem fala não soubesse
exatamente o que narrar – é como se houvesse um conjunto de imagens colocadas em
sequência, sendo mudadas rapidamente. Faltaria causalidade e sequência no encadeamento
narrativo. No que a pesquisa tem nos dado a ver, a produção cultural humana é bem mais rica
do que a concepção de ―pastiche‖ que Jameson implica, pois há uma inventividade criativa e
uma intenção crítica, que muitas vezes se confundem com simples imitação, mas que fazem
da paródia mais um comentário ácido sobre o texto original do que uma cópia distorcida.
O que Jameson acredita ser um passo para trás no pós-modernismo, que seria a cultura
de massa sobrepujando a cultura erudita, é talvez uma das possibilidades mais importantes da
pós-modernidade. É o que há de mais desprendido e autêntico no movimento: a possibilidade
de emancipação e de participação de artistas de culturas marginais (que estão fora do eixo
norte-americano/europeu) na mídia e no mercado de proporção global. Ao passo que perdem
sua identidade (já que esta acaba por deixar de ser local e passa a ser mediada através de
representações que se diluem no imaginário de outras culturas), os objetos culturais passam a
fazer parte de uma unidade social globalizada. A era da vida mediada por imagens ultrapassa,
segundo Hutcheon, a Era da Reprodutibilidade Técnica de Benjamin (2000, p. 29), porque
lida com a crise das representações. A pesquisadora reflete bem a problemática quando se
pergunta:
Alguma vez já tivemos contato com o ―real‖ que não através de representações? Nós
podemos ver, escutar, sentir, cheirar e até tocá-lo, mas nós o conhecemos no sentido
em que o significamos? Nas palavras sucintas de Lisa Tickner, o real é ―possível
45
Para Hutcheon, a assimilação daquilo que enxergamos com nossos olhos, ou seja, a
realidade imediata, depende da forma como o mundo nos é descrito. O ―real‖ só pode ser
identificado e apropriado discursivamente. Não há, segundo a pesquisadora, nada de ―natural
sobre o ‗real‘ e nunca houve – mesmo antes da existência da mídia de massa‖29
(HUTCHEON, 2000, p. 29). Por isso, Hutcheon não entende a pós-modernidade como um
momento em que a realidade é inflada, ―não é uma degeneração para a ‗hiper-realidade‘, mas
um questionamento do que a realidade pode significar e como nós podemos conhecê-la‖30
(HUTCHEON, 2000, p. 32). Logo, não há risco de que toda a cultura pós-moderna possa ser
interpretada por Hutcheon como paródia ou pastiche: esses tabus que ecoam as expectativas
ligadas à originalidade e ―aura‖ evocadas por Benjamin deixam de fazer sentido quando se
leva em conta o fato de que qualquer produção é uma ―reapropriação de representações já
existentes‖31 (HUTCHEON, 2000, p. 33).
28
―Have we ever known the ―real‖ except through representations? We may see, hear, feel, smell, and touch it,
but do we know it in the sense that we give meaning to it? In Lisa Tickner‘s succinct terms, the real is ―enabled
to mean through systems of signs organized into discourses on the world‖ (HUTCHEON, 2000, p. 31).
29
―There‘s nothing natural about the ―real‖ and there never was – even before the existence of mass media‖
(HUTCHEON, 2000, p. 29).
30
―[...] (it) Is not a degeneration into ‗hiperreality‘ but a questioning of what reality can mean and how we can
come to know it‖.
31
―Reappropriation of already existing representations‖ (HUTCHEON, 2000, p. 33).
32
―[...] the theory that representational machineries were reality‘s synonyms, not a window (often cracked) onto
reality, eroded the immediate security of another lovely gift of Western humanism: the belief in a conscious self
that generates texts, meanings, and a substantial identity‖ (STIMPSON, 1988, p. 236, apud HUTCHEON, 2000,
p. 36).
46
33
―It is always a gendered subjectivity, rooted also in class, race, ethnicity, and sexual orientation. And it is
usually textual self-reflexivity that paradoxically calls these worldly particularities to our attention by
foregrounding the doxa, the unacknowledged politics, behind the dominant representations of the self– and the
other – in visual images or in narratives‖ (HUTCHEON, 2000, p. 37).
34
―If the postmodern photographer is more the manipulator of signs than the producer of an art object and the
viewer is more the active decoder of messages than the passive consumer or contemplator of aesthetic beauty
(Foster 1985: 100), the difference is one of the politics of representation. However, postmodern photography is
often overtly about the representation of politics too‖ (HUTCHEON, 2000, p. 42).
47
Na verdade, esse seria o verdadeiro desafio dos estudos críticos, de modo a evitar
armadilhas ideológicas na observação dos fenômenos culturais. Em oposição a isso, Hutcheon
acredita que a narrativa é, por si só, um conceito ideológico. Assim, a totalização como
possibilidade de crítica se torna um desafio (2000, p. 59), já que se baseia na narrativa
historicizada, com começo, meio e fim. As técnicas e os materiais utilizados para cunhar a
história são todos fundamentados em representações de narrativas – coerentes, unificadas,
causais, processuais etc.
―Tudo deve ser recapturado e realocado no modelo geral de história, então apesar
das dificuldades, dos paradoxos fundamentais e contradições, nós podemos respeitar
a unidade da história que é também a unidade da vida‖ (BRAUDEL, 1982, p. 16). A
representação narrativa totalizadora também tem sido considerada por alguns
críticos como a característica definidora do romance como um gênero, desde seu
início, claramente explícita em controlar e ordenar (e ficcionalizar) de Cervantes e
Sterne35 (BRAUDEL, 1982, p. 16, apud HUTCHEON, 2000, p. 60).
Hutcheon, na verdade, retoma Jameson para discutir o que o crítico chama de crise da
representação da cultura contemporânea. Trata-se de uma
35
―‗Everything must be recaptured and relocated in the general framework of history, so that despite the
difficulties, the fundamental paradoxes and contradictions, we may respect the unity of history which is also the
unity of life‘ (BRAUDEL 1982: 16). Totalizing narrative representation has also, of course, been considered by
some critics as the defining characteristic of the novel as a genre, ever since its beginnings in the overt
controlling and ordering (and fictionalizing) of Cervantes and Sterne‖ (HUTCHEON, 2000, p. 60).
36
―Maybe we need to stop trying to find totalizing narratives which dissolve difference and contradiction (into,
for instance, either humanist eternal Truth or Marxist dialectic)‖ (HUTCHEON, 2000, p. 67).
37
―Knowing the past becomes a question of representing, that is, of constructing and interpreting, not of
objective recording‖ (HUTCHEON, 2000, p. 67).
48
Isso ocorre principalmente porque não é possível que se consiga retornar ao passado.
Ao invés disso, só é possível que se tenha contato com ele através das narrativas.
Ou seja: não podemos retomar eventos a não ser que isso seja feito através de
representações indiretas produzidas através da linguagem, como filmes, arquivos, fotografias,
pinturas, obras arquitetônicas e a literatura (HUTCHEON, 2000, p. 75). Mais delicadamente
falando, ―eventos passados recebem significados e não existência, através de sua
representação na história‖ (HUTCHEON, 2000, p. 78). O que a totalização provoca, segundo
Hutcheon, é uma busca constante por ―consertar‖ inconsistências que possam surgir na
textualização da estruturação dos fragmentos históricos recolhidos, organizados e
interpretados por historiadores (HUTCHEON, 2000, p. 83). Na verdade, de acordo com
Hutcheon, a paródia é importante no pós-modernismo porque consegue desnaturalizar as
representações históricas que temos. Revisita os fatos passados levantando contradições e
subvertendo a ordem histórica. A paródia é o que Linda Hutcheon acredita ser o que Owens
chamou de ―impulso alegórico do pós-modernismo‖ (HUTCHEON, 2000, p. 91). A paródia
pós-moderna não é simplesmente ―nostálgica‖, mas distorciva, porque desconfigura as
representações ―sagradas‖ que temos dos fatos passados (HUTCHEON, 2000, p. 94). A
paródia é ―uma quebra no suposto fluxo da história, com intenção de destruir a credibilidade
do reinado dos relatos históricos – em favor do ponto de vista de quem a história denominou
como perdedores‖39 (HUTCHEON, 2000, p. 101).
38
―[…] in which an essentially realist epistemology, which conceives of representation as the reproduction, for
subjectivity, of an objectivity that lies outside it – projects a mirror theory of knowledge and art, whose
fundamental evaluative categories are those of adequacy, accuracy, and Truth itself‘ (JAMESON, 1984b, p. viii).
The epistemological issues raised by representation in both historiography and fiction belong in the context of
this crisis‖ (HUTCHEON, 2000, p. 71).
39
―[...] a revolutionary break in the supposed stream of history, intended to destroy the credibility of the reigning
historical accounts – in favor of the point of view of history‘s designated losers‖ (HUTCHEON, 2000, p. 101).
49
têm mercado próspero no Terceiro Mundo. Também aí, como acontece com a
televisão, o advento de novos tipos de conexão e simulação tenderá a unificar e não
a dividir os centros urbanos do próximo século, mesmo com as grandes diferenças
de renda média. Enquanto prevalecer o sistema do capital, cada novo avanço da
indústria da imagem aumenta o raio de alcance do pós-moderno. Nesse sentido,
pode-se dizer, seu predomínio global está praticamente predestinado (p. 141).
40
Há um artigo pertinente sobre esse e outros aspectos intitulado ―The Meaning of Race and Violence in Grand
Theft Auto: San Andreas‖, de Ben DeVane e Kurt D. Squire (2008), que pode ser acessado em:
<https://website.education.wisc.edu/kdsquire/tenure-files/10-DeVaneSquire_revised.pdf>. Acesso em: 26 jun.
2018.
50
nome tanto de uma revista científica quanto de uma conferência internacional com foco nas
implicações culturais da cultura popular asiática, especialmente os animes (desenhos
animados), mangás (quadrinhos) e jogos de videogame. O evento ocorre anualmente nos
Estados Unidos e a cada dois anos na Ásia.
O trabalho apresentado por Marc Ricard, ―The Berserk Healer: The Gender Politics of
Sword Art Online‖41, por exemplo, discutiu sobre a protagonista Yuuki Asuna do jogo Sword
Art Online e como ela parece se dividir em duas posições paradoxais, que seriam as de
oscilações de gênero: revolucionária e conservadora. A princípio, Asuna é forte e assertiva, o
que a torna um exemplo de personagem feminina independente; durante a história, no entanto,
ela é reduzida a vítima, o que, para Ricard, parece apaziguar o ego masculino ferido da
audiência. O resultado, que é a adoção de uma classe autointitulada por Asuna e traduzida
livremente como curadora assassina, uma categoria que une o papel tradicional secundário da
mulher (curadora não-violenta) com o masculino (assassino violento). A pergunta de Ricard
nos remete tanto ao jogo quanto a muitos outros produtos culturais que fazem parte do nosso
dia a dia: Essa forma de se autodeterminar simboliza a representação das mulheres nos jogos,
como se elas pudessem ser tudo ao mesmo tempo, ou essa classe esquizofrênica é um sintoma
de um debate que se tornou inegociável?
41
RICARD, Marc. The Berserk Healer: The Gender Politics of Sword Art Online. Comunicação oral
apresentada no Mechademia, evento acadêmico realizado pela Minneapolis College of Art and Design, em
Mineápolis, Estados Unidos, em setembro de 2015.
42
FERGUSON, Andrew. Final Fantasy VI: Breaking Narrative, Glitching Gender. Comunicação oral
apresentada no Mechademia, evento acadêmico realizado pela Minneapolis College of Art and Design, em
Mineápolis, Estados Unidos, em setembro de 2015.
51
fatos que se apresentarão como narrativa de forma diferente de como foram programados
pelos designers. Concentrando-se no airship glitch, que faz com que o jogador tenha acesso à
nave desde o começo do jogo, Ferguson percebe que é possível acessar todo o mapa do
mundo bem à frente do arco narrativo, quebrando a sequência programada. Os glitches
permitem que o jogador explore outros atalhos na programação, produzindo situações bizarras
como, por exemplo, o caso de um personagem visitar ele mesmo no túmulo, tornar-se seu
próprio pai etc. Para Ferguson, procedimentos que alteram o desempenho do jogo por meio de
glitches são formas de resistência ao texto, ao espaço, ao sistema binário, à máquina, à lógica
etc. É possível perceber que o trabalho desse autor aponta para subversões que podem ser
criadas de dentro do sistema para fora, a partir de buracos e falhas não percebidas – ou, quem
sabe, deixadas de propósito.
Outro trabalho pertinente foi apresentado por Se Young Kim, intitulado ―Getting over
The Fear of Murder: The Last of Us and the Ethics of Empowerment‖43. A pesquisadora
analisou o jogo The Last of Us (2013), pensando no que já havia sido divulgado sobre Rise of
the Tomb Raider (2015). De acordo com o blog de notícias de jogos Kotaku, nesse jogo, a
protagonista Lara Croft ―superou o medo de matar‖. Em entrevista de 2012, Noah Hughes,
produtor criativo da franquia, comentou: ―na verdade o nosso jogo é sobre empoderamento, é
sobre se tornar um herói‖. Colocando as duas frases lado a lado, Kim começa a se perguntar
sobre o que é empoderamento e o que é se tornar um herói em relação ao jogo The Last of Us
(2013). Para a pesquisadora, como é evidente na narrativa de Ellie, tal empoderamento
simplesmente se parece com a aquisição de uma postura violenta, ou seja, com a mudança de
agentes políticos (mulheres ao invés de homens) como perpetradores de atos violentos e não
com a abolição de diferenças de gênero. De acordo com Kim, ao invés de uma resistência,
esse empoderamento parece simplesmente se alinhar com ideologias opressivas.
Destacam-se apenas duas publicações entre muitas que chamaram a atenção neste ano.
A primeira é um artigo publicado na Sage, intitulado ―Video Game Visions of Climate
Futures: ARMA 3 and Implications for Games and Persuasion‖, de Benjamin Abraham
(2015); e a segunda é uma dissertação de mestrado intitulada SimCity: Text, Space and
Culture, de Eli J. Boulton (2015). O acesso a ambas se deu graças à ferramenta do
43
KIM, Se Young. Getting over The Fear of Murder: The Last of Us and the Ethics of Empowerment.
Comunicação oral apresentada no Mechademia, evento acadêmico realizado pela Minneapolis College of Art
and Design, em Mineápolis, Estados Unidos, em setembro de 2015.
52
Academia.edu, que permite incluir no perfil suas áreas de interesse, avisando constantemente
sobre novas publicações na área de videogames e narrativa, por exemplo.
A dissertação de Boulton entra no debate sobre a crítica que os jogadores podem fazer
ao jogarem SimCity: mesmo quando eles têm sérias críticas ao modo como a gestão pública
trabalha no plano do real, o jogo tem em seu código uma mecânica tal que não permite que o
jogador fuja dos padrões de governança; o jogador acaba se adequando ao sistema do jogo, ou
seja, às ideias políticas que subjazem o que os produtores entendem por política de gestão
pública. Ao final da dissertação, Boulton intenta observar os limites do jogo SimCity, tentando
determinar se eles são maleáveis ou não.
O texto apresentado discute apenas alguns trabalhos que foram divulgados durante o
ano de 2015, mas o assunto não se exaure, já que novos estudos são feitos, publicados e
apresentados todos os dias. Importa, porém, ressaltar a importância da divulgação dos
mesmos, especialmente dentro do Brasil, cenário em que os game studies ainda estão por se
estabelecer dentro da academia de maneira multidisciplinar. Encerra-se entendendo que as
pesquisas apresentadas fazem da narrativa o ponto de partida para pensar o mundo e a cultura
na qual vivemos e que, por isso, são importantes para a nossa formação, para a nossa
compreensão dos jogos e para a nossa vida.
54
No artigo intitulado ―The Rhetoric of Video Games‖ (2008), Ian Bogost discute
aspectos culturais dos e nos videogames e como os jogadores se relacionam com isso. De
acordo com o estudioso, os jogadores de videogames formam comunidades de práticas de
jogo e de vivência, mas isso, na verdade, é de menor importância. O mais interessante é que
se observe que os videogames, assim como outros objetos culturais, contêm ideologias,
textos, políticas e visões de mundo.
Esta é uma distinção importante: videogames não são apenas etapas que facilitam
práticas políticas, culturais ou sociais; eles são também meios de cultura onde
valores culturais podem ser representados – para crítica, sátira, educação, ou
comentário. Quando entendidos dessa forma, podemos aprender a ler jogos como
expressões deliberadas de perspectivas individuais. Em outras palavras, jogos de
videogame fazem afirmações sobre o mundo, que os jogadores podem compreender,
avaliar e deliberar. Os desenvolvedores de jogos criam jogos que constroem
expressões deliberadas sobre o mundo. Os jogadores podem aprender a ler e criticar
estes modelos, deliberando sobre as implicações de tais verdades 44 (BOGOST, 2008,
p. 119).
Bogost entende que o espaço virtual dos jogos também implica significado, já que
constrange ações e demarca modos de atuação. Isso ocorre tanto para os desenvolvedores, que
criam segundo restrições, quanto para os jogadores, que se ressignificam e consolidam sua
compreensão dos jogos a cada vivência que têm nos mundos virtuais. Por consequência, os
designers criam jogos baseados nas experiências que proporcionarão através deles, e as
restrições impostas pelos espaços dos jogos também implicarão leituras. Nesse processo, os
designers criam – intencionalmente ou não – mecanismos retóricos. Segundo o autor, os
videogames não seriam apenas recursos retóricos visuais, mas sim procedurais, já que é nos
processos de jogo (implicados no código e em funcionamento no jogo) que os jogadores
entram em contato com os significados e os discursos dos designers. Citaremos o exemplo de
uma experiência de jogo de Sim City 5 (2013) para que isso possa ficar mais claro.
44
―This is an important distinction: videogames are not just stages that facilitate cultural, social, or political
practices; they are also media where cultural values themselves can be represented—for critique, satire,
education, or commentary. When understood in this way, we can learn to read games as deliberate expressions of
particular perspectives. In other words, video games make claims about the world, which players can understand,
evaluate, and deliberate. Game developers can learn to create games that make deliberate expressions about the
world. Players can learn to read and critique these models, deliberating the implications of such claims. Teachers
can learn to help students address real-world issues by playing and critiquing the video games they play. And
educators can also help students imagine and design games based on their own opinions of the world. When
games are used in this fashion, they can become part of a whole range of subjects‖ (BOGOST, 2008, p. 119).
55
outras mil, por exemplo: ruas que podem ser estradas com diversas faixas de trânsito ou
pequenas alamedas etc. As opções de zoneamento de espaço também delimitam que tipo de
edificações poderão ser construídas em determinados espaços, entre zonas habitacionais,
comerciais ou industriais, podendo se dividir entre baixa, média e alta densidade. Há modos
diferentes de suprir a cidade, todos à escolha do jogador: a água pode ser retirada dos rios e
tratada para consumo, pode ser mantida em caixas ou comprada de municípios vizinhos. Da
mesma forma, a energia pode ser gerada por hidrelétrica, fábrica a carvão, óleo, energia
atômica, solar ou eólica.
Todas as vezes que joguei Sim City, em qualquer uma de suas edições, esforcei-me
muito desde o princípio para construir uma cidade da forma como eu esperava que fosse a
minha própria. Eu desejava que a minha cidade fosse repleta de árvores, parques, que a
energia fosse eólica ou solar e que não houvesse poluição (pelo menos não de forma
institucionalizada). Não houve uma vez sequer em que consegui atingir meus objetivos, já que
o jogo começa com uma restrição orçamentária que delimita as escolhas que podemos tomar:
indústrias energéticas solares são caríssimas, parques eólicos ocupam muito espaço e não
geram energia suficiente para que a cidade possa prosperar. Resta usar a de carvão ou a
atômica, em virtude do custo-benefício: escolhe-se a atômica por não gerar impactos
imediatos de poluição.
Percebe-se que o jogo cria condições para que ocorra uma mudança no pensamento do
jogador; Sim City transforma uma pessoa bem-intencionada em um político ávido por controle
e poder. Por um lado, o jogo é um simulador de cidades que contém elementos do real. Por
outro, restrições, ferramentas e demandas compartimentam as intenções do jogador, fazendo
com que ele entre num sistema de governança cruel. A retórica procedural, ou seja, o que se
quer dizer através do código e implicado no jogar, imprime um texto com significados
múltiplos. O jogador é aquele que poderá, através da sua compreensão do texto, dar a palavra
final.
Além das questões ideológicas contidas nas retóricas procedurais dos jogos (mas
também nas imagens, sons e narrativas deles), há que se perceber outros pontos que
convergem para novas discussões: esses objetos culturais sincréticos e policódices são
produzidos, distribuídos e recebidos em espaços múltiplos. Criados por designers que
expressam um texto ideológico (próprio de seu contexto, cultura, vivência, universo), os jogos
de videogame atravessam continentes. Grupos variados de indivíduos negociam significados
através desses jogos de videogame, e são os significados – tanto da produção quanto da
recepção – desse objeto cultural globalizado que nos interessa entender nesta pesquisa.
Algumas perguntas que emergem são: até que ponto esses mundos ficcionais têm
relações com o mundo real? Quais impressões do real são transportadas para mundos
ficcionais? Como essas impressões são configuradas (ou como a realidade é reconfigurada)?
Como cultura, folclore, pessoas, nações, religiões etc, são reorganizadas em ficções
interativas? Quais identidades culturais são essas? Essas perguntas se vinculam à necessidade
de investigação exposta na conclusão da dissertação, já identificada na página anterior.
Destaco o trecho, reafirmando que ―é preciso tentar entender quem faz esses objetos culturais,
sob quais pretextos, ótica, questões, moral, ideologias (quais representações de mundo eles
45
―Like all cultural artifacts, no video game is produced in a cultural vacuum. All bear the biases of their
creators. Video games can help shed light on these ideological biases. Sometimes these biases are inadvertent
and deeply hidden. Other times, the artifacts themselves hope to expose their creators‘ biases as positive ones,
but which of course can then be read in support or opposition‖ (BOGOST, 2008, p. 128).
57
O termo ―Romantismo‖ surgiu entre o final do século XVIII e o início do século XIX
na vida intelectual de países como a Alemanha, a Inglaterra e a França, entre 1790 e 1850 – e
tomou, em cada um desses contextos, diferentes formas. August Schlegel foi o primeiro a usar
o termo ―romântico‖ para descrever, nas suas aulas em Viena, entre 1809 e 1811, a poesia da
época e a arte clássica. Nessas aulas, Schlegel identificou os artistas românticos como
intérpretes do desejo de alcançarem a arte como expressão do divino, como expressão da
verdade. Segundo María del Pilar Bravo, em ―Literary Creation and the Supernatural in
English Romanticism‖ (2007), o romantismo representou o renascimento da literatura no
58
século XIX. Na Inglaterra, o movimento fez renascer o autor como força singular inspirada,
capaz de criar um mundo completamente novo como fruto de sua imaginação. Esse seria o
princípio da autonomia do artista, que figura como intérprete privilegiado do mundo à sua
volta. Segundo Bravo, os poemas do inglês William Wordsworth poderiam fazer com que o
leitor se sentisse cego, incapaz de enxergar o mundo de forma tão incrível senão através de
seus escritos (BRAVO, 2007, p. 139; ELDRIDGE, 2001, p. 2).
46
―That peculiar and arbitrary species of Fiction which we commonly call Romantic, was entirely unknown to
the writers of Greece and Rome. [...] [These Fictions] formed the groundwork of that species of fabulous
narrative called romance‖ (WHARTON, 1774-1781, apud STEVENS, 2004, p. 13).
47
―After all, it would seem to be a fact of human nature that we are emotionally moved by the personalities and
situations of other people… in which it was agreed, that my endeavors should be directed to persons and
characters supernatural, or at least romantic; yet so as to transfer from our inward nature a human interest and
59
Portanto, não é difícil que se possa identificar o gótico como aspecto importante e
pertinente da literatura romântica inglesa. O mistério da vida e da morte, os encantos
escondidos nos recônditos naturais ainda por serem explorados, o exotismo e a imaginação se
extravasam nas criações de Shelley e Byron, em Frankenstein e no poema Darkness.
semblance of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for
the moment, which constitutes poetic faith‖ (COLERIDGE, 1951, p. 264, apud CARROLL, 1990, p. 65).
48
―[…] as an aesthetic (Miles), as a great repressed of romanticism (Bruhm and William Patrick Day), as a
poetics (Williams), as a narrative technique (Halberstam and Punter), or as an expression of changing or
―extreme‖ psychological or socio-political consciousness (Bruhm, Cox, Halberstam, Monleón, Paulson, Richter,
Williams)‖ (GAMER, 2000, p. 28).
60
49
Ou neoclássicos, perspectiva que desejava restaurar a ordem, tanto moral quanto formal, em vista da cultura
antiga Romana e Grega (STEVENS, 2004, p. 13). Essa perspectiva estética fazia parte do ideal do iluminismo, já
que os pensadores da época acreditavam na beleza inspiradora do passado distante dessa cultura helênica.
Prezava-se pela ordem, simetria, harmonia e controle‖ (STEVENS, 2004, p. 20).
50
―[…] reinstall an order of decorum and taste, a set of boundaries, that is simultaneously aesthetic and social,
against what he sees as gathering flood of sentiment, populism, femininity, and confusion‖ (ELDRIDGE, 2001,
p. 6).
51
―Gothic fiction reveals what we may describe as the forgotten, the repressed, the uncomfortable‖ (ZAJAC,
2010, p. 192)
61
Margaret Anne Doody (1997, p. 294, apud ZAJAC, 2010, p. 197), é nas publicações góticas
que, pela primeira vez, grupos minoritários como mulheres e gays expressaram seu
desencanto com o conceito de realidade do realismo.
Chama a atenção o levantamento feito por Gamer a respeito da tríade leitor de gótico,
crítico de gótico e autor de gótico da Londres vitoriana. Segundo a revisão de literatura, tanto
os leitores quanto os autores, segundo os críticos, eram compostos por mulheres. De um lado,
a leitora ávida, do outro, a autora sensível. Entre ambas, a crítica masculina sem nenhum
entusiasmo pela excitação do horror – autores famosos como Horace Walpole e William
Beckford são tomados como ―desperdício de talento‖ nesse ramo (GAMER, 2000, p. 35).
Para Gamer, o estigma ligado à crítica do estilo é relegado ao gênero do romance ao final do
século XVIII. Observemos o recorte de Gamer da fala de um crítico:
52
―That the majority of novels merit our contempt, is but too true; and, for the above given, it is a truth of a
serious and painful nature. The very end of a novel is to produce interest in the reader, for the characters of
whom he reads: - but, in order to produce this interest, it is necessary that the novel writer should be well
acquainted with the human heart, should minutely understand its motives, and should possess the art, without
being either tedious or trifling, of minutely bringing them into view. This art is so little understood by the young
ladies who at present write novels, which none but young ladies and we, luckless reviewers, read, that it is not
wonderful that they should have incurred a considerable share of neglect from us‖ (HOLCROFT, 1793, p. 297,
apud GAMER, 2000, p. 36).
62
Gamer procede seu trabalho tratando da evolução de gêneros literários como parte de
dois caminhos: da organização ideológica e da acomodação mercadológica, embasado no
pensamento de Jameson e Raymond Williams (GAMER, 2000, p. 44). Para esta tese, não nos
ateremos a essa seara, já que importa entender o Gótico – assim como o Romantismo. Frisa-se
que concordamos, porém, com a noção de Gamer.
O que importa sobre a noção de ideologia que compreende o gênero é que o gótico
assume diversas facetas. Uma delas remete ao passado medieval e nostálgico do qual o Rei
Arthur fazia parte, assim como toda a mitologia que o envolve. Outra parcela é mais
subversiva e ácida. Castle of Otranto (1764), de Walpole, e The Old English Baron53 (1777),
de Clara Reeve, são exemplos do primeiro tipo de literatura gótica – apesar de o público
observar apenas as nuances sobrenaturais, é a primazia pelo medievalismo que mais os
aproxima desse estilo, segundo Alfred Longueil (apud GAMER, 2000, p. 48; GATES, 1976,
p. 9). Os escritores que sucederam Walpole e Reeve notaram a preferência do público pelos
aspectos sombrios das narrativas e investiram em textos recheados de horror. Textos góticos
foram os primeiros best sellers. Eles deixaram seu lado medieval e se tornaram cada vez mais
espantosos.
Gamer retorna à problemática do estilo gótico como menor senão por suas próprias
qualidades, mas quem sabe pela intimidade com o romance enquanto gênero literário, desde o
53
Narrativa sobre Sir Philip Harclay, que, ao procurar por um amigo de infância, descobre que ele está morto.
Tanto as propriedades do amigo quanto seu posto real foram tomados pelo assassino.
54
―Hurd and subsequent celebrants of medieval art and literature had extended their praise to the culture of
chivalry, and both Reeve‘s Old English Baron and James Beattie's Dissertations Moral and Critical (1783) extol
the Goth‘s piety, patriotism, respect for women, and love of liberty as inherently English traits. The word
―gothic,‖ then, acts in these last decades of the eighteenth century as a double gesture of authentication, a way of
aligning oneself generically against the novel and culturally with the masculine and antiquarian tradition […]‖
(GAMER, 2000, p. 49).
63
princípio considerado responsável pelo deleite imaginativo de leitoras mulheres (2000, pp. 53-
57; JONES, 2010, p. 9). Autores como Reeve e Walpole tentaram, então, escrever romances
contextualizados na história inglesa, afinal, a intenção era utilizar o mecanismo sedutor do
gênero romance para que as jovens mentes pudessem aprender algo valoroso.
O embate entre os domínios do que é mais pertinente ainda persiste – e já foi debatido,
de maneira concisa, anteriormente, na sessão sobre conhecimento a respeito das palavras de
Lyotard56. Dando continuidade à história do gênero, sabe-se que a popularidade dos romances
de Walpole e Reeve trouxe à tona o interesse do público, e, com base nesse interesse, autores
ávidos por serem sucesso em vendas copiaram e multiplicaram as publicações. Segundo
David Gates, na dissertação Bram Stoker‟s Dracula and the Gothic tradition (1976), a
consolidação do gênero veio com a repetição de certos motes (p. 12). Com base no interesse
público pelo horror, fez com que a própria autora de Old English Baron criticasse as
bibliotecas públicas por não orientarem os leitores a fazer as melhores escolhas ou por
escolherem livros tão ―apelativos‖ para ocupar os espaços de suas estantes (GAMER, 2000, p.
63). Interessante é saber que as bibliotecas passaram de duas para mais de 100 em menos de
60 anos, e que, apesar de uma certa imposição pela proibição de romances nas estantes, havia,
em sua maioria, livros considerados ―baratos‖ ali (GAMER, 2000, p. 64). Pela popularização
de certos tipos de livros, as bibliotecas passaram a ser parcialmente responsáveis pela
solidificação e sobrevivência de certos gêneros em detrimento de outros. Por isso o gótico se
55
―Placed in the context of eighteenth-century criticism of romance as addictive and enervating, Reeve‘s defense
represents an attempt to rescue romance from its stigma as a pernicious genre by prescribing to it the masculinity
of antiquarian history and the same strictures of socially acceptable femininity - temperance, sense, and social
duty – that constrain women writers in the period‖ (GAMER, 2000, p. 58).
56
Apenas para abrir um parágrafo nesta questão, cito, por exemplo, a questão da narrativa dos fatos verdadeiros
versus o imaginado e o sonhado, as questões do testemunho, da literatura de testemunho e da autoficção
(NASCIMENTO, 2010; ARFUCH, 2010), do dilema história versus narrativa, o próprio valor/preferência do
estudo de certos temas dentro das Letras ou das Letras dentro dos centros universitários; ou dos centros
universitários em outras pautas (por exemplo, ministérios de energia, fazenda etc.), distribuição de verbas para
pesquisa etc. Afinal, a discussão parece recair, final e irremediavelmente, na qualidade
―ficcional/imaginativa/vulgar‖ da construção narrativa (do próprio saber científico), compreendida como
feminina, corporificada, associada ao despudor do sensível em oposição ao racional exame do mundo natural.
Essa dualidade é examinada, por exemplo, por Elódia Xavier, em Que corpo é esse? (2007) e Susan McClary,
em Feminine Endings (1991).
64
tornou um item tão disputado: o formato de empréstimo das bibliotecas favorecia a leitura
desse tipo de literatura dinâmica e de efeito de choque constante (GAMER, 2000, p. 65).
Uma importante compilação de temas encontrados na ficção gótica foi feita por
Sedgwick e pode ser encontrada em vários trabalhos, como visto em Gamer (2002) e Jones
(2010). A lista fala de
[...] uma ruína opressiva, uma paisagem selvagem, uma sociedade católica ou
feudal... A sensibilidade trêmula da heroína e a impetuosidade de seu amante... O
homem mais velho, tirânico, com o olhar penetrante, que vai encarcerar e tentar
estuprá-las ou assassiná-las... As formas do romance:... Descontínuos e complexos...
Contos dentro de contos, mudanças de narradores, e tais dispositivos de
enquadramento como manuscritos encontrados ou histórias interpoladas... Certas
57
―Yet Reviews, for their own financial health, were forced to anticipate popular taste even as they sought to
mold it, and therefore usually seized critical positions from which they could remain separate from popular taste
while not fully opposing it. In this light, gothic's massive popularity presented for them an uncomfortable
quandary - a situation in which periodicals risked alienating readers by reviewing gothic texts negatively, yet
where gothic's triply damned status as popular, feminized, and disposable pointed to the very traits that Reviews
most wished to deny about themselves‖ (GAMER, 2000, p. 69).
65
De forma concisa pode-se considerar como temas principais a luta do bem versus o
mal (GATES, 1976, p. 13; NORTON, 1972, p. 32), a redenção pelo amor versus a
sexualidade (GATES, 1976, p. 17) e o castelo amaldiçoado (RAILO, 1964, p. 7, apud
GATES, p. 21; ZAJAC, 2010, pp. 191-201; NORTON, 1972, p. 33; LOVELL-SMITH, 2008,
p. 101). O isolamento da casa de campo, de instalações de isolamento como sanatórios,
hospitais e de outros prédios do tipo, faz parte do horror gótico, contrastando a grandiosidade
desses espaços amplos com a decrepitude dos mesmos (GATES, 1976, pp. 22-23). Para Zajac
(2010),
Para Julia Kristeva (1982, pp. 17-55, apud ZAJAC, 2010, p. 197), o gótico é o estilo
no qual arquétipos da sociedade londrina eram ressignificados como figuras fantasmagóricas
ou monstruosas, num processo de abjeção. Segundo Zajac, o castelo assombrado é o lugar
onde todos os ―monstros‖ da moralidade repressiva se refugiam.
58
―[…] an oppressive ruin, a wild landscape, a Catholic or feudal society…the trembling sensibility of the
heroine and the impetuosity of her lover…the tyrannical older man wit the piercing glance who is going to
imprison and try to rape or murder them…the novels form:…discontinuous and involuted…tales within tales,
changes of narrators, and such framing devices as found manuscripts or interpolated histories…certain
characteristic preoccupations…priesthood and monastic institutions; sleeplike and deathlike states; subterranean
spaces and live burial; doubles; the discovery of obscured family ties; affinities between narrative and pictorial
art; possibilities of incest; unnatural echoes or silences, unintelligible writings, and the unspeakable; garrulous
retainers; the poisonous effects of guilt and shame; nocturnal landscapes and dreams; apparitions from the past;
Faust and Wandering Jew-like figures; civil insurrections and fires, the charnel house and the madhouse‖
(SEDGWICK 1986, pp. 9-10, apud JONES, 2010, p. 7).
59
―Railo is convinced that the haunted castle plays an immensely important role in Gothic fiction, and without it
‗the whole fabric of the romance would be bereft of its foundation and would lose its predominant atmosphere‘
(p. 8). The significance of this element comes, in part, from the connection of the term ―Gothic‖ with the
architecture in the eighteenth century‖ (ZAJAC, 2010, p. 192).
66
Outra autora que traz considerações pertinentes sobre os castelos góticos é Rose
Lovell-Smith, no artigo intitulado ―On the gothic beach: a New Zealand reading of house and
landscape in Margaret Mahy‘s The Tricksters‖ (2008). Lovell-Smith analisa aspectos na trama
de Mahy, observando
Nesse cenário gótico, ―as portas e passagens do castelo [...] são extremamente
numerosas, sinuosas e estreitas, de modo que formam um verdadeiro labirinto‖62 (RAILO,
1964, p. 11, apud LOVELL-SMITH, 2008, p. 103). A extensão dessas residências góticas e a
forma complexa com que os cômodos se organizam revela, para Lovell-Smith, a própria
família que ali habita, ―cheia de segredos, diferenças, distâncias, tensões e histórias não
contadas‖63 (LOVELL-SMITH, 2008, p. 103).
60
―[…] haunted castle where a few representatives of a vanished civilization struggle to maintain their fortress
against a new order that threatens to crush them. It can be realized as the social space, this disturbing realm in
which the ―patriarchal scheme of heterosexuality‖ becomes the death of a teenager […]‖ (ZAJAC, 2010, p. 198).
61
―[…] three remarkably persistent features of the Gothic house: the difficulty of getting into it; its mysterious or
labyrinthine extensiveness (this house is somehow bigger on the inside than the outside); and its remoteness and
isolation in a lonely, rural, perhaps wild and uncivilized, even desolate, setting‖ (LOVELL-SMITH, 2008, p.
101).
62
―the castle doors and passages [...] are extremely numerous, winding and narrow, so that they form a veritable
labyrinth‖ (RAILO, 1964, p. 11, apud LOVELL-SMITH, 2008, p. 103).
63
―[…] fuller of secrets, differences, distances, tensions, and untold histories‖ (LOVELL-SMITH, 2008, p. 103).
67
chamamos de romance gótico pode ser distinguida pela presença de casas em que as pessoas
estão trancadas por dentro e por fora das casas‖64 (ELLIS, 1989, p. 3, apud LOVELL-SMITH,
2008, p. 101).
Para Norton (1972), o romance gótico consegue agregar forma e conteúdo (p. 31).
Desde os primeiros textos de Walpole e Radcliffe é possível observar o trabalho minucioso da
―pintura de cenários‖ através das palavras (p. 32), feito usado para ampliar o efeito estético
das obras. Além disso,
Uma sensibilidade cada vez mais refinada a várias formas de arte, especialmente a
música, frequentemente está subjacente ao padrão de ação de muitos romances
góticos, de tal forma que o crescimento e o status social de seus personagens são
64
―The strand of popular culture we call the Gothic novel can be distinguished by the presence of houses in
which people are locked in and locked out‖ (ELLIS, 1989, p. 3, apud LOVELL-SMITH, 2008, p. 101).
65
―[…] the realm of the patriarch, and women and children are frequently its victims (LOVELL-SMITH, 2008,
p. 106).
68
A busca pelo efeito do ―sublime‖, que segundo Edmund Burke (apud NORTON,
1972) pode ser definido como ―uma união estética que opõe a agonia romântica e o repouso
clássico‖67 (1972, p. 33), parece ser a tônica do romance gótico: o medo é sedutor, faz com
que o leitor retorne para seu mundo se sentindo acolhido. Os opostos também fazem parte da
dinâmica do romance, forças do bem lutando contra forças do mal, como preto e branco são
completamente contrastantes. A imagem do castelo cercado por um ambiente pastoril também
parece fazer parte dos contrastes usados no romance gótico (p. 34).
66
―An increasingly refined sensitivity to various forms of art, especially music, frequently underlies the pattern
of action of many Gothic novels, so much so that their characters‘ growth and social status are often more
correlative to their response to poetry and music than to their inculcation of the oral virtues‖ (NORTON, 1972, p.
32).
67
―[…] is an aesthetic union of the opposites of romantic agony and classical repose‖ (NORTON, 1972, p. 33)
68
―[…] in a much more complex manner – which demonstrates the Gothic novelists‘ psychological insight –
horror is in itself more of an aesthetic experience of the union of opposites than a psychological reaction of
intense fear‖ (NORTON, 1972, p. 34).
69
―[…] pain and pleasure or terror and delight‖ (CHAO, 2006, p. 1).
69
essa imagem colocam o espectador em contato com reflexões íntimas sobre sua própria
experiência e seus paradigmas (BAKHTIN, 1984, p. 25, apud CHAO, p. 10).
Para Michael J. Matthis (2010), a tensão que provoca o efeito da apreciação estética do
grotesco e a emergência do sublime são questões que surgiram no Iluminismo. A
racionalização e a busca por explicações científicas para fenômenos naturais produziram um
pensamento generalizador e objetivo sobre fenômenos até mesmo metafísicos (2010, p. 2;
SCHOOLMAN, 2001, p. 3). Essa tensão entre polos objetivos e subjetivos persiste existindo
(MATTHIS, 2010, p. 3). A apreciação da estética grotesca e sublime, por exemplo, recai na
tensão desses polos. Matthis (2010) lê Hume e nos explica sobre a objetividade da beleza;
segundo o filósofo, o prazer estético estaria aliado à ética, e o gosto um sentimento universal
inserido na capacidade de distinguir qualidades e defeitos e parte da natureza humana (2010,
p. 6). Kant, em oposição, observa no gosto a subjetividade inerente a cada ser, e, segundo o
filósofo, a apreciação da arte nos coloca de forma tão direta com nossa subjetividade que, sem
essa crítica, não seríamos capazes de alcançar dogmas metafísicos (apud MATTHIS, 2010, p.
8). Segundo Matthis, o desejo de explorar o grotesco indicaria ―a distância que nos separa das
purezas metafísicas dos filósofos pré-iluministas, e das experiências estéticas dos pensadores
iluministas‖70 (2010, p. 8).
Para Kant (p. 115, apud CHAO, p. 10), esse efeito estético do contato como sublime se
alcança graças ao choque mental da compreensão de que representações produzidas não
podem abarcar o universo. Como Lyotard argumenta sobre o sublime kantiano, não é possível
representar uma grandeza e poder infinitos, porque não é possível que nossa compreensão
apreenda essas ideias (LYOTARD, 1987, p. 22). De acordo com o autor, a arte moderna nasce
70
―[…] the distance separating us from the metaphysical purities of pre-Enlightenment philosophers, and the
aesthetic experiences of Enlightenment thinkers‖ (MATTHIS, 2010, p. 8).
70
justamente da tentativa de representação daquilo que não é possível ser representado. Sendo
assim, retomamos o conceito de pós-modernidade, pois
o que há de ―impresentificável‖. Fazer ver que há algo que se pode conceber e não
se pode ver nem fazer ver. (…) Mas como fazer ver que há algo que não pode ser
visto? O próprio Kant indica a direcção a seguir, nomeando o ―informe, a ausência
de forma‖, um indício possível do ―impresentificável‖. Também diz da abstração
vazia que sente à procura de uma ―presentificação‖ do infinito (outro
―impresentificável‖) que essa abstração em si mesma é como uma ―presentificação‖
do infinito, a sua ―presentificação‖ negativa. Cita o ―Não farás para ti imagem de
escultura, etc.‖ (Êxodo, 2.4) como a passagem mais sublime da Bíblia, no sentido
em que proíbe qualquer ―presentificação‖ do absoluto (LYOTARD, 1987, pp. 22-
23).
71
―[…] the effort to envision human possibilities of the achievement of value, as these are achieved in an
exemplary way in the career of a specially situated protagonist‖ (ELDRIDGE, 2001, p. 11).
71
parece equilibrar a conclusão de muitas obras, tanto literárias quanto musicais (ELDRIDGE,
2001, pp. 27-28). Opondo-se a essa análise, Stevens observa que os poetas românticos se
envolveram na política; eles eram idealistas (2004, pp. 18-19). A crença no ideal do herói tem
relações com as revoluções que aconteceram na França e fariam parte das ideias marxistas
(STEVENS, 2004, p. 19). O desejo de retomar o romantismo se dá, segundo Eldridge, porque
nós vemos e sentimos e ouvimos não só as quididades materiais nuas, mas a luz do
sol e a brisa naquele abeto dentado, ou brincando sobre aquele antigo redil,
juntamente com lembranças e antecipações, de realização e perda, de resistência e
moralidade. O pensamento aqui é que, sem o exercício da percepção,
imaginativamente informada e pensativa, não há habitação humana da realidade,
nem lugar na realidade para a vida humana. É a imaginação criativa e responsiva que
encontra, ao mesmo tempo, lugar para a mente caminhar despreocupada na realidade
natural e para que se possa visionar futuros lugares em face dos desapontamentos
vividos no presente. Ao exercer uma imaginação criativa e sensível, o poeta
romântico busca, nas palavras de Larmore, não só o sublime, mas também a
―recuperação da magia da vida cotidiana‖72 (2001, p. 3).
2.4 DRÁCULA
72
―We see and we feel and we hear not just naked material quiddities, but the sunlight and the breeze in that
jagged fir tree, or playing over that ruined sheepfold, together with attendant memories and anticipations of
achievement and loss, endurance and morality. The thought here is that without the exercise of imaginatively
informed, thoughtful perception there is no human habitation of reality, no place in reality for human life. It is
creative-responsive imagination that both finds habitations for mindedness within natural reality and envisions
further ideal habitations in the face of present disappointments. In exercising creative-responsive imagination,
the Romantic poet aims, in Larmore‘s phrase, not only at the sublime but also at ‗the recovery of the magic of
everyday live‘‖ (ELDRIDGE, 2001, p. 3).
72
73
É importante salientar que, apesar de toda a pesquisa etnográfica desenvolvida pelos escritores aqui referidos,
para ter resultado na construção do vampiro como personagem mítico literário ainda visto em obras
contemporâneas, é preciso entender que, fora do eixo cultural ocidental europeu, existem outras manifestações
similares. Não entraremos em detalhes por esse não ser o foco da pesquisa, mas, apenas para esclarecimentos, a
obra de Richard Noll contém detalhes sobre manifestações desse tipo folclórico em outras culturas (NOLL,
Richard. Vampires, Werewolves, and Demons: Twentieth Century Reports in the Psychiatric Literature. Nova
Iorque: Brunner/Mazel, 1991).
74
A Lâmia, personagem mítica grega, devora corpos de crianças e é associada aos vampiros e súcubos. Ela
aparece numa história de Satíricon, de Petrônio, contada por Trimalchio (1993, p. 63), sobre uma bruxa que suga
toda a vida do filho de uma mulher (Petronius Arbiter. Petronius. Satyricon. Michael Heseltine. London. William
Heinemann. 1913). Folcloricamente, há a Lâmia de Libis, figura usada pelas mães romanas para assustar seus
filhos, a fim de que eles fossem obedientes, conforme relato de Horácio em Ars Poetica.
73
O último, escrito junto com Mary Shelley e Byron, não pode ser perdido de vista em
sua importância. The Vampyre conta a história da amizade de Lord Ruthven com Aubrey, um
jovem inglês. Após episódios estranhos com a morte de conhecidos e lendas de vampiros, a
viagem de ambos os leva até o momento em que são atacados por bandidos e Ruthven é
gravemente ferido. Prometendo não contar nada a ninguém pelo prazo de um ano e um dia,
Aubrey se surpreende ao encontrar Ruthven novamente em seu lar, pronto para se casar com
sua irmã. Após esperar o prazo, Aubrey envia uma carta para avisar a irmã. Ele acaba
morrendo e a irmã não recebe a carta. A pobre coitada é encontrada sem sangue em seu leito
de núpcias.
Segundo Carlson, no século XIX os vampiros já eram muito populares e estavam entre
os assuntos mais abordados na ficção ocidental. O romance foi copiado em muitos lugares,
dando origem ao inglês Varney the Vampire ou The Feast of Blood (1847), de Thomas
Preskett Prest. Em The horror at Fontenay, Alexandre Dumas traz outros dois motes da
75
A noiva de Corinto conta a história de uma noiva que volta do túmulo apenas para entender que não deveria tê-
lo feito e se arrepender, pois se tornou uma vampira e amaldiçoou seu noivo. Ao final da balada, pede à mãe e ao
pai que a queimem junto do amado.
74
La morte amoreuse (1836), de Theophile Gautier, é, para Carlson, uma das melhores
histórias de vampiro já escritas.
É por volta da metade do século XIX que as vampiras sedutoras se tornam o centro das
atenções em publicações como Chastelard (1865), de Swinburne, e Prizraki-Fantaziia
(1863), de Ivan Turgenev. Mas é apenas em Carmilla (1872), conto de Joseph Sheridan ―Le
Fanu‖, que esse personagem gótico se torna ainda mais sofisticado. No conto, Micarlla suga
de suas jovens e nobres vítimas mais do que o sangue: ela toma suas personalidades. É nesse
conto que Stoker parece ter se inspirado para compor Drácula, já que é ―Le Fanu‖, segundo
Carlson, quem primeiro insere no mito do vampiro a metamorfose, a habilidade para
atravessar portas e passagens, a inatividade diurna e a necessidade de dormir em caixão,
aversão a artefatos cristãos e habilidade de hipnose. A vampira de ―Le Fanu‖ precisa se
chamar sempre com um anagrama de seu próprio nome: Mircalla, Millarca, Carmilla
(CARLSON, 1977, p. 28). Uma possível leitura pode se dar no sentido de que o vampiro se
transmuta, mas nunca deixa de existir enquanto um personagem inspirador na literatura
gótica.
76
―Gautier‘s vampire is a lovely courtesan whose influence involves a young priest in a double life. To the
biblically-prohibited act of drinking human blood, Gautier adds the sacrilegious act of carnally seducing a man
of God. Clarimond, the vampire, is destroyed by holy water at the end of the story‖ (CARLSON, 1977, p. 27).
75
beyond the forest (1888), de Emily Gerard. O nome Drácula, segundo Carlson, foi sugestão de
um orientalista húngaro chamado Ármin Vámbery.
Apesar de haver bastante violência nos feitos de Vlad Tepes, Carlson admite que não
há real evidência que o conecte ao mito do vampirismo (1977, p. 29). Por outro lado, o
folclore húngaro e romeno é carregado desses seres sobrenaturais. Uma das histórias é a da
Condessa de Bathory, chamada de Lady Vampire, responsável por beber e se banhar no
sangue de cerca de 650 virgens antes de ser presa. Ao que nota Carlson, Stoker parece ter
dissolvido as duas histórias em uma só.
Além de usar o estilo gótico para a escrita do romance, Stoker foi responsável pela
inserção de traços do mito vampírico advindos das lendas romenas e que hoje residem na
cultura popular contemporânea, como ―a conexão do vampiro com o lobo, a aparição do
vampiro como pontos de luz, a introdução do Dia de São Jorge como o momento em que os
espíritos malignos rondam a terra, o uso de alho para repeli-los‖77 (CARLSON, 1977, p. 30).
Além disso, ele foi o primeiro a utilizar o mote de que o vampiro só pode estabelecer uma
77
―The connection of the vampire and the wolf, the appearance of vampires as points of light, the introduction of
St. George‘s Eve as the time when evil spirits freely roam the earth, the use of garlic to repel vampires‖
(CARLSON, 1977, p. 30).
76
conexão com sua vítima por vontade da própria e de que um morto-vivo não pode cruzar água
corrente.
78
―Filmmakers and storytellers recreate him continually, adding new elements each time, perpetuating the
evolution of this character who has made his way into our collective consciousness‖ (PETERS, 2002, p. 10).
78
intitulada Literatura e Games: Questões atuais do estabelecimento do campo literário não foi
encontrada nas nossas buscas.
2005 A Henrique ―Influências dos meios digitais na Definição de narrativa por Janet Murray
Sobral et narrativa‖ (1997), apontamentos para criação de uma
al. nova crítica estética para as novas mídias,
por Lev Manovich (2001).
2008 T Luis Vídeo Game Design, uma análise da Narrativa como orientação da condução do
Claudio de estética conceitual do jogo; som e música citados como elementos
Oliveira entretenimento digital que enriquecem o significado da narrativa.
Tocchio
2010 D Victor de Jogando com o drama: Análise das Mímesis e texto dramático.
Morais possibilidades dramatúrgicas em
Cayres videogames diante do
desenvolvimento tecnológico dos
consoles
2012 A João ―Começo, Meio e Fim: Uma análise Significado que emerge da imersão.
Pereira dos elementos de narrativa nos
Lemos videogames‖
Costa
2012 A Cremilson ―A narrativa lúdica dos videogames: Narrativa segundo Nogueira (2008), sendo
Oliveira espaços possíveis de produção de prosaica ou poética.
Ramos et sentidos‖
al.
2013 D Clarissa Games contando histórias: uma Estudo da narrativa utilizando-se a noção de
Marquezepi discussão sobre a narrativa nos ―leitura‖ e ―preenchimento de lacunas‖, mas
Picolo JRPGs sem que haja uma formalização com o
suporte da Teoria da Recepção.
2013 T Luiz Filipe “Assassin‟s Creed”: literatura e Argumentação fugaz sobre narrativa e
Ribeiro dos videogame interação.
Santos
2015 A Fernando ―Narrativa de Suspense: O Game Narrativa ―estrutural‖ (enredo, ação etc.) /
R. Stahnke Silent Hill‖ interação / imersão.
et al.
2016 D Mário Literatura e Games: Questões atuais Videogame como produto cultural com
Lousada de do estabelecimento do campo narrativa capaz de suscitar leituras críticas
Andrade literário Conceito de literatura amplo segundo
Candido (1999) e Jenkins (2009), por
exemplo.
O jogo só existe enquanto ação, como processo; na ausência da ação, o que resta é
um código guardado em um disco magnético (p. 43).
Outra voz em razão de uma seção entre os game studies e outras áreas de
conhecimento é a de João Pereira Lemos Costa no artigo ―Começo, Meio e Fim: Uma análise
dos elementos de narrativa nos videogames‖ (2012), publicado nos Anais do SBGames,
estudioso defensor de que o sentido dos jogos advém da imersão e de conceitos estudados por
Marie-Laure Ryan (2011), teórica frequentemente referenciada nos trabalhos apreciados nesta
revisão. O recorte feito por Costa (2012) do trabalho de Ryan aborda conceitos para narrativas
em jogos que geram a imersão – termo que Ryan conceitua como uma ―suspensão de
descrença‖, podendo ser separado em categorias como a imersão espacial (identificação com
o espaço); imersão temporal (curiosidade, suspense e surpresa); imersão epistêmica
(compreensão e interesse pela história anterior ao jogo) e imersão emocional. Uma das
conclusões de Costa é de que
Como apontado por Thomas Grip (2011b) ainda há muito a se explorar nas
pesquisas sobre narrativas nos videogames, mas primeiro precisamos amadurecer no
desenvolvimento: ―Os videogames precisam encontrar sua própria voz‖. Enquanto
outras mídias mais antigas evoluíram e já foram alvo de maior experimentação em
técnicas narrativas por parte dos artistas que exploram estes meios, os videogames
ainda engatinham neste processo (p. 60).
Tomando as falas de Baum (2012) e Costa (2012), questionamos, então, sobre o perigo
em tentar estabelecer parâmetros singulares para a teorização do papel do jogador na
apreensão do significado do jogo de videogame. Ponderemos sobre dois riscos: a falta de
diálogo com teorias da leitura e teorias textuais já existentes, em primeiro lugar, produzem
discussões que requerem aprofundamento (porque já foram feitas anteriormente e já
produziram respostas); em segundo lugar, fazem parecer que o videogame é um objeto
completamente descolado da história dos textos e da leitura.
82
A estética da recepção e efeito precisamente não tem mais como seus objetivos
traçar o texto até o que ele ―quis dizer‖, até um significado escondido por trás dele,
ou o seu ―significado objetivo‖. Mais do que isso, essas propostas definem o
significado de um texto como a convergência da estrutura de um trabalho e a
estrutura da interpretação que estará sempre por ser construída. Seus instrumentos
não são outros senão a reflexão hermenêutica, empregada conscientemente e
controladamente, o que deve acompanhar qualquer interpretação80 (JAUSS, 1979, p.
84).
79
Controle de videogame, através do qual o jogador envia os comandos e efetivamente joga o jogo.
80
―The aesthetics of reception and effect precisely do not any longer have as their goal the tracing of a text back
to its ‗statement,‘ to a significance hidden behind it, or to its ‗objective meaning.‘ Rather, they define the
meaning of a text as a convergence of the structure of the work and the structure of the interpretation which is
ever to be achieved anew. Their instrument is nothing other than the hermeneutic reflection, consciously and
controllably employed, which must accompany all interpretation‖ (JAUSS, 1979, p. 84).
83
texto e no levantamento de questões emanadas por ela (JAUSS, 1979, p. 85). Importante
salientar, ainda, que o ato de leitura do texto não é subjetivo – ao contrário, embasa-se na
própria disposição física do mesmo.
a) O videogame é um objeto cultural e tem sua história, assim como todos os objetos
que fazem parte do nosso cotidiano cultural. Historiadores como Vera Lúcia Paiva
(2006), Sandra Jatahy Pesavento (2004) e Roger Chartier (2002), dentre muitos
outros, entendem que a cultura e o que a permeia (as práticas, os hábitos, os modos
como as pessoas se relacionam com os objetos e como os produzem etc.) têm uma
história, e o estudo dela se intitula História Cultural;
b) O estudo da História Cultural se desvela através da compreensão de uma espécie
de ―ciclo contínuo‖ de práticas e de representações que constituem a vida social, o
modo como as pessoas enxergam o mundo e como se relacionam com a cultura,
por exemplo. Como dito por Chartier, em A História Cultural entre práticas e
representações, ―a historia cultural, tal como a entendemos, tem por principal
objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler‖ (2002, pp. 16-17),
ou, como diz Pesavento, a História Cultural pesquisa como ―indivíduos e grupos
dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a
realidade‖ (2004, p. 39). Ou seja, a forma como lidamos com a realidade é a forma
como ela é constituída através dos contatos culturais que desenvolvemos através
dos tempos. A leitura, por exemplo, tem sua própria história cultural, investigando
como nos relacionamos com a leitura, como nos posicionamos fisicamente em
relação aos objetos de leitura, que objetos são esses, qual a mentalidade que está
por trás desse ato (cultural) etc;
c) O livro é um objeto cultural tecnológico, em paralelo a outras formas materiais de
textualidade. Segundo Chartier (1994) e Paiva (2006), o que define qual formato
será utilizado para a disseminação de informações se baseia no uso que será feito
dele. Quando Júlio César precisou de um papiro que pudesse manusear com mais
facilidade, ele contribuiu para a criação do códice. A diferença entre as duas
84
formas materiais de leitura era o fato de que uma era mais user friendly81 do que a
outra:
É, enfim, inegável que o códex permita uma localização mais fácil e uma
manipulação mais agradável do texto: ele torna possível a paginação, o
estabelecimento do índex e de correspondências, a comparação de uma passagem
com outra, ou ainda o exame do livro em sua integridade pelo leitor que o folheia
(CHARTIER, 1994, p. 102).
O formato material do livro mudou com o tempo para se adequar ao mercado, aos
leitores (aos modos, lugares e preferências de leitura) – em suma, às necessidades
culturais, sociais, econômicas e políticas que surgiam à medida que o tempo
passou. O avanço tecnológico do livro (tamanho, formato, tipo de papel, de
tipografia, capa etc.) também causou impacto na maneira como ele foi
recepcionado pelo leitor (e vice-versa, as exigências dos leitores descartavam
formatos menos simples ou fáceis de usar). Segundo Cilza Carla Bignotto (1998,
p. 5),
Ler um rolo de papiro, que precisa ser seguro com as duas mãos para se manter
aberto, é diferente de ler um códex, que pode ser apoiado em uma mesa, deixando as
mãos livres para anotar ou consultar outros livros; o que por sua vez é diferente da
leitura de um livro impresso de bolso, que pode ser manuseado em qualquer lugar –
e que se for perdido, não causará grande prejuízo ao dono.
81
Termo que denota uma ferramenta que seja de fácil uso, para o português usabilidade.
85
jogos de computadores, vídeos digitais e poesia digital‖82. Para Alan Galey et al.
(2011), é fundamental para os textual studies que não se estabeleçam limites entre
as materialidades de leitura e escrita, porque, quando se compreende que os
diferentes formatos se inscrevem numa história de práticas de produção e
apropriação de textos, é possível que se estude a história do avanço tecnológico da
leitura (do tradicional ao inovador) e que, ao mesmo tempo, se possa incorporar
metodologias e técnicas de estudo já estabelecidas à análise e pesquisa dessas
novas materialidades textuais.
A narrativa na qual uma tecnologia faz com que outra desapareça (pro bem ou mal
dessa), não mais se sustenta nos estudos textuais contemporâneos; ao contrário,
historiadores de livros como Roger Chartier (1995), Peter Stallybrass (2002), e
Adrian Johns (1998; e em Grafton, Eisenstein e Johns, 2002), e historiadores de
mídia como Lisa Gitelman (2006), tem nos levado a considerar como as tecnologias
escritas se intercalam e se modificam, e como essas tecnologias estão implicadas em
83
práticas de leitura que têm suas próprias histórias (GALEY et al., 2011, p. 39).
Portanto, a partir da leitura dos teóricos expostos até o momento, entendemos que os
estudos dos textos dos videogames (das narrativas sincréticas, das leituras feitas pelo jogador,
do modo de ler etc) se incorporam aos textual studies, aos estudos de leitura e de apreensão de
texto e à história cultural dos textos e da leitura. A separação dos estudos de leitura dos
videogames e de outras materialidades textuais provoca o desenvolvimento de pesquisas que
não dialogam com conhecimentos já produzidos, o que, de certa forma, só aumenta o abismo
entre mentalidades ―tradicionais‖ sobre o formato dos textos e as novas emergências no
campo dos estudos – o que dificulta, além disso, o surgimento de novas teorias sobre como a
leitura dessas (novas) materialidades híbridas se dão.
82
―[…] an examination of digital textuality from the rise and fall of ‗hypertext‘ to contemporary convergence
and transmediation in hybrid visual-verbal genres: computer games, digital video, and e-poetry‖. Disponível em:
<https://complit.washington.edu/textual-studies-program#requirements> Acesso em: 12 mar. 2016.
83
―The narrative in which one technology drives out another (for better or worse) no longer holds much force in
contemporary textual studies; rather, book historians like Roger Chartier (1995), Peter Stallybrass (2002), and
Adrian Johns (1998; and in Grafton, Eisenstein, and Johns 2002), and media historians like Lisa Gitelman
(2006), have prompted us to consider how writing technologies overlap and change each other, and how those
technologies are implicated in reading practices that have their own histories‖ (GALEY et al., 2011, p. 39).
86
A ideia que permeia toda a pesquisa que estamos desenvolvendo nos últimos anos é a
de que os videogames são objetos culturais sincréticos/policódices, que têm textos escritos em
códigos e textos que são sentidos que emergem da leitura, seja de imagens ou de sons– seriam
estes as narrativas apreendidas pelo jogador. Há outros elementos que envolvem a atividade
de jogar o jogo, e eles também influenciam na composição do significado do texto que
emergirá do jogo jogado. Em última análise, uma narrativa é o que subjaz a estruturação do
que o jogador conta da sua experiência de jogo.
Pois, qualquer que seja o drama encenado, a ação depende de que atores emprestem
seus corpos e vozes à cena (ainda que sejam corpos desenhados e vozes gravadas
como nas animações). O jogador, tal como o ator no drama, ao mesmo tempo em
que é espectador da ação (pois ambos veem os acontecimentos do ponto de vista de
seu personagem), tem o poder de interferir no modo como a ação se desenrola por
meio de um roteiro prévio ou improvisação (2010, p. 118).
Cayres acredita que a interação jogador x jogo está para ator x texto dramático; ou
seja, o jogo de videogame se compara ao texto dramático e a emersão de significado acontece
na interação performática. Cayres ainda afirma que a sublimação da autoria do texto
dramático do videogame é tão intensa que faz com que a autoria do drama seja do jogador
(CAYRES, p. 119), e que este, o jogador, tem a ilusão de agenciamento da narrativa. Reitera-
se, ainda, a similaridade do texto dramático com o videogame na relação que ambos têm com
o tempo: o tempo do drama é o agora, assim como o do videogame (CAYRES, pp. 122-123).
O elo entre videogame e drama seria, de acordo com Laurel (2003) e Cayres (2010), o fato de
que ambos são miméticos – seguindo a lógica aristotélica da função primordial do drama. Em
suma, a ideia de Laurel (2003) e a ancoragem de Cayres (2010) é de que o jogador é um ator
enquanto joga, e que o videogame seria a peça. Nós tendemos, porém, a não entender o
fenômeno da recepção do videogame dessa forma.
Entendemos que esse tipo de processo de identificação jogador x avatar como algo que
também pode acontecer durante a leitura de um livro84, por exemplo. Alguns leitores tendem a
fantasiar, criando uma identificação intensa com os personagens ou mesmo duplicarem suas
emoções enquanto leem um romance (especialmente os romances mais comerciais). Para o
pesquisador Remo Cesarini, em O fantástico (2006), o leitor é capaz de vivenciar emoções
através de eventos narrados e isso o leva a descobrir ou a redescobrir, dentro de si, sensações
esquecidas no cotidiano. Essa ideia se coaduna com a fala de Noël Carroll em The philosophy
of horror, or, Paradoxes of the heart: ―nós somos movidos pela ficção de maneira tão vívida
que nos sentimos como se fôssemos parte dela, especificamente, somos levados a pensar
84
Essa comparação pode equivaler também ao momento em que o espectador assiste à encenação de uma peça
de teatro, ou a um filme, ou o momento em que um ouvinte escuta uma música, por exemplo.
88
Quando se lê, tem-se a sensação de que a narrativa vai sendo desvendada página a
página, dando a impressão de que os acontecimentos estão se desenvolvendo ou se
concretizando no ato da interação que se tem com o texto. De fato, todos os acontecimentos já
estão escritos (como códigos dos jogos de videogame) para as pessoas interpretarem. Em
certo sentido, o texto é como um código que, a priori, pode ser simulado a cada leitura.
Parece complexo que se possa concordar, a partir dessa ideia de emergência de sentido no ato
da leitura, com a ideia de que um videogame, por exemplo, é ―um drama a ser performado‖
pelo jogador. O jogador sabe que o videogame é um produto pronto com o qual ele interage
de forma controlada: cada mudança promovida por ele dentro do universo do jogo já está, de
antemão, projetada dentro do código; então, não há interação ou performance real e o jogador
sabe disso. A diferença de interação jogador x videogame e leitor x livro se dá, de fato,
porque as possibilidades de ação do jogador dentro do universo virtual do jogo são ampliadas
– o que não ocorre é uma ampliação da ação do jogador no universo ficcional ou narrativo.
85
―We are moved by the fiction in such a vivid way that we feel as though we are participants in it; specifically,
we are thought to feel as though we were the protagonist‖ (CARROLL, 1990, p. 90).
89
Loureiro inicia com um engano, porém, já que essas visões não são utilizadas para
criar os jogos – a ludologia e a narratologia são teorias para análise de jogos. Debatendo as
90
correntes teóricas de estudiosos como Aspen Aarseth, Jesper Juul, Eric Zimmerman e Janet
Murray, Loureiro delineia sua ideia sobre o estudo da narrativa do videogame. Ele contesta,
por exemplo, a fala de Murray sobre a ideia de que, diferente de quando um leitor lê um livro,
o jogador de videogame age sobre a história para que ela continue. Ou seja, diferentemente da
narrativa do videogame, a narrativa literária requer
[...] apenas que o leitor, neste caso, desfrute a viagem, ou observe as imagens que
estão a passar numa tela, ou o desenrolar da peça num teatro, criando assim a ilusão
de que existe uma separação entre videojogos e os supra referidos meios
(MURRAY,1997, p. 140, apud LOUREIRO, 2014, p. 36).
o sentido de qualquer texto, seja ele conforme aos cânones ou sem qualidades,
depende das formas que o oferecem à leitura, dos dispositivos próprios da
materialidade do escrito. Assim, por exemplo, no caso dos objetos impressos, o
formato do livro, a construção da página, a divisão do texto, a presença ou ausência
das imagens, as convenções tipográficas e a pontuação (CHARTIER, 2010, p. 8).
A partir, então, da instalação de uma nova discussão para estabelecer outras formas de
interação – separando, novamente, o videogame como objeto cultural de todos os outros que
coexistem numa só história e cultura textual –, Loureiro investe em parâmetros categóricos
como ―Interatividade Cognitiva‖, ―Interatividade Funcional‖, ―Interatividade Explícita‖ e, por
91
fim, ―Meta Interatividade‖ (2014, p. 42), explicando a última como ―conceito que abrange
toda a cultura, logo torna essa interatividade dependente do passado cultural e social do
utilizador que, por sua vez engloba outros jogadores com passados culturais semelhantes
criando assim uma rede‖ (LOUREIRO, 2014, p. 42). Observamos que essa ideia já perpassa
solidamente a Teoria da Recepção e o próprio conceito de comunidade de leitores no seio das
apropriações e práticas culturais de Roger Chartier. Em O mundo como representação (1991),
ele nos chama a atenção para polos importantes nos estudos textuais, do texto e do leitor:
Ou seja, a criação de novos esquemas para explicar conceitos que já foram estudados
anteriormente no campo de estudos textuais e literários é problemática, porque fragiliza as
análises levadas a turno e, ao mesmo tempo, descola e marginaliza ainda mais os estudos das
narrativas dos videogames. Loureiro (2014) não chega a explicar o que seriam interatividade
cognitiva, interatividade funcional e interatividade explícita, conceitos criados por Murray
(1997, apud LOUREIRO, 2014); tais conceitos tampouco fazem parte ou são utilizados em
sua análise.
torna-se, assim, um criador da narrativa. Essa criação ocorre não do vazio, mas
porque existem conceitos criados pelos autores do jogo que servem como base para
a criação narrativa e é de ressalvar que essa criação é livre de jogador para jogador.
Utilizadores distintos irão criar uma narrativa diferente para cada jogo, tendo em
conta as suas bases sociais e culturais, criando graças aos jogadores uma enorme
possibilidade de re-jogabilidade (2014, p. 37).
Tal desejo, por sinal, é posto na contramão dos estudos textuais já referidos, que
propõem um estudo que, se por um lado entende que novas mídias requerem novas
abordagens, por outro acredita que os estudos textuais se constituem como um campo de
pesquisa que se desenvolve e se expande historicamente.
Mais adiante, o texto de Sobral e Bellicieri propõe um estudo da narrativa diante dos
estudos de Manovich. O que explicam, a partir de suas leituras, é que em narrativas há uma
relação entre o que seria sintagma, a narrativa explícita, e paradigma, a ligação dos fatos da
narrativa feita de forma implícita. O que ilustram, através das teorias de Manovich (SOBRAL;
BELLICIERI, 2005, p. 10), seria uma ideia complexificada da teoria desenvolvida por Jauss
na estética da recepção.
entre os aspectos de ambos – personagens, narrativa, enredo, gênero etc), e que ambas as
materialidades podem se beneficiar dessas pesquisas.
que elementos presentes nesses jogos permitem concebê-los como uma forma de
narrativa? De que forma essa mídia eletrônica põe em contato sujeitos de diferentes
locais, culturas, crenças e ideologias, constituindo, assim, um território político de
partilha do sensível? (p. 1).
São inquietações que fazem parte do bojo das que regem nossa própria pesquisa,
embora seja possível identificar que a característica extensão do formato de publicação tenha
prejudicado a discussão, já que essa não se desenvolve de maneira apropriada.
Sá, textualizar uma informação seria tirá-la do plano cotidiano e abstraí-la numa sequência
narrativa.
Outro conceito, elaborado por Nogueira e discutido por Ramos e Sá, trata da
diferenciação entre a narrativa do videogame e de outras mídias, como a literatura. Para
Ramos e Sá,
O que ambos autores dizem se vincula aos pressupostos levantados por Jauss na teoria
da estética de recepção. Adiante, os autores estabelecem um ponto de diferença entre a
narrativa dos videogames e as literárias e fílmicas, já que ―a temporalidade nos jogos
aproxima-se das narrativas em vários aspectos. No entanto, as narrativas tendem a recuperar
eventos do passado enquanto os jogos encerram em sua configuração ações que, por parte do
jogador, determinam o futuro‖ (RAMOS; SÁ, 2012, p. 4).
Parece haver um conflito entre o que seja a narrativa e o que seja o sentido da mesma.
A construção da narrativa não se dá efetivamente com a inserção de elementos por parte do
jogador, o que ocorre é um desvelamento da narrativa. O que emerge, de fato, como parte da
produção criativa e da interação do jogador com o jogo (coadunando o projeto do
designer/autor) é o sentido da narrativa e do jogo. Mesmo em jogos que ofereçam escolhas e
tais escolhas modifiquem o curso narrativo, como, por exemplo, Deus-Ex (2000) e Indigo
Prophecy (2005), não há uma interação real do jogador no sentido de modificar algo que
esteja pré-programado ou antecipado pelo designer. O que há é apenas escolha, em vez de
criação (e o jogador o sabe). O que se cria é o sentido do jogo. De maneira interessante,
resgatamos uma fala de Roland Barthes, quando afirma que ―o objetivo da obra literária (da
literatura como uma obra) é fazer com que o leitor não seja mais um consumidor, mas um
produtor do texto‖ 87 (1975, p. 4).
86
Cenas, como pequenos filmes, que são mostradas na tela durante o curso dos jogos.
87
―[…] the goal of literary work (of literature as a work) is to make the reader no longer a consumer, but a
producer of the text‖ (BARTHES, 1975).
97
sequência, de acordo com a narrativa. Quando se coloca um inimigo como último obstáculo
(chamado de chefe/boss), entende-se que ele é a ameaça maior, o causador dos conflitos e
desafios enfrentados pelo jogador. Quando se elege um e não outro (ou se muda a ordem de
aparição deles), modifica-se a percepção de quem é o responsável pelos conflitos. Por isso,
em Fatal Frame (2001), quando se coloca o pai como um subchefe que antecede a filha como
chefe final, compreende-se que a interação (e a escolha dos designers) provoca um
encadeamento narrativo causal, além da compreensão de que a filha é pior/mais difícil/mais
responsável do que o pai em todos os acontecimentos ocorridos no jogo.
O game design determina quais escolhas o jogador será capaz de fazer no mundo do
jogo e que ramificações estas escolhas terão no restante do jogo. O game design
determina qual o critério de ganho ou perda o jogo deverá incluir, como o usuário
será capaz de controlar o jogo e que informações o jogo comunicará a ele, e isto
estabelece o quão difícil o jogo será. Resumidamente, o game design determina
todos os detalhes de como a jogabilidade funcionará (ROUSE, 2001, p. xix, apud
TOCCHIO, 2008, p. 4).
‗Design‘ é metade do game design. Como conceito e como prática a ideia de design
reside no centro da exploração dos games e de um jogar significativo... Assim como
o termo game, design é um conceito com muitos significados. Sua definição
depende do fato de o design ser considerado uma ideia, um conhecimento, uma
prática, um processo, um produto... Mas e o game design? Haverá uma definição
que indique um território particular para o game design?... Como resposta,
oferecemos a seguinte definição geral: Design é o processo pelo qual o designer cria
99
Tocchio desenvolve seu texto se pautando pela análise dos procedimentos para criação
de jogos digitais. Observa, então, que aspectos narrativos são importantes no desenvolvimento
dos jogos desde as fases iniciais de brainstorming88 até a escolha de ferramentas para a
confecção do mesmo, já que a tecnologia será responsável para criar os efeitos e proporcionar
o impacto que a história necessita. Sobre isso, o designer de jogos Takashi Tezuka comenta:
Outro ponto de interesse no trabalho de Tocchio está na atenção que ele dá para o
aspecto sonoro dos jogos digitais. Som e música são citados como elementos que enriquecem
o significado da narrativa. A música ambienta a narrativa, ao mesmo tempo em que promove
sensações que convergem para sua participação no jogo.
88
Momento em que uma pessoa ou um grupo de pessoas envolvidas num processo de criação começa a listar
quaisquer ideias que vêm à mente sobre o tema que desejam desenvolver. Isso se chama, literalmente,
―tempestade cerebral‖ ou ―chuva de ideias‖.
100
Qualquer um que tenha jogado Super Mario Bros deve se lembrar da vigorosa
sequência de acordes ―cartunescos‖ que tocava quando o temporizador ia caindo
abaixo de um minuto e o tema familiar tocava aflitivamente. Nada mudava na
jogabilidade, mas o ―tempo‖ [da música] impingia uma necessidade quase
palpável de uma velocidade galopante para vencer o cronômetro. Podia ser cruel,
mas era muito funcional (BARRETT, 2001, apud TOCCHIO, 2008, p. 45).
Assim como afirmado por Tocchio (2008), a trilha sonora de muitos jogos tem se
mostrado longeva. Mesmo que os jogadores não continuem jogando os jogos, as original
soundtracks (OSTs) encontradas no Youtube, por exemplo, têm milhares de visualizações. As
músicas são parte importante na cognição dos jogos, na compreensão de suas narrativas, na
jogabilidade e na empatia que o jogador tem com esses objetos digitais.
Mesmo que não tenha abordado teorias que versem sobre leitura e a interação texto x
leitor ou se o videogame se configura como objeto cultural em parte textual, Denardi entende
que o jogador lê o jogo (DENARDI, 2010, p. 85). Dessa maneira, as discussões desenvolvidas
pelo pesquisador coadunam com as nossas, no sentido de que enxergam o videogame como
um objeto que demanda leituras.
Andrade (2016, pp. 31-32), também tece considerações sobre as questões que
envolvem as discussões entre as searas de pesquisa ludológica e narratológica dos games
studies, compreendendo que ―em suma, o confronto entre narratologistas e ludologistas gira
em torno de uma disputa conceitual que pouco acrescentou, efetivamente, para um
instrumental teórico que corresponda às necessidades do objeto‖ (ANDRADE, 2016, p. 33).
Concordando com Gomez (2011), Andrade argumenta que a convergência de áreas de estudo
―tradicionais‖ parece fomentar a crítica arrojada que os videogames merecem. A dissertação
de Andrade nos é bastante interessante, pois toca em pontos discutidos proficuamente por nós
tanto na nossa dissertação como nesta tese. Discutiremos três ponderações por ele
apresentadas:
Nem todos os jogos de fato apresentam narrativa de forma clara, mas as narrativas
podem ser arregimentadas pelos jogadores, por atividade hermenêutica. Isso pode ser
observado em jogos de simulação de franquias como Sim City, e The Sims, por exemplo, nos
quais os jogadores produzem narrativas à partir de suas experiências de jogo organizadas,
102
posteriormente, por fala. O artigo ―Performance oral e o videogame enquanto suporte de texto
narrativo: o caso do jogo The Sims‖ (2014), de Falqueto-Lemos, apresenta uma discussão
sobre como os jogadores participam na construção de narrativas nos jogos da franquia The
Sims. Mas, para além do que tratamos por ―narrativas‖, podemos nos recordar das
ponderações do teórico Grant Tavinor (2009), bastante lúcido, ao afirmar que os videogames
são jogos que se se manifestam através de ficções. A questão, então, seria considerar que
mesmo jogos sem narrativa explícita como Super Mário Bros (1985) podem, por se tratar de
ficções, ser passíveis de análise crítica quanto a sua ficcionalidade e sua ergodicidade: uma
princesa em apuros no reino dos cogumelos pode levantar indícios de um mundo misógino
onde um monstro aprisiona mulheres. Não há narrativa que se desenvolva para além de uma
frase que descreva o jogo, mas a ficção que envolve o universo do jogo se baseia em um
discurso que em algum nível é ideológico. O que quero dizer é que, mesmo que um jogo seja
simplesmente uma simulação, há escolhas feitas pelo designer que produzem efeitos e
imiscuem discursos que podem ser criticados com o abarcamento das ferramentas dos estudos
literários, sem, necessariamente, que o jogo se apresente como uma narrativa.
Partindo-se desse ponto de vista, as fronteiras de atuação dos estudos literários nas
análises de videogame propostas por Andrade deixam de fazer sentido quando este diz que
―compete ao campo literário abordar as narrativas de games, sob o viés da convergência,
visando à compreensão de sua poética. Neste sentido, só interessa ao campo literário games
construídos a partir de uma composição narrativa‖ (ANDRADE, 2016, p. 35). Nem só a
narrativa é capaz de produzir sentido, assim como na literatura nem só o encadeamento de
uma história é capaz de provocar efeito no leitor. Há outros mecanismos e objetos que fazem
parte dos videogames os quais podem ser ―lidos‖ criticamente por estudiosos e jogadores, a
fim de estudo de sentidos, ideologias e discursos. Aqui nesta tese fazemos leitura de diversas
modalidades de materialidades para compreender um jogo de videogame. Por fim, destacamos
que concordamos com a compreensão de Andrade (ANDRADE, 2016, p. 35), de que
devemos, enquanto pesquisadores, utilizar metodologias e ferramentas que ampliem nossa
capacidade de leitura de videogames para além das teorias literárias já existentes; Andrade
utiliza conceitos como ―frequência, imersão, agência, jogabilidade dentre outras‖
(ANDRADE, 2016, p. 35).
As leituras empreendidas nesta sessão foram basilares para que se pudessem realizar
revisões teóricas importantes para o desenvolvimento da fundamentação desta tese sobre
conceitos de leitura e crítica da teoria literária. É perceptível que os estudos literários podem
103
89
Desenvolvo essa crítica especialmente a respeito do meu próprio trabalho desenvolvido no Trabalho de
Conclução de Curso (TCC) em 2012, intitulado ―Silent Hill 2 – Understanding and analyzing the narrative of a
Playstation 2 game using the literary theory of novel by E. M. Forster‖, do curso de Letras-Inglês da Ufes. À
época, desejava estudar a ficção de videogames através dos estudos literários, justificando a semelhança de
aspectos concernentes às narrativas de ambas as mídias (textos literários e jogos de videogame). Devido à clara
limitação teórica que tinha naquele momento, me prendi à análise comparativa dos Aspectos do Romance do
balizado E. M. Foster (1969), sem me propor a, de fato, mergulhar nos indícios apontados pela leitura do jogo.
Posteriormente, ainda inconformada pela falta de capacidade de outrora, revisitei o TCC e escrevi um artigo que
se aproximava mais do que pode ser chamada de uma análise literária de um jogo de videogame. O texto pode
ser lido em FALQUETO-LEMOS, A.. ―Transitoriedade, identidade e alteridade em Silent Hill 2 (1999)‖. Revista
Z Cultural (UFRJ), v. 1, pp. 1-8, 2017. Disponível em: <http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/transitoriedade-
identidade-e-alteridade-em-silent-hill-2-1999/>. Acesso em: 21 mar. 2018.
104
O esforço para apreender o objeto em seus vários aspectos estéticos está fundamentado
no entendimento de que só é possível compreender sua expressividade no todo, fazendo-se
uma leitura de suas várias camadas discursivas. Assim sendo, este capítulo se orienta pela
perspectiva de que, ao jogarmos um videogame, estaremos sob efeito de diferentes códigos
comunicativos. Ouvimos, lemos, apreendemos as imagens e, portanto, compreendemos a
mensagem de forma sincretizada. Nesta pesquisa, o estudo do gótico no jogo Castlevania:
Symphony of the Night (SoTN, KCE Tokyo, 1997) não privilegia esse ou aquele canal, mas
perpassa o que é apreensível pelo jogador e tenta, através da análise de imagem, som e
narrativa, vislumbrar efeitos e sentidos que emergem dessa mídia.
90
O nível do personagem é um parâmetro utilizado em jogos de videogame e RPG (Role Playing Games) para
mensurar o ganho de habilidade dos personagens. Caso se distribua de 1 a 100, sendo o nível inicial 1, o
personagem terá atributos físicos compatíveis com o nível inicial. À medida que progride no jogo, o personagem
fica mais forte, e seus atributos vão aumentando gradativamente.
106
elementos ergóticos, porque o jogo é isso: uma ―história‖; por mais simples que seja, a
história se desenvolve sequencialmente, por início, meio e fim. Dessa forma, mesmo em jogos
de narrativa quase que inexistente, como Tetris, há um nível de abstração ficcional que propõe
ao jogador que ele manipule blocos coloridos a fim de formar fileiras completas e fazer
pontos. Os elementos ergódicos limitam as possibilidades de ação do jogador e lhes dizem os
padrões de sucesso e falha. Ao ser bem-sucedido, o jogador acumula pontos e o jogo fica mais
difícil. A ficção do jogo do Tetris é muito simples, mas de qualquer forma existe como forma
de unificar os elementos ergódicos, ao mesmo tempo, esses elementos ergódicos fazem com
que a ficção do Tetris se torne um jogo.
Drácula é derrotado, mas Richter desaparece. Ao invés de demorar 100 anos, o castelo
Castlevania ressurge em cinco anos, e, sem qualquer descendente do clã dos Belmont para
destruir o mal, Alucard, filho de Drácula com uma humana, acorda de seu sono auto induzido
e decide investigar o que aconteceu enquanto ele dormia. Em Drácula, de Bram Stoker, a
narrativa é contada por múltiplos agentes, ora o advogado Jonathan Harker, ora sua noiva
Mina Murray, ora outros, e em muitos formatos diferentes, sendo alguns deles cartas,
registros em diários, artigos de jornais etc. O romance foi publicado pela primeira vez em
1897 no Reino Unido. A seguir, nos debruçaremos sobre essa narrativa, dando sequência às
considerações já feitas no final do capítulo 1. O objetivo é discutir um pouco a narrativa, os
personagens e os temas abordados, para que possamos, posteriormente, tecer comparações
com a narrativa de Castlevania SoTN.
91
Konami Castlevania timeline 2007. (Em japonês). Konami. Disponível em:
<http://www.konami.jp/gs/game/dracula/product/data.html> Acesso em: 01 jul. 2018.
107
Com o passar dos dias, Harker começa a perceber que se tornou um prisioneiro, e que
o Conde é um homem de hábitos excêntricos. Em uma das ocasiões em que perambula pelo
castelo, Harker entra em um dos aposentos aos quais não deveria ter acesso. Quando
adormece, ele é acordado por três vampiras, que querem beber seu sangue. Ele se livra do
perigo quando é salvo pelo Conde, mas percebe que precisa escapar do castelo.
É em Whitby que a personagem Lucy Westenra, amiga de Mina Murray, vive. É Mina
quem documenta, através de seu diário, os percalços passados por Lucy, que começa a ter
problemas com o sonambulismo. Alheio ao conhecimento de ambas, Drácula passa a assediar
Lucy, até o ponto de atacá-la. Mesmo durante esse período de turbulência, Lucy recebe três
pedidos de casamento, aceitando casar-se com Arthur Holmwood. Mina viaja para Budapeste
a fim de cuidar de Jonathan, que está muito mal, internado num hospital. Enquanto ela está
fora, Dr. John Seward, um dos pretendentes de Lucy, aceita tomar conta da amiga de Mina.
Lucy não melhora com o tempo, e Dr. Seward pede a ajuda de seu professor Abraham
Van Helsing para conseguir entender o que acontece com a moça. Van Helsing consegue
estabelecer o diagnóstico da moça, embora não comunique a ninguém. São feitas inúmeras
transfusões de sangue, mas os esforços dos médicos são em vão. Quando ambos os médicos
não estão, Lucy e a mãe são atacadas por uma espécie de lobo grande. A senhora Westenra
morre com o susto.
Além das transfusões de sangue, Van Helsing usa métodos não ortodoxos para curar a
enferma. Espalha flores pelo quarto, lhe dá um colar feito de alho e pendura um crucifixo no
pescoço dela. Por motivos variados, Lucy acaba sempre sem as proteções, e, em uma das
noites, é encontrada morta. Após a morte da moça, os jornais da cidade noticiam que as
crianças testemunham terem sido atacadas por uma mulher vampira. Van Helsing, Dr. Seward
e os outros dois pretendentes de Lucy conseguem encontrá-la, confrontá-la e acabar com o
mal, enfiando uma estaca em seu coração. Na mesma época, Jonathan e Mina retornam para a
Inglaterra, casados. Eles se unem ao grupo de Van Helsing na luta contra Drácula.
Essa luta contra o mal é longa e perigosa. Os homens conseguem encontrar 49 dos 50
caixões de Drácula, selando-os com hóstias e os inutilizando, mas, enquanto o fazem, Mina é
atacada pelo vampiro e começa a sofrer. Ela e Van Helsing vão até o castelo de Drácula, em
ação conjunta com Harker e Quincey, Dr. Seward e Arthur Holmwood, que viajam no encalço
do último caixão, que está sendo transportado por mar e terra. Van Helsing mata as três
vampiras no castelo da Transilvânia e se encontra com os homens, que conseguem interceptar
Drácula após uma violenta luta com os ciganos que o estão transportando por terra. Mesmo
mortalmente ferido, Quincey consegue apunhalar seu coração. O romance acaba com um final
feliz em forma de epílogo, sete anos após os eventos narrados.
4.1.1 TEMAS
109
Tenho a impressão de que, quanto mais avançamos para o Oriente, menos pontuais
os trens se tornam. Fico imaginando quão pontuais serão as veneráveis conduções da
China. [...] As figuras mais estranhas e bárbaras eram os eslovacos, com seus
imensos chapéus de boiadeiro, suas bojudas calças bufantes (de um branco sujo),
suas camisas de linho e seus assombrosos cintos de couro, com um palmo e meio de
largura, guarnecidos de uma ponta à outra por cravos e mais cravos de bronze.
Usavam botas altas, com as calças enfiadas nos canos; eram melenudos, de
cabeleiras escuras e longas, e bigodões pretos e pesados. Sua aparência era
impressionante, mas nada atraente. Em cima de um palco londrino, seriam
identificados à primeira vista como um bando de arcaicos salteadores orientais
(STOKER, 2014, pp. 53-54).
92
―Such fears are linked to a perceived decline - racial, moral, spiritual - which makes the nation vulnerable to
attack from more vigorous, ‗primitive‘ peoples‖ (ARATA, 1990, p. 623).
110
Segundo Arata, quando Stoker decide mudar a localização do castelo, que seria em
Styria (assim como o castelo de Carmilla, de Le Fanu), e coloca-o em Transilvânia, ele sabe
que seus leitores londrinos reconhecerão aquele como um lugar que é palco de transições
violentas de sucessivos reinados (ARATA, 1990, p. 627). Dessa maneira, Drácula está
matizado com uma discussão de fundo político, já que ―na versão de Stoker do mito,
vampiros estão intimamente ligados à conquista militar e à ascensão e queda de impérios‖93
(ARATA, 1990, p. 627).
Os estudos sobre Drácula, segundo Paul Riquelme (apud CLASEN, 2012, p. 379),
seguem duas frentes: a primeira faz a linha psicológica, e a segunda, histórica. De forma
geral, os temas que circulam na obra parecem ecoar as preocupações da sociedade vitoriana
da época: ―degeneração (DIJKSTRA), colonização reversa (ARATA), homossexualidade
(SCHAFFER), a ―Nova Mulher‖ (SENF), materialismo Darwiniano e a dissolução da alma
(BLINDERMAN)‖94 (CLASEN, 2012, p. 380). Em ―Coitus Interruptus: Sex, Bram Stoker,
and Dracula‖, Elizabeth Miller (2006) tece importante revisão de literatura que explica as
origens dos estudos freudianos do romance de Stoker, que datam desde a década de 1970 e
que revolucionaram a mentalidade dos estudiosos desde então. Segundo Miller, é difícil
sequer imaginar que elementos como a estaca sejam meramente estacas na
contemporaneidade: tudo tem conotação sexual (2006, sem paginação). Aceita-se, segundo a
autora, que Drácula é primordialmente sobre o desejo que a sociedade vitoriana tinha de
controlar os impulsos sexuais – restava saber se esses impulsos seriam hetero ou
homossexuais. O que é instigante, para Miller, é tentar entender essa leitura acadêmica tão
focada na sexualidade. É fato, porém, que, à medida que o tempo passava, a sociedade ficava
cada vez mais estimulada por acontecimentos que eram próprios do contexto em que vivia,
como por exemplos os americanos na década de 1960. A preocupação girava em torno de
questões ligadas à liberdade sexual e à epidemia de AIDS.
93
―In Stoker‘s version of the myth, vampires are intimately linked to military conquest and to the rise and fall of
empires‖ (ARATA, 1990, p. 627).
94
―[…] degeneration (Dijkstra), reverse colonization (Arata), homosexuality (Schaffer), the ‗New Woman‘
(Senf), Darwinian materialism and the dissolution of the soul (Blinderman)‖ (CLASEN, 2012, p. 380).
111
ser vítima de distorção ou mesmo da criação de informações para apoiar uma teoria.
É aí que, na visão dessa escritora, devemos recuar. Às vezes, uma estaca de madeira
é apenas isso - uma estaca de madeira95 (MILLER, 2006, sem paginação).
95
―There is little doubt that much of the growing appeal of Dracula throughout the twentieth century was due to
the text‘s potential for yielding up a variety of sexual readings. This has been accompanied by an increasing
tendency to identify with the vampire as the ‗sexually liberated‘ Other, an erotic force which creates undue
anxiety for the repressive society which it invades. Consequently, the Victorians become the villains while the
vampires promise the sexual liberation that Victorian England supposedly denied. But in the flush of excitement
to validate the novel, to give it relevance in a postmodern world, one can too easily fall victim to distortion or
even the creation of information to support a theory. That is where, in the view of this writer, we should pull
back. For sometimes a wooden stake is just that—a wooden stake‖ (MILLER, 2006, sem paginação).
112
sexo‖ (HINDLE, 2014, p. 20). Segundo Leonard Wolf, esse efeito provocado pela obra ―vem
da intensidade com que Stoker se esquiva àquilo que ele próprio vislumbra – ao mesmo
tempo que adorna essa verdade escamoteada em repetitivos e seguros bordões cristãos‖ (1972,
p. 206).
A proposta de leitura de Weissman pode ser uma possível resposta para as angústias
presentes na narrativa de Stoker em relação aos homens. Outra análise desconcertante é feita
por Christopher Craft (1984, p. 170), indiciando que ―uma das principais fontes de ansiedade
no romance é ‗o oscilante interesse de Drácula em Jonathan Harker‘‖. De fato, esse pode ser
um ponto de interesse por parte do leitor, já que o vilão está sempre rondando Harker no
castelo, mantendo-o prisioneiro, amedrontando, sem, de fato, nunca ataca-lo frontalmente.
Nota-se o trabalho de leitura por parte do leitor, que investiga junto com os
personagens, acessando diversos documentos escritos por múltiplos autores. Essa rede textual
revela personagens que ignoram o panorama geral da narrativa e reserva para a audiência o
papel do investigador hermenêutico que coleta as evidências e depreende dali o sentido.
Outro ponto interessante que se destaca é o uso desse mecanismo narrativo nos jogos
digitais. No artigo ―Livros e leituras em Resident Evil 4 (2005)‖, analisa-se as representações
de leitura e literatura trazidas pelo jogo. Atentou-se, na ocasião, para o fato de que as histórias
dos jogos do gênero são acessadas pelo jogador ao longo da narrativa. Ele encontra notas,
recados, bilhetes e registros diários que dão conta de explicar o universo ficcional do jogo em
questão. Essas mensagens contêm importantes informações que servem para que o jogador
possa entender como pode superar um desafio, mas também contam a história que
contextualiza esse universo diegético.
Nos jogos com esse tipo de característica, a leitura dos diversos fragmentos com os
mais variados gêneros e autorias é feita por decodificação, ao passo que a compreensão do
texto-sentido é um exercício hermenêutico. Assim como na leitura de Drácula, a organização
de todas as informações fragmentadas deve ser operada pelo leitor.
4.1.2 OS PERSONAGENS
a caracterização do romance segue sua estrutura dialética geral, o que significa que a
sutileza e a complexidade não são muito favorecidas. Personagens tendem a ser a
favor ou contra a missão. Se a assistem, são idealizados simplesmente como galantes
ou puros; se eles a obstruem, eles são caricaturados simplesmente como vilões ou
covardes 96 (FRYE, 1973, p. 195).
De acordo com Gates, os quatro jovens heróis são muito parecidos, fazendo com que
seja difícil para que o leitor consiga diferenciar Jonathan Harker, Dr. John Seward, Arthur
Holmwood e Quincey Morris (1976, p. 36). Destaca-se a figura de Dr. Van Helsing, que atua
como um mentor sábio para o grupo de jovens em sua cruzada contra o mal97. O personagem
é o único descrito de forma tão alentada, assim como se pode ver na passagem do diário de
Mina, de 25 de setembro. Segundo ela, Van Helsing é
[…] um homem de altura média, robusto, com peito largo e ombros desempenados;
seu firme pescoço se ergue altivamente sobre o tronco, assim como a altiva cabeça
se ergue sobre o pescoço. A cabeça, a propósito, exibe uma espécie de elegante
equilíbrio natural, dando-lhe um ar de poder meditativo; o crânio é amplo e seus
traços são nobres e proporcionais. Sua face estava recém-barbeada, o queixo é
quadrado e sólido; a boca, resoluta e vívida; o nariz é comprido e muito reto. Tem
narinas inquietas, que se dilatam de tempos em tempos- tique facial que vem
acompanhado por um enrugar dos lábios e um repulsar das hirsutas sobrancelhas.
96
―The characterization of romance follows its general dialectic structure which means that subtlety and
complexity are not much favored. Characters tend to be either for or against the quest. If they assist it they are
idealized as simply gallant or pure; if they obstruct it they are caricatured as simply villainous or cowardly‖
(FRYE, 1973, p. 195).
97
Não nos surpreende que hoje esse personagem seja tão popular no imaginário quanto o protagonista do
romance, Jonathan Harker. Há um filme tendo como protagonista o personagem, Van Helsing (2004), e uma
série de TV homônima (2016-).
115
Sua testa é larga, erguendo-se íngreme e reta acima do nariz e depois e abaulando
suavemente para trás, com duas saliências ósseas; o cabelo avermelhado não cai
sobre a fronte protuberante, mas se projeta naturalmente ao longo das têmporas,
tombando sob os ombros. Os olhos são azul-escuros, bem separados, rápidos e
vivos; conforme as oscilações de humor, tornam-se velozmente ternos ou
imediatamente severos (STOKER, 2014, pp. 319-320).
Nem mesmo Drácula havia sido descrito de forma tão demorada e detalhada nas várias
aparições que faz ao longo do romance. Van Helsing também é descrito emocionalmente por
seu pupilo, o Dr. Seward, em uma passagem anterior do romance, destacando que ―tem
nervos de ferro e um temperamento de gelo; seu autodomínio é completo e sua resolução,
imperturbável. E, apesar dessa têmpera rija, é um homem de grande tolerância, abençoado
pelas virtudes cordiais e dono do mais generoso dos corações‖ (STOKER, 2014, p. 220).
As mulheres são perseguidas pelo mal e depois salvas. A donzela e o vilão mantêm
uma relação que, segundo Gates (1976, p. 44), vem sendo desenvolvida no romance gótico
como um misto confuso de fascinação e repulsa. Isso parece coadunar com a ideia do sublime
já abordada anteriormente no capítulo 2. Relembrando, o horror é um efeito causado pela
justaposição de dois polos. Assim como o efeito do sublime, um misto de dor e prazer, de
aversão e gozo (CHAO, 2006, p. 1). Dessa maneira, as respostas psicológicas e físicas
produzidas por Lucy e Mina são da ordem do sublime.
Para Gates, as heroínas de Stoker e do romance gótico em geral estão entre duas
categorias: as vítimas e as sobreviventes (1976, p. 48). A descrição de ambas as personagens,
porém, não é feita de maneira rica; apenas sabemos que Lucy é bonita o suficiente para ter
três pretendentes. Mina é mais inteligente e capaz do que Lucy, mas não o suficiente para que
isso possa impedir Drácula de fazê-la mais uma de suas vítimas. Com ela, o Conde vai além,
fazendo com que Mina beba de seu próprio sangue:
um. Mas, no momento, deve ser punida pelo que fez (STOKER, 2014, p. 473).
Mina sofre com sua situação, pois sabe que seu corpo e sua alma foram violentados e
estão sujos perante as leis cristãs. Ao final do romance, a ordem é restaurada, e Mina
consegue cumprir seu papel conforme os valores sociais. Segundo Gates, a personagem Mina
não se desenvolve conforme o desenrolar da narrativa – de fato, se trata de uma personagem
simbólica, que representa a virtude feminina (1976, p. 55). Mesmo sendo bastante virtuosa
aos olhos de todos os personagens, Mina declara que sentiu, ao optar por pregar uma peça em
Van Helsing, ―aquele gostinho do pecado original que permanece vivo na boca feminina‖
(STOKER, 2014, p. 321). É possível perceber como, ao longo do romance, os comentários
sobre as mulheres as relegam a uma posição social (esposa, mãe etc.), dadas as características
elencadas por Stoker, como a incapacidade feminina de ter uma boa memória (STOKER,
2014, p. 321), a intolerância com os velhos costumes (STOKER, 2014, p. 185) e o desejo de
avanço na etiqueta dos jogos de conquista (STOKER, 2014, p. 186). Em uma das cartas a
Mina, Lucy declara que ―os homens desejam que as mulheres (principalmente suas esposas)
sejam tão corretas quanto eles; mas temo que as mulheres em geral sejam bem mais incorretas
do que deveriam ser‖ (STOKER, 2014, p. 135), o que demonstra certa falta de autoestima em
relação à grande nobreza masculina, apontada de maneira reiterada por Stoker em suas
diversas descrições dos personagens homens. Não há evidências claras de que o tipo de
comportamento ao qual Lucy estaria se referindo, ao dizer que ela seria uma pessoa de
comportamento incorreto, possa ter ―facilitado‖ a aproximação do vampiro com seu desejo de
ter se casado com os três pretendentes que tinha. Mas isso não é muito congruente com a
própria narrativa dos fatos, que declara que Lucy apenas teve esse desejo por pena do
sofrimento dos pretendentes, e por ser uma moça muito doce. Essas questões de gênero,
segundo Maurice Hindle, seriam um dos motivos góticos essenciais (HINDLE, 2014, p. 16).
O último personagem a ser estudado é Drácula, que, segundo Gates, é mais uma
―presença do que uma personalidade‖ (1976, p. 56). Apesar das várias descrições físicas, o
vilão não se revela ou se desenvolve psicologicamente. O que jaz marcante são as descrições
físicas muito intensas do efeito causado pelos seus olhos e o impacto causado pela aparência,
que se transmuta do início da narrativa para sua chegada em Londres.
SEDGWICK 1986, pp. 9-10, apud JONES, 2010, p. 7. Cenários ou sociedades opressivas em contraste
com a vastidão da natureza selvagem;
Figuras masculinas opressoras;
Formato descontínuo, com diversas narrativas
fragmentadas;
Estados de consciência alterados;
Duplos;
Descoberta de laços familiares secretos;
Diálogo entre a arte narrativa e a arte imagética;
Ecos, sons e mensagens escritas indecifráveis;
Efeitos nocivos da culpa e infâmia;
Sonhos;
Figuras faustianas.
GATES, 1976, p. 13; NORTON, 1972, p. 32. Luta do bem versus o mal.
98
Essas duas características não foram encontradas embora tenham sido imiscuídas à narrativa na adaptação para
o cinema intitulada Drácula de Bram Stoker (1992), de Francis Ford Coppola. No filme, Drácula identifica Mina
como sua amada reencarnada.
118
na narrativa de Drácula. Mesmo a arte pictórica aparece no romance com longas e belas
descrições dos cenários, por vezes pastorais ou marítimos, como a cena em que Mina
descreve o céu e as ondas no momento em que o Deméter chega a Whitby.
Seu trajeto era marcado por uma vasta miríade de cores: o crepúsculo variava entre
púrpura, rosa, verde e violeta; as nuvens apresentavam nuanças de labareda e as
mais variadas gradações de ouro; aqui e ali, havia aglomerações de vapor totalmente
escuro, em todas as formas imagináveis, tão perfeitamente recortadas que pareciam
silhuetas de gigantes. A peculiar visão certamente não foi desperdiçada, pois havia
alguns pintores presentes – e, sem dúvida, algumas ilustrações do Prelúdio da
Grande Tempestade haverão de ornar as paredes da Real Academia e da Real
Instituição Britânica no próximo mês de maio (STOKER, 2014, p. 166).
Mas, se falharmos, não é a simples morte o que nos aguarda. É algo muito pior:
podemos nos tornar iguais a ele: nefastas criaturas da noite, seres sem coração ou
consciência, rapinando o corpo e a alma daqueles que mais amamos. Então, para nós
os portões do céu eternamente ficarão fechados; pois quem poderia abri-los de
novo? Continuaríamos existindo e existindo, ao longo dos séculos, abominados por
todos, máculas eternas aos olhos de Deus, flechas cravadas no flanco d‘Aquele que
morreu por nós (STOKER, 2014, p. 400).
99
―[…] the opposite poles of cycles of nature are assimilated to the opposition of the hero and his enemy. The
enemy is associated with winter, darkness, confusion, sterility, moribund life, and old age, and the hero with
spring, dawn, order, fertility, vigor, and youth‖ (FRYE, 1973, pp. 187-188).
120
descreve o ―castelo em ruínas, cujas altas janelas opacas não emitiam um único raio de luz.
As ameias da velha muralha, meio derruídas, recortavam ângulos e reentrâncias contra o céu
clareado pelo luar‖ (STOKER, 2014, p. 71). Ao chegar à entrada, Jonathan descreve a
impressão que lhe causa a grande construção, chamando-lhe a atenção a
As paredes, por sinal, são descritas como ―espessas‖ e as janelas ―altas e escuras‖
(STOKER, 2014, p. 73) e ―fundas‖ (STOKER, 2014, p. 101). Drácula também o adverte: ele
está livre para andar pelo castelo, mas deve evitar as portas que estiverem trancadas
(STOKER, 2014, p. 82), pois são partes proibidas da casa. Esse aviso é repetido
posteriormente, quando Drácula faz outro alerta, dizendo que ―caso deixe estes aposentos, não
deverá dormir, sob nenhuma hipótese, em outra parte do castelo. Esta é uma morada antiga,
cheia de velhas memórias; e há sonhos perigosos para quem adormecer de forma descuidada.
Eu o previno‖ (STOKER, 2014, p. 100, grifos do autor).
De acordo com Gates (1976), o castelo de Drácula segue a tradição que vinha sendo
desenhada pelos autores góticos, já que se compõe, quase que majoritariamente, de
―corredores longos e escuros, salas empoeiradas cheias de móveis velhos e em decomposição,
e portas trancadas‖ (GATES, 1976, p. 21). Segundo Harker, tudo é muito luxuoso, dos
talheres e copos à decoração; ―as cortinas, as tapeçarias, o estofamento das cadeias e dos
sofás, os reposteiros de minha cama – tudo foi confeccionado nos mais suntuosos tecidos‖
(STOKER, 2014, p. 79). Infelizmente, ―é evidente que têm séculos de idade‖ (STOKER,
2014, p. 79). É interessante notar a fala de Drácula a respeito de sua morada, quando esse diz
que ―as muralhas de meu castelo estão derruídas; o vento sopra glacial entre as ameias e as
janelas desmoronadas. Amo as sombras e a penumbra, e gosto de ficar a sós com meus
pensamentos sempre que posso‖ (STOKER, 2014, p. 86). É o mesmo que ele diz sobre a
morada em Carfax, adquirida através dos serviços de Harker; ―Agrada-me muito que o lugar
seja grande e velho‖ (STOKER, 2014, p. 86). Nessas circunstâncias, observa-se que essas
estruturas arquitetônicas são tidas como extensão da forma como Drácula se enxerga, como
uma extensão de seu poder antigo. Essas estruturas carregam também símbolos de dominação
e de ordem, que condizem com a mentalidade de grupos sociais excludentes e de regime
patriarcal, como já citado anteriormente. É o que Jonathan declara na bela ala do castelo em
121
que ele encontra as três vampiras. Ao chegar nesse ambiente, Harker compreende que aquele
lugar ―outrora serviu de morada aos senhores e senhoras da fortaleza, pois o mobiliário é mais
exuberante que em outros recintos‖ (STOKER, 2014, p. 104). Ao declarar que descreve tudo
isso em notas taquigráficas, Jonathan se regozija dizendo que ―é o século XIX fulminando
este lugar com sua atualíssima vingança. Mesmo assim, a menos que meus sentidos me
enganem, as coisas do passado exerceram e ainda exercem poderes peculiares, que a simples
modernidade não consegue derrotar‖ (STOKER, 2014, p. 104).
Outro ambiente do castelo descrito por Jonathan é o percurso que ele faz até onde
estão as caixas de terra usadas para transportar Drácula. Para chegar até lá, ele passa por uma
escada em espiral ―muito escura, iluminada apenas por estreitas seteiras que se abriam na
maciça alvenaria‖ (STOKER, 2014, p. 122), passando por um túnel, criptas, com luz rarefeita.
A quinta chamada Carfax, por sinal, é descrita por Jonathan a Drácula a partir de
anotações previamente feitas pelo advogado. Frisa-se que é
cercada por uma alta e decrépita muralha, construída com enormes blocos de pedra.
[...] Os portões são feitos de ferro fundido e antiga maneira de carvalhos; estão
roídos pela ferrugem. [...]. A mansão é muito ampla e sua construção deve ter
começado no período medieval, pois em algumas peças as pedras são de imensa
espessura, com apenas umas poucas janelas lá no alto, gradeadas de ferro. [...] Nas
vizinhanças, há uma velha capela. [...] abriga um manicômio particular (STOKER,
2014, pp. 85-86).
com sua narrativa causados pela confluência de uma série de elementos que podem ser
descritos como ―sonoros‖. São efeitos, segundo Gates, ―tradicionais: sons noturnos
misteriosos, um suprimento aparentemente inexaurível de luar romântico e um coro de alerta
de camponeses medrosos e supersticiosos. A música ―fantasmagórica‖, que era o dispositivo
favorito de Ann Radcliff, é substituída em Drácula pela música das ―crianças da noite‖, os
lobos100 (1976, p. 24).
Além de sons de lobos, ouve-se o ―rangido agônico produzido pelas coisas raramente
usadas‖ (STOKER, 2014, p. 74) e o ―agudo lamento de dobradiças‖ (STOKER, 2014, p. 128)
no castelo, e o som nos corredores ―em cujo assoalho de pedra nossos passos ecoaram
soturnamente‖ (STOKER, 2014, p. 75). Fazem parte desse repertório sonoro o ―doloroso
lamento de cães‖, o ―gemido rapidamente sufocado de vítimas‖ e o ―agonizante grito
feminino‖ das mulheres que perdem seus filhos para as mãos dos monstros do castelo
(STOKER, 2014, p. 118). E quando o ambiente parece tranquilo, ―subitamente, no meio do
silêncio, os lobos voltaram a uivar no vale profundo‖ (STOKER, 2014, p. 78).
100
―[…] traditional effects: mysterious nocturnal sounds, an apparently inexhaustible supply of romantic
moonlight, and a warning chorus of fearful, superstitious peasants. The ‗ghostly‘ music which was a favorite
device of Ann Radcliffe is replaced in Dracula by the music of ‗the children of the night‘, wolves‖ (GATES,
1976, p. 24).
123
Durante esse tempo em que ela passa com Lucy, ambas passeiam com frequência,
oportunidade para ouvir bandas pela cidade. Em uma dessas ocasiões, Mina diz que elas
escutam músicas de dois compositores chamados Louis (Ludwig) Spohr (1784-1859) e
Alexander Campbell Mackenzie (1847-1935) (STOKER, 2014, p. 192).
Essa ideia aparece em um estudo sobre as músicas da Bossa Nova e o cenário urbano
do Rio de Janeiro da década de 1950, intitulado ―O Nome, o Olhar e a Escuta da Cidade:
memórias de ouvintes‖, texto em que Simone Luci Pereira (2005) afirma que a experiência do
público em diálogo com obras artísticas contemporâneas revela representações de mundo
compartilhadas (p. 156), abordando a metrópole como ―texto que temos para ser lido/ouvido‖
(p. 156):
noturna esteja cobrando seu preço; mas quem dera fosse apenas isso!‖ (STOKER, 2014, p.
88). A sensação exprimida por Harker é a de um suspense que não aparenta se sustentar em
indícios, mas que se revela, segundo Gates, como um estado de emoções típico da literatura
gótica, a sensação de que se está vivendo em um pesadelo (1976, p. 27).
O jogo vem com um manual dentro do próprio encarte. O manual auxilia o jogador a
conhecer os personagens e a narrativa antes que esse, efetivamente, jogue o videogame. O
manual é parte da capa, como os encartes de CDs de música. Destaca-se o trabalho de fãs em
manter sítios virtuais com os registros dos jogos. No Brasil, pouquíssimos usuários tiveram
acesso ao jogo original, portanto, ao manual do mesmo. O Playstation, lançado na década de
1990, foi um dos primeiros consoles a utilizar a mídia de CD e era fácil copiar jogos e vendê-
los em versões pirateadas e sem os encartes originais.
101
Na realidade, sublimaremos qualquer enfoque que não seja adequado ao recorte privilegiado na nossa leitura.
Na contemporaneidade, há pesquisadores como Thomas Apperley e Darshana Jayemane (2017), em ―A Virada
Material dos Game Studies‖, que pretendem entender, por exemplo, a etnologia das práticas que circulam através
das estruturas de jogos digitais (como a formação das comunidades online), a prática física do contato com a
infraestrutura desses objetos (consoles e celulares), e estudos e críticas do trabalho de estruturação dos códigos
dos jogos digitais. Como já apontado anteriormente (CONSALVO, 2012), as diversas metodologias e recortes
que podem ser feitos na crítica de jogos digitais devem atender às expectativas e à área de atuação do
pesquisador.
102
Literalmente, ―jogo de ação e aventura‖.
103
Literalmente, ―jogo de ação e simulação‖.
104
Jogos de interpretação de papéis, que em videogames se tornam simplesmente jogos em que os fatores de
evolução de personagens e de narrativa têm maior importância do que elementos de aventura, que exploram
desafios ―físicos‖ (por exemplo pular plataformas etc).
125
Figura 06: Informações técnicas do manual105 do jogador do videogame Castlevania SoTN (1997), pp. 3-4.
Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/>. Acesso em: 01 jul. 2018.
Nota-se no título do guia para o controle do jogo, ―Controlando o Horror‖, certa poesia
e ironia – e não uma linguagem literal, algo a que se está acostumado a ler nos manuais.
Assim, através da leitura desse manual é possível estabelecer de antemão que o gênero
ficcional no qual o jogo se insere é o horror. Além disso, o estilo gótico aparentemente está
presente nos desenhos que emolduram a página.
105
O manual pode ser acessado integralmente pelo link:
<http://www.thealmightyguru.com/Wiki/images/0/08/Castlevania_-_Symphony_of_the_Night_-_PS1_-
_Manual.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2018.
106
É possível assistir ao jogo integralmente através de um vídeo na plataforma Youtube que se divide em duas
partes. A primeira, PSX Longplay [047] Castlevania: Symphony of the Night (Part 1/2), está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=d2JsYKbWubY>. A segunda, PSX Longplay [047] Castlevania: Symphony
of the Night (Part 2/2), está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oL3043Ms_Is>. Acesso em: 26
mar. 2018. Recomendamos que se assista ao jogo, já que a narrativa não dará conta dos aspectos visuais e
sonoros presentes na experiência de contato com a mídia. De qualquer maneira, tentaremos transcrever de
maneira narrativa a experiência do jogador no controle do personagem que é o vetor da narrativa, Alucard.
107
―Journey back to 1792, and the Transylvanian countryside of Romania‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
126
Um raio cai, iluminando um bando de morcegos. Na torre mais alta está Richter. Castlevania:
SoTN (1997) começa com cenas que são do final do jogo Castlevania: Rondo of Blood
(1993). Controla-se o personagem Richter Belmont na última fase do jogo antecessor, no
momento em que ele confronta Drácula. Controlando Richter, o jogador encontra Drácula
sentado numa poltrona alta e imponente, bebendo numa taça enquanto apoia a cabeça na mão
numa posição que sugere tédio. O diálogo segue:
108
―Richter Belmont: Die, monster! You don't belong in this world!
Dracula: It was not by my hand that I'm once again given flesh. I was called here by humans who wish to pay me
tribute.
Richter Belmont: Tribute?! You steal men's souls and make them your slaves!
Dracula: Perhaps the same could be said of all religions.
Richter Belmont: Your words are as empty as your soul! Mankind ill needs a savior such as you!
Dracula: What is a man? (Flings his wine glass aside.) A miserable little pile of secrets! But enough talk! Have at
you!‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
127
chegou. O castelo de Drácula chama você. E ninguém pode dizer quem sairá
vitorioso109 (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
Esse mesmo texto aparece anteriormente no manual do jogador, como se pode ver na
figura 07. Observa-se tanto nas figuras 07 e 08 a semelhança do castelo de Castlevania com a
descrição feita por Jonathan Harker do castelo de Drácula. Observa-se, no texto do prólogo, a
escolha de palavras e expressões que realçam o estilo do texto, como ―under the glare of a full
moon‖, algo que pode ser traduzido como ―sob o brilho da lua cheia‖. No trecho
―Castlevania, o castelo de Drácula, que segundo rumores aparece uma vez a cada século,
subitamente se materializou a partir de uma névoa, como se mostrasse a ela o caminho‖, tem-
se a descrição em sequência narrativa. Antes de terminar o texto, o personagem Alucard se
mistura ao jogador, numa espécie de convite para aquele que joga possa se engajar na causa e
espelhar as emoções e motivos do protagonista.
Figura 07: Prólogo do jogo Castlevania SoTN (1997). Manual do jogador, pp. 7-8.
109
―It was Richter Belmont, the legendary vampire hunter, who succeeded in finally ending the menace of Count
Dracula, Lord of the Vampires who had been brought back from the grave by the dark priest Shaft. However,
one night 4 years later, under the glare of a full moon, Richter mysteriously vanished. With no idea of where to
begin her search, Maria Renard set out to look for him. It was then that fate intervened. Castlevania, the castle of
Dracula, which is rumored to appear once every century, suddenly materialized from out of the mist as if to show
her the way. Meanwhile, powerful forces were struggling for the soul of a man named Alucard. The very same
Alucard who had teamed up with Trevor Belmont to battle his immortal father, Count Vlad Tepes Dracula.
Alucard, in order to purge the world of his own cursed blood line, had submerged his vampiric powers and
entered into what was supposed to be an eternal slumber. But now, he is awake and aware of the evil once again
at work in his homeland. This time has once again come for the forces of Good and Evil to engage in their
ancient battle. Dracula‘s castle beckons you. And no man can say who shall emerge victorious‖
(CASTLEVANIA SOTN, 1997).
128
Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/>. Acesso em: 01 jul. 2018.
Figura 08: Tela de abertura do jogo Castlevania SoTN (1997).
Na próxima cena, Alucard corre pela floresta noturna. Nota-se a semelhança dessa
floresta com a que Jonathan Harker vislumbra através da janela quando está refém do Conde
em seu castelo.
O jogador conduz Alucard ao castelo, atrás de si, o portão se fecha: não há caminho
por onde retornar. Após percorrer a entrada, ele se encontra com a Morte. Ela lhe pergunta o
que ele faz ali, ao que o protagonista responde que seu objetivo é pôr fim ao mal que está
instalado no castelo. A morte é irônica com Alucard, questionando-o sobre seu
posicionamento, já que lhe desagrada o fato do filho de Drácula ficar do lado dos mortais. Ela
129
lhe pede que desista do ataque, e, quando ele se recusa, ela lhes rouba todos os equipamentos.
Essa cena é muito interessante e explica o nível inicial e a falta de equipamentos de Alucard,
fatores que justificarão os elementos ergódicos que levarão o jogador a evoluir o personagem.
Seria difícil crer que o próprio filho de Drácula pudesse ser tão frágil e incapaz diante dos
monstros do castelo, mas a interferência do personagem Morte ajusta a ficção e faz com que o
enredo seja crível nesse universo diegético.
110
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=UqYaduxC1CU>. Acesso
em: 7 abr. 2018.
111
As partes mais desafiadoras, no vocabulário do mundo dos videogames, se encarnam na figura do ―chefe‖, o
“boss”. Esse ―chefe‖ é um personagem que deve ser derrotado ao final de cada etapa do jogo; normalmente, o
nível de dificuldade é um pouco maior do que do restante dos monstros da etapa, vindo a se tornar obsoleto à
medida que o jogo avança. O planejamento do design do jogo nos parece seguir a Teoria Vygotskiana de zona de
desenvolvimento proximal, ou seja, apresenta desafios que estão em nível de dificuldade do estágio atual do
jogador acrescido de +1 nível acima. Apesar de encontrar alguns artigos na internet que parecem falar sobre isso,
a maioria deles trata do uso da teoria de Vygotsky para o planejamento de jogos voltados para o setor
educacional.
112
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=BLOcT25ph9k>. Acesso em:
11 abr. 2018.
130
Em uma sala com um grande relógio de fundo, Alucard encontra Maria pela primeira
vez. Ela fica surpresa ao encontrá-lo, conforme o diálogo abaixo explicita.
Maria: Espere um momento! Você parece humano, e assim mesmo… O que você
faz aqui?
Alucard: Eu vim destruir este castelo.
Maria: Então nós temos o mesmo propósito. Confiarei em você por enquanto. Eu
sou Maria. Quem é você?
Alucard: Alucard.
Maria: Não é do tipo falante, posso notar. Bem, talvez nos encontremos novamente,
se você viver o bastante. Adeus113 (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
O próximo cenário é o Outer Wall, uma espécie de torre que fica na extrema direita da
estrutura do castelo. É possível ver pouco do céu noturno fora do castelo, seja através das
janelas ou da tela que se move conforme o personagem anda. Lá fora chove intensamente.
Nesse cenário há duas passagens secretas, usadas pelo jogador para descobrir itens
escondidos. Na extremidade inferior da torre, o jogador encontra uma sala de arquitetura
romana. Em uma das paredes, há um monóculo. Através dele, Alucard vê alguém remando
um barco sob chuva intensa, num rio.
113
―Maria: Wait a moment! You seem human and yet... What do you do here?
Alucard: I‘ve come to destroy this castle.
Maria: Then we have the same purpose. I‘ll trust you for now. I‘m Maria. Who are you?
Alucard: Alucard.
Maria: Not the talkative type I can see. Well, perhaps we will meet again. If you live that long. Farewell‖
(CASTLEVANIA SOTN, 1997).
114
Esse tipo de comportamento estranho é típico de personagens secundários em videogames. Em diversos
jogos, é comum que o jogador encontre outros personagens que lhe contam detalhes da narrativa ou que lhe
ajudam, mas que sempre desaparecem de forma furtiva. Os acréscimos de informação feitos por esses
personagens secundários são sempre pontuais, o que alimenta a narrativa e aumenta o mistério, já que sempre
faltam explicações, pormenores etc.
131
organizadas com cadeiras confortáveis onde os leitores podem apreciar os livros. A música do
cenário, intitulada ―Wood Carving Partita‖115, é uma das composições mais bem elaboradas
do jogo e será analisada posteriormente. Neste ambiente, os monstros são livros que saem das
prateleiras e atacam Alucard, algo bastante curioso, já que eles parecem confrontar os que
entram na biblioteca de uma maneira mais física do que intelectual.
Ali vive um Mestre Bibliotecário, personagem responsável por vender ao jogador itens
que ele necessite: o jogador capitaliza a cada monstro que mata e por isso pode comprar
armas e acessórios para melhorar sua performance116.Ele e Alucard se conhecem, e, apesar de
certa relutância em ajudar alguém que está querendo destruir o castelo, o vendedor tem seu
preço.
Figura 09: Outer Wall, esqueleto pendente com a lua ao fundo, Castlevania SoTN (1997).
115
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=RXdddCaALKc>. Acesso
em: 11 abr. 2018.
116
Algo bastante comum e mercadológico de jogos de videogames, e mais uma prova de que é bastante difícil
que os designers consigam pensar em novas formas de aquisição de bens nesses universos ficcionais. Dessa
maneira, é como se os jogos estivessem sempre presos em representações de modos de vida os quais os designers
vivem, ou seja, o capitalismo.
132
O Royal Chapel, próximo cenário a ser acessado pelo jogador no percurso narrativo, é
um ambiente diferente dos outros, por se parecer com uma igreja. Compõe-se de uma longa
escadaria com vitrais expostos pela parede, no que parece emular a via crucis. Um dos
ambientes mais belos do jogo está nesse cenário: há uma sala que se parece com o salão de
uma igreja. No plano 2D, os bancos ficam dispostos no nível de Alucard. Ao fundo, há uma
projeção feita em 3D com as janelas em vitrais, que se multiplicam a perder de vista na
escuridão do aposento.
117
―This castle is a creature of Chaos. It may take many incarnations‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
133
Há, nesse cenário, uma cena intrigante. Em um aposento que se parece com um
confessionário, é possível fazer Alucard se sentar. Quatro cenas diferentes podem iniciar a
partir disso: Na primeira, aparece um padre em tons de vermelho e vestido de negro, e, no
caso do jogador permanecer imóvel, a cortina se fechará e várias lanças machucarão Alucard.
Na segunda cena possível aparece um padre de aspecto normal, vestido de azul, e nada ocorre
quando ele simplesmente desaparece diante dos olhos do jogador, ao fazer o sinal da cruz. No
terceiro caso, Alucard se senta no lugar do padre e aparece uma senhora – se estiver vestida
de azul, ela não se confessará e tentará matar quem estiver sentado no lugar do padre – no
caso, Alucard. Há a possibilidade de essa mulher estar com um vestido laranja – nesse caso,
ela apenas chora antes de desaparecer. Há um fundo musical específico para essa sala,
chamado de ―Haunted Confessional Room‖. Chama-nos a atenção esse tipo de cenário, que,
sem qualquer explicação narrativa, projeta leituras à deriva. As múltiplas interpretações, que
podem, inclusive, suscitar a fala irônica de Drácula a respeito do papel dos homens ou da
igreja, parecem ser suplantadas pela simples proposta de inclusão de elementos e cenas que
podem produzir o efeito da confusão, parte fundamental da estética do romance gótico, ao
passo que os personagens vivem em estado de sonambulismo, num pesadelo constante. Pode-
se perceber, além disso, a característica da narrativa fragmentada, formada por diferentes
apelos e pequenos episódios que produzem a sensação de necessidade de apreensão e
interpretação por parte do leitor, além dos estados de consciência alterados e os duplos. Mais
uma vez, assim como na sequência vista anteriormente (que mostrava uma pessoa remando
num barco no lago), a cena do confessionário aponta para diversas interpretações, ampliando
o tecido narrativo da trama, assim como os efeitos por ela produzidos.
designers. Opta-se por chamar a atenção para esses pequenos detalhes que, por mais ingênuos
que possam parecer, agregam substância e encorpam a construção estética, portanto o efeito
causado no jogador.
Figura 11: Sala da batalha com o chefe Hippogryph, Castlevania SoTN (1997).
Após a batalha com o monstro, Alucard reencontra Maria, que lhe pergunta se ele
conhece Richter Belmont. Ela lhe explica que está procurando por ele, que desapareceu há
cerca de um ano. Usando como recurso a explicitação do pensamento através de imagens, é
possível entender que Alucard conhece outro Belmont, Trevor Belmont, com quem lutou para
derrotar Drácula em Castlevania III: Dracula‟s Curse (1989). Cronologicamente, na franquia,
essa luta ocorreu em 1476, ou seja, cerca de 300 anos antes dos acontecimentos do tempo
presente. Maria pede que Alucard a avise caso o visse, ao que ele responde com cortesia.
Ambos se despedem, e ele continua a seguir seu caminho em busca de Drácula.
Dentre os vários monstros que estão nesse cenário e em outros, um dos mais
perturbadores é o Valhalla Knight. Trata-se de um guerreiro montado a cavalo, mas o cavalo
está cortado pela metade, e é possível ver as costelas e parte da coluna vertebral pendendo
para fora do corpo apodrecido – mas que sangra. Este, assim como os outros inimigos, são
mortos-vivos, zumbis e seres amaldiçoados, que passam a eternidade revivendo as atividades
que desenvolveram enquanto vivos.
A partir deste ponto da história, Alucard recupera alguns de seus poderes: transformar-
se em morcego, em névoa e em lobo. E, utilizando-se dessas habilidades, o jogador consegue
ter acesso a lugares dos cenários que antes eram inacessíveis. É assim que a narrativa dos
jogos se imiscui aos elementos ergódicos já citados anteriormente: consegue-se nova
118
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=Oquad3rnZSI>. Acesso em:
18 abr. 2018.
136
habilidade que lhe possibilita ampliar o campo de ação; logo, desdobra-se outra etapa da
narrativa.
No Olrox‟s Quarters, Alucard encontra o chefe Olrox num salão bem ornamentado.
As paredes são cobertas por cortinas de veludo vermelho bordadas de dourado, com franjas
também douradas. No centro há um painel de vitral com o que parece ser um tema religioso.
Uma figura feminina ao centro, com um halo celestial na cabeça, está sendo reverenciada por
duas figuras femininas. Acima dessa figura central, uma espécie de santo alado segura uma
espada; poderia ser Miguel Arcanjo.
Figura 11: Sala da batalha com o chefe Olrox, Castlevania SoTN (1997).
137
O próximo novo cenário é o Underground Caverns, que, como o próprio nome sugere,
é composto por galerias subterrâneas pouco iluminadas, construídas com blocos. Em um dos
lugares em que se é possível salvar o jogo, o caixão próprio para isso tem coloração
diferente119120. É então que Alucard entra num outro mundo, intitulado Nightmare.
Há o que parece ser uma vila obscura com casas e pinheiros ao fundo. Não há
nenhuma música de fundo. Alucard encontra uma turba raivosa, e, no meio desse cenário,
uma mulher crucificada, assim como pode se ver na figura 12.
119
Destaca-se que o save point, ou seja, a ferramenta utilizada para que o jogador registre seu progresso,
funciona como se fosse um marcador de páginas, porque pontua onde o jogador interrompeu seu progresso e a
partir de onde ele prosseguirá quando reiniciar seu jogo. Outro ponto interessante é o funcionamento do save,
que reescreve o progresso da história em cima do progresso anteriormente registrado. Dessa maneira, ao final do
jogo o jogador terá, em seu arquivo salvo, todos os dados da narrativa por ele percorrida. Mas, quando ele salva
o progresso, ele opta por perder a chance de retornar ao ponto em que estava antes de salvar: portanto, salvar o
jogo implica ao não retorno do ponto anterior.
120
Neste jogo, o save point é um caixão, o que é bastante interessante do ponto de vista narrativo, porque
enriquece a perspectiva de que Alucard é um vampiro e que precisa dormir num caixão. Dessa maneira, ele
descansa quando o jogador precisa interromper seu jogo, e volta do caixão quando o jogador volta a jogar. A
forma do save point amplia o sentido da ferramenta de salvar o jogo e da ficção do personagem.
138
Alucard: Mãe!
Lisa: Essa voz! Alucard, é você?
Alucard: Estou indo, mãe! Eu vou salvar você!
Lisa: Não, Alucard! Não venha aqui!
Alucard: Mas mãe!
Lisa: Tudo bem! Se minha morte puder salvar outros, renuncio a minha vida de bom
grado.
Alucard: Mãe! Não! Por favor! Não!
Lisa: Sim, Alucard! Veja-me morrer e lembre sempre minhas últimas palavras.
Alucard: Sim, mãe.
Lisa: Você deve desprezar os humanos. Eles devem ser sua presa.
Alucard: O quê?!
Lisa: É melhor que eles morram do que deixá-los cometer seus pecados. Comece
matando aquele ali.
Alucard: Não. Não foi assim.
Lisa: O que há de errado, Alucard?
Alucard: Minha mãe nunca disse tal coisa.
Lisa: O que você quer dizer? Mate-os e traga felicidade para eles!
Alucard: Não! Você não é minha mãe! Que tipo de demônio você é?!
(“Lisa” se transforma em uma súcuba121.)
Súcubo: (rindo) Você se libertou do meu feitiço. Eu gosto disso.
Alucard: Demônio, a morte é boa demais para você!
122
Súcubo: Venha cá, garotinho, e me mostre do que você é capaz (CASTLEVANIA
SOTN, 1997).
121
Demônio de origem medieval, de aparência feminina, que invade os sonhos para roubar a energia de suas
vítimas.
122
―Alucard: Mother!
139
De acordo com o manual da Konami que vem junto do jogo, Lisa, sua mãe, era uma
pessoa ―boa, de bom coração e alma, que foi erroneamente executada como uma bruxa por
preparar remédios para ajudar doentes‖ (KONAMI, 1997, p. 12 123). O sofrimento de Alucard
em relação à morte da mãe é revivido pela súcuba para tentar enganá-lo e ceder a seus
caprichos, o que demonstra que ele ainda tem uma memória dolorosa da ocasião. A voz
desesperada de Alucard também demonstra o envolvimento emocional do personagem, que
aparentemente revive a cena como se essa fosse real. Não é possível, a partir da cena ou de
outras fontes disponíveis de informação, saber se Alucard esteve impossibilitado de salvá-la
de seu destino; mas a angústia do personagem transparece uma frustração por não ter
conseguido evitar a morte da mãe. De qualquer forma, o uso de expressões no tempo passado
demonstra que Alucard esteve nessa cena e que por isso consegue perceber o que realmente
foi e não foi dito por sua mãe.
124
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=vOq9bODf_UY>.
Acesso em: 22 abr. 2018.
125
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=zstTGMnIDLc>.
Acesso em: 22 abr. 2018.
141
Alucard lhe diz que encontrou Richter Belmont e que ele parece ser o senhor do castelo, ao
que Maria, assustada, nega, desaparecendo de nossas vistas. Retornando ao grande relógio
central de posse dos anéis Golden Ring e Silver Ring, Alucard faz com que os ponteiros
marquem 6:30, o que abre uma passagem para baixo.
Abrir a passagem secreta abaixo do relógio não é um item obrigatório no jogo, isso
pode acontecer se Alucard conversar com Maria na torre do Royal Chapel e se estiver usando
os dois anéis. Se isso ocorrer, o jogador abre a passagem para que possa encontrar Maria
novamente; do contrário, Alucard terminaria o jogo derrotando Richter Belmont enfeitiçado,
acreditando ser esse o verdadeiro vilão. No centro do castelo, Alucard encontra Maria
novamente. Eles concordam que Richter deve ser impedido, mas que está sendo controlado
por alguém. Maria lhe entrega o Holy Glasses, um par de óculos, e lhe diz que isso o ajudará a
enxergar através das ilusões. O caminho para chegar até Belmont é pela Clock Tower,
passando pelo telhado do castelo.
Nessa ocasião, a lua não é visível no céu escuro e nublado, apesar de cheia. Pelo
contrário, o que ilumina o caminho escuro são os monstros chamados Skull Lords, crânios
gigantes que brilham como um fogo-fátuo. Perto da torre de Drácula, porém, a lua minguante
143
surge no céu como um raio amarelado, pouco encoberta pelas nuvens que correm rápido
através dos ventos fortes. No topo, na sala onde Belmont derrotou Drácula no começo do
jogo, Alucard encontra Richter. Após uma conversa rápida, e caso esteja utilizando os óculos
que Maria lhe deu, Alucard acaba por destruir quem controla Richter e o salva. Caso ele opte
por matar Richter, o jogo acaba: o castelo de Drácula se desfaz e a noite se torna dia. Maria
prossegue em sua luta contra o mal, tentando entender o que causou a loucura de Belmont;
Alucard se vai.
Se Alucard derrotar quem controla Richter, ele saberá que foi Shaft, o mago servo de
Drácula, quem fez um feitiço para usar em Belmont e trazer seu mestre de volta. Um castelo
desce do céu, invocado por Shaft, e Belmont acorda de seu transe tentando entender como ele
poderia ter causado isso. Alucard pede para que Maria leve Richter do castelo, dizendo que
ele vai resolver os problemas.
Subindo a torre, Alucard acessa o outro castelo, uma versão exatamente igual daquele
grande castelo que ele já percorreu, só que de ponta cabeça. E apenas nessa versão do castelo
é possível encontrar Drácula.
Retornando ao ponto central do castelo, onde há o relógio invertido, Alucard faz com
que o horário das 6:30 abra uma passagem para cima. Subindo pelo elevador, ele encontra
Shaft, aquele que estava controlando Belmont. Derrotando-o, Alucard descobre que é tarde,
pois Drácula já foi ressuscitado. Antes do embate final, Drácula e Alucard discutem, fazendo
com que o jogador compreenda o porquê de ambos estarem em lados diferentes.
Alucard: Pai...
Drácula: Bem, meu filho! Já faz muito tempo.
Alucard: Não é tempo suficiente. Eu não posso permitir que você saia daqui, pai.
Drácula: Você ainda está do lado da humanidade? Você esqueceu o que eles fizeram
com sua mãe?
Alucard: Você acha que eu iria esquecer... Não! Mas também não busco vingança
contra eles.
Drácula: Chega do seu absurdo! Fora com sua humanidade! Fique comigo como
Príncipe de todo o mundo!
Alucard: Você nunca mais vai tocar neste mundo. Em nome da minha mãe, eu juro!
(Depois da batalha.)
Alucard: Volte para o abismo! Não perturbe a alma da minha mãe!
Drácula: C-como ?! Como eu poderia ter perdido?!
Alucard: Você perdeu seu coração. Sua alma. Você nunca vai ganhar sem eles.
Drácula: Ah, que poético. Então eu sacrifiquei tragicamente tudo o que eu amava em
busca de poder, não foi?
Alucard: ... Não foi o que você fez?
Drácula: ... Hunf. Conte-me. O que... Quais foram as últimas palavras de Lisa?
Alucard: Ela disse: ―Não odeie humanos. Se você não pode viver com eles, então,
pelo menos, não lhes faça nenhum mal, pois a vida deles já é muito difícil‖. Ela
também disse que amaria você. Pela eternidade.
Drácula: Lisa, me perdoe... Adeus, meu filho... 126 (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
126
―Alucard: Father...
Dracula: Well met, my son! It‘s been a long time.
145
Ao comparar Alucard com Teseu, Martin (2011) afirma que, apesar de idas e vindas, é
no centro do labirinto que a resolução do conflito está. Apesar de ter como objetivo a
destruição de seu pai, é por meio do labirinto e do percurso de ir e vir que se percebem,
segundo Martin, os momentos de indecisão e conflito entre o bem e o mal dentro de Alucard,
tanto física quanto psicologicamente. O jogo termina com Alucard encontrando Maria e
Richter do lado de fora do castelo, no lago. A noite se foi, os raios da manhã iluminam a tela.
Nas palavras finais de Alucard, ―a única coisa necessária para o mal triunfar é que os
bons homens não façam nada‖127128. Com a derrota de Drácula, os dois melhores finais estão
Alucard: Not nearly long enough. I can‘t allow you to leave here, Father.
Dracula: Do you still side with humanity? Have you forgotten what they did to your mother?
Alucard: You think I would forget such a...! No. But neither do I seek revenge against them.
Dracula: Enough of your nonsense! Away with your humanity! Stand with me as Prince of all the world!
Alucard: You will never touch this world again. In Mother‘s name, I swear it!
[depois da batalha]
Alucard: Go back to the abyss! Trouble the soul of my mother no more!
Dracula: H-How?! How could I have lost?!
Alucard: You lost your heart. Your soul. You'll never win without them.
Dracula: Ah, how poetic. So I tragically sacrificed all I held dear in a search for power, did I?
Alucard: ...Did you not?
Dracula: ...Hmph. Tell me. What... What were Lisa's last words?
Alucard: She said, ―Do not hate humans. If you cannot live with them, then at least do them no harm, for theirs is
already a hard lot.‖ ...She also said that she would love you. For eternity.
Dracula: Lisa, forgive me... Farewell, my son...‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
127
―The only thing necessary for evil to triumph is for good men to do nothing‖ (CASTLEVANIA SOTN,
1997).
128
Esta frase tem autoria original de Edmund Burke, conforme se pode ver em: ―All that is necessary for the
triumph of evil is that good men do nothing‖. SHAPIRO, Fred R.; EPSTEIN, Joseph. The Yale Book of
Quotations. Yale University Press, 2006, p. 116, nota 28.
146
4.2.1 TEMAS
O grande tema de Castlevania é o castelo – todo o jogo gira em torno desse espaço.
Sendo a representação de um regime antigo, de uma forma de viver antiga e degradada (como,
por exemplo, regimes de poder autoritários, monárquicos etc), a luta contra essas forças
decrépitas representadas pelo e no castelo parece ser o tema central do jogo. Encarnação disso
é o personagem Drácula, pai de Alucard, que aparece como figura caótica que ressurge a cada
100 anos, tendo como único intuito fazer o mal à humanidade – seja por desprezo, seja por
gosto. Drácula deixa transparecer em suas falas que sua postura se assemelha à das religiões,
pois oferece a salvação em troca da alma das pessoas. Em outros momentos, ele observa que
os homens são seres miseráveis, nada diferentes dos monstros que habitam o castelo. Vale
destacar que a maioria dos monstros parecem pessoas que de fato deram suas almas em troca
de algo, como, por exemplo, guerrear a vida inteira.
O duplo também aparece como tema em Castlevania, visto que Alucard encontra uma
cópia de si mesmo.
O tema religioso também é de grande destaque, embora não tenha contornos tão
definidos como tem no romance Drácula. Mas, no videogame, a religião aparece de forma
dúbia, talvez porque, mesmo que Drácula despreze as religiões e que isso seja evidente nas
suas falas, os símbolos cristãos são uma constante no castelo, inclusive no cenário da capela
(Royal Chapel). Por exemplo, no cenário do confessionário, dentro da Royal Chapel, um
padre, uma fiel e um demônio são figuras que aparecem sem razão aparente, porém esse fato é
curioso pois nunca se sabe qual delas vai aparecer: o que sugere que elas podem fazer as
vezes uma da outra, indiscerníveis. Vale destacar também que o design de ambos é
semelhante, o que pode significar que as figuras religiosas e demoníacas são praticamente
147
idênticas. A figura de Lisa, mãe de Alucard, é a de uma personagem que imiscui a de Jesus (o
filho salvador) e a de Maria (a mãe misericordiosa): ao mesmo tempo em que foi
misericordiosa com o pai e tentou, em vida, mediar a convivência dele com humanos, foi
crucificada por aqueles a quem desejava salvar. Alucard vive atormentado em uma situação
limite: ele não esqueceu o que os humanos fizeram com sua mãe, mas não quer que eles
sofram mais do que já sofrem. Ao fim e ao cabo, retorna-se elipticamente para a problemática
da religião, responsável pela morte de sua mãe.
A luta do bem contra o mal é, definitivamente, o grande tema do jogo, mas ficam
também em destaque o conflito familiar (do filho que precisa se posicionar contra o pai para
defender os interesses da mãe) e o conflito interno de Alucard, que abre mão de seu torpor
para salvar a humanidade (mas dela não pode participar).
4.2.2 OS PERSONAGENS
roubadas: elas eram símbolo de status. A associação do linho como sinal de brancura, pureza
de pele e de alma (1996, p. 170) se relacionou com o asseio numa época em que muitas
doenças se espalhavam através de roupas infestadas. Vestia-se de linho, sujava-se a roupa e
depois se lavava, e era assim que as pessoas mais ricas permaneciam limpas, mesmo com a
escassez de água. Sendo assim, estar trajado de linho fino e branco demonstrava a troca de
roupa constante e o asseio (1996, p. 178). Até o século XVIII, a maioria da comunidade pobre
manteve sua higiene nos parâmetros medievais, lavando somente as mãos e o rosto – o corpo
era lavado muito raramente (1996, p. 179). Já na Paris do século XVIII, os camponeses mais
pobres tinham todos os tecidos, de roupa de cama às roupas de baixo, feitos de linho e por
isso se mantinham mais limpos. A partir de então, o aspecto sujo, em geral, passou a ser
reconhecido como sinal de ―perversão moral‖, já que havia a possibilidade de as pessoas
estarem mais limpas – e, se não o fizessem, seria uma questão de falta de asseio (ROCHE,
1996, p. 180).
Figuras 18 e 19: Comparações entre trajes do videogame Castlevania SoTN (1997) e traje Italiano (final do
século XVIII).
150
Observa-se a semelhança nos brocados das abotoadoras e punhos, a gola alta, o ajuste
à cintura. Segundo Roche, a revolução francesa mudou a forma como as pessoas se vestiam
porque a liberdade política ditava maior liberdade corporal, portanto, um novo jeito de se
vestir (1996, p. 149). Além disso, os símbolos revolucionários (como os uniformes)
adquiriram sentido importante no imaginário popular devido à revolução Francesa.
trevas. Ao mesmo tempo, ele é um vampiro, e por isso é tão pálido. Portanto, o vampiro seria,
naturalmente, visto como um ser mais limpo e com requinte, pois sua pele muito branca e a
falta de fluídos corporais que sujem suas roupas o destacariam como um ser de aparente
pureza.
Outro fato interessante que nos chama a atenção se relaciona com a aparência do
personagem Drácula. De acordo com Christopher Frayling, no prefácio para a edição Penguin
Classics da Companhia das Letras (2014), a segunda edição de Drácula, de 1902, trazia
[...] uma das únicas ilustrações que Bram Stoker teve chance de aprovar
pessoalmente. O desenho mostra o conde como um comandante militar de cabelos
brancos, com volumoso bigode e um manto com vaga forma de morcego, descendo
as paredes de pedra do Castelo Drácula - imagem bem distante do dândi sedutor
melífluo de incontáveis versões cinematográficas (mais de duzentas, de acordo com
os últimos cálculos), aquele sujeito carismático, em traje de gala e capa preta (2014,
p. 7).
Figura 20: Conde Drácula e Lisa, Castlevania SoTN (1997). Manual do jogador, p. 12.
Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/> Acesso em: 01 jul. 2018.
152
Figura 21: Tela de início do jogo ou seleção de arquivos do memory card, Castlevania SoTN (1997).
Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/> Acesso em: 01 jul. 2018.
129
Faltou, nesta tese, uma análise que priorizasse as cores, as texturas e as relações de luz e sombra dentre outros
aspectos visuais de singular importância, assim como nos foi apontado pela professora Telma Elita Juliano
Valente em sua participação na banca de defesa. De fato, ao priorizarmos apenas aspectos arquitetônicos, não
nos atentamos para a riqueza de indícios visuais que poderiam produzir outras acepções bastante instigantes para
o encorpamento das nossas análises. Na revisão deste texto, optamos por não incluir essas análises, já que
demandariam um trabalho de pesquisa intenso e extenso – pois não é nosso interesse que essa análise ficasse
aquém das expectativas que temos. Faltou, dessa forma, nos aprofundarmos no character design da responsável
pelo jogo, Ayami Kojima. Seria preciso desenvolver um projeto de pesquisa que focasse nestes aspectos para
que fosse possível chegarmos ao nível de aprofundamento, tanto teórico quanto analítico, necessário para uma
análise que fizesse jus a importância e pertinência do empreendimento em si.
153
dos elementos presentes. Para a tese, analisaremos recortes130 de cinco cenários do jogo:
Alchemy Laboratory, Clock Tower, Long Library, Marble Gallery e Royal Chapel. Para essas
análises, utilizaremos como fundamentação teórica o livro A History of Architecture on the
Comparative Method, escrito por Banister Fletcher em 1905.
130
Optou-se pela análise de um recorte de cada cenário do corpus priorizando o estudo de elementos
característicos dos estilos arquitetônicos estudados e a representatividade deles nos ambientes.
154
É possível ver de forma clara a herança do passado romano reavivado pelo estilo
renascentista das instalações, com adornos nas colunas. O uso de ―cornijas, varandas, frisos e
detalhes horizontais geralmente são fortemente pronunciados, e por sua frequência e
importância produzem um efeito de horizontalidade‖131 (FLETCHER, 1905, p. 444, grifos do
autor), bem marcado no cenário em questão. Ao mesmo tempo, a estátua em escala humana é
característica das ornamentações da arquitetura gótica (FLETCHER, 1905, p. 444).
131
―[…] cornices, balconies, string bands, and horizontal features generally are strongly pronounced, and by
their frequency and importance produce an effect of horizontality‖ (FLETCHER, 1905, p. 444, grifos do autor)
132
Capitéis são as extremidades superiores das colunas, e as bases são as inferiores.
133
―[…] were entirely structural, or expressive of pressures upon the piers to which, sometimes, they were
attached. The relative proportion of height to diameter does not exist, and the capitals and bases were either
heavily moulded or carved with conventional foliage‖ (FLETCHER, 1905, p. 444).
155
Além disso, observa-se o uso de tijolos desiguais, o que denota que a construção foi
erguida em uma época anterior ao Renascimento. De acordo com Fletcher (1905, p. 442), uma
grande diferença na harmonia arquitetônica das construções renascentistas e góticas se deu
pela mudança do material usado para construção: no período gótico, os blocos eram moldados
e esculpidos em fábricas de tijolos para depois serem utilizados na construção, o que causava
muitas vezes um ajuste da arquitetura ao material no momento do seu uso.
livros e as paredes onde elas estão instaladas, assim como é possível ver na figura 24, logo
abaixo.
Ainda, a estrutura parece envelhecida, dados os detalhes que denotam o caráter antigo
da construção: alguns tijolos parecem quebrados, a abóbada do teto parece ruída. A
construção, em geral, se parece com a do Palazzo Farnese, em Roma, e a do Palazzo
Vendramin, em Veneza – exemplos de construções do período renascentista italiano citadas
por Fletcher (1905).
praticamente a totalidade dos outros ambientes do jogo, embora também adornados com
vitrais, são iluminados por velas ou candelabros. Essa é a única sala feita com uma espécie de
fundo em 3 dimensões: à medida que o jogador cruza o ambiente, de um lado para o outro, o
fundo o acompanha, o que cria uma dimensão espacial de enorme profundidade. Essa
profundidade colabora com a impressão que as catedrais góticas provocam naqueles que
frequentam estes lugares, projetando verticalização e poder. As janelas são formadas por
arcadas, que são distribuídas por colunas.
Fonte: FLETCHER, Banister. A history of architecture on the comparative method (1905, p. 158).
134
Arcarias, ou arcadas, são constituídas de uma sequência de arcos e são utilizadas para dividir a distância entre
uma coluna e outra.
135
Dois arcos simétricos que se recortam em ângulos similares.
136
Teto curvilíneo utilizado para unir duas pilastras. Quando em cruzarias, essas abóbadas se entrecruzam.
137
Estruturas em meio arco que servem para dividir o peso das estruturas do teto e das colunas.
163
Após as considerações feitas sobre esses cenários e o recorte neles feito, com a seleção
de ambientes pontuais de cada um, retornarei aos pontos debatidos no castelo de Drácula.
Primeiro, importa ressaltar a beleza das imagens construídas para o jogo, assim como sua
complexidade. O cenário é bastante extenso e, em cada pequena câmara, há detalhes
minuciosos que agregam riqueza e significado à apreensão do jogador. Cada detalhe produz
efeitos, seja de grandiosidade, de beleza, de complexidade etc, que só fazem aludir às
sensações e apreensões hermenêuticas por parte do jogador.
O número abundante de ambientes com infinitas portas nos faz pensar no castelo de
Drácula descrito por Harker. São diversas câmaras que dispõem tanto de luxuosos adornos
quanto de pilhas de objetos antigos em decadência. Também há passagens secretas, portas
lacradas e a sensação de aprisionamento claustrofóbico. O castelo Castlevania parece de fato
inspirado tanto nos edifícios góticos e renascentistas quanto nas criações literárias, como os
castelos de Otranto e de Drácula. Na era pré-internet, era preciso que o jogador revisitasse
cada ambiente vasculhando minuciosamente todas as paredes em busca de lugares secretos e
segredos escondidos. Essa curiosidade e mistério provocados pelo design do castelo e pelos
elementos ergódicos (itens escondidos ou disponíveis apenas quando jogador obtivesse as
habilidades necessárias) ampliam o efeito de sedução e de deslumbramento, assim como a
amplidão do próprio castelo. Assim sendo, a criação do design e da arquitetura ergódica do
jogo provocam no jogador do videogame o efeito de sublime, o que faz com que as
características arquitetônicas dos castelos da literatura gótica sejam levadas a outra potência.
Outros elementos que fazem parte do conteúdo estético e do corpus de análise cultural
de um jogo de videogame são a trilha sonora assim como os efeitos sonoros dele. De acordo
com Sander Huiberts, em Captivating Sound: The role of audio for immersion in computer
games (2010), a importância da trilha como elemento de constituição dos videogames cresceu
de acordo com a ampliação da capacidade técnica dos aparelhos para reprodução dos sons.
Conforme o aumento da capacidade técnica de reprodução de mídia dos aparelhos de
videogames, aumentou também a demanda de profissionais aptos a criarem composições
sonoras mais bem elaboradas; o que melhorou, portanto, a qualidade das trilhas e seu impacto
164
como componente nos jogos de videogame. Mesmo com a importância do aspecto sonoro
para o sucesso do jogo, Huiberts declara, assim como outros pesquisadores, que há poucas
pesquisas dedicadas ao estudo dos sons nos videogames (2010, p. 21).
Apesar de Huiberts (2010) não vincular sua pesquisa aos estudos musicológicos, a
discussão, neste momento, converge no par teórico que se traça para a análise do corpus da
pesquisa: os estudos culturais musicológicos e os estudos culturais de videogames.
Compreende-se, de acordo com Joseph Kerman, que a musicologia é um estudo que inclui ―o
pensamento, a pesquisa e o conhecimento de todos os aspectos possíveis da música‖ (1987, p.
1). Inclui, portanto, o aspecto sonoro dos jogos de videogame, pois compreendemos que A
partir da década de 1990 os estudos musicológicos ampliaram o escopo de teorias, perspectivas
teóricas e objetos estudados. Importa ressaltar que apesar da amplição das perspectivas teóricas e
dos objetos da musicologia, há nichos ainda por explorar, como os videogames.
Assim como Nicholas Cook e Mark Everist (2001) em relação aos estudos
musicológicos, a preocupação de Consalvo (2012) com as escolhas metodológicas dos
estudos de videogame é da ordem das motivações do teórico: o que se objetiva entender é o
que estabelecerá como a pesquisa se dará. Cook e Everist falam de ―[...] repensar a disciplina,
não tanto no sentido de inventar novas ferramentas analíticas ou metodologias históricas, mas
no sentido de tentar decidir o que estas ferramentas e metodologias podem nos dizer‖138
(2001, p. xi), ao passo que Consalvo entende que os desejos de pesquisa partem do tipo da
área de pesquisa à qual o pesquisador pertence e a escolha metodológica se ancora em seus
pressupostos teóricos (CONSALVO, 2012, p. 16), afinal, ―[...] nenhuma disciplina ou campo
deve (ou pode) ter controle sobre a pesquisa ou teorização de jogos, e o estudo dos jogos é
enriquecido por vários caminhos de investigação‖139 (CONSALVO, 2012, p. 8).
138
―[…] rethink the discipline, not so much in the sense of inventing new analytical tools or historical
methodologies, but in the sense of trying to decide what these tools and methodologies can tell us‖ (COOK;
EVERIST, 2001, p. xi)
139
―[…] no one discipline or field should (or can) have control over game research or theorization, and the study
of games is enriched by multiple paths of inquiry‖ (CONSALVO, 2012, p. 8).
165
De acordo com Huiberts (2010), os sons de videogame podem ser classificados numa
produção que se distingue em três tipos: ―fala, som e música‖ 142 (p. 15). A partir disso, o
autor desenvolve uma revisão de literatura sobre estudiosos de som de videogames e
tentativas de estabelecer tipologias para o estudo dessa matéria. Apesar de haver diversos
modos de classificar esses sons, o autor declara que não houve, até então, um olhar atento
sobre como o som interage com o jogador. Mesmo sendo um assunto marginal, Jørgensen
(2006, p. 50, apud HUIBERTS, 2010, p. 20) diz que o ―áudio é um dos meios de transmitir
informação sobre o jogo para o jogador‖143.
140
―The role that music played in people‘s lives‖ (HARPER-SCOTT e SAMSON, 2009, p. 11).
141
―The way people organize their musical experience through institutions, in groups, and via the market, and
the way music is produced, performed, consumed, and understood‖ (HARPER-SCOTT e SAMSON, 2009, p.
44).
142
―Speech, sound and music‖ (HUIBERTS, 2010, p. 15).
143
―Audio is one of the means of conveying information about the game to the player‖ (JØRGENSEN, 2006, p.
50, apud HUIBERTS, 2010, p. 20).
166
O áudio tem um papel tão fundamental quanto a narrativa para que o jogador siga
engajado no jogo, porque em conjunto com a história amplia a imersão imaginativa da
audiência (HUIBERTS, 2010, pp. 47-51). Além disso, o áudio é responsável por trazer para o
jogo elementos culturais ou atmosféricos importantes para que o mundo virtual dos jogos ou
os mundos culturais que eles buscam representar sejam mais robustos. Isso serve, por
exemplo, para músicas criadas para o jogo (e o desejo de se criar uma ambiência e um
universo particular) ou músicas do mundo não-diegético (usadas como referências culturais
que também encorpam os significados do jogo) (HUIBERTS, 2010, p. 62). O áudio do jogo é,
de fato, outra dimensão de agrega sentido ao universo ficcional e à disposição do jogador em
relação a essa ficção.
São, então, três dimensões de imersão que o áudio amplia: a) a conexão sensorial, com
o uso de elementos sonoros que ajudam o jogador a se sentir ―presente‖ no mundo
diegético147; b) a conexão com o fluxo, com o uso de um complexo sonoro que dita o ritmo de
jogo e aumenta o engajamento; e c) a conexão empática, que amplia a empatia do jogador
com os personagens, o mundo diegético, o cenário, a história etc. (HUIBERTS, 2010, p. 102).
144
―Music is considered as a constituent for the enhancement of the player's empathy with these imaginative
aspects (Collins, 2008a, p. 134) although the topic is barely researched into more detail for the game design
field‖ (HUIBERTS, 2010, pp. 82-83).
145
―Audio can be used to enhance the story and this is recognized by players as positively influencing
immersions‖ (HUIBERTS, 2010, p. 96).
146
―Audio is capable of enhancing the three dimensions of immersion by enhancing the sensory connection, the
feeling of flow and the feeling of empathy of the player‖ (HUIBERTS, 2010, p. 101).
147
O mundo diegético é o mundo do jogo, e o mundo não diegético o mundo fora do jogo, ou seja, nossa
realidade sensível.
167
como com filmes, os designers devem escolher o tempo certo para cada estímulo em
relação com o ritmo do gameplay 148 (HUIBERTS, 2010, p. 72).
A partir da discussão teórica acima exposta, observaremos como as músicas dos cinco
ambientes analisados anteriormente, a saber Alchemy Laboratory, Clock Tower, Long
Library, Marble Gallery e Royal Chapel, e alguns efeitos sonoros: 1) indiciam a conexão
empática com o mundo diegético do videogame e aumentam o engajamento com o ritmo de
jogo; e 2) oferecem elementos para ampliar a compreensão da narrativa do jogo e do mundo
cultural do jogador.
Não é mais motivo de alarme nos deparar com pesquisas produzidas por
pesquisadores da área de estudos literários que elegem a música como objeto de
análise. [...] Amparados em pressupostos teóricos formados à luz dos Estudos
Culturais, disciplina crítica que auxilia a produção de uma reflexão que rompe com
possíveis estatutos hierárquicos estanques, tais estudiosos buscam um tratamento
interdisciplinar destes produtos discursivos culturais (PATROCINIO, 2013, p. 127).
McClary verticaliza essas noções com sua crítica renovada e feminista: para a
pesquisadora, ―[...] a música não reflete a sociedade de forma passiva; ela serve como um
fórum público no qual vários modelos de organização de gênero (assim como muitos outros
aspectos da vida social) são reafirmados, adotados, contestados e negociados‖149 (1991, p. 8).
148
―In conclusion, the musical tempo often helps to support the actions of the player, making the gameplay
pleasant and increasing the feeling of flow and thus increasing challenging-based immersion. Just as in film,
designers should choose the right tempo for the stimulation in relation to the pace of the gameplay‖
(HUIBERTS, 2010, p. 72).
149
―[...] music does not just passively reflect society; it serves as a public forum within which various models of
gender organization (along with many other aspects of social life) are asserted, adopted, contested, and
negotiated‖ (McCLARY, 1991, p. 8).
168
A maneira como a música se constitui segue parâmetros sociais, ou seja, seu sentido
subscreve-se a um contexto histórico, social e cultural. Por buscar uma pesquisa que priorize a
análise cultural e contextual da música é que McClary entende que estudos formalistas não
serão capazes de proporcionar leituras sobre os significados das composições e nem de seus
usos (1991, p. 20). A pesquisa sobre música, segundo a autora, não precisa e nem sempre se
relacionou com observações técnicas; muitas análises estéticas e retóricas estiveram
interessadas no efeito causado pela música (McCLARY, 1991, p. 20). Pessoas não treinadas
formalmente, não acadêmicas, acreditam que as músicas têm significado:
elas podem soar felizes, tristes, sexy, funky, bobas, americanas, religiosas ou
qualquer coisa do tipo. Alheias ao ceticismo de músicos teóricos, elas ouvem música
para dançar, chorar, relaxar ou ficar românticas. Compositores de músicas para
filmes ou comerciais consistentemente associam seu sucesso comercial ao
conhecimento pragmático do público da significação musical – a habilidade com
que John Williams, por exemplo, manipula os códigos semióticos da sinfonia do
final do século XIX em E.T. ou Star Wars é de tirar o fôlego. [...] No mundo social,
a música alcança esses efeitos o tempo todo151 (McCLARY, 1991, p. 21).
O significado na música, assim como nos textos, não é dado ou natural: ele faz parte
das relações culturais e sociais do contexto no qual a música surgiu e de onde o ouvinte se
encontra. Por isso, quando Pereira (2005) e Patrocínio (2013), por exemplo, lançam mão de
experiências de ouvintes para entender música, eles não o estão fazendo de forma subjetiva: a
percepção das pessoas é constituída socialmente e, por isso, válida; ―eu tomo minhas reações,
de forma ampla, como constituídas socialmente – produtos de uma vida de contato com
música e outras mídias culturais‖152 (McCLARY, 1991, p. 22). E as experiências dos
ouvintes, além de se configurarem como parte importante da forma como o conhecimento
vem sendo gerado hoje (historicizado, socializado, hermenêutico), ampliam também a
150
Utilizam-se aqui, também, as noções de práticas e representações de Roger Chartier, estudioso da Nova
História Cultural dos livros e da leitura.
151
―It can sound happy, sad, sexy, funky, silly, ‗American,‘ religious, or whatever. Oblivious to the skepticism
of music theorists, they listen to music in order to dance, weep, relax, or get romantic. Composers of music for
movies and advertisements consistently stake their commercial success on the public‘s pragmatic knowledge of
musical signification – the skill with which John Williams, for instance, manipulates the semiotic codes of the
late nineteenth-century symphony in E.T. or Star Wars is breathtaking. […] In the social world, music achieves
these effects all the time‖ (McCLARY, 1991, p. 21).
152
―I take my reactions to be in large part socially constituted – the products of lifelong contact with music and
other cultural media‖ (McCLARY, 1991, p. 22).
169
maneira como o corpo se insere nos estudos, relacionado às sensações físicas e experiências
corporificadas (McCLARY, 1991, p. 24).
Mas nem mesmo as experiências corporais motivadas pelas metáforas musicais são
estáveis ou imutáveis. Na verdade, música é uma prática social e política poderosa
porque precisamente, se calcando em metáforas de fisicalidade, pode fazer com que
os ouvintes experimentem os corpos de formas novas – novamente, aparentemente
sem mediação (McCLARY, 1991, p. 25)153.
Nenhuma dessas reações físicas pode se configurar como imanente, já que muda de
acordo com as práticas e representações culturais nas quais o sujeito ouvinte ou o compositor
está inserido. A música não é uma linguagem universal: ela muda com o tempo, com o lugar e
mesmo entre comunidades.
153
―Nor are the bodily experiences engaged by musical metaphors stable or immutable. Indeed, music is a
powerful social and political practice precisely because in drawing on metaphors of physicality, it can cause
listeners to experience their bodies in new ways – again, seemingly without mediation‖ (McCLARY, 1991, p.
25).
154
Mesmo que sintetizados, uma possível identificação desses instrumentos foi importante para que pudéssemos
ponderar sobre suas escolhas ou para que pudéssemos falar de momentos nas músicas que nos chamaram a
atenção.
170
Antes de iniciarmos a análise das músicas, nos atentaremos para algumas informações
a respeito de composição. O trabalho de composição musical requer do compositor a busca
pelo equilíbrio do tempo, sendo a forma dada à música a ―corporificação‖ desse equilíbrio,
entre, o que será a repetição e o contraste. As repetições de melodias são importantes para que
a composição possa ter um sentido de unidade. O contraponto, que seria o contraste, pode ser
criado com uma melodia completamente diferente ou ―mudança de tonalidade, mudança de
modo (contaste entre o maior e o menor), ritmo, andamento, dinâmica (fortes e fracos),
ambiência, textura e timbre (ou colorido instrumental)‖ (BENNET, 1986, p. 9). Ou seja: não é
preciso que uma composição musical precise ser extremamente rica em melodias, o que é
preciso é que haja um equilíbrio nas repetições e contrastes na duração do tempo em que esses
momentos são elencados.
próprio nome sugere, em duas sessões, chamadas A e B, que são marcadas, normalmente, por
repetições.
155
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=UqYaduxC1CU>. Último
acesso em: 07 de abril de 2018. Encontramos, utilizando o sítio de buscas virtual Google, uma versão gravada
em CD da Konami, em que podemos ouvir a composição ao piano, disponível em:
<https://allvideos.me/index.php?a=watch/kqHUPoH-Qw4/castlevania-sotn-dance-of-gold-pales>. Último acesso
em: 19 de maio de 2018.
172
AA BB
Sendo A formada por momentos em que a música tem melodia mais alegre e os tons
são mais agudos e B por momentos de calma, tensão crescente que se desvanece finalmente.
A música é requintada e bastante agradável, mas essa sensação de relaxamento cede lugar à
ansiedade e às emoções mais intensas conforme a música se encaminha para o final de A –
ambos se desvelando em momentos que podem ser chamados de ―ponte‖ ou ―episódios‖.
Assim como no castelo de Drácula, o jogador se sente como Harker, assustado com os seres
obscuros que parecem sempre surgir das sombras logo após a dicotômica calmaria dos dias.
Ao se ouvir a melodia de ―Dance of Gold‖, sente-se que a magia e a volúpia do castelo,
bastante nobre e requintado, dá lugar a um medo do indizível que espreita; ao maravilhoso
sublime da visão daquilo que não podemos compreender. A música combina perfeitamente
com a expectativa que se deseja criar no jogador num dos cenários em que este passará grande
parte do início do jogo. Assim sendo, o jogo projeta no jogador um ritmo sedutor, que propõe
calma para que os obstáculos possam ser alcançados sem pressa, além de ser um convite para
o deleite do prazer de jogar.
156
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=n6ROnj6QLR4>. Último
acesso em: 11 de abril de 2018.
173
O que é interessante é que essa é, sem dúvida, a música mais rápida do jogo, e ela está
num dos cenários mais intrincados e complexos pelos quais o jogador deve prosseguir. Esse
cenário tem monstros flutuantes que são cabeças de medusa que petrificam Alucard caso ele
encoste-se a elas. Além disso, é complicado percorrer o cenário porque há vários mecanismos
de relógio por toda a parte, e, na maioria das vezes, é difícil que o jogador movimente
Alucard. Assim, como a música imprime pressa no ritmo de jogo e o cenário impede que o
jogador possa passar por ali apressadamente, a sensação geral dentro da torre do relógio é de
frustração e irritação – que se intensificam, já que este é um momento em que o jogador está
quase alcançando a torre de Drácula, prestes a se aproximar da resolução do mistério do jogo.
157
Exemplo do que estamos tentando dizer é a composição Far beyond the Sun, que pode ser ouvida através do
link: <https://www.youtube.com/watch?v=eK0rvReE-4c>. Acesso em: 10 de set. 2018.
174
―metal neoclássico‖. A ―era de ouro‖ do metal neoclássico foi no final da década de 1980. O
uso da música ―clássica‖ (barroca, romântica) como inspiração para o rock era um ―fato‖ nos
anos de 1990, época em que o jogo foi lançado.
―Wood Carving Partita‖158, do cenário Long Library, é tocada por instrumentos como
cravo, violino, violoncelo e viola – instrumentos similares aos usados por Johann Sebastian
Bach entre 1718 e 1721, na composição Concerto Nº 3 em G maior, BWV 1048 dos
Concertos de Brandenburgo, ou ―Six Concerts avec plusieurs instruments‖. Em especial, o
adagio guarda semelhanças com a música de Yamane. A composição é uma das mais belas do
jogo, tendo sido selecionada para fazer parte do programa do ―Castlevania – The Concert‖159,
um evento organizado por David Westerlund no Stockholm Concerthall em 2010. O arranjo
foi feito por Levande Musik Sverige com cooperação de David Westerlund e foi performado
pela orquestra sinfônica jovem de Estocolmo regida por Glenn Mossop, além de ter contado
com participação especial da compositora dos temas, Michiru Yamane na música ―Wood
Carving Partita‖. Um vídeo160 de uma das performances traz a música ―Lost Paintings‖,
vigésima faixa da trilha sonora de Castlevania SoTN (1997). Alguns comentários de usuários
no sítio virtual YouTube, no qual o vídeo está hospedado, demonstram como os jogadores se
emocionam quando essas trilhas sonoras são tocadas.
Há dois momentos na trilha, que são as melodias A e B, intercalados por uma ponte.
Apesar de a música ser uma das composições mais belas de todas as edições da franquia, tem
uma organização melódica binária, dividida em duas sessões. A composição progride com
tons agudos e se mantém nas altas frequências durante a melodia A. Quando a viola e o
violoncelo entram na composição, a música oferece repouso, de modo a se preparar para
alcançar outro ápice. O repouso, porém, não parece ser conduzido de forma completa, já que o
toque do cravo se mantém em notas agudas. Ao final, a música reinicia-se, terminando em
nota neutra para permitir a reinicialização sem disparidade para o ouvinte, que está escutando-
a continuamente enquanto joga a fase do videogame. A composição se organiza da seguinte
forma:
158
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=RXdddCaALKc>. Acesso
em: 11 abr. 2018.
159
A apresentação pode ser vista em: <https://www.youtube.com/watch?v=CZKH2JP7Ie4> Acesso em: 19 mai.
2018. Há outros vídeos divertidos e interessantes, de pessoas tocando a composição, como o que o músico a toca
simultaneamente em dois pianos, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=50wElcsgCxQ>. Acesso
em: 19 mai. 2018.
160
Castlevania the concert – ―Lost painting‖. Vídeo. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Ro6Hfb4EwDs> Acesso em: Acesso em: 01 jul. 2018.
175
A B (episódio / ponte) A B
ABAB ponte
161
A música pode ser ouvida em: <https://youtu.be/BLOcT25ph9k>. Acesso em: 19 mai. 2018.
176
Diferentemente da ―Wood Carving Partita‖, ―Requiem for the Gods‖ tem um ritmo
mais lento e se inicia num tema que progride em intensidade tonal, sendo a ponte o ápice da
tensão (quando o órgão entra de forma dramática). A marcação do ritmo é feita com tambor e
a finalização é neutra, de forma a reiniciar a música sem descompassos.
Os efeitos causados pelas músicas são associados, dessa forma, ao universo diegético
do jogo, já que aderem à narrativa uma espécie de profundidade cultural consistente, tanto
com a estética do jogo quanto com a época em que ele se passa. Os significados da história se
ampliam graças ao efeito empático que a música agrega.
162
A música pode ser ouvida em: <https://www.youtube.com/watch?v=2RqGeEsXJWY>. Acesso em: 19 mai.
2018.
177
Outros sons que nos chamam a atenção durante o jogo são os intensos uivos e os gritos
dos monstros. Esses sons colaboram para a composição dos efeitos provocados pelo jogo, já
que o castelo Castlevania, assim como o castelo de Drácula, é um ambiente nocivo onde
178
vivem seres amaldiçoados. Os sons de uivos e gritos descritos por Stoker em Drácula e
citados anteriormente na revisão podem ser ouvidos também no jogo, reiterando as
características do estilo literário gótico.
Partindo da análise feita acima, pode-se afirmar que, exceto a música ―The Tragic
Prince‖, a representação musical do corpus analisado se relaciona com o estilo barroco e com
as composições de Bach, principalmente as músicas ―Wood Carving Partita‖, ―Requiem for
the Gods‖ e ―Dance of Gold‖. Portanto, as representações culturais, sociais, estéticas e
históricas, que são o cerne do mundo ficcional da narrativa, tornam-se mais reforçadas. O
estilo de composição e a semelhança das músicas com as obras famosas de Bach, como
Concertos de Brandenburgo, também agregam valor à narrativa, à experiência de jogo e ao
videogame.
Figura 30: Carceri d‟invenzione, 1750–3, prancha vii. água-forte, 72,8 x 53 cm., Giovanni Battista Piranesi,
gravura, 1761.
163
Jason Johnson. ―The Impossible Architecture of Castlevania: Symphony Of The Night‖. Kill Screen,
24/02/2015. Disponível em: <https://killscreen.com/articles/impossible-architecture-castlevania-symphony-
night/>. Acesso em: 09 dez. 2017.
164
Imaginary Prisons: Giovanni Battista Piranesi Prints. Texto de divulgação do Princeton University Art
Museum. Disponível em: <http://artmuseum.princeton.edu/object-package/giovanni-battista-piranesi-imaginary-
prisons/3640>. Acesso em: 19 nov. 2017.
181
na tese de doutorado The function of the Sublime in the writing of Thomas De Quincey (1974),
Arden Reed, em Romantic Weather: The Climates of Coleridge and Baudelaire (1983) e
Andreas Huyssen no artigo ―Nostalgia for Ruins‖ (2006). Observemos, então, o relato de De
Quincey em suas The Confessions of an English Opium Eater:
De acordo com Alessia Pannese no artigo ―Visions and Revisions: Addiction and
Additions in Thomas De Quincey‘s Confessions of an English Opium-Eater and Giovanni
Battista Piranesi‘s Carceri d‘Invenzione‖ (2015), o que De Quincey chama de Sonhos, obra de
165
―Many years ago, when I was looking over Piranesi‘s Antiquities of Rome, Mr. Coleridge, who was standing
by, described to me a set of plates by that artist, called his Dreams, and which record the scenery of his own
visions during the delirium of a fever. Some of them (I describe only from memory of Mr. Coleridge‘s account)
represented vast Gothic halls: on the floor of which stood all sorts of engines and machinery, wheels, cables,
pulleys, levers, catapults, etc. expressive of enormous power put forth and resistance overcome. Creeping his
way upwards, was Piranesi himself: follow the stairs a little further, and you perceive it come to a sudden abrupt
termination, without any balustrade, and allowing no step onwards to him who had reached the extremity, except
into the depths below. Whatever is to become of poor Piranesi, you suppose, at least, that his labors must in
some way terminate here. But raise your eyes, and behold a second flight of stairs still higher: on which again
Piranesi is perceived, by this time standing on the very brink of the abyss. Again elevate your eye, and a still
more aerial flight of stairs is beheld: and again is poor Piranesi busy on his aspiring labors: and so on, until the
unfinished stairs and Piranesi both are lost in the upper gloom of the hall.--With the same power of endless
growth and self-reproduction did my architecture proceed in dreams. In the early stage of my malady, the
splendors of my dreams were indeed chiefly architectural: and I beheld such pomp of cities and palaces as was
never yet beheld by the waking eye, unless in the clouds‖ (DE QUINCEY, 1822, p. 374, apud PANNESE, 2015,
p. 81).
183
166
Piranesi, não existe – elas se chamam, na verdade, Carceri d‟invenzione . Concordamos
com Pannese que está claro no texto que De Quincey nunca viu essa coleção e que está
descrevendo essas obras a partir do relato de outra pessoa, enfatizando tal fato com frases
como ―descrevo do que me lembro do relato de Sr. Coleridge‖ (PANNESE, 2015, p. 82). Há,
segundo Pannese, teóricos que sugerem que nem mesmo Colleridge viu Carceri d‟invenzione.
Neste caso, ―a écfrase se transforma em ‗o que ele [De Quincey] imagina que Coleridge
imaginou que Piranesi tenha imaginado‘‖167 (WILSON, 2014, p. 74, apud PANNESE, 2015,
p. 82).
166
Prisões inventadas, tradução livre.
167
―In this case the ekphrasis becomes ‗what he [De Quincey] imagines Coleridge to have imagined Piranesi to
have imagined‘‖ (WILSON, 2014, p. 74).
168
―Similarly, the addition of deep perspectives and open vistas onto infinitely receding backgrounds – i.e.
elements whose nature is that of cueing the existence of spaces beyond the boundaries of the visible scene –
extends and expands the imaginary horizon by increasing awareness of possible hidden alternative realities.
Overall, all these features seem to connote ideas of liberation and freedom‖ (PANNESE, 2015, p. 86).
184
169
―Simultaneously monumentalize and demolish, highlight vastness of spaces and possibilities, but crush both
into the suffocating clench of claustrophobia and impossibility of escape, accompanied by the terrifying prospect
of unspecified torment. There results a perverse combination of freedom and enslavement – and the impossibility
of telling them apart‖ (PANNESE, 2015, p. 86).
170
Sinto pessoalmente que a dicotomia causada pela ambivalência dos recursos que evocariam uma fuga desse
espaço plenamente arquitetonicamente colonizado (pontes, passagens e escadas que levam apenas a mais pontes,
passagens e escadas ad infinitum) provoca um mal-estar que se relaciona com a compreensão de imobilidade por
parte do espectador e com uma inércia motivada pela compreensão de que as saídas são vertigens ficcionais,
retratos de uma busca obsessiva e constante para se estabelecer fora do aprisionamento da sociedade urbana.
Observando-se o que se tem por pesquisas sobre os modos sociais e representações (CERTEAU, 2008;
CHARTIER, 2002; HUTCHEON, 2000) – que nos fazem hoje viver uma história de visões cristalizadas –,
atrevo-me a dizer que a fuga das totalizações e a busca pela crítica às representações, apropriações, hábitos e
fazeres sociais me parecem exemplificadas nessas gravuras de Piranesi. Trata-se de uma constante revisão e
ampliação de caminhos outros que não aqueles já estabelecidos, uma (des)construção descendente (ou
ascendente) que só faz desvelar mais e mais percursos – todos eles aprisionados numa cena mais ampla, estática,
histórica, política, social. O efeito é dicotômico: uma paralisia melancólica misturada a uma esperança
mobilizadora.
185
Harker faz do castelo de Drácula. São formas que exprimem a ideia de inúmeras
possibilidades de ação, mas também os inúmeros segredos, distâncias e histórias ocultas que,
segundo Lovell-Smith (2008), fazem parte do cenário gótico. A vastidão dos espaços quase
que impossíveis de capturar por um vislumbre causa um efeito sublime, provocado pela
impossibilidade de compreensão do que se presentifica.
Estas prisões da imaginação, que deixam a imaginação sem saída a não ser a queda
para a morte, estão conectadas com a Catedral Gótica da Imaginação de Coleridge,
no Capítulo 13 da Bibiographia Literaria (1817) e Confessions de De Quincey, que
descreve visões arquitetônicas ―em proporções tão vastas que o olho físico não está
apto a enxergar‖, onde a distância é ―amplificada a uma extensão de um infinito auto
repetitivo e indizível‖ (L 223). As imagens de Piranesi personificam o encanto da
imaginação de De Quincey que comunica não apenas o sentido Gótico da vastidão
incompreensível na qual profundeza após profundeza reverte a imagem de Piranesi
de altitude após altitude enquanto retém seu significado desorientador, mas também
um sentido Gótico de claustrofobia e encarceramento. Em outras palavras,
representam o sublime do terror e apontam diretamente para o Poço que Poe
descreveu, a ―caverna da morte‖ e a ―caverna do horror‖ do romance popular
Gótico, o vazio do qual Shelley tinha medo que a engolisse, assim como realmente o
fez171 (BRIDGWATER, 2004, pp. 166-167).
O artigo ―Monstrous Space of Piranesi in the Works of M.G. Lewis and W.H.
Ainsworth‖, de Eva Čoupková (2015), parece solidificar ainda mais essas conexões entre os
trabalhos de Piranesi e a literatura gótica. A partir de sua revisão de literatura (2015, p. 18),
Čoupková estabelece, assim como fizemos, espaços arquitetônicos onde esse gênero literário
prioritariamente se caracterizaria: ―castelos, abadias, conventos etc‖ (MILES, 2002, apud
171
―These prisons of the imagination, which leave the imagination with no way out other than the fall into death,
are closely connected with Coleridge‘s Gothic Cathedral of Imagination in Chapter 13 of the Bibliographia
Liteararia (1817) and with de Quincey‘s Confessions, which describe architectural vistas ‗in proportions so vast
the bodily eye is not fitted to receive‘, where distance is ‗amplified to an extent of unutterable and self-repeating
infinity‘ (L 223). Piranesi‘s images embody the chasm of De Quincey‘s imagination that conveys not only a
Gothic sense of unfathomable vastness in which depth after depth reserves Piranesi‘s image of height after
height while retaining its giddying meaning, but also a Gothic sense of claustrophobia and incarceration. In other
words, they represent the sublime of terror and point straight to the Pit that Poe was to describe, the ‗cavern of
death‘ and ‗cavern of horror‘ of the Gothic popular novel, the emptiness that Shelley was afraid would swallow
him, as indeed it did‖ (BRIDGWATER, 2004, pp. 166-167).
186
ČOUPKOVÁ, 2015, p. 18). A atração dos escritores por esses espaços se deu, durante a
Revolução Francesa, por um interesse pela vida secreta desses ambientes obscuros, todos
repletos de um passado que envolvia castidade e disciplina, além da decrepitude dessas
instituições já decadentes no início do Iluminismo.
O trabalho de Piranesi cumpre tarefa importante nesse contexto. Suas gravuras da cena
romana exageram as escalas dos edifícios e ampliam as possibilidades de leitura dessas obras
arquitetônicas. Segundo Čoupková, o trabalho de Piranesi influenciou muitos escritores e
artistas góticos dos séculos VXIII-XIX. De acordo com Jørgen Andersen, ―tem uma passagem
ainda não explorada que leva de Carceri d‟invenzione até os ecos estranhos das abóbadas dos
romances góticos ingleses‖172 (1952, p. 50, apud ČOUPKOVÁ, 2015, p. 19). O primeiro
romance gótico, O Castelo de Otranto, de Horace Walpole (1764), foi profundamente
inspirado nas gravuras de Carceri d‟invenzione, de Piranesi (ČOUPKOVÁ, 2015, p. 19),
assim como na arquitetura do castelo que dá nome à narrativa.
172
―[…] there is a passage still unexplored leading from the Carceri into the strangely echoing vaults of the
English Gothic novels‖ (1952, p. 50, apud ČOUPKOVÁ, 2015, p. 19).
187
Outra consideração interessante feita por Johnson, e que precisa ser revista, é a da
condição autoral por parte dos designers do jogo. Pouparei este texto da discussão tecida na
nossa dissertação (2015), também sobre videogames, a respeito da autoria dos videogames (e
dos filmes); mas irei ilustrar brevemente o que se quer colocar em questão: a ideia de que
autor individual é um conceito romântico. Mesmo um romance publicado precisou ser
formado por várias mãos e sofreu influência de uma série de atores. Há um artigo173 publicado
acerca dessa problemática, mas dele citarei somente a esclarecedora acepção de Chartier, que
diz que
Ou seja, não é somente a produção do objeto livro que é marcada pela influência de
vários indivíduos, mas também o texto – o sentido.
173
FALQUETO-LEMOS, Adriana; DALVI, Maria Amélia. O videogame como materialidade de texto em uma
perspectiva histórico-cultural. Desenredo (PPGL/UPF), v. 10, pp. 355-369, 2014.
188
Johnson duvida de que o diretor de Castlevania SoTN, Koji Igarashi, tivesse visto as
gravuras de Piranesi para compor o cenário do jogo. De acordo com uma palestra dada por
Igarashi, Johnson explica que a amplitude e complexidade do cenário foram estratégias para
fazer com que os jogadores demorassem mais para terminar o jogo e para que o mercado de
revenda não ficasse tão aquecido, ou seja, se tornasse desinteressante. Mesmo o processo
criativo é posto em dúvida por Johnson: segundo o articulista, são vários designers de cenário
contratados para cumprir um projeto, todos praticamente sem rosto ou nome. Não entraremos
na seara da discussão sobre quem é o autor, quem não o é. O produto final e seu sentido são
resultado das interações de todos esses atores, de todas as suas contribuições, mas importa,
enormemente, a decisão do diretor Koji Igarashi diante desse conjunto da obra. É por isso que
esses jogos e franquias têm muitas vezes identidades tão bem consolidadas. São marcas
coadunadas oriundas de um universo de múltiplos agentes, mas que respondem, finalmente, a
uma cristalização unificada que foi verificada e aprovada por um diretor responsável por dar
unidade a esse objeto.
Se Igarashi conhecia Piranesi na época em que projetou o jogo é difícil saber, mas é
esse o caráter mais instigante dessa confabulação. Poderia não conhecer e ter produzido um
jogo que parece respirar as gravuras de Carceri d‟invenzione? É possível, observando-se o
fato de que De Quincey sonhou com imagens as quais ele nem mesmo tinha visto. O castelo
de Castlevania, assim como descrito em outro artigo interessante, não acadêmico, intitulado
―Why Dracula‘s castle is the real star of Castlevania‖, de Edge Staff (2015)174, parece ser o
verdadeiro protagonista da franquia. Na verdade, enquanto os personagens e motivos mudam
ao longo da série, o castelo permanece como estrutura permanente do enredo. A cada vez que
reaparece, mesmo em configuração diferente, é fruto das mesmas forças ocultas.
Esse castelo, segundo Staff, tem uma força metafísica. Percorrer suas salas é uma
jornada que permite uma experiência em busca de completude em um labirinto que parece
não ter fim. É como se as portas e escadas se multiplicassem continuamente, parecendo
impossível que todas aquelas câmaras e escadas sinuosas estivessem restritas às paredes do
castelo. Essa é a sensação relatada por Paul Martin em ―Ambivalence and Recursion in
Castlevania: Symphony of the Night‖ (2011) ao estudar o jogo – a de que a proposta dos
designers é de um constante retorno aos mesmos espaços. Esse percurso labiríntico, para
174
Edge Staff. ―Why Dracula‘s castle is the real star of Castlevania‖. GamesRadar, outubro de 2015. Disponível
em: <http://www.gamesradar.com/creating-draculas-castle-castlevania/>. Acesso em: 09 dez. 2017.
189
Você é Alucard. Dentro de você está a fome e a sede de sangue de seu pai vampiro,
e a gentil e empática compaixão da sua mãe humana. Assim como você tem tentado
aceitar essa constante luta interna, você reconhece em uma luta exterior a
necessidade de destruir o Castlevania e enterrar os demônios que estão tanto dentro
do castelo quanto dentro de sua alma 175 (KONAMI, 1997, p. 14, apud MARTIN,
2011, p. 72).
A partir desse texto retirado do Manual do Jogador podemos ver indícios do caráter
dicotômico do personagem Alucard. O retorno ao castelo significa a chance de colocar um
ponto final nas ambiguidades vividas pelo protagonista. Nesse caso, Castlevania não é apenas
o espaço onde essa resolução se dará, mas é a própria materialização dos tormentos de
Alucard.
Me resignarei ao fato de que não poderei compreender tudo o que gostaria, mas
esboçarei algumas considerações acerca da pesquisa, das análises empreendidas, e das leituras
feitas. É importante neste ponto retomar o romance Drácula e também O castelo de Otranto
para, em conjunto com a revisão de literatura feita no segundo capítulo, tecer considerações
sobre a importância do castelo não apenas como cenário, mas como materialização de temas
que concernem ao gótico. Assim, resgataremos as discussões já feitas e as cruzaremos com as
informações trazidas pela análise. Imiscuiremos, ainda, a leitura dos capítulos ―Ruínas‖,
―Desordens‖ e ―Citações e Memórias‖, de Charles Rosen, em A geração Romântica (2000,
pp. 146-171), atentando para as relações entre a música e as ruínas góticas da época
Renascentista, e como essas paisagens e sensações influenciaram os artistas.
Segundo Rosen, ―durante a Renascença, a ruína foi apreciada por seu significado
moral, por sua excentricidade e, também, por prestar testemunho de um passado sagrado‖
175
―You are Alucard. Raging through you is the hunger and bloodlust of your vampire father, and the gentle,
empathetic compassion of your human mother. As you have tried to come to terms with that constant internal
struggle, you have recognized an outer struggle as well—the need to destroy Castlevania and bury the demons
both within the castle and within your soul‖ (KONAMI, 1997, p. 14, apud MARTIN, 2011, p. 72)
190
(2000, p. 146). Para o pesquisador, a ruína nas construções arquitetônicas passou a ter um
caráter dramático entre os séculos XVI e XVII.
Piranesi retorna através da fala de Rosen, que o cita como um dos responsáveis por
expandir o panorama urbano, tornando-o melancólico e, portanto, inspirador. A ruína do
gravurista, segundo Rosen (2000), demonstra que a natureza retoma seu espaço nas
construções urbanas. Esse aspecto melancólico era produzido pelos arquitetos e jardineiros do
século XVII com a construção ―de ruínas em seus paisagismos‖ (p. 146). Assim, percebemos
a influência dessas visões arquitetônicas sobre a imaginação de Piranesi e em como essas
produções de Piranesi se imbricam na construção de universos representacionais que vieram a
posteriori. Uma fala interessante de Rosen se dedica à compreensão de que as obras de arte
(literatura e música, por exemplo) deixam as mãos do artista que as concebeu e passam a se
tornar ruínas, contando com a compreensão particular da audiência, localizada para sempre
distante do contexto de onde a obra surgiu: ―em suma, o artista mais responsável é aquele que
cria a obra tendo em vista sua inevitável ruína‖ (ROSEN, 2000, p. 147). Outro trecho
interessante da fala de Rosen é sobre a expectativa do artista. De acordo com o teórico,
Essa ideia na verdade tem relações com as noções de leitura e interpretação que
concernem as nossas análises nesta tese. O sentido da obra, seja ela literária, musical, fílmica
etc., não se encerra nas expectativas autorais. Ao contrário, o significado desse trabalho
emerge a cada leitura. Assim sendo, aquilo que permanece erigido são vestígios de um todo
que jamais será recuperado. A recuperação desses fragmentos, por exemplo, quando
Schumann imbrica melodias de Beethoven em suas composições, cria citações que provocam
um efeito de nostalgia, ―como uma memória involuntária, uma recordação inconsciente‖
(ROSEN, 2000, p. 171).
dois conceitos com o que percebemos que seja a estética de Castlevania: SoTN176 (1997): uma
colagem de signos plurais coadunados em uma estrutura estética que se propõe coesa, tanto
por parte dos designers quanto por parte do espectador. Essa colagem pode ser possível
porque
Outra questão interessante para nossas discussões será a ―citação‖, um conceito que
pode ter a ideia de ―intertextualidade‖. Mais do que um conceito preso aos escritos, a citação
de Certeau é responsável por dar credibilidade e coesão aos discursos:
176
Neste momento refiro-me apenas ao jogo, e não ao efeito Piranesi sobre as obras góticas – porque, de fato, no
caso das obras literárias, temos apenas a ―aderência‖ por citação de texto e imagem. Em Castlevania: SoTN,
temos texto, imagem e som.
192
tempo por relatos (as fábulas de nossas publicidades e de nossas informações), por
suas citações e por sua interminável recitação (CERTEAU, 2008, p. 288).
A citação será, portanto a arma absoluta do fazer crer. Como ela joga com aquilo
que o outro supostamente crê, é, portanto o meio pelo qual se institua o ‗real‘. Citar
o outro em seu favor é, portanto dar credibilidade aos simulacros produzidos num
lugar particular. [...] Citar é dar realidade ao simulacro produzido por um poder,
induzindo a crer que outros acreditem nele, mas sem fornecer nenhum objeto crível
(CERTEAU, 2008, pp. 290-291).
Dessa forma, a coesão estética do jogo estaria funcionando sob a égide da citação, com
colagens que acionariam a memória sensível, tanto na produção quanto na recepção.
Ou seja, as ―telas do presente‖, como já apontado por Chartier (2004), são formadas
por uma multiplicidade midiática que tem efeito de uma colagem que não pode ser descolada
da cultura escrita. Como só se pode entender o mundo através da representação, da totalização
e historicização narrativizadora (HUTCHEON, 2000, p. 59), a organização daquilo que
vemos, escutamos e lemos só poderá ser feito discursivamente. Vivemos organizando e
ordenando, em busca da construção de textos que se iniciem e se findem de maneira coesa,
criando documentos que podem ser desvendados mesmo sem o auxílio do autor de corpo
presente. Concordamos com Hutcheon, porque entendemos que jamais conheceremos coisa
alguma sem o filtro das representações. Nem o passado, nem o presente e nem o futuro –
todas as nossas impressões já se encontram ―contaminadas‖ pelo peso de representações do
―real‖.
193
Se levarmos em conta o fato de que não nos lembramos e nem nos apropriamos do
passado, mas que o ―criamos‖ à medida que o narramos, o uso de citações para a composição
de memórias mais robustas é completamente coerente. A simples concepção de ―pastiche‖ ou
―colagem‖ como termos que possam configurar o jogo Castlevania: SoTN (1997) nos parece
insuficiente, diante da perspectiva da crítica pós-moderna. A ilusão do objeto cultural
moderno – com aura – se desfaz diante da perspectiva de que qualquer concepção do mundo é
composta por narrativas representacionais e que jamais estaremos livres das redes ideológicas
totalizadoras.
Novas mídias não transformam a maneira de ler, elas apenas oferecem citações em
diferentes códigos, mas essas são atravessadas pela máquina de totalização que incide
coerência na produção e na recepção. Giddens declara que
Uma colagem não é, por definição, uma narrativa; mas a coexistência de itens
diferentes nos meios de comunicação de massa não representa uma confusão caótica
de signos. Antes, as ―histórias‖ separadas que são exibidas lado a lado expressam
ordenamentos típicos de consequencialidade de um ambiente espaço-temporal
transformado, do qual a predominância do lugar praticamente se evaporou
(GIDDENS, 2002, p. 31).
177
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M6vIDYFQtqk> Acesso em: 19 dez. 2017. A partir de
24:14 minutos.
194
Essas representações presentes no jogo são construídas pelos designers, mas também
são construções por si só (de memórias e de discursos que consolidaram essa estética). Dessa
forma, a ―reconstrução‖ de um estilo gótico através da organização de colagens em um
videogame é apenas uma vertigem, porque tenta resgatar uma memória de um ―real‖ que por
si só existiu apenas através da reverberação de vozes, visões, colagens e sonhos. Nesse
sentido, a colagem de citações para proposição do efeito de memória no jogo e a construção
discursiva do próprio jogo são processos indivisíveis no panorama da crítica pós-moderna. A
partir desse pensamento, o fazer artístico se apropria e subverte a ordem da narrativa
totalizadora e coesa, um modelo ideológico da modernidade. Nessa medida, observa-se que a
questão não está na crítica à tentativa de ―imitação‖ de uma estética de um tempo passado.
Diante de todo o estudo desenvolvido até aqui, acreditamos que essa tese se encerra
subversiva, fazendo-nos duvidar de noções que organizavam nossos discursos.
Essa perspectiva parece ampliar a própria noção de leitura e apreensão de mundo; essa
―habilidade‖ parece ganhar contornos cada vez menos ―burocráticos‖, como se a atividade de
leitura fosse se descolando cada vez mais da decodificação, atravessando a noção de leitura de
196
mundo de Paulo Freire e se liquefazendo diante do olhar que duvida do que entende por
mundo. Considero que o empreendimento das revisões de literatura e das análises desta tese
pavimentaram a estrada por onde andamos agora – mas ela não nos parece levar a um ―lugar‖,
senão a uma pletora, uma miríade de outros caminhos; caminhos esses que não passam de
capoeiras esperando para serem percorridas. É possível que as pesquisas em videogames
continuem, ao longo dos próximos anos, com análises nas quais as teorias literárias não serão
abarcadas, e é possível que se tente criar algo novo para o que se entende como sendo uma
―nova‖ forma de interação com ficções. A não ser que se apropriem de ideias e discussões
como as desenvolvidas por Jauss, Iser e Chartier, dentre outros, não haverá forma de
construção de um saber sólido sobre o que é a leitura de videogames: as revisões de literatura
nas quais nos calcamos nos permitem dizê-lo.
Encerra-se esta tese, mas a pesquisa continuará. Num outro nível de estudo,
objetivamos analisar as narrativas fragmentadas em videogames, sob a ótica das
considerações tecidas ao final desta tese. A ideia será entender como as fragmentações são
organizadas pelo jogador-leitor de acordo com o prisma de que a compreensão dessas
colagens se dá por memória, sensibilidade e nostalgia.
197
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