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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS

ADRIANA FALQUETO LEMOS

CASTLEVANIA: SYMPHONY OF THE NIGHT E A INVENÇÃO DO


GÓTICO

VITÓRIA
2018
2

ADRIANA FALQUETO LEMOS

CASTLEVANIA: SYMPHONY OF THE NIGHT


E A INVENÇÃO DO GÓTICO

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em


Letras do Programa de Pós-Graduação em
Letras do Centro de Ciências Humanas e
Naturais da Universidade Federal do Espírito
Santo para obtenção do grau de doutora em
Letras.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Viviana Mónica


Vermes.

VITÓRIA
2018
3
4

ADRIANA FALQUETO LEMOS

CASTLEVANIA: SYMPHONY OF THE NIGHT


E A INVENÇÃO DO GÓTICO

Aprovada em 16 de outubro de 2018.

COMISSÃO EXAMINADORA:

Prof.ª Dr.ª Viviana Mónica Vermes (Orientadora)

Prof. Dr. Sérgio da Fonseca Amaral (Examinador interno)

Prof.ª Dr.ª Telma Elita Juliano Valente (Examinadora interna)

Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher (Examinador externo)

Prof. Dr. Ricardo Ramos Costa (Examinador externo)


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DEDICATÓRIA

Dedico esta tese a tantas pessoas que nem posso listar, mas principalmente pessoas
que sempre estiveram me amparando em momentos em que pensei que nada mais pudesse
fazer. Deus, que me ampara em tempos em que pensei que pudesse enlouquecer; minha mãe
Maria Célia, que se foi sem que pudesse compartilhar o melhor da minha vida; meu marido
Nestor, que comigo tem compartilhado sucessos e fracassos com paciência, amor e felicidade;
e nosso filho, Chico, que nasceu depois que eu já havia começado o doutorado, provando para
mim que as crianças vêm sempre em primeiro lugar, ainda bem. Dedico este trabalho,
também, à minha orientadora, a professora Mónica, que me ajudou com palavras de incentivo
e sua característica e enorme gentileza, em muitos momentos em que desejei mandar tudo às
favas – sem sua ajuda esta tese não teria sido escrita. Dedico este trabalho a todas as horas
jogando e assistindo minha irmã jogar videogame, dedico muito do meu sucesso ao fato de ela
ter estado sempre ao meu lado.
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AGRADECIMENTOS

Da mesma forma que a vida me proporcionou momentos dolorosos e quase


insuportáveis, ela me deu pessoas muito bondosas que me ajudaram em várias ocasiões.
Agradeço por terem me ajudado nesse percurso: Sandro, Anna Catharina, Marília, Cassiana,
Sanderson, Jayza, Bruno, Alice, Keila, Kamyla, Anne, Joyce, Jucélia, Hugo, Marcelo, Juliana,
Mário, Geraldo, Junia, Rossanna e Rovana. Agradeço a todos os meus amigos de infância e
adolescência pela companhia nos jogos de videogames. Agradeço enormemente aos membros
da banca, que contribuíram de forma grandiosa para a correção do trabalho, especialmente ao
professor Álvaro Luiz Hattnher pela leitura atenciosa e dedicada.
Agradeço ao programa de Pós-Graduação em Letras pelo ensino, aos professores que
foram competentes e bastante compromissados. Agradeço à Fapes por ter fomentado a
pesquisa em seu início, entre 2015 e 2016, até que eu tomasse posse no Ifes.
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And now, the end is near


And so I face the final curtain
My friend, I‘ll say it clear
I‘ll state my case, of which I‘m certain
I‘ve lived a life that‘s full
I‘ve traveled each and every highway
But more, much more than this
I did it my way

Regrets, I‘ve had a few


But then again, too few to mention
I did what I had to do
And saw it through without exemption
I planned each charted course
Each careful step along the byway
And more, much more than this
I did it my way

Yes, there were times, I‘m sure you knew


When I bit off more than I could chew
But through it all, when there was doubt
I ate it up and spit it out
I faced it all and I stood tall
And did it my way

I‘ve loved, I‘ve laughed and cried


I‘ve had my fill my share of losing
And now, as tears subside
I find it all so amusing
To think I did all that
And may I say – not in a shy way
Oh no, oh no, not me
I did it my way

For what is a man, what has he got


If not himself, then he has naught
To say the things he truly feels
And not the words of one who kneels
The record shows I took the blows
And did it my way, Yes, it was my way

Versão de Paul Anka da canção francesa Comme d‟habitude, de Claude François e Jacques
Revaux
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RESUMO

Através do exame de corpus composto de manual, textos, imagens e músicas do jogo, intenta-
se, através desta pesquisa, compreender como o videogame Castlevania: Symphony of the
Night (1997) consolida em seu conjunto sincrético um estilo artístico próprio de uma fase da
história da arte ocidental. O estudo tem, como ponto de partida, as premissas de que a) o
videogame, como objeto sincrético, carece de estudo multidisciplinar; b) assim como outros
objetos culturais contemporâneos, circunscreve-se dentro do circuito dos estudos textuais e de
leitura; e c) todo trabalho de autoria artística sofre influência do mundo que cerca o autor,
estando vinculado a uma rede de saberes e de cultura e, por isso, é tanto uma apropriação do
mundo que o cerca quando uma representação de si mesmo. Levando-se em conta o
surgimento da narrativa gótica na literatura com o primeiro romance de Horace Walpole, The
Castle of Otranto, de 1764, inicia-se a discussão com uma paralelização da emergência do
estilo gótico no romance epistolar Drácula, de Bram Stoker (1897), e a maneira como os
elementos antigos dessa cultura (por exemplo, a música, arquitetura e as figuras míticas)
foram reorganizados esteticamente, de modo a produzirem um efeito. Após revisão de
literatura que privilegiou a crítica pós-moderna (ANDERSON, 1999; JAMESON, 1985,
2004; LYOTARD, 1986; HUTCHEON, 2000; GIDDENS, 2002), além de outros estudos
teóricos (ROSEN, 2008; CERTEAU, 2000), observou-se que o processo de seleção e
organização de ―memórias‖ que farão parte de uma ―colagem‖, em um objeto cultural, é uma
experiência subjetiva. As razões que motivam a montagem dessas ―paródias‖ pós-modernas
escapam aos criadores, pois esses fragmentos remetem inconscientemente a vertigens de
chamadas ―nostalgias‖, acessadas por sensibilidade e tato.

Palavras-chave: Videogame. Literatura. Gótico. Intersemiose. Pós-modernidade. Nostalgia.


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ABSTRACT

Through the examination of a corpus composed of manuals, texts, images and music of the
game we intended to understand how the videogame Castlevania: Symphony of the Night
(1997) consolidates in its syncretic set an artistic style proper of a phase of Western art
history. The study has, as a starting point, the premises that a) videogames, as a syncretic
objects, lack multidisciplinary study; b) like other contemporary cultural objects, videogames
are circumscribed within the circuit of textual studies and reading; and c) all work of artistic
authorship is influenced by the world around the author, being linked to a network of
knowledge and culture and, therefore, this cultural object is both an appropriation of the world
that surrounds it as a representation of itself as well. Taking into account the emergence of the
Gothic narrative in literature with Horace Walpole‘s first novel, The Castle of Otranto, 1764,
the discussion begins with a parallelization of the emergence of the Gothic style in Bram
Stoker‘s novel Dracula (1897), and the way the ancient elements of that culture (eg, music,
architecture, and mythical figures) were aesthetically reorganized in order to produce an effect
in the videogame Castlevania: SoTN. After reviewing literature that favored postmodern
critique (ANDERSON, 1999; JAMESON, 1985, 2004; LYOTARD, 1986; HUTCHEON,
2000; GIDDENS, 2002), in addition other theoretical studies (ROSEN, 2008; CERTEAU,
2000), it was observed that the process of selection and organization of ―memories‖ that will
be part of a ―collage‖, in a cultural object, is a subjective experience. The reasons behind the
creation of these postmodern ―parodies‖ escape the creators, because these fragments
unconsciously refer to the vertigo of a so-called ―nostalgia‖, accessed by sensitivity and tact.

Keywords: Videogame. Literature. Gothic. Intersemiosis. Postmodernity. Nostalgia.


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LISTA DE IMAGENS

Figura 01: O espaço hermenêutico como intercessão.


Figura 02: Esquema comparativo de leitura de livro e de jogo.
Figura 03: Ramificação das possibilidades de avanço narrativo.
Figura 04: ARMA 3 (2013).
Figura 05: Sim City 5 (2013).
Figura 06: Informações técnicas do manual do jogador do videogame Castlevania SoTN
(1997), pp. 3-4.
Figura 07: Prólogo do jogo Castlevania SoTN (1997). Manual do jogador, pp. 7-8.
Figura 08: Tela de abertura do jogo Castlevania SoTN (1997).
Figura 09: Outer Wall, esqueleto pendente com a lua ao fundo, Castlevania SoTN (1997).
Figura 10: Salão em Royal Chapel, Castlevania SoTN (1997).
Figura 11: Sala da batalha com o chefe Hippogryph, Castlevania SoTN (1997).
Figura 11: Sala da batalha com o chefe Olrox, Castlevania SoTN (1997).
Figura 12: Alucard encontra a mãe em Nightmare, Castlevania SoTN (1997).
Figura 13: Abandoned Mine, Castlevania SoTN (1997).
Figura 14: Cenário do Granfaloon, Catacombs, Castlevania SoTN (1997).
Figura 15: Cenário do Granfaloon, Catacombs, Castlevania SoTN (1997).
Figura 16: Relógio marcando 6:30, Castlevania SoTN (1997).
Figura 17: Chefe Beezelbub, Castlevania SoTN (1997).
Figuras 18 e 19: Comparações entre trajes do videogame Castlevania SoTN (1997) e traje
Italiano (final do século XVIII).
Figura 20: Conde Drácula e Lisa, Castlevania SoTN (1997). Manual do jogador, p. 12.
Figura 21: Tela de início do jogo ou seleção de arquivos do memory card, Castlevania SoTN
(1997).
Figura 22: Alchemy Laboratory, Castlevania SoTN (1997).
Figura 23: Clock Tower, exterior, Castlevania SoTN (1997).
Figura 24: Long Library, Castlevania SoTN (1997).
Figura 25: Long Library, Castlevania SoTN (1997).
Figura 26: Marble Gallery, Castlevania SoTN (1997).
Figura 27: Royal Chapel, Castlevania SoTN (1997).
Figura 28: Catedral de Notre Dame, Interior, Ala Leste (1997).
Figura 29: Royal Chapel, Castlevania SoTN (1997).
Figura 30: The Lion Bas-Reliefs, Giovanni Battista Piranesi, gravura, 1761.
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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Características do vampiro na literatura.


Tabela 2: Conceito e estudo da narrativa nos jogos eletrônicos
Tabela 3: Apresentação de aspectos e temas góticos
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NOTAS DA AUTORA

Palavras estrangeiras não foram italizadas por razão ideológica, como, por exemplo,
‗videogame‘ e ‗designer‘, já que, em obras especializadas, as palavras estrangeiras não ficam
em itálico: sua repetição extensiva (pelo uso recorrente) pode deixar o texto difícil de ser lido.
Assim como pontuou Lyotard (1986, p. 46), é nítido que na escrita acadêmica seja
preciso que haja uma despersonalização da fala; vemos isso no esforço que fazemos ao
escrever dissertações e teses que exprimem saberes que dependem da nossa própria
sensibilidade e capacidade hermenêutica para serem produzidos. No entanto, é preciso
elaborar nossa dialética na voz em primeira pessoa do plural para que possamos aludir nosso
discurso à fala de vários autores (eu, minha orientadora, os autores dos textos lidos etc), e para
extinguir o que se possa acreditar por subjetivo. Esforçamo-nos por galgar a legitimação num
regime institucional – nossa fala não pode deixar de ser burocrática e nem nossos resultados
verificáveis, sob o risco ficarmos desacreditados. Acreditamos que o trabalho aqui
desenvolvido é fruto de uma discussão entre pares e que, por isso, nossa autoria não
transparece como única na pessoa do discurso.
Em contrapartida, em muitos momentos a voz do texto se assume em primeira pessoa,
e decidi por deixá-los assim, já que se tratam de manifestações de experiências pessoais, sobre
as quais não posso atribuir afirmações a outrem.
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO P. 16
1.1 A CONTEMPORANEIDADE E O FUTURO DOS GAME STUDIES P. 19

2 A LEITURA DE MÍDIAS PÓS-MODERNAS - UM RETORNO AO PERÍODO GÓTICO


2.1 PROCESSOS COGNITIVOS DE LEITURA DE JOGOS DE VIDEOGAME
P. 24
2.2 A PÓS-MODERNIDADE: ESTUDOS E CRÍTICAS P. 34
2.3 ROMANTISMO E GÓTICO P. 57
2.4 DRÁCULA P. 71

3 PESQUISAS CONTEMPORÂNEAS DOS GAME STUDIES - UMA REVISÃO ENTRE


2007 E 2015
3.1 ESTUDOS QUE INDICAM A NECESSIDADE DE UMA NOVA CRÍTICA ESTÉTICA
PARA OS ESTUDOS DOS VIDEOGAMES P. 80
3.2 ESTUDOS DAS NARRATIVAS, DA LEITURA E DA INTERAÇÃO JOGADOR X
JOGO QUE MESCLAM CONCEITOS DE INTERATIVIDADE COM TEXTOS
DRAMÁTICOS P. 85
3.3 ESTUDOS QUE ALUDEM À LEITURA EM PARALELO AO ATO DE JOGAR
P. 93

4 ANÁLISE DO CORPUS DA PESQUISA: UM MERGULHO NO DESCONHECIDO


4.1 O ROMANCE DRÁCULA P. 106
4.1.1 TEMAS P. 108
4.1.2 OS PERSONAGENS P. 114
4.1.3 CARACTERÍSTICAS GÓTICAS, ARQUITETÔNICAS E SONORAS P. 116
4.2 ESTUDANDO A NARRATIVA DO JOGO P. 124
4.2.1 TEMAS P. 146
4.2.2 OS PERSONAGENS P. 148
4.2.3 LEITURAS VISUAIS P. 148
4.2.4 LEITURAS AUDITIVAS P. 163
15

5 DISCUSSÕES, REVISITAÇÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS


5.1 DEVANEIOS SEM FIM P. 189

6 REFERÊNCIAS P. 197
16

1 INTRODUÇÃO

Começaremos a escrita deste trabalho com um resgate da trajetória da pesquisa aqui


descrita. Ao longo dos últimos quatro anos, o videogame foi objeto de estudo de nossa vida
acadêmica. Ele foi o foco do Trabalho de Conclusão de Curso em Letras-Inglês, também na
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em 2012, e da dissertação defendida no
mestrado em Letras do Programa de Pós-Graduação da UFES, em 2015. Ambas as pesquisas
giraram em torno da ideia de que os videogames podem ser agregados como objetos de
análise dentro dos estudos literários.

Esta pesquisa congrega o retorno ao debate acerca dos estudos textuais e dos game
studies desenvolvidos na dissertação e da leitura de outras pesquisas, que surgem no momento
do trabalho atual; mas, além disso, se preocupa em seguir adiante com a análise crítica do
corpus em questão – desejo esse, de certa forma, contido nas duas últimas pesquisas, focadas
em estabelecer o videogame enquanto objeto de estudo do campo acadêmico das Letras.
Castlevania: Symphony of the Night1 (1997) (Castlevania SoTN) reside em nosso imaginário
desde 2000, quando o jogamos pela primeira vez. Trata-se de um jogo construído a partir de
uma narrativa entremeada por coleta de itens e evolução de personagem. O videogame em
questão estabelece uma relação de intertextualidade com o romance epistolar Drácula, de
Bram Stoker. Aliás, ele é o pai do protagonista do jogo, Alucard. É por meio dele que o
jogador deve superar seus limites para acabar com a ameaça maligna, ou seja, matar o próprio
pai de Alucard.

Para além da discussão teórica sobre ler o videogame - que será empreendida mais
adiante com a retomada de textos e a coleta de tantos outros -, a crítica estética do jogo de
videogame, desta vez, exige que nos aprofundemos em outras searas: a da pós-modernidade é
uma delas.

A pós-modernidade se insere no bojo da nossa pesquisa por dois motivos. O primeiro


se dá pelas características inerentes ao videogame enquanto mídia. Ele se enquadra como
manifestação cultural própria do pós-modernismo.

Os jogos de computador e adventos de conexão e simulação congregam comunidades


econômica, histórica, social e geograficamente distantes. Os videogames são objetos culturais

1
(No original em japonês: 悪魔城ドラキュラX 月下の夜想曲; em escrita romanizada: Akumajō Dracula X:
Gekka no Yasōkyoku; tradução para o português: ―O maligno Castelo de Drácula X: Noturno à luz da lua‖).
17

massificados, dada a forma como acontece sua distribuição e venda, e por conta do seu
conteúdo – formatado para diluir culturas em imagens, cada vez mais rarefeitas, de tradições
localizadas. Mídias como estas, computadores e televisores, são, segundo Anderson (1999), a
última fonte de lucro do capitalismo globalizado avançado.

O estudo da pós-modernidade nos interessa neste trabalho porque desejamos entender


o que Linda Hutcheon (2000) aponta como desafios para a crítica pós-moderna: fugir da
totalização (evitando criar uma narrativa descritiva de causa e efeito sobre o objeto artístico2),
compreender os jogos de representação através das imagens e dos discursos (que não têm por
objetivo a retratação do real, mas a criação de uma visão da realidade), e empreender uma
leitura que observe, nas colagens e paródias, não o pastiche, mas a crítica, a contradição às
narrativas estabelecidas, o fôlego da dubiedade sem qualquer resolução que recupere a ordem.

A análise de todos esses pontos de interesse se dará com o exame do corpus em


questão, o jogo Castlevania SoTN. O que chamamos de corpus, na realidade, será formado
pela maior quantidade de indícios materiais e sensoriais que se puder apreender do jogo
(conforme notamos anteriormente na pesquisa defendida no mestrado), que são, a saber:

a) O manual do jogador, que serve de paratexto;


b) A narrativa de base, que organiza e conduz a ação do jogador;
c) O texto verbal / instrucional transmitido ao jogador, bem como as falas dos
personagens;
d) Fatores de intertextualidade que se dão durante a leitura do jogo;
e) Elementos que fazem parte da ficcionalidade do texto do jogo, como efeitos
visuais e sonoros, e a trilha sonora do jogo;
f) O texto verbal e visual apreendido pelo jogador, organizado através de sua
apropriação.
Complementarmente, e quando necessário, levaremos em conta aspectos da
visualidade, do manejo e da interação do jogador, que se dá em relação ao aparato
físico do videogame, o console, bem como leitura de artigos já escritos e quaisquer
outras fontes que se fizerem pertinentes.
Podem ser estabelecidas as seguintes etapas como método para análise do corpus:
1) O estudo do manual, que pode revelar: a) as informações que o jogador recebe a
priori; b) o público alvo do jogo; c) o gênero do jogo; d) informações sobre os
personagens; e) um guia da história.

2
Não estamos entendendo o videogame como ―objeto artístico‖ dentro de um circuito que se restringe à arte
stricto sensu. A nossa concepção parte do pressuposto de que o jogo de videogame é criado por um corpo de
designers e diretores responsáveis pelo projeto estético (político, moral etc.) de maneira que essa autoria
compartilhada similar à direção cinematográfica (e, em alguns casos, à autoria literária – segundo a compreensão
de teóricos como Roger Chartier, em Languages, Books, and Reading from the Printed Word to the Digital Text,
de 2004). Sendo um objeto cunhado por autores, concebemo-lo como produto cultural do homem - assim sendo,
obra. O termo ―artístico‖ se refere ao fato de que se trata de uma arte popular; políticas próprias que regem o
estatuto da arte, com questões que concernem à ordem social dos produtos culturais, não estão em discussão.
18

2) Jogar o videogame, para através disso entender: a) como as informações da


história são apresentadas para o jogador (em que sequência, velocidade, por quais
mecanismos – se por contato com personagens ou por conquista de objetivos), ou
seja, como se estrutura e acontece a narrativa; b) como os personagens se
comportam; c) como os textos e informações se apresentam (por acesso a objetos,
por personagens, por instrução do jogo); d) como o protagonista se desenvolve (com
o auxílio do jogador ou à revelia); e) como o jogo termina (FALQUETO-LEMOS,
2015, pp. 96-97).

Ou seja: importa, nesta tese, avaliar a maior quantidade possível de elementos


arrestados de Castlevania SoTN, de maneira que, através deles, ampliem-se os objetivos de
pesquisa já postos anteriormente. A análise intensa e verticalizada desse objeto cultural
multifacetado e sincrético nos permitirá entender como esse tipo de mídia opera a paródia
pós-moderna. Além disso, a tensão da análise transdisciplinar apenas situa a pesquisa no que
Jean-François Lyotard (1986) postula como a transgressão necessária contra o famigerado
empobrecimento da pesquisa e ensino que ronda a capitalização da produção do saber na
busca pelo poder da informação. Segundo o autor,

Se o ensino deve assegurar não somente a reprodução das competências, como


também seu progresso, seria preciso em consequência que a transmissão do saber
não fosse limitada à de informações, mas que ela comporte a aprendizagem de todos
os procedimentos capazes de melhorar a capacidade de conectar campos que a
organização tradicional dos saberes isola ciosamente. A palavra de ordem da
interdisciplinaridade, difundida sobretudo após a crise de 68, mas preconizada bem
antes, parece seguir esta direção. Ela chocou-se contra os feudalismos universitários,
diz-se. Ela chocou-se com muito mais (LYOTARD, 1986, p. 94).

É preciso que se retorne para o estudo das mais variadas formas de acesso ao saber,
para que possamos ter capacidade para fazer mais do que simplesmente reproduzir.

Por isso, esta pesquisa envolve a análise da narrativa em contraponto com o romance
Drácula, atentando para a intertextualidade, além do estudo das composições musicais da
trilha do jogo, os efeitos sonoros e o estilo estético. Serão abarcados, para composição dessa
leitura, textos que pertencem às disciplinas de Música, Artes e Literatura – todos agrupados,
de forma a dar volume à nossa percepção dos mecanismos, através dos quais a paródia,
segundo Hutcheon (2000), é criada e funciona em Castlevania SoTN.

A seguir estabeleceremos, como ponto de partida, um vislumbre sobre a situação da


pesquisa dos jogos de videogame e as perspectivas desse campo de estudo jovem, porém
intensamente disputado. Na sequência, discutiremos a leitura do videogame como
possibilidade no âmbito dos Estudos Literários, seguido por um panorama dos estudos do pós-
modernismo e do romance gótico. Importa frisar, neste momento, que as análises
19

empreendidas neste trabalho têm como foco o caráter estético em detrimento de interpretações
políticas no que concerne às teorias pós-modernas abordadas. Além disso, o estudo do
videogame não se encaminhará pelo que tange corporeidades envolvidas no processo de
interação jogador x videogame; compreende-se que há pesquisas que podem atender essa
demanda de forma mais aprofundada3.

1.1 A CONTEMPORANEIDADE E O FUTURO DOS GAME STUDIES

As perspectivas para o futuro dos estudos dos videogames são amplamente discutidas
por Mia Consalvo em The Future of Game Studies (2012). Retomando o debate sobre como
pesquisar a mídia, algo bastante discutido na dissertação por nós defendida em 2015, a
pesquisadora chega ao cerne da problemática, de modo que enxerga – assim como nós – duas
frentes. Uma delas formada por estudiosos da área de game studies, que insistem em cercear
politicamente seu território. O interesse de outras áreas de saber é visto por tais sujeitos como
algo a ser enfrentado: ―resistir e batê-los é o objetivo do nosso primeiro jogo de sobrevivência
neste trabalho, porque esses estudos emergentes precisam de independência, ou pelo menos
relativa independência‖4 5
(ESKELINEN, 2004, p. 36, apud CONSALVO, 2012, p. 7). Para
Consalvo, esse tipo de posicionamento não enfrenta questões que tenham a ver com a
complexidade dos objetos culturais projetados para essa mídia. Para a autora, há que se levar
em conta tanto a jogabilidade e a interação do jogador quanto fatores que se relacionam com
representações e narrativas. Outra pergunta feita por Consalvo parece também bastante
pungente: Como se dão as interações feitas por jogadores ou por pessoas que assistem aos
outros jogarem6?

A pesquisadora entende que a outra frente, a do estudo das narrativas dos jogos, deve
ser tomada como importante:

3
Destaco, nessa seara, os artigos de Thomas Apperley ―The body of the gamer: game art andgestural excess‖,
Digital Creativity, 2013 e ―Rhythms of Gaming Bodies‖ Proceedings of IE2007, 2007.
4
―[…] resisting and beating them is the goal of our first survival game in this paper, as what these emerging
studies need is independence, or at least relative independence‖ (ESKELINEN, 2004, p. 36, apud CONSALVO,
2012, p. 7).
5
Salvo indicação em referências bibliográficas, todas as traduções neste texto são de nossa autoria.
6
Há um tipo de video no Youtube em que os ―youtubers‖, ou espécie de ―bloggeiros de youtube‖, jogam os
videogames. Às vezes aparece em tela o jogador e o jogo, simultaneamente, às vezes apenas a voz e a tela do
jogo e, em algumas raras vezes, apenas o jogo sem qualquer comentário.
20

[…] alinhados com os estudos narratológicos, não devemos omitir o estudo das
narrativas ou histórias na busca por compreender os jogos. Muitas vezes, como meu
próprio trabalho tem demonstrado, os jogadores citam as histórias dos jogos como
um elemento crítico na sua alegria e, para alguns jogadores, os jogos devem ter um
enredo ou narrativa forte que mantenha seu interesse, ou mesmo que o motive a
jogar, em primeiro lugar. [...] É claro que, do ponto de vista do jogador e do
designer, histórias ou narrativas têm um lugar nos jogos, e a maneira como jogo e
narrativa se encaixam (ou não) deve também ser estudada por pesquisadores de
forma ativa. Finalmente, nenhuma disciplina ou campo deve (ou pode) ter controle
sobre a pesquisa ou teorização de jogos, e o estudo dos jogos é enriquecido por
vários caminhos de investigação. Narrativas não são os únicos elementos
importantes para estudar em jogos, e nem apenas sua mecânica. Estudiosos que
trabalham em áreas tão diversas como o direito (Burk, 2005; Lastowka & Hunter,
2004), a filosofia (Ess, 2009; Reynolds, 2002), a antropologia (Boellstorff, 2010;
Malaby, 2009), a história da arte (Sharp, 2010), a sociologia (Simon, 2006; Taylor,
2006), a ciência da computação (Mateas, 2004; Wardrip-Fruin, 2009) e outras áreas
têm contribuído muito para o estudo dos jogos, desenvolvendo de suas próprias
perspectivas disciplinares, mas também adaptando essas práticas ao estudo da
prática lúdica. Tais atividades nos trazem uma visão muito mais variada, rica e
valiosa de jogos e jogadores do que jamais alguma disciplina ou campo de estudo
poderia, por conta própria, trazer (seja ela a área de comunicação ou de game
studies) 7 (CONSALVO, 2012, pp. 8-9).

Chama-se a atenção para áreas interessantes de pesquisa de videogames que se


desenvolveram a partir da interação da trans/multidisciplinaridade, por exemplo: o
alargamento do interesse pela ficção interativa, pesquisas sobre as identidades dos jogadores
(tanto em jogos online quanto, por exemplo, quando utilizam um avatar8), a formação de
comunidades online, o aumento de informações geradas por usuários na internet (fanfictions9,
enciclopédias, guias, sites com avaliações e notícias) e o papel das indústrias de jogos
eletrônicos na geração e globalização da cultura de massa.

Sobre o último, importa notar que a autora aponta para o fato de que grandes geradores
de cultura de massa midiática, como filmes e televisão, não detêm o mesmo monopólio

7
―[…] In line with the narratologists, we must not omit the study of narratives or stories from our understandings
of games. As my own work has demonstrated, players often cite the stories in games as a critical element in their
enjoyment, and for some players, games must have a strong storyline or narrative to hold their interest, or even
to motivate their gameplay in the first place. […] Clearly, from a player and developer perspective, stories or
narratives do have a place in games, and thus how they fit (or not) should be actively studied by researchers as
well. Finally, no one discipline or field should (or can) have control over game research or theorization, and the
study of games is enriched by multiple paths of inquiry. Narratives are not the only important elements of games
to study, nor are game mechanics. Scholars working in fields as diverse as law (Burk, 2005; Lastowka & Hunter,
2004), philosophy (Ess, 2009; Reynolds, 2002), anthropology (Boellstorff, 2010; Malaby, 2009), art history
(Sharp, 2010), sociology (Simon, 2006; Taylor, 2006), computer science (Mateas, 2004; Wardrip-Fruin, 2009)
and other areas have all contributed much to the study of games, drawing from their own disciplinary
perspectives yet also adapting those practices to the study of ludic practice. Such activities bring us a much more
varied, rich and valuable account of games and game players than one discipline or field (whether
communications or game studies) ever could on its own‖ (CONSALVO, 2012, pp. 8-9).
8
Um ícone ou figura que representa a pessoa física em alguma mídia (videogame, internet, fóruns etc).
9
Trata-se de narrativas ficcionais criadas por fãs, baseadas originalmente apresentadas em outras mídias.
21

cultural quando se trata de videogames. A mudança no eixo que origina tais produções sai do
mundo ocidental e passa para o oriental, com a difusão de objetos culturais projetados por
países que antes estavam à margem de potências midiáticas, como os Estados Unidos.

Tais desenvolvimentos demonstram a importância de estudar a mídia global, e como


tais mídias viajam e se transformam à medida que atravessam várias fronteiras
nacionais e culturais. Dada a recente fragmentação da indústria de TV e o aumento
de práticas crescentes runaway production10 na indústria do cinema, a indústria de
jogos e a pesquisa sobre ela oferece outro modelo para a compreensão da
complexidade da mídia global contemporânea e suas audiências11 (CONSALVO,
2012, p. 13).

As metodologias e os objetivos de pesquisa de videogames variam de acordo com os


desejos dos pesquisadores e seus campos teóricos. Para a pesquisadora, a necessidade de
entender como certo fenômeno ocorre parte do tipo da área de pesquisa à qual o/a
pesquisador/pesquisadora pertence, e a escolha metodológica se ancora em seus pressupostos
teóricos (CONSALVO, 2012, p. 16). Ainda assim, para a autora é visível que muitos
pesquisadores deixam de lado fatores ligados à jogabilidade – por exemplo, pesquisa-se sobre
a imagem feminina nos jogos, o que elas são capazes de fazer e em que contextos se encaixam
(CONSALVO, 2012, p. 17), mas não necessariamente se pesquisa sobre como o jogador as
controla. Sobre isso, advogamos da nossa decisão em tomar partido das ideias de Roger
Chartier (1991, 1994, 1998, 2002 e 2010) para o estudo dos textos em livros, por exemplo,
por compreender que nem só os textos são responsáveis pelos significados atribuídos pelo
leitor à obra. Mais do que isso, existe uma série de dispositivos textuais, materiais e editoriais
que implicam formas de leitura. O manejo do texto e o formato em que ele se encontra, por
exemplo, são aparatos usados como instrumentos de leitura. Uma leitura que abstraia apenas
os textos dos videogames pode não ser tão completa quanto se utilizasse elementos
extratextuais, que também são capazes de conferir sentido à experiência do jogador (e,
portanto, à sua leitura do videogame). Esses elementos, citados na proposição metodológica
da dissertação por nós defendida no ano de 2015 e aqui revistos, incluem a apreciação sonora,

10
Preferindo deixar o termo original, já que não há correspondente em português. Runaway production é um
termo usado para se referir às produções cinematográficas feitas para o mercado norte-americano que são
filmadas fora dos Estados Unidos. Dois motivos principais levam a esse modelo de produção: a diminuição dos
custos da produção e o uso de incentivos fiscais de outras locações.
11
―Such developments speak to the importance of studying global media, and how such media travels and
mutates as it crosses various cultural and national borders. Given the recent fragmentation of the television
industry and increasing practices of runaway production in the film industry, the games industry and research
about it offers another model for understanding the complexity of contemporary global media and their
audiences‖ (CONSALVO, 2012, p. 13).
22

vibratória, estética e quaisquer outros indícios físicos que acompanhem esses objetos textuais,
como encartes (elementos paratextuais), por exemplo.

Além desses dados, Consalvo (2012) aponta a necessidade de que o pesquisador


efetivamente jogue o jogo que analisa. Da mesma forma, destacamos ser imprescindível que o
pesquisador literário leia/faça a leitura da obra em questão para que o trabalho de análise
possa ser feito de forma integralizada. Façamos um apontamento: algumas questões analíticas
assinaladas por Consalvo para estudos que incluam a jogabilidade dos videogames podem ser
aproveitadas/transpostas pelos pesquisadores dos estudos literários, por exemplo: a leitura é
fácil ou difícil? O que isso indicia? Quais leituras o formato da obra privilegiada na análise
torna possíveis? Quais sensações (tanto físicas quanto emocionais, numa hermenêutica)
emanam do contato com a obra? Fizeram-se várias leituras ao longo dos anos – houve
mudança nos sentidos lidos na obra? Quais apropriações são possíveis (ao se investigar um
grupo de leitores e suas respostas)? O pesquisador mudou após a apreensão da obra (sua visão
de mundo, seu posicionamento político etc.)? Como essa leitura o afetou?

Consalvo (2012) retoma sua fala afirmando a importância da diversidade de áreas de


estudo na pesquisa de videogames, e que os estudos de videogames também possam ampliar
as áreas científicas tradicionais.

Há algumas tensões teóricas e metodológicas nos estudos literários dos videogames


por pelo menos três motivos: em primeiro lugar, game studies é uma área de pesquisa
relativamente jovem; os primeiros estudos foram publicados entre 1981 e 1982, com destaque
para o livro The Art of Computer Game Design, de Chris Crawford (1997), por ser o primeiro
livro a tratar integralmente dos videogames como objeto de estudo independente, e por, além
disso, traçar parâmetros sobre o papel desempenhado pelo jogador durante o ato de jogar o
jogo. Em segundo lugar, a instauração dos game studies como área independente de pesquisa
e a tentativa de certos estudiosos, como Aspen Aarseth (2004), em isolá-la
epistemologicamente ou de construir, a partir de novas teorias, abordagens para os estudos das
narrativas dos jogos. Em terceiro lugar, as características dos jogos eletrônicos – híbridos,
comerciais, de entretenimento – os situam ou num lugar marginalizado (o que no Brasil, por
exemplo, configurou os estudos até 2015, em sua maioria, em duas frentes: educacionais e
23

tecnológicas), ou num campo problemático12, no qual discussões teóricas parecem não


convergir.

De maneira geral, há um descompasso teórico e metodológico entre as pesquisas de


jogos eletrônicos: o que se dá a ver, em geral, são estudiosos de diversas áreas que tentam
estabelecer formas de estudos para as narrativas dos videogames sem que se leve em conta
pesquisas já feitas com esse objetivo específico ou o próprio campo dos estudos de leitura. O
que ficou claro durante a pesquisa anteriormente feita é que as publicações que tratam de
jogos que conjugavam palavras-chave como literatura e narrativa apresentavam-se como
sendo deficitárias dos estudos já produzidos pelo campo de estudos literários e textuais, por
exemplo13.

Tendo em vista, porém, que a revisão bibliográfica feita se encerrou em 2013 e que,
desde então, outras pesquisas foram publicadas, retomamos as buscas em sítios virtuais como
o Portal Scielo, o Google Acadêmico e periódicos da Capes. A catalogação, leitura e análise
crítica dessas pesquisas serão abordadas detalhadamente no capítulo 2 desta tese. A discussão
aqui empreendida se dá por meio de três linhas de leitura: a) o que os pesquisadores indicam
como imprescindível na criação de uma crítica estética específica para os game studies; b) a
proposta de pesquisadores em imiscuir conceitos de interatividade digital e textos dramáticos
ao estudar narrativa de videogames; e c) a leitura de estudiosos que aludem à leitura como
equivalente. A partir dessa revisão de literatura a tese se inicia, sendo o primeiro capítulo
dedicado à localização do nosso objeto de estudo no panorama teórico-crítico no que diz
respeito a: a) alguns aspectos dos estudos sobre leitura e mídia; b) discussões teóricas no que
tange aos estudos pós-modernos; e c) uma revisão de literatura sobre a literatura gótica e o
romance Drácula, de Bram Stoker. A partir do entrelaçamento desses três pilares, daremos
prosseguimento a outras análises, que permitirão tanto o delineamento quanto o
aprofundamento no nosso objeto de estudo: o videogame Castlevania: Symphony of the Night.

12
Digo campo problemático porque não há um estabelecimento de como os jogos de videogame devem ser
pesquisados, metodologicamente falando. A princípio esta parece ser uma discussão de fácil resolução, mas a
dificuldade parece emergir, a partir das leituras que temos feito, da polissemia do próprio objeto, que o joga em
diferentes campos de estudo. Além disso, sua ―funcionalidade‖ também faz com que os campos de estudo o
disputem em diferentes searas: seria um objeto de entretenimento, uma materialização de discurso, uma
ferramenta pedagógica, etc. De fato, nenhum objeto de estudo se situa unicamente em apenas uma vertente de
estudos, mas os videogames, enquanto corpus de pesquisa, têm sido matéria de disputa de diferentes áreas de
estudo, diferente de outros objetos, por exemplo, como a literatura, que naturalmente se situa no âmbito das
letras e das ciências humanas.
13
Apenas como referência, cito um levantamento mais aprofundado publicado no artigo de Adriana Falqueto
Lemos e Maria Amélia Dalvi, ―Videogames, leitura e literatura: aproximações bibliográficas multi e
transdisciplinares‖. (Con)textos Linguísticos, v. 7, pp. 6-27, 2013.
24

2 A LEITURA DE MÍDIAS PÓS-MODERNAS - UM RETORNO AO PERÍODO GÓTICO

2.1 PROCESSOS COGNITIVOS DE LEITURA DE JOGOS DE VIDEOGAME

É preciso retomar a questão de uma metodologia da leitura de videogames antes que se


adentre à pesquisa, pois o processo cognitivo de acepção dos significados que emergem no ato
de jogar é o que nos interessa na aproximação dos jogos de videogame e dos textos literários
enquanto mídias textuais. A pesquisa de videogame, quando desenvolvida no âmbito dos
estudos de Letras, enfrenta paradigmas relacionados ao que temos tido por texto, sentido e
leitura. Estudar os videogames enquanto objetos culturais, à luz dos estudos textuais, é
compreendê-los em face da historiografia do texto e da leitura.

Esse estudo de práticas de leitura e da compreensão mais ampla da participação da


materialidade dos objetos culturais textuais se vincula ao estudo da história das práticas
culturais, da Nova História Cultural, estudada por Roger Chartier, por exemplo. Don
Mackenzie foi o primeiro que se preocupou em entender como a materialidade, ou seja, a
forma, interfere na compreensão do texto – entendendo, assim, que os textos não produzem
significados de forma isolada de seu formato. A preocupação com o objeto textual, para
Chartier, reside nesse entendimento de ―nunca separar a compreensão histórica dos escritos da
descrição morfológica dos objetos que os trazem‖ (CHARTIER, 2010, p. 8). Dessa forma, a
modernização dos suportes e formatos provoca novas práticas e sentidos para as leituras. Foi
Armando Petrucci que observou as ―múltiplas possibilidades oferecidas pela ‗cultura gráfica‘
de determinado tempo‖ (CHARTIER, 2010, p. 8), sendo sua contribuição valiosa para
percepção de que é preciso ―associar, numa mesma análise, os papéis atribuídos ao escrito, as
formas e suportes da escrita e as maneiras de ler‖ (CHARTIER, 2010, p. 8). É isso, a
princípio, que nos move na pesquisa de videogames enquanto procedimento hermenêutico de
leitura.

É urgente, portanto, situar os textos dos videogames no âmbito da crítica que pode ser
produzida no âmbito dos estudos literários, já que nestes tempos digitais, compreendemos,
junto com Chartier, que ―as mutações de nosso presente transformam, ao mesmo tempo, os
suportes da escrita, a técnica de sua reprodução e disseminação, assim como os modos de ler‖
(CHARTIER, 2010, p. 8). A ideia de que o videogame representaria mais um suporte na
história das materialidades escritas é da ordem natural e se dá, além disso, dentro da
concepção de que os suportes promovem diferentes leituras ao mesmo tempo em que
25

correspondem aos anseios da ordem das práticas que envolvem seus usos. Não há rupturas: lê-
se livros impressos em formatos múltiplos, assim como versões digitalizadas em diferentes
suportes. O que define o uso de um formato ou de outro é (e sempre foi) motivado pela
necessidade do usuário.

Acima de tudo, retorna-se à materialidade e por isso a importância de estudá-la como


parte importante do sentido de um texto. ―Não vamos incorrer no mesmo erro [de velhos
historiadores], esquecendo-nos de que o escrito é transmitido a seus leitores ou auditores por
objetos ou vozes, cujas lógicas materiais e práticas precisamos entender‖ (CHARTIER, 2010,
p. 14). A forma é tão importante quanto o conteúdo de um texto quando o sentido emergir de
sua leitura. A materialidade – a voz, a performance, a imagem – é parcela fundamental no
processo cognitivo da emergência do sentido do texto.

A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: é por em jogo o corpo,
é inscrição num espaço, relação consigo ou com o outro. Por isso devem ser
reconstruídas as maneiras de ler próprias a cada comunidade de leitores, a cada uma
dessas ―interpretative communities‖ de que fala Stanley Fish (CHARTIER, 1991, p.
181).

Concordamos com Marco Caracciolo, em ―L‘Interfaccia Testo/Lettore: dal


Videogame alla Letteratura‖ (2011), quando propõe que ―a interação de um gamer com o
mundo do jogo é estruturalmente semelhante ao jogo que cada leitor faz com os significados
de um texto literário‖14 (p. 1). Mas apesar de um videogame ser uma ferramenta que pode ser
acessada por um jogador (ou seja, um aparato onde reside uma narrativa dormente que é
acessada pelo jogador), ele tem, além disso:

[...] uma função ―ontológica‖, ou seja, estende o nosso mundo: eles sustentam – nas
palavras de Brey – ―novas realidades sociais e virtuais‖ (2005: 397). Em outras
palavras, enquanto um processador de texto é apenas uma ferramenta, jogos de
videogame constroem experiências, e é este caráter experimental que os permite
aproximar da narrativa15 (CARACCIOLO, 2011, p. 1).

Ou seja: ao usar o videogame, o jogador não tem simplesmente acesso a uma interface
que lhe expõe informações em tela; diferente disso, o jogador tem contato com uma narrativa
que se desenrola conforme sua interação.

14 ―
[...] l‘interazione di un videogiocatore con il mondo del gioco è strutturalmente analoga al gioco che ogni
lettore fa con i significati di un testo letterario‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 1).
15
―[...] i videogiochi hanno una funzione ―ontica‖, cioè estendono il nostro mondo: essi sostengono – nelle
parole di Brey – ―nuove realtà sociali e virtual‖ (2005: 397). In altre parole, mentre un word processor è solo uno
strumento, i videogiochi costruiscono esperienze, ed è proprio questo carattere esperienziale che consente di
avvicinarli alla narrativa‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 1).
26

Caracciolo tece, a partir de então, considerações pertinentes sobre a natureza da


interação leitor x texto / jogador x videogame. Para ele, as explicações de Aspen Aarseth
parecem muito simplistas, principalmente se levarmos em conta a ideia que teóricos diversos
de fora dos estudos textuais e de leitura têm do ato de ler – como se fosse possível haver
leitura sem interação do leitor com o texto. Caracciolo consegue, por sua vez, compreender
que o problema dos teóricos dos game studies em entender essa interação está mais no nível
de interação do que na natureza das mesmas, já que, para ele, a interação do jogador com o
jogo (e o mundo do jogo) se dá num nível hermenêutico, assim como a leitura textual. Para o
autor, a virtualidade imprime conotação. Mas a leitura, nesse sentido, não precisa ser
explicitamente textual: Caracciolo entende que a interação física do corpo com uma
experiência estética precede o sentido puramente linguístico (2011, p. 3).

Eu poderia dizer muito mais, mas por agora basta dizer que qualquer sequência de
um videogame ilustra tanto a ideia de uma pequena história tanto no sentido espacial
quanto no sentido corporal, e que isso é desenvolvido pela interação entre um sujeito
(o personagem controlado pelo jogador) e o ambiente. Por sua vez, esse sentido é
projetado sobre a interação entre o jogador e o jogo em si. Simplificando, a morte do
personagem controlado pelo jogador (no sentido corporal) se torna um, ―eu perdi‖
(no sentido proposicional). É aqui que a interface assume um papel fundamental 16
(CARACCIOLO, 2011, p. 1).

Observemos abaixo a imagem de Caracciolo (2011) para explicar a compreensão do


jogador diante da interface do jogo.

Figura 01: O espaço hermenêutico como intercessão.

16
―Potrei dire molto di più, ma per ora è sufficiente sottolineare che una qualsiasi sequenza da un videogioco
illustra bene sia l‘idea di una piccola storia spaziale sia quella di un senso corporeo che si sviluppa
dall‘interazione tra un soggetto (il personaggio controllato dal giocatore) e un ambiente. A sua volta, questo
senso viene proiettato all‘indietro, sull‘interazione tra il giocatore e il gioco stesso. Semplificando, la morte del
personaggio controllato dal giocatore (senso corporeo) diventa un‚ ho perso‛ (senso proposizionale). È qui che
l‘interfaccia assume un ruolo-chiave‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 1).
27

Fonte: Figura 2: ―Lo spazio ermeneutico come intersezione‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 5).

Há, à esquerda, o mundo do jogo e, à direita, o mundo do jogador. Entre eles, surge o
espaço hermenêutico e a interface seria o ponto de contato do jogador com o mundo do jogo –
e a estrutura através da qual ele pode construir sua compreensão através do mundo do jogo.
Caracciolo explica que a interface vai além do mundo do jogo e encontra o mundo do jogador.

Caracciolo também compreende a leitura do videogame como um processo de


significação hermenêutica em comparação com a leitura proposta por Wolfgang Iser. Para o
pesquisador, ―ler um texto narrativo e jogar um jogo de vídeo são atividades hermenêuticas.
Isso não significa, é claro, subestimar as diferenças entre eles, mas estamos apenas buscando
um terreno comum sobre o qual podemos delimitar essas diferenças‖17 (CARACCIOLO,
2011, p. 6).

Outro texto pertinente, intitulado ―Heavy Rain y Beyond: Dos almas. Dramas
Interactivos en la Narración Transmedia‖, de Jafet Israek Lara (2014), traz à tona discussões
marcantes sobre o que é leitura e texto nos parâmetros de um videogame. De partida, Lara
entende que é preciso estudar o videogame, assim como o texto, como um discurso, já que

ambos desempenham um papel substantivo, inseparável e inerente dentro da criação


ficcional, se superando entre si, pois o primeiro se configura no nível da
composição, dirigindo-se a um usuário; enquanto que o segundo é o resultado do
processo discursivo de interpretar o sentido já construído 18 (LARA, 2014, p. 132).

17
―[...] leggere un testo narrativo e giocare a un videogame sono attività ermeneutiche. Ciò non significa, è
ovvio, sottovalutare le differenze tra di loro, ma solo cercare un terreno comune su cui possiamo delimitare
queste differenze‖ (CARACCIOLO, 2011, p. 6).
18
―[...] ambos juegan um papel sustantivo, inseparable e inherente dentro de la creación ficcional uperponiéndo
se entre sí, pues el primero se configura em el nivel de la composición dirigiéndose a um usuario, mientras que el
segundo es el resultado del processo discursivo de interpretar el sentido ya construído‖ (LARA, 2014, p. 132).
28

Lara entende o texto do jogo como esta pesquisa, já que entende que o videogame
propõe uma sequência narrativa apreendida pelo usuário enquanto ele interage com as
estruturas propostas pelo designer. Define-se, portanto, que

[...] a interação discurso-texto dentro do videogame leva a defini-lo como um


cibertexto audiovisual na perspectiva linear e interativa em que a intervenção do
usuário é essencial para que o discurso apareça e possa ser modificado em virtude
das próprias regras do jogo, estabelecidas em um mundo narrativo transmidial
desenhado, e que condicionam a participação do usuário na experiência do jogo19
(LARA, 2014, p. 134).

Nossa proposição para o esquema é a seguinte:

Figura 02: Esquema comparativo de leitura de livro e de jogo.

Fonte: Imagem produzida para esta pesquisa.

A proposta é a de que há uma equivalência entre as interações autor x leitor e designer


x jogador. Essa ideia parte do pressuposto da Teoria da Recepção e se imiscui com as
pesquisas de Roger Chartier: o significado emerge de um jogo amplo. Incluiríamos neste

19
―Así pues, la interacción discurso-texto dentro del videojuego lleva a definirlo como um cibertexto audiovisual
no lineal e interactivo em el que la intervención del usuario es esencial para que el discurso aparezca y pueda ser
modificado em virtudde las propias reglas de juego, establecidas en el mundo narrativo transmedial diseñado, y
que condicionan la participación del usuario en la experiencia de juego‖ (LARA, 2014, p. 134).
29

esquema também o tradutor20 e o revisor de texto como responsáveis pela construção do


sentido do texto – assim como nas acepções de Chartier sobre a autoria de um trabalho.

A situação da autoria, conceito considerado de primazia e definidor do estatuto de obra


nos estudos literários, é problematizado por Chartier. O historiador considera a materialidade
como parte indissociável na produção do sentido do texto – assim sendo, todos os envolvidos
no processo de produção do suporte textual têm participação na autoria do texto.
Modificações feitas por editores, revisores, tipógrafos e outros agentes desestabilizam a figura
incólume do autor como único responsável pelo conteúdo de uma obra. Para ele, os autores
espanhóis do Século de Ouro tiveram essa consciência, porque ―o que está em jogo não é
somente a produção do livro, mas a do próprio texto, em suas formas materiais e gráficas‖
(CHARTIER, 2010, p. 21). Outras questões que estão em voga no momento desta produção
se estabelecem, por exemplo, em negociações ―entre a ordem do discurso que governa sua
escrita, seu gênero, seu estatuto, e as condições materiais de sua publicação‖ (CHARTIER,
2010, p. 22).

Assim sendo, quem é o mestre do sentido? Será ele o leitor, ―esse alguém que tem,
reunidos num mesmo campo, todos os vestígios do qual o escrito é constituído‖,
como o queira Roland Barthes? De fato, a mobilidade da significação é a segunda
instabilidade que preocupou ou inspirou os autores que nos fazem companhia
(CHARTIER, 2010, p. 23).

Depois das considerações sobre o autor, nada mais natural do que as considerações
sobre o leitor, figura que passa a ter o dever de revitalizar o sentido do texto a cada leitura.
Tais leituras – múltiplas – devem incluir ―a validade heurística da apropriação, que remete às
categorias intelectuais e estéticas dos diversos públicos, tanto quanto aos gestos, aos hábitos,
às convenções que pautam suas relações com os escritos‖ (CHARTIER, 2010, p. 23). Dessa
forma, o processo cognitivo para a emergência do sentido do texto ganha novos ares,
ampliando as postulações feitas pela Teoria da Recepção (e que serão mais bem discutidas
posteriormente). Apenas para estabelecer qual posicionamento pauta esta pesquisa,
concordamos com Chartier quando o autor afirma que ―as formas do escrito ou as
competências culturais dos leitores estreitam os limites da compreensão. Mas, sempre
igualmente, a apropriação é criadora, produção de uma diferença, proposta de um sentido
possível, porém inesperado‖ (CHARTIER, 2010, p. 25). É na interação com a obra que o

20
A tradução de um videogame se chama ―localização cultural‖ e pode ser feita, inclusive, com adaptações que
vão além do texto. ―Traduzem-se‖, de uma cultura para outra, os personagens, as roupas e a modelação do
design do jogo.
30

leitor faz emergir o significado da mesma (atualizado a cada leitura). Isso é possível graças à
decodificação, ou seja, uma interação guiada pelos dispositivos contidos no próprio objeto.
Entre a interação leitor e autor – intermediada pelo livro – emerge o sentido. O autor do livro
(e o editor, designer gráfico, revisor, tradutor etc) interage com a obra criando um objeto
cultural a ser lido. Esse objeto cultural possui dispositivos de leitura e está codificado; além
disso, a própria materialidade e os recursos gráficos que o compõem encerram possíveis
leituras. Esse autor, além disso, pertence a um contexto sócio, político, histórico, cultural e
econômico que influenciou o seu fazer. Do outro lado, o leitor, que, assim como o autor,
situa-se num contexto e faz parte de uma comunidade cultural.

Comparativamente, o designer do jogo de videogame é um indivíduo (ou grupo de


indivíduos) que, assim como o autor literário, não se configura como o único responsável pela
autoria da obra. Ele contextualiza tempo, espaço e, culturalmente, interage com o jogo,
criando um objeto cultural a ser lido. Esse objeto cultural possui dispositivos próprios de
leitura e se encontra decodificado; além disso, o designer trabalha para a produção da forma
como o jogo se materializa (o uso de um televisor, de um console e de um joystick, por
exemplo), desde o equipamento de hardware até a interface gráfica multimídia, na qual se
incluem texto, imagem, som, vibração e jogabilidade. Chamaremos de jogabilidade a
amplitude interativa proposta pelo designer para o jogo. Por exemplo: o jogo proporciona
sucesso caso o jogador aperte o botão e faça o personagem pular sempre que necessário,
avançando na tela e chegando ao final da narrativa. O jogador, também situado num contexto
cultural, econômico, social e histórico, interage com a obra (dentro do escopo permitido) e é o
corresponsável pelo sentido do videogame. Assim como ocorre com livros e filmes (e
qualquer outro objeto cultural) o sentido se atualiza cada vez que o videogame for jogado, e
isso só é possível a partir das contribuições entre designer e jogador tendo a mídia como
ponto de convergência.

A codificação do jogo projeta, a priori, a interação que o jogador poderá ter com a
interface do mundo virtual, a posteriori. Esse escopo de ações possíveis planejadas pelos
designers permite que o jogador interaja de certas formas (que não outras). Assim sendo, cada
videogame tem seu modo de jogar (sua jogabilidade) e uma progressão de dificuldade no
nível de tarefas possíveis dentro do escopo de possibilidades de interação. Além do avanço do
jogo (do sucesso, do desvelar narrativo), a jogabilidade estabelece que tipo de interação que o
jogador terá com o mundo virtual e implica uma lente para sua leitura, ou seja, também é um
componente a ser levado em conta na análise da compreensão do sentido do jogo (em
31

conjunto com os outros dispositivos da interface já apontados, compostos por texto, imagem,
vibração e som).

Videogames, segundo Grant Tavinor (2009), são criados para produzir experiências.
Essas experiências, segundo Espen Aarseth (1997), são ergódicas. Ergodicidade é o que faz o
jogo, através do seu código, ter objetivos e avaliar de que modo e quando o jogador os
cumpre. Miguel Sicart (2011, p. 3), que incorpora conceitos de Aristóteles para a leitura da
mecânica do jogo, explica que o jogo tem dois momentos: in potentia, ou ―adormecido‖, que
é quando o código está na mídia, e in actio, que é quando ele está em funcionamento. Dessa
forma, o artefato ergódico do jogo, a partir do código e do que sejam os critérios para o
sucesso, avalia se os jogadores conseguiram atingir as metas propostas ou não. Os artefatos
ergódicos são inseridos no código do jogo e são postos em atividade quando o jogo está em
funcionamento.

Discutamos, neste momento, a questão da ergodicidade e como esse fator interfere na


leitura. Ou seja: como o código, o alcance do sucesso dos desafios propostos (fatores
ergódicos) e a narrativa (ou o desenrolar) do jogo se imiscuem numa só trama? Proponho o
esquema a seguir:

Figura 03: Ramificação das possibilidades de avanço narrativo.

Compreendemos narrativa, designada com um traço ( __ ), como não só o próprio


desenrolar do jogo (ou seja, o início, o desenvolvimento, o clímax etc) – na verdade, a
narrativa é o relato do jogador sobre suas ações por meio do avatar, e essa é a compreensão
32

hermenêutica do jogador sobre o que é jogado. Cada ponto ( ● ) indica um elemento ergódico
que será encontrado pelo jogador e que receberá seu input. Caso o jogador tenha sucesso na
interação com o elemento ergódico (por exemplo, deverá abrir uma porta e, para abri-la, terá
que utilizar uma chave), ele prossegue no fio narrativo que dá continuidade à trama. Por outro
lado, caso não obtenha sucesso, poderá se encaminhar para outro percurso narrativo ou ter o
encerramento do jogo (com a morte do avatar).

Percebe-se, portanto, que não há liberdade real de interação do jogador com o mundo
do jogo: há possibilidades pré-estabelecidas que geram resultados conforme sucessos ou
insucessos no processo interacional – o que produz uma falsa impressão de liberdade. O que é
compreendido pelo jogador é o percurso narrativo do qual ele participa. Além disso,
compreende-se que o ato de criação de um jogo define o que é moral ou imoral no jogar, por
exemplo. O que é definido no código é que se tornará, posteriormente, uma narrativa. São os
artefatos ergódicos, ou seja, os pequenos desafios implantados aqui e ali durante todo o
percurso do jogo, que acionarão a sequência da história, dentre outras coisas. Por exemplo: Se
é preciso (ou possível) matar os reféns que estão na tela enquanto você os liberta, pode
indiciar o modo como os designers veem essas pessoas. Em Resident Evil 4, para Playstation
2, é possível matar os animais que estão no cenário. Quando isso ocorre, uma espécie de pedra
preciosa de valor ínfimo cai no chão. Esse elemento ergódico indicia uma premiação para um
ato violento, ou seja, o design do jogo é moral. Assim sendo, concorda-se com Luís Nogueira,
em Narrativas Fílmicas e Videojogos (2008), quando ele aponta que

[...] por um lado, todo o jogo é apresentado a um jogador através de um enredo; por
outro lado, todo o jogador inscreve as suas ações numa lógica de causa e feito típica
da ideia de história. Essa necessidade causal, que na primeira parte identificamos
como condição de inteligibilidade da ação, afigura-se, assim, como condição de
possibilidade quer da narratividade – pelos padrões que permite encontrar ao nível
da hermenêutica – quer da jogabilidade – pelos programas que permite delinear ao
nível do desempenho –, acabando por unir estes dois domínios. Esta dupla
narrativização do jogo teria como intuito final, para o jogador, uma espécie de
quimera narrativa: o que o jogador persegue e constrói para si próprio à medida que
joga é uma espécie de narrativa perfeita que lhe permita ganhar um jogo, um
domínio e harmonização absolutos das causas e dos efeitos, dos motivos e das
intenções, dos propósitos e das consequências, das decisões e das execuções – que
essa narrativa perfeita pareça sempre protelada, em consequência do erro, tal deve-se
ao facto de o jogo privilegiar o desafio como princípio. Daí que um jogo esteja,
como veremos depois, sempre em risco de ser perdido. E daí que, se o jogador
consegue desvelar (e implementar) essa narrativa perfeita, sob a forma de um
programa lúdico infalível, o jogo perca para ele qualquer interesse – carente de
mistério, dúvida, surpresa, risco ou dificuldade, nenhuma expectativa (e, logo,
nenhum desafio) resta ao jogador. Quer isto dizer que, do mesmo modo que
acontece na narrativa, também no jogo a previsibilidade de um desfecho inibe
qualquer desafio (2008, p. 100-101).
33

Concluímos esta sessão reafirmando que os estudos da história dos impressos, das
leituras e dos escritos nos são caros para a nossa concepção dos objetos a serem pesquisados,
porque

O cruzamento inédito de disciplinas durante muito tempo alheias umas às outras (a


crítica textual, a história do livro, a sociologia cultural) encerra assim um desafio
fundamental: compreender como as apropriações singulares e inventivas dos
leitores, dos auditores ou dos espectadores dependem, a uma só vez, dos efeitos de
sentido visados pelos textos, dos usos e significações impostos pelas formas de sua
publicação, e das competências e expectativas que comandam a relação que cada
comunidade de interpretação mantém com a cultura escrita (CHARTIER, 2010, p.
26).

Se hoje o videogame, assim como outras materialidades textuais e culturais, ainda não
é um objeto naturalmente abarcado pelos estudos literários (dentro de um horizonte de
pesquisa), isso se deve ao fato de que há um sistema de representações sobre o que é texto e
seus suportes de leitura. São categorias mentais, esquemas que produzem e fixam imagens da
realidade. Objetivamente, esta tese dá sequência à pesquisa da dissertação, intitulada
Literatura, Videogames e Leitura: intersemiose e multidisciplinaridade, e se preocupa em
estabelecer formas de leitura para o videogame com base em pressupostos teóricos dos
estudos textuais, dos game studies e de leitura. Assim sendo,

Várias hipóteses orientaram a pesquisa, fosse ela organizada a partir do estudo de


uma classe particular de objetos impressos [...], ou a partir do exame das práticas de
leitura, em sua diversidade, ou ainda a partir da história de um texto particular,
proposto a públicos diferentes em formas muito contrastadas. A primeira hipótese
sustenta a operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) como
um processo historicamente determinado cujos modos e modelos variam de acordo
com os tempos, os lugares, as comunidades. A segunda considera que as
significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das
quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes) (CHARTIER, 1991, p. 178).

Tais caminhos para estudos críticos nos interessam porque por meio deles podemos
entender os processos que tratam da leitura dos videogames como prática historicamente
determinada. Mas, além disso, somos forçados a perceber que o estudo dos videogames no
âmbito das Letras é parte do pensamento pós-moderno, assim como o próprio objeto o é. À
medida que nos aprofundamos nas possibilidades discursivas dessa mídia, encaminhamo-nos
para a compreensão das suas armadilhas.

O suposto esvaziamento expressivo do texto, provocado pelo tipo de interação que


essa mídia propicia, precisa ser revisado e duvidado. Parte da cultura midiática globalizada, o
videogame expandiu o poder da imagem, já supostamente extrapolado na pós-modernidade
34

em outros canais como a televisão e a fotografia. De maneira silenciosa, parece falar às várias
comunidades globais, de países na Europa Continental e América do Norte às populações
periféricas de países emergentes e culturalmente marginalizados da Ásia e África. Porém, de
maneira diferente de outras mídias de consumo, o videogame é produzido também fora do
eixo da cultura ocidental que prevaleceu como modelo de revolução industrial e de
colonização. Prossigamos para os estudos da pós-modernidade para que possamos discutir tais
conceitos de maneira mais intensa.

2.2 A PÓS-MODERNIDADE: ESTUDOS E CRÍTICAS

Em As Origens da Pós-Modernidade (1999), Perry Anderson explica que a pós-


modernidade surgiu como ideia, primeiramente, no mundo de cultura hispânica, por volta da
década de 1930. Foi apenas na década de 1950 que esse termo foi usado nos registros
anglófonos. A diferença entre a ocorrência do verbete ―pós-modernidade‖ hispânico e
anglófono é que, inicialmente, tratava-se de uma divisão cronológica; posteriormente, o termo
foi usado como forma de entender produções culturais que ofereciam desafios à crítica da
estética.

Para Anderson, o surgimento do que se pode dizer de uma ―estética pós-moderna‖,


assim como enxergada pela crítica, acontece com ―a ascensão de uma classe operária
industrial no Ocidente e o convite de sucessivas intelligentsias fora do Ocidente a dominar os
segredos da modernidade e voltá-los contra o mundo ocidental‖ (1999, p. 11). As classes,
antes delimitadas pelo Marxismo como proletariado e burguesia, passaram a se enxergar
como múltiplas (mulheres, negros, índios, colonizados etc.), além do cansaço com as
respostas científicas da modernidade para os anseios da sociedade. Segundo Jean-François
Lyotard em O Pós-Moderno, ―simplificando ao extremo, considera-se ‗pós-moderna‘ a
incredulidade em relação aos metarrelatos‖ (1986, p. xvi).

Há, portanto, em Anderson, uma crítica ao pensamento pós-moderno. Para o


pesquisador, a pós-modernidade parte do princípio do esgotamento das expectativas de
esquerda marxistas: ―uma época na qual os ideais modernos do liberalismo e do socialismo
tinham simplesmente falido, quando a razão e a liberdade se separaram numa sociedade pós-
moderna de impulso cego e conformidade vazia‖ (ANDERSON, 1999, p. 19). Assim sendo, a
pós-modernidade seria um momento vazio.
35

O que contribuiu para que as divisões de classes se tornassem cada vez menos claras,
segundo Anderson, foi a condição estável do pós-guerra. Essa diluição de classes parece,
portanto, incapaz de ―sustentar a tensão modernista‖ (1999, p. 19), que seria a ideia de
entender o percurso histórico, econômico e cultural da sociedade como sucessão de passos
evolutivos rumo ao equilíbrio. A tensão, portanto, é situada na necessidade de que a
humanidade caminhe para o avanço da ciência e das relações humanas. De acordo com Iná
Camargo Costa e Maria Elisa Cevasco, no prefácio da edição brasileira de 2004 de Pós-
Modernismo, de Fredric Jameson (2004), a perda de historicidade que deságua no pensamento
pós-moderno é causada pela ruptura com a lógica de progresso artístico (pp. 14-15).

Na década de 1960, a geração de jovens dos Estados Unidos sentiu a necessidade de


que houvesse expressões culturais que dessem voz a esse ―apelo à emancipação do vulgar e à
liberação dos instintos, como um eco prudentemente despolitizado da insurreição estudantil
da época‖ (ANDERSON, 1999, p. 19). Segundo Jameson, o início da pós-modernidade se dá
quando todas as práticas subversivas do modernismo são institucionalizadas e perdem sua
capacidade de chocar ou de provocar repulsa ―na época (parece que início dos anos 60) em
que a posição do modernismo radical e sua estética dominante se institucionalizaram na
Universidade, quando passaram a ser considerados acadêmicos por toda uma geração de
poetas, pintores e músicos‖ (JAMESON, 1985, p. 26). Porém, a força da pós-modernidade,
segundo o autor, reside de forma pungente na fase em que o capitalismo se torna global.

A noção de pós-modernidade apenas ganharia difusão ampla depois dos anos 1970,
com o pensamento de Ihab Hassan. Para Anderson, o pós-modernismo começou a ser
encarado como um escopo no qual vários aspectos estéticos poderiam ser abarcados,
―tendências que ou radicalizavam ou rejeitavam as principais características do modernismo:
uma configuração que se estendia às artes visuais, à música, à tecnologia e à sensibilidade em
geral‖ (ANDERSON, 1999, p. 25). Para o autor, os estudos desenvolvidos por Hassan foram
importantes, pois estendiam o espectro pós-moderno à crítica de todas as formas artísticas (p.
27).

De acordo com Anderson, com a chegada dos anos 1980, Charles Jencks observou que
as cidades pareciam-se mais colagens de diversos momentos arquitetônicos na história.
Partindo deste prisma, Jencks enxergou a pós-modernidade como uma

tolerância pluralista [...], uma civilização que ―tornava sem sentido‖ polaridades
ultrapassadas como ―esquerda e direita; capitalista e classe operária‖. Numa
sociedade em que a informação importava agora mais que a produção, ―não há mais
vanguarda artística‖, uma vez que ―não há inimigo a derrotar‖ na rede eletrônica
36

global. Nas condições emancipadas da arte atual, ―há em vez disso inúmeros
indivíduos em Tóquio, Nova York, Berlim, Londres, Milão e outras cidades
mundiais que se comunicam e competem, assim como estão no mundo financeiro‖
(What is Post-Modernism?, Londres, 1986, p. 44-8). Era de se esperar que de suas
criações caleidoscópicas emergisse ―uma ordem simbólica comum do tipo fornecido
por uma religião‖ (p. 43) – Compromisso último do pós-modernismo.
(ANDERSON, 1999, pp. 30-31).

A informação, acima da produção, torna-se, portanto, bem mais caro na sociedade pós-
moderna – há uma rede plural globalizada que congrega diversas vozes sincréticas que se
sobrepõem umas às outras em diversas esferas culturais. Segundo Lyotard, há duas formas de
saber: a positivista e a hermenêutica. A forma positivista inquire com mais simplicidade e
objetividade do que a forma hermenêutica. Essa metodologia encontra sua utilidade com mais
facilidade nos métodos e materiais utilizados para fins produtivos. Assim sendo, tal forma de
saber é indispensável. A forma hermenêutica, por outro lado, inquire em busca de reflexões e
críticas sobre a importância ou a finalidade das coisas (LYOTARD, 1986, p. 24).

Pelo fato da maneira positivista chegar a resultados mais produtivos de modo mais
objetivo, Lyotard prossegue em suas reflexões, entendendo que decisões gerenciais, portanto,
passariam a ser tomadas por autômatos. Computadores, alimentados por dados, são capazes
de tomadas de decisão mais imediatas e produtivas, sendo fundamental apenas que seus
sistemas sejam supridos com informações21.

A partir desse raciocínio, Lyotard declara que os dirigentes, que gerenciam empresas e
órgãos governamentais, não serão mais políticos tradicionais, mas administradores
especializados – eles seriam os responsáveis por gerir as máquinas e interpretar seus dados
(1986, p. 27). Esse conhecimento, que são informações que circulam nesses redutos do poder,
é burocratizado; ou seja, para que possa ser absorvido no âmbito institucional, denotando o
que é admissível ou não nos discursos, ele deve seguir certos parâmetros formais. Assim
sendo, instituições diferem de discussões porque requerem

pressões suplementares para que os enunciados sejam declarados admissíveis em seu


seio. Estas pressões operam como filtros sobre os poderes de discursos, eles
interrompem conexões possíveis sobre as redes de comunicação: há coisas que não
devem ser ditas. E elas privilegiam certos tipos de enunciados, por vezes um único,
cuja predominância caracteriza o discurso da instituição: há coisas que devem ser
ditas e maneiras de dizê-las (LYOTARD, 1986, p. 31).

21
Cito livremente o filme Jogos de Guerra (1987), de John Badham. No longa-metragem, um computador é
utilizado para vigilância e supervisão do sistema bélico dos exércitos dos Estados Unidos da América após
alguns controladores terem problemas em seguir ordens. O computador tem um banco de dados e é capaz de
calcular movimentos de guerra antecipadamente. Dessa forma, passa a ser utilizado para a tomada de decisões.
37

Lyotard enxerga o conhecimento como um conjunto de enunciados sobre algo. Esse


conjunto de enunciados só pode ser validado quando encadeado em condições aceitáveis: que
seja possível verificar o que está sendo dito e que a forma de se dizer seja adequada –
institucionalizada, burocratizada. Caso o enunciado seja narrativo e não verificável, é
classificado por cientistas como ―selvagem, primitivo, subdesenvolvido, atrasado, alienado,
feito de opiniões, de costumes, de autoridade, de preconceitos, de ignorâncias, de ideologias.
Os relatos são fábulas, lendas, mitos bons para mulheres e as crianças‖ (LYOTARD, 1986, p.
46). De acordo com Lyotard, essa desacreditação faz parte do jogo das civilizações, como
quando o imperialista julga o colonizado como atrasado. A questão, segundo ele, é a busca
pela legitimação: ―nesta perspectiva, o verdadeiro saber é sempre um saber indireto, feito de
enunciados recolhidos, e incorporados ao metarrelato de um sujeito que assegura-lhe a
legitimidade‖22 (LYOTARD, 1986, p. 46).

Entendendo que a verificação da prova se torna forma de autenticar os enunciados,


Lyotard estabelece a conexão do conhecimento com o dinheiro: é preciso que haja recursos
para que equipamentos produzam provas verificáveis sobre os conhecimentos produzidos.

O que se produz ao final do século XVIII, quando da primeira revolução industrial, é


a descoberta da recíproca: não há técnica sem riqueza, mas não há riqueza sem
técnica. Um dispositivo técnico exige um investimento; mas visto que otimiza a
performance à qual é aplicado, pode assim otimizar a mais-valia que resulta desta
melhor performance. Basta que esta mais-valia seja realizada, quer dizer, que o
produto da performance seja vendido. E pode-se bloquear o sistema da seguinte
maneira: uma parte do produto desta venda é absorvida pelo fundo de pesquisa
destinado a melhorar ainda mais a performance (LYOTARD, 1986, p. 81).

Quando o conhecimento é capaz de otimizar alguma performance (ou seja, quando ele
é útil), é rentável; portanto, tem status de imprescindível em financiamentos, que podem ser
privados ou estatais. Dessa forma, se antes o conhecimento carecia de burocratização e
verificação para se legitimar, ao final do século XVIII é a performance do conhecimento que
assegura o seu valor. Assim,

o que está em questão não é a verdade, mas o desempenho, ou seja, a melhor relação
input/output. O estado e/ou a empresa abandona o relato de legitimação idealista ou
humanista para justificar a nova disputa: no discurso dos financiadores de hoje, a
única disputa confiável é o poder. Não se compram cientistas, técnicos e aparelhos
para saber a verdade, mas para aumentar o poder (LYOTARD, 1986, p. 83).

22
Ver as notas da autora.
38

Portanto, nos jogos de linguagem descritos por Lyotard, o de nível técnico, cuja ordem
é a do eficiente e não eficiente, acaba por sobrepujar os níveis denotativos e prescritivos
(verdadeiro/falso e justo/injusto) (LYOTARD, 1986, p. 83). O resultado disso é a divisão do
orçamento para pesquisas, que segue a lógica do aumento do poder: quanto mais técnica, mais
performance, mais lucro, mais poder; ou seja, ―o critério de bom desempenho é
explicitamente invocado pelas administrações para justificar a recusa de apoiar este ou aquele
centro de pesquisas‖ (LYOTARD, 1986, p. 85). Na pós-modernidade, o conhecimento não é
mais um bem em si mesmo; ele apenas pode se justificar sobre sua utilidade. Assim sendo,
―no contexto da mercantilização do saber, essa última questão significa comumente: isso é
vendável? E, no contexto do aumento do poder: isso é eficaz?‖ (LYOTARD, 1986, p. 93).
Segundo Anderson, ―para Lyotard, a chegada da pós-modernidade ligava-se ao surgimento de
uma sociedade pós-industrial [...], na qual o conhecimento tornara-se a principal força
econômica de produção‖ (1999, p. 32). E, finalmente, para Lyotard, as metanarrativas

[...] foram desfeitas pela evolução imanente das próprias ciências: por um lado,
através de uma pluralização de argumentos, com a proliferação do paradoxo e do
paralogismo – antecipados na filosofia por Nietzsche, Wittgenstein e Levinas; e, por
outro lado, por uma tecnificação da prova, na qual aparatos dispendiosos
comandados pelo capital ou pelo Estado reduzem a ―verdade‖ ao desempenho. A
ciência a serviço do poder encontra uma nova legitimação na eficiência. Mas o
autêntico pragmatismo da ciência pós-moderna está não na busca do performático,
mas na produção do paralogístico – na microfísica, os fractais, as descobertas do
caos, ―teorizando sua própria evolução como descontínua, catastrófica, incorrigível e
paradoxal‖ (The Postmodern Condition, Minneapolis, 1984, p. 60). Se o sonho do
consenso é uma relíquia da nostalgia da emancipação, as narrativas como tais não
desaparecem, mas se tornam miniaturas e competitivas: ―a pequena narrativa
continua sendo a quintessência da invenção imaginativa‖ (The Postmodern
Condition, p. 60). Seu análogo social, onde termina A condição pós-moderna, é a
tendência para o contrato temporário em todas as áreas da existência humana: a
ocupacional, a emocional, a sexual, a política – laços mais econômicos, flexíveis e
criativos que os da modernidade (ANDERSON, 1999, pp. 32-33).

De fato, as proposições de Lyotard explicam essa ideia: ―o saber muda de estatuto na


idade pós-industrial e na cultura pós-moderna‖ (LYOTARD, 1986, p. 3). Mas não é esse o
filtro com o qual Anderson enxerga a efígie cultural. Para ele, as metanarrativas perdidas são
a Revolução Francesa, que ―colocava a humanidade como agente heroico de sua própria
libertação através do avanço do conhecimento‖, e o Idealismo Alemão, que ―via o espírito
como progressiva revelação da verdade‖ (ANDERSON, 1999, p. 32). Ambos os mitos
justificam o pensamento na modernidade. Segundo Linda Hutcheon, o conceito de
modernidade não existe separadamente de conceitos como união e universalidade. Segundo a
autora, foi isso o que Lyotard quis dizer com ―metanarrativa‖ (HUTCHEON, 2000, p. 23).
39

Para Anderson, Lyotard ―deixou de fora‖ (1999, p. 34), em sua tentativa de entender o
conhecimento na pós-modernidade, as artes e a política. De acordo com o autor, tanto Lyotard
quanto Habermas teriam falhado em apresentar uma teorização que abarcasse o contexto
espaço-tempo, com falhas em explicar apropriadamente, no caso de Lyotard, a
―deslegitimação das grandes narrativas‖ e, no caso de Habermas (apud ANDERSON, 1999, p.
52), ―a colonização do mundo da vida‖. Fredric Jameson observou o

conflito estético entre o realismo e o modernismo [...], mas o capitalismo do


consumo do pós-guerra afastou a possibilidade de qualquer uma das duas, com a
indústria do entretenimento zombando das esperanças de Brecht e Benjamin e uma
cultura dominante mumificando os modelos de Adorno (ANDERSON, 1999, p. 59).

O tempo presente seria, então, um momento em que o pensamento e a estética do


realismo e do modernismo não parecem estar de acordo. O problema do realismo está no fato
de que se relaciona com um tipo de vida que não faz parte da sociedade do consumo. Por
outro lado, o modernismo tem contradições muito mais pungentes que o realismo. As brechas
que se abrem entre as duas possibilidades estéticas são ocupadas confortavelmente pelo pós-
modernismo. Nesta medida, ―o realismo e o modernismo devem ser vistos como expressões
históricas específicas e determinadas do tipo de estruturas socioeconômicas às quais
correspondem, a saber, o capitalismo clássico e o capitalismo de consumo‖ (JAMESON,
1975, p. 242, apud ANDERSON, 1999, p. 50). Para Anderson, ―não mais uma mera ruptura
estética ou mudança epistemológica, a pós-modernidade torna-se o sinal cultural de um novo
estágio na história do modo de produção reinante‖ (1999, p. 66). Essa sociedade do consumo
é, para Anderson, um ―novo momento do capitalismo multinacional‖ (ANDERSON, 1999, p.
66).

O poder do capitalismo na economia da informação, como postulado por Lyotard,


encontra respaldo na ideia da eficiência e da tecnologia como justificativas para o discurso e
formas de poder, pois as multinacionais globalizadas exploram ―a explosão tecnológica da
eletrônica moderna e seu papel como principal fonte de lucro e inovação‖ (ANDERSON,
1999, p. 66). Concordamos com Anderson, já que a crítica deve se preocupar em entender
―quais foram as consequências dessa mudança no mundo objetivo para a experiência do
sujeito‖ (ANDERSON, 1999, p. 67).

Uma dessas mudanças se encontra na questão tempo x espaço; na pós-modernidade,


segundo Anderson, o tempo estaria sobrepujando-se ao espaço, causando desequilíbrio.
Ocorre que as fronteiras estariam cada vez mais próximas devido ao encurtamento das
40

viagens, transações comerciais e sociais (possibilitados pela eficiência tecnológica dos meios
de transporte e de comunicação). Para o autor, o resultado é uma histeria que se contrapõe à
esquizofrenia, um exterior insensível com um interior fragmentado – tais imagens identitárias
são oportunamente esmiuçadas por Stuart Hall em A Identidade Cultural na Pós-
Modernidade.

Anderson entende que essa velocidade, alinhada à fragmentação, fez com que o vídeo
fosse a mídia da pós-modernidade (1999, p. 71). A fragmentação, por outro lado, tem uma
faceta positiva: torna a pós-modernidade mais democrática, já que ―a época das grandes
assinaturas individuais e obras-primas do modernismo estava encerrada‖ (ANDERSON,
1999, p. 76). O pós-modernismo é ―o éter cultural de um sistema global que rejeitava todas as
divisões geográficas‖ (ANDERSON, 1999, p. 87), ―uma época que cessaria o domínio
ocidental‖ e ―um momento em que o oriente e o terceiro mundo colonizam e são incluídos
culturalmente no imaginário cultural do ocidente‖ (ANDERSON, 1999, p. 88).

Esse pós-modernismo, que emergiu no início dos anos 1970, é a lógica cultural do
capitalismo avançado (ANDERSON, 1999, p. 93).

O pós-modernismo pode ser visto como um campo cultural triangulado, por sua vez,
em três novas coordenadas históricas. A primeira delas está no destino da própria
ordem dominante. [...] Uma segunda condição pode se relacionar à revolução da
tecnologia. [...] Uma terceira coordenada da nova situação está, claro, nas mudanças
políticas da época (ANDERSON, 1999, p. 100, 102, 108).

Assim, pode-se perceber que a degradação da ordem dominante é causada por uma
queda do establishment acadêmico. A TV entra como um ―divisor de águas tecnológico do
pós-moderno: ―[...] Outrora, em júbilo ou alarmado, o modernismo era tomado por imagens
de máquinas; agora, o pós-modernismo é dominado por máquinas de imagens‖
(ANDERSON, 1999, pp. 104-105). Finalmente, essa mudança política se caracteriza quando
―a modernidade chega ao fim, como observa Jameson, ao perder todo o contrário‖
(ANDERSON, 1999, p. 108). Ocorre que não há mais polarizações com a diluição das classes
e dos movimentos, completamente pulverizados.

Como, então, pode ser resumida a conjuntura pós-moderna? Uma comparação


capsular com o modernismo poderia ser a seguinte: o pós-modernismo surgiu da
combinação de uma ordem dominante desclassificada, uma tecnologia midiatizada e
uma política sem nuances (ANDERSON, 1999, p. 108).
41

Dialogando com o que Lyotard (1986) pontua como poder da informação pelo lucro,
Anderson acredita que o poder financeiro da informação aliada à tecnologia midiatizada é o
rosto da pós-modernidade.

A cultura pós-moderna não é apenas um conjunto de formas estéticas, é também um


pacote tecnológico. A televisão, que foi tão decisiva na passagem para uma nova
época, não tem passado modernista, e tornou-se o mais poderoso meio de todos no
próprio período pós-moderno. Mas esse poder é muito maior – muito maior que o
impacto de todos os outros somados – no antigo Terceiro Mundo que no próprio
Primeiro (ANDERSON, 1999, p. 140).

Traços desse capitalismo avançado, pós-industrial, multinacional e midiático, segundo


Jameson, são:

Novos tipos de consumo, obsolescência programada, um ritmo ainda mais rápido de


mudanças na moda e no styling, a penetração da propaganda, da televisão e dos
meios de comunicação em grau até agora sem precedentes e permeando a sociedade
inteira, a substituição do velho conflito cidade e campo, centro e província, pela
terceirização e pela padronização universal, o crescimento das grandes redes de
autoestradas e o advento da cultura do automóvel (JAMESON, 1985, p. 26).

As criações culturais são múltiplas – e não podem mais ser divididas em categorias de
classes ou binarismos. Segundo Anderson, a primeira obra a observar tais fenômenos é A
Condição Pós-Moderna, de Jean-François Lyotard.

As imagens colonizaram culturalmente as economias emergentes, pintando


representações de um mundo distante. Concorda com isto Hall, quando diz que

as pessoas que moram em aldeias pequenas, aparentemente remotas, em países


pobres, do ―Terceiro Mundo‖, podem receber, na privacidade de suas casas, as
mensagens e imagens das culturas ricas, consumistas, do Ocidente, fornecidas
através de aparelhos de TV ou de rádios portáteis, que as prendem à ―aldeia global‖
das novas redes de comunicação (HALL, 2006, p. 74).

Pode-se concluir que a imagem midiatizada, eletrônica, é o canal através do qual o


poder da informação alcança o consumidor e o seduz. A pós-modernidade é o momento no
qual o conhecimento só pode ser útil se servir para aumento do poder – e o poder é ser
vendável. Assim, justifica-se o poder da informação como lucrativa na era da pós-
modernidade.

Ao mesmo tempo em que reduz as distâncias e congrega as nações em torno da


alienação produzida por imagens mediadas pelo aparelho de televisão, o capitalismo global
cumpre a agenda pensada por Toynbee, como se criasse uma fé única e sincrética entre os
42

povos. Tal efeito é produzido pelo apagamento de ―fronteiras entre o percebido e o


representado‖ (ANDERSON, 1999, p. 141). Como que profeticamente, Anderson explica que
―enquanto prevalecer o sistema do capital, cada novo avanço da indústria da imagem aumenta
o raio de alcance do pós-moderno. Nesse sentido, pode-se dizer, seu predomínio global está
praticamente predestinado‖ (ANDERSON, 1999, p. 141).

O poder das imagens no capitalismo global é um dos assuntos discutidos por Linda
Hutcheon, em The politics of Postmodernism (2000). Essa excessiva exploração imagética,
típica do pós-modernismo, oferece um retorno à figuração nas artes e na ficção
(HUNTCHEON, 2000, p. 7). Na verdade, Hutcheon acredita que o exagero no uso de imagens
corrobora a ideia de que há um consenso sobre o poder das representações: elas ―não refletem
a sociedade tanto quanto dão sentido e o valor de uma sociedade em particular‖23
(HUNTCHEON, 2000, p. 8, grifos da autora). O problema é o paradoxo que gira em torno da
questão das representações: ―por um lado, há um senso de que nós nunca poderemos nos
libertar do peso de uma longa tradição de representações visuais e narrativas e, por outro,
parece que nós estamos perdendo a fé na inesgotabilidade e poder dessas representações‖24
(HUTCHEON, 2000, p. 8).

De acordo com Hutcheon, a pós-modernidade é um momento de ―desconfiança em


ideologias de poder e uma suspeita geral no poder da ideologia, específicas e historicamente
determinadas‖25 (HUTCHEON, 2000, p. 10). Afinal, o sentimento da pós-modernidade parece
permeado por questões como:

Em quais instituições a fé será restaurada? Nos interesses de quem essa restauração


será feita? Será que estas instituições merecem a nossa fé? Elas podem ser mudadas?
Deveriam ser? Mesmo que o pós-modernismo não possa oferecer nenhuma resposta,
talvez valha a pena fazer tais questionamentos26 (HUTCHEON, 2000, p. 15).

Segundo Hutcheon na obra já citada, o problema com a crítica e a discussão de


produções pós-modernas está na dificuldade em se encontrar definições com as quais os

23
―[...] do not reflect society so much as grant meaning and value within a particular society‖ (HUNTCHEON,
2000, p. 8, grifos da autora).
24
―On one hand, there is a sense that we can never get out from under the weight of a long tradition of visual and
narrative representations, and, on the other hand, we also seem to be losing faith in both the inexhaustibility and
power of those existing representations‖ (HUTCHEON, 2000, p. 8).
25
―[…] a specific and historically determined distrust of ideologies of power and a more general suspicion of the
power of ideology‖ (HUTCHEON, 2000, p. 10).
26
―In whose institutions will faith be restored? In whose interest will such a restoration be? Do these institutions
deserve our faith? Can they be changed? Should they be? While postmodernism may offer no answers, these are
questions perhaps worth asking‖ (HUTCHEON, 2000, p. 15).
43

estudiosos concordem. Não há consenso na interpretação dos sinais da pós-modernidade e


tampouco de quais indícios materiais podem ser analisados. Para Hutcheon, a questão é a
representação: vista, por um lado, como um reflexo da realidade (e não como componente
constitutivo da mesma), e a questão do homem como centro da representação
(HUNTCHEON, 2000, p. 17). Algo, segundo a autora, muito difícil porque é preciso sair das
representações para observá-las, inclusive porque tais cristalizações não são politicamente
imparciais. Mesmo o olho por trás da imagem da câmera tem gênero.

Representações são produtivas: fotografias, longe de meramente reproduzirem um


mundo pré-existente, constituem um discurso altamente codificado que, entre outras
coisas, constroem o que está na imagem como objeto de consumo – o consumo pelo
olhar, assim como, literalmente, o consumo de compra. Não é por acaso, portanto,
que em muitas formas socialmente visíveis (e rentáveis) de fotografia as mulheres
dominam a imagem. Ao mesmo tempo em que fotografia tem como mote as
mulheres, ela também constrói a ―mulher‖ como um conjunto de significados que,
em seguida, começa a circular cultural e economicamente por conta própria27
(KUHN, 1985, p. 19, apud HUTCHEON, 2000, p. 22).

Para Jameson, seria possível ―sair‖ do universo cultural pós-moderno para estudá-lo,
de maneira que enxergaríamos uma macroestrutura dentro da qual fosse possível observar os
fenômenos desse estilo de vida do capitalismo globalizado. Jameson acredita na totalização
para escapar da alienação causada pela enorme fragmentação teórica. O desafio seria
entender, através de um exame geral, como a estrutura socioeconômica opera. Segundo Costa
e Cevasco,

a questão não é arbitrar, mas enfrentar o pós-modernismo como um componente do


estágio atual da história, e investigar suas manifestações culturais – como o vídeo, o
cinema, a literatura, a arquitetura, a retórica sobre o mercado – não só como veículos
para um novo tipo de hegemonia ideológica, a que é funcional para o novo estágio
do capitalismo globalizado, mas também como figurações que permitem ao crítico
de cultura destrinchar os germes de ―novas formas do coletivo, até hoje quase
indispensável‖ (JAMESON, Fredric. Signatures of the visible. Nova Iorque:
Routledge, 1991, p. 56) (COSTA; CEVASCO, 2004, p. 7).

Jameson não parece enxergar a cultura pós-moderna com otimismo, já que lhe parece
um misto de ―pastiche e esquizofrenia‖ (1985, p. 18). Para o autor, ―tanto pastiche quanto
paródia envolvem imitação ou, melhor ainda, o mimetismo de outros estilos, particularmente

27
―Representations are productive: photographs, far from merely reproducing a pre-existing world, constitute a
highly coded discourse which, among other things, construct whatever is in the image as object of consumption –
consumption by looking, as well as often quite literally by purchase. It is no coincidence, therefore, that in many
highly socially visible (and profitable) forms of photography women dominate the image. Where photography
takes women as its subject matter, it also constructs ―woman‖ as a set of meanings which then enter cultural and
economic circulation on their own account‖ (KUHN, 1985, p. 19, apud HUTCHEON, 2000, p. 22).
44

dos maneirismos e tiques estilísticos de outros estilos [...]. O pastiche é paródia lacunar,
paródia que perdeu seu senso de humor‖ (JAMESON, 1985, p. 18). Tal possibilidade é
desdobramento da queda do autor: já que qualquer um pode se apropriar do discurso do outro,
nada novo pode ser criado, então a história da estética se acabou. A sensação de esquizofrenia
é causada pela quebra na temporalidade do discurso, como se quem fala não soubesse
exatamente o que narrar – é como se houvesse um conjunto de imagens colocadas em
sequência, sendo mudadas rapidamente. Faltaria causalidade e sequência no encadeamento
narrativo. No que a pesquisa tem nos dado a ver, a produção cultural humana é bem mais rica
do que a concepção de ―pastiche‖ que Jameson implica, pois há uma inventividade criativa e
uma intenção crítica, que muitas vezes se confundem com simples imitação, mas que fazem
da paródia mais um comentário ácido sobre o texto original do que uma cópia distorcida.

Hutcheon desconfia dessa nuvem ideológica como manifestação da ação persuasiva do


sistema capitalista, já que acredita que essas práticas culturais surgidas no pós-modernismo
têm como fator constituinte a certeza de que estão implicadas nesse jogo do consumo. Para
ela, o que há de paródico e irônico no pós-moderno é fruto de exploração e comentário crítico
sobre como não podemos escapar da história da representação humana (2000, p. 55).

O que Jameson acredita ser um passo para trás no pós-modernismo, que seria a cultura
de massa sobrepujando a cultura erudita, é talvez uma das possibilidades mais importantes da
pós-modernidade. É o que há de mais desprendido e autêntico no movimento: a possibilidade
de emancipação e de participação de artistas de culturas marginais (que estão fora do eixo
norte-americano/europeu) na mídia e no mercado de proporção global. Ao passo que perdem
sua identidade (já que esta acaba por deixar de ser local e passa a ser mediada através de
representações que se diluem no imaginário de outras culturas), os objetos culturais passam a
fazer parte de uma unidade social globalizada. A era da vida mediada por imagens ultrapassa,
segundo Hutcheon, a Era da Reprodutibilidade Técnica de Benjamin (2000, p. 29), porque
lida com a crise das representações. A pesquisadora reflete bem a problemática quando se
pergunta:

Alguma vez já tivemos contato com o ―real‖ que não através de representações? Nós
podemos ver, escutar, sentir, cheirar e até tocá-lo, mas nós o conhecemos no sentido
em que o significamos? Nas palavras sucintas de Lisa Tickner, o real é ―possível
45

através de sistemas de signos organizados em discursos no mundo‖ 28 (HUTCHEON,


2000, p. 31).

Para Hutcheon, a assimilação daquilo que enxergamos com nossos olhos, ou seja, a
realidade imediata, depende da forma como o mundo nos é descrito. O ―real‖ só pode ser
identificado e apropriado discursivamente. Não há, segundo a pesquisadora, nada de ―natural
sobre o ‗real‘ e nunca houve – mesmo antes da existência da mídia de massa‖29
(HUTCHEON, 2000, p. 29). Por isso, Hutcheon não entende a pós-modernidade como um
momento em que a realidade é inflada, ―não é uma degeneração para a ‗hiper-realidade‘, mas
um questionamento do que a realidade pode significar e como nós podemos conhecê-la‖30
(HUTCHEON, 2000, p. 32). Logo, não há risco de que toda a cultura pós-moderna possa ser
interpretada por Hutcheon como paródia ou pastiche: esses tabus que ecoam as expectativas
ligadas à originalidade e ―aura‖ evocadas por Benjamin deixam de fazer sentido quando se
leva em conta o fato de que qualquer produção é uma ―reapropriação de representações já
existentes‖31 (HUTCHEON, 2000, p. 33).

O problema é que o establishment artístico, segundo a autora, é ainda,


majoritariamente, modernista. Na verdade, todos os códigos, modos de enxergar narrativas, a
maneira como nos aproximamos de objetos culturais e como lidamos com eles, ou seja, o
modo com o qual lidamos com a realidade ainda é moderno. Segundo Hutcheon, a realidade
não é igual à representação que se faz dela, assim como tudo o que é produzido pelo
―maquinário representacional‖ (HUTCHEON, 2000, p. 36). Uma foto não é um retrato da
realidade, ela é uma ―janela (com frequência rachada) para a realidade‖ (HUTCHEON, 2000,
p. 36). Essa possibilidade que se abre na pós-modernidade faz com que a mentalidade autoral
rua completamente; acaba-se ―a crença em um eu consciente que gera textos, significados e
uma identidade substancial32‖ (STIMPSON, 1988, p. 236, apud HUTCHEON, 2000, p. 36).

28
―Have we ever known the ―real‖ except through representations? We may see, hear, feel, smell, and touch it,
but do we know it in the sense that we give meaning to it? In Lisa Tickner‘s succinct terms, the real is ―enabled
to mean through systems of signs organized into discourses on the world‖ (HUTCHEON, 2000, p. 31).
29
―There‘s nothing natural about the ―real‖ and there never was – even before the existence of mass media‖
(HUTCHEON, 2000, p. 29).
30
―[...] (it) Is not a degeneration into ‗hiperreality‘ but a questioning of what reality can mean and how we can
come to know it‖.
31
―Reappropriation of already existing representations‖ (HUTCHEON, 2000, p. 33).
32
―[...] the theory that representational machineries were reality‘s synonyms, not a window (often cracked) onto
reality, eroded the immediate security of another lovely gift of Western humanism: the belief in a conscious self
that generates texts, meanings, and a substantial identity‖ (STIMPSON, 1988, p. 236, apud HUTCHEON, 2000,
p. 36).
46

Esse conceito de identidade, segundo o qual o pensamento de Hutcheon se constrói,


anda de mãos dadas com a mentalidade expressa por Stuart Hall referida anteriormente.
Nunca fixa ou independente, seja cultural, histórica, socialmente, política ou
economicamente, seja

de gênero, subjetiva, fincada também em classe, raça, etnia e orientação sexual. E


normalmente é a autorreflexão textual que paradoxalmente chama esses termos de
particularidades a nossa atenção, enfatizando a doxa, as políticas desconhecidas, por
trás de representações dominantes do eu – e do outro – em imagens visuais ou
narrativas33 (HUTCHEON, 2000, p. 37).

Para Hutcheon, faz parte do jogo expressivo da estética pós-moderna a expectativa de


desnaturalizar a realidade modernista, abalando a representação imagética e narrativa da
mesma. A aparente ―transparência‖ como expectativa da retratação do real figura como
tentativa de fixar um olhar. A visão pós-moderna observa a representação da realidade como
uma construção e não como um reflexo. A fotografia, segundo a autora, é a mídia mais
ambivalente: se por um lado, parece transfiguração tecnicamente inocente do real (evidente),
por outro, esconde – por isso mesmo – a codificação embutida em sua produção. Pretende-se
―descodificada‖ (p. 41).

Se o fotógrafo pós-moderno é mais um manipulador de signos do que produtor de


um objeto artístico e o espectador é mais um decodificador ativo de mensagens do
que um consumidor passivo ou contemplador de beleza estética (Foster, 1985, p.
100), a diferença é a da política da representação. No entanto, a fotografia pós-
moderna trata abertamente, na maioria das vezes, de representação da política
também34 (HUTCHEON, 2000, p. 42).

Ou seja, a representação cristaliza uma visão de mundo e a atividade do artista pós-


moderno seria a crítica às ideologias das representações.

Retomamos, neste momento, a tentativa de Jameson em totalizar a interpretação do


pós-moderno, quando ele diz que ―a questão não é arbitrar, mas enfrentar o pós-modernismo
como um componente do estágio atual da história‖ (1991, p. 7), afinal, ―toda interpretação
deve incluir uma interpretação de sua própria existência‖ – portanto, sendo necessário

33
―It is always a gendered subjectivity, rooted also in class, race, ethnicity, and sexual orientation. And it is
usually textual self-reflexivity that paradoxically calls these worldly particularities to our attention by
foregrounding the doxa, the unacknowledged politics, behind the dominant representations of the self– and the
other – in visual images or in narratives‖ (HUTCHEON, 2000, p. 37).
34
―If the postmodern photographer is more the manipulator of signs than the producer of an art object and the
viewer is more the active decoder of messages than the passive consumer or contemplator of aesthetic beauty
(Foster 1985: 100), the difference is one of the politics of representation. However, postmodern photography is
often overtly about the representation of politics too‖ (HUTCHEON, 2000, p. 42).
47

―historicizar sempre!‖ (JAMESON, 1991, p. 9). Para o teórico, é preciso observar os


fenômenos fora de sua fragmentação e dentro de uma macroestrutura social, histórica e
política.

Na verdade, esse seria o verdadeiro desafio dos estudos críticos, de modo a evitar
armadilhas ideológicas na observação dos fenômenos culturais. Em oposição a isso, Hutcheon
acredita que a narrativa é, por si só, um conceito ideológico. Assim, a totalização como
possibilidade de crítica se torna um desafio (2000, p. 59), já que se baseia na narrativa
historicizada, com começo, meio e fim. As técnicas e os materiais utilizados para cunhar a
história são todos fundamentados em representações de narrativas – coerentes, unificadas,
causais, processuais etc.

―Tudo deve ser recapturado e realocado no modelo geral de história, então apesar
das dificuldades, dos paradoxos fundamentais e contradições, nós podemos respeitar
a unidade da história que é também a unidade da vida‖ (BRAUDEL, 1982, p. 16). A
representação narrativa totalizadora também tem sido considerada por alguns
críticos como a característica definidora do romance como um gênero, desde seu
início, claramente explícita em controlar e ordenar (e ficcionalizar) de Cervantes e
Sterne35 (BRAUDEL, 1982, p. 16, apud HUTCHEON, 2000, p. 60).

O desejo de preservar a visão crítica totalizadora, do ―fora para dentro‖, retoma a


intenção de organizar o passado (ou o ―real‖) dentro de um esquema narrativo ideológico –
não natural. Seria melhor, segundo Hutcheon, que ―talvez parássemos de tentar encontrar
narrativas totalizantes que dissolvem a diferença e a contradição (entre, por exemplo, a
verdade eterna humanista ou a dialética Marxista)‖36 (HUTCHEON, 2000, p. 67). Dessa
forma, ―conhecer o passado se torna uma questão de representar, ou seja, de construir e
interpretar, não de lembrar-se‖37 (HUTCHEON, 2000, p. 67).

Hutcheon, na verdade, retoma Jameson para discutir o que o crítico chama de crise da
representação da cultura contemporânea. Trata-se de uma

―Epistemologia essencialmente realista, que concebe representação como


reprodução, para subjetividade, de uma objetividade que reside fora dela – projeta
uma teoria espelho de conhecimento e arte, que têm como categorias fundamentais

35
―‗Everything must be recaptured and relocated in the general framework of history, so that despite the
difficulties, the fundamental paradoxes and contradictions, we may respect the unity of history which is also the
unity of life‘ (BRAUDEL 1982: 16). Totalizing narrative representation has also, of course, been considered by
some critics as the defining characteristic of the novel as a genre, ever since its beginnings in the overt
controlling and ordering (and fictionalizing) of Cervantes and Sterne‖ (HUTCHEON, 2000, p. 60).
36
―Maybe we need to stop trying to find totalizing narratives which dissolve difference and contradiction (into,
for instance, either humanist eternal Truth or Marxist dialectic)‖ (HUTCHEON, 2000, p. 67).
37
―Knowing the past becomes a question of representing, that is, of constructing and interpreting, not of
objective recording‖ (HUTCHEON, 2000, p. 67).
48

de avaliação a adequação, precisão e verdade‖ (JAMESON, 1984b, p. viii). As


questões epistemológicas levantadas pela representação na historiografia e ficção
pertencem ao contexto dessa crise38 (JAMESON, 1984b, p. viii, apud HUTCHEON,
2000, p. 71).

Isso ocorre principalmente porque não é possível que se consiga retornar ao passado.
Ao invés disso, só é possível que se tenha contato com ele através das narrativas.

Ou seja: não podemos retomar eventos a não ser que isso seja feito através de
representações indiretas produzidas através da linguagem, como filmes, arquivos, fotografias,
pinturas, obras arquitetônicas e a literatura (HUTCHEON, 2000, p. 75). Mais delicadamente
falando, ―eventos passados recebem significados e não existência, através de sua
representação na história‖ (HUTCHEON, 2000, p. 78). O que a totalização provoca, segundo
Hutcheon, é uma busca constante por ―consertar‖ inconsistências que possam surgir na
textualização da estruturação dos fragmentos históricos recolhidos, organizados e
interpretados por historiadores (HUTCHEON, 2000, p. 83). Na verdade, de acordo com
Hutcheon, a paródia é importante no pós-modernismo porque consegue desnaturalizar as
representações históricas que temos. Revisita os fatos passados levantando contradições e
subvertendo a ordem histórica. A paródia é o que Linda Hutcheon acredita ser o que Owens
chamou de ―impulso alegórico do pós-modernismo‖ (HUTCHEON, 2000, p. 91). A paródia
pós-moderna não é simplesmente ―nostálgica‖, mas distorciva, porque desconfigura as
representações ―sagradas‖ que temos dos fatos passados (HUTCHEON, 2000, p. 94). A
paródia é ―uma quebra no suposto fluxo da história, com intenção de destruir a credibilidade
do reinado dos relatos históricos – em favor do ponto de vista de quem a história denominou
como perdedores‖39 (HUTCHEON, 2000, p. 101).

Chega-se, portanto, ao ponto de interesse da pesquisa aqui conduzida. Assim como


Hutcheon (2000), acreditamos que objetos culturais pós-modernos oferecem diversas camadas
de leitura através da paródia das representações. No caso do videogame, importa ainda
determinar que sua condição expressiva não se separa das representações que são veiculadas
em seu discurso. A ideia de Hutcheon, de uma crítica pós-moderna que seja direcionada às

38
―[…] in which an essentially realist epistemology, which conceives of representation as the reproduction, for
subjectivity, of an objectivity that lies outside it – projects a mirror theory of knowledge and art, whose
fundamental evaluative categories are those of adequacy, accuracy, and Truth itself‘ (JAMESON, 1984b, p. viii).
The epistemological issues raised by representation in both historiography and fiction belong in the context of
this crisis‖ (HUTCHEON, 2000, p. 71).
39
―[...] a revolutionary break in the supposed stream of history, intended to destroy the credibility of the reigning
historical accounts – in favor of the point of view of history‘s designated losers‖ (HUTCHEON, 2000, p. 101).
49

representações, inclusive da narrativa totalizante, é capaz de problematizar as imagens dos


videogames, porque desnaturaliza a criação de simulacros e intensifica a análise de mundos
ficcionais. Ainda sem saber se concordamos com a autora sobre a sobrevida do pós-moderno
depois do século XX, debruçamo-nos, à luz de suas ideias, na intenção de entender melhor o
que as representações do jogo dizem ao jogador. Esses jogos de videogame, já dizia Anderson
(1999),

têm mercado próspero no Terceiro Mundo. Também aí, como acontece com a
televisão, o advento de novos tipos de conexão e simulação tenderá a unificar e não
a dividir os centros urbanos do próximo século, mesmo com as grandes diferenças
de renda média. Enquanto prevalecer o sistema do capital, cada novo avanço da
indústria da imagem aumenta o raio de alcance do pós-moderno. Nesse sentido,
pode-se dizer, seu predomínio global está praticamente predestinado (p. 141).

Não surpreende que temas tão localizados, como o gueto afro-norte-americano


veiculado em jogos como o Grand Theft Auto: San Andreas (2004), da Rockstar, sejam tão
populares no mundo todo, arrebatando público que escutará, vestirá e consumirá cultura de
outro polo40.

Falaremos, neste momento, de algumas pesquisas contemporâneas e como os


pesquisadores discutem temas pertinentes, tendo como corpus o videogame. Entre os dias 25
e 27 de setembro de 2015 foi realizada a conferência Mechademia de cultura popular asiática,
sobre videogame e gênero, pelo Minneapolis College of Art and Design, em Mineápolis
(Minnesota), nos Estados Unidos. Participamos por videoconferência com a pesquisadora
Alice Perini Amaral com a comunicação intitulada ―Education and the Feminine in Fatal
Frame (2001)‖. Aberta a pesquisadores interessados em discutir questões de gênero em
videogames e animações japonesas, a conferência recebeu inscrições enviadas pelo mundo
inteiro com a possibilidade de participação por videoconferência. Na falta de publicação
formal dos resumos ou de anais das comunicações realizadas, e diante da relevância dos
estudos apresentados, optou-se pela divulgação dos mesmos através deste texto, já que os
referidos trabalhos podem oferecer novos olhares e possibilidades para os pesquisadores do
campo de estudos de videogames, ou game studies, no Brasil. A nossa participação foi
importante para conhecer as pesquisas que estão utilizando o videogame como objeto que
oferece leituras pontuais sobre a produção cultural e seus significados. O Mechademia é o

40
Há um artigo pertinente sobre esse e outros aspectos intitulado ―The Meaning of Race and Violence in Grand
Theft Auto: San Andreas‖, de Ben DeVane e Kurt D. Squire (2008), que pode ser acessado em:
<https://website.education.wisc.edu/kdsquire/tenure-files/10-DeVaneSquire_revised.pdf>. Acesso em: 26 jun.
2018.
50

nome tanto de uma revista científica quanto de uma conferência internacional com foco nas
implicações culturais da cultura popular asiática, especialmente os animes (desenhos
animados), mangás (quadrinhos) e jogos de videogame. O evento ocorre anualmente nos
Estados Unidos e a cada dois anos na Ásia.

O trabalho apresentado por Marc Ricard, ―The Berserk Healer: The Gender Politics of
Sword Art Online‖41, por exemplo, discutiu sobre a protagonista Yuuki Asuna do jogo Sword
Art Online e como ela parece se dividir em duas posições paradoxais, que seriam as de
oscilações de gênero: revolucionária e conservadora. A princípio, Asuna é forte e assertiva, o
que a torna um exemplo de personagem feminina independente; durante a história, no entanto,
ela é reduzida a vítima, o que, para Ricard, parece apaziguar o ego masculino ferido da
audiência. O resultado, que é a adoção de uma classe autointitulada por Asuna e traduzida
livremente como curadora assassina, uma categoria que une o papel tradicional secundário da
mulher (curadora não-violenta) com o masculino (assassino violento). A pergunta de Ricard
nos remete tanto ao jogo quanto a muitos outros produtos culturais que fazem parte do nosso
dia a dia: Essa forma de se autodeterminar simboliza a representação das mulheres nos jogos,
como se elas pudessem ser tudo ao mesmo tempo, ou essa classe esquizofrênica é um sintoma
de um debate que se tornou inegociável?

A apresentação de Andrew Ferguson, ―Final Fantasy VI: Breaking Narrative,


Glitching Gender‖42, tratou de como glitches podem influenciar em novas leituras por parte
dos jogadores. Final Fantasy VI (1994), um dos últimos jogos produzidos para Super
Famicon/Nintendo, explora toda a tecnologia do videogame, inclusive, de acordo com
Ferguson, as limitações de memória. Segundo o pesquisador, a quantidade de atalhos na
programação necessários para que a história pudesse caber no cartucho, além da bateria dos
backups, deixou buracos no código do jogo – buracos que os jogadores mais espertos
começaram a explorar. Esses buracos se chamam glitches. A questão abordada por Ferguson
emerge nos maiores glitches do jogo, capazes de redimensionar a estrutura narrativa, negando,
segundo ele, a sequência ―derrote o mal, salve o mundo‖. Esses glitches abrem espaço para
que o jogador possa provocar (e ler) o jogo de forma reconfigurada, já que reorganizam os

41
RICARD, Marc. The Berserk Healer: The Gender Politics of Sword Art Online. Comunicação oral
apresentada no Mechademia, evento acadêmico realizado pela Minneapolis College of Art and Design, em
Mineápolis, Estados Unidos, em setembro de 2015.
42
FERGUSON, Andrew. Final Fantasy VI: Breaking Narrative, Glitching Gender. Comunicação oral
apresentada no Mechademia, evento acadêmico realizado pela Minneapolis College of Art and Design, em
Mineápolis, Estados Unidos, em setembro de 2015.
51

fatos que se apresentarão como narrativa de forma diferente de como foram programados
pelos designers. Concentrando-se no airship glitch, que faz com que o jogador tenha acesso à
nave desde o começo do jogo, Ferguson percebe que é possível acessar todo o mapa do
mundo bem à frente do arco narrativo, quebrando a sequência programada. Os glitches
permitem que o jogador explore outros atalhos na programação, produzindo situações bizarras
como, por exemplo, o caso de um personagem visitar ele mesmo no túmulo, tornar-se seu
próprio pai etc. Para Ferguson, procedimentos que alteram o desempenho do jogo por meio de
glitches são formas de resistência ao texto, ao espaço, ao sistema binário, à máquina, à lógica
etc. É possível perceber que o trabalho desse autor aponta para subversões que podem ser
criadas de dentro do sistema para fora, a partir de buracos e falhas não percebidas – ou, quem
sabe, deixadas de propósito.

Outro trabalho pertinente foi apresentado por Se Young Kim, intitulado ―Getting over
The Fear of Murder: The Last of Us and the Ethics of Empowerment‖43. A pesquisadora
analisou o jogo The Last of Us (2013), pensando no que já havia sido divulgado sobre Rise of
the Tomb Raider (2015). De acordo com o blog de notícias de jogos Kotaku, nesse jogo, a
protagonista Lara Croft ―superou o medo de matar‖. Em entrevista de 2012, Noah Hughes,
produtor criativo da franquia, comentou: ―na verdade o nosso jogo é sobre empoderamento, é
sobre se tornar um herói‖. Colocando as duas frases lado a lado, Kim começa a se perguntar
sobre o que é empoderamento e o que é se tornar um herói em relação ao jogo The Last of Us
(2013). Para a pesquisadora, como é evidente na narrativa de Ellie, tal empoderamento
simplesmente se parece com a aquisição de uma postura violenta, ou seja, com a mudança de
agentes políticos (mulheres ao invés de homens) como perpetradores de atos violentos e não
com a abolição de diferenças de gênero. De acordo com Kim, ao invés de uma resistência,
esse empoderamento parece simplesmente se alinhar com ideologias opressivas.

Destacam-se apenas duas publicações entre muitas que chamaram a atenção neste ano.
A primeira é um artigo publicado na Sage, intitulado ―Video Game Visions of Climate
Futures: ARMA 3 and Implications for Games and Persuasion‖, de Benjamin Abraham
(2015); e a segunda é uma dissertação de mestrado intitulada SimCity: Text, Space and
Culture, de Eli J. Boulton (2015). O acesso a ambas se deu graças à ferramenta do

43
KIM, Se Young. Getting over The Fear of Murder: The Last of Us and the Ethics of Empowerment.
Comunicação oral apresentada no Mechademia, evento acadêmico realizado pela Minneapolis College of Art
and Design, em Mineápolis, Estados Unidos, em setembro de 2015.
52

Academia.edu, que permite incluir no perfil suas áreas de interesse, avisando constantemente
sobre novas publicações na área de videogames e narrativa, por exemplo.

O artigo de Abraham trata do jogo de simulação militar ARMA 3 (2013), da Bohemia


Interactive. Abraham focaliza nas representações visuais que o jogo comporta; uma ficção de
um mundo futuro no qual a energia é renovável. Para o autor, essa visão futurista desafia a
imaginação e pode provocar no jogador uma adesão às políticas ideologicamente contestadas
sobre mudanças climáticas. Dessa maneira, Abraham teoriza sobre a habilidade dos games em
persuadir ou influenciar jogadores.

Figura 04: ARMA 3 (2013).

Fonte: Arma 3 Wallpapers. Disponível em: <https://wallscover.com/image-post/17080-arma-3-9.jpg.html>.


Acesso em: 30 ago. 18.

A dissertação de Boulton entra no debate sobre a crítica que os jogadores podem fazer
ao jogarem SimCity: mesmo quando eles têm sérias críticas ao modo como a gestão pública
trabalha no plano do real, o jogo tem em seu código uma mecânica tal que não permite que o
jogador fuja dos padrões de governança; o jogador acaba se adequando ao sistema do jogo, ou
seja, às ideias políticas que subjazem o que os produtores entendem por política de gestão
pública. Ao final da dissertação, Boulton intenta observar os limites do jogo SimCity, tentando
determinar se eles são maleáveis ou não.

Figura 05: Sim City 5 (2013).


53

Fonte: Simtropolis Fórum. Disponível em: <https://community.simtropolis.com/forums/topic/64763-how-do-


you-get-your-city-to-grow-even-bigger/>. Acesso em: 30 ago. 18.

O artigo ―Turning Around to the Affordances of Digital Games: English Curriculum


and Students Lifeworlds‖, de Thomas Apperley et al (2015), pode representar um parâmetro
importante para a utilização de videogames como instrumentos para o desenvolvimento de
trabalhos pedagógicos que auxiliem os alunos a aprimorarem sua capacidade de leitura e
escrita. Os estudiosos propõem, a partir da perspectiva de que o mundo dos educandos está
intimamente ligado aos videogames, que se utilizem jogos como parte do currículo de Inglês e
Alfabetização. A saída proposta pelos pesquisadores foi a incorporação de leitura dos jogos –
entendendo os jogos como ―game as text‖ e ―games as action‖ – jogo como texto e jogo como
ação – e a leitura de paratextos pelos alunos.

O texto apresentado discute apenas alguns trabalhos que foram divulgados durante o
ano de 2015, mas o assunto não se exaure, já que novos estudos são feitos, publicados e
apresentados todos os dias. Importa, porém, ressaltar a importância da divulgação dos
mesmos, especialmente dentro do Brasil, cenário em que os game studies ainda estão por se
estabelecer dentro da academia de maneira multidisciplinar. Encerra-se entendendo que as
pesquisas apresentadas fazem da narrativa o ponto de partida para pensar o mundo e a cultura
na qual vivemos e que, por isso, são importantes para a nossa formação, para a nossa
compreensão dos jogos e para a nossa vida.
54

No artigo intitulado ―The Rhetoric of Video Games‖ (2008), Ian Bogost discute
aspectos culturais dos e nos videogames e como os jogadores se relacionam com isso. De
acordo com o estudioso, os jogadores de videogames formam comunidades de práticas de
jogo e de vivência, mas isso, na verdade, é de menor importância. O mais interessante é que
se observe que os videogames, assim como outros objetos culturais, contêm ideologias,
textos, políticas e visões de mundo.

Esta é uma distinção importante: videogames não são apenas etapas que facilitam
práticas políticas, culturais ou sociais; eles são também meios de cultura onde
valores culturais podem ser representados – para crítica, sátira, educação, ou
comentário. Quando entendidos dessa forma, podemos aprender a ler jogos como
expressões deliberadas de perspectivas individuais. Em outras palavras, jogos de
videogame fazem afirmações sobre o mundo, que os jogadores podem compreender,
avaliar e deliberar. Os desenvolvedores de jogos criam jogos que constroem
expressões deliberadas sobre o mundo. Os jogadores podem aprender a ler e criticar
estes modelos, deliberando sobre as implicações de tais verdades 44 (BOGOST, 2008,
p. 119).

Bogost entende que o espaço virtual dos jogos também implica significado, já que
constrange ações e demarca modos de atuação. Isso ocorre tanto para os desenvolvedores, que
criam segundo restrições, quanto para os jogadores, que se ressignificam e consolidam sua
compreensão dos jogos a cada vivência que têm nos mundos virtuais. Por consequência, os
designers criam jogos baseados nas experiências que proporcionarão através deles, e as
restrições impostas pelos espaços dos jogos também implicarão leituras. Nesse processo, os
designers criam – intencionalmente ou não – mecanismos retóricos. Segundo o autor, os
videogames não seriam apenas recursos retóricos visuais, mas sim procedurais, já que é nos
processos de jogo (implicados no código e em funcionamento no jogo) que os jogadores
entram em contato com os significados e os discursos dos designers. Citaremos o exemplo de
uma experiência de jogo de Sim City 5 (2013) para que isso possa ficar mais claro.

O jogo, para computador, é um simulador de cidades. Há mecanismos para que o


jogador possa criar um espaço urbanizado da forma como ele desejar. A interface do jogo
oferece a oportunidade de escolha do terreno e diversas ferramentas que se multiplicam em

44
―This is an important distinction: videogames are not just stages that facilitate cultural, social, or political
practices; they are also media where cultural values themselves can be represented—for critique, satire,
education, or commentary. When understood in this way, we can learn to read games as deliberate expressions of
particular perspectives. In other words, video games make claims about the world, which players can understand,
evaluate, and deliberate. Game developers can learn to create games that make deliberate expressions about the
world. Players can learn to read and critique these models, deliberating the implications of such claims. Teachers
can learn to help students address real-world issues by playing and critiquing the video games they play. And
educators can also help students imagine and design games based on their own opinions of the world. When
games are used in this fashion, they can become part of a whole range of subjects‖ (BOGOST, 2008, p. 119).
55

outras mil, por exemplo: ruas que podem ser estradas com diversas faixas de trânsito ou
pequenas alamedas etc. As opções de zoneamento de espaço também delimitam que tipo de
edificações poderão ser construídas em determinados espaços, entre zonas habitacionais,
comerciais ou industriais, podendo se dividir entre baixa, média e alta densidade. Há modos
diferentes de suprir a cidade, todos à escolha do jogador: a água pode ser retirada dos rios e
tratada para consumo, pode ser mantida em caixas ou comprada de municípios vizinhos. Da
mesma forma, a energia pode ser gerada por hidrelétrica, fábrica a carvão, óleo, energia
atômica, solar ou eólica.

Todas as vezes que joguei Sim City, em qualquer uma de suas edições, esforcei-me
muito desde o princípio para construir uma cidade da forma como eu esperava que fosse a
minha própria. Eu desejava que a minha cidade fosse repleta de árvores, parques, que a
energia fosse eólica ou solar e que não houvesse poluição (pelo menos não de forma
institucionalizada). Não houve uma vez sequer em que consegui atingir meus objetivos, já que
o jogo começa com uma restrição orçamentária que delimita as escolhas que podemos tomar:
indústrias energéticas solares são caríssimas, parques eólicos ocupam muito espaço e não
geram energia suficiente para que a cidade possa prosperar. Resta usar a de carvão ou a
atômica, em virtude do custo-benefício: escolhe-se a atômica por não gerar impactos
imediatos de poluição.

Conforme o tempo passa e a cidade progride, observa-se que a preocupação energética


deixa de ser importante: a indústria de energia atômica parece ser limpa e eficaz. Enquanto
isso, outros problemas surgem: não há empregos para os moradores e os espaços para parques
e árvores acabam ficando escassos: as pessoas querem trabalhar perto de onde moram,
querem transporte público de qualidade, querem impostos baratos. É preciso enxugar a folha,
os serviços públicos caem de qualidade e a população protesta. Pega-se um empréstimo para
se construir mais zonas habitacionais, mas os impostos gerados pelos pagamentos das taxas
não são suficientes para pagar a devolução do montante. Em meio ao caos, a indústria de
energia atômica tem uma pane e grande parte da área fica envenenada pelo derrame tóxico. A
população reclama porque adoece. A pessoa que ficou cerca de 20 horas jogando e que, no
início, estava preocupada em criar um ambiente limpo e harmônico, agora deseja que a
população vá embora da cidade poluída, porque os impostos gerados pela indústria são mais
lucrativos e já não importa se a população está satisfeita ou não: os impostos que ela paga são
baixos demais e todos os serviços que ela demanda são onerosos.
56

Percebe-se que o jogo cria condições para que ocorra uma mudança no pensamento do
jogador; Sim City transforma uma pessoa bem-intencionada em um político ávido por controle
e poder. Por um lado, o jogo é um simulador de cidades que contém elementos do real. Por
outro, restrições, ferramentas e demandas compartimentam as intenções do jogador, fazendo
com que ele entre num sistema de governança cruel. A retórica procedural, ou seja, o que se
quer dizer através do código e implicado no jogar, imprime um texto com significados
múltiplos. O jogador é aquele que poderá, através da sua compreensão do texto, dar a palavra
final.

Como todos os artefatos culturais, nenhum videogame é produzido em um vácuo


cultural. Todos os videogames carregam os vieses culturais de seus criadores. Jogos
de videogame podem ajudar a lançar luz sobre esses princípios ideológicos. Estes
vieses estão, às vezes, profundamente e inadvertidamente escondidos. Outras vezes,
os artefatos podem expor, por eles mesmos, os vieses dos criadores como valores
positivos, mas eles podem ser lidos em apoio ou oposição45 (BOGOST, 2008, p.
128).

Além das questões ideológicas contidas nas retóricas procedurais dos jogos (mas
também nas imagens, sons e narrativas deles), há que se perceber outros pontos que
convergem para novas discussões: esses objetos culturais sincréticos e policódices são
produzidos, distribuídos e recebidos em espaços múltiplos. Criados por designers que
expressam um texto ideológico (próprio de seu contexto, cultura, vivência, universo), os jogos
de videogame atravessam continentes. Grupos variados de indivíduos negociam significados
através desses jogos de videogame, e são os significados – tanto da produção quanto da
recepção – desse objeto cultural globalizado que nos interessa entender nesta pesquisa.

Algumas perguntas que emergem são: até que ponto esses mundos ficcionais têm
relações com o mundo real? Quais impressões do real são transportadas para mundos
ficcionais? Como essas impressões são configuradas (ou como a realidade é reconfigurada)?
Como cultura, folclore, pessoas, nações, religiões etc, são reorganizadas em ficções
interativas? Quais identidades culturais são essas? Essas perguntas se vinculam à necessidade
de investigação exposta na conclusão da dissertação, já identificada na página anterior.
Destaco o trecho, reafirmando que ―é preciso tentar entender quem faz esses objetos culturais,
sob quais pretextos, ótica, questões, moral, ideologias (quais representações de mundo eles

45
―Like all cultural artifacts, no video game is produced in a cultural vacuum. All bear the biases of their
creators. Video games can help shed light on these ideological biases. Sometimes these biases are inadvertent
and deeply hidden. Other times, the artifacts themselves hope to expose their creators‘ biases as positive ones,
but which of course can then be read in support or opposition‖ (BOGOST, 2008, p. 128).
57

encerram)‖ (FALQUETO-LEMOS, 2015, p. 148). A problematização gira em torno de como


se vê e como se reproduz a cultura, principalmente levando-se em conta palavras de teóricos
como Roger Chartier, que entende que ―as estruturas do mundo social não são um dado
objetivo, tal como não o são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são
historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que
constroem as suas figuras‖ (2002, p. 27). O que se vê nos videogames são representações não-
objetivas do mundo sensível. Essas representações são produções históricas, fazem parte de
uma rede de práticas que circulam culturalmente e que se consolidam ou se apagam – em sua
aceitação ou esquecimento.

Há, aparentemente, um abismo estético e teórico entre o objeto textual e um jogo


eletrônico, e nesse báratro percebe-se a existência de várias pontes que tentam conectar os
estudos literários e os estudos dos videogames. Apenas como parênteses, os jogos eletrônicos
ou videogames referidos no texto se configuram em vários suportes diferentes, ou seja, são
jogos de celular ou de consoles (aparelhos que são conectados a televisores), de plataformas
portáteis, computadores, ou máquinas de arcade (máquinas grandes que se encontram, por
exemplo, em fliperamas). Assim sendo, é possível perceber como esse objeto cultural vem
sendo visto por pesquisadores. O espetáculo inclui os ―jogos de computador‖ (ANDERSON,
1999, p. 141).

A discussão de jogos de videogame é a discussão do capitalismo, da imagem, de


ideologias e de culturas na pós-modernidade. Encaminhamo-nos para a próxima sessão, na
qual encontramos como universo estético do corpus desta pesquisa: o gótico.

2.3 ROMANTISMO E GÓTICO

O termo ―Romantismo‖ surgiu entre o final do século XVIII e o início do século XIX
na vida intelectual de países como a Alemanha, a Inglaterra e a França, entre 1790 e 1850 – e
tomou, em cada um desses contextos, diferentes formas. August Schlegel foi o primeiro a usar
o termo ―romântico‖ para descrever, nas suas aulas em Viena, entre 1809 e 1811, a poesia da
época e a arte clássica. Nessas aulas, Schlegel identificou os artistas românticos como
intérpretes do desejo de alcançarem a arte como expressão do divino, como expressão da
verdade. Segundo María del Pilar Bravo, em ―Literary Creation and the Supernatural in
English Romanticism‖ (2007), o romantismo representou o renascimento da literatura no
58

século XIX. Na Inglaterra, o movimento fez renascer o autor como força singular inspirada,
capaz de criar um mundo completamente novo como fruto de sua imaginação. Esse seria o
princípio da autonomia do artista, que figura como intérprete privilegiado do mundo à sua
volta. Segundo Bravo, os poemas do inglês William Wordsworth poderiam fazer com que o
leitor se sentisse cego, incapaz de enxergar o mundo de forma tão incrível senão através de
seus escritos (BRAVO, 2007, p. 139; ELDRIDGE, 2001, p. 2).

―Romântico‖ também é um verbete comumente confundido e entrelaçado ao gênero


narrativo romance, tendo Thomas Wharton (apud STEVENS, 2004) apontado a diferença:
―essa espécie peculiar e arbitrária de ficção que comumente chamamos de romântica, era
inteiramente desconhecida para os escritores da Grécia e de Roma. [...] [Essas ficções]
formaram o fundamento daquele tipo de narrativa fabulosa chamada romance‖46
(WHARTON, 1774-1781, apud STEVENS, 2004, p. 13). Segundo David Stevens, em
Romanticism (2004), a dimensão nacionalista que foi parte do romantismo alemão também foi
componente do movimento na Inglaterra, que tentava afastar o ideário greco-romano clássico,
resgatando símbolos como o Rei Arthur (STEVENS, 2004, p. 13).

Esse olhar romântico que se dirigia ao mundo, tornando-o novamente encantado,


produziu o sobrenatural nas obras de Samuel Taylor Coleridge, William Blake e Mary
Shelley. O mundo novamente encantado e misterioso ia de encontro aos preceitos limitados
pela razão científica e oferecia uma saída para a saturação da vida diária do público inglês.
Mesmo que o sobrenatural não estivesse presente em cada produção romântica, era um
elemento pertinente quando os artistas desejavam romper com os dogmas do contexto
vitoriano de moral e ciência (BRAVO, 2007, p. 140). É dessa época o famoso conceito de
―suspensão de descrença‖, de Coleridge.

Finalmente, seria considerado um fato da natureza humana que nós nos


emocionemos com as personalidades e situações de outras pessoas... [...], e me refiro
às pessoas e personagens sobrenaturais, ou pelo menos românticos; ao mesmo
tempo, enquanto fazemos transferência da nossa natureza interior, um interesse
humano e uma semelhança com a verdade são suficientes para que possamos
procurar nessas sombras de imaginação aquele desejo por um momento de
suspensão de descrença, o que constitui a fé poética47 (COLERIDGE, 1951, p. 264,
apud CARROLL, 1990, p. 65).

46
―That peculiar and arbitrary species of Fiction which we commonly call Romantic, was entirely unknown to
the writers of Greece and Rome. [...] [These Fictions] formed the groundwork of that species of fabulous
narrative called romance‖ (WHARTON, 1774-1781, apud STEVENS, 2004, p. 13).
47
―After all, it would seem to be a fact of human nature that we are emotionally moved by the personalities and
situations of other people… in which it was agreed, that my endeavors should be directed to persons and
characters supernatural, or at least romantic; yet so as to transfer from our inward nature a human interest and
59

Mas o sobrenatural não foi o único aspecto marcante do romantismo inglês. A


infância, assim como em Wordsworth e Blake, também foi tema recorrente, episódio da vida
tido por ideal e fonte de imaginação, liberdade e ludicidade perdidas na vida adulta. Outro
tema cíclico é a natureza, origem da vida e, portanto, mistérios que o homem seria incapaz de
decifrar. Esses cenários mágicos naturais presentes em, por exemplo, Kubla Khan, de
Coleridge, são exóticos e lendários. O sonho, por sinal, é outro elemento importante na
constituição da literatura romântica inglesa, já que pode ser a válvula de escape e o momento
em que outras realidades fantásticas podem ser vivenciadas.

Portanto, não é difícil que se possa identificar o gótico como aspecto importante e
pertinente da literatura romântica inglesa. O mistério da vida e da morte, os encantos
escondidos nos recônditos naturais ainda por serem explorados, o exotismo e a imaginação se
extravasam nas criações de Shelley e Byron, em Frankenstein e no poema Darkness.

Os aspectos góticos, no entanto, não se resumem apenas às expressões literárias. E,


mesmo na literatura, os gêneros são variados. As influências que desaguam no aparecimento
desse aspecto estético se originam de muitos lugares e afetam vários artistas de diversas
formas. Segundo Michael Gamer, em Romanticism and the Gothic (2000), o gótico não é um
aspecto em algumas obras de alguns autores da época. Os grandes nomes do período
romântico inglês Blake, Coleridge, Shelley, Byron e Keats, viveram o contexto e foram
responsáveis por moldar a estética e os temas que passaram a influenciar o estilo gótico. Na
realidade, o que Gamer indicia em seu livro é que, através da revisão de literatura
empreendida em diversas teses e pesquisas, o gótico não é um gênero – pode-se caracterizá-lo
―[...] como uma estética, um grande reprimido do romantismo, como poética, como técnica
narrativa ou como expressão de mudança ou consciência psicológica ou sócio-política
‗extremas‘‖48 (2000, p. 28). Segundo Gamer, a relação entre o gótico e o romantismo não
tende a ser uma simples afiliação, na verdade, há uma simultânea ―apropriação e crítica‖
(2000, p. 28) entre ambos.

semblance of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for
the moment, which constitutes poetic faith‖ (COLERIDGE, 1951, p. 264, apud CARROLL, 1990, p. 65).
48
―[…] as an aesthetic (Miles), as a great repressed of romanticism (Bruhm and William Patrick Day), as a
poetics (Williams), as a narrative technique (Halberstam and Punter), or as an expression of changing or
―extreme‖ psychological or socio-political consciousness (Bruhm, Cox, Halberstam, Monleón, Paulson, Richter,
Williams)‖ (GAMER, 2000, p. 28).
60

Gamer tece interessantes comentários a respeito do surgimento de literatura de cunho


gótico, a relação com a recepção dos leitores e as críticas e como isso parece ter influenciado
esse filão da literatura inglesa do final do século XVIII. Rapidamente absorvida pela massa, a
leitura de literatura gótica acabou por irritar certa parcela de escritores românticos, confusos
pela notoriedade das histórias macabras e vistas com ressalvas. A população, afastada da
leitura pelo refinamento da literatura romântica da época, acabava por se interessar por textos
mais acessíveis e dinâmicos, que preenchiam seus anseios. O debate entre o gótico e o
romântico era de cunho social, político e econômico, já que se dava na recepção de diferentes
públicos consumidores (GAMER, 2000, p. 30-33). Assim, antes de escrever obras como The
Rime of the Ancient Mariner, Christabel e Kubla Khan, Coleridge criticou autores góticos.
Feliz ou infelizmente, assim como postula Gamer, o que a crítica apregoa e o que o público
consome são assuntos separados na época (e aparentemente ainda hoje), já que o descompasso
entre a recepção e a crítica não parece ter diminuído o fervor do consumo de literatura gótica
(GAMER, 2000, p. 34).

Abrem-se parênteses para o texto de Richard Eldridge, em The Persistence of


Romanticism (2001), e a possibilidade de que possamos compreender a necessidade de
afastamento dos românticos em relação aos góticos. Segundo Eldridge, os autores românticos
já eram alvo de críticas em vista dos textos clássicos49 e Wordsworth era tido como um poeta
que exemplificava a fuga da vida prática para deixar-se levar pela imaginação, algo que seria
muito distante da vida vigorosa de homens – um estilo de vida feito para mulheres ou homens
não-masculinos (ELDRIDGE, 2001, p. 6). Segundo Eldridge, o crítico Irving Babbitt
desejava, por exemplo, ―[...] reinstalar uma ordem de decoro e de gosto, um conjunto de
fronteiras, simultaneamente estéticas e sociais, contra o que ele via como inundação de
sentimento, populismo, feminilidade e confusão‖50 (ELDRIDGE, 2001, p. 6). Segundo
Dagmara Zajac, em ―Representation of spaces in American Gothic fiction‖, ―a ficção gótica
revela o que podemos descrever como o esquecido, o reprimido e o desconfortável‖ 51 (2010,
p. 192), e desestabiliza o mundo iluminado pela razão (ZAJAC, 2010, p. 197). Segundo

49
Ou neoclássicos, perspectiva que desejava restaurar a ordem, tanto moral quanto formal, em vista da cultura
antiga Romana e Grega (STEVENS, 2004, p. 13). Essa perspectiva estética fazia parte do ideal do iluminismo, já
que os pensadores da época acreditavam na beleza inspiradora do passado distante dessa cultura helênica.
Prezava-se pela ordem, simetria, harmonia e controle‖ (STEVENS, 2004, p. 20).
50
―[…] reinstall an order of decorum and taste, a set of boundaries, that is simultaneously aesthetic and social,
against what he sees as gathering flood of sentiment, populism, femininity, and confusion‖ (ELDRIDGE, 2001,
p. 6).
51
―Gothic fiction reveals what we may describe as the forgotten, the repressed, the uncomfortable‖ (ZAJAC,
2010, p. 192)
61

Margaret Anne Doody (1997, p. 294, apud ZAJAC, 2010, p. 197), é nas publicações góticas
que, pela primeira vez, grupos minoritários como mulheres e gays expressaram seu
desencanto com o conceito de realidade do realismo.

Chama a atenção o levantamento feito por Gamer a respeito da tríade leitor de gótico,
crítico de gótico e autor de gótico da Londres vitoriana. Segundo a revisão de literatura, tanto
os leitores quanto os autores, segundo os críticos, eram compostos por mulheres. De um lado,
a leitora ávida, do outro, a autora sensível. Entre ambas, a crítica masculina sem nenhum
entusiasmo pela excitação do horror – autores famosos como Horace Walpole e William
Beckford são tomados como ―desperdício de talento‖ nesse ramo (GAMER, 2000, p. 35).
Para Gamer, o estigma ligado à crítica do estilo é relegado ao gênero do romance ao final do
século XVIII. Observemos o recorte de Gamer da fala de um crítico:

Que a maioria dos romances mereça nosso desprezo é totalmente verdadeiro; E


sobre isso, esta é uma verdade de uma natureza séria e dolorosa. O fim de um
romance deve produzir interesse no leitor, nos personagens aos quais ele lê: - mas,
para produzir esse interesse, é necessário que o escritor de romance esteja bem
familiarizado com o coração humano, ele deve minuciosamente compreender seus
motivos e possuir a arte de, sem ser tedioso ou insignificante, de minuciosamente
trazê-los à tona. Essa arte é tão pouco compreendida pelas jovens senhoras que
atualmente escrevem romances, que ninguém menos que jovens senhoras e nós,
críticos desafortunados, lemos, qual não é a surpresa de que elas deveriam incorrer a
uma parcela considerável de negligência de nós 52 (HOLCROFT, 1793, p. 297, apud
GAMER, 2000, p. 36).

Ao investigar registros de empréstimos de livros em bibliotecas, estudiosos


observaram dados contraditórios ao que se pôde pensar sobre o público leitor de gótico: esses
títulos não parecem ter, de fato, ampliado o número de cidadãos leitores (ou auxiliado na
alfabetização deles) e o público era tanto masculino quanto feminino. Além disso, o romance
era o gênero mais popular e não há evidências de que a classe média havia dominado a leitura
(GAMER, 2000, p. 39). Segundo Gamer, mulheres liam tanto quanto homens e os textos
góticos eram preferidos por classes variadas. O que ficou registrado, porém, através das
críticas, criou a impressão de que se tratava de uma literatura preterida e do campo feminino.

52
―That the majority of novels merit our contempt, is but too true; and, for the above given, it is a truth of a
serious and painful nature. The very end of a novel is to produce interest in the reader, for the characters of
whom he reads: - but, in order to produce this interest, it is necessary that the novel writer should be well
acquainted with the human heart, should minutely understand its motives, and should possess the art, without
being either tedious or trifling, of minutely bringing them into view. This art is so little understood by the young
ladies who at present write novels, which none but young ladies and we, luckless reviewers, read, that it is not
wonderful that they should have incurred a considerable share of neglect from us‖ (HOLCROFT, 1793, p. 297,
apud GAMER, 2000, p. 36).
62

Gamer procede seu trabalho tratando da evolução de gêneros literários como parte de
dois caminhos: da organização ideológica e da acomodação mercadológica, embasado no
pensamento de Jameson e Raymond Williams (GAMER, 2000, p. 44). Para esta tese, não nos
ateremos a essa seara, já que importa entender o Gótico – assim como o Romantismo. Frisa-se
que concordamos, porém, com a noção de Gamer.

O que importa sobre a noção de ideologia que compreende o gênero é que o gótico
assume diversas facetas. Uma delas remete ao passado medieval e nostálgico do qual o Rei
Arthur fazia parte, assim como toda a mitologia que o envolve. Outra parcela é mais
subversiva e ácida. Castle of Otranto (1764), de Walpole, e The Old English Baron53 (1777),
de Clara Reeve, são exemplos do primeiro tipo de literatura gótica – apesar de o público
observar apenas as nuances sobrenaturais, é a primazia pelo medievalismo que mais os
aproxima desse estilo, segundo Alfred Longueil (apud GAMER, 2000, p. 48; GATES, 1976,
p. 9). Os escritores que sucederam Walpole e Reeve notaram a preferência do público pelos
aspectos sombrios das narrativas e investiram em textos recheados de horror. Textos góticos
foram os primeiros best sellers. Eles deixaram seu lado medieval e se tornaram cada vez mais
espantosos.

O termo ―gótico‖, a princípio, denotava literatura que remontava ao medievo


(GAMER, 2000, p. 49). Os primeiros autores a usar tal nomenclatura, Walpole e Reeve,
utilizaram-na para determinar a filiação do romance com uma estética não ―clássica‖ ou
―moderna‖, contemporânea ao período em que viviam.

Hurd e os celebrantes subsequentes da arte e da literatura medievais estenderam seu


elogio à cultura do cavalheirismo, e tanto o Old English Baron de Reeve quanto as
Dissertations Moral and Critical (1783) de Beattie exaltam a piedade, o patriotismo,
o respeito pelas mulheres e o amor à liberdade como características inerentemente
inglesas. A palavra ―gótico‖ atua nestas últimas décadas do século XVIII como um
duplo gesto de autenticação, uma forma de alinhar genericamente contra o romance
e culturalmente com a tradição masculina e antiquária [...] 54 (GAMER, 2000, p. 49).

Gamer retorna à problemática do estilo gótico como menor senão por suas próprias
qualidades, mas quem sabe pela intimidade com o romance enquanto gênero literário, desde o

53
Narrativa sobre Sir Philip Harclay, que, ao procurar por um amigo de infância, descobre que ele está morto.
Tanto as propriedades do amigo quanto seu posto real foram tomados pelo assassino.
54
―Hurd and subsequent celebrants of medieval art and literature had extended their praise to the culture of
chivalry, and both Reeve‘s Old English Baron and James Beattie's Dissertations Moral and Critical (1783) extol
the Goth‘s piety, patriotism, respect for women, and love of liberty as inherently English traits. The word
―gothic,‖ then, acts in these last decades of the eighteenth century as a double gesture of authentication, a way of
aligning oneself generically against the novel and culturally with the masculine and antiquarian tradition […]‖
(GAMER, 2000, p. 49).
63

princípio considerado responsável pelo deleite imaginativo de leitoras mulheres (2000, pp. 53-
57; JONES, 2010, p. 9). Autores como Reeve e Walpole tentaram, então, escrever romances
contextualizados na história inglesa, afinal, a intenção era utilizar o mecanismo sedutor do
gênero romance para que as jovens mentes pudessem aprender algo valoroso.

Colocada no contexto da crítica do romance do século XVIII como viciante e


enervante, a defesa de Reeve representa uma tentativa de resgatar o romance de seu
estigma como um gênero pernicioso, prescrevendo-lhe a masculinidade da história
antiquária e as mesmas restrições da feminilidade socialmente aceitável - a
temperança, a consciência e o dever social – que constrangem as escritoras no
período55 (GAMER, 2000, p. 58).

O embate entre os domínios do que é mais pertinente ainda persiste – e já foi debatido,
de maneira concisa, anteriormente, na sessão sobre conhecimento a respeito das palavras de
Lyotard56. Dando continuidade à história do gênero, sabe-se que a popularidade dos romances
de Walpole e Reeve trouxe à tona o interesse do público, e, com base nesse interesse, autores
ávidos por serem sucesso em vendas copiaram e multiplicaram as publicações. Segundo
David Gates, na dissertação Bram Stoker‟s Dracula and the Gothic tradition (1976), a
consolidação do gênero veio com a repetição de certos motes (p. 12). Com base no interesse
público pelo horror, fez com que a própria autora de Old English Baron criticasse as
bibliotecas públicas por não orientarem os leitores a fazer as melhores escolhas ou por
escolherem livros tão ―apelativos‖ para ocupar os espaços de suas estantes (GAMER, 2000, p.
63). Interessante é saber que as bibliotecas passaram de duas para mais de 100 em menos de
60 anos, e que, apesar de uma certa imposição pela proibição de romances nas estantes, havia,
em sua maioria, livros considerados ―baratos‖ ali (GAMER, 2000, p. 64). Pela popularização
de certos tipos de livros, as bibliotecas passaram a ser parcialmente responsáveis pela
solidificação e sobrevivência de certos gêneros em detrimento de outros. Por isso o gótico se

55
―Placed in the context of eighteenth-century criticism of romance as addictive and enervating, Reeve‘s defense
represents an attempt to rescue romance from its stigma as a pernicious genre by prescribing to it the masculinity
of antiquarian history and the same strictures of socially acceptable femininity - temperance, sense, and social
duty – that constrain women writers in the period‖ (GAMER, 2000, p. 58).
56
Apenas para abrir um parágrafo nesta questão, cito, por exemplo, a questão da narrativa dos fatos verdadeiros
versus o imaginado e o sonhado, as questões do testemunho, da literatura de testemunho e da autoficção
(NASCIMENTO, 2010; ARFUCH, 2010), do dilema história versus narrativa, o próprio valor/preferência do
estudo de certos temas dentro das Letras ou das Letras dentro dos centros universitários; ou dos centros
universitários em outras pautas (por exemplo, ministérios de energia, fazenda etc.), distribuição de verbas para
pesquisa etc. Afinal, a discussão parece recair, final e irremediavelmente, na qualidade
―ficcional/imaginativa/vulgar‖ da construção narrativa (do próprio saber científico), compreendida como
feminina, corporificada, associada ao despudor do sensível em oposição ao racional exame do mundo natural.
Essa dualidade é examinada, por exemplo, por Elódia Xavier, em Que corpo é esse? (2007) e Susan McClary,
em Feminine Endings (1991).
64

tornou um item tão disputado: o formato de empréstimo das bibliotecas favorecia a leitura
desse tipo de literatura dinâmica e de efeito de choque constante (GAMER, 2000, p. 65).

No entanto, os críticos foram financeiramente forçados a antecipar o gosto popular,


mesmo quando buscavam moldá-lo e, portanto, frequentemente tomavam posições
críticas das quais poderiam ser separados do gosto popular sem se opor totalmente a
ele. Sob este ângulo, a enorme popularidade do gótico apresentou para eles um
dilema desconfortável – uma situação na qual os periódicos arriscavam alienar os
leitores, criticando negativamente os textos góticos, assim o status do gótico
triunfantemente tríptico como popular, feminizado e descartável apontou para os
traços que os críticos mais desejavam negar sobre si mesmos57 (GAMER, 2000, p.
69).

Ainda há, na contemporaneidade, um misto de críticas acerca do gótico, segundo


Rictor Norton, em Aesthetic Gothic Horror (1972), no que ele chama de ―dicotomia‖. O estilo
agrega a ingenuidade imaginativa dos românticos e, por isso, é mal visto por leitores que
desejam uma literatura mais consciente. Apesar de o gótico ter seu apogeu e sua decadência
antes que o século XVIII se encerrasse, é fato que o estilo se modificou continuamente e ainda
permanece como gênero literário na contemporaneidade (HOGLE 2002; SPOONER &
MCEVOY 2007, apud JONES, 2010; p. 5; NORTON, 1972, p. 31). Com a chegada da era
vitoriana, em 1837, o estilo gótico sofreu novas mutações (GATES, 1976, p. 12). Mesmo
continuando ligado ao passado, o horror gótico alcançou temas contemporâneos aos autores,
fazendo com que a zona urbana londrina exalasse medo. Essas adaptações podem ser
observadas na escrita de autores da época, como Charles Dickens e as irmãs Brontë (JONES,
2010, p. 10). O estilo gótico passou a ser usado não para determinar o lugar ou época, mas o
estilo e o tema (GATES, 1976, p. 13).

Uma importante compilação de temas encontrados na ficção gótica foi feita por
Sedgwick e pode ser encontrada em vários trabalhos, como visto em Gamer (2002) e Jones
(2010). A lista fala de

[...] uma ruína opressiva, uma paisagem selvagem, uma sociedade católica ou
feudal... A sensibilidade trêmula da heroína e a impetuosidade de seu amante... O
homem mais velho, tirânico, com o olhar penetrante, que vai encarcerar e tentar
estuprá-las ou assassiná-las... As formas do romance:... Descontínuos e complexos...
Contos dentro de contos, mudanças de narradores, e tais dispositivos de
enquadramento como manuscritos encontrados ou histórias interpoladas... Certas

57
―Yet Reviews, for their own financial health, were forced to anticipate popular taste even as they sought to
mold it, and therefore usually seized critical positions from which they could remain separate from popular taste
while not fully opposing it. In this light, gothic's massive popularity presented for them an uncomfortable
quandary - a situation in which periodicals risked alienating readers by reviewing gothic texts negatively, yet
where gothic's triply damned status as popular, feminized, and disposable pointed to the very traits that Reviews
most wished to deny about themselves‖ (GAMER, 2000, p. 69).
65

preocupações características... Sacerdócio e instituições monásticas; Estados de


sonâmbulos e zumbíticos; Espaços subterrâneos e enterro vivo; duplos; A descoberta
de laços familiares obscurecidos; Afinidades entre a arte narrativa e a arte pictórica;
Possibilidades de incesto; Ecos ou silêncios não naturais, escritos ininteligíveis e
indizíveis; Retentores espalhafatosos; Os efeitos venenosos da culpa e da vergonha;
Paisagens noturnas e sonhos; Aparições do passado; Figuras faustianas e parecidas
com o do judeu errante; Insurreições civis e incêndios, ossuários e hospícios58
(SEDGWICK 1986, p. 9-10, apud JONES, 2010, p. 7).

De forma concisa pode-se considerar como temas principais a luta do bem versus o
mal (GATES, 1976, p. 13; NORTON, 1972, p. 32), a redenção pelo amor versus a
sexualidade (GATES, 1976, p. 17) e o castelo amaldiçoado (RAILO, 1964, p. 7, apud
GATES, p. 21; ZAJAC, 2010, pp. 191-201; NORTON, 1972, p. 33; LOVELL-SMITH, 2008,
p. 101). O isolamento da casa de campo, de instalações de isolamento como sanatórios,
hospitais e de outros prédios do tipo, faz parte do horror gótico, contrastando a grandiosidade
desses espaços amplos com a decrepitude dos mesmos (GATES, 1976, pp. 22-23). Para Zajac
(2010),

Railo está convencido de que o castelo assombrado desempenha um papel


imensamente importante na ficção gótica, e sem ele ―todo o tecido do romance seria
privado de sua fundação e perderia sua atmosfera predominante‖ (p. 8). O
significado desse elemento vem, em parte, da conexão do termo ―gótico‖ com a
arquitetura no século XVIII59 (p. 192).

Para Julia Kristeva (1982, pp. 17-55, apud ZAJAC, 2010, p. 197), o gótico é o estilo
no qual arquétipos da sociedade londrina eram ressignificados como figuras fantasmagóricas
ou monstruosas, num processo de abjeção. Segundo Zajac, o castelo assombrado é o lugar
onde todos os ―monstros‖ da moralidade repressiva se refugiam.

[...] O castelo assombrado, onde alguns representantes de uma civilização


desaparecida lutam para manter sua fortaleza contra uma nova ordem que ameaça
esmagá-los. Pode ser percebido como o espaço social, este reino perturbador em que

58
―[…] an oppressive ruin, a wild landscape, a Catholic or feudal society…the trembling sensibility of the
heroine and the impetuosity of her lover…the tyrannical older man wit the piercing glance who is going to
imprison and try to rape or murder them…the novels form:…discontinuous and involuted…tales within tales,
changes of narrators, and such framing devices as found manuscripts or interpolated histories…certain
characteristic preoccupations…priesthood and monastic institutions; sleeplike and deathlike states; subterranean
spaces and live burial; doubles; the discovery of obscured family ties; affinities between narrative and pictorial
art; possibilities of incest; unnatural echoes or silences, unintelligible writings, and the unspeakable; garrulous
retainers; the poisonous effects of guilt and shame; nocturnal landscapes and dreams; apparitions from the past;
Faust and Wandering Jew-like figures; civil insurrections and fires, the charnel house and the madhouse‖
(SEDGWICK 1986, pp. 9-10, apud JONES, 2010, p. 7).
59
―Railo is convinced that the haunted castle plays an immensely important role in Gothic fiction, and without it
‗the whole fabric of the romance would be bereft of its foundation and would lose its predominant atmosphere‘
(p. 8). The significance of this element comes, in part, from the connection of the term ―Gothic‖ with the
architecture in the eighteenth century‖ (ZAJAC, 2010, p. 192).
66

o ‗esquema patriarcal da heterossexualidade‘ (Jarraway, 2000, p. 17) se transforma


na morte de um adolescente60 [...] (ZAJAC, 2010, p. 198).

Outra autora que traz considerações pertinentes sobre os castelos góticos é Rose
Lovell-Smith, no artigo intitulado ―On the gothic beach: a New Zealand reading of house and
landscape in Margaret Mahy‘s The Tricksters‖ (2008). Lovell-Smith analisa aspectos na trama
de Mahy, observando

[...] três características notavelmente persistentes da casa gótica: a dificuldade de


entrar nela; sua extensividade misteriosa ou labiríntica (esta casa é de alguma forma
maior no interior do que no exterior); e seu afastamento e isolamento em um cenário
solitário, rural, talvez selvagem, incivilizado e desolado61 (LOVELL-SMITH, 2008,
p. 101).

Nesse cenário gótico, ―as portas e passagens do castelo [...] são extremamente
numerosas, sinuosas e estreitas, de modo que formam um verdadeiro labirinto‖62 (RAILO,
1964, p. 11, apud LOVELL-SMITH, 2008, p. 103). A extensão dessas residências góticas e a
forma complexa com que os cômodos se organizam revela, para Lovell-Smith, a própria
família que ali habita, ―cheia de segredos, diferenças, distâncias, tensões e histórias não
contadas‖63 (LOVELL-SMITH, 2008, p. 103).

Jhonatan Harker se sente amedrontado pelo aspecto labiríntico do castelo de Drácula,


assim como relata em seu diário: ―portas, portas e mais portas; portas onipresentes, portas
fechadas e trancadas. Em lugar algum – exceto nas altíssimas janelas que pontuam as
muralhas – encontrei uma saída. O castelo é uma verdadeira prisão, e eu sou um prisioneiro
(STOKER, 2014, p. 90). Essas casas estão presentes em, por exemplo, Jane Eyre e Wuthering
heights. De acordo com Lovell-Smith, não se pode esquecer outros mecanismos que operam
nesse cenário: criados que não tratam bem as visitas e as portas trancadas. A questão da
presença dos personagens nas mansões e castelos assombrados tem estreita relação com o
gótico. De acordo com Ellis (apud LOVELL-SMITH), ―a vertente da cultura popular que

60
―[…] haunted castle where a few representatives of a vanished civilization struggle to maintain their fortress
against a new order that threatens to crush them. It can be realized as the social space, this disturbing realm in
which the ―patriarchal scheme of heterosexuality‖ becomes the death of a teenager […]‖ (ZAJAC, 2010, p. 198).
61
―[…] three remarkably persistent features of the Gothic house: the difficulty of getting into it; its mysterious or
labyrinthine extensiveness (this house is somehow bigger on the inside than the outside); and its remoteness and
isolation in a lonely, rural, perhaps wild and uncivilized, even desolate, setting‖ (LOVELL-SMITH, 2008, p.
101).
62
―the castle doors and passages [...] are extremely numerous, winding and narrow, so that they form a veritable
labyrinth‖ (RAILO, 1964, p. 11, apud LOVELL-SMITH, 2008, p. 103).
63
―[…] fuller of secrets, differences, distances, tensions, and untold histories‖ (LOVELL-SMITH, 2008, p. 103).
67

chamamos de romance gótico pode ser distinguida pela presença de casas em que as pessoas
estão trancadas por dentro e por fora das casas‖64 (ELLIS, 1989, p. 3, apud LOVELL-SMITH,
2008, p. 101).

O vento também tem papel importante nesses cenários góticos (LOVELL-SMITH,


2008, p. 103; RAILO, 1964, p. 13). A natureza desempenha a voz das emoções em tramas
românticas, mas em romances góticos surge como força incontrolável que pode ampliar a
sensação de desamparo dos personagens.

As cercanias do castelo também fazem parte das características assombrosas desses


cenários góticos, fazendo com que os personagens se sintam à beira do abismo, isolados ou
mesmo impedidos de retornar à civilização (LOVELL-SMITH, 2008, p. 104). Para Lovell-
Smith, tal aspecto denota a alienação do personagem protagonista, que precisa solucionar seu
problema familiar (resgatar a herança, descobrir a verdade, enfrentar o patriarcalismo etc)
para se libertar. Não há qualquer chance de ajuda fora do ambiente familiar, mesmo porque
não há sentido fora desse contexto. O que resta é apenas a vastidão do espaço natural, sem
qualquer comunicação.

O pensamento de Lovell-Smith, que reúne a teoria de Railo (1964) e o pensamento


feminista, parece conjugar nossas aflições. Olhando por esse prisma, a mansão ou o castelo
gótico é ―o reino do patriarcado, e mulheres e crianças são frequentemente suas vítimas‖65
(LOVELL-SMITH, 2008, p. 106). Para Norton (1972, p. 37), as grandes arquiteturas, as
figuras autoritárias, a moral familiar e as convenções sociais no romance gótico
representariam o superego em face do id.

Para Norton (1972), o romance gótico consegue agregar forma e conteúdo (p. 31).
Desde os primeiros textos de Walpole e Radcliffe é possível observar o trabalho minucioso da
―pintura de cenários‖ através das palavras (p. 32), feito usado para ampliar o efeito estético
das obras. Além disso,

Uma sensibilidade cada vez mais refinada a várias formas de arte, especialmente a
música, frequentemente está subjacente ao padrão de ação de muitos romances
góticos, de tal forma que o crescimento e o status social de seus personagens são

64
―The strand of popular culture we call the Gothic novel can be distinguished by the presence of houses in
which people are locked in and locked out‖ (ELLIS, 1989, p. 3, apud LOVELL-SMITH, 2008, p. 101).
65
―[…] the realm of the patriarch, and women and children are frequently its victims (LOVELL-SMITH, 2008,
p. 106).
68

frequentemente correlatos à sua resposta à poesia e música do que à sua inculcação


pelas virtudes orais66 (NORTON, 1972, p. 32).

A busca pelo efeito do ―sublime‖, que segundo Edmund Burke (apud NORTON,
1972) pode ser definido como ―uma união estética que opõe a agonia romântica e o repouso
clássico‖67 (1972, p. 33), parece ser a tônica do romance gótico: o medo é sedutor, faz com
que o leitor retorne para seu mundo se sentindo acolhido. Os opostos também fazem parte da
dinâmica do romance, forças do bem lutando contra forças do mal, como preto e branco são
completamente contrastantes. A imagem do castelo cercado por um ambiente pastoril também
parece fazer parte dos contrastes usados no romance gótico (p. 34).

A própria forma do romance, por fim, constrói a tônica do horror: o contraste de


momentos sublimes e belos atinge a tensão necessária para o efeito desejado. Segundo
Norton, ―de uma maneira muito mais complexa – o que demonstra a percepção psicológica
dos romancistas góticos – o horror é em si mais uma experiência estética da união de opostos
do que uma reação psicológica de medo intenso‖68 (1972, p. 34). Mas em que difere o
romance gótico de outros tipos de escrita é na capacidade de ser grotesco, porém divertido. É
importante que o romance gótico tenha momentos de ―humor burlesco‖, para que os
contrastes e o alívio existam.

O que é grotesco reside no sublime e, segundo pesquisadores, essas duas magnitudes


fazem parte da construção estética da modernidade (CHAO, 2006). A definição que vem
sendo adotada e que foi reconfigurada no século XVIII é a de uma combinação paradoxal de
―prazer e dor, ou terror e deleite‖69 (CHAO, 2006, p. 1).

Esse horror se encontra na incompletude da imagem grotesca, sempre em


metamorfose. O prazer que se extrai dessa visão vem da ideia de que a deformidade faz parte
do sublime. Essa incompletude se opõe à imagem do ser completo e unificado (BURKE,
1990, p. 70, apud CHAO, p. 9). O corpo grotesco e inacabado porvir, anunciando as
deficiências do homem e aguçando-lhe as emoções. As reações que advêm do contato com

66
―An increasingly refined sensitivity to various forms of art, especially music, frequently underlies the pattern
of action of many Gothic novels, so much so that their characters‘ growth and social status are often more
correlative to their response to poetry and music than to their inculcation of the oral virtues‖ (NORTON, 1972, p.
32).
67
―[…] is an aesthetic union of the opposites of romantic agony and classical repose‖ (NORTON, 1972, p. 33)
68
―[…] in a much more complex manner – which demonstrates the Gothic novelists‘ psychological insight –
horror is in itself more of an aesthetic experience of the union of opposites than a psychological reaction of
intense fear‖ (NORTON, 1972, p. 34).
69
―[…] pain and pleasure or terror and delight‖ (CHAO, 2006, p. 1).
69

essa imagem colocam o espectador em contato com reflexões íntimas sobre sua própria
experiência e seus paradigmas (BAKHTIN, 1984, p. 25, apud CHAO, p. 10).

Para Michael J. Matthis (2010), a tensão que provoca o efeito da apreciação estética do
grotesco e a emergência do sublime são questões que surgiram no Iluminismo. A
racionalização e a busca por explicações científicas para fenômenos naturais produziram um
pensamento generalizador e objetivo sobre fenômenos até mesmo metafísicos (2010, p. 2;
SCHOOLMAN, 2001, p. 3). Essa tensão entre polos objetivos e subjetivos persiste existindo
(MATTHIS, 2010, p. 3). A apreciação da estética grotesca e sublime, por exemplo, recai na
tensão desses polos. Matthis (2010) lê Hume e nos explica sobre a objetividade da beleza;
segundo o filósofo, o prazer estético estaria aliado à ética, e o gosto um sentimento universal
inserido na capacidade de distinguir qualidades e defeitos e parte da natureza humana (2010,
p. 6). Kant, em oposição, observa no gosto a subjetividade inerente a cada ser, e, segundo o
filósofo, a apreciação da arte nos coloca de forma tão direta com nossa subjetividade que, sem
essa crítica, não seríamos capazes de alcançar dogmas metafísicos (apud MATTHIS, 2010, p.
8). Segundo Matthis, o desejo de explorar o grotesco indicaria ―a distância que nos separa das
purezas metafísicas dos filósofos pré-iluministas, e das experiências estéticas dos pensadores
iluministas‖70 (2010, p. 8).

O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação; o sublime,


contrariamente, pode também ser encontrado num objeto sem forma, na medida em
que seja representada nele uma limitação ou por ocasião desta e pensada, além disso,
na sua totalidade. [...] Denominamos sublime o que é absolutamente grande. [...] O
último é o que é grande acima de toda a comparação. [...] Trata-se de uma grandeza
que é igual simplesmente a si mesma. Daí se segue que o sublime não deve ser
procurado nas coisas da natureza, mas unicamente nas nossas ideias; [...]. A natureza
é, portanto sublime naquele entre os seus fenómenos cuja intuição comporta a ideia
da sua infinitude. Isto não pode ocorrer senão pela própria inadequação do máximo
esforço da nossa faculdade de imaginação na avaliação da grandeza de um objeto.
[...] A verdadeira e invariável medida fundamental da natureza é o todo absoluto da
mesma [...] (KANT, 1990, pp. 137-150).

Para Kant (p. 115, apud CHAO, p. 10), esse efeito estético do contato como sublime se
alcança graças ao choque mental da compreensão de que representações produzidas não
podem abarcar o universo. Como Lyotard argumenta sobre o sublime kantiano, não é possível
representar uma grandeza e poder infinitos, porque não é possível que nossa compreensão
apreenda essas ideias (LYOTARD, 1987, p. 22). De acordo com o autor, a arte moderna nasce

70
―[…] the distance separating us from the metaphysical purities of pre-Enlightenment philosophers, and the
aesthetic experiences of Enlightenment thinkers‖ (MATTHIS, 2010, p. 8).
70

justamente da tentativa de representação daquilo que não é possível ser representado. Sendo
assim, retomamos o conceito de pós-modernidade, pois

O pós-moderno é aquilo que remete, na sua apresentação, a um não apresentável [...]


que inicia uma procura de novas apresentações [...] para afiar a sensibilidade para o
fato de que existe o inapresentável. [...] Dever-se-ia finalmente chegar à conclusão
de que não cabe a nós entregar a realidade, mas achar alusões a um pensável que não
possa ser apresentado (1987, p. 22).

Assim sendo, essa arte materializa

o que há de ―impresentificável‖. Fazer ver que há algo que se pode conceber e não
se pode ver nem fazer ver. (…) Mas como fazer ver que há algo que não pode ser
visto? O próprio Kant indica a direcção a seguir, nomeando o ―informe, a ausência
de forma‖, um indício possível do ―impresentificável‖. Também diz da abstração
vazia que sente à procura de uma ―presentificação‖ do infinito (outro
―impresentificável‖) que essa abstração em si mesma é como uma ―presentificação‖
do infinito, a sua ―presentificação‖ negativa. Cita o ―Não farás para ti imagem de
escultura, etc.‖ (Êxodo, 2.4) como a passagem mais sublime da Bíblia, no sentido
em que proíbe qualquer ―presentificação‖ do absoluto (LYOTARD, 1987, pp. 22-
23).

Prosseguindo, a respeito dessa que seria a ideia de Eldrige, ―a persistência do


romantismo‖ – algo encontrado em todos os lugares (2001, p. 11), seria ―esforço de
envisionar possibilidades humanas de alcançar o valor, assim como são alcançadas de modo
exemplar na carreira de um protagonista especialmente situado‖71; ou mesmo esse desejo de
que exista crescimento (seja moral, espiritual) através do sofrimento e do aprendizado. Para
Eldridge, o romantismo existe e persiste em autores, artistas, filósofos e poetas, seja do século
XVII ou XXI, já que exprime a vontade de liberdade, a compreensão da incompletude e a
crítica à razão em face da subjetividade (2001, p. 27). Esse ―retorno do romantismo‖ na
contemporaneidade existiria na expectativa de renovar-se ao entrar em contato com a natureza
– mas é preciso que se compreenda que esse é (e era) um interesse de um homem de classe
média (ELDRIDGE, 2001, pp. 6-7). Parece difícil para os poetas românticos que os
problemas sociais sejam parte de seu foco de interesse: para Eldrigde, faltou-lhes sair do
mundo reducionista que eles mesmos construíram, em torno de fugas para um cidadão já
privilegiado (ELDRIDGE, 2001, pp. 8-10). Essas fugas elaboradas encontram o presente real
e imediato, cercado de dor, e é por isso que, muitas vezes, a poesia romântica pode conter
ironia e fragmentação (ELDRIDGE, 2001, pp. 25-27). A saída é a gratidão, sentimento que

71
―[…] the effort to envision human possibilities of the achievement of value, as these are achieved in an
exemplary way in the career of a specially situated protagonist‖ (ELDRIDGE, 2001, p. 11).
71

parece equilibrar a conclusão de muitas obras, tanto literárias quanto musicais (ELDRIDGE,
2001, pp. 27-28). Opondo-se a essa análise, Stevens observa que os poetas românticos se
envolveram na política; eles eram idealistas (2004, pp. 18-19). A crença no ideal do herói tem
relações com as revoluções que aconteceram na França e fariam parte das ideias marxistas
(STEVENS, 2004, p. 19). O desejo de retomar o romantismo se dá, segundo Eldridge, porque

nós vemos e sentimos e ouvimos não só as quididades materiais nuas, mas a luz do
sol e a brisa naquele abeto dentado, ou brincando sobre aquele antigo redil,
juntamente com lembranças e antecipações, de realização e perda, de resistência e
moralidade. O pensamento aqui é que, sem o exercício da percepção,
imaginativamente informada e pensativa, não há habitação humana da realidade,
nem lugar na realidade para a vida humana. É a imaginação criativa e responsiva que
encontra, ao mesmo tempo, lugar para a mente caminhar despreocupada na realidade
natural e para que se possa visionar futuros lugares em face dos desapontamentos
vividos no presente. Ao exercer uma imaginação criativa e sensível, o poeta
romântico busca, nas palavras de Larmore, não só o sublime, mas também a
―recuperação da magia da vida cotidiana‖72 (2001, p. 3).

Eldridge enxerga no romantismo o desejo do homem de colocar-se como uma espécie


de ―tradutor da realidade‖, algo similar ao estatuto do artista pós-moderno, que observa no
descortinamento da documentação dos fatos a centelha humana. Diferente do romântico, o
pós-moderno enxerga até mesmo em seus atos as ideologias das representações previamente
inculcadas pelo próprio sistema linguístico e cultural que subjaz a todas as suas criações
(HUTCHEON, 2000). Não há mais a inocência da criação romântica pessoal, mas ao mesmo
tempo não se pode retornar para a também inocente visão do fazer humano como processo
livre de abstrações e paixões. Sem nos esgotarmos no impasse pós-moderno, segue-se com
uma breve revisão de literatura sobre Drácula, de Bram Stoker, para adentrarmos,
posteriormente, no corpus da pesquisa.

2.4 DRÁCULA

72
―We see and we feel and we hear not just naked material quiddities, but the sunlight and the breeze in that
jagged fir tree, or playing over that ruined sheepfold, together with attendant memories and anticipations of
achievement and loss, endurance and morality. The thought here is that without the exercise of imaginatively
informed, thoughtful perception there is no human habitation of reality, no place in reality for human life. It is
creative-responsive imagination that both finds habitations for mindedness within natural reality and envisions
further ideal habitations in the face of present disappointments. In exercising creative-responsive imagination,
the Romantic poet aims, in Larmore‘s phrase, not only at the sublime but also at ‗the recovery of the magic of
everyday live‘‖ (ELDRIDGE, 2001, p. 3).
72

O sucesso do livro Drácula se deve, segundo M. M. Carlson no artigo ―What Stoker


saw: an introduction to the history of the literary vampire‖ (1977), a dois fatores: ao material
coletado por meio de pesquisas etnográficas e ao corpo ficcional já existente sobre vampiros.
Apesar de vampiros pertencerem aos folclores europeus73 anteriores à literatura, a
representação popular desse monstro se popularizou graças às publicações ficcionais.
Segundo Carol Senf, em Dracula: between tradition and modernism (1998), Stoker foi o
primeiro a estabelecer o vampiro como um ícone literário, transformando-o do folclore
pertencente às lendas locais de povos remotos a personagem contemporâneo dos leitores (p.
7). O romance foi escrito 70 anos depois do fim da era do romance gótico. A longevidade e a
transformação do personagem também são notadas por muitos pesquisadores, como Sarah L.
Peters no artigo ―Repulsive to Romantic: The Evolution of Bram Stoker‘s Dracula‖ (2002). O
personagem é contextualizado de acordo com as influências do corpo de produção de filmes,
por exemplo, o que causa modificações, omissões e adesões ao enredo e aos personagens.
Apesar da premissa de cada lançamento ser a de fidelidade com a obra original, o que ocorre é
uma ―aculturação‖ do contexto contemporâneo à adaptação de novos filmes ou livros. As
necessidades e gostos do público também são levados em conta, por exemplo, em produções
como Dracula (1931), de Tom Browning; que levou em conta os valores cristãos da audiência
de forma a amenizar ofensas religiosas que pudessem surgir na exibição do filme (PETERS,
2002, p. 9). Já Dracula de Bram Stoker (1992), de Francis Ford Coppola, faz parte de um
contexto em que aspectos religiosos já não estão tão enraizados na cultura, e, por isso, o
longa-metragem utiliza elementos considerados sagrados que, no enredo, já não produzem o
mesmo efeito ao monstro – eles não representam mais uma ameaça, por exemplo (PETERS,
2002, p. 9).

Vampiros aparecem em literatura de ficção há muitos anos – por exemplo, em


Satíricon74, obra escrita provavelmente no ano de 60 d. C. por Gaius Petronius Arbiter. Mas,

73
É importante salientar que, apesar de toda a pesquisa etnográfica desenvolvida pelos escritores aqui referidos,
para ter resultado na construção do vampiro como personagem mítico literário ainda visto em obras
contemporâneas, é preciso entender que, fora do eixo cultural ocidental europeu, existem outras manifestações
similares. Não entraremos em detalhes por esse não ser o foco da pesquisa, mas, apenas para esclarecimentos, a
obra de Richard Noll contém detalhes sobre manifestações desse tipo folclórico em outras culturas (NOLL,
Richard. Vampires, Werewolves, and Demons: Twentieth Century Reports in the Psychiatric Literature. Nova
Iorque: Brunner/Mazel, 1991).
74
A Lâmia, personagem mítica grega, devora corpos de crianças e é associada aos vampiros e súcubos. Ela
aparece numa história de Satíricon, de Petrônio, contada por Trimalchio (1993, p. 63), sobre uma bruxa que suga
toda a vida do filho de uma mulher (Petronius Arbiter. Petronius. Satyricon. Michael Heseltine. London. William
Heinemann. 1913). Folcloricamente, há a Lâmia de Libis, figura usada pelas mães romanas para assustar seus
filhos, a fim de que eles fossem obedientes, conforme relato de Horácio em Ars Poetica.
73

segundo Carlson (1977), o vampiro moderno é resultado de uma reação ao racionalismo. O


mito, bem ajustado à persona que se desenvolveu na literatura, é próprio do romantismo e se
encaixa perfeitamente no embate ao Iluminismo. Dentre os trabalhos mais representativos
75
estão a balada Die Braut von Korinth (1797), de Goethe, e The Vampyre (1819), de John
Polidori.

O último, escrito junto com Mary Shelley e Byron, não pode ser perdido de vista em
sua importância. The Vampyre conta a história da amizade de Lord Ruthven com Aubrey, um
jovem inglês. Após episódios estranhos com a morte de conhecidos e lendas de vampiros, a
viagem de ambos os leva até o momento em que são atacados por bandidos e Ruthven é
gravemente ferido. Prometendo não contar nada a ninguém pelo prazo de um ano e um dia,
Aubrey se surpreende ao encontrar Ruthven novamente em seu lar, pronto para se casar com
sua irmã. Após esperar o prazo, Aubrey envia uma carta para avisar a irmã. Ele acaba
morrendo e a irmã não recebe a carta. A pobre coitada é encontrada sem sangue em seu leito
de núpcias.

É nessa publicação que se encontram praticamente todos os atributos pelos quais os


vampiros viriam a ser conhecidos contemporaneamente: força física, palidez, sexualidade
hipnótica, alimentação à base de sangue e malignidade. Ocorre, segundo Carlson, que muito
do que Polidori projetou em seu próprio vampiro já era traço do vilão gótico presente em
outras literaturas como Castle of Otranto (1764), de Walpole, The old English Baron (1777),
de Clara Reeve, e Mysteries of Udolpho (1794), de Ann Radcliffe. Essas características
seriam o desejo de vingança, corromper os inocentes, destruir o que é belo, usar locais
exóticos e castelos em ruínas e imoralidade (CARLSON, 1977, p. 27). O que há de diferente
em Polidori está nesse novo vampiro, que bebe sangue apenas de mulheres jovens, em
investidas sexualizadas e que estão fora de sua terra natal – um mote usado até os dias de
hoje.

Segundo Carlson, no século XIX os vampiros já eram muito populares e estavam entre
os assuntos mais abordados na ficção ocidental. O romance foi copiado em muitos lugares,
dando origem ao inglês Varney the Vampire ou The Feast of Blood (1847), de Thomas
Preskett Prest. Em The horror at Fontenay, Alexandre Dumas traz outros dois motes da

75
A noiva de Corinto conta a história de uma noiva que volta do túmulo apenas para entender que não deveria tê-
lo feito e se arrepender, pois se tornou uma vampira e amaldiçoou seu noivo. Ao final da balada, pede à mãe e ao
pai que a queimem junto do amado.
74

tradição literária vampiresca: a falta de sombras e de reflexo no espelho. Ambos os efeitos


seriam causados pela falta de alma dos vampiros.

La morte amoreuse (1836), de Theophile Gautier, é, para Carlson, uma das melhores
histórias de vampiro já escritas.

O vampiro de Gautier é uma cortesã adorável, cuja influência envolve um jovem


padre em uma vida dupla. Ao ato proibido pela bíblia de beber sangue humano,
Gautier adiciona o sacrílego ato de seduzir carnalmente um homem de Deus.
Clarimonde, a vampira, é destruída por água benta ao final da história 76
(CARLSON, 1977, p. 27).

La famille du Vourdalak e Oupyr, de Aleksei K. Tolstoi, foram publicados na Rússia


em 1841, ambos escritos em francês. A literatura alemã também sofreu influência da obra de
Polidori, mas a maioria das obras, segundo Carlson, é de teor sensacionalista, chegando a ser
pornográfico, como em Die Vampyre der Rezidenz (1900), de Seltzam.

É por volta da metade do século XIX que as vampiras sedutoras se tornam o centro das
atenções em publicações como Chastelard (1865), de Swinburne, e Prizraki-Fantaziia
(1863), de Ivan Turgenev. Mas é apenas em Carmilla (1872), conto de Joseph Sheridan ―Le
Fanu‖, que esse personagem gótico se torna ainda mais sofisticado. No conto, Micarlla suga
de suas jovens e nobres vítimas mais do que o sangue: ela toma suas personalidades. É nesse
conto que Stoker parece ter se inspirado para compor Drácula, já que é ―Le Fanu‖, segundo
Carlson, quem primeiro insere no mito do vampiro a metamorfose, a habilidade para
atravessar portas e passagens, a inatividade diurna e a necessidade de dormir em caixão,
aversão a artefatos cristãos e habilidade de hipnose. A vampira de ―Le Fanu‖ precisa se
chamar sempre com um anagrama de seu próprio nome: Mircalla, Millarca, Carmilla
(CARLSON, 1977, p. 28). Uma possível leitura pode se dar no sentido de que o vampiro se
transmuta, mas nunca deixa de existir enquanto um personagem inspirador na literatura
gótica.

A virada do século trouxe o renascimento do vampiro e do gótico para o período


vitoriano. Dentre as produções está a que figura como o romance de vampiro mais popular,
Drácula (1897), de Bram Stoker. Segundo Carlson, Stoker fez pesquisas intensas para a
composição do romance, utilizando, por exemplo, o livro de viagem à Romênia The land

76
―Gautier‘s vampire is a lovely courtesan whose influence involves a young priest in a double life. To the
biblically-prohibited act of drinking human blood, Gautier adds the sacrilegious act of carnally seducing a man
of God. Clarimond, the vampire, is destroyed by holy water at the end of the story‖ (CARLSON, 1977, p. 27).
75

beyond the forest (1888), de Emily Gerard. O nome Drácula, segundo Carlson, foi sugestão de
um orientalista húngaro chamado Ármin Vámbery.

Na década de 1970 as pesquisas sobre Drácula começaram a surgir, e um dos


primeiros trabalhos sobre isso foi publicado por McNally e Florescu, no livro In Search of
Dracula (1972). Esses autores foram os primeiros a aventar a possiblidade de que a inspiração
para Drácula tenha vindo dos registros históricos encontrados nas pesquisas feitas por Stoker
a respeito de Vlad V. Voivode of Wallachia (1431-76), ou Vlad Tepes, o empalador. A
conexão do nome “dracul” com o príncipe Valaquiano é incerta, já que pode ter a ver com o
fato de que seu pai pertenceu à ordem dos Draconianos, ou porque ―dracul‖ significa
―demônio‖ em romeno. O nobre, um dos responsáveis por repelir os turcos otomanos por
algum tempo, ficou famoso pelo hábito cruel de empalar pessoas com grandes estacas.
Manuscritos contando seus feitos circulavam na Europa desde 1485. Segundo Mathias
Clasen, em ―Attention, Predation, Counterintuition: Why Dracula Won‘t Die‖ (2012, p. 379),
essa afirmação vem sendo contestada por múltiplos autores graças às pesquisas genéticas dos
manuscritos deixados por Stoker. Evidências mostram que o autor se inspirou no nome
―Dracula‖ ao estudar um livro sobre a história Walaquiana, mas que nada sabia sobre Vlad
Tepes.

Apesar de haver bastante violência nos feitos de Vlad Tepes, Carlson admite que não
há real evidência que o conecte ao mito do vampirismo (1977, p. 29). Por outro lado, o
folclore húngaro e romeno é carregado desses seres sobrenaturais. Uma das histórias é a da
Condessa de Bathory, chamada de Lady Vampire, responsável por beber e se banhar no
sangue de cerca de 650 virgens antes de ser presa. Ao que nota Carlson, Stoker parece ter
dissolvido as duas histórias em uma só.

Além de usar o estilo gótico para a escrita do romance, Stoker foi responsável pela
inserção de traços do mito vampírico advindos das lendas romenas e que hoje residem na
cultura popular contemporânea, como ―a conexão do vampiro com o lobo, a aparição do
vampiro como pontos de luz, a introdução do Dia de São Jorge como o momento em que os
espíritos malignos rondam a terra, o uso de alho para repeli-los‖77 (CARLSON, 1977, p. 30).
Além disso, ele foi o primeiro a utilizar o mote de que o vampiro só pode estabelecer uma

77
―The connection of the vampire and the wolf, the appearance of vampires as points of light, the introduction of
St. George‘s Eve as the time when evil spirits freely roam the earth, the use of garlic to repel vampires‖
(CARLSON, 1977, p. 30).
76

conexão com sua vítima por vontade da própria e de que um morto-vivo não pode cruzar água
corrente.

Carslon elenca, ao final do texto, as diferenças entre o vampiro folclórico europeu e o


vampiro literário. Elaboramos a síntese no quadro abaixo:

Tabela 1: Características do vampiro na literatura.

Vampiro folclórico: Vampiro literário:


Normalmente do campesinato. Da aristocracia.
Mora perto da vila onde morava antes de ser um Vem de lugares distantes e exóticos, alhures de
vampiro. onde ataca.
Caça pessoas do próprio círculo social. Caça pessoas de sexo oposto.
Pessoa banal, contemporânea. Ancião (a), sábio (a), intelectual.
Caça sem relação com a sexualidade. Caça com apelo sexual.
Não há ligação com a cristandade. Padres e cristãos têm papel importante na sua
história.
É fruto de um fenômeno sobrenatural. É símbolo de inadequação aos desígnios divinos.
Origina-se através de ataque de vampiros, Origina-se através de pacto, normalmente.
maldições etc.
Pode ser morto queimado ou com estaca no peito. Tem poderes regenerativos, mas pode ser morto
com estaca no peito.
Fonte: Elaborado a partir de Carlson, 1977, pp. 30-31.

É importante ressaltar o caráter de herói byroniano agregado ao personagem do


vampiro na literatura gótica, similar, segundo Carlson, às figuras como Prometeu, Satã de
Milton, Fausto e o Judeu errante Ahsverus – um personagem mítico cristão, que se tornou um
errante após ter zombado do sofrimento de Jesus no calvário e ser amaldiçoado. Para o autor,
o vampiro virou um arquétipo da literatura ocidental por vários motivos: saído do folclore de
origem europeia, tornou-se mote por seu caráter romântico ligado ao nacionalismo. Saído do
âmbito reduzido ao qual fazia parte, esse personagem ancestral agregou novos sentidos à sua
existência na metrópole, adaptando-se ao mundo do leitor. Dessa forma, as figuras folclóricas
culturais ocidentais não desparecem; ao contrário, evoluem junto com os modos de vida da
sociedade. Aparentemente, esse personagem nunca sai de cena e permanece na cultura
popular na contemporaneidade, em filmes como, por exemplo, 30 Days of Night (2007), de
David Slade, Daybreakers (2010), de Michael Spierig, Let the Right One In (2008), de
Thomas Alfredson, a saga Twilight, de Stephanie Meyer, e Only Lovers Left Alive (2013), de
Jim Jarmusch.
77

A longevidade e a transformação do personagem também são notadas por muitos


pesquisadores, como Peters (2002). O personagem é contextualizado e se molda às
necessidades do público ao longo dos anos nas adaptações que são feitas do romance. A
principal mídia utilizada nesse processo vem sendo a cinematográfica, reinventando o
personagem desde Nosferatu (1922), de F.W. Murnau, passando por Dracula (1931), de Tod
Browning, a Bram Stoker‟s Dracula (1992), de Francis Ford Coppola. Tais filmes tiveram
papel importante na forma como o mito do vampiro foi se reconstituindo na
contemporaneidade e são mostras de adaptações particulares e pertinentes com o contexto de
cada diretor, o que evidencia que o monstro é reflexo de cada época em que vive.

Drácula deixa de ser um monstro e passa a ter nuances humanas conforme é


reinventado. Novas características são incorporadas – por exemplo, a aparência que o ator
Bela Lugosi deu ao personagem no longa-metragem de 1931 se agregou ao mito, assim como
novas habilidades que apareceram no filme de 1992. Dependendo do contexto, o teor sexual,
os símbolos religiosos e o poder da fé foram modificados. ―Produtores de filmes e contadores
de histórias recriam-no continuamente, adicionando novos elementos cada vez, perpetuando a
evolução deste personagem que fez o seu caminho entrando em nossa consciência coletiva‖78
(PETERS, 2002, p. 10).

No próximo capítulo, ampliaremos, de maneira breve, a revisão de literatura de


estudos de leitura de videogames que já está se iniciou na introdução. Com isso pretendemos
documentar as pesquisas que vêm sido publicadas no Brasil a respeito do tema e as diferenças
metodológicas e teóricas entre elas. São contemplados 13 textos, entre artigos, dissertações e
teses de pesquisadores brasileiros, publicados entre 2007 e 2015, e que ampliam a revisão
bibliográfica já feita anteriormente para a dissertação de mestrado defendida em 2015.

78
―Filmmakers and storytellers recreate him continually, adding new elements each time, perpetuating the
evolution of this character who has made his way into our collective consciousness‖ (PETERS, 2002, p. 10).
78

3 PESQUISAS CONTEMPORÂNEAS DOS GAME STUDIES – UMA REVISÃO ENTRE


2007 E 2015

Antes de iniciarmos uma pesquisa acadêmica, é imprescindível que nos dediquemos à


leitura dos textos que já foram defendidos e publicados na área de estudo até o momento.
Como mencionado anteriormente, nos debruçamos sobre as pesquisas durante o período em
que estivemos dedicadas à nossa dissertação, e agora, novamente, nos esforçamos para
resgatar o conhecimento que foi produzido sobre as palavras-chave que concernem nosso
trabalho: ―videogame‖ e ―literatura‖. No momento em que defendermos a tese, esse recorte
temporal (entre 2007 e 2015) parecerá datado, já que o início da pesquisa para a composição
da tese se deu em 2015 e a defesa se dá em 2018. Entenderemos, porém, que o debate das
ideias trazidas por essas publicações não tem dirimido sua importância com o passar dos anos,
pois foi fundamental, principalmente, para que a pesquisa desta tese se localizasse no âmbito
dos estudos de leitura e videogames durante o seu início, em 2015.

Para encontrar os artigos, dissertações e teses que revisamos e discutimos neste


capítulo, realizamos buscas no portal do Scielo e da Capes com as palavras-chave referidas
anteriormente: ―videogame‖ e ―literatura‖. No portal Scielo não foram encontradas
publicações; no portal da Capes foram encontrados quatro artigos e seis teses – dos quais,
apenas dois documentos nos interessam, intitulados ―L‘interfaccia testo/lettore: dal
videogame alla letteratura‖, de Marco Caracciolo (2011), da Universidade de Bologna, e
―Heavy Rain y Beyond: Dos almas. Dramas interactivos en la narración transmedia‖, de Jafet
Israek Lara (2014), da Universidade de Sevilla. Ambos foram comentados no primeiro
capítulo, no subcapítulo intitulado ―Processos cognitivos de leitura de jogos de videogame‖.

No âmbito nacional, foram encontradas pesquisas com as mesmas palavras-chave


(―videogame‖ e ―narrativa‖) apenas através das buscas do sítio virtual Google. Foi possível
verificar uma multiplicação, nos últimos anos, das publicações que concernem o assunto – o
que, do ponto de vista da pesquisa empreendida, ainda não as exime do que podem ser
chamadas lacunas teóricas no campo da crítica literária ou dos estudos de narrativa. De modo
a ilustrar tais brechas, foi organizada a tabela a seguir, a fim de que possa servir de base para a
discussão seguinte. Um dos trabalhos foi inserido após a defesa dessa tese, por indicação do
professor Alvaro Luiz Hattnher; apesar da extrema relevância do título, não podemos dizer os
motivos pelos quais a dissertação de mestrado de Mário Lousada de Andrade, de 2016,
79

intitulada Literatura e Games: Questões atuais do estabelecimento do campo literário não foi
encontrada nas nossas buscas.

Tabela 2: Conceito e estudo da narrativa nos jogos eletrônicos:


Ano T Autor Título da pesquisa Conceito e estudo da narrativa nos jogos
eletrônicos.

2005 A Henrique ―Influências dos meios digitais na Definição de narrativa por Janet Murray
Sobral et narrativa‖ (1997), apontamentos para criação de uma
al. nova crítica estética para as novas mídias,
por Lev Manovich (2001).

2008 T Luis Vídeo Game Design, uma análise da Narrativa como orientação da condução do
Claudio de estética conceitual do jogo; som e música citados como elementos
Oliveira entretenimento digital que enriquecem o significado da narrativa.
Tocchio

2009 D Erick A evolução narrativa e audiovisual Noções de interatividade mescladas à


Santos do videogame em “Final Fantasy” narrativa, em aproximação com aspectos da
Cardoso leitura.

2010 D Victor de Jogando com o drama: Análise das Mímesis e texto dramático.
Morais possibilidades dramatúrgicas em
Cayres videogames diante do
desenvolvimento tecnológico dos
consoles

2012 D Carlos ―Sobre Videogame e Cognição Cognição.


Baum inventiva‖

2012 A João ―Começo, Meio e Fim: Uma análise Significado que emerge da imersão.
Pereira dos elementos de narrativa nos
Lemos videogames‖
Costa

2012 A Cremilson ―A narrativa lúdica dos videogames: Narrativa segundo Nogueira (2008), sendo
Oliveira espaços possíveis de produção de prosaica ou poética.
Ramos et sentidos‖
al.

2013 D Clarissa Games contando histórias: uma Estudo da narrativa utilizando-se a noção de
Marquezepi discussão sobre a narrativa nos ―leitura‖ e ―preenchimento de lacunas‖, mas
Picolo JRPGs sem que haja uma formalização com o
suporte da Teoria da Recepção.

2013 D Daniel do Considerações Sobre Alucinação No Estudo da narrativa utilizando tipologias de


Amaral Jogo Eletrônico “Silent Hill 2”: Da Norman Friedman.
Denardi Plataforma Pc Num Viés Semiótico-
Psicanalítico

2013 T Luiz Filipe “Assassin‟s Creed”: literatura e Argumentação fugaz sobre narrativa e
Ribeiro dos videogame interação.
Santos

2014 D André Narrativas Digitais e Cibertextos de Discussão entre Ludologia x Narratologia,


Filipe Influência Histórica: Um Ensaio de adoção do termo Interatividade.
Amaral
80

Loureiro Game Design

2015 A Fernando ―Narrativa de Suspense: O Game Narrativa ―estrutural‖ (enredo, ação etc.) /
R. Stahnke Silent Hill‖ interação / imersão.
et al.

2015 A Mariano de ―Videogames e Consciência ―Narrativa dramática‖.


Azevedo Histórica: A experiência narrativa
Júnior das ficções históricas em
‗Bioshock‘‖

2016 D Mário Literatura e Games: Questões atuais Videogame como produto cultural com
Lousada de do estabelecimento do campo narrativa capaz de suscitar leituras críticas
Andrade literário Conceito de literatura amplo segundo
Candido (1999) e Jenkins (2009), por
exemplo.

Legenda: T – Tipo. A – Artigo; D – Dissertação; T – TCC.


Fonte: Compilação feita para a própria pesquisa.

Como forma de organizar a discussão sobre os dados levantados e distribuídos na


tabela acima, elencam-se, a seguir, tópicos que aglutinam as ideias e teorias defendidas pelos
estudiosos brasileiros: a) estudos que indicam a necessidade de uma nova crítica estética para
os estudos dos videogames; b) estudos que mesclam conceitos de interatividade com textos
dramáticos; e c) estudos que aludem à leitura em paralelo ao ato de jogar – ideia que se
vincula ao nosso ponto de vista.

3.1 ESTUDOS QUE INDICAM A NECESSIDADE DE UMA NOVA CRÍTICA ESTÉTICA


PARA OS ESTUDOS DOS VIDEOGAMES

Alguns estudiosos sentem a necessidade de que se abra um novo campo de estudos em


face aos atributos dos videogames. Exemplos dessa retórica são perceptíveis em trabalhos
como a dissertação de Carlos Baum, intitulada Sobre Videogame e Cognição inventiva
(2012), e sua ideia de que o videogame:

institui um tipo de relação distinto de tecnologias ligadas à lógica escrita e gera um


conhecimento mais operativo, um saber fazer que se deixa ver em operações
concretas ou corporais, de modo que o jogo não adquire sentido em sua leitura ou
observação, mas sim na sua operação. Mas que operação é essa? Diferente do
cinema, que tem como seu produto o filme, que pode ser repetido e analisado a
partir de uma concretude, o jogo eletrônico só acontece enquanto agência de sua
programação e do jogador. Cabe lembrar ao leitor que o jogo não pode ser reduzido
ao seu código de programação, tampouco essa camada de interação com o usuário.
81

O jogo só existe enquanto ação, como processo; na ausência da ação, o que resta é
um código guardado em um disco magnético (p. 43).

Ou seja, o pesquisador afasta o videogame de outras mídias ligadas à lógica escrita;


Baum (2012) entende que o exercício da leitura se separa do exercício de jogar um videogame
e que, além disso, filmes e textos literários (inserção nossa) são produtos prontos e concretos,
diferentes, portanto, dos jogos de videogames que necessitam de uma interação vívida do
jogador, para que o processo da ação seja conduzido. Isso certamente não se sustenta, tendo
em vista as acepções que temos dos processos de leitura tendo como horizonte a estética da
recepção.

Outra voz em razão de uma seção entre os game studies e outras áreas de
conhecimento é a de João Pereira Lemos Costa no artigo ―Começo, Meio e Fim: Uma análise
dos elementos de narrativa nos videogames‖ (2012), publicado nos Anais do SBGames,
estudioso defensor de que o sentido dos jogos advém da imersão e de conceitos estudados por
Marie-Laure Ryan (2011), teórica frequentemente referenciada nos trabalhos apreciados nesta
revisão. O recorte feito por Costa (2012) do trabalho de Ryan aborda conceitos para narrativas
em jogos que geram a imersão – termo que Ryan conceitua como uma ―suspensão de
descrença‖, podendo ser separado em categorias como a imersão espacial (identificação com
o espaço); imersão temporal (curiosidade, suspense e surpresa); imersão epistêmica
(compreensão e interesse pela história anterior ao jogo) e imersão emocional. Uma das
conclusões de Costa é de que

Como apontado por Thomas Grip (2011b) ainda há muito a se explorar nas
pesquisas sobre narrativas nos videogames, mas primeiro precisamos amadurecer no
desenvolvimento: ―Os videogames precisam encontrar sua própria voz‖. Enquanto
outras mídias mais antigas evoluíram e já foram alvo de maior experimentação em
técnicas narrativas por parte dos artistas que exploram estes meios, os videogames
ainda engatinham neste processo (p. 60).

Tomando as falas de Baum (2012) e Costa (2012), questionamos, então, sobre o perigo
em tentar estabelecer parâmetros singulares para a teorização do papel do jogador na
apreensão do significado do jogo de videogame. Ponderemos sobre dois riscos: a falta de
diálogo com teorias da leitura e teorias textuais já existentes, em primeiro lugar, produzem
discussões que requerem aprofundamento (porque já foram feitas anteriormente e já
produziram respostas); em segundo lugar, fazem parecer que o videogame é um objeto
completamente descolado da história dos textos e da leitura.
82

Por exemplo, não há qualquer menção aos estudos da Teoria da Recepção ou de


comparações do jogar o jogo com os processos de decodificação que ocorrem na leitura.
Ignorar discussões que se iniciaram na década de 1960 pelo teórico Hans Robert Jauss leva a
rasas assumpções de que, por exemplo, um livro ou um filme é um objeto estético acabado,
pronto para que o leitor/espectador o frua sem qualquer participação ativa – o que coloca o
videogame num outro extremo, como objeto capaz de suscitar no jogador uma interação
jamais vislumbrada dentro de qualquer área de estudos.

O videogame difere de um livro e de um filme porque requer que o jogador controle,


na maior parte das vezes, um avatar, e que, através do joystick79, interaja com o universo
ficcional de simulação ou simulacro criado pelo designer do jogo – mas os processos
cognitivos de interpretação do significado do jogo não se afastam dos processos da recepção
do leitor a partir do contato com o livro. A ideia da leitura da narrativa literária como a
apreensão de um significado pronto e ao qual o leitor tem acesso sem qualquer interação
(grosso modo, já que se pesquisadores dos game studies ressaltam a parcela interativa do
videogame com intensidade) já não faz mais parte dos estudos literários desde que estudos
como os da Teoria da Recepção começaram a questionar o papel do leitor e de sua
interpretação.

A estética da recepção e efeito precisamente não tem mais como seus objetivos
traçar o texto até o que ele ―quis dizer‖, até um significado escondido por trás dele,
ou o seu ―significado objetivo‖. Mais do que isso, essas propostas definem o
significado de um texto como a convergência da estrutura de um trabalho e a
estrutura da interpretação que estará sempre por ser construída. Seus instrumentos
não são outros senão a reflexão hermenêutica, empregada conscientemente e
controladamente, o que deve acompanhar qualquer interpretação80 (JAUSS, 1979, p.
84).

Três processos acompanham a leitura na perspectiva da estética da recepção: a


interpretação, que é a compreensão da mensagem do texto, apreciando o prazer que ele
proporciona durante a leitura; a compreensão do texto, das estruturas e condições dispostas
nele; e a aplicação, que implica na compreensão do leitor através de sua experiência e
condições sociais, temporais, econômicas e políticas, o que finda a leitura no julgamento do

79
Controle de videogame, através do qual o jogador envia os comandos e efetivamente joga o jogo.
80
―The aesthetics of reception and effect precisely do not any longer have as their goal the tracing of a text back
to its ‗statement,‘ to a significance hidden behind it, or to its ‗objective meaning.‘ Rather, they define the
meaning of a text as a convergence of the structure of the work and the structure of the interpretation which is
ever to be achieved anew. Their instrument is nothing other than the hermeneutic reflection, consciously and
controllably employed, which must accompany all interpretation‖ (JAUSS, 1979, p. 84).
83

texto e no levantamento de questões emanadas por ela (JAUSS, 1979, p. 85). Importante
salientar, ainda, que o ato de leitura do texto não é subjetivo – ao contrário, embasa-se na
própria disposição física do mesmo.

Outra perspectiva norteadora para o estudo da interação jogador x videogame (no


sentido que focalizamos nosso trabalho, ou seja, da emergência da compreensão do texto –
narrativa, história, enredo, personagens, compreensão etc.), calca-se nos estudos textuais. Tal
perspectiva parte dos seguintes pressupostos:

a) O videogame é um objeto cultural e tem sua história, assim como todos os objetos
que fazem parte do nosso cotidiano cultural. Historiadores como Vera Lúcia Paiva
(2006), Sandra Jatahy Pesavento (2004) e Roger Chartier (2002), dentre muitos
outros, entendem que a cultura e o que a permeia (as práticas, os hábitos, os modos
como as pessoas se relacionam com os objetos e como os produzem etc.) têm uma
história, e o estudo dela se intitula História Cultural;
b) O estudo da História Cultural se desvela através da compreensão de uma espécie
de ―ciclo contínuo‖ de práticas e de representações que constituem a vida social, o
modo como as pessoas enxergam o mundo e como se relacionam com a cultura,
por exemplo. Como dito por Chartier, em A História Cultural entre práticas e
representações, ―a historia cultural, tal como a entendemos, tem por principal
objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler‖ (2002, pp. 16-17),
ou, como diz Pesavento, a História Cultural pesquisa como ―indivíduos e grupos
dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a
realidade‖ (2004, p. 39). Ou seja, a forma como lidamos com a realidade é a forma
como ela é constituída através dos contatos culturais que desenvolvemos através
dos tempos. A leitura, por exemplo, tem sua própria história cultural, investigando
como nos relacionamos com a leitura, como nos posicionamos fisicamente em
relação aos objetos de leitura, que objetos são esses, qual a mentalidade que está
por trás desse ato (cultural) etc;
c) O livro é um objeto cultural tecnológico, em paralelo a outras formas materiais de
textualidade. Segundo Chartier (1994) e Paiva (2006), o que define qual formato
será utilizado para a disseminação de informações se baseia no uso que será feito
dele. Quando Júlio César precisou de um papiro que pudesse manusear com mais
facilidade, ele contribuiu para a criação do códice. A diferença entre as duas
84

formas materiais de leitura era o fato de que uma era mais user friendly81 do que a
outra:
É, enfim, inegável que o códex permita uma localização mais fácil e uma
manipulação mais agradável do texto: ele torna possível a paginação, o
estabelecimento do índex e de correspondências, a comparação de uma passagem
com outra, ou ainda o exame do livro em sua integridade pelo leitor que o folheia
(CHARTIER, 1994, p. 102).

O formato material do livro mudou com o tempo para se adequar ao mercado, aos
leitores (aos modos, lugares e preferências de leitura) – em suma, às necessidades
culturais, sociais, econômicas e políticas que surgiam à medida que o tempo
passou. O avanço tecnológico do livro (tamanho, formato, tipo de papel, de
tipografia, capa etc.) também causou impacto na maneira como ele foi
recepcionado pelo leitor (e vice-versa, as exigências dos leitores descartavam
formatos menos simples ou fáceis de usar). Segundo Cilza Carla Bignotto (1998,
p. 5),

Ler um rolo de papiro, que precisa ser seguro com as duas mãos para se manter
aberto, é diferente de ler um códex, que pode ser apoiado em uma mesa, deixando as
mãos livres para anotar ou consultar outros livros; o que por sua vez é diferente da
leitura de um livro impresso de bolso, que pode ser manuseado em qualquer lugar –
e que se for perdido, não causará grande prejuízo ao dono.

d) O videogame também é um objeto de leitura. Ele não exclui outros formatos de


acesso a textos que convivem harmonicamente e em paralelo, como o livro, os
jornais, as revistas, os filmes, os e-books, os celulares, as telas de computador etc;
o que ocorre é que cada formato tem um uso e sua função e materialidade
correspondem às necessidades dos usuários. Os textual studies focalizam na
pesquisa dos formatos de escrita e tecnologia de impressão de materiais de leitura
e nas diferentes recepções e apropriações que eles proporcionam. Um dos escopos
dos textual studies são os estudos dos formatos digitais, que incluem, assim como
demonstra a descrição do curso de doutorado em Textual Studies do Departamento
de Literatura Comparada, Cinema e Mídia da Universidade de Washington, ―[…]
um estudo da textualidade digital desde o advento e queda do ‗hipertexto‘ até a
convergência e transmediação contemporânea em gêneros híbridos visuais-verbais:

81
Termo que denota uma ferramenta que seja de fácil uso, para o português usabilidade.
85

jogos de computadores, vídeos digitais e poesia digital‖82. Para Alan Galey et al.
(2011), é fundamental para os textual studies que não se estabeleçam limites entre
as materialidades de leitura e escrita, porque, quando se compreende que os
diferentes formatos se inscrevem numa história de práticas de produção e
apropriação de textos, é possível que se estude a história do avanço tecnológico da
leitura (do tradicional ao inovador) e que, ao mesmo tempo, se possa incorporar
metodologias e técnicas de estudo já estabelecidas à análise e pesquisa dessas
novas materialidades textuais.
A narrativa na qual uma tecnologia faz com que outra desapareça (pro bem ou mal
dessa), não mais se sustenta nos estudos textuais contemporâneos; ao contrário,
historiadores de livros como Roger Chartier (1995), Peter Stallybrass (2002), e
Adrian Johns (1998; e em Grafton, Eisenstein e Johns, 2002), e historiadores de
mídia como Lisa Gitelman (2006), tem nos levado a considerar como as tecnologias
escritas se intercalam e se modificam, e como essas tecnologias estão implicadas em
83
práticas de leitura que têm suas próprias histórias (GALEY et al., 2011, p. 39).

Portanto, a partir da leitura dos teóricos expostos até o momento, entendemos que os
estudos dos textos dos videogames (das narrativas sincréticas, das leituras feitas pelo jogador,
do modo de ler etc) se incorporam aos textual studies, aos estudos de leitura e de apreensão de
texto e à história cultural dos textos e da leitura. A separação dos estudos de leitura dos
videogames e de outras materialidades textuais provoca o desenvolvimento de pesquisas que
não dialogam com conhecimentos já produzidos, o que, de certa forma, só aumenta o abismo
entre mentalidades ―tradicionais‖ sobre o formato dos textos e as novas emergências no
campo dos estudos – o que dificulta, além disso, o surgimento de novas teorias sobre como a
leitura dessas (novas) materialidades híbridas se dão.

3.2 ESTUDOS DAS NARRATIVAS, DA LEITURA E DA INTERAÇÃO JOGADOR X


JOGO QUE MESCLAM CONCEITOS DE INTERATIVIDADE COM TEXTOS
DRAMÁTICOS

82
―[…] an examination of digital textuality from the rise and fall of ‗hypertext‘ to contemporary convergence
and transmediation in hybrid visual-verbal genres: computer games, digital video, and e-poetry‖. Disponível em:
<https://complit.washington.edu/textual-studies-program#requirements> Acesso em: 12 mar. 2016.
83
―The narrative in which one technology drives out another (for better or worse) no longer holds much force in
contemporary textual studies; rather, book historians like Roger Chartier (1995), Peter Stallybrass (2002), and
Adrian Johns (1998; and in Grafton, Eisenstein, and Johns 2002), and media historians like Lisa Gitelman
(2006), have prompted us to consider how writing technologies overlap and change each other, and how those
technologies are implicated in reading practices that have their own histories‖ (GALEY et al., 2011, p. 39).
86

A ideia que permeia toda a pesquisa que estamos desenvolvendo nos últimos anos é a
de que os videogames são objetos culturais sincréticos/policódices, que têm textos escritos em
códigos e textos que são sentidos que emergem da leitura, seja de imagens ou de sons– seriam
estes as narrativas apreendidas pelo jogador. Há outros elementos que envolvem a atividade
de jogar o jogo, e eles também influenciam na composição do significado do texto que
emergirá do jogo jogado. Em última análise, uma narrativa é o que subjaz a estruturação do
que o jogador conta da sua experiência de jogo.

Se o videogame é um objeto cultural estudado pelos textual studies e faz parte da


cultura escrita (composta por uma história de estudos textuais e literários), por que criar novas
teorias para o estudo das narrativas dos videogames? Ou, por que ignorar as correntes teóricas
já estudadas, sem usá-las como norte ou ponto de partida? Exemplo disso são pesquisas feitas
tanto dentro como fora do Brasil que insistem em usar teóricos como Johan Huizinga –
embora suas teorias não se apliquem aos videogames e sim a jogos tradicionais (JUUL, 2005),
ou aspectos antiquados para os estudos literários, como, por exemplo, análise estrutural de
narrativas.

Correntes de pensamento e de estudo, as teorias e as críticas (retóricas, formalistas,


estruturalistas, semióticas, teoria da recepção, da desconstrução e psicanalítica; crítica política
etc.) se diversificam nos estudos literários. A crítica literária ―seleciona, processa, corrige e
reescreve os textos de acordo com certas formas institucionalizadas do ‗literário‘‖
(EAGLETON, 2003, p. 279), com normas que são justificadas em seu uso e que variam
conforme o momento em que a crítica acontece. A crítica, em suma, produz e articula ideias e
discursos. Entendemos que o videogame, sumariamente, não seja classificado como literatura,
mas seu texto admite o uso de ferramentas formais dos estudos literários – já que ele é
também um objeto textual (além de oferecer uma interface que proporciona impacto físico e
sonoro ao jogador).

Sobre o problema da visão do videogame como texto dramático, debruçamo-nos em


outro ponto: o da interação objeto x usuário. O que certos autores (LAUREL, 1993;
MURRAY, 1997; FRASCA, 2003) vêm chamando de performance (que seria o ato de jogar o
jogo) levaria à interpretação de que o jogo de videogame seria, para a análise da narrativa, um
texto dramático. Norteia essas discussões a ideia de que os jogadores seriam atores enquanto
jogam, e que o videogame seria um texto dramático, uma peça. Para Victor de Morais Cayres,
em sua dissertação de mestrado em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia Jogando
87

com o drama: Análise das possibilidades dramatúrgicas em videogames diante do


desenvolvimento tecnológico dos consoles, isso se justifica,

Pois, qualquer que seja o drama encenado, a ação depende de que atores emprestem
seus corpos e vozes à cena (ainda que sejam corpos desenhados e vozes gravadas
como nas animações). O jogador, tal como o ator no drama, ao mesmo tempo em
que é espectador da ação (pois ambos veem os acontecimentos do ponto de vista de
seu personagem), tem o poder de interferir no modo como a ação se desenrola por
meio de um roteiro prévio ou improvisação (2010, p. 118).

Cayres acredita que a interação jogador x jogo está para ator x texto dramático; ou
seja, o jogo de videogame se compara ao texto dramático e a emersão de significado acontece
na interação performática. Cayres ainda afirma que a sublimação da autoria do texto
dramático do videogame é tão intensa que faz com que a autoria do drama seja do jogador
(CAYRES, p. 119), e que este, o jogador, tem a ilusão de agenciamento da narrativa. Reitera-
se, ainda, a similaridade do texto dramático com o videogame na relação que ambos têm com
o tempo: o tempo do drama é o agora, assim como o do videogame (CAYRES, pp. 122-123).
O elo entre videogame e drama seria, de acordo com Laurel (2003) e Cayres (2010), o fato de
que ambos são miméticos – seguindo a lógica aristotélica da função primordial do drama. Em
suma, a ideia de Laurel (2003) e a ancoragem de Cayres (2010) é de que o jogador é um ator
enquanto joga, e que o videogame seria a peça. Nós tendemos, porém, a não entender o
fenômeno da recepção do videogame dessa forma.

Entendemos que esse tipo de processo de identificação jogador x avatar como algo que
também pode acontecer durante a leitura de um livro84, por exemplo. Alguns leitores tendem a
fantasiar, criando uma identificação intensa com os personagens ou mesmo duplicarem suas
emoções enquanto leem um romance (especialmente os romances mais comerciais). Para o
pesquisador Remo Cesarini, em O fantástico (2006), o leitor é capaz de vivenciar emoções
através de eventos narrados e isso o leva a descobrir ou a redescobrir, dentro de si, sensações
esquecidas no cotidiano. Essa ideia se coaduna com a fala de Noël Carroll em The philosophy
of horror, or, Paradoxes of the heart: ―nós somos movidos pela ficção de maneira tão vívida
que nos sentimos como se fôssemos parte dela, especificamente, somos levados a pensar

84
Essa comparação pode equivaler também ao momento em que o espectador assiste à encenação de uma peça
de teatro, ou a um filme, ou o momento em que um ouvinte escuta uma música, por exemplo.
88

como se fôssemos o protagonista‖85 (1990, p. 90). Efetivamente, esse tipo de fenômeno é


chamado, por Coleridge, de suspensão de descrença.

Alguns leitores tendem a fantasiar as situações vivenciadas pelos personagens dos


livros que estão lendo. Eles não agem como os personagens do livro enquanto leem, apenas
imaginam isso – porque sabem que o curso da ação da narrativa já está estabelecido antes do
ato da leitura. Ao mesmo tempo, percebe-se que os teóricos da apreensão das narrativas dos
videogames tendem a pensar que os videogames são simulações em tempo real de mundos
ficcionais e que, por isso, enquanto joga, o jogador interpreta o personagem. Nossa leitura é
de que o envolvimento do jogador na emergência da interpretação da narrativa (e de sua
compreensão a respeito dela) ocorre de forma similar ao ato da leitura.

Quando se lê, tem-se a sensação de que a narrativa vai sendo desvendada página a
página, dando a impressão de que os acontecimentos estão se desenvolvendo ou se
concretizando no ato da interação que se tem com o texto. De fato, todos os acontecimentos já
estão escritos (como códigos dos jogos de videogame) para as pessoas interpretarem. Em
certo sentido, o texto é como um código que, a priori, pode ser simulado a cada leitura.
Parece complexo que se possa concordar, a partir dessa ideia de emergência de sentido no ato
da leitura, com a ideia de que um videogame, por exemplo, é ―um drama a ser performado‖
pelo jogador. O jogador sabe que o videogame é um produto pronto com o qual ele interage
de forma controlada: cada mudança promovida por ele dentro do universo do jogo já está, de
antemão, projetada dentro do código; então, não há interação ou performance real e o jogador
sabe disso. A diferença de interação jogador x videogame e leitor x livro se dá, de fato,
porque as possibilidades de ação do jogador dentro do universo virtual do jogo são ampliadas
– o que não ocorre é uma ampliação da ação do jogador no universo ficcional ou narrativo.

Em seu artigo ―Videogames e Consciência Histórica: A experiência narrativa das


ficções históricas em ‗Bioshock‘‖ (2015), Mariano de Azevedo Júnior tece uma discussão
acerca da questão da emersão do sentido do jogo. Ele acredita que

a quantidade de operações realizadas por um jogador de videogames é bastante


diversificada e a natureza interativa dos jogos propõem experiências narrativas
diferentes daquelas realizadas com outros tipos de mídias. Existe no game um
verdadeiro intercâmbio midiático que permite ao jogador ler, ouvir, escrever, agir,
planejar, elaborar e muitas vezes até falar com o próprio jogo. Desse modo,
consideramos que as narrativas dos jogos eletrônicos são construídas juntamente
com as ações dos jogadores. Essas narrativas interativas dos games, segundo Janet

85
―We are moved by the fiction in such a vivid way that we feel as though we are participants in it; specifically,
we are thought to feel as though we were the protagonist‖ (CARROLL, 1990, p. 90).
89

Murray, causam o efeito de uma ―experiência dramática‖ que envolve o jogador no


universo praticado por ele. Para a autora, as narrativas digitais dos games estão
imersas nos ambientes visuais elaborados para os jogos, proporcionando ao usuário
uma quebra com o formato linear de recepção da narrativa que existe nos romances
convencionais (p. 12).

Azevedo analisa a capacidade de absorção de fatos históricos através da narrativa


sedutora que se apresenta diante do jogador de videogame, já que a subjetivação do relato é
ampliada pela dramatização e imersão provocadas pelas características do jogo, o que torna a
cognição do jogador facilitada e aprazível. Há algumas afirmações problemáticas, das quais
destacamos, em primeiro lugar, o conceito de que o videogame seria um meio mais sedutor de
engajar um estudante (há ótimos livros e filmes que cumprem também esta função); em
segundo lugar, a ideia de que o videogame é o único objeto cultural que promove imersão e
interação – algo completamente equivocado, já que a leitura é um ato de imersão e que seu
sentido só se concretiza com a interação do leitor. A narrativa de um livro se concretiza e
somente acontece com a participação do leitor. A concepção de que o livro está pronto e que o
leitor apenas sorve seu conteúdo de forma passiva é ultrapassada; em terceiro lugar,
destacamos que é um argumento raso dizer que os ambientes criados pelos designers
provocam uma ruptura na linearidade da compreensão da história do jogo, e propor que isso
não existe nas narrativas ―convencionais‖, como os romances. Ambientes (mundos ficcionais/
simulacros) são criados em qualquer mídia, provocam imersão e isso não se relaciona com a
ideia de perda de linearidade. O efeito de quebra da linearidade é provocado por fatores
ligados à estruturação de narrativas e se manifesta na recepção dessas obras.

A dissertação de mestrado de André Filipe Amaral Loureiro, intitulada Narrativas


Digitais e Cibertextos de Influência Histórica: Um Ensaio de Game Design (2014), traz uma
discussão sobre as teorias que concernem os estudos dos jogos de videogames, as correntes
Ludológica e Narratológica – discussão pertinente, mas também já feita à exaustão por outros
teóricos (inclusive por nós, na dissertação). O autor sai do debate e transita para a adoção do
termo interatividade. Loureiro afirma que procura

apresentar três teorias de design de videojogos: a visão ludológica e a visão


narratologista, e uma outra que reúne aspectos das duas. Escolhemos analisar estas
duas primeiras visões focando no seu ponto de vista relativo à narrativa, como meio
de construção de um videojogo (2014, p. 4).

Loureiro inicia com um engano, porém, já que essas visões não são utilizadas para
criar os jogos – a ludologia e a narratologia são teorias para análise de jogos. Debatendo as
90

correntes teóricas de estudiosos como Aspen Aarseth, Jesper Juul, Eric Zimmerman e Janet
Murray, Loureiro delineia sua ideia sobre o estudo da narrativa do videogame. Ele contesta,
por exemplo, a fala de Murray sobre a ideia de que, diferente de quando um leitor lê um livro,
o jogador de videogame age sobre a história para que ela continue. Ou seja, diferentemente da
narrativa do videogame, a narrativa literária requer

[...] apenas que o leitor, neste caso, desfrute a viagem, ou observe as imagens que
estão a passar numa tela, ou o desenrolar da peça num teatro, criando assim a ilusão
de que existe uma separação entre videojogos e os supra referidos meios
(MURRAY,1997, p. 140, apud LOUREIRO, 2014, p. 36).

Murray retoma novamente o conceito de agência, a ideia de supressão da figura de


autoria do videogame, num sentido de que o jogador estaria sendo o próprio autor da
narrativa (p. 42); e parte do entendimento de que,

Contudo, para Zimmerman a interatividade é a globalidade dos conceitos anteriores


e ao mesmo tempo nenhum deles. A sua perspectiva é bastante fácil de
compreender: a interação consiste em todo relacionamento que existe entre o agente
(utilizador) e o meio (jogo). Podemos afirmar que o simples ato de leitura é uma
interação, no sentido em que o leitor está a interagir e a receber informação dessa
fonte. O mesmo autor informa que existem diversas formas de interatividade e é
nessas formas que reside a especificidade do conceito (LOUREIRO, 2014, p. 42).

Loureiro chega a tocar no que compreendemos como leitura e emersão de sentido


quando utilizamos os conceitos em diálogo com a perspectiva de Roger Chartier, de
dispositivos de leitura e materialidade, assim como da Teoria da Recepção e dos textual
studies. A especificidade da leitura incide na formatação do texto – porque a materialidade
implica certa interatividade (condicionada dentro de códigos, sinais etc). Em Escutar os
mortos com os olhos (2010), Roger Chartier nos lembra da voz de Don Mackenzie, crítico
textual norte-americano, e da sua proposta do estudo da leitura, compreendendo que

o sentido de qualquer texto, seja ele conforme aos cânones ou sem qualidades,
depende das formas que o oferecem à leitura, dos dispositivos próprios da
materialidade do escrito. Assim, por exemplo, no caso dos objetos impressos, o
formato do livro, a construção da página, a divisão do texto, a presença ou ausência
das imagens, as convenções tipográficas e a pontuação (CHARTIER, 2010, p. 8).

A partir, então, da instalação de uma nova discussão para estabelecer outras formas de
interação – separando, novamente, o videogame como objeto cultural de todos os outros que
coexistem numa só história e cultura textual –, Loureiro investe em parâmetros categóricos
como ―Interatividade Cognitiva‖, ―Interatividade Funcional‖, ―Interatividade Explícita‖ e, por
91

fim, ―Meta Interatividade‖ (2014, p. 42), explicando a última como ―conceito que abrange
toda a cultura, logo torna essa interatividade dependente do passado cultural e social do
utilizador que, por sua vez engloba outros jogadores com passados culturais semelhantes
criando assim uma rede‖ (LOUREIRO, 2014, p. 42). Observamos que essa ideia já perpassa
solidamente a Teoria da Recepção e o próprio conceito de comunidade de leitores no seio das
apropriações e práticas culturais de Roger Chartier. Em O mundo como representação (1991),
ele nos chama a atenção para polos importantes nos estudos textuais, do texto e do leitor:

A primeira hipótese sustenta a operação de construção de sentido efetuada na leitura


(ou na escuta) como um processo historicamente determinado cujos modos e
modelos variam de acordo com os tempos, os lugares, as comunidades. A segunda
considera que as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas
por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes). [...] Contra uma
definição puramente semântica do texto, é preciso considerar que as formas
produzem sentido, e que um texto estável na sua literalidade investe-se de uma
significação e de um estatuto inéditos quando mudam os dispositivos do objeto
tipográfico que o propõem à leitura. É preciso considerar também que a leitura é
sempre uma prática encarnada em gestos, espaços, hábitos. Longe de uma
fenomenologia da leitura que apague todas as modalidades concretas do ato de ler e
o caracterize por seus efeitos, postulados como universais, uma história das
maneiras de ler deve identificar as disposições específicas que distinguem as
comunidades de leitores e as tradições de leitura (CHARTIER, 1991, p. 178).

Ou seja, a criação de novos esquemas para explicar conceitos que já foram estudados
anteriormente no campo de estudos textuais e literários é problemática, porque fragiliza as
análises levadas a turno e, ao mesmo tempo, descola e marginaliza ainda mais os estudos das
narrativas dos videogames. Loureiro (2014) não chega a explicar o que seriam interatividade
cognitiva, interatividade funcional e interatividade explícita, conceitos criados por Murray
(1997, apud LOUREIRO, 2014); tais conceitos tampouco fazem parte ou são utilizados em
sua análise.

O último trecho que debateremos do trabalho de Loureiro discorre sobre o papel do


jogador em relação à narrativa e a compreensão que se tem da mesma. O pesquisador afirma
que o jogador

torna-se, assim, um criador da narrativa. Essa criação ocorre não do vazio, mas
porque existem conceitos criados pelos autores do jogo que servem como base para
a criação narrativa e é de ressalvar que essa criação é livre de jogador para jogador.
Utilizadores distintos irão criar uma narrativa diferente para cada jogo, tendo em
conta as suas bases sociais e culturais, criando graças aos jogadores uma enorme
possibilidade de re-jogabilidade (2014, p. 37).

Nota-se que Loureiro evidencia a participação do jogador no processo de compreensão


da narrativa, no ato de preencher as lacunas e concatenar as informações codificadas pelos
92

designers (chamados de autores do jogo); novamente colocam-se, de imediato, as questões


estudadas pela Teoria da Recepção e as noções de leitura e texto estudadas por Roger Chartier
– tão imprescindíveis para a construção de uma discussão sólida sobre apreensão textual e
interação texto x leitor / videogame x jogador. O jogador não seria o criador da narrativa –
mas o co-criador, assim como o leitor é um dos colaboradores no processo de concretização
do significado da leitura – já que o texto carrega marcas, códigos e dispositivos de leitura que
circunscrevem possíveis sentidos. Livros também podem ser relidos, tendo um novo sentido a
cada leitura.

O último trabalho a ser discutido nesta sessão é o artigo de Henrique Sobral e


Fernanda Nardy Bellicieri, intitulado ―Influências dos meios digitais na narrativa‖ (2005), que
também parte de definições de narrativa desenvolvidas por Janey Murray (1997). Os autores
tecem apontamentos para criação de uma nova crítica estética que possibilite o estudo de
narrativas de novas mídias assim como sustentado, no artigo em questão, através da leitura de
Lev Manovich (2001). O problema, principalmente, desse estilo de abordagem do estudo de
apreensão da narrativa do jogo pelo jogador é estabelecido no momento em que, assim como
outros pesquisadores, Sobral e Bellicieri desejam estabelecer parâmetros completamente
novos de estudo.

No que diz respeito à linguagem, Lev Manovich (2001) aborda a necessidade da


criação de uma teoria estética ao uso da Nova Mídia. Uma estética capaz de basear-
se em elementos ainda não descobertos, a estética de uma estrutura que ainda não é
considerada, segundo ele, uma linguagem (SOBRAL; BELLICIERI, 2005, p. 4).

Tal desejo, por sinal, é posto na contramão dos estudos textuais já referidos, que
propõem um estudo que, se por um lado entende que novas mídias requerem novas
abordagens, por outro acredita que os estudos textuais se constituem como um campo de
pesquisa que se desenvolve e se expande historicamente.

Mais adiante, o texto de Sobral e Bellicieri propõe um estudo da narrativa diante dos
estudos de Manovich. O que explicam, a partir de suas leituras, é que em narrativas há uma
relação entre o que seria sintagma, a narrativa explícita, e paradigma, a ligação dos fatos da
narrativa feita de forma implícita. O que ilustram, através das teorias de Manovich (SOBRAL;
BELLICIERI, 2005, p. 10), seria uma ideia complexificada da teoria desenvolvida por Jauss
na estética da recepção.

Encerra-se a discussão desenvolvida até aqui com a reafirmação, justificada, da


abordagem escolhida: não há ruptura na história da materialização de textos e narrativas. Com
93

o aparecimento de variadas formas de circulação de textos, importa a compreensão de que são


os suportes que indiciam novas formas de ler, novos dispositivos de leitura, novas
comunidades, novas representações e apropriações culturais. Ressaltamos que o ato da leitura
(a interação do usuário com o suporte de texto) é uma construção histórica. É preciso que o
estudo de mídias com narrativas que se materializam em suportes como o videogame se
constitua a partir das pesquisas sobre leitura e suporte textual. Caso os estudos de narrativas e
da significação que usuários constroem a partir da interação com as novas mídias ignorem os
estudos textuais e literários, reinventar-se-ão rodas cada vez mais tortas, confusas e ineficazes.

3.3 ESTUDOS QUE ALUDEM À LEITURA EM PARALELO AO ATO DE JOGAR

O último debate que faremos aborda as pesquisas encontradas e selecionadas que


estudam as narrativas de videogame sob uma perspectiva de similaridade com outros objetos
de leitura. A dissertação de Clarissa Marquezepi Picolo, intitulada Games contando histórias:
uma discussão sobre a narrativa nos JRPGs (2013), tem como foco o estudo de aspectos
literários em Chrono Trigger (2008), Tales of Symphonia (2004) e Eternal Sonata (2009),
jogos de Role Playing Game japoneses. Picolo desenvolve o estudo da narrativa utilizando
noções como leitura e preenchimento de lacunas, sem que, para tal, haja uma formalização ou
metodologia que dialogue com a Teoria da Recepção. Observemos que, na conclusão, Picolo
aponta para o fato de que

A discussão da ludonarrativa, inclusive, não se esgota nos jogos eletrônicos: a ideia


de uma narrativa que se entrelaça com os elementos fundamentais constituintes de
uma mídia, e que requer um interagente para que se atinja a sua potencialidade pode
ser encontrada em outros suportes. Se dialogarmos a ideia de ludonarrativa com
outras variedades de objetos, é possível que se encontrem narrativas que desafiam o
interagente em livros, filmes e pinturas, que apresentem opções de percurso e que
retribuam o esforço desse leitor/jogador (2013, p. 136).

A pesquisadora chega a conclusões que apontam para similaridades no ato da leitura


de narrativas em diferentes materialidades, no tocante à interatividade e à noção de
preenchimento de lacunas. Ao final da dissertação, Picolo tece considerações que convergem
com aquelas por nós também apontadas, já que a pesquisadora entende que os estudos das
narrativas de videogames podem ser feitos à luz dos estudos literários (dadas as semelhanças
94

entre os aspectos de ambos – personagens, narrativa, enredo, gênero etc), e que ambas as
materialidades podem se beneficiar dessas pesquisas.

Em ―Narrativa de Suspense: O Game Silent Hill‖, artigo publicado em 2015, os


pesquisadores André S. Silva, Fernando R. Stahnke, Marta R. Bez e Vitor C. S. Valadares
estudam a maneira como as narrativas de obras literárias e de filmes de horror contribuem
com ou podem se comparar a jogos de videogame do mesmo gênero (no caso, o jogo Silent
Hill, de 1999). Tanto a exposição da discussão quanto a análise empreendida são prejudicadas
pela brevidade do texto, já que o empreendimento, bastante ambicioso, requer uma leitura
mais intensa de teóricos mais apropriados. Ao final da breve análise, que se calca em
parâmetros estruturais de identificação de enredo e o modo de ação, os pesquisadores
declaram que os videogames guardam semelhanças com modelos narrativos de outras
materialidades como a literatura e o cinema. Assim como outros, diferenciam os videogames
de todas as outras materialidades, já que esses ―potencializam estes aspectos e buscaram
entregar uma experiência em que o usuário é muito mais ativo, tendo uma importante
participação na construção do universo virtual. Isso se deve ao fato de que os games
adicionam no seu âmago a interação e o feedback‖ (STAHNKE et al., 2015, p. 357). Nesse
aspecto, é possível rever o sempre presente desejo dos pesquisadores de videogame em
considerar as narrativas da mídia talvez mais relevantes ou potentes em relação à literatura ou
ao cinema (considerados menos interativos).

No artigo ―A narrativa lúdica dos videogames: espaços possíveis de produção de


sentidos‖ (2012), Cremilson Oliveira Ramos e Jussara Bitencourt de Sá se debruçam,
brevemente, sobre os jogos Fable 2 e Alice: Madness Returns para responder às perguntas
instigantes apontadas no resumo:

que elementos presentes nesses jogos permitem concebê-los como uma forma de
narrativa? De que forma essa mídia eletrônica põe em contato sujeitos de diferentes
locais, culturas, crenças e ideologias, constituindo, assim, um território político de
partilha do sensível? (p. 1).

São inquietações que fazem parte do bojo das que regem nossa própria pesquisa,
embora seja possível identificar que a característica extensão do formato de publicação tenha
prejudicado a discussão, já que essa não se desenvolve de maneira apropriada.

O conceito de narrativa que sustenta a argumentação teórica parte de uma leitura de


Luís Nogueira (2008 apud RAMOS; SÁ, 2012). De acordo com o recorte feito por Ramos e
95

Sá, textualizar uma informação seria tirá-la do plano cotidiano e abstraí-la numa sequência
narrativa.

Outro conceito, elaborado por Nogueira e discutido por Ramos e Sá, trata da
diferenciação entre a narrativa do videogame e de outras mídias, como a literatura. Para
Ramos e Sá,

no mundo fenomênico o espaço e os objetos nele presentes são passíveis de


transformações, enquanto os espaços diégetico e lúdico se encontram em latência.
Eles só se atualizam por meio de ações dos leitores, espectadores e jogadores. No
caso do espaço no jogo eletrônico, o jogador pode transformar os cenários e objetos
num dado momento da ação, porém tal interferência representa uma das múltiplas
atualizações que o virtual permite (RAMOS; SÁ, 2012, p. 4).

O que ambos autores dizem se vincula aos pressupostos levantados por Jauss na teoria
da estética de recepção. Adiante, os autores estabelecem um ponto de diferença entre a
narrativa dos videogames e as literárias e fílmicas, já que ―a temporalidade nos jogos
aproxima-se das narrativas em vários aspectos. No entanto, as narrativas tendem a recuperar
eventos do passado enquanto os jogos encerram em sua configuração ações que, por parte do
jogador, determinam o futuro‖ (RAMOS; SÁ, 2012, p. 4).

Há um problema, porém, quando Ramos e Sá discutem a parcela interativa do jogador


e o seu efeito na emergência do sentido da narrativa – ou mesmo na autoria da mesma. Os
autores afirmam que o videogame promove maior sensação de interação com o espaço de
simulação que apresenta, e que, por isso, o jogador interfere de maneira mais acentuada do
que o faz quando lê um livro ou assiste a um filme. Retorna, contudo, ao eixo comparativo
quando comenta que ―isso só acontece de acordo com o que o autor do jogo permite
previamente‖ (RAMOS; SÁ, 2012, p. 8). O que nos parece mais apropriado seria afirmar que
o jogador de fato interage de forma mais pungente no universo do jogo – mas não na sua
narrativa. Assim como em uma narrativa literária ou fílmica, os fatos estão pré-estabelecidos e
não há alterações no curso estabelecido pelo autor. O sentido pode ser desvelado pelo
leitor/espectador/jogador conforme seu contato com a narrativa e seus elementos (assim como
todo o mundo e a materialidade física da obra), mas o texto de base está pronto antes que sua
interação ocorra. Ao recortar a fala de Nogueira (2008, p. 216), Ramos e Sá acreditam que

―[...] à medida que nos afastamos da narrativa e nos aproximamos do jogo –, a


soberania do autor vai diminuindo e uma partilha de autoridade sobre o texto vai-se
acentuando‖. Por isso consideramos que em um jogo eletrônico o jogador, ao
contribuir para o desenvolvimento do enredo, também assume a autoria do texto
lúdico (RAMOS; SÁ, 2012, p. 9).
96

O que ocorre seria não uma transferência ou um compartilhamento de autoria, mas,


novamente, a dimensão participativa do leitor como o corresponsável pela emergência do
sentido do texto.

A dissertação de mestrado em Comunicação de Erick Santos Cardoso (2009),


orientada pelo professor Vicente Gosciola e intitulada A evolução narrativa e audiovisual do
videogame em “Final Fantasy”, trata do estudo da evolução dessa série de jogos como uma
emancipação dos modelos narrativos pré-existentes para se tornar um modelo de nova
narrativa. Cardoso entende os videogames como ―nova forma de narrativa audiovisual‖ e tece
um texto que se inicia nessa discussão. Desenvolvendo a ideia de que os jogos de videogames
são compostos por narrativas e que elas emergem em contato como jogador, já que os
diálogos e cutscenes86 vão sendo apresentados à medida que os jogadores avançam e
cumprem tarefas, Cardoso conclui que há uma confusão entre o papel do jogador (espectador)
e do autor da obra (designer) (p. 13). Encontra-se novamente a mesma questão abordada por
Ramos e Sá (2012) e Nogueira (2008) sobre tal confusão de papéis.

Parece haver um conflito entre o que seja a narrativa e o que seja o sentido da mesma.
A construção da narrativa não se dá efetivamente com a inserção de elementos por parte do
jogador, o que ocorre é um desvelamento da narrativa. O que emerge, de fato, como parte da
produção criativa e da interação do jogador com o jogo (coadunando o projeto do
designer/autor) é o sentido da narrativa e do jogo. Mesmo em jogos que ofereçam escolhas e
tais escolhas modifiquem o curso narrativo, como, por exemplo, Deus-Ex (2000) e Indigo
Prophecy (2005), não há uma interação real do jogador no sentido de modificar algo que
esteja pré-programado ou antecipado pelo designer. O que há é apenas escolha, em vez de
criação (e o jogador o sabe). O que se cria é o sentido do jogo. De maneira interessante,
resgatamos uma fala de Roland Barthes, quando afirma que ―o objetivo da obra literária (da
literatura como uma obra) é fazer com que o leitor não seja mais um consumidor, mas um
produtor do texto‖ 87 (1975, p. 4).

A interação se torna importante como um fator que modifica a emergência do sentido


no que diz respeito à própria criação dos designers. Por exemplo, a ordem em que o jogador
interage com certos elementos modifica o sentido da narrativa no todo, e isso é possível
perceber, por exemplo, em jogos como Fatal Frame (2001), no qual os desafios surgem em

86
Cenas, como pequenos filmes, que são mostradas na tela durante o curso dos jogos.
87
―[…] the goal of literary work (of literature as a work) is to make the reader no longer a consumer, but a
producer of the text‖ (BARTHES, 1975).
97

sequência, de acordo com a narrativa. Quando se coloca um inimigo como último obstáculo
(chamado de chefe/boss), entende-se que ele é a ameaça maior, o causador dos conflitos e
desafios enfrentados pelo jogador. Quando se elege um e não outro (ou se muda a ordem de
aparição deles), modifica-se a percepção de quem é o responsável pelos conflitos. Por isso,
em Fatal Frame (2001), quando se coloca o pai como um subchefe que antecede a filha como
chefe final, compreende-se que a interação (e a escolha dos designers) provoca um
encadeamento narrativo causal, além da compreensão de que a filha é pior/mais difícil/mais
responsável do que o pai em todos os acontecimentos ocorridos no jogo.

Concordamos com a conclusão de Cardoso no subcapítulo ―Um retorno à leitura‖,


quando esse explica que

através da comparação com outras formas audiovisuais, tentamos compreender a


relação entre o espectador e o ato de jogar videogame. Sendo um meio cuja
participação e modificação da mensagem é fundamental para que seja realizada a
sua função completa, acreditamos que o videogame é um meio que permitirá uma
nova vivência audiovisual (CARDOSO, 2009, p. 52).

Mas a afirmação se problematiza quando o autor diz, logo em seguida, que ―o


videogame sedimenta a sua presença como um meio que propõe lazer, interatividade e, apesar
do conteúdo de qualidade questionável, um retorno ao hábito de ler – ainda que uma maior
quantidade de texto esteja restrita a certos gêneros de jogos‖ (CARDOSO, 2009, p. 53) – ou
seja, compreende a leitura do videogame como stricto-sensu. Em seguida, o autor parece
confundir conceitos de literatura, estudo literário, elementos literários e leitura, além de uma
compreensão bastante antiquada do que sejam os estudos literários ou as análises literárias
desenvolvidas na contemporaneidade. Por exemplo, adiante, as afirmações comparativas entre
a interação videogame x jogador e livro x leitor são rasas, já que o pesquisador não considera
os estudos da recepção, por exemplo.

O princípio do funcionamento, nos jogos, está na interatividade. Sem a atuação dos


jogadores, um game não se completa. É claro que meios como os livros exigem que
o usuário vire as folhas para continuar a leitura, ou pode até pular certas páginas ou
capítulos, por exemplo, mas o que diferencia um videogame de outros meios é que a
atuação do usuário é obrigatória, não opcional (CARDOSO, 2009, p. 68).

Outros conceitos abordados pelo autor parecem problemáticos, se tomados em


conjunto com estudos de leitura e de texto. Por exemplo, a virtualidade dos objetos num jogo
de computador se transforma em potencialidades que serão interpretadas pelo usuário.
Compara-se a isso, por exemplo, o sistema de signos e significado.
98

A análise que Cardoso desenvolve da narrativa se dá como um processo de


identificação quase estrutural entre as similaridades de enredo e personagens entre os jogos da
franquia Final Fantasy, além da análise de elementos que compõem o mundo. Tal opção nos
parece uma condução que se constrói de uma escolha metodológica e que não enriquece o
sentido do jogo como deveria. Na conclusão, Cardoso faz considerações comparativas
ingênuas, como quando diz que ―o videogame, nesse momento tecnológico, não precisa mais
ser cinema, literatura ou teatro, pode ser finalmente pura e simplesmente um jogo. E para isso
é influenciado por todas essas formas, como a mídia híbrida que é‖ (CARDOSO, 2009, p.
156). O videogame nunca foi cinema e nem literatura ou teatro, ele é uma mídia independente
que se configura como objeto cultural/textual dentro de um sistema de outros tantos objetos
que contêm elementos narrativos e que fazem parte da cultura escrita e oral.

A monografia de Luiz Filipe Ribeiro dos Santos, intitulada “Assassin‟s Creed”:


literatura e videogame (2013), oferece uma argumentação fugaz sobre narrativa e interação.
Falta embasamento teórico para o desenvolvimento da maioria das discussões sobre narrativa
e a participação do jogador/leitor no processo de compreensão do jogo. De qualquer forma, o
trabalho de Santos (2013) é interessante do ponto de vista de que estuda a narrativa e o
desenvolvimento do personagem principal, entendendo que Assassin‟s Creed poderia ser
enquadrado no gênero de romance de formação (Bildungsroman).

A monografia de especialização em Mídias Interativas, de Luis Claudio de Oliveira


Tocchio, intitulada Vídeo Game Design, uma análise da estética conceitual do entretenimento
digital (2008), aborda a narrativa como orientação da condução do jogo. As citações
selecionadas por Tocchio para a condução da discussão sobre o papel do videogame designer
são interessantes, principalmente porque paralelizam com o conceito de autoria. Observa-se
que:

O game design determina quais escolhas o jogador será capaz de fazer no mundo do
jogo e que ramificações estas escolhas terão no restante do jogo. O game design
determina qual o critério de ganho ou perda o jogo deverá incluir, como o usuário
será capaz de controlar o jogo e que informações o jogo comunicará a ele, e isto
estabelece o quão difícil o jogo será. Resumidamente, o game design determina
todos os detalhes de como a jogabilidade funcionará (ROUSE, 2001, p. xix, apud
TOCCHIO, 2008, p. 4).
‗Design‘ é metade do game design. Como conceito e como prática a ideia de design
reside no centro da exploração dos games e de um jogar significativo... Assim como
o termo game, design é um conceito com muitos significados. Sua definição
depende do fato de o design ser considerado uma ideia, um conhecimento, uma
prática, um processo, um produto... Mas e o game design? Haverá uma definição
que indique um território particular para o game design?... Como resposta,
oferecemos a seguinte definição geral: Design é o processo pelo qual o designer cria
99

um contexto a ser encontrado por um participante, a partir do qual o significado


emerge (SALEN e ZIMMERMAN, 2003, p. 46, apud TOCCHIO, 2008, pp. 4-5).

Outro ponto de similaridade interessante se encontra no paradigma de escolhas feitas


por essa autoria. Assim como se apregoa popularmente nos estudos literários, uma boa obra
literária é aquela através da qual o autor expressa a si mesmo em contraponto com o mundo e
a sociedade. Diz-se que uma obra feita por encomenda ou com vistas comerciais é uma obra
vazia. Observemos o que Crawford (apud TOCCHIO) orienta aos futuros designers de jogos:
―Escolha um objetivo em que você acredita, que expresse seu senso de estética e sua visão de
mundo... escolher um objetivo que satisfaça o público, mas que não é de seu agrado,
certamente produzirá um jogo anêmico‖ (CRAWFORD, 1984, p. 50, apud TOCCHIO, 2008,
p. 7).

Tocchio desenvolve seu texto se pautando pela análise dos procedimentos para criação
de jogos digitais. Observa, então, que aspectos narrativos são importantes no desenvolvimento
dos jogos desde as fases iniciais de brainstorming88 até a escolha de ferramentas para a
confecção do mesmo, já que a tecnologia será responsável para criar os efeitos e proporcionar
o impacto que a história necessita. Sobre isso, o designer de jogos Takashi Tezuka comenta:

A tecnologia de hardware é muito importante, mas se você se fiar demais no


hardware e não nas ideias, você não fará games. Você terá uma demonstração de
software. A nova tecnologia pode tornar as coisas mais interessantes. Por exemplo, o
Nintendo 64 pode produzir imagens avançadas, mas se isto é tudo o que iremos
enfatizar, o game se tornará chato. O problema que encaramos é como utilizar a
tecnologia avançada para intensificar a jogabilidade. A tecnologia é apenas uma
ferramenta para a expressão das ideias (TEZUKA, 1996, apud TOCCHIO, 2008, p.
23, grifo nosso).

O que a princípio parece um discurso sobre a comercialização da mídia se configura,


finalmente, como um apontamento sobre a parcela criativa, artística e autoral dos jogos
digitais.

Outro ponto de interesse no trabalho de Tocchio está na atenção que ele dá para o
aspecto sonoro dos jogos digitais. Som e música são citados como elementos que enriquecem
o significado da narrativa. A música ambienta a narrativa, ao mesmo tempo em que promove
sensações que convergem para sua participação no jogo.

88
Momento em que uma pessoa ou um grupo de pessoas envolvidas num processo de criação começa a listar
quaisquer ideias que vêm à mente sobre o tema que desejam desenvolver. Isso se chama, literalmente,
―tempestade cerebral‖ ou ―chuva de ideias‖.
100

Qualquer um que tenha jogado Super Mario Bros deve se lembrar da vigorosa
sequência de acordes ―cartunescos‖ que tocava quando o temporizador ia caindo
abaixo de um minuto e o tema familiar tocava aflitivamente. Nada mudava na
jogabilidade, mas o ―tempo‖ [da música] impingia uma necessidade quase
palpável de uma velocidade galopante para vencer o cronômetro. Podia ser cruel,
mas era muito funcional (BARRETT, 2001, apud TOCCHIO, 2008, p. 45).

Assim como afirmado por Tocchio (2008), a trilha sonora de muitos jogos tem se
mostrado longeva. Mesmo que os jogadores não continuem jogando os jogos, as original
soundtracks (OSTs) encontradas no Youtube, por exemplo, têm milhares de visualizações. As
músicas são parte importante na cognição dos jogos, na compreensão de suas narrativas, na
jogabilidade e na empatia que o jogador tem com esses objetos digitais.

Ao final da monografia, Tocchio (2008) debate sobre o futuro da mídia. Há opiniões


divergentes sobre qual deve ser o foco na melhoria do trabalho dos designers e produtores
para que os jogos se tornem cada vez melhores. O foco de intensificação deve ser a
exploração do uso tecnologia ou a criatividade para criar novas histórias? Pensamos que seria
fundamental se histórias e narrativas criativas pudessem ser projetadas de forma que
utilizassem da maneira mais adequada possível as tecnologias a disposição dos designers. A
prova disso é que os jogos mais memoráveis e interessantes não têm gráficos ou
possibilidades tecnológicas tão surpreendentes. O que fica na recordação do jogador é a
história interessante e o relacionamento que ele teve com ela.

Para Daniel do Amaral Denardi, na dissertação de mestrado Considerações Sobre


Alucinação No Jogo Eletrônico “Silent Hill 2”: Da Plataforma Pc Num Viés Semiótico-
Psicanalítico (2010), o jogador preenche um espaço que lhe é devido, assim como o faz o
leitor e a audiência de um filme, para que possa decodificar tudo aquilo que é deixado como
simbólico na narrativa e na persona do protagonista, por exemplo, do jogo Silent Hill 2
(DENARDI, 2010, p. 58). Assim sendo, posteriormente e após discorrer sobre o jogo e o
referencial teórico, Denardi afirma que ―o game, assim como o filme, representaria, assim,
uma expressão cultural de uma realização de desejo consciente, ou seja, um tipo de pulsão que
já foi elaborada de forma que pôde ser concebida conscientemente‖ (2010, p. 83). Denardi
observa que existem similaridades entre os recursos narrativos utilizados por videogames e
literatura, por isso, o pesquisador utiliza tipologias de Norman Friedman para sua análise.
Denardi analisa o tipo de narração e de narrador – onisciente, testemunha, protagonista, até
chegar numa ideia de fluxo de consciência.

O pesquisador encerra seu trabalho concluindo que


101

Observou-se que Silent Hill 2 é um survival horror o que seria um sub-gênero da


aventura. Neste gênero estão presentes os elementos essenciais da narrativa:
personagens, tempo, espaço, enredo e foco narrativo. Só então foi possível aplicar a
teoria da narrativa já consolidada em filmes e literatura ao universo gâmico. [...]
Como resultado, pode-se constatar que é possível aplicar a teoria narrativa da
literatura aos games, com algumas alterações, em especial no que se refere ao tempo
(existe pelo menos uma dimensão extra de tempo nos games), espaço e foco
narrativo. Estes elementos são indissociavelmente atrelados aos quatro elementos
essenciais dos games. Em um game de survival horror como Silent Hill, a atividade
do jogador é influenciada de forma determinante pela maneira com que o foco
narrativo é trabalhado, por exemplo. Conclui-se, portanto, que o game Silent Hill 2 e
muito provavelmente outros games deste mesmo gênero estão estruturados como
uma narrativa, com aspectos muito similares aos dos filmes (neste tipo de game
existem cenas com planos, trilha sonora, diálogos falados o que demanda atuação)
(DENARDI, 2010, p. 85).

Mesmo que não tenha abordado teorias que versem sobre leitura e a interação texto x
leitor ou se o videogame se configura como objeto cultural em parte textual, Denardi entende
que o jogador lê o jogo (DENARDI, 2010, p. 85). Dessa maneira, as discussões desenvolvidas
pelo pesquisador coadunam com as nossas, no sentido de que enxergam o videogame como
um objeto que demanda leituras.

Andrade (2016, pp. 31-32), também tece considerações sobre as questões que
envolvem as discussões entre as searas de pesquisa ludológica e narratológica dos games
studies, compreendendo que ―em suma, o confronto entre narratologistas e ludologistas gira
em torno de uma disputa conceitual que pouco acrescentou, efetivamente, para um
instrumental teórico que corresponda às necessidades do objeto‖ (ANDRADE, 2016, p. 33).
Concordando com Gomez (2011), Andrade argumenta que a convergência de áreas de estudo
―tradicionais‖ parece fomentar a crítica arrojada que os videogames merecem. A dissertação
de Andrade nos é bastante interessante, pois toca em pontos discutidos proficuamente por nós
tanto na nossa dissertação como nesta tese. Discutiremos três ponderações por ele
apresentadas:

1 – É necessário compreendermos que nem todos os games apresentam narrativa e


sua função é, a priori, proporcionar entretenimento através de desafios que serão
resolvidos a partir da interação/imersão do jogador. Dessa forma, o que estabelece
identidade ao game é seu sistema de jogabilidade e seu caráter interativo
(ANDRADE, 2016, p. 35).

Nem todos os jogos de fato apresentam narrativa de forma clara, mas as narrativas
podem ser arregimentadas pelos jogadores, por atividade hermenêutica. Isso pode ser
observado em jogos de simulação de franquias como Sim City, e The Sims, por exemplo, nos
quais os jogadores produzem narrativas à partir de suas experiências de jogo organizadas,
102

posteriormente, por fala. O artigo ―Performance oral e o videogame enquanto suporte de texto
narrativo: o caso do jogo The Sims‖ (2014), de Falqueto-Lemos, apresenta uma discussão
sobre como os jogadores participam na construção de narrativas nos jogos da franquia The
Sims. Mas, para além do que tratamos por ―narrativas‖, podemos nos recordar das
ponderações do teórico Grant Tavinor (2009), bastante lúcido, ao afirmar que os videogames
são jogos que se se manifestam através de ficções. A questão, então, seria considerar que
mesmo jogos sem narrativa explícita como Super Mário Bros (1985) podem, por se tratar de
ficções, ser passíveis de análise crítica quanto a sua ficcionalidade e sua ergodicidade: uma
princesa em apuros no reino dos cogumelos pode levantar indícios de um mundo misógino
onde um monstro aprisiona mulheres. Não há narrativa que se desenvolva para além de uma
frase que descreva o jogo, mas a ficção que envolve o universo do jogo se baseia em um
discurso que em algum nível é ideológico. O que quero dizer é que, mesmo que um jogo seja
simplesmente uma simulação, há escolhas feitas pelo designer que produzem efeitos e
imiscuem discursos que podem ser criticados com o abarcamento das ferramentas dos estudos
literários, sem, necessariamente, que o jogo se apresente como uma narrativa.

Partindo-se desse ponto de vista, as fronteiras de atuação dos estudos literários nas
análises de videogame propostas por Andrade deixam de fazer sentido quando este diz que
―compete ao campo literário abordar as narrativas de games, sob o viés da convergência,
visando à compreensão de sua poética. Neste sentido, só interessa ao campo literário games
construídos a partir de uma composição narrativa‖ (ANDRADE, 2016, p. 35). Nem só a
narrativa é capaz de produzir sentido, assim como na literatura nem só o encadeamento de
uma história é capaz de provocar efeito no leitor. Há outros mecanismos e objetos que fazem
parte dos videogames os quais podem ser ―lidos‖ criticamente por estudiosos e jogadores, a
fim de estudo de sentidos, ideologias e discursos. Aqui nesta tese fazemos leitura de diversas
modalidades de materialidades para compreender um jogo de videogame. Por fim, destacamos
que concordamos com a compreensão de Andrade (ANDRADE, 2016, p. 35), de que
devemos, enquanto pesquisadores, utilizar metodologias e ferramentas que ampliem nossa
capacidade de leitura de videogames para além das teorias literárias já existentes; Andrade
utiliza conceitos como ―frequência, imersão, agência, jogabilidade dentre outras‖
(ANDRADE, 2016, p. 35).

As leituras empreendidas nesta sessão foram basilares para que se pudessem realizar
revisões teóricas importantes para o desenvolvimento da fundamentação desta tese sobre
conceitos de leitura e crítica da teoria literária. É perceptível que os estudos literários podem
103

agregar conhecimentos aprofundados no que diz respeito às concepções sobre o papel do


leitor, o papel do texto, as dinâmicas envolvidas nas apreciações críticas e as diversas
vertentes analíticas. As análises que podem ser abordadas nos processos de discussão literária
convergem em mais acepções acerca dos objetos narrativos do que as já arraigadas percepções
debatidas por teóricos como Forster (1969), por exemplo89. Compreende-se que o campo de
estudos dos videogames enquanto ficções e narrativas está em plena consolidação e que os
métodos de análise ainda não se estabeleceram. Acredita-se, porém, que seja improdutivo que,
a cada pesquisa que se interesse pelo estudo de narrativa, o pesquisador retome textos já
debatidos e conceitos sobre leitura e literatura que já não correspondem aos defendidos pelos
estudos literários. É verdade que cada pesquisa tem seu próprio caminho e que as revisões de
estudos já produzidos fomentam discussões que podem ser frutíferas, mas sigo defendendo
fortemente a ideia de que as teorias críticas dos estudos de leitura e literatura estão deixando
de ser circulados em meios que precisariam deles pela falta de pesquisa apropriada na área de
videogames. Acredita-se piamente que fazer análise cartesiana num mundo multidisciplinar é
ser um sujeito pesquisador que não consegue articular os próprios sentidos.

É justamente esta a proposta desta tese: a de explorar uma leitura hermenêutica de


maneira multidisciplinar, de forma a tentar compreender os sentidos que emanam desse
exercício cognitivo a partir desse objeto de pesquisa, o videogame, em seus aspectos
audiovisuais. É provável que não consigamos atingir de maneira plena todos os objetivos
propostos, e por isso já admitimos que se trate, de fato, de uma empreitada insólita. De
qualquer forma, empreendemos essa seara por convicção de sua possibilidade e por certa
febre científica de explorar o novo.

Assim, adentraremos o próximo capítulo, que se trata de uma análise descritiva da


narrativa e dos personagens de Castlevania SoTN, em contraponto ao romance Drácula. A
metodologia utilizada para a realização dessa análise se embasa na apreensão do texto verbal

89
Desenvolvo essa crítica especialmente a respeito do meu próprio trabalho desenvolvido no Trabalho de
Conclução de Curso (TCC) em 2012, intitulado ―Silent Hill 2 – Understanding and analyzing the narrative of a
Playstation 2 game using the literary theory of novel by E. M. Forster‖, do curso de Letras-Inglês da Ufes. À
época, desejava estudar a ficção de videogames através dos estudos literários, justificando a semelhança de
aspectos concernentes às narrativas de ambas as mídias (textos literários e jogos de videogame). Devido à clara
limitação teórica que tinha naquele momento, me prendi à análise comparativa dos Aspectos do Romance do
balizado E. M. Foster (1969), sem me propor a, de fato, mergulhar nos indícios apontados pela leitura do jogo.
Posteriormente, ainda inconformada pela falta de capacidade de outrora, revisitei o TCC e escrevi um artigo que
se aproximava mais do que pode ser chamada de uma análise literária de um jogo de videogame. O texto pode
ser lido em FALQUETO-LEMOS, A.. ―Transitoriedade, identidade e alteridade em Silent Hill 2 (1999)‖. Revista
Z Cultural (UFRJ), v. 1, pp. 1-8, 2017. Disponível em: <http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/transitoriedade-
identidade-e-alteridade-em-silent-hill-2-1999/>. Acesso em: 21 mar. 2018.
104

através da leitura do jogador em contraponto ao romance de Bram Stoker. Na segunda etapa,


produziremos reflexões sobre a escuta musical (COOK, 2006; PEREIRA, 2005;
PATROCÍNIO, 2013; McCLARY, 1991; KERMAN, 1987) de uma seleção de composições
da trilha sonora do jogo Castlevania SoTN, objetivando identificar como aspectos sociais,
culturais e históricos circunscrevem as músicas e o que tais características indiciam,
considerando os estudos musicológicos interdisciplinares em diálogo com os game studies
(HUIBERTS, 2010). A terceira etapa da análise descritiva privilegiará o aspecto visual a
partir de uma leitura das imagens de uma seleção das telas do jogo. Teoricamente e
metodologicamente, a leitura será conduzida segundo as noções sobre a imagem na pós-
modernidade desenvolvidas por Huntcheon (2000), e por leituras já aventadas até aqui e que
serão desenvolvidas mais apropriadamente posteriormente, especificamente sobre a estética
Gótica e ruínas.
105

4 ANÁLISE DO CORPUS DA PESQUISA: UM MERGULHO NO DESCONHECIDO

O esforço para apreender o objeto em seus vários aspectos estéticos está fundamentado
no entendimento de que só é possível compreender sua expressividade no todo, fazendo-se
uma leitura de suas várias camadas discursivas. Assim sendo, este capítulo se orienta pela
perspectiva de que, ao jogarmos um videogame, estaremos sob efeito de diferentes códigos
comunicativos. Ouvimos, lemos, apreendemos as imagens e, portanto, compreendemos a
mensagem de forma sincretizada. Nesta pesquisa, o estudo do gótico no jogo Castlevania:
Symphony of the Night (SoTN, KCE Tokyo, 1997) não privilegia esse ou aquele canal, mas
perpassa o que é apreensível pelo jogador e tenta, através da análise de imagem, som e
narrativa, vislumbrar efeitos e sentidos que emergem dessa mídia.

Dessa forma, iniciamos afirmando que, se levarmos em consideração apenas um


esquema ludológico ou ergódico, entenderíamos que o objetivo do jogo Castlevania: SoTN
(1997), da Konami, resume-se ao fato de que o jogador deve derrotar um último inimigo,
Drácula, mas que, para estar apto a tal tarefa, deve passar horas coletando itens, aumentando o
nível90 do personagem e procurando passagens secretas. Esses desafios embutidos no jogo,
que definem o sucesso que o jogador precisa ter para passar para uma próxima etapa, são
elementos ergódicos, como já explicado anteriormente.

Em contrapartida, existe um enredo que permeia todos esses processos e que dá


sentido a eles, e é esse o tecido que aglutina os vários elementos ergódicos, tecendo um fio
condutor. É o conceito que o filósofo Tavinor desenvolve ao responder à pergunta: jogos
digitais devem ser estudados como apenas jogos ou apenas narrativas? Tavinor enxerga uma
brecha na discussão entre ludologistas e narratologistas ao afirmar que jogos digitais são
―jogo através de ficção‖ (game through fiction) (TAVINOR, 2009). Portanto, o jogo se
desenvolve e existe através de uma ficção. Sem a ficção, não seria possível que os elementos
ergódicos nem mesmo existissem: precisa-se de um nível, mesmo que rudimentar, de ficção
para que regras abstratas que delimitam o sucesso e o fracasso de um jogo possam existir. De
fato, retomando a discussão que tivemos a partir da dissertação de Andrade (2016) não há
jogo sem a narrativa que é produzida a partir do encadeamento e sequenciamento de

90
O nível do personagem é um parâmetro utilizado em jogos de videogame e RPG (Role Playing Games) para
mensurar o ganho de habilidade dos personagens. Caso se distribua de 1 a 100, sendo o nível inicial 1, o
personagem terá atributos físicos compatíveis com o nível inicial. À medida que progride no jogo, o personagem
fica mais forte, e seus atributos vão aumentando gradativamente.
106

elementos ergóticos, porque o jogo é isso: uma ―história‖; por mais simples que seja, a
história se desenvolve sequencialmente, por início, meio e fim. Dessa forma, mesmo em jogos
de narrativa quase que inexistente, como Tetris, há um nível de abstração ficcional que propõe
ao jogador que ele manipule blocos coloridos a fim de formar fileiras completas e fazer
pontos. Os elementos ergódicos limitam as possibilidades de ação do jogador e lhes dizem os
padrões de sucesso e falha. Ao ser bem-sucedido, o jogador acumula pontos e o jogo fica mais
difícil. A ficção do jogo do Tetris é muito simples, mas de qualquer forma existe como forma
de unificar os elementos ergódicos, ao mesmo tempo, esses elementos ergódicos fazem com
que a ficção do Tetris se torne um jogo.

Em Castlevania SoTN há um castelo homônimo, que é o castelo do Conde Drácula.


Castlevania também é o nome da franquia, que de forma geral se passa num universo fictício.
Nesse universo, o ponto chave é o conflito eterno entre o clã dos caçadores de vampiro,
Belmont, e o vampiro imortal, Conde Drácula. A franquia tem até mesmo uma linha do tempo
própria91, desenvolvida e disponibilizada pela empresa Konami, que cobre a sequência dos
jogos numa escala de tempo, já que contém o ano dos acontecimentos de cada jogo no
universo ficcional. Nesse universo ficcional, a família Belmont deve encontrar e derrotar o
Conde Drácula, que ressuscita de 100 em 100 anos.

Drácula é derrotado, mas Richter desaparece. Ao invés de demorar 100 anos, o castelo
Castlevania ressurge em cinco anos, e, sem qualquer descendente do clã dos Belmont para
destruir o mal, Alucard, filho de Drácula com uma humana, acorda de seu sono auto induzido
e decide investigar o que aconteceu enquanto ele dormia. Em Drácula, de Bram Stoker, a
narrativa é contada por múltiplos agentes, ora o advogado Jonathan Harker, ora sua noiva
Mina Murray, ora outros, e em muitos formatos diferentes, sendo alguns deles cartas,
registros em diários, artigos de jornais etc. O romance foi publicado pela primeira vez em
1897 no Reino Unido. A seguir, nos debruçaremos sobre essa narrativa, dando sequência às
considerações já feitas no final do capítulo 1. O objetivo é discutir um pouco a narrativa, os
personagens e os temas abordados, para que possamos, posteriormente, tecer comparações
com a narrativa de Castlevania SoTN.

4.1 O ROMANCE DRÁCULA

91
Konami Castlevania timeline 2007. (Em japonês). Konami. Disponível em:
<http://www.konami.jp/gs/game/dracula/product/data.html> Acesso em: 01 jul. 2018.
107

A revisão de literatura feita no segundo capítulo nos possibilitou entender como o


romance Drácula se constitui na literatura gótica, que traços desse estilo literário possui e de
onde vêm suas influências. Além disso, a leitura da seleção de textos nos possibilitou
vislumbrar como o personagem Drácula vem sendo reapresentado ao longo dos tempos até a
contemporaneidade. O vampiro de Stoker continua a seduzir o público, reaparecendo em
mídias e em formatos diferentes, mudando à medida que a plateia também muda. Segundo
Clasen, a popularidade de Drácula é algo que se renova sempre; o livro sempre está sendo
reeditado. Há edições históricas, por exemplo, como o volume que foi entregue especialmente
para soldados americanos que foram para a Segunda Guerra Mundial, chamada ―Armed
Services Edition‖ (CLASEN, 2012, p. 379). O romance é pertinente a ponto de ter uma revista
acadêmica dedicada apenas a publicar artigos sobre a obra de Stoker, chamada Journal of
Dracula Studies.

Drácula se passa durante a década de 1890, e a narrativa é delineada através das


diversas formas materiais contidas no livro, desde notas de diários até registros de bordo.
Esses relatos são organizados cronologicamente e relatam os eventos que ocorreram entre
maio e novembro daquele ano. A história se inicia com Jonathan Harker, que vai até o castelo
do Conde, situado nas fronteiras entre a Transilvânia, Bucovina e Moldávia, nas montanhas
dos Cárpatos. Advogado recém-formado, Harker é enviado pelo patrão como representante de
uma transação imobiliária com o Conde Drácula. Drácula recebe Harker no castelo de
maneira educada e cordial, e Harker aceita o convite para ficar por alguns dias, enquanto o
anfitrião analisaria a documentação.

Com o passar dos dias, Harker começa a perceber que se tornou um prisioneiro, e que
o Conde é um homem de hábitos excêntricos. Em uma das ocasiões em que perambula pelo
castelo, Harker entra em um dos aposentos aos quais não deveria ter acesso. Quando
adormece, ele é acordado por três vampiras, que querem beber seu sangue. Ele se livra do
perigo quando é salvo pelo Conde, mas percebe que precisa escapar do castelo.

O Conde decide deixar a Transilvânia de navio, enquanto Harker, deixado no castelo,


consegue fugir. Drácula viaja até Londres transmutado como um cachorro grande. A
embarcação, de nome Deméter, encalha em Whitby sem que nenhum de seus tripulantes
estivesse vivo. Dentre corpos, havia 50 caixas contendo terra da Transilvânia, que,
posteriormente, seriam depositadas em terrenos os quais o Conde havia comprado, por
intermédio de Harker.
108

É em Whitby que a personagem Lucy Westenra, amiga de Mina Murray, vive. É Mina
quem documenta, através de seu diário, os percalços passados por Lucy, que começa a ter
problemas com o sonambulismo. Alheio ao conhecimento de ambas, Drácula passa a assediar
Lucy, até o ponto de atacá-la. Mesmo durante esse período de turbulência, Lucy recebe três
pedidos de casamento, aceitando casar-se com Arthur Holmwood. Mina viaja para Budapeste
a fim de cuidar de Jonathan, que está muito mal, internado num hospital. Enquanto ela está
fora, Dr. John Seward, um dos pretendentes de Lucy, aceita tomar conta da amiga de Mina.

Lucy não melhora com o tempo, e Dr. Seward pede a ajuda de seu professor Abraham
Van Helsing para conseguir entender o que acontece com a moça. Van Helsing consegue
estabelecer o diagnóstico da moça, embora não comunique a ninguém. São feitas inúmeras
transfusões de sangue, mas os esforços dos médicos são em vão. Quando ambos os médicos
não estão, Lucy e a mãe são atacadas por uma espécie de lobo grande. A senhora Westenra
morre com o susto.

Além das transfusões de sangue, Van Helsing usa métodos não ortodoxos para curar a
enferma. Espalha flores pelo quarto, lhe dá um colar feito de alho e pendura um crucifixo no
pescoço dela. Por motivos variados, Lucy acaba sempre sem as proteções, e, em uma das
noites, é encontrada morta. Após a morte da moça, os jornais da cidade noticiam que as
crianças testemunham terem sido atacadas por uma mulher vampira. Van Helsing, Dr. Seward
e os outros dois pretendentes de Lucy conseguem encontrá-la, confrontá-la e acabar com o
mal, enfiando uma estaca em seu coração. Na mesma época, Jonathan e Mina retornam para a
Inglaterra, casados. Eles se unem ao grupo de Van Helsing na luta contra Drácula.

Essa luta contra o mal é longa e perigosa. Os homens conseguem encontrar 49 dos 50
caixões de Drácula, selando-os com hóstias e os inutilizando, mas, enquanto o fazem, Mina é
atacada pelo vampiro e começa a sofrer. Ela e Van Helsing vão até o castelo de Drácula, em
ação conjunta com Harker e Quincey, Dr. Seward e Arthur Holmwood, que viajam no encalço
do último caixão, que está sendo transportado por mar e terra. Van Helsing mata as três
vampiras no castelo da Transilvânia e se encontra com os homens, que conseguem interceptar
Drácula após uma violenta luta com os ciganos que o estão transportando por terra. Mesmo
mortalmente ferido, Quincey consegue apunhalar seu coração. O romance acaba com um final
feliz em forma de epílogo, sete anos após os eventos narrados.

4.1.1 TEMAS
109

Tematicamente, a história contempla os traços que concernem o estilo gótico: a luta do


bem contra o mal e de todos os valores que possam ser categorizados nesse espectro
dicotômico. Van Helsing é a autoridade do mundo iluminista, um médico que utiliza de
métodos holísticos. Sarah Backhouse (2003) faz leituras interessantes do romance, assim
como Stephen Arata em ―The Occidental Tourist: Dracula and the Anxiety of Reverse
Colonization‖ (2000), pontuando o estranhamento dos londrinos, especialmente de Harker,
com as culturas do oriente. Enquanto viaja, o advogado faz comentários sobre o que vê, e
pode ser tomado como o retrato de um imperialista.

Tenho a impressão de que, quanto mais avançamos para o Oriente, menos pontuais
os trens se tornam. Fico imaginando quão pontuais serão as veneráveis conduções da
China. [...] As figuras mais estranhas e bárbaras eram os eslovacos, com seus
imensos chapéus de boiadeiro, suas bojudas calças bufantes (de um branco sujo),
suas camisas de linho e seus assombrosos cintos de couro, com um palmo e meio de
largura, guarnecidos de uma ponta à outra por cravos e mais cravos de bronze.
Usavam botas altas, com as calças enfiadas nos canos; eram melenudos, de
cabeleiras escuras e longas, e bigodões pretos e pesados. Sua aparência era
impressionante, mas nada atraente. Em cima de um palco londrino, seriam
identificados à primeira vista como um bando de arcaicos salteadores orientais
(STOKER, 2014, pp. 53-54).

Entendemos, no entanto, que, se tomarmos o romance como um todo, pode-se ter a


ideia de que Harker representa o londrino padrão, impressionado com a cultura exótica dos
povos orientais, mas incapaz de lidar com os aspectos do mundo sensível que lhe fogem à
compreensão iluminada. Por esse ângulo, podemos entender que a comunidade arcaica aonde
ele chega está bastante adiantada no que diz respeito à leitura de tradições e heranças
folclóricas, coisa que Harker entende apenas como medo. A dona da estalagem onde ele se
hospeda, às vésperas de encontrar o Conde, o alerta sobre os perigos, mas é ignorada pelo
jovem advogado. Quando o Conde toma as roupas de Harker para viajar, Harker espera que
ele seja descoberto – o que não ocorre. Dessa forma, Drácula é o oriental, o outro, que tenta
fazer parte do mundo ocidental. Esse medo do outro, segundo Arata, está ligado à ―percepção
de um declínio racial, moral e espiritual, que faz com que a nação se torne vulnerável ao
ataque de povos mais vigorosos e ‗primitivos‘‖92 (1990, p. 623). Essas fantasias de
colonização reversa enchem a imaginação popular de medo e culpa; a ―contracolonização‖ é
tida como um castigo pelas colonizações inglesas.

92
―Such fears are linked to a perceived decline - racial, moral, spiritual - which makes the nation vulnerable to
attack from more vigorous, ‗primitive‘ peoples‖ (ARATA, 1990, p. 623).
110

Segundo Arata, quando Stoker decide mudar a localização do castelo, que seria em
Styria (assim como o castelo de Carmilla, de Le Fanu), e coloca-o em Transilvânia, ele sabe
que seus leitores londrinos reconhecerão aquele como um lugar que é palco de transições
violentas de sucessivos reinados (ARATA, 1990, p. 627). Dessa maneira, Drácula está
matizado com uma discussão de fundo político, já que ―na versão de Stoker do mito,
vampiros estão intimamente ligados à conquista militar e à ascensão e queda de impérios‖93
(ARATA, 1990, p. 627).

Os estudos sobre Drácula, segundo Paul Riquelme (apud CLASEN, 2012, p. 379),
seguem duas frentes: a primeira faz a linha psicológica, e a segunda, histórica. De forma
geral, os temas que circulam na obra parecem ecoar as preocupações da sociedade vitoriana
da época: ―degeneração (DIJKSTRA), colonização reversa (ARATA), homossexualidade
(SCHAFFER), a ―Nova Mulher‖ (SENF), materialismo Darwiniano e a dissolução da alma
(BLINDERMAN)‖94 (CLASEN, 2012, p. 380). Em ―Coitus Interruptus: Sex, Bram Stoker,
and Dracula‖, Elizabeth Miller (2006) tece importante revisão de literatura que explica as
origens dos estudos freudianos do romance de Stoker, que datam desde a década de 1970 e
que revolucionaram a mentalidade dos estudiosos desde então. Segundo Miller, é difícil
sequer imaginar que elementos como a estaca sejam meramente estacas na
contemporaneidade: tudo tem conotação sexual (2006, sem paginação). Aceita-se, segundo a
autora, que Drácula é primordialmente sobre o desejo que a sociedade vitoriana tinha de
controlar os impulsos sexuais – restava saber se esses impulsos seriam hetero ou
homossexuais. O que é instigante, para Miller, é tentar entender essa leitura acadêmica tão
focada na sexualidade. É fato, porém, que, à medida que o tempo passava, a sociedade ficava
cada vez mais estimulada por acontecimentos que eram próprios do contexto em que vivia,
como por exemplos os americanos na década de 1960. A preocupação girava em torno de
questões ligadas à liberdade sexual e à epidemia de AIDS.

Há pouca dúvida de que muito do apelo crescente de Drácula ao longo do século XX


se deve ao potencial que o texto tem de produzir uma variedade de leituras sexuais.
Isto tem sido acompanhado por uma tendência crescente para identificar o vampiro
como o Outro ―sexualmente liberado‖, uma força erótica que cria uma ansiedade
indevida quando invade uma sociedade repressiva. Consequentemente, os vitorianos
se tornam os vilões ao passo que os vampiros prometem a liberação sexual que a
Inglaterra vitoriana supostamente negou. Mas, na onda de entusiasmo para validar o
romance, para dar relevância a ele em um mundo pós-moderno, pode-se facilmente

93
―In Stoker‘s version of the myth, vampires are intimately linked to military conquest and to the rise and fall of
empires‖ (ARATA, 1990, p. 627).
94
―[…] degeneration (Dijkstra), reverse colonization (Arata), homosexuality (Schaffer), the ‗New Woman‘
(Senf), Darwinian materialism and the dissolution of the soul (Blinderman)‖ (CLASEN, 2012, p. 380).
111

ser vítima de distorção ou mesmo da criação de informações para apoiar uma teoria.
É aí que, na visão dessa escritora, devemos recuar. Às vezes, uma estaca de madeira
é apenas isso - uma estaca de madeira95 (MILLER, 2006, sem paginação).

Particularmente, apoiados por teóricos da recepção, acreditamos que as leituras que


são depreendidas de textos podem produzir sentidos que se atualizarão com o passar do
tempo. É natural que sociedades impressionadas com a revolução da liberação sexual ou com
os infortúnios do contágio da AIDS vão estabelecer leituras que concernem suas
preocupações. Se essas leituras tiverem suporte em indícios textuais, não há nada de errado
em estabelecer comparações e produzir novos sentidos. Miller (2006) se sustenta, em certa
parte, na pesquisa do autor para entender se as preocupações sexuais fariam parte de sua vida.
Há teorias que sustentam que o texto tem sua independência da vida pessoal do autor, não
sendo os registros da vida de Stoker pertinentes na acepção do sentido de sua obra. São
diferentes posicionamentos ideológicos que perpassam a leitura dos textos e seus estudos. De
qualquer forma, acreditamos que as leituras que se desenvolvem através dos tempos apenas
enriquecem a obra, formando uma teia de convergência de informações que se suplementam,
mas que não se suplantam.

Não se pode negar, porém, a forte conotação sexual imbuída na personalidade


daqueles acometidos pelo vampirismo (GATES, 1976, p. 97). As mulheres infectadas têm
comportamentos sexualmente perturbadores, já que foram seduzidas e pervertidas pelo amor
de Drácula, conforme ele mesmo pontua, quando responde sobre sua capacidade de amar.
Drácula lhes responde: ―Sim, eu também posso amar. Vocês mesmas sabem disso, e o seu
passado o comprova. Não é verdade?‖ (STOKER, 2014, p. 109). O poder de sedução dos
vampiros também pode ser percebido em três situações distintas: quando Harker demonstra
certa incapacidade de evitar o ataque das três vampiras no castelo do Conde; quando Arthur
Holmwood quase cede aos encantos de Lucy e quando Van Helsing é distraído pelas três
vampiras, no final da narrativa. Segundo Maurice Hindle, ―o terror que assombra a obra de
Stoker de forma mais persistente é uma mistura de medo e desejo masculino em relação ao

95
―There is little doubt that much of the growing appeal of Dracula throughout the twentieth century was due to
the text‘s potential for yielding up a variety of sexual readings. This has been accompanied by an increasing
tendency to identify with the vampire as the ‗sexually liberated‘ Other, an erotic force which creates undue
anxiety for the repressive society which it invades. Consequently, the Victorians become the villains while the
vampires promise the sexual liberation that Victorian England supposedly denied. But in the flush of excitement
to validate the novel, to give it relevance in a postmodern world, one can too easily fall victim to distortion or
even the creation of information to support a theory. That is where, in the view of this writer, we should pull
back. For sometimes a wooden stake is just that—a wooden stake‖ (MILLER, 2006, sem paginação).
112

sexo‖ (HINDLE, 2014, p. 20). Segundo Leonard Wolf, esse efeito provocado pela obra ―vem
da intensidade com que Stoker se esquiva àquilo que ele próprio vislumbra – ao mesmo
tempo que adorna essa verdade escamoteada em repetitivos e seguros bordões cristãos‖ (1972,
p. 206).

De acordo com a sedutora análise de Judith Weissman,

A diferença entre a sexualidade de Drácula e a sexualidade das mulheres é [...] a


chave para o significado psicológico do livro. Para Drácula, sexo é poder; para elas,
sexo é desejo. Ele é o homem que todos os outros homens temem, o homem que -
sem diminuição de seu próprio poder e liberdade – pode seduzir mulheres alheias e
torná-las sexualmente insaciáveis, por meio de um desempenho sexual que os outros
não podem igualar (WEISSMAN, 1977, p. 76).

A proposta de leitura de Weissman pode ser uma possível resposta para as angústias
presentes na narrativa de Stoker em relação aos homens. Outra análise desconcertante é feita
por Christopher Craft (1984, p. 170), indiciando que ―uma das principais fontes de ansiedade
no romance é ‗o oscilante interesse de Drácula em Jonathan Harker‘‖. De fato, esse pode ser
um ponto de interesse por parte do leitor, já que o vilão está sempre rondando Harker no
castelo, mantendo-o prisioneiro, amedrontando, sem, de fato, nunca ataca-lo frontalmente.

Ainda, o fato de o romance espelhar as ansiedades vitorianas não explica sua


popularidade ao longo dos séculos. O que parece explicá-la, segundo Clasen, é o fato de que o
vampiro pode ser diluído e significar qualquer coisa que a sociedade deseje discutir. No
passado, por exemplo, o vampiro era um ser hedonista, que gerava repulsa e medo; sua
imortalidade nada tinha de privilégio – se tratava, antes, de uma maldição antinatural e
sacrílega. Era, além disso, o foco de transmissão de sua doença. O vampiro moderno é
sedutor, sua imortalidade é valorada, e, junto com ela, há uma vida próspera de bens materiais
e sucesso (CLASEN, 2012, pp. 392-393).

Outro aspecto instigante a respeito do estudo da narrativa do romance é levantado por


Anthony Salazar, em ―Curing the Vampire Disease with Transfusion: The Narrative Structure
of Bram Stoker‘s Dracula‖ (2017). De fato, assim como declara Salazar, faltam estudos mais
aprofundados sobre a técnica narrativa utilizada por Stoker para desenvolver seu romance,
que se inicia como literatura de viagem, com Harker descrevendo o que está vivendo para sua
leitora, Mina. Salazar discute que, de modo geral, a narrativa do livro é composta por registros
de pessoas que pensam que suas anotações podem ser úteis para futuras leituras ou para que
quem a escreve se lembre da informação (SALAZAR, 2017, p. 4). Dessa maneira, podemos
dizer que a narrativa é constituída por agentes alheios a ela.
113

Atentando para a narrativa e a forma como os diversos excertos são organizados,


lemos o artigo de Noel Gough, intitulado ―Textual Authority in Bram Stoker‘s Dracula; or,
What‘s Really at Stake in Action Research?‖ (1996). Em sua análise, Gough nos chama
atenção para a importância da rede narrativa transmidiática que se intercruza no romance.
Para o pesquisador, é por meio dessa produção que os personagens da história obtêm o
conhecimento necessário para superar os obstáculos e derrotar Drácula (1996, p. 259).
Segundo Gough, o ato de escrever se reveste de importância à medida que os personagens
descobrem o mundo sobrenatural; eles pensam que seus manuscritos podem servir de material
para pesquisas futuras. Mesmo o ato de escrita pode servir como forma de amparo e conforto
nos momentos de desespero e incerteza (GOUGH, 1996, p. 259; BACKHOUSE, 2003, p. 17;
SALAZAR, 2017, p. 4; BUTLER, 2002, p. 14; HINDLE, 2014 p, 34). Ainda há que se
destacar a luta contra o processo de alienação em que vivem os personagens de romances
góticos, já mencionado nesta tese. Ao escrever, os personagens da trama de Drácula parecem
tentar entender o que está acontecendo e como lidar com esses fatos.

Nota-se o trabalho de leitura por parte do leitor, que investiga junto com os
personagens, acessando diversos documentos escritos por múltiplos autores. Essa rede textual
revela personagens que ignoram o panorama geral da narrativa e reserva para a audiência o
papel do investigador hermenêutico que coleta as evidências e depreende dali o sentido.

Outro ponto interessante que se destaca é o uso desse mecanismo narrativo nos jogos
digitais. No artigo ―Livros e leituras em Resident Evil 4 (2005)‖, analisa-se as representações
de leitura e literatura trazidas pelo jogo. Atentou-se, na ocasião, para o fato de que as histórias
dos jogos do gênero são acessadas pelo jogador ao longo da narrativa. Ele encontra notas,
recados, bilhetes e registros diários que dão conta de explicar o universo ficcional do jogo em
questão. Essas mensagens contêm importantes informações que servem para que o jogador
possa entender como pode superar um desafio, mas também contam a história que
contextualiza esse universo diegético.

[...] de modo quase mandatório, os jogos de videogame, em geral, usam itens


escritos como livros, notas curtas, documentos, postais, artigos e recados para que os
personagens (e o jogador) tenham acesso a textos que explicam a história do jogo.
Em Resident Evil 4 (2005), há muitos recados deixados por diversos personagens
que podem ser encontrados por Leon; tais mensagens ajudam o jogador a entender
tanto o que se deve fazer para conseguir sair de um lugar para outro quanto a
compreender o que está acontecendo paralelamente na narrativa (ou mesmo o que já
aconteceu) (FALQUETO-LEMOS, 2017, p. 287).
114

Nos jogos com esse tipo de característica, a leitura dos diversos fragmentos com os
mais variados gêneros e autorias é feita por decodificação, ao passo que a compreensão do
texto-sentido é um exercício hermenêutico. Assim como na leitura de Drácula, a organização
de todas as informações fragmentadas deve ser operada pelo leitor.

4.1.2 OS PERSONAGENS

Bram Stoker manteve os personagens simples assim como a tradição do romance


gótico vinha fazendo ao longo do tempo. Não há muita complexidade nos personagens
apresentados no romance Drácula, já que basicamente, assim como na literatura gótica de
então, eles podem ser divididos entre aqueles que estão a favor do bem e contra o bem
(GATES, 1976, p. 32). Isso não parece ser muito diferente do que Frye admite como regra
geral para os personagens em romances, já que

a caracterização do romance segue sua estrutura dialética geral, o que significa que a
sutileza e a complexidade não são muito favorecidas. Personagens tendem a ser a
favor ou contra a missão. Se a assistem, são idealizados simplesmente como galantes
ou puros; se eles a obstruem, eles são caricaturados simplesmente como vilões ou
covardes 96 (FRYE, 1973, p. 195).

De acordo com Gates, os quatro jovens heróis são muito parecidos, fazendo com que
seja difícil para que o leitor consiga diferenciar Jonathan Harker, Dr. John Seward, Arthur
Holmwood e Quincey Morris (1976, p. 36). Destaca-se a figura de Dr. Van Helsing, que atua
como um mentor sábio para o grupo de jovens em sua cruzada contra o mal97. O personagem
é o único descrito de forma tão alentada, assim como se pode ver na passagem do diário de
Mina, de 25 de setembro. Segundo ela, Van Helsing é

[…] um homem de altura média, robusto, com peito largo e ombros desempenados;
seu firme pescoço se ergue altivamente sobre o tronco, assim como a altiva cabeça
se ergue sobre o pescoço. A cabeça, a propósito, exibe uma espécie de elegante
equilíbrio natural, dando-lhe um ar de poder meditativo; o crânio é amplo e seus
traços são nobres e proporcionais. Sua face estava recém-barbeada, o queixo é
quadrado e sólido; a boca, resoluta e vívida; o nariz é comprido e muito reto. Tem
narinas inquietas, que se dilatam de tempos em tempos- tique facial que vem
acompanhado por um enrugar dos lábios e um repulsar das hirsutas sobrancelhas.

96
―The characterization of romance follows its general dialectic structure which means that subtlety and
complexity are not much favored. Characters tend to be either for or against the quest. If they assist it they are
idealized as simply gallant or pure; if they obstruct it they are caricatured as simply villainous or cowardly‖
(FRYE, 1973, p. 195).
97
Não nos surpreende que hoje esse personagem seja tão popular no imaginário quanto o protagonista do
romance, Jonathan Harker. Há um filme tendo como protagonista o personagem, Van Helsing (2004), e uma
série de TV homônima (2016-).
115

Sua testa é larga, erguendo-se íngreme e reta acima do nariz e depois e abaulando
suavemente para trás, com duas saliências ósseas; o cabelo avermelhado não cai
sobre a fronte protuberante, mas se projeta naturalmente ao longo das têmporas,
tombando sob os ombros. Os olhos são azul-escuros, bem separados, rápidos e
vivos; conforme as oscilações de humor, tornam-se velozmente ternos ou
imediatamente severos (STOKER, 2014, pp. 319-320).

Nem mesmo Drácula havia sido descrito de forma tão demorada e detalhada nas várias
aparições que faz ao longo do romance. Van Helsing também é descrito emocionalmente por
seu pupilo, o Dr. Seward, em uma passagem anterior do romance, destacando que ―tem
nervos de ferro e um temperamento de gelo; seu autodomínio é completo e sua resolução,
imperturbável. E, apesar dessa têmpera rija, é um homem de grande tolerância, abençoado
pelas virtudes cordiais e dono do mais generoso dos corações‖ (STOKER, 2014, p. 220).

Notadamente, Van Helsing segue o arquétipo do personagem do homem sábio ou


mago descrito por Frye (1973, p. 151; p. 195; HINDLE, 2014, p. 16). Segundo Gates, é
comum que nos romances góticos os mocinhos fiquem apagados, já que são engolidos pela
dinâmica dos eventos narrados (1976, p. 40). Já Frye afirma com franqueza que heróis e
mocinhas de romances são, normalmente, pessoas desinteressantes, já que é a característica de
neutralidade do personagem que evoca o espelhamento do leitor (FRYE, 1973, p. 167).

As mulheres são perseguidas pelo mal e depois salvas. A donzela e o vilão mantêm
uma relação que, segundo Gates (1976, p. 44), vem sendo desenvolvida no romance gótico
como um misto confuso de fascinação e repulsa. Isso parece coadunar com a ideia do sublime
já abordada anteriormente no capítulo 2. Relembrando, o horror é um efeito causado pela
justaposição de dois polos. Assim como o efeito do sublime, um misto de dor e prazer, de
aversão e gozo (CHAO, 2006, p. 1). Dessa maneira, as respostas psicológicas e físicas
produzidas por Lucy e Mina são da ordem do sublime.

Para Gates, as heroínas de Stoker e do romance gótico em geral estão entre duas
categorias: as vítimas e as sobreviventes (1976, p. 48). A descrição de ambas as personagens,
porém, não é feita de maneira rica; apenas sabemos que Lucy é bonita o suficiente para ter
três pretendentes. Mina é mais inteligente e capaz do que Lucy, mas não o suficiente para que
isso possa impedir Drácula de fazê-la mais uma de suas vítimas. Com ela, o Conde vai além,
fazendo com que Mina beba de seu próprio sangue:

E você, a bem-amada de todos, agora me pertence; é carne da minha carne; sangue


do meu sangue; parte da minha estirpe; meu delicioso vinhedo, por um tempo; e,
mais tarde, minha companheira e serva. No seu devido tempo, também terá sua
vingança; pois há de saciar sua fome no sangue de seus ineficientes amigos, um por
116

um. Mas, no momento, deve ser punida pelo que fez (STOKER, 2014, p. 473).

Mina sofre com sua situação, pois sabe que seu corpo e sua alma foram violentados e
estão sujos perante as leis cristãs. Ao final do romance, a ordem é restaurada, e Mina
consegue cumprir seu papel conforme os valores sociais. Segundo Gates, a personagem Mina
não se desenvolve conforme o desenrolar da narrativa – de fato, se trata de uma personagem
simbólica, que representa a virtude feminina (1976, p. 55). Mesmo sendo bastante virtuosa
aos olhos de todos os personagens, Mina declara que sentiu, ao optar por pregar uma peça em
Van Helsing, ―aquele gostinho do pecado original que permanece vivo na boca feminina‖
(STOKER, 2014, p. 321). É possível perceber como, ao longo do romance, os comentários
sobre as mulheres as relegam a uma posição social (esposa, mãe etc.), dadas as características
elencadas por Stoker, como a incapacidade feminina de ter uma boa memória (STOKER,
2014, p. 321), a intolerância com os velhos costumes (STOKER, 2014, p. 185) e o desejo de
avanço na etiqueta dos jogos de conquista (STOKER, 2014, p. 186). Em uma das cartas a
Mina, Lucy declara que ―os homens desejam que as mulheres (principalmente suas esposas)
sejam tão corretas quanto eles; mas temo que as mulheres em geral sejam bem mais incorretas
do que deveriam ser‖ (STOKER, 2014, p. 135), o que demonstra certa falta de autoestima em
relação à grande nobreza masculina, apontada de maneira reiterada por Stoker em suas
diversas descrições dos personagens homens. Não há evidências claras de que o tipo de
comportamento ao qual Lucy estaria se referindo, ao dizer que ela seria uma pessoa de
comportamento incorreto, possa ter ―facilitado‖ a aproximação do vampiro com seu desejo de
ter se casado com os três pretendentes que tinha. Mas isso não é muito congruente com a
própria narrativa dos fatos, que declara que Lucy apenas teve esse desejo por pena do
sofrimento dos pretendentes, e por ser uma moça muito doce. Essas questões de gênero,
segundo Maurice Hindle, seriam um dos motivos góticos essenciais (HINDLE, 2014, p. 16).

O último personagem a ser estudado é Drácula, que, segundo Gates, é mais uma
―presença do que uma personalidade‖ (1976, p. 56). Apesar das várias descrições físicas, o
vilão não se revela ou se desenvolve psicologicamente. O que jaz marcante são as descrições
físicas muito intensas do efeito causado pelos seus olhos e o impacto causado pela aparência,
que se transmuta do início da narrativa para sua chegada em Londres.

4.1.3 CARACTERÍSTICAS GÓTICAS, ARQUITETÔNICAS E SONORAS


117

A partir da revisão literária feita no capítulo 2, detalharemos aqui características e


temas góticos desse romance para que, posteriormente, possamos abordá-las no exame do
videogame Castlevania SoTN. Não nos surpreende que estejamos nos debruçando sobre uma
multiplicidade de fatores para o estudo da obra, já que, assim como apontado anteriormente
na nossa revisão de literatura, o romance gótico imiscui forma e conteúdo (NORTON, 1972,
p. 31). Ocorre que o efeito produzido pelo romance emerge do trabalho de escrita, que
encadeia descrições elaboradas para causar o efeito de sublime.

Tabela 3: Apresentação de aspectos e temas góticos.

Pesquisador: Tema / Mote / Característica:

SEDGWICK 1986, pp. 9-10, apud JONES, 2010, p. 7.  Cenários ou sociedades opressivas em contraste
com a vastidão da natureza selvagem;
 Figuras masculinas opressoras;
 Formato descontínuo, com diversas narrativas
fragmentadas;
 Estados de consciência alterados;
 Duplos;
 Descoberta de laços familiares secretos;
 Diálogo entre a arte narrativa e a arte imagética;
 Ecos, sons e mensagens escritas indecifráveis;
 Efeitos nocivos da culpa e infâmia;
 Sonhos;
 Figuras faustianas.

GATES, 1976, p. 13; NORTON, 1972, p. 32.  Luta do bem versus o mal.

GATES, 1976, p. 17.  Redenção pelo amor versus a sexualidade.

RAILO, 1964, p. 7, apud GATES, p. 21; ZAJAC,  Castelo amaldiçoado.


2010, pp. 191-201; NORTON, 1972, p. 33; LOVELL-
SMITH, 2008, p. 101.

GATES, 1976, pp. 22-13.  Isolamento em instituições de saúde mental.

Fonte: Elaboração a partir da revisão de literatura feita no capítulo 2.

Dos elementos elencados na tabela acima, deixamos de encontrar apenas o ―duplo‖ e a


―descoberta de laços familiares secretos‖98. Os outros elementos são facilmente perceptíveis

98
Essas duas características não foram encontradas embora tenham sido imiscuídas à narrativa na adaptação para
o cinema intitulada Drácula de Bram Stoker (1992), de Francis Ford Coppola. No filme, Drácula identifica Mina
como sua amada reencarnada.
118

na narrativa de Drácula. Mesmo a arte pictórica aparece no romance com longas e belas
descrições dos cenários, por vezes pastorais ou marítimos, como a cena em que Mina
descreve o céu e as ondas no momento em que o Deméter chega a Whitby.

Seu trajeto era marcado por uma vasta miríade de cores: o crepúsculo variava entre
púrpura, rosa, verde e violeta; as nuvens apresentavam nuanças de labareda e as
mais variadas gradações de ouro; aqui e ali, havia aglomerações de vapor totalmente
escuro, em todas as formas imagináveis, tão perfeitamente recortadas que pareciam
silhuetas de gigantes. A peculiar visão certamente não foi desperdiçada, pois havia
alguns pintores presentes – e, sem dúvida, algumas ilustrações do Prelúdio da
Grande Tempestade haverão de ornar as paredes da Real Academia e da Real
Instituição Britânica no próximo mês de maio (STOKER, 2014, p. 166).

As narrativas estão fragmentadas tanto em gênero discursivo quanto em autoria, pois


há vários personagens que as escrevem. Os estados de consciência de Lucy e Mina são
volúveis ao longo da narrativa, assim como o que sentem sobre si mesmas; ―transes
hipnóticos e estados psicológicos anormais têm papel muito expressivo em Drácula‖
(HINDLE, 2014, p. 34). Outros traços característicos, como a luta do bem contra o mal e o
castelo amaldiçoado, são de fácil visualização, o que não ocorre, porém, com o tema da
sexualidade. Como discutido anteriormente, há por parte dos pesquisadores ênfase na
conotação sexual do romance, embora Miller (2006) argumente que essa leitura do texto de
Stoker pareça forçada. O que se depreende é que a personagem Lucy é um pouco volúvel, já
que não se sente à vontade com o fato de ter três pretendentes, e que Drácula seria um
símbolo de degeneração e promiscuidade. A vitória de Mina e Jonathan Harker na narrativa
pode ser interpretada, nesse sentido, como a vitória do amor sobre a sexualidade.

O vampiro de Stoker tem algumas das características elencadas na pesquisa de Carlson


(1977) já revistas aqui, no capítulo 2. Com o título de ―Conde‖, Drácula tem provável traço
aristocrático, pertence a um lugar exótico (em referência à Londres de Harker), caça pessoas
do sexo oposto, é um ancião e tem aversão a símbolos religiosos cristãos. Gates (1976) amplia
essas características, notando diferenças demarcadas por Stoker, como a falta de reflexo no
espelho, falta de sombra e a capacidade de enxergar no escuro (p. 93). Além disso, como
explicado por Van Helsing,

Pode, com algumas limitações, aparecer e desaparecer à vontade, onde e quando


desejar, sob as muitas formas que estão à sua disposição; pode, até certo ponto,
comandar os elementos: a tempestade, o nevoeiro, o trovão; pode controlar todas as
criaturas inferiores ou malignas: o rato, a coruja, o morcego – a mariposa, a raposa e
o lobo; pode aumentar ou diminuir seu próprio tamanho; e pode, às vezes,
desaparecer e ficar invisível (STOKER, 2014, p. 400).
119

Diferentemente dos vampiros anteriores, Drácula precisa do convite da vítima para


que possa entrar em sua residência (GATES, 1976, p. 94). Cumpre destacar que Stoker foi o
primeiro a descrever métodos para evitar os vampiros, como o uso de alho, água-benta e
crucifixo (GATES, 1976, p. 95). Importa ressaltar que as características e poderes atribuídos a
Drácula fazem com que ele se projete como o próprio Diabo.

Mas, se falharmos, não é a simples morte o que nos aguarda. É algo muito pior:
podemos nos tornar iguais a ele: nefastas criaturas da noite, seres sem coração ou
consciência, rapinando o corpo e a alma daqueles que mais amamos. Então, para nós
os portões do céu eternamente ficarão fechados; pois quem poderia abri-los de
novo? Continuaríamos existindo e existindo, ao longo dos séculos, abominados por
todos, máculas eternas aos olhos de Deus, flechas cravadas no flanco d‘Aquele que
morreu por nós (STOKER, 2014, p. 400).

Em oposição, temos o grupo de jovens heróis que representam as forças da ordem, da


cristandade e de Deus. Essa dualidade bem marcada entre o bem e o mal corresponde à
demarcação das forças que duelam no espaço do romance, já que, assim como pontuado por
Frye,

os polos opostos dos ciclos da natureza se assemelham à oposição do herói e seu


inimigo. O inimigo está associado com o inverno, a escuridão, a confusão, a
esterilidade, a vida moribunda e a velhice, e o herói com a primavera, o amanhecer,
a ordem, a fertilidade, o vigor e a juventude99 (1973, pp. 187-188).

Nossas atenções se voltarão neste momento para o cenário do castelo - trata-se de um


ambiente bastante opressivo, assim como o próprio vampiro. Recordamos a fala de Lovell-
Smith (2008) e sua interpretação dessas construções como símbolos da opressão patriarcal,
sempre vitimando mulheres e crianças. Já que parte da análise do nosso corpus será feita a
partir do estudo das formas arquitetônicas presentes na literatura gótica, as descrições desse
ambiente feitas por Stoker oferecem material que precisa ser destacado. Observemos a
narrativa de Harker ao descrever a chegada ao castelo do Conde. De acordo com Jonathan,
―por um tempo que me pareceu interminável, seguimos viagem. Agora a escuridão era quase
total, pois a barreira de nuvens voltara a ensombrecer a lua. Seguimos adiante, subindo e às
vezes descendo – mas, no geral, nosso caminho era para cima‖ (STOKER, 2014, p. 70).

Podemos vislumbrar o delineamento de uma imagem que se projeta de maneira


imponente. É possível imaginar a sombra do castelo contra a luz da lua, quando Harker

99
―[…] the opposite poles of cycles of nature are assimilated to the opposition of the hero and his enemy. The
enemy is associated with winter, darkness, confusion, sterility, moribund life, and old age, and the hero with
spring, dawn, order, fertility, vigor, and youth‖ (FRYE, 1973, pp. 187-188).
120

descreve o ―castelo em ruínas, cujas altas janelas opacas não emitiam um único raio de luz.
As ameias da velha muralha, meio derruídas, recortavam ângulos e reentrâncias contra o céu
clareado pelo luar‖ (STOKER, 2014, p. 71). Ao chegar à entrada, Jonathan descreve a
impressão que lhe causa a grande construção, chamando-lhe a atenção a

[...] grande e antiquíssima porta, cravejada com poderosos pregos de ferro e


encaixada em uma soleira saliente, feita de lajes maciças. Mesmo à meia-luz, pude
notar que a pedra estava coberta em uma profusão de entalhes. Os adornos estavam
desgastados pelo correr dos anos e pelas intempéries, mas ainda era possível
distinguir algumas minúcias (STOKER, 2014, p. 72).

As paredes, por sinal, são descritas como ―espessas‖ e as janelas ―altas e escuras‖
(STOKER, 2014, p. 73) e ―fundas‖ (STOKER, 2014, p. 101). Drácula também o adverte: ele
está livre para andar pelo castelo, mas deve evitar as portas que estiverem trancadas
(STOKER, 2014, p. 82), pois são partes proibidas da casa. Esse aviso é repetido
posteriormente, quando Drácula faz outro alerta, dizendo que ―caso deixe estes aposentos, não
deverá dormir, sob nenhuma hipótese, em outra parte do castelo. Esta é uma morada antiga,
cheia de velhas memórias; e há sonhos perigosos para quem adormecer de forma descuidada.
Eu o previno‖ (STOKER, 2014, p. 100, grifos do autor).

De acordo com Gates (1976), o castelo de Drácula segue a tradição que vinha sendo
desenhada pelos autores góticos, já que se compõe, quase que majoritariamente, de
―corredores longos e escuros, salas empoeiradas cheias de móveis velhos e em decomposição,
e portas trancadas‖ (GATES, 1976, p. 21). Segundo Harker, tudo é muito luxuoso, dos
talheres e copos à decoração; ―as cortinas, as tapeçarias, o estofamento das cadeias e dos
sofás, os reposteiros de minha cama – tudo foi confeccionado nos mais suntuosos tecidos‖
(STOKER, 2014, p. 79). Infelizmente, ―é evidente que têm séculos de idade‖ (STOKER,
2014, p. 79). É interessante notar a fala de Drácula a respeito de sua morada, quando esse diz
que ―as muralhas de meu castelo estão derruídas; o vento sopra glacial entre as ameias e as
janelas desmoronadas. Amo as sombras e a penumbra, e gosto de ficar a sós com meus
pensamentos sempre que posso‖ (STOKER, 2014, p. 86). É o mesmo que ele diz sobre a
morada em Carfax, adquirida através dos serviços de Harker; ―Agrada-me muito que o lugar
seja grande e velho‖ (STOKER, 2014, p. 86). Nessas circunstâncias, observa-se que essas
estruturas arquitetônicas são tidas como extensão da forma como Drácula se enxerga, como
uma extensão de seu poder antigo. Essas estruturas carregam também símbolos de dominação
e de ordem, que condizem com a mentalidade de grupos sociais excludentes e de regime
patriarcal, como já citado anteriormente. É o que Jonathan declara na bela ala do castelo em
121

que ele encontra as três vampiras. Ao chegar nesse ambiente, Harker compreende que aquele
lugar ―outrora serviu de morada aos senhores e senhoras da fortaleza, pois o mobiliário é mais
exuberante que em outros recintos‖ (STOKER, 2014, p. 104). Ao declarar que descreve tudo
isso em notas taquigráficas, Jonathan se regozija dizendo que ―é o século XIX fulminando
este lugar com sua atualíssima vingança. Mesmo assim, a menos que meus sentidos me
enganem, as coisas do passado exerceram e ainda exercem poderes peculiares, que a simples
modernidade não consegue derrotar‖ (STOKER, 2014, p. 104).

Outro ambiente do castelo descrito por Jonathan é o percurso que ele faz até onde
estão as caixas de terra usadas para transportar Drácula. Para chegar até lá, ele passa por uma
escada em espiral ―muito escura, iluminada apenas por estreitas seteiras que se abriam na
maciça alvenaria‖ (STOKER, 2014, p. 122), passando por um túnel, criptas, com luz rarefeita.

A quinta chamada Carfax, por sinal, é descrita por Jonathan a Drácula a partir de
anotações previamente feitas pelo advogado. Frisa-se que é

cercada por uma alta e decrépita muralha, construída com enormes blocos de pedra.
[...] Os portões são feitos de ferro fundido e antiga maneira de carvalhos; estão
roídos pela ferrugem. [...]. A mansão é muito ampla e sua construção deve ter
começado no período medieval, pois em algumas peças as pedras são de imensa
espessura, com apenas umas poucas janelas lá no alto, gradeadas de ferro. [...] Nas
vizinhanças, há uma velha capela. [...] abriga um manicômio particular (STOKER,
2014, pp. 85-86).

Do lado de fora, a paisagem que resta aumenta a sensação de aprisionamento, já que


de alguns pontos ―as janelas se abriam para o pátio‖ (STOKER, 2014, p. 88); de outro ponto,

a paisagem era magnífica e, de onde eu me encontrava, o olhar podia se estender até


uma imensa distância, abarcando todo o vasto cenário. O castelo está situado à beira
de um terrível precipício. Uma pedra lançada pela janela teria uma queda livre de
trezentos metros, antes de chegar ao chão. Até onde a vista alcança, expande-se um
mar de copadas verdes, rajado pela eventual fissura de sombrios despenhadeiros.
(STOKER, 2014, p. 90).

Outros cenários que ajudam a reforçar a imagem de encarceramento é o asilo do Dr.


Seward, por exemplo. Além dele, as criptas e túmulos de Drácula são palco de cenas
importantes (GATES, 1976 p. 25). O caixão do Conde e o túmulo vazio de Lucy são bons
exemplos de como Stoker usou ambientes para unir esses espaços fúnebres com um
imaginário de repressão e encarceramento.

A atmosfera do ambiente também foi preocupação das análises desenvolvidas por


Gates (1976). A arte de Stoker se manifestou através de sua capacidade de produzir efeitos
122

com sua narrativa causados pela confluência de uma série de elementos que podem ser
descritos como ―sonoros‖. São efeitos, segundo Gates, ―tradicionais: sons noturnos
misteriosos, um suprimento aparentemente inexaurível de luar romântico e um coro de alerta
de camponeses medrosos e supersticiosos. A música ―fantasmagórica‖, que era o dispositivo
favorito de Ann Radcliff, é substituída em Drácula pela música das ―crianças da noite‖, os
lobos100 (1976, p. 24).

Nisso, um cachorro começou a uivar em alguma fazenda, lá longe, à margem da


estrada – longa lamúria feita de medo e agonia. O som foi ecoado por outro cão, e
outro, e mais outro, em diversos pontos nas imensas trevas. Carregada pelo vento
que agora soprava pela Garganta, uma alucinante teia de uivos tomou forma ao
nosso redor, parecendo estender-se pela região inteira, até distâncias inconcebíveis –
e logo minha transtornada fantasia imaginou todos os cachorros do país uivando na
soturna extensão da noite. Ao ouvir o primeiro uivo, os cavalos haviam começado a
se empinar e retroceder. Mas o cocheiro lhes disse algumas palavras
tranquilizadoras, e os animais logo se aquietaram, embora continuassem suando e
tremendo, como se houvessem recém-terminado uma fuga pavorosa. Na lonjura das
montanhas, entre as escarpas que nos cercavam por todos os lados, começou um
uivo mais agudo, mais alto, mais selvagem: o uivo dos lobos. [...] Na agudez do
vento, eu ainda percebia o queixume dos cachorros, mas numa toada cada vez mais
débil. O uivo dos lobos, no entanto, parecia cada vez mais próximo, como se as feras
estivessem nos cercando por todos os lados. Fiquei terrivelmente assustado
(STOKER, 2014, pp. 67-68).

Lemos, ao longo do romance, inúmeras descrições sonoras que colaboram para a


criação dessa ambiência sinistra e intimidadora. Não é preciso, na maior parte das vezes, que
o perigo se apresente de forma física diante do personagem; o som de prenúncio é suficiente
para que Jonathan se sinta apavorado.

Além de sons de lobos, ouve-se o ―rangido agônico produzido pelas coisas raramente
usadas‖ (STOKER, 2014, p. 74) e o ―agudo lamento de dobradiças‖ (STOKER, 2014, p. 128)
no castelo, e o som nos corredores ―em cujo assoalho de pedra nossos passos ecoaram
soturnamente‖ (STOKER, 2014, p. 75). Fazem parte desse repertório sonoro o ―doloroso
lamento de cães‖, o ―gemido rapidamente sufocado de vítimas‖ e o ―agonizante grito
feminino‖ das mulheres que perdem seus filhos para as mãos dos monstros do castelo
(STOKER, 2014, p. 118). E quando o ambiente parece tranquilo, ―subitamente, no meio do
silêncio, os lobos voltaram a uivar no vale profundo‖ (STOKER, 2014, p. 78).

100
―[…] traditional effects: mysterious nocturnal sounds, an apparently inexhaustible supply of romantic
moonlight, and a warning chorus of fearful, superstitious peasants. The ‗ghostly‘ music which was a favorite
device of Ann Radcliffe is replaced in Dracula by the music of ‗the children of the night‘, wolves‖ (GATES,
1976, p. 24).
123

Em Whitby não é diferente: o som tem papel importante na ambientação das


descrições que Mina faz no seu diário. Nas águas ―há uma boia com sino, que badala de forma
lúgubre ao açoite do vento em dias de mau tempo‖ (STOKER, 2014, pp. 145-146). Em dias
de mau tempo, Mina descreve, por exemplo, que ―a tempestade foi terrível, e me arrepiei
várias vezes ao escutar a ventania zunindo entre os campanários e chaminés. As rajadas eram
tão fortes que pareciam tiros de canhão‖ (STOKER, 2014, p. 181). Essas tempestades
descritas por Mina, com alentadas descrições da grandiosidade sonora e física das forças da
natureza, provocam o efeito de sublime (GATES, 1976, p. 29).

Durante esse tempo em que ela passa com Lucy, ambas passeiam com frequência,
oportunidade para ouvir bandas pela cidade. Em uma dessas ocasiões, Mina diz que elas
escutam músicas de dois compositores chamados Louis (Ludwig) Spohr (1784-1859) e
Alexander Campbell Mackenzie (1847-1935) (STOKER, 2014, p. 192).

Destaca-se o fato de Stoker ter pontuado os nomes de dois compositores


contemporâneos, o que, certamente, fez com que seus leitores reconhecessem na narrativa
descrições não apenas dos lugares que estavam acostumados a frequentar, mas também
repertórios que eles conheciam.

Essa ideia aparece em um estudo sobre as músicas da Bossa Nova e o cenário urbano
do Rio de Janeiro da década de 1950, intitulado ―O Nome, o Olhar e a Escuta da Cidade:
memórias de ouvintes‖, texto em que Simone Luci Pereira (2005) afirma que a experiência do
público em diálogo com obras artísticas contemporâneas revela representações de mundo
compartilhadas (p. 156), abordando a metrópole como ―texto que temos para ser lido/ouvido‖
(p. 156):

Um texto com formas empíricas que se articulam na percepção da cidade como


linguagem e comunicação, algo a ser lido/ouvido tanto em si mesmo quanto a partir
das leituras/escutas de seus habitantes (os ouvintes da Bossa Nova), estruturando
uma representação desse meio urbano, atualizando-o como enunciados e traçados
que caracterizam os usos da cidade, a escuta desse meio urbano (PEREIRA, 2005, p.
156).

Outro ponto de ambiência significativo no romance é a tomada do dia pela noite,


conforme as anotações de Harker manifestam logo no início da narrativa. Jonathan chega
muito cansado e dorme durante quase o dia inteiro, passando a encontrar o Conde todas as
noites que se seguem. Assim como descrito em seu diário, Harker começa a se sentir
oprimido, observando que ―há algo estranho neste lugar, algo que me perturba. Meu desejo é
estar bem longe daqui – na verdade, meu desejo é jamais ter vindo. Talvez essa existência
124

noturna esteja cobrando seu preço; mas quem dera fosse apenas isso!‖ (STOKER, 2014, p.
88). A sensação exprimida por Harker é a de um suspense que não aparenta se sustentar em
indícios, mas que se revela, segundo Gates, como um estado de emoções típico da literatura
gótica, a sensação de que se está vivendo em um pesadelo (1976, p. 27).

Adiante, conheceremos a narrativa do corpus da nossa pesquisa – o jogo Castlevania


SoTN (1997). Apresentaremos a sequência de acontecimentos do videogame de forma a tentar
documentar a apreensão da audiência durante o jogar o jogo. Sublimaremos detalhes
ergódicos101 a fim de dar melhor enfoque ao desenvolvimento do enredo e dos personagens.

4.2 ESTUDANDO A NARRATIVA DO JOGO

Castlevania SoTN é classificado como ―action-adventure game‖102 ou ―action role-


playing game‖103, ou seja, é um jogo de ação, porque o jogador controla o personagem na tela
e perfaz ações como desferir golpes e saltar em plataformas. Ao mesmo tempo, elementos do
gênero de ―role-playing games‖104 sustentam o jogo, já que o personagem aumenta de nível
conforme o jogador vai juntando pontos de experiência, o que aumenta a quantidade de golpes
que o jogador pode sofrer antes que sucumba e perca o jogo, ou seja, a quantidade de pontos
de vida, dentre outros.

O jogo vem com um manual dentro do próprio encarte. O manual auxilia o jogador a
conhecer os personagens e a narrativa antes que esse, efetivamente, jogue o videogame. O
manual é parte da capa, como os encartes de CDs de música. Destaca-se o trabalho de fãs em
manter sítios virtuais com os registros dos jogos. No Brasil, pouquíssimos usuários tiveram
acesso ao jogo original, portanto, ao manual do mesmo. O Playstation, lançado na década de
1990, foi um dos primeiros consoles a utilizar a mídia de CD e era fácil copiar jogos e vendê-
los em versões pirateadas e sem os encartes originais.

101
Na realidade, sublimaremos qualquer enfoque que não seja adequado ao recorte privilegiado na nossa leitura.
Na contemporaneidade, há pesquisadores como Thomas Apperley e Darshana Jayemane (2017), em ―A Virada
Material dos Game Studies‖, que pretendem entender, por exemplo, a etnologia das práticas que circulam através
das estruturas de jogos digitais (como a formação das comunidades online), a prática física do contato com a
infraestrutura desses objetos (consoles e celulares), e estudos e críticas do trabalho de estruturação dos códigos
dos jogos digitais. Como já apontado anteriormente (CONSALVO, 2012), as diversas metodologias e recortes
que podem ser feitos na crítica de jogos digitais devem atender às expectativas e à área de atuação do
pesquisador.
102
Literalmente, ―jogo de ação e aventura‖.
103
Literalmente, ―jogo de ação e simulação‖.
104
Jogos de interpretação de papéis, que em videogames se tornam simplesmente jogos em que os fatores de
evolução de personagens e de narrativa têm maior importância do que elementos de aventura, que exploram
desafios ―físicos‖ (por exemplo pular plataformas etc).
125

Figura 06: Informações técnicas do manual105 do jogador do videogame Castlevania SoTN (1997), pp. 3-4.

Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/>. Acesso em: 01 jul. 2018.

Nota-se no título do guia para o controle do jogo, ―Controlando o Horror‖, certa poesia
e ironia – e não uma linguagem literal, algo a que se está acostumado a ler nos manuais.
Assim, através da leitura desse manual é possível estabelecer de antemão que o gênero
ficcional no qual o jogo se insere é o horror. Além disso, o estilo gótico aparentemente está
presente nos desenhos que emolduram a página.

Ao iniciarmos o jogo106, nos deparamos com a inscrição ―Viagem de volta a 1792 e a


paisagem rural da Transilvânia na Romênia‖107. A tela escura é transposta pela imagem de um
mapa antigo, que é novamente transposto pela imagem das águas do que parece ser um lago
coberto de uma bruma. Na paisagem noturna, a sombra de um castelo paira ao longe, no alto
de um penhasco. Embalando a cena, um coro de vozes femininas, e uma orquestra inteira,
parece um lamento na escuridão. O castelo tem torres altas e suas formas são pontiagudas.

105
O manual pode ser acessado integralmente pelo link:
<http://www.thealmightyguru.com/Wiki/images/0/08/Castlevania_-_Symphony_of_the_Night_-_PS1_-
_Manual.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2018.
106
É possível assistir ao jogo integralmente através de um vídeo na plataforma Youtube que se divide em duas
partes. A primeira, PSX Longplay [047] Castlevania: Symphony of the Night (Part 1/2), está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=d2JsYKbWubY>. A segunda, PSX Longplay [047] Castlevania: Symphony
of the Night (Part 2/2), está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oL3043Ms_Is>. Acesso em: 26
mar. 2018. Recomendamos que se assista ao jogo, já que a narrativa não dará conta dos aspectos visuais e
sonoros presentes na experiência de contato com a mídia. De qualquer maneira, tentaremos transcrever de
maneira narrativa a experiência do jogador no controle do personagem que é o vetor da narrativa, Alucard.
107
―Journey back to 1792, and the Transylvanian countryside of Romania‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
126

Um raio cai, iluminando um bando de morcegos. Na torre mais alta está Richter. Castlevania:
SoTN (1997) começa com cenas que são do final do jogo Castlevania: Rondo of Blood
(1993). Controla-se o personagem Richter Belmont na última fase do jogo antecessor, no
momento em que ele confronta Drácula. Controlando Richter, o jogador encontra Drácula
sentado numa poltrona alta e imponente, bebendo numa taça enquanto apoia a cabeça na mão
numa posição que sugere tédio. O diálogo segue:

Richter Belmont: Morra, monstro! Você não pertence a este mundo!


Drácula: Não foi pelas minhas mãos que fui trazido de volta à carne. Eu fui chamado
por humanos que desejam me homenagear.
Richter Belmont: Homenagem?! Você rouba as almas dos homens e faz deles seus
escravos!
Drácula: Talvez o mesmo possa ser dito a respeito de todas as religiões.
Richter Belmont: Suas palavras são tão vazias quanto sua alma! Só uma humanidade
doente precisa de um salvador como você!
Drácula: O que é um homem? (Arremessa seu copo de vinho.) Uma pilha miserável
de segredos! Mas chega de conversa! Defenda-se!108 (CASTLEVANIA SOTN,
1997).

A voz de Drácula é irônica e agressiva, ao passo que a voz de Richter é heroica ao


ponto de se tornar mecânica. Ao final de uma batalha curta, o jogador luta e consegue derrotar
o vilão. Após o último golpe, a cena se cristaliza e se torna uma foto, que se destrói com fogo.
Surge na tela um texto que ilustra os últimos acontecimentos:

Foi Richter Belmont, o lendário caçador de vampiros, que conseguiu finalmente


acabar com a ameaça do Conde Drácula, Lorde dos Vampiros, que havia sido
trazido de volta do túmulo pelo obscuro Sacerdote Shaft. No entanto, uma noite, 4
anos depois, sob o brilho de uma lua cheia, Richter desapareceu misteriosamente.
Sem ideia de por onde começar sua busca, Maria Renard começou a procurá-lo. Foi
então que o destino interveio. Castlevania, o castelo de Drácula, que supostamente
aparece uma vez a cada século, de repente se materializou da névoa como se
quisesse mostrar-lhe o caminho. Enquanto isso, forças poderosas lutavam pela alma
de um homem chamado Alucard. O mesmo Alucard que se juntou a Trevor Belmont
para lutar contra seu pai imortal, o Conde Vlad Tepes Drácula. A fim de purgar o
mundo de sua própria linhagem de sangue amaldiçoado, Alucard submergira seus
poderes vampíricos e entrou no que seria um sono eterno. Mas agora ele está
acordado e consciente do mal que está mais uma vez em sua terra natal. Novamente,
o tempo para as forças do bem e do mal se envolverem em sua antiga batalha

108
―Richter Belmont: Die, monster! You don't belong in this world!
Dracula: It was not by my hand that I'm once again given flesh. I was called here by humans who wish to pay me
tribute.
Richter Belmont: Tribute?! You steal men's souls and make them your slaves!
Dracula: Perhaps the same could be said of all religions.
Richter Belmont: Your words are as empty as your soul! Mankind ill needs a savior such as you!
Dracula: What is a man? (Flings his wine glass aside.) A miserable little pile of secrets! But enough talk! Have at
you!‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
127

chegou. O castelo de Drácula chama você. E ninguém pode dizer quem sairá
vitorioso109 (CASTLEVANIA SOTN, 1997).

Esse mesmo texto aparece anteriormente no manual do jogador, como se pode ver na
figura 07. Observa-se tanto nas figuras 07 e 08 a semelhança do castelo de Castlevania com a
descrição feita por Jonathan Harker do castelo de Drácula. Observa-se, no texto do prólogo, a
escolha de palavras e expressões que realçam o estilo do texto, como ―under the glare of a full
moon‖, algo que pode ser traduzido como ―sob o brilho da lua cheia‖. No trecho
―Castlevania, o castelo de Drácula, que segundo rumores aparece uma vez a cada século,
subitamente se materializou a partir de uma névoa, como se mostrasse a ela o caminho‖, tem-
se a descrição em sequência narrativa. Antes de terminar o texto, o personagem Alucard se
mistura ao jogador, numa espécie de convite para aquele que joga possa se engajar na causa e
espelhar as emoções e motivos do protagonista.

Figura 07: Prólogo do jogo Castlevania SoTN (1997). Manual do jogador, pp. 7-8.

109
―It was Richter Belmont, the legendary vampire hunter, who succeeded in finally ending the menace of Count
Dracula, Lord of the Vampires who had been brought back from the grave by the dark priest Shaft. However,
one night 4 years later, under the glare of a full moon, Richter mysteriously vanished. With no idea of where to
begin her search, Maria Renard set out to look for him. It was then that fate intervened. Castlevania, the castle of
Dracula, which is rumored to appear once every century, suddenly materialized from out of the mist as if to show
her the way. Meanwhile, powerful forces were struggling for the soul of a man named Alucard. The very same
Alucard who had teamed up with Trevor Belmont to battle his immortal father, Count Vlad Tepes Dracula.
Alucard, in order to purge the world of his own cursed blood line, had submerged his vampiric powers and
entered into what was supposed to be an eternal slumber. But now, he is awake and aware of the evil once again
at work in his homeland. This time has once again come for the forces of Good and Evil to engage in their
ancient battle. Dracula‘s castle beckons you. And no man can say who shall emerge victorious‖
(CASTLEVANIA SOTN, 1997).
128

Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/>. Acesso em: 01 jul. 2018.
Figura 08: Tela de abertura do jogo Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Castlevania Dungeon, Disponível em: <https://castlevaniadungeon.net/games/sotnintro.html>. Acesso


em: 26 mar. 2018.

Na próxima cena, Alucard corre pela floresta noturna. Nota-se a semelhança dessa
floresta com a que Jonathan Harker vislumbra através da janela quando está refém do Conde
em seu castelo.

O jogador conduz Alucard ao castelo, atrás de si, o portão se fecha: não há caminho
por onde retornar. Após percorrer a entrada, ele se encontra com a Morte. Ela lhe pergunta o
que ele faz ali, ao que o protagonista responde que seu objetivo é pôr fim ao mal que está
instalado no castelo. A morte é irônica com Alucard, questionando-o sobre seu
posicionamento, já que lhe desagrada o fato do filho de Drácula ficar do lado dos mortais. Ela
129

lhe pede que desista do ataque, e, quando ele se recusa, ela lhes rouba todos os equipamentos.
Essa cena é muito interessante e explica o nível inicial e a falta de equipamentos de Alucard,
fatores que justificarão os elementos ergódicos que levarão o jogador a evoluir o personagem.
Seria difícil crer que o próprio filho de Drácula pudesse ser tão frágil e incapaz diante dos
monstros do castelo, mas a interferência do personagem Morte ajusta a ficção e faz com que o
enredo seja crível nesse universo diegético.

Controlando Alucard, o jogador percorre o Alchemy Laboratory, onde toca a bela


trilha intitulada ―Dance of Gold‖110. Num aposento bastante amplo, ele tem uma luta com o
primeiro chefe111 do jogo. Há o que parecem ser pentagramas grandes como pano de fundo do
cenário. Após passar por todo o primeiro cenário, adentra-se na Marble Gallery, lugar
suntuoso com obras de arte feitas de bronze, cortinas de veludo vermelhas e janelas com
coloridos vitrais. Um dos poucos monstros com formas femininas está nesse ambiente, trata-
se de uma boneca de manequim completamente nua que jaz prostrada, adormecida, até que o
jogador passe próximo e ela comece a levitar pela sala. A Marionette ri quando começa a
levitar e chora quando é destruída. Outro monstro que merece destaque é o Diplocephalus,
uma espécie de quadrúpede verde de cabeça pequena, mandíbulas e dentes grandes e sem
olhos ou orelhas. O rabo dá sustentação a meio corpo de mulher, que comanda os seus
movimentos do corpo.

A trilha sonora é homônima ao cenário, e, diferentemente da estimulante e envolvente,


mas anticlimática ―Dance of Gold‖, ―Marble Gallery‖112 é mais percussiva, e contém efeitos
sonoros que imitam uivos fantasmagóricos. Nas únicas janelas que dão acesso ao mundo
exterior, vê-se uma paisagem desoladora, de árvores secas. Por alguns segundos, é possível
identificar um grande olho que vigia ao fundo. O recurso reforça a ideia de aprisionamento do
castelo gótico, tanto com o elemento da própria estrutura arquitetônica quanto da paisagem
solitária de fundo.

110
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=UqYaduxC1CU>. Acesso
em: 7 abr. 2018.
111
As partes mais desafiadoras, no vocabulário do mundo dos videogames, se encarnam na figura do ―chefe‖, o
“boss”. Esse ―chefe‖ é um personagem que deve ser derrotado ao final de cada etapa do jogo; normalmente, o
nível de dificuldade é um pouco maior do que do restante dos monstros da etapa, vindo a se tornar obsoleto à
medida que o jogo avança. O planejamento do design do jogo nos parece seguir a Teoria Vygotskiana de zona de
desenvolvimento proximal, ou seja, apresenta desafios que estão em nível de dificuldade do estágio atual do
jogador acrescido de +1 nível acima. Apesar de encontrar alguns artigos na internet que parecem falar sobre isso,
a maioria deles trata do uso da teoria de Vygotsky para o planejamento de jogos voltados para o setor
educacional.
112
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=BLOcT25ph9k>. Acesso em:
11 abr. 2018.
130

Em uma sala com um grande relógio de fundo, Alucard encontra Maria pela primeira
vez. Ela fica surpresa ao encontrá-lo, conforme o diálogo abaixo explicita.

Maria: Espere um momento! Você parece humano, e assim mesmo… O que você
faz aqui?
Alucard: Eu vim destruir este castelo.
Maria: Então nós temos o mesmo propósito. Confiarei em você por enquanto. Eu
sou Maria. Quem é você?
Alucard: Alucard.
Maria: Não é do tipo falante, posso notar. Bem, talvez nos encontremos novamente,
se você viver o bastante. Adeus113 (CASTLEVANIA SOTN, 1997).

Após o diálogo, Maria desaparece114, deixando Alucard prosseguir solitário na sua


busca pelo castelo.

O próximo cenário é o Outer Wall, uma espécie de torre que fica na extrema direita da
estrutura do castelo. É possível ver pouco do céu noturno fora do castelo, seja através das
janelas ou da tela que se move conforme o personagem anda. Lá fora chove intensamente.
Nesse cenário há duas passagens secretas, usadas pelo jogador para descobrir itens
escondidos. Na extremidade inferior da torre, o jogador encontra uma sala de arquitetura
romana. Em uma das paredes, há um monóculo. Através dele, Alucard vê alguém remando
um barco sob chuva intensa, num rio.

Entra-se em outra passagem, um ambiente desarrumado, com móveis quebrados e


jogados num canto. Há um esqueleto dependurado. No corredor seguinte, o segundo chefe
que Alucard encontra surge por detrás do que parece ser um espelho: é ele mesmo, seu duplo.
Ao sair, continuamos até metade da torre. Já não chove mais e uma lua imensa e cheia brilha
atrás das nuvens escuras. A próxima porta dá entrada para o cenário Long Library, um dos
mais luxuosos do jogo. Toda a estrutura é de madeira trabalhada, bem polida – o tom lembra o
ouro. As paredes são de mármore, as estantes de livros são enormes e vão do chão ao teto, em
estruturas com pé direito altíssimo. Há salas de estudo ao fundo do cenário e galerias bem

113
―Maria: Wait a moment! You seem human and yet... What do you do here?
Alucard: I‘ve come to destroy this castle.
Maria: Then we have the same purpose. I‘ll trust you for now. I‘m Maria. Who are you?
Alucard: Alucard.
Maria: Not the talkative type I can see. Well, perhaps we will meet again. If you live that long. Farewell‖
(CASTLEVANIA SOTN, 1997).
114
Esse tipo de comportamento estranho é típico de personagens secundários em videogames. Em diversos
jogos, é comum que o jogador encontre outros personagens que lhe contam detalhes da narrativa ou que lhe
ajudam, mas que sempre desaparecem de forma furtiva. Os acréscimos de informação feitos por esses
personagens secundários são sempre pontuais, o que alimenta a narrativa e aumenta o mistério, já que sempre
faltam explicações, pormenores etc.
131

organizadas com cadeiras confortáveis onde os leitores podem apreciar os livros. A música do
cenário, intitulada ―Wood Carving Partita‖115, é uma das composições mais bem elaboradas
do jogo e será analisada posteriormente. Neste ambiente, os monstros são livros que saem das
prateleiras e atacam Alucard, algo bastante curioso, já que eles parecem confrontar os que
entram na biblioteca de uma maneira mais física do que intelectual.

Ali vive um Mestre Bibliotecário, personagem responsável por vender ao jogador itens
que ele necessite: o jogador capitaliza a cada monstro que mata e por isso pode comprar
armas e acessórios para melhorar sua performance116.Ele e Alucard se conhecem, e, apesar de
certa relutância em ajudar alguém que está querendo destruir o castelo, o vendedor tem seu
preço.

Chegando ao topo da torre, é possível ver um esqueleto enforcado do lado de fora,


pendurado em uma balaustrada. Alucard aciona uma alavanca que ativa o elevador. Lá, ele
recupera a forma de lobo, perdida quando a morte o roubou.

Figura 09: Outer Wall, esqueleto pendente com a lua ao fundo, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Captura de tela do jogo.

115
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=RXdddCaALKc>. Acesso
em: 11 abr. 2018.
116
Algo bastante comum e mercadológico de jogos de videogames, e mais uma prova de que é bastante difícil
que os designers consigam pensar em novas formas de aquisição de bens nesses universos ficcionais. Dessa
maneira, é como se os jogos estivessem sempre presos em representações de modos de vida os quais os designers
vivem, ou seja, o capitalismo.
132

Posteriormente, Alucard e Maria se encontram outra vez no Alchemy Laboratory. É


Alucard quem lhe fornece explicações, já que ela parece confusa com o fato de que, apesar de
ter estado no castelo há cinco anos, ele parece diferente. Alucard lhe explica que ―este castelo
é uma criatura do Caos. Pode ter muitas encarnações‖117 Nota-se a via de mão dupla da
decisão dos designers em refazer o castelo em todas as edições dos jogos da franquia: por um
lado, os jogadores sempre serão surpreendidos novos labirintos; por outro, o castelo do jogo
encarna de maneira vital a função do castelo, como um personagem à parte. Mais do que um
simples pano de fundo, a construção se reveste de personalidade e poder no jogo, como uma
entidade que se manifesta por vontade própria, obedecendo aos caprichos do mal.

O Royal Chapel, próximo cenário a ser acessado pelo jogador no percurso narrativo, é
um ambiente diferente dos outros, por se parecer com uma igreja. Compõe-se de uma longa
escadaria com vitrais expostos pela parede, no que parece emular a via crucis. Um dos
ambientes mais belos do jogo está nesse cenário: há uma sala que se parece com o salão de
uma igreja. No plano 2D, os bancos ficam dispostos no nível de Alucard. Ao fundo, há uma
projeção feita em 3D com as janelas em vitrais, que se multiplicam a perder de vista na
escuridão do aposento.

Figura 10: Salão em Royal Chapel, Castlevania SoTN (1997).

117
―This castle is a creature of Chaos. It may take many incarnations‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
133

Fonte: Captura de tela do jogo.

Há, nesse cenário, uma cena intrigante. Em um aposento que se parece com um
confessionário, é possível fazer Alucard se sentar. Quatro cenas diferentes podem iniciar a
partir disso: Na primeira, aparece um padre em tons de vermelho e vestido de negro, e, no
caso do jogador permanecer imóvel, a cortina se fechará e várias lanças machucarão Alucard.
Na segunda cena possível aparece um padre de aspecto normal, vestido de azul, e nada ocorre
quando ele simplesmente desaparece diante dos olhos do jogador, ao fazer o sinal da cruz. No
terceiro caso, Alucard se senta no lugar do padre e aparece uma senhora – se estiver vestida
de azul, ela não se confessará e tentará matar quem estiver sentado no lugar do padre – no
caso, Alucard. Há a possibilidade de essa mulher estar com um vestido laranja – nesse caso,
ela apenas chora antes de desaparecer. Há um fundo musical específico para essa sala,
chamado de ―Haunted Confessional Room‖. Chama-nos a atenção esse tipo de cenário, que,
sem qualquer explicação narrativa, projeta leituras à deriva. As múltiplas interpretações, que
podem, inclusive, suscitar a fala irônica de Drácula a respeito do papel dos homens ou da
igreja, parecem ser suplantadas pela simples proposta de inclusão de elementos e cenas que
podem produzir o efeito da confusão, parte fundamental da estética do romance gótico, ao
passo que os personagens vivem em estado de sonambulismo, num pesadelo constante. Pode-
se perceber, além disso, a característica da narrativa fragmentada, formada por diferentes
apelos e pequenos episódios que produzem a sensação de necessidade de apreensão e
interpretação por parte do leitor, além dos estados de consciência alterados e os duplos. Mais
uma vez, assim como na sequência vista anteriormente (que mostrava uma pessoa remando
num barco no lago), a cena do confessionário aponta para diversas interpretações, ampliando
o tecido narrativo da trama, assim como os efeitos por ela produzidos.

O Royal Chapel é o cenário da extrema esquerda, em paralelo ao Outer Wall


anteriormente visitado. Na torre, há sinos enormes que se sustentam a partir de vigas de
madeira dispostas por todo o ambiente. Se Alucard tocar em algum deles, eles produzirão
sons que combinam bem com a trilha sonora do ambiente, a bela e lenta ―Requiem For the
Gods‖, composta por coros femininos, principalmente.

Passando pelos corredores superiores, Alucard se encontra com mais um chefe,


Hippogryph. A sala é adornada por um quadro interessante, que ilustra uma cena em que
humanos combatem a morte. Apesar de não influenciarem diretamente a narrativa, essas
imagens dispostas pelo jogo têm papel importante para a construção do efeito criado pelos
134

designers. Opta-se por chamar a atenção para esses pequenos detalhes que, por mais ingênuos
que possam parecer, agregam substância e encorpam a construção estética, portanto o efeito
causado no jogador.

Figura 11: Sala da batalha com o chefe Hippogryph, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Captura de tela do jogo.

Após a batalha com o monstro, Alucard reencontra Maria, que lhe pergunta se ele
conhece Richter Belmont. Ela lhe explica que está procurando por ele, que desapareceu há
cerca de um ano. Usando como recurso a explicitação do pensamento através de imagens, é
possível entender que Alucard conhece outro Belmont, Trevor Belmont, com quem lutou para
derrotar Drácula em Castlevania III: Dracula‟s Curse (1989). Cronologicamente, na franquia,
essa luta ocorreu em 1476, ou seja, cerca de 300 anos antes dos acontecimentos do tempo
presente. Maria pede que Alucard a avise caso o visse, ao que ele responde com cortesia.
Ambos se despedem, e ele continua a seguir seu caminho em busca de Drácula.

Outros cenários se apresentam ao jogador. Saindo do castelo, Alucard caminha pelo


telhado à luz da lua, figura onipresente no céu nublado noturno. A estrutura é feita de ruínas
quebradiças, tanto que algumas paredes são projetadas para serem esfaceladas, revelando itens
escondidos. O cenário intitulado Olrox‟s Quarters, encontrado acima da abertura do relógio
que fica no cenário Marble Gallery, é de certa forma perturbador. A música ―Dance of
135

Pales‖118 embala o ambiente de forma muito elegante e requintada. O Olrox‟s Quarters é um


cenário escuro com paredes e balaustradas de mármore, tapeçarias feitas de veludo vermelho
escuro e papéis de parede. O Colosseum, próximo cenário, é uma espécie de mistura de
depósito de armas, matadouro, câmara de torturas e centro de entretenimento de combates. No
piso superior há um ambiente amplo onde os combatentes parecem ter espaço para o
treinamento. Nas paredes, há gravuras de cenas de luta. O Colosseum é um cenário bem
menos luxuoso do que todos os outros vistos até agora, com uma estrutura modelada a partir
do que parecem ser blocos de barro, ou tijolos amarronzados. A iluminação é produzida por
tochas, há esqueletos presos em grilhões ou corpos mutilados em algumas salas.

Dentre os vários monstros que estão nesse cenário e em outros, um dos mais
perturbadores é o Valhalla Knight. Trata-se de um guerreiro montado a cavalo, mas o cavalo
está cortado pela metade, e é possível ver as costelas e parte da coluna vertebral pendendo
para fora do corpo apodrecido – mas que sangra. Este, assim como os outros inimigos, são
mortos-vivos, zumbis e seres amaldiçoados, que passam a eternidade revivendo as atividades
que desenvolveram enquanto vivos.

Após atravessar um corredor repleto de monstros, Alucard entra em outra espécie de


arena de combate. Diferente da anterior, essa guarda um lugar de destaque para que o patrono
das lutas se sente e assista aos duelos de um ponto privilegiado, com cadeiras para convidados
dispostas ao seu redor. Na parte inferior, onde Alucard se encontra, há dois portões de barras
de ferro que esperam se abrir e de onde sairão os lutadores desafiantes da casa. É Richter
Belmont, que está sentado como anfitrião do combate que se dará na sequência. Ele convoca
os dois chefes do cenário e então desaparece, dizendo-se dono do castelo. Alucard termina de
enfrentar os inimigos e reflete sobre o fato de Richter ter afirmado que o castelo é dele. Porém
não tece outras considerações, o que deixa para o espectador o espaço para que se reflita que
Alucard está conjecturando sobre as intenções de Belmont.

A partir deste ponto da história, Alucard recupera alguns de seus poderes: transformar-
se em morcego, em névoa e em lobo. E, utilizando-se dessas habilidades, o jogador consegue
ter acesso a lugares dos cenários que antes eram inacessíveis. É assim que a narrativa dos
jogos se imiscui aos elementos ergódicos já citados anteriormente: consegue-se nova

118
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=Oquad3rnZSI>. Acesso em:
18 abr. 2018.
136

habilidade que lhe possibilita ampliar o campo de ação; logo, desdobra-se outra etapa da
narrativa.

Dessa forma, o modelo narrativo e ergódico de Castlevania SoTN é de recorrências.


Como se recupera um item ou habilidade que possibilita ir a lugares aos quais não ser era
possível num primeiro momento, isso significa que a cada nova conquista é preciso que se
revisite cada espaço já percorrido. Na dissertação que defendemos em 2015 havíamos lido o
interessante artigo de Paul Martin (2011), ―Ambivalence and Recursion in Castlevania:
Symphony of the Night‖, como exemplo pertinente de análise de narrativa de jogo. Para
Martin, esse andar labiríntico expressa de forma física e ergódica o conflito entre dicotomias
vivido pelo protagonista Alucard, que está entre dois polos: o lado vampiro e o lado humano.
Por outro lado, se considerarmos o castelo como ponto fundamental a partir do qual a
narrativa gótica se desenvolve (RAILO, 1964, p. 7, apud GATES, p. 21; ZAJAC, 2010, pp.
191-201; NORTON, 1972, p. 33; LOVELL-SMITH, 2008, p. 101), notaremos que a busca
desorientada dentro desse ambiente decrépito é coerente, e, na verdade, necessária. Foi o que
Jonathan Harker fez ao perambular de um ponto a outro do castelo de Drácula, entre portas
trancadas, quartos proibidos e segredos escondidos, enquanto tentava encontrar a saída.

No Olrox‟s Quarters, Alucard encontra o chefe Olrox num salão bem ornamentado.
As paredes são cobertas por cortinas de veludo vermelho bordadas de dourado, com franjas
também douradas. No centro há um painel de vitral com o que parece ser um tema religioso.
Uma figura feminina ao centro, com um halo celestial na cabeça, está sendo reverenciada por
duas figuras femininas. Acima dessa figura central, uma espécie de santo alado segura uma
espada; poderia ser Miguel Arcanjo.

Figura 11: Sala da batalha com o chefe Olrox, Castlevania SoTN (1997).
137

Fonte: Captura de tela do jogo.

O próximo novo cenário é o Underground Caverns, que, como o próprio nome sugere,
é composto por galerias subterrâneas pouco iluminadas, construídas com blocos. Em um dos
lugares em que se é possível salvar o jogo, o caixão próprio para isso tem coloração
diferente119120. É então que Alucard entra num outro mundo, intitulado Nightmare.

Há o que parece ser uma vila obscura com casas e pinheiros ao fundo. Não há
nenhuma música de fundo. Alucard encontra uma turba raivosa, e, no meio desse cenário,
uma mulher crucificada, assim como pode se ver na figura 12.

Figura 12: Alucard encontra a mãe em Nightmare, Castlevania SoTN (1997).

119
Destaca-se que o save point, ou seja, a ferramenta utilizada para que o jogador registre seu progresso,
funciona como se fosse um marcador de páginas, porque pontua onde o jogador interrompeu seu progresso e a
partir de onde ele prosseguirá quando reiniciar seu jogo. Outro ponto interessante é o funcionamento do save,
que reescreve o progresso da história em cima do progresso anteriormente registrado. Dessa maneira, ao final do
jogo o jogador terá, em seu arquivo salvo, todos os dados da narrativa por ele percorrida. Mas, quando ele salva
o progresso, ele opta por perder a chance de retornar ao ponto em que estava antes de salvar: portanto, salvar o
jogo implica ao não retorno do ponto anterior.
120
Neste jogo, o save point é um caixão, o que é bastante interessante do ponto de vista narrativo, porque
enriquece a perspectiva de que Alucard é um vampiro e que precisa dormir num caixão. Dessa maneira, ele
descansa quando o jogador precisa interromper seu jogo, e volta do caixão quando o jogador volta a jogar. A
forma do save point amplia o sentido da ferramenta de salvar o jogo e da ficção do personagem.
138

Fonte: Captura de tela do jogo.

Mãe e filho desenvolvem um diálogo que estabelece para o espectador a natureza da


relação que ambos tinham em vida, a forma como a mãe de Alucard morreu e os sentimentos
de ambos a respeito.

Alucard: Mãe!
Lisa: Essa voz! Alucard, é você?
Alucard: Estou indo, mãe! Eu vou salvar você!
Lisa: Não, Alucard! Não venha aqui!
Alucard: Mas mãe!
Lisa: Tudo bem! Se minha morte puder salvar outros, renuncio a minha vida de bom
grado.
Alucard: Mãe! Não! Por favor! Não!
Lisa: Sim, Alucard! Veja-me morrer e lembre sempre minhas últimas palavras.
Alucard: Sim, mãe.
Lisa: Você deve desprezar os humanos. Eles devem ser sua presa.
Alucard: O quê?!
Lisa: É melhor que eles morram do que deixá-los cometer seus pecados. Comece
matando aquele ali.
Alucard: Não. Não foi assim.
Lisa: O que há de errado, Alucard?
Alucard: Minha mãe nunca disse tal coisa.
Lisa: O que você quer dizer? Mate-os e traga felicidade para eles!
Alucard: Não! Você não é minha mãe! Que tipo de demônio você é?!
(“Lisa” se transforma em uma súcuba121.)
Súcubo: (rindo) Você se libertou do meu feitiço. Eu gosto disso.
Alucard: Demônio, a morte é boa demais para você!
122
Súcubo: Venha cá, garotinho, e me mostre do que você é capaz (CASTLEVANIA
SOTN, 1997).

121
Demônio de origem medieval, de aparência feminina, que invade os sonhos para roubar a energia de suas
vítimas.
122
―Alucard: Mother!
139

De acordo com o manual da Konami que vem junto do jogo, Lisa, sua mãe, era uma
pessoa ―boa, de bom coração e alma, que foi erroneamente executada como uma bruxa por
preparar remédios para ajudar doentes‖ (KONAMI, 1997, p. 12 123). O sofrimento de Alucard
em relação à morte da mãe é revivido pela súcuba para tentar enganá-lo e ceder a seus
caprichos, o que demonstra que ele ainda tem uma memória dolorosa da ocasião. A voz
desesperada de Alucard também demonstra o envolvimento emocional do personagem, que
aparentemente revive a cena como se essa fosse real. Não é possível, a partir da cena ou de
outras fontes disponíveis de informação, saber se Alucard esteve impossibilitado de salvá-la
de seu destino; mas a angústia do personagem transparece uma frustração por não ter
conseguido evitar a morte da mãe. De qualquer forma, o uso de expressões no tempo passado
demonstra que Alucard esteve nessa cena e que por isso consegue perceber o que realmente
foi e não foi dito por sua mãe.

Ao derrotar a Succubus ele retorna para o verdadeiro pesadelo: o castelo de Drácula.


Na parte mais inferior, as galerias do Underground Caverns levam de fato às cavernas, com
quedas d‘água e rios que desembocam em grutas escondidas. O Abandoned Mine, cenário
encontrado depois das galerias e cavernas de Underground Caverns, tem a entrada ricamente
adornada e iluminada.

Lisa: That voice! Alucard, it‘s you!


Alucard: I'm coming, Mother! I'll save you!
Lisa: No, Alucard! Don't come here!
Alucard: But Mother!
Lisa: It‘s all right! If my death can save others, I gladly surrender my life.
Alucard: Mother! No! Please! No!
Lisa: Yes, Alucard! Watch me die and remember always my last words to you.
Alucard: Yes, Mother.
Lisa: You must despise humans. They are to be your prey.
Alucard: What?!
Lisa: Better for them to die than to let them compound their sins. Begin by slaying that one, over there.
Alucard: No. It wasn‘t like this.
Lisa: What‘s wrong? Alucard?
Alucard: My mother never said such a thing.
Lisa: What do you mean? Kill them and bring them happiness!
Alucard: No! You‘re not my mother! What kind of demon are you?!
("Lisa" turns into a Succubus.)
Succubus: (laughing) You broke free of my spell. I like that.
Alucard: Demon, death is too good for you!
Succubus: Come here, little boy, and show me what you‘ve got‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
123
―[…] good, kind-hearted soul who was mistakenly executed as a witch for preparing medicine to help the
sick‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
140

Figura 13: Abandoned Mine, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Captura de tela do jogo.

Conforme se adentra o cenário, as paredes deixam de ser revestidas por tijolos e


passam a apresentar-se como estruturas de escavação, com poucas tochas dispostas. O
ambiente é decrépito e confuso, com muitos antros e covis obscuros. A música ―Abandoned
Pit‖124 inspira certa angústia e abandono. Logo depois há o cenário Catacombs, repleto de
estrutura de alvenaria que parece se desfazer, fracos focos de luz, tumbas e túmulos
espalhados pelas paredes. A trilha de fundo ―Rainbow Cemetery‖125 começa com um suave
vento, que se transforma em uma miríade de sons formado por um teclado nervoso. Caveiras
perambulam por esse lugar obscuro, que exige que o jogador transforme Alucard em um
morcego e utilize seu sonar para atravessar ambientes completamente escuros.

Em uma das câmaras mais impressionantes, Alucard encontra um chefe chamado


Granfaloon. Iniciaremos chamando a atenção para a sala, que é apinhada de esqueletos a
perder de vista. O mar de crânios e escápulas tem, ao fundo, um mural composto por uma
imagem de um ser que tem uma espada aos pés e uma cruz acima da cabeça. O Granfaloon é
uma bola formada por corpos humanos que caem e tentam matar Alucard à medida que ele é
golpeado.

124
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=vOq9bODf_UY>.
Acesso em: 22 abr. 2018.
125
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=zstTGMnIDLc>.
Acesso em: 22 abr. 2018.
141

Figura 14: Cenário do Granfaloon, Catacombs, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Captura de tela do jogo.

Figura 15: Cenário do Granfaloon, Catacombs, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Captura de tela do jogo.

Na figura anterior, há catacumbas; na cena de baixo, os corpos caem do Granfaloon já


golpeado por Alucard. Após liquidar o Granfaloon, o jogador continua encontrando novos
caminhos pelo castelo e pode reencontrar Maria, se voltar até as torres do Royal Chapel.
142

Alucard lhe diz que encontrou Richter Belmont e que ele parece ser o senhor do castelo, ao
que Maria, assustada, nega, desaparecendo de nossas vistas. Retornando ao grande relógio
central de posse dos anéis Golden Ring e Silver Ring, Alucard faz com que os ponteiros
marquem 6:30, o que abre uma passagem para baixo.

Figura 16: Relógio marcando 6:30, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Captura de tela do jogo.

Abrir a passagem secreta abaixo do relógio não é um item obrigatório no jogo, isso
pode acontecer se Alucard conversar com Maria na torre do Royal Chapel e se estiver usando
os dois anéis. Se isso ocorrer, o jogador abre a passagem para que possa encontrar Maria
novamente; do contrário, Alucard terminaria o jogo derrotando Richter Belmont enfeitiçado,
acreditando ser esse o verdadeiro vilão. No centro do castelo, Alucard encontra Maria
novamente. Eles concordam que Richter deve ser impedido, mas que está sendo controlado
por alguém. Maria lhe entrega o Holy Glasses, um par de óculos, e lhe diz que isso o ajudará a
enxergar através das ilusões. O caminho para chegar até Belmont é pela Clock Tower,
passando pelo telhado do castelo.

Nessa ocasião, a lua não é visível no céu escuro e nublado, apesar de cheia. Pelo
contrário, o que ilumina o caminho escuro são os monstros chamados Skull Lords, crânios
gigantes que brilham como um fogo-fátuo. Perto da torre de Drácula, porém, a lua minguante
143

surge no céu como um raio amarelado, pouco encoberta pelas nuvens que correm rápido
através dos ventos fortes. No topo, na sala onde Belmont derrotou Drácula no começo do
jogo, Alucard encontra Richter. Após uma conversa rápida, e caso esteja utilizando os óculos
que Maria lhe deu, Alucard acaba por destruir quem controla Richter e o salva. Caso ele opte
por matar Richter, o jogo acaba: o castelo de Drácula se desfaz e a noite se torna dia. Maria
prossegue em sua luta contra o mal, tentando entender o que causou a loucura de Belmont;
Alucard se vai.

Se Alucard derrotar quem controla Richter, ele saberá que foi Shaft, o mago servo de
Drácula, quem fez um feitiço para usar em Belmont e trazer seu mestre de volta. Um castelo
desce do céu, invocado por Shaft, e Belmont acorda de seu transe tentando entender como ele
poderia ter causado isso. Alucard pede para que Maria leve Richter do castelo, dizendo que
ele vai resolver os problemas.

Subindo a torre, Alucard acessa o outro castelo, uma versão exatamente igual daquele
grande castelo que ele já percorreu, só que de ponta cabeça. E apenas nessa versão do castelo
é possível encontrar Drácula.

No castelo invertido, os cenários têm trilhas sonoras diferentes. Merece destaque a


―Lost Painting‖, onipresente nos cenários Royal Chapel, Library e Underground Caverns
invertidos.

No Alchemy Laboratory invertido está um chefe bastante impressionante chamado


Beezelbub. Trata-se de um cadáver gigante pendurado por correntes. Em seu corpo
apodrecido, moscas gigantes zumbem.

Figura 17: Chefe Beezelbub, Castlevania SoTN (1997).


144

Fonte: Captura de tela do jogo.

Retornando ao ponto central do castelo, onde há o relógio invertido, Alucard faz com
que o horário das 6:30 abra uma passagem para cima. Subindo pelo elevador, ele encontra
Shaft, aquele que estava controlando Belmont. Derrotando-o, Alucard descobre que é tarde,
pois Drácula já foi ressuscitado. Antes do embate final, Drácula e Alucard discutem, fazendo
com que o jogador compreenda o porquê de ambos estarem em lados diferentes.

Alucard: Pai...
Drácula: Bem, meu filho! Já faz muito tempo.
Alucard: Não é tempo suficiente. Eu não posso permitir que você saia daqui, pai.
Drácula: Você ainda está do lado da humanidade? Você esqueceu o que eles fizeram
com sua mãe?
Alucard: Você acha que eu iria esquecer... Não! Mas também não busco vingança
contra eles.
Drácula: Chega do seu absurdo! Fora com sua humanidade! Fique comigo como
Príncipe de todo o mundo!
Alucard: Você nunca mais vai tocar neste mundo. Em nome da minha mãe, eu juro!
(Depois da batalha.)
Alucard: Volte para o abismo! Não perturbe a alma da minha mãe!
Drácula: C-como ?! Como eu poderia ter perdido?!
Alucard: Você perdeu seu coração. Sua alma. Você nunca vai ganhar sem eles.
Drácula: Ah, que poético. Então eu sacrifiquei tragicamente tudo o que eu amava em
busca de poder, não foi?
Alucard: ... Não foi o que você fez?
Drácula: ... Hunf. Conte-me. O que... Quais foram as últimas palavras de Lisa?
Alucard: Ela disse: ―Não odeie humanos. Se você não pode viver com eles, então,
pelo menos, não lhes faça nenhum mal, pois a vida deles já é muito difícil‖. Ela
também disse que amaria você. Pela eternidade.
Drácula: Lisa, me perdoe... Adeus, meu filho... 126 (CASTLEVANIA SOTN, 1997).

126
―Alucard: Father...
Dracula: Well met, my son! It‘s been a long time.
145

Ao final, Drácula e Alucard concluem seu caminho na narrativa do jogo. Drácula


sucumbe pelas mãos do filho, recebendo a última mensagem da mãe falecida e se sentindo
culpado pelas escolhas que fez. Alucard destrói o pai novamente, uma figura que lhe causa
angústia por ser ele também assim. Martin (2011) analisa a ambivalência de Alucard em
relação ao castelo Castlevania, que se divide em duas partes idênticas e que estão conectadas
por um relógio central, de maneira espelhada. Para Martin, essa ambivalência denota uma
leitura da própria natureza do filho de Drácula, que tem sangue humano e vampiro, que é
tanto mortal quanto imortal, e que, ao final do jogo, vive um dilema entre viver um amor com
Maria e se afastar por causa de sua metade vampírica. Martin analisa o castelo e entende que
ele é essencialmente um labirinto, o que permite uma leitura que alude ao percurso de Alucard
à confusão, ou seja, a um retorno constante aos mesmos espaços.

Ao comparar Alucard com Teseu, Martin (2011) afirma que, apesar de idas e vindas, é
no centro do labirinto que a resolução do conflito está. Apesar de ter como objetivo a
destruição de seu pai, é por meio do labirinto e do percurso de ir e vir que se percebem,
segundo Martin, os momentos de indecisão e conflito entre o bem e o mal dentro de Alucard,
tanto física quanto psicologicamente. O jogo termina com Alucard encontrando Maria e
Richter do lado de fora do castelo, no lago. A noite se foi, os raios da manhã iluminam a tela.

Nas palavras finais de Alucard, ―a única coisa necessária para o mal triunfar é que os
bons homens não façam nada‖127128. Com a derrota de Drácula, os dois melhores finais estão

Alucard: Not nearly long enough. I can‘t allow you to leave here, Father.
Dracula: Do you still side with humanity? Have you forgotten what they did to your mother?
Alucard: You think I would forget such a...! No. But neither do I seek revenge against them.
Dracula: Enough of your nonsense! Away with your humanity! Stand with me as Prince of all the world!
Alucard: You will never touch this world again. In Mother‘s name, I swear it!
[depois da batalha]
Alucard: Go back to the abyss! Trouble the soul of my mother no more!
Dracula: H-How?! How could I have lost?!
Alucard: You lost your heart. Your soul. You'll never win without them.
Dracula: Ah, how poetic. So I tragically sacrificed all I held dear in a search for power, did I?
Alucard: ...Did you not?
Dracula: ...Hmph. Tell me. What... What were Lisa's last words?
Alucard: She said, ―Do not hate humans. If you cannot live with them, then at least do them no harm, for theirs is
already a hard lot.‖ ...She also said that she would love you. For eternity.
Dracula: Lisa, forgive me... Farewell, my son...‖ (CASTLEVANIA SOTN, 1997).
127
―The only thing necessary for evil to triumph is for good men to do nothing‖ (CASTLEVANIA SOTN,
1997).
128
Esta frase tem autoria original de Edmund Burke, conforme se pode ver em: ―All that is necessary for the
triumph of evil is that good men do nothing‖. SHAPIRO, Fred R.; EPSTEIN, Joseph. The Yale Book of
Quotations. Yale University Press, 2006, p. 116, nota 28.
146

disponíveis. Em apenas um deles é possível entender que existe um relacionamento romântico


entre Alucard e Maria. Esse final pode ser ativado se o jogador explorar inteiramente o castelo
antes de destruir Drácula. Alucard diz que o sangue que corre em suas veias é amaldiçoado, e
que por isso é melhor que ele não esteja no mundo. Maria o segue, o que de fato não deixa
claro se eles iriam ter um relacionamento ou não, já que Richter apenas diz que talvez ela
possa ajudá-lo a lidar com a alma atormentada.

De agora em diante nos ateremos à análise de características em contraponto àquelas


abordadas no estudo do romance Drácula, anteriormente vistas.

4.2.1 TEMAS

O grande tema de Castlevania é o castelo – todo o jogo gira em torno desse espaço.
Sendo a representação de um regime antigo, de uma forma de viver antiga e degradada (como,
por exemplo, regimes de poder autoritários, monárquicos etc), a luta contra essas forças
decrépitas representadas pelo e no castelo parece ser o tema central do jogo. Encarnação disso
é o personagem Drácula, pai de Alucard, que aparece como figura caótica que ressurge a cada
100 anos, tendo como único intuito fazer o mal à humanidade – seja por desprezo, seja por
gosto. Drácula deixa transparecer em suas falas que sua postura se assemelha à das religiões,
pois oferece a salvação em troca da alma das pessoas. Em outros momentos, ele observa que
os homens são seres miseráveis, nada diferentes dos monstros que habitam o castelo. Vale
destacar que a maioria dos monstros parecem pessoas que de fato deram suas almas em troca
de algo, como, por exemplo, guerrear a vida inteira.

O duplo também aparece como tema em Castlevania, visto que Alucard encontra uma
cópia de si mesmo.

O tema religioso também é de grande destaque, embora não tenha contornos tão
definidos como tem no romance Drácula. Mas, no videogame, a religião aparece de forma
dúbia, talvez porque, mesmo que Drácula despreze as religiões e que isso seja evidente nas
suas falas, os símbolos cristãos são uma constante no castelo, inclusive no cenário da capela
(Royal Chapel). Por exemplo, no cenário do confessionário, dentro da Royal Chapel, um
padre, uma fiel e um demônio são figuras que aparecem sem razão aparente, porém esse fato é
curioso pois nunca se sabe qual delas vai aparecer: o que sugere que elas podem fazer as
vezes uma da outra, indiscerníveis. Vale destacar também que o design de ambos é
semelhante, o que pode significar que as figuras religiosas e demoníacas são praticamente
147

idênticas. A figura de Lisa, mãe de Alucard, é a de uma personagem que imiscui a de Jesus (o
filho salvador) e a de Maria (a mãe misericordiosa): ao mesmo tempo em que foi
misericordiosa com o pai e tentou, em vida, mediar a convivência dele com humanos, foi
crucificada por aqueles a quem desejava salvar. Alucard vive atormentado em uma situação
limite: ele não esqueceu o que os humanos fizeram com sua mãe, mas não quer que eles
sofram mais do que já sofrem. Ao fim e ao cabo, retorna-se elipticamente para a problemática
da religião, responsável pela morte de sua mãe.

A sexualidade também se apresenta como tema no videogame, embora de forma


menos direta e decisiva. Há poucos monstros mulheres, a maioria nem é citada na descrição
aqui feita do jogo, já que se apresentam apenas como sombras, quase etéreas. As mulheres
corporificadas são misturas monstruosas de partes de plantas ou animais e torsos nus, ou são
bruxas ou manequins. Uma das presenças femininas mais marcantes no jogo é a monstro
Succubus, responsável pelo pesadelo vivido por Alucard. Maria, que parece nutrir um
interesse amoroso por Alucard, só deixa isso claro no final, o que, talvez, possa parecer tarde
demais para a consolidação disso através da leitura do jogador. Retirando-se Maria e Lisa, as
figuras femininas presentes no jogo aparecem, em sua maioria, seminuas, e emitem gritos
lascivos quando morrem. A Succubus, por exemplo, parece gritar de prazer quando
finalmente é derrotada por Alucard. É possível compreender que, apesar da sedução implícita
dos monstros femininos, Alucard permanece inatingível, despojado de qualquer desejo.
Mesmo no final, ele apenas se interessa pela preservação da humanidade, eximindo-se de
sequer participar como espectador; quem sabe, retornará ao sono eterno em que estava e do
qual foi despertado antes do início da narrativa. Se levarmos em conta a história de seus pais,
poderemos compreender que o envolvimento dele com humanos é impossível, visto que
Alucard refere-se ao seu sangue como amaldiçoado. Como as inimigas são sexualizadas, seja
pelas roupas (ou pela falta delas), seja pelos gritos de dor (tanto lascivos quanto dolorosos),
poderíamos dizer que há questões misóginas que concorrem na narrativa. Assim como em
Drácula, as vilãs não são apenas más, elas usam seu corpo e sua sedução como armas.

A luta do bem contra o mal é, definitivamente, o grande tema do jogo, mas ficam
também em destaque o conflito familiar (do filho que precisa se posicionar contra o pai para
defender os interesses da mãe) e o conflito interno de Alucard, que abre mão de seu torpor
para salvar a humanidade (mas dela não pode participar).

Todos esses temas se constituem como góticos, principalmente no que tange ao


heroísmo frente à onipotente e onipresente figura patriarcal que controla o castelo. Mas
148

chama-nos a atenção a diferença do personagem Alucard em relação a outros personagens do


clã Belmont, responsáveis por caçar vampiros desde o início dos tempos.

4.2.2 OS PERSONAGENS

São 6 os personagens que merecem destaque na trama de Castlevania SoTN. O


protagonista é Alucard, filho atormentado de Drácula que é meio vampiro, meio humano. Ele
desperta de seu sono autoinduzido para proteger a humanidade conforme o pedido de sua
mãe. Alucard tem habilidades de vampiro e pode se transmutar em névoa, morcego e lobo. Do
outro lado, o antagonista Drácula – grande figura do que pode ser um modelo de
patriarcalismo degradado, se levarmos em conta os temas góticos e as análises já
empreendidas nesta tese. O pai de Alucard tenta controlar os humanos para que esses o
tragam à vida a cada 100 anos, como um patrono religioso, ou seja, uma figura dominadora
que traz consigo um lastro de um mundo antigo rançoso e de poder tradicionalmente
inquestionável, com seguidores fiéis que o idolatram em busca de salvação (ou danação
eterna, como é o caso dos monstros do castelo). Os personagens que estão entre essas duas
forças são: Lisa, mãe de Alucard e falecida esposa de Drácula, morta pelas mãos da crença
religiosa. Ela consegue superar a falta de amor dos homens para deixar para o filho o legado
da compaixão; Maria, jovem da família de caçadores Belmont que tenta ajudar Richter a
encontrar a saída do castelo, protegendo-o de ser morto por Alucard; Belmont, uma figura
heroica que sucumbe ao controle do mal, mas que nesse jogo é quase apagada; por último,
Shaft, o mago obscuro que tenta ressuscitar Drácula.

4.2.3 LEITURAS VISUAIS

A narrativa do jogo Castlevania SoTN (1997) acontece em 1797. Iniciando a análise


pela vestimenta, notamos que os trajes dos personagens em geral se parecem com os vestidos
na Europa entre 1775 e 1795, época em que, segundo Daniel Roche em The Culture of
Clothing: Dress and Fashion in the Ancien Régime (1996), o estilo rococó estava em
decadência devido às mudanças sociais trazidas principalmente pelas ideias iluministas
(ROCHE, 1996, p. 150). Segundo Roche, foi nessa época que o linho fino começou a ser
objeto de desejo por todas as camadas sociais da população francesa, já que era sinônimo de
riqueza e luxo (1996, pp. 156-158). A manutenção desse tipo de tecido, tanto pela higiene
pessoal quanto das próprias vestimentas, tornava seu uso e sua compra caros. Roupas eram
149

roubadas: elas eram símbolo de status. A associação do linho como sinal de brancura, pureza
de pele e de alma (1996, p. 170) se relacionou com o asseio numa época em que muitas
doenças se espalhavam através de roupas infestadas. Vestia-se de linho, sujava-se a roupa e
depois se lavava, e era assim que as pessoas mais ricas permaneciam limpas, mesmo com a
escassez de água. Sendo assim, estar trajado de linho fino e branco demonstrava a troca de
roupa constante e o asseio (1996, p. 178). Até o século XVIII, a maioria da comunidade pobre
manteve sua higiene nos parâmetros medievais, lavando somente as mãos e o rosto – o corpo
era lavado muito raramente (1996, p. 179). Já na Paris do século XVIII, os camponeses mais
pobres tinham todos os tecidos, de roupa de cama às roupas de baixo, feitos de linho e por
isso se mantinham mais limpos. A partir de então, o aspecto sujo, em geral, passou a ser
reconhecido como sinal de ―perversão moral‖, já que havia a possibilidade de as pessoas
estarem mais limpas – e, se não o fizessem, seria uma questão de falta de asseio (ROCHE,
1996, p. 180).

Figuras 18 e 19: Comparações entre trajes do videogame Castlevania SoTN (1997) e traje Italiano (final do
século XVIII).
150

Fonte: Figura 18 – Alucard. Disponível em: <http://castlevania.wikia.com/wiki/Alucard>. Figura 19 – Traje


italiano. Galleria del Costume di Palazzo Pitti. Disponível em:
<https://www.europeana.eu/portal/en/record/2048224/00000123.html>. Acesso em: 01 jul. 2018.

Observa-se a semelhança nos brocados das abotoadoras e punhos, a gola alta, o ajuste
à cintura. Segundo Roche, a revolução francesa mudou a forma como as pessoas se vestiam
porque a liberdade política ditava maior liberdade corporal, portanto, um novo jeito de se
vestir (1996, p. 149). Além disso, os símbolos revolucionários (como os uniformes)
adquiriram sentido importante no imaginário popular devido à revolução Francesa.

As roupas usadas pelos personagens do jogo se assemelham à moda praticada na


França e na Itália em época contemporânea à da narrativa do jogo. Alucard é muito branco,
tanto sua pele quanto seu cabelo são da mesma cor que as roupas que ele veste por baixo do
casaco e da capa. É possível que essa escolha, em contraste com as roupas negras, transpareça
tanto o aspecto de nobreza do personagem quanto sua incorruptibilidade que irrompe das
151

trevas. Ao mesmo tempo, ele é um vampiro, e por isso é tão pálido. Portanto, o vampiro seria,
naturalmente, visto como um ser mais limpo e com requinte, pois sua pele muito branca e a
falta de fluídos corporais que sujem suas roupas o destacariam como um ser de aparente
pureza.

Outro fato interessante que nos chama a atenção se relaciona com a aparência do
personagem Drácula. De acordo com Christopher Frayling, no prefácio para a edição Penguin
Classics da Companhia das Letras (2014), a segunda edição de Drácula, de 1902, trazia

[...] uma das únicas ilustrações que Bram Stoker teve chance de aprovar
pessoalmente. O desenho mostra o conde como um comandante militar de cabelos
brancos, com volumoso bigode e um manto com vaga forma de morcego, descendo
as paredes de pedra do Castelo Drácula - imagem bem distante do dândi sedutor
melífluo de incontáveis versões cinematográficas (mais de duzentas, de acordo com
os últimos cálculos), aquele sujeito carismático, em traje de gala e capa preta (2014,
p. 7).

Observemos abaixo a imagem do Drácula de Castlevania SoTN (1997). Percebe-se


que, de certa maneira, o design do personagem se assemelha mais à imagem evocada por
Stoker no romance do que àquela cristalizada pelos filmes que vieram posteriormente.

Figura 20: Conde Drácula e Lisa, Castlevania SoTN (1997). Manual do jogador, p. 12.

Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/> Acesso em: 01 jul. 2018.
152

Visualmente, o estilo gótico se revela de diversas formas, a começar pelo início do


jogo, quando encontramos uma tela com tipografia que lembra as escrituras em livros
medievais, com uma imagem de fundo que se assemelha a uma gárgula.

Figura 21: Tela de início do jogo ou seleção de arquivos do memory card, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/> Acesso em: 01 jul. 2018.

Outro elemento sobre o qual faremos considerações é a arquitetura 129. O cenário do


jogo é o castelo chamado Castlevania. O panorama do jogo, em geral, une aspectos presentes
nas arquiteturas renascentista e gótica, observando-se o destaque para a simetria e a beleza

129
Faltou, nesta tese, uma análise que priorizasse as cores, as texturas e as relações de luz e sombra dentre outros
aspectos visuais de singular importância, assim como nos foi apontado pela professora Telma Elita Juliano
Valente em sua participação na banca de defesa. De fato, ao priorizarmos apenas aspectos arquitetônicos, não
nos atentamos para a riqueza de indícios visuais que poderiam produzir outras acepções bastante instigantes para
o encorpamento das nossas análises. Na revisão deste texto, optamos por não incluir essas análises, já que
demandariam um trabalho de pesquisa intenso e extenso – pois não é nosso interesse que essa análise ficasse
aquém das expectativas que temos. Faltou, dessa forma, nos aprofundarmos no character design da responsável
pelo jogo, Ayami Kojima. Seria preciso desenvolver um projeto de pesquisa que focasse nestes aspectos para
que fosse possível chegarmos ao nível de aprofundamento, tanto teórico quanto analítico, necessário para uma
análise que fizesse jus a importância e pertinência do empreendimento em si.
153

dos elementos presentes. Para a tese, analisaremos recortes130 de cinco cenários do jogo:
Alchemy Laboratory, Clock Tower, Long Library, Marble Gallery e Royal Chapel. Para essas
análises, utilizaremos como fundamentação teórica o livro A History of Architecture on the
Comparative Method, escrito por Banister Fletcher em 1905.

Segundo Fletcher, a reforma na igreja cristã iniciada na Alemanha por Martinho


Lutero (1517) aconteceu ao mesmo tempo em que ideias renascentistas se desenvolveram na
arquitetura. Essa renovação também foi acompanhada pela literatura. Na Itália, onde havia
poucas igrejas góticas construídas na Idade Média, a arquitetura renascentista se desenvolveu
amplamente (FLETCHER, 1905, p. 438). Foi exatamente por isso que o estilo se firmou na
Itália. Segundo Fletcher, a arquitetura renascentista era, para a Itália, um retorno direto ao
passado romano. Por causa do envolvimento de muitos artistas no movimento, foi nessa época
que muitos acessórios arquitetônicos, como fontes, altares etc, foram desenhados
(FLETCHER, 1905, p. 440).

O Alchemy Laboratory é um ambiente requintado e harmônico. Como é possível ver


na figura 22, há estátuas e colunas que adornam o ambiente, além dos castiçais com velas.
Mesmo com a riqueza dos adornos, é possível ver a formação de ruínas, nas formações de
mármore, que fazem com que o espaço se torne decrépito.

Figura 22: Alchemy Laboratory, Castlevania SoTN (1997).

130
Optou-se pela análise de um recorte de cada cenário do corpus priorizando o estudo de elementos
característicos dos estilos arquitetônicos estudados e a representatividade deles nos ambientes.
154

Fonte: Castlevania Crypt.com. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/sotn/maps>. Acesso em: 16 de


maio de 2018.

É possível ver de forma clara a herança do passado romano reavivado pelo estilo
renascentista das instalações, com adornos nas colunas. O uso de ―cornijas, varandas, frisos e
detalhes horizontais geralmente são fortemente pronunciados, e por sua frequência e
importância produzem um efeito de horizontalidade‖131 (FLETCHER, 1905, p. 444, grifos do
autor), bem marcado no cenário em questão. Ao mesmo tempo, a estátua em escala humana é
característica das ornamentações da arquitetura gótica (FLETCHER, 1905, p. 444).

Já as estruturas do castelo, assim como mostradas no cenário Clock Tower, condizem


mais com aquelas descritas por Fletcher (1905) a respeito da arquitetura gótica. Assim como é
possível perceber na figura 23, a estrutura dessas colunas se assemelha à constituição das
colunas góticas, que ―eram inteiramente estruturais, ou expressavam as pressões nos pilares
aos quais, às vezes, estavam presos. A proporção relativa de altura para diâmetro não existe, e
os capitéis e bases132 foram fortemente moldadas ou esculpidas com florão convencional‖133
(FLETCHER, 1905, p. 444).

131
―[…] cornices, balconies, string bands, and horizontal features generally are strongly pronounced, and by
their frequency and importance produce an effect of horizontality‖ (FLETCHER, 1905, p. 444, grifos do autor)
132
Capitéis são as extremidades superiores das colunas, e as bases são as inferiores.
133
―[…] were entirely structural, or expressive of pressures upon the piers to which, sometimes, they were
attached. The relative proportion of height to diameter does not exist, and the capitals and bases were either
heavily moulded or carved with conventional foliage‖ (FLETCHER, 1905, p. 444).
155

Figura 23: Clock Tower, exterior, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Castlevania Crypt.com. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/sotn/maps>. Acesso em: 16 de


maio de 2018.

Além disso, observa-se o uso de tijolos desiguais, o que denota que a construção foi
erguida em uma época anterior ao Renascimento. De acordo com Fletcher (1905, p. 442), uma
grande diferença na harmonia arquitetônica das construções renascentistas e góticas se deu
pela mudança do material usado para construção: no período gótico, os blocos eram moldados
e esculpidos em fábricas de tijolos para depois serem utilizados na construção, o que causava
muitas vezes um ajuste da arquitetura ao material no momento do seu uso.

O cenário Long Library é a biblioteca do castelo. Com o uso de texturas diferentes,


que simulam a pedra ou madeira, o design desse cenário transmite os efeitos da arquitetura
Renascentista, que preserva o estilo de estruturas antigas e as reorganiza com novos
elementos. Os detalhes das paredes de tijolos também remetem ao estilo, que renasceu e
desenvolveu arquitetonicamente as construções de estilos da antiga Grécia e Roma. É possível
perceber isso pelo uso de pilastras romanas que são utilizadas para estruturar as estantes de
156

livros e as paredes onde elas estão instaladas, assim como é possível ver na figura 24, logo
abaixo.

Figura 24: Long Library, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/sotn/maps>. Acesso em: 16 de


maio de 2018.

O foco do cenário na simetria e na proporção remete ao da arquitetura clássica da


Antiguidade. No cenário acima, os livros saem das prateleiras para atacar os transeuntes; as
chamas nos castiçais iluminam o ambiente, tornando-o uma das atmosferas mais acolhedoras
do jogo. Câmaras por trás das pilastras deixam ver lugares onde as pessoas se sentariam para
estudar os livros.

A biblioteca é simétrica e iluminada, apesar de não haver janelas ou luz natural.


Mesmo assim, certos trechos podem ser vertiginosos: o uso de elementos tridimensionais ao
fundo, em justaposição ao cenário bidimensional, mais próximo ao jogador, causa o efeito de
profundidade e imensidão próprio desse estilo arquitetônico, conforme vemos na figura 25 a
seguir.

Figura 25: Long Library, Castlevania SoTN (1997).


157

Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/sotn/maps>. Acesso em: 16 de


maio de 2018.
158

É possível perceber nas figuras 24 e 25 uso de tijolos laboriosamente encaixados, de


forma a criar uma simetria harmônica. Ao mesmo tempo, as colunas formam pórticos que se
conformam de fora para dentro, não apenas estruturando, mas ornamentando as instalações.
Essas portas, por sinal, são quadradas, e não pontiagudas, como as do estilo gótico. As
estátuas também demarcam o estilo renascentista, sendo elegantes e ornamentais. Por último,
a abóbada é simples e arredondada, sem o típico esqueleto da arquitetura gótica.

Assim como pontuado anteriormente, é possível perceber a diferença dessa estrutura


de tijolos em comparação com a construção do estilo Gótico. No Renascimento, as
modelagens podiam ser feitas com mais exatidão e de acordo com as necessidades do
engenheiro, o que os ajudou a projetar construções mais harmoniosas (FLETCHER, 1905, p.
440).

Ainda, a estrutura parece envelhecida, dados os detalhes que denotam o caráter antigo
da construção: alguns tijolos parecem quebrados, a abóbada do teto parece ruída. A
construção, em geral, se parece com a do Palazzo Farnese, em Roma, e a do Palazzo
Vendramin, em Veneza – exemplos de construções do período renascentista italiano citadas
por Fletcher (1905).

Do cenário Marble Gallery selecionamos um ambiente: uma coluna de vitrais que


pertence a uma sala vertical. Nesse cenário, a arquitetura é primordialmente gótica, como
veremos na análise.

No cenário da figura 26 percebemos o uso de vitrais com motivos religiosos e a


rosácea, elementos amplamente utilizados na arquitetura gótica, assim como as estátuas em
proporção humana (FLETCHER, 1905, p. 444). Além disso, é possível ver o uso de tijolos em
formatos desiguais, o que mostra que, como referido anteriormente, essa estrutura foi
construída no período anterior ao Renascimento. Gárgulas e figuras santas também estão
presentes nesse ambiente. A verticalidade da estrutura é outra das características desse estilo
arquitetônico – apesar de o teto não ser ogival (FLETCHER, 1905, p. 443).

Figura 26: Marble Gallery, Castlevania SoTN (1997).


159

Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/sotn/maps>. Acesso em: 16 de


maio de 2018.

Na Royal Chapel prevalece, novamente, o estilo de arquitetura Gótica. Para as


análises, selecionamos a imagem da capela (já vista anteriormente na descrição da narrativa
do jogo) e da escadaria. A figura 27 ilustra o que pode ser um ambiente de igreja, onde uma
cerimônia pode ser realizada. Pode-se ver o uso de grandes vitrais, que funcionam como
elementos que conferem iluminação ao ambiente. É um detalhe importante, já que
160

praticamente a totalidade dos outros ambientes do jogo, embora também adornados com
vitrais, são iluminados por velas ou candelabros. Essa é a única sala feita com uma espécie de
fundo em 3 dimensões: à medida que o jogador cruza o ambiente, de um lado para o outro, o
fundo o acompanha, o que cria uma dimensão espacial de enorme profundidade. Essa
profundidade colabora com a impressão que as catedrais góticas provocam naqueles que
frequentam estes lugares, projetando verticalização e poder. As janelas são formadas por
arcadas, que são distribuídas por colunas.

Figura 27: Royal Chapel, Castlevania SoTN (1997).

Fonte: Castlevania Crypt. Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/sotn/maps>. Acesso em: 16 mai.


2018.

Figura 28: Catedral de Notre Dame, Interior, Ala Leste (1997).


161

Fonte: FLETCHER, Banister. A history of architecture on the comparative method (1905, p. 158).

Observando o exemplo de arquitetura gótica francesa trazida por Fletcher (1905), é


possível perceber enorme similaridade à estrutura do ambiente do jogo, com a formação de
162

um claustro formado pela disposição de arcarias134 no entorno, por exemplo. Na Catedral de


Notre Dame (FLETCHER, 1905, p. 158), nota-se a verticalidade das ogivas135, abóbadas136
em cruzaria, os assentos, os vitrais e capitéis e bases bem elaborados.

A última imagem que analisaremos é um trecho de uma extensa escadaria que


pertence à Royal Chapel. O motivo religioso surge novamente nos vitrais, no que alude à cena
da via crucis, tema comumente utilizado nas igrejas – a composição dos vitrais e da imagem
de uma pessoa segurando uma enorme cruz dão essa impressão. As esculturas no interior
também são religiosas. A arquitetura utiliza a verticalização, a arcaria, e as estreitas colunas
têm capitéis decorativos. Além disso, do lado de fora vemos arcobotantes137 adornados com
rostos de gárgulas. Do lado de fora, os pinheiros nos lembram as descrições que Jonathan
Harker fez do exterior do castelo de Drácula.

Figura 29: Royal Chapel, Castlevania SoTN (1997).

134
Arcarias, ou arcadas, são constituídas de uma sequência de arcos e são utilizadas para dividir a distância entre
uma coluna e outra.
135
Dois arcos simétricos que se recortam em ângulos similares.
136
Teto curvilíneo utilizado para unir duas pilastras. Quando em cruzarias, essas abóbadas se entrecruzam.
137
Estruturas em meio arco que servem para dividir o peso das estruturas do teto e das colunas.
163

Fonte: Castlevania Crypt Disponível em: <http://www.castlevaniacrypt.com/sotn/maps>. Acesso em: 16 mai.


2018.

Após as considerações feitas sobre esses cenários e o recorte neles feito, com a seleção
de ambientes pontuais de cada um, retornarei aos pontos debatidos no castelo de Drácula.
Primeiro, importa ressaltar a beleza das imagens construídas para o jogo, assim como sua
complexidade. O cenário é bastante extenso e, em cada pequena câmara, há detalhes
minuciosos que agregam riqueza e significado à apreensão do jogador. Cada detalhe produz
efeitos, seja de grandiosidade, de beleza, de complexidade etc, que só fazem aludir às
sensações e apreensões hermenêuticas por parte do jogador.

O número abundante de ambientes com infinitas portas nos faz pensar no castelo de
Drácula descrito por Harker. São diversas câmaras que dispõem tanto de luxuosos adornos
quanto de pilhas de objetos antigos em decadência. Também há passagens secretas, portas
lacradas e a sensação de aprisionamento claustrofóbico. O castelo Castlevania parece de fato
inspirado tanto nos edifícios góticos e renascentistas quanto nas criações literárias, como os
castelos de Otranto e de Drácula. Na era pré-internet, era preciso que o jogador revisitasse
cada ambiente vasculhando minuciosamente todas as paredes em busca de lugares secretos e
segredos escondidos. Essa curiosidade e mistério provocados pelo design do castelo e pelos
elementos ergódicos (itens escondidos ou disponíveis apenas quando jogador obtivesse as
habilidades necessárias) ampliam o efeito de sedução e de deslumbramento, assim como a
amplidão do próprio castelo. Assim sendo, a criação do design e da arquitetura ergódica do
jogo provocam no jogador do videogame o efeito de sublime, o que faz com que as
características arquitetônicas dos castelos da literatura gótica sejam levadas a outra potência.

4.2.4 LEITURAS AUDITIVAS

Outros elementos que fazem parte do conteúdo estético e do corpus de análise cultural
de um jogo de videogame são a trilha sonora assim como os efeitos sonoros dele. De acordo
com Sander Huiberts, em Captivating Sound: The role of audio for immersion in computer
games (2010), a importância da trilha como elemento de constituição dos videogames cresceu
de acordo com a ampliação da capacidade técnica dos aparelhos para reprodução dos sons.
Conforme o aumento da capacidade técnica de reprodução de mídia dos aparelhos de
videogames, aumentou também a demanda de profissionais aptos a criarem composições
sonoras mais bem elaboradas; o que melhorou, portanto, a qualidade das trilhas e seu impacto
164

como componente nos jogos de videogame. Mesmo com a importância do aspecto sonoro
para o sucesso do jogo, Huiberts declara, assim como outros pesquisadores, que há poucas
pesquisas dedicadas ao estudo dos sons nos videogames (2010, p. 21).

Apesar de Huiberts (2010) não vincular sua pesquisa aos estudos musicológicos, a
discussão, neste momento, converge no par teórico que se traça para a análise do corpus da
pesquisa: os estudos culturais musicológicos e os estudos culturais de videogames.
Compreende-se, de acordo com Joseph Kerman, que a musicologia é um estudo que inclui ―o
pensamento, a pesquisa e o conhecimento de todos os aspectos possíveis da música‖ (1987, p.
1). Inclui, portanto, o aspecto sonoro dos jogos de videogame, pois compreendemos que A
partir da década de 1990 os estudos musicológicos ampliaram o escopo de teorias, perspectivas
teóricas e objetos estudados. Importa ressaltar que apesar da amplição das perspectivas teóricas e
dos objetos da musicologia, há nichos ainda por explorar, como os videogames.

Assim como Nicholas Cook e Mark Everist (2001) em relação aos estudos
musicológicos, a preocupação de Consalvo (2012) com as escolhas metodológicas dos
estudos de videogame é da ordem das motivações do teórico: o que se objetiva entender é o
que estabelecerá como a pesquisa se dará. Cook e Everist falam de ―[...] repensar a disciplina,
não tanto no sentido de inventar novas ferramentas analíticas ou metodologias históricas, mas
no sentido de tentar decidir o que estas ferramentas e metodologias podem nos dizer‖138
(2001, p. xi), ao passo que Consalvo entende que os desejos de pesquisa partem do tipo da
área de pesquisa à qual o pesquisador pertence e a escolha metodológica se ancora em seus
pressupostos teóricos (CONSALVO, 2012, p. 16), afinal, ―[...] nenhuma disciplina ou campo
deve (ou pode) ter controle sobre a pesquisa ou teorização de jogos, e o estudo dos jogos é
enriquecido por vários caminhos de investigação‖139 (CONSALVO, 2012, p. 8).

A escolha das ferramentas metodológicas e do amparo teórico para o estudo da música


de videogame deve coadunar o campo de estudos do pesquisador e o que ele deseja descobrir
nas análises praticadas. Neste momento, desejamos entender como os elementos estéticos da
trilha e dos efeitos sonoros ampliam os significados culturais que se imbricam no jogo
Castlevania SoTN (1997).

138
―[…] rethink the discipline, not so much in the sense of inventing new analytical tools or historical
methodologies, but in the sense of trying to decide what these tools and methodologies can tell us‖ (COOK;
EVERIST, 2001, p. xi)
139
―[…] no one discipline or field should (or can) have control over game research or theorization, and the study
of games is enriched by multiple paths of inquiry‖ (CONSALVO, 2012, p. 8).
165

A ampliação do corpus de análise do videogame (abarcando outros elementos


estéticos além da própria narrativa) dentro do âmbito dos estudos literários se justifica com a
ponderação de que esses novos objetos culturais textuais são sincréticos. Isso quer dizer que a
compreensão do sentido do jogo é produto da recepção de imagem, som, textos e interação
física, condensados na acepção do jogador. A dimensão do significado que os sons têm no
âmbito dos videogames se vincula ao estudo social da história da música, que se importa em
entender (HARPER-SCOTT e SAMSON, 2009, p. 11) ―o papel que a música desempenha na
vida das pessoas‖140.

Entender como um corpus musical amplia os significados da narrativa de um jogo faz


parte do estudo social da música, já que visa a investigar ―o modo como pessoas organizam
suas experiências musicais, através de instituições, em grupos, e via mercado, e o modo como
a música é produzida, performada, consumida e compreendida‖141 (HARPER-SCOTT e
SAMSON, 2009, p. 44). O corpus sonoro de um videogame faz parte da experiência que o
jogador tem com o jogo, ao mesmo tempo em que dialoga com suas próprias experiências
musicais. Quando vistas no âmbito do estudo social musicológico, as músicas das trilhas
sonoras dos jogos de videogame, assim como todos os sons que fazem parte do jogo, podem
ser estudadas para o mapeamento de produção, performance, consumo e, como é o caso da
análise empreendida neste texto, a compreensão do jogador.

De acordo com Huiberts (2010), os sons de videogame podem ser classificados numa
produção que se distingue em três tipos: ―fala, som e música‖ 142 (p. 15). A partir disso, o
autor desenvolve uma revisão de literatura sobre estudiosos de som de videogames e
tentativas de estabelecer tipologias para o estudo dessa matéria. Apesar de haver diversos
modos de classificar esses sons, o autor declara que não houve, até então, um olhar atento
sobre como o som interage com o jogador. Mesmo sendo um assunto marginal, Jørgensen
(2006, p. 50, apud HUIBERTS, 2010, p. 20) diz que o ―áudio é um dos meios de transmitir
informação sobre o jogo para o jogador‖143.

140
―The role that music played in people‘s lives‖ (HARPER-SCOTT e SAMSON, 2009, p. 11).
141
―The way people organize their musical experience through institutions, in groups, and via the market, and
the way music is produced, performed, consumed, and understood‖ (HARPER-SCOTT e SAMSON, 2009, p.
44).
142
―Speech, sound and music‖ (HUIBERTS, 2010, p. 15).
143
―Audio is one of the means of conveying information about the game to the player‖ (JØRGENSEN, 2006, p.
50, apud HUIBERTS, 2010, p. 20).
166

O áudio tem um papel tão fundamental quanto a narrativa para que o jogador siga
engajado no jogo, porque em conjunto com a história amplia a imersão imaginativa da
audiência (HUIBERTS, 2010, pp. 47-51). Além disso, o áudio é responsável por trazer para o
jogo elementos culturais ou atmosféricos importantes para que o mundo virtual dos jogos ou
os mundos culturais que eles buscam representar sejam mais robustos. Isso serve, por
exemplo, para músicas criadas para o jogo (e o desejo de se criar uma ambiência e um
universo particular) ou músicas do mundo não-diegético (usadas como referências culturais
que também encorpam os significados do jogo) (HUIBERTS, 2010, p. 62). O áudio do jogo é,
de fato, outra dimensão de agrega sentido ao universo ficcional e à disposição do jogador em
relação a essa ficção.

Resumindo, a ―música é considerada um constituinte para reforçar a empatia do


jogador com esses aspectos imaginativos (COLLINS, 2008, p. 134), embora o tema raramente
seja pesquisado com mais detalhes no campo de design de jogo‖144 (HUIBERTS, 2010, pp.
82-83); ―O áudio pode ser usado para ampliar a história e isso é reconhecido por jogadores
como um aspecto que influencia de maneira positiva a imersão‖145 (HUIBERTS, 2010, p. 96).
Além disso, os elementos sonoros são ―capazes de melhorar três dimensões da imersão,
aumentando a conexão sensorial, a sensação de fluxo e o sentimento de empatia do
jogador‖146 (HUIBERTS, 2010, p. 101).

São, então, três dimensões de imersão que o áudio amplia: a) a conexão sensorial, com
o uso de elementos sonoros que ajudam o jogador a se sentir ―presente‖ no mundo
diegético147; b) a conexão com o fluxo, com o uso de um complexo sonoro que dita o ritmo de
jogo e aumenta o engajamento; e c) a conexão empática, que amplia a empatia do jogador
com os personagens, o mundo diegético, o cenário, a história etc. (HUIBERTS, 2010, p. 102).

Concluindo, o tempo musical normalmente dá suporte às ações do jogador, fazendo


com o que o gameplay seja divertido e que, com isso, o sentimento de fluxo do jogo
aumente ao mesmo tempo em que aumenta a imersão baseada nos desafios. Assim

144
―Music is considered as a constituent for the enhancement of the player's empathy with these imaginative
aspects (Collins, 2008a, p. 134) although the topic is barely researched into more detail for the game design
field‖ (HUIBERTS, 2010, pp. 82-83).
145
―Audio can be used to enhance the story and this is recognized by players as positively influencing
immersions‖ (HUIBERTS, 2010, p. 96).
146
―Audio is capable of enhancing the three dimensions of immersion by enhancing the sensory connection, the
feeling of flow and the feeling of empathy of the player‖ (HUIBERTS, 2010, p. 101).
147
O mundo diegético é o mundo do jogo, e o mundo não diegético o mundo fora do jogo, ou seja, nossa
realidade sensível.
167

como com filmes, os designers devem escolher o tempo certo para cada estímulo em
relação com o ritmo do gameplay 148 (HUIBERTS, 2010, p. 72).

A partir da discussão teórica acima exposta, observaremos como as músicas dos cinco
ambientes analisados anteriormente, a saber Alchemy Laboratory, Clock Tower, Long
Library, Marble Gallery e Royal Chapel, e alguns efeitos sonoros: 1) indiciam a conexão
empática com o mundo diegético do videogame e aumentam o engajamento com o ritmo de
jogo; e 2) oferecem elementos para ampliar a compreensão da narrativa do jogo e do mundo
cultural do jogador.

Patrocínio, inclusive, acredita que

Não é mais motivo de alarme nos deparar com pesquisas produzidas por
pesquisadores da área de estudos literários que elegem a música como objeto de
análise. [...] Amparados em pressupostos teóricos formados à luz dos Estudos
Culturais, disciplina crítica que auxilia a produção de uma reflexão que rompe com
possíveis estatutos hierárquicos estanques, tais estudiosos buscam um tratamento
interdisciplinar destes produtos discursivos culturais (PATROCINIO, 2013, p. 127).

Para o pesquisador, é natural que os estudiosos de literatura que se interessem pelas


análises de canções e poemas cantados, por exemplo, não acreditem ser necessário que haja
conhecimento formal analítico ou teórico para suas apreciações, já que elas podem ser feitas
através do exercício de outras apreensões próprias desse tipo pesquisador (p. 128). Assim
também se encaminha o texto de Pereira (2005), graças à atenção que ela dá às experiências
dos ouvintes: para a autora, a escuta da audiência revela representações de mundo
compartilhadas (PEREIRA, 2005, p. 156).

McClary verticaliza essas noções com sua crítica renovada e feminista: para a
pesquisadora, ―[...] a música não reflete a sociedade de forma passiva; ela serve como um
fórum público no qual vários modelos de organização de gênero (assim como muitos outros
aspectos da vida social) são reafirmados, adotados, contestados e negociados‖149 (1991, p. 8).

148
―In conclusion, the musical tempo often helps to support the actions of the player, making the gameplay
pleasant and increasing the feeling of flow and thus increasing challenging-based immersion. Just as in film,
designers should choose the right tempo for the stimulation in relation to the pace of the gameplay‖
(HUIBERTS, 2010, p. 72).
149
―[...] music does not just passively reflect society; it serves as a public forum within which various models of
gender organization (along with many other aspects of social life) are asserted, adopted, contested, and
negotiated‖ (McCLARY, 1991, p. 8).
168

Música representa o mundo, e o mundo cultural influencia as representações contidas na


música, num sistema circular de práticas e representações que se retroalimenta150.

A maneira como a música se constitui segue parâmetros sociais, ou seja, seu sentido
subscreve-se a um contexto histórico, social e cultural. Por buscar uma pesquisa que priorize a
análise cultural e contextual da música é que McClary entende que estudos formalistas não
serão capazes de proporcionar leituras sobre os significados das composições e nem de seus
usos (1991, p. 20). A pesquisa sobre música, segundo a autora, não precisa e nem sempre se
relacionou com observações técnicas; muitas análises estéticas e retóricas estiveram
interessadas no efeito causado pela música (McCLARY, 1991, p. 20). Pessoas não treinadas
formalmente, não acadêmicas, acreditam que as músicas têm significado:

elas podem soar felizes, tristes, sexy, funky, bobas, americanas, religiosas ou
qualquer coisa do tipo. Alheias ao ceticismo de músicos teóricos, elas ouvem música
para dançar, chorar, relaxar ou ficar românticas. Compositores de músicas para
filmes ou comerciais consistentemente associam seu sucesso comercial ao
conhecimento pragmático do público da significação musical – a habilidade com
que John Williams, por exemplo, manipula os códigos semióticos da sinfonia do
final do século XIX em E.T. ou Star Wars é de tirar o fôlego. [...] No mundo social,
a música alcança esses efeitos o tempo todo151 (McCLARY, 1991, p. 21).

O significado na música, assim como nos textos, não é dado ou natural: ele faz parte
das relações culturais e sociais do contexto no qual a música surgiu e de onde o ouvinte se
encontra. Por isso, quando Pereira (2005) e Patrocínio (2013), por exemplo, lançam mão de
experiências de ouvintes para entender música, eles não o estão fazendo de forma subjetiva: a
percepção das pessoas é constituída socialmente e, por isso, válida; ―eu tomo minhas reações,
de forma ampla, como constituídas socialmente – produtos de uma vida de contato com
música e outras mídias culturais‖152 (McCLARY, 1991, p. 22). E as experiências dos
ouvintes, além de se configurarem como parte importante da forma como o conhecimento
vem sendo gerado hoje (historicizado, socializado, hermenêutico), ampliam também a

150
Utilizam-se aqui, também, as noções de práticas e representações de Roger Chartier, estudioso da Nova
História Cultural dos livros e da leitura.
151
―It can sound happy, sad, sexy, funky, silly, ‗American,‘ religious, or whatever. Oblivious to the skepticism
of music theorists, they listen to music in order to dance, weep, relax, or get romantic. Composers of music for
movies and advertisements consistently stake their commercial success on the public‘s pragmatic knowledge of
musical signification – the skill with which John Williams, for instance, manipulates the semiotic codes of the
late nineteenth-century symphony in E.T. or Star Wars is breathtaking. […] In the social world, music achieves
these effects all the time‖ (McCLARY, 1991, p. 21).
152
―I take my reactions to be in large part socially constituted – the products of lifelong contact with music and
other cultural media‖ (McCLARY, 1991, p. 22).
169

maneira como o corpo se insere nos estudos, relacionado às sensações físicas e experiências
corporificadas (McCLARY, 1991, p. 24).

Mas nem mesmo as experiências corporais motivadas pelas metáforas musicais são
estáveis ou imutáveis. Na verdade, música é uma prática social e política poderosa
porque precisamente, se calcando em metáforas de fisicalidade, pode fazer com que
os ouvintes experimentem os corpos de formas novas – novamente, aparentemente
sem mediação (McCLARY, 1991, p. 25)153.

Nenhuma dessas reações físicas pode se configurar como imanente, já que muda de
acordo com as práticas e representações culturais nas quais o sujeito ouvinte ou o compositor
está inserido. A música não é uma linguagem universal: ela muda com o tempo, com o lugar e
mesmo entre comunidades.

A metodologia para esta pesquisa segue a premissa dos estudos musicológicos


culturais e calca-se na experiência ouvinte e na análise dos elementos culturais das músicas.
Metodologicamente, organizamos as análises auditivas das músicas com intenção de que
pudéssemos: a) identificar de instrumentos musicais154 (sintetizados), cujo timbre ou
sonoridade possa ter uma força de evocação de uma época – por exemplo, o cravo; b)
identificar o período gótico e romântico através da sonoridade, do uso de instrumentos, e
considerando a textura, a instrumentação das músicas e o ritmo; e c) efeitos sonoros como
gritos e uivos. Nos encaminharemos para as percepções desses indícios sonoros.

Castlevania SoTN (1997), consolida em seu conjunto sincrético: a) a arquitetura


medieval gótica; b) o modelo narrativo que emergiu na literatura gótica que surgiu na
Inglaterra no século XVIII com o The Castle of Otranto, de Horace Walpole (1764), e
reconfigurada desde Dracula, escrito por Bram Stoker (1897); e c) o estilo musical que se
associa às músicas barrocas e clássicas do século XVIII e românticas de concerto do século
XIX. Ao fundir elementos distintos para contar a narrativa de Alucard, filho do vampiro
Drácula, houve por parte dos desenvolvedores a intenção de que se criasse uma ambiência
capaz de proporcionar efeitos que provocassem no jogador: a) a empatia pelo universo

153
―Nor are the bodily experiences engaged by musical metaphors stable or immutable. Indeed, music is a
powerful social and political practice precisely because in drawing on metaphors of physicality, it can cause
listeners to experience their bodies in new ways – again, seemingly without mediation‖ (McCLARY, 1991, p.
25).
154
Mesmo que sintetizados, uma possível identificação desses instrumentos foi importante para que pudéssemos
ponderar sobre suas escolhas ou para que pudéssemos falar de momentos nas músicas que nos chamaram a
atenção.
170

diegético do jogo; b) o reconhecimento de um universo cultural não-diegético; e c) o


engajamento emocional, físico e rítmico com os desafios do jogo. A partir desses indícios,
traçaremos parâmetros para entender: que tipo de representação musical, social e histórica o
jogo vincula à narrativa, como essa representação se constitui e que significados podem surgir
da experiência auditiva dessas músicas.

Antes de iniciarmos a análise das músicas, nos atentaremos para algumas informações
a respeito de composição. O trabalho de composição musical requer do compositor a busca
pelo equilíbrio do tempo, sendo a forma dada à música a ―corporificação‖ desse equilíbrio,
entre, o que será a repetição e o contraste. As repetições de melodias são importantes para que
a composição possa ter um sentido de unidade. O contraponto, que seria o contraste, pode ser
criado com uma melodia completamente diferente ou ―mudança de tonalidade, mudança de
modo (contaste entre o maior e o menor), ritmo, andamento, dinâmica (fortes e fracos),
ambiência, textura e timbre (ou colorido instrumental)‖ (BENNET, 1986, p. 9). Ou seja: não é
preciso que uma composição musical precise ser extremamente rica em melodias, o que é
preciso é que haja um equilíbrio nas repetições e contrastes na duração do tempo em que esses
momentos são elencados.

As músicas de Castlevania SoTN (1997), são compostas por Michiru Yamane,


musicista e pianista clássica japonesa. São simples e curtas e isso se dá por dois motivos: o
primeiro é que, apesar do avanço tecnológico vivido no ano de 1997, as mídias do Playstation
1 ainda eram os Compact Discs (CDs), então não havia muito espaço físico para o
armazenamento de áudio; o segundo motivo está no uso desses arquivos de áudio: eles
estavam programados para serem tocados em determinados cenários de forma contínua, então
precisariam ser compostos de forma que pudessem ser reiniciados em um loop incessante, até
que o jogador deixasse o cenário em questão. Neste ponto, podemos chamar a atenção do uso
de sintetizadores para imitação de instrumentos como natural na mídia do videogame. Não é
possível afirmar que a preferência por sintetizadores se dá unicamente pela capacidade pobre
da mídia de emissão de sons – mas certamente o espaço disponível no CD, 660 MB, pode ter
sido um dos desafios para que as músicas pudessem ter sido gravadas com instrumentação
física e não digital. De qualquer forma, o trabalho de Michiru para o Castlevania SoTN (1997)
parece ter qualquer relação com os trabalho Switched-On Bach, de Wendy Carlos (1968).

Levando-se essas limitações das composições em consideração, podemos elencar o


estudo da forma binária como pertinente. Segundo Bennet, composições curtas podem ser
compostas com o uso de formas binárias ou ternárias. As peças binárias são divididas, como o
171

próprio nome sugere, em duas sessões, chamadas A e B, que são marcadas, normalmente, por
repetições.

Ouviremos então cinco composições do jogo, atentando-nos para os parâmetros acima


pontuados.

A primeira composição, ―Dance of Gold‖155, pertence ao cenário Alchemy Laboratory.


Ouvindo-a, podemos identificar o que seria uma versão sintetizada de viola, violino,
violoncelo, sino, prato, tímpano, órgão, trombone, piano, xilofone, harpa e caixa clara. A
introdução, formada por uma série de acordes, é tocada no que pode ser identificado numa
sonoridade em staccato; apesar de serem poucas notas, elas sugerem drama e tragicidade. Em
seguida, a força do staccato é substituída por uma melodia suave, mas ainda dramática. No
que tange à intensidade e força, a música varia entre ―níveis‖ de maneira muito rápida. Nas
partes mais fortes, ouvem-se mais o piano, órgão e xilofone. Nas partes mais suaves ouvem-se
mais os instrumentos de cordas e os de sopro. A trilha é desenvolvida em vários momentos
distintos, formados por duas melodias diferentes (A e B), intercaladas por pontes ou
episódios, momento em que a música se encaminha para o fim de forma amena para reiniciar,
em loop, sem maiores problemas. A música é muito elegante, e, retirando-se as pontes
dramáticas com uso de pratos, ela poderia ser ouvida em salões de baile onde casais
dançariam e senhores conversariam à meia luz. Os violinos e violoncelos mantêm, no entanto,
a melodia taciturna, então, apesar da elegância, o que se sente é uma espécie de aura de
mistério e apreensão, como se algo ruim estivesse para acontecer. A forma binária da
composição é formada pela harmonia elegante dos instrumentos de corda e piano, que dão
lugar a uma suave e curiosa melodia de violinos que, com o uso de harpa, transmuta nossa
imaginação e a leva para o campo do maravilhoso.

O clima da música é de mistério, elegância e do aparecimento do maravilhoso gótico.


As melodias são similares, mas o que causa o contraste é a diferença entre a orquestração e a
intensidade com que são tocados, já que a melodia A é bem mais intensa do que a B. A
composição simula o antigo, mas o uso de instrumentos sintetizados atualiza e quebra a
―suspensão de descrença‖ do ouvinte. A composição pode ser organizada através da seguinte
proposição:

155
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=UqYaduxC1CU>. Último
acesso em: 07 de abril de 2018. Encontramos, utilizando o sítio de buscas virtual Google, uma versão gravada
em CD da Konami, em que podemos ouvir a composição ao piano, disponível em:
<https://allvideos.me/index.php?a=watch/kqHUPoH-Qw4/castlevania-sotn-dance-of-gold-pales>. Último acesso
em: 19 de maio de 2018.
172

AA BB

Sendo A formada por momentos em que a música tem melodia mais alegre e os tons
são mais agudos e B por momentos de calma, tensão crescente que se desvanece finalmente.
A música é requintada e bastante agradável, mas essa sensação de relaxamento cede lugar à
ansiedade e às emoções mais intensas conforme a música se encaminha para o final de A –
ambos se desvelando em momentos que podem ser chamados de ―ponte‖ ou ―episódios‖.
Assim como no castelo de Drácula, o jogador se sente como Harker, assustado com os seres
obscuros que parecem sempre surgir das sombras logo após a dicotômica calmaria dos dias.
Ao se ouvir a melodia de ―Dance of Gold‖, sente-se que a magia e a volúpia do castelo,
bastante nobre e requintado, dá lugar a um medo do indizível que espreita; ao maravilhoso
sublime da visão daquilo que não podemos compreender. A música combina perfeitamente
com a expectativa que se deseja criar no jogador num dos cenários em que este passará grande
parte do início do jogo. Assim sendo, o jogo projeta no jogador um ritmo sedutor, que propõe
calma para que os obstáculos possam ser alcançados sem pressa, além de ser um convite para
o deleite do prazer de jogar.

A composição ―The Tragic Prince‖156, ouvida na Clock Tower, é um heavy metal


melódico tocado com instrumentos de orquestra e guitarra. Só há instrumentos de orquestra
nos primeiros segundos, o que nos dá a impressão de que a ideia seria a de que a música,
apesar de moderna, tem fundamentos de música clássica, e podem-se ouvir o som de
instrumentos sintetizados como órgão, guitarra, bateria, baixo, teclado, sino/sineta, violino,
viola e violoncelo. Não é possível saber se por efeito da própria mixagem ou de deficiência da
mídia para reprodução de áudio o som da bateria parece distante. Em 2:18‖, a bateria e a
guitarra abrem espaço para os outros instrumentos tocarem rock. Nessa parte, é possível ouvir
mais os instrumentos de sopro do que nas partes em que a guitarra e a bateria se sobressaem.
Deve ser porque instrumentos de sopro, como trompete, trombone e tuba, conferem força à
música, muito mais do que uma flauta transversa, por exemplo. A organização da música
binária pode ser demonstrada simplesmente através da seguinte proposição:

Introdução A B (ponte) A B (ponte) AB

156
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=n6ROnj6QLR4>. Último
acesso em: 11 de abril de 2018.
173

A introdução é tocada com instrumentos de orquestra. Logo depois, a primeira


melodia (A) compõe-se exclusivamente de solo de guitarra e bateria de fundo. A melodia B é
mais veloz que a A, mas as notas são um pouco mais graves, terminando com menos energia.
As melodias são finalizadas com pontes que permitem o retorno a A, onde a música recomeça
várias vezes, mas com contraste de timbres alcançados pela mudança de orquestração, o que
também muda a intensidade. O andamento dessa composição é bastante rápido em relação
àqueles de outras músicas da trilha, o que provoca um efeito de pressa. Há também certa dose
de emoção heróica nos solos de guitarra, vitoriosos, que surgem agudos em meio à bateria.

O que é interessante é que essa é, sem dúvida, a música mais rápida do jogo, e ela está
num dos cenários mais intrincados e complexos pelos quais o jogador deve prosseguir. Esse
cenário tem monstros flutuantes que são cabeças de medusa que petrificam Alucard caso ele
encoste-se a elas. Além disso, é complicado percorrer o cenário porque há vários mecanismos
de relógio por toda a parte, e, na maioria das vezes, é difícil que o jogador movimente
Alucard. Assim, como a música imprime pressa no ritmo de jogo e o cenário impede que o
jogador possa passar por ali apressadamente, a sensação geral dentro da torre do relógio é de
frustração e irritação – que se intensificam, já que este é um momento em que o jogador está
quase alcançando a torre de Drácula, prestes a se aproximar da resolução do mistério do jogo.

Além disso, o início suave e misterioso da composição contrasta com a intensidade e a


modernidade da melodia de rock. O uso de instrumentos e orquestração contemporâneos
favorece a quebra nesse ―véu‖ romântico que vinha recobrindo a percepção do jogador. Como
se está chegando ao final do jogo é possível que essa mudança de clima possa fazer com que o
jogador se sinta como se estivesse acordando de um sonho, como se a temporalidade presente
tomasse conta da imaginação da compositora, tornando-a incapaz de ignorar as influências
sonoras contemporâneas. Apesar de promover uma ―quebra‖ na expectativa sonora
romântico-barroca que a trilha sonora do jogo evoca, o distanciamento provocado pela banda
de rock da música em questão não se faz tão pungente quanto se pensa. O rock e o metal são
estilos musicais contemporâneos que se valem abertamente da influência da música romântica
e barroca. Observa-se isso em composições de artistas como Yngwie Malmsteen157, por
exemplo, sem contar inúmeras bandas como Stratovarius e Symphony X, que se intitulam

157
Exemplo do que estamos tentando dizer é a composição Far beyond the Sun, que pode ser ouvida através do
link: <https://www.youtube.com/watch?v=eK0rvReE-4c>. Acesso em: 10 de set. 2018.
174

―metal neoclássico‖. A ―era de ouro‖ do metal neoclássico foi no final da década de 1980. O
uso da música ―clássica‖ (barroca, romântica) como inspiração para o rock era um ―fato‖ nos
anos de 1990, época em que o jogo foi lançado.

―Wood Carving Partita‖158, do cenário Long Library, é tocada por instrumentos como
cravo, violino, violoncelo e viola – instrumentos similares aos usados por Johann Sebastian
Bach entre 1718 e 1721, na composição Concerto Nº 3 em G maior, BWV 1048 dos
Concertos de Brandenburgo, ou ―Six Concerts avec plusieurs instruments‖. Em especial, o
adagio guarda semelhanças com a música de Yamane. A composição é uma das mais belas do
jogo, tendo sido selecionada para fazer parte do programa do ―Castlevania – The Concert‖159,
um evento organizado por David Westerlund no Stockholm Concerthall em 2010. O arranjo
foi feito por Levande Musik Sverige com cooperação de David Westerlund e foi performado
pela orquestra sinfônica jovem de Estocolmo regida por Glenn Mossop, além de ter contado
com participação especial da compositora dos temas, Michiru Yamane na música ―Wood
Carving Partita‖. Um vídeo160 de uma das performances traz a música ―Lost Paintings‖,
vigésima faixa da trilha sonora de Castlevania SoTN (1997). Alguns comentários de usuários
no sítio virtual YouTube, no qual o vídeo está hospedado, demonstram como os jogadores se
emocionam quando essas trilhas sonoras são tocadas.

Há dois momentos na trilha, que são as melodias A e B, intercalados por uma ponte.
Apesar de a música ser uma das composições mais belas de todas as edições da franquia, tem
uma organização melódica binária, dividida em duas sessões. A composição progride com
tons agudos e se mantém nas altas frequências durante a melodia A. Quando a viola e o
violoncelo entram na composição, a música oferece repouso, de modo a se preparar para
alcançar outro ápice. O repouso, porém, não parece ser conduzido de forma completa, já que o
toque do cravo se mantém em notas agudas. Ao final, a música reinicia-se, terminando em
nota neutra para permitir a reinicialização sem disparidade para o ouvinte, que está escutando-
a continuamente enquanto joga a fase do videogame. A composição se organiza da seguinte
forma:

158
A música pode ser ouvida através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=RXdddCaALKc>. Acesso
em: 11 abr. 2018.
159
A apresentação pode ser vista em: <https://www.youtube.com/watch?v=CZKH2JP7Ie4> Acesso em: 19 mai.
2018. Há outros vídeos divertidos e interessantes, de pessoas tocando a composição, como o que o músico a toca
simultaneamente em dois pianos, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=50wElcsgCxQ>. Acesso
em: 19 mai. 2018.
160
Castlevania the concert – ―Lost painting‖. Vídeo. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Ro6Hfb4EwDs> Acesso em: Acesso em: 01 jul. 2018.
175

A B (episódio / ponte) A B

A textura contrapontística mantida durante toda a composição é uma evocação


barroca, bachiana, que faz com o que o ouvinte se identifique com um tempo e com um tipo
de composição de forma quase que direta. Essa composição tem uma interessante linha de
baixo, que faz com que a música tenha uma sonoridade das mais requintadas. Essa música é
uma partita, que se trata de um gênero musical no qual um tema teria variações. Nessa
composição o som do piano é mais adocicado e aconchegante, enquanto o som do cravo é
mais metálico, com certo brilho. De antemão, a escolha do cravo para a composição revela
uma possível intenção de causar certa ansiedade, já que o trino parece inquietar o ouvinte. Há
um sentido de urgência nas notas agudas, o que sugere um sentimento de pressa em quem
escuta.

A música é bastante intensa, e o cravo e os instrumentos de corda nos transportam para


cenários sofisticados e remotos. Mesmo num tom alegre, a música tem momentos de
ansiedade nos desenvolvimentos, o que nos faz retornar aos sentimentos vividos no gótico
romântico, onde o sublime surge ao se vislumbrar o maravilhoso.

Assim como a composição ―Dance of Gold‖, ―Wood Carving Partita‖ é suntuosa e


harmônica, e é tocada em um dos cenários em que o jogador mais retorna: a biblioteca. Como
a biblioteca é inteiramente feita de madeira, pode ser que o nome da composição faça alusão à
esse fato – ou, pode ser que a própria beleza da composição denote o trabalho laborioso de
estalhamento cuidadoso das melodias que se sobrepõem de forma tão suntuosa.

Ouvida em ambiente homônimo, a composição ―Marble Gallery‖161 é tocada com


sintetizadores que imitam cravo, contrabaixo, bateria, órgão e o que parece ser o som de um
assobio computadorizado, que parece imitar o som de vento. O uso do cravo, junto ao
contrabaixo e bateria, parece provocar um efeito fantasmagórico. A partir do minuto 1,
ouvem-se ecos na música, o que nos remete à música romântica e gótica. Das músicas
analisadas, é a que tem o padrão mais simples, podendo ser explicitado como:

ABAB ponte

161
A música pode ser ouvida em: <https://youtu.be/BLOcT25ph9k>. Acesso em: 19 mai. 2018.
176

A e B são momentos em que a música se intercala em tom fantasmagórico, quase


divertido, ao som do cravo e do assobio. É no desenvolvimento que a música ganha certa
seriedade, com o assombro da melodia soprada, quase que sussurrada de forma aguda, ao
ouvinte.

A composição ―Requiem for the Gods‖162 é o tema do cenário Royal Chapel. A


composição é executada com órgão, tambor, bateria, sino, violino e voz – uma espécie de
coral que confere certa passionalidade, pela altura do tom e a forma como as notas são
entoadas. O coral, embora pareça voz, é sintetizado, e, ainda assim, o efeito sonoro (chamado
reverb), bem longo, causa a impressão de que as vozes estão eterizadas. Isso simula um tipo
de acústica própria de igrejas, porque dá a impressão de que o espaço onde a voz se projeta é
amplo. Além disso, o uso de órgão também é frequente em igrejas, da mesma forma que o
sino. O tom fúnebre, ou melancólico, parece se assemelhar com as músicas de Réquiens,
como o Introitus de Requiem Mass in D minor (K. 626) composto por Wolfgang Amadeus
Mozart.

Diferentemente da ―Wood Carving Partita‖, ―Requiem for the Gods‖ tem um ritmo
mais lento e se inicia num tema que progride em intensidade tonal, sendo a ponte o ápice da
tensão (quando o órgão entra de forma dramática). A marcação do ritmo é feita com tambor e
a finalização é neutra, de forma a reiniciar a música sem descompassos.

Para compreendermos, então, as relações de contemporaneidade temporal aqui


envolvidas, relembramos que Castlevania SoTN se passa em 1792, que o primeiro livro
gótico, The Castle of Otranto, de Horace Walpole, foi escrito 1764, e pontuamos, neste
momento, que Bach foi um compositor do período barroco, que durou entre os séculos XVII e
XVIII. Assim sendo, o jogo se passa no universo contemporâneo à música barroca, o que
justifica a escolha do estilo de composição para o videogame. Além disso, a escolha de um
Réquiem para o cenário da capela é pontual.

Os efeitos causados pelas músicas são associados, dessa forma, ao universo diegético
do jogo, já que aderem à narrativa uma espécie de profundidade cultural consistente, tanto
com a estética do jogo quanto com a época em que ele se passa. Os significados da história se
ampliam graças ao efeito empático que a música agrega.

162
A música pode ser ouvida em: <https://www.youtube.com/watch?v=2RqGeEsXJWY>. Acesso em: 19 mai.
2018.
177

Ao mesmo tempo, há efetivamente um trabalho sensível, um esforço da compositora


Michiru Yamane em compor músicas que se assemelham às composições do cânone de
concerto de um dos maiores compositores do mundo e do período barroco, Johann Sebastian
Bach. A semelhança nos estilos de composições provoca o reconhecimento, por parte do
ouvinte, de um repertório canônico clássico que faz parte do mundo não-diegético do jogo, ou
seja, do mundo cultural do espectador. A escolha do estilo de composição incorpora à estética
do jogo elementos que se relacionam com suntuosidade, classe, erudição e beleza próprias do
barroco.

O engajamento emocional, físico e rítmico é emparelhado às músicas. A estética de


cada uma das fases é complementada harmoniosamente com cada música, e o ritmo de jogo e
o envolvimento físico do jogador se desenvolvem conforme o tempo e a marcação de cada
uma. Fica evidente que ―Wood Carving Partita‖ é mais rápida e pode fazer com que o jogador
queira avançar mais depressa pela fase, ao passo que ―Requiem for the Gods‖ é mais lenta. A
fase Royal Chapel tem desafios que requerem paciência para que o jogador avance sem
muitos problemas, por isso é possível que a música auxilie a jogabilidade reduzindo o nível de
ansiedade do jogador; dessa forma ele poderá lidar com os desafios de maneira mais
ponderada. Mesmo assim, é notável o clima mórbido da composição, e isso pode, em
contrapartida, aumentar a ansiedade do jogador em terminar a etapa.

De qualquer forma, é evidente que as músicas colaboram positivamente para o


engajamento do jogador, tornando a experiência de jogo mais imersiva. A música com maior
intensidade rítmica é a ―Tragic Prince‖, e o jogador estará quase chegando ao final da
narrativa quando passar pela fase Clock Tower, última parada antes da sala de Drácula.
Infelizmente, na torre do relógio, há diversos mecanismos e monstros que dificultam a
transposição dos obstáculos; dessa forma, a pressa que a música imprime ao ritmo do jogador
fará com que ele não consiga manter a calma necessária para percorrer o cenário ardiloso. Já
no Alchemy Laboratory, a música ―Dance of Gold‖ funciona de forma harmoniosa,
despertando as emoções de interesse frente aos mistérios ainda desconhecidos que o jogador
irá enfrentar depois da próxima tela, mas também acalma-o nos momentos de tensão, com
melodias mais suaves.

Outros sons que nos chamam a atenção durante o jogo são os intensos uivos e os gritos
dos monstros. Esses sons colaboram para a composição dos efeitos provocados pelo jogo, já
que o castelo Castlevania, assim como o castelo de Drácula, é um ambiente nocivo onde
178

vivem seres amaldiçoados. Os sons de uivos e gritos descritos por Stoker em Drácula e
citados anteriormente na revisão podem ser ouvidos também no jogo, reiterando as
características do estilo literário gótico.

Partindo da análise feita acima, pode-se afirmar que, exceto a música ―The Tragic
Prince‖, a representação musical do corpus analisado se relaciona com o estilo barroco e com
as composições de Bach, principalmente as músicas ―Wood Carving Partita‖, ―Requiem for
the Gods‖ e ―Dance of Gold‖. Portanto, as representações culturais, sociais, estéticas e
históricas, que são o cerne do mundo ficcional da narrativa, tornam-se mais reforçadas. O
estilo de composição e a semelhança das músicas com as obras famosas de Bach, como
Concertos de Brandenburgo, também agregam valor à narrativa, à experiência de jogo e ao
videogame.

A experiência auditiva dessas músicas, quando imbricadas no jogo, implica no


aumento de empatia e da compreensão da narrativa e dos personagens, na melhoria da
jogabilidade (pela empatia e pelo ritmo de jogo) e na imersão. Como as músicas são tocadas
de maneira repetitiva enquanto o jogador percorre os cenários onde elas são executadas (e em
grande parte do jogo é preciso retornar várias vezes aos mesmos lugares), é fundamental que a
música seja, além de atraente, instigante. Sendo as composições dramáticas e com padrões de
desenvolvimento diferentes, a experiência auditiva torna-se memorável, ainda mais quando
unida à representação de música canônica e de qualidade, ou seja, similares às composições
barrocas de Bach.

É importante entender os efeitos provocados pela trilha sonora dos jogos de


videogame e o que os estudos dessas escolhas podem dizer sobre a sociedade. Há um efeito de
colagem provocado pela experiência auditiva do jogador que une representações e valores
sociais, históricos e culturais erigidos sob o cânone de concerto mais influente da música
barroca ocidental composta por Bach, à narrativa e estética de um objeto cultural massificado
contemporâneo. Passados hoje quase vinte anos desde o lançamento de Castlevania SoTN, as
composições de Michiru Yamane continuam causando efeitos emocionais nos jogadores –
quem sabe isso ocorra pela adesão ao estilo barroco canônico. De qualquer forma, é visto
como um mérito por parte dos jogadores de videogames que suas composições mais queridas
sejam tocadas em concertos sinfônicos.

Encerradas nossas análises do corpus, apontamos para nossas intenções posteriores.


No próximo e último capítulo intenciona-se amarrar as três etapas de análise feitas no capítulo
179

3, objetivando-se a discussão dos aspectos pós-modernos estudados na revisão teórica, mas,


principalmente, sob a ótica de Huntcheon (2000). Através da observação de indícios
levantados através da leitura de três códigos (texto, imagem e som), deseja-se compreender os
significados dessa materialização de representações de narrativas culturais, históricas e
sociológicas acerca do panorama estético gótico no qual o jogo Castlevania SoTN se
estabelece. Concluiremos a pesquisa neste capítulo, respondendo às questões que a estão
conduzindo: Como ler o videogame em seus vários códigos? Quais leituras o jogo
Castlevania SoTN proporciona, enfocando sua relação com o romance Drácula de Bram
Stoker? Trata-se de uma reinvenção do período gótico ou de uma paródia?
180

5 DISCUSSÕES, REVISITAÇÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciaremos este último capítulo tecendo algumas reflexões sobre a memória.


Começaremos falando de Giovanni Battista Piranesi (1720 – 1778), artista que produziu
durante sua carreira desenhos que se tratavam de sua observação de antigas construções
renascentistas e barrocas. Em suas criações, havia o aspecto convencional das estruturas reais
combinado com elementos que projetavam exagero através do uso de múltiplos pontos de
fuga. Uma de suas coleções mais famosas se chama Carceri d‟invenzione, conjunto que faz
lembrar os cenários de Castlevania163. As gravuras dessa série foram feitas entre 1749 e 1750
e reimpressas em 1761. Os elementos de ―ambiguidade e imensidão dessas estruturas
reforçam o deslumbramento que inspirou gerações de artistas, escritores e outros que
conhecem a majestade e a grandeza desse design clássico‖164.

Figura 30: Carceri d‟invenzione, 1750–3, prancha vii. água-forte, 72,8 x 53 cm., Giovanni Battista Piranesi,
gravura, 1761.

163
Jason Johnson. ―The Impossible Architecture of Castlevania: Symphony Of The Night‖. Kill Screen,
24/02/2015. Disponível em: <https://killscreen.com/articles/impossible-architecture-castlevania-symphony-
night/>. Acesso em: 09 dez. 2017.
164
Imaginary Prisons: Giovanni Battista Piranesi Prints. Texto de divulgação do Princeton University Art
Museum. Disponível em: <http://artmuseum.princeton.edu/object-package/giovanni-battista-piranesi-imaginary-
prisons/3640>. Acesso em: 19 nov. 2017.
181

Fonte: Princeton University Art Museum. Disponível em:


<http://artmuseum.princeton.edu/collections/objects/2967> Acesso em: 19 nov. 2017.

Essa imagem fantasmagórica e labiríntica de um cenário envolto em bruma e uma


espécie de confusão criada por uma imaginação romântica converge no que alguns críticos
chamam de ―efeito Piranesi‖; por exemplo, Althea Hayter, na edição Penguin de The
Confessions of an English Opium Eater (1973), de Thomas De Quincey, David Fisher Clarke,
182

na tese de doutorado The function of the Sublime in the writing of Thomas De Quincey (1974),
Arden Reed, em Romantic Weather: The Climates of Coleridge and Baudelaire (1983) e
Andreas Huyssen no artigo ―Nostalgia for Ruins‖ (2006). Observemos, então, o relato de De
Quincey em suas The Confessions of an English Opium Eater:

Muitos anos atrás, quando olhava as Antiguidades de Roma, de Piranesi, Sr.


Coleridge, que estava ao meu lado, descreveu-me uma série de gravuras deste
artista, chamadas de Sonhos, que apresentam o cenário de suas próprias visões
durante um delírio de febre. Algumas delas (descrevo o que me lembro do relato de
Sr. Coleridge) representavam grandes salas góticas, e no chão havia engenhos e
maquinários, rodas, cabos, polias, catapultas etc., expressão do enorme poder posto
em combate e da resistência vencida. Subindo os degraus está o próprio Piranesi:
siga pela escada e, um pouco mais acima, você percebe que ela termina
abruptamente, sem nenhuma balaustrada, não permitindo nenhum passo à frente
para aquele que alcançou sua extremidade, exceto em direção ao abismo abaixo. O
que quer que tenha acontecido ao pobre Piranesi, você supõe que pelo menos os seus
trabalhos terminaram aqui. Mas levantai os olhos, leitor, e contemplai alguns
degraus ainda mais altos, nos quais novamente se percebe Piranesi, desta vez
postado na extremidade do abismo. Novamente erga os olhos, e mais uma vez fitai
um segundo lance de escadas ainda mais alto: nos quais, novamente, Piranesi pode
ser percebido, dessa vez de pé à beira do abismo. Novamente, erga seus olhos e
degraus ainda mais aéreos podem ser observados: e novamente, o pobre Piranesi,
ocupado em seu trabalho aspirante: e daí por diante, até que as escadas interminadas
e Piranesi estejam perdidos na completa escuridão do lugar – com o mesmo poder
infinito crescimento e auto-reprodução procedia minha arquitetura em meus sonhos.
Num estágio inicial da minha doença, os esplendores de meus sonhos eram
extremamente arquitetônicos, e contemplei tantas cidades e pomposos palácios
como jamais viu o olho da vigília, a não ser nas nuvens 165 (DE QUINCEY, 1822, p.
374, apud PANNESE, 2015, p. 81).

De acordo com Alessia Pannese no artigo ―Visions and Revisions: Addiction and
Additions in Thomas De Quincey‘s Confessions of an English Opium-Eater and Giovanni
Battista Piranesi‘s Carceri d‘Invenzione‖ (2015), o que De Quincey chama de Sonhos, obra de

165
―Many years ago, when I was looking over Piranesi‘s Antiquities of Rome, Mr. Coleridge, who was standing
by, described to me a set of plates by that artist, called his Dreams, and which record the scenery of his own
visions during the delirium of a fever. Some of them (I describe only from memory of Mr. Coleridge‘s account)
represented vast Gothic halls: on the floor of which stood all sorts of engines and machinery, wheels, cables,
pulleys, levers, catapults, etc. expressive of enormous power put forth and resistance overcome. Creeping his
way upwards, was Piranesi himself: follow the stairs a little further, and you perceive it come to a sudden abrupt
termination, without any balustrade, and allowing no step onwards to him who had reached the extremity, except
into the depths below. Whatever is to become of poor Piranesi, you suppose, at least, that his labors must in
some way terminate here. But raise your eyes, and behold a second flight of stairs still higher: on which again
Piranesi is perceived, by this time standing on the very brink of the abyss. Again elevate your eye, and a still
more aerial flight of stairs is beheld: and again is poor Piranesi busy on his aspiring labors: and so on, until the
unfinished stairs and Piranesi both are lost in the upper gloom of the hall.--With the same power of endless
growth and self-reproduction did my architecture proceed in dreams. In the early stage of my malady, the
splendors of my dreams were indeed chiefly architectural: and I beheld such pomp of cities and palaces as was
never yet beheld by the waking eye, unless in the clouds‖ (DE QUINCEY, 1822, p. 374, apud PANNESE, 2015,
p. 81).
183

166
Piranesi, não existe – elas se chamam, na verdade, Carceri d‟invenzione . Concordamos
com Pannese que está claro no texto que De Quincey nunca viu essa coleção e que está
descrevendo essas obras a partir do relato de outra pessoa, enfatizando tal fato com frases
como ―descrevo do que me lembro do relato de Sr. Coleridge‖ (PANNESE, 2015, p. 82). Há,
segundo Pannese, teóricos que sugerem que nem mesmo Colleridge viu Carceri d‟invenzione.
Neste caso, ―a écfrase se transforma em ‗o que ele [De Quincey] imagina que Coleridge
imaginou que Piranesi tenha imaginado‘‖167 (WILSON, 2014, p. 74, apud PANNESE, 2015,
p. 82).

Pannese desenvolve leituras interessantes a partir da observação das gravuras de


Piranesi (as mesmas supostamente observadas por Coleridge e que encantaram De Quincey).
Segundo a autora, os vários mecanismos dispostos alegoricamente nos cenários parecem não
ter utilidade óbvia, o que cria certa sensação de suspense e mistério em torno das cenas – são
―imagens de tortura e de um horror indefinido‖ (2015, p. 86). Além disso, a sobreposição de
escadas, passagens, pontes etc, e uma ampla possibilidade de percursos e de fuga pela cena
―sugerem uma ampla possibilidade de mobilidade e exploração‖ (2015, p. 86).

De maneira similar, a adição de profundas perspectivas e panoramas abertos que


recuam o plano de fundo ao infinito – por exemplo, elementos que tem por natureza
indicar uma continuidade além dos limites espaciais visíveis da cena – estendem e
expandem o horizonte imaginário ampliando a consciência de possíveis realidades
alternativas. No geral, todas essas características parecem conotar a ideia de liberação
e liberdade168 (PANNESE, 2015, p. 86).

Ao mesmo tempo, o excesso de aparelhos constritivos das cenas, como cordas,


correntes e grades, causa a sensação oposta, de aprisionamento.

A falta de uma explicação ou narrativa construída pela imagem deixa para o


espectador caminho livre para a interpretação (PANNESE, 2015, p. 86). De qualquer forma,
as obras da coleção Carceri d‟invenzione:

simultaneamente monumentalizam e demolem, destacando a vastidão de espaços e


possibilidades, mas destruindo-os na prisão sufocante da claustrofobia e na

166
Prisões inventadas, tradução livre.
167
―In this case the ekphrasis becomes ‗what he [De Quincey] imagines Coleridge to have imagined Piranesi to
have imagined‘‖ (WILSON, 2014, p. 74).
168
―Similarly, the addition of deep perspectives and open vistas onto infinitely receding backgrounds – i.e.
elements whose nature is that of cueing the existence of spaces beyond the boundaries of the visible scene –
extends and expands the imaginary horizon by increasing awareness of possible hidden alternative realities.
Overall, all these features seem to connote ideas of liberation and freedom‖ (PANNESE, 2015, p. 86).
184

impossibilidade de fuga, acompanhado pelo prospecto terrível de um tormento não


específico. Daí resulta a combinação perversa de liberdade e escravidão – e a
impossibilidade de diferenciá-los169 (PANNESE, 2015, p. 86).

Pannese trabalha as semelhanças entre a escrita de De Quincey e a arte de Piranesi de


forma que observa em ambas as obras a dicotomia entre liberdade e aprisionamento. O
aspecto gótico de verticalização projeta nas obras um efeito de vertiginosidade e
encarceramento, haja vista que ―o espaço é tão amplo que não há escapatória‖ (PANNESE,
2015, p. 89), ou, por analogia alegórica, pode ser que as obras de Piranesi explorem
imageticamente a busca artística por um sonho inebriante, que se traduza numa produção de
visões oníricas por parte do gravurista.

Ao observarmos a gravura de Piranesi propomos a ideia de reprodução de um


ambiente real em contraponto ao desejo de subversão do espaço, que cresce vertiginosamente
à medida que os olhos do espectador se demoram na observação da cena. Não há nenhum
lugar aberto nessa paisagem que ofereça fuga ao olhar do espectador: todas as saídas levam a
outras passagens, e assim por diante, a perder de vista. Mais próximo de onde parte o ponto de
vista do artista (e do espectador), correntes e cordas grossas pendem do teto; por toda a cena,
pessoas minúsculas parecem seguir ordens e trabalhar na construção de pontes que parecem
não levar a parte alguma que não seja a própria cidade170. Como obra de estilo gótico,
percebe-se a construção de uma confusão causada pela dicotomia surgida entre a
possibilidade de fuga e a punição pelo aprisionamento. As construções imensas sugerem a
imortalidade de instituições sociais antigas e patriarcais, assim como os castelos dos romances
góticos. Por sinal, a quantidade interminável de saídas e escadas remete à descrição que

169
―Simultaneously monumentalize and demolish, highlight vastness of spaces and possibilities, but crush both
into the suffocating clench of claustrophobia and impossibility of escape, accompanied by the terrifying prospect
of unspecified torment. There results a perverse combination of freedom and enslavement – and the impossibility
of telling them apart‖ (PANNESE, 2015, p. 86).
170
Sinto pessoalmente que a dicotomia causada pela ambivalência dos recursos que evocariam uma fuga desse
espaço plenamente arquitetonicamente colonizado (pontes, passagens e escadas que levam apenas a mais pontes,
passagens e escadas ad infinitum) provoca um mal-estar que se relaciona com a compreensão de imobilidade por
parte do espectador e com uma inércia motivada pela compreensão de que as saídas são vertigens ficcionais,
retratos de uma busca obsessiva e constante para se estabelecer fora do aprisionamento da sociedade urbana.
Observando-se o que se tem por pesquisas sobre os modos sociais e representações (CERTEAU, 2008;
CHARTIER, 2002; HUTCHEON, 2000) – que nos fazem hoje viver uma história de visões cristalizadas –,
atrevo-me a dizer que a fuga das totalizações e a busca pela crítica às representações, apropriações, hábitos e
fazeres sociais me parecem exemplificadas nessas gravuras de Piranesi. Trata-se de uma constante revisão e
ampliação de caminhos outros que não aqueles já estabelecidos, uma (des)construção descendente (ou
ascendente) que só faz desvelar mais e mais percursos – todos eles aprisionados numa cena mais ampla, estática,
histórica, política, social. O efeito é dicotômico: uma paralisia melancólica misturada a uma esperança
mobilizadora.
185

Harker faz do castelo de Drácula. São formas que exprimem a ideia de inúmeras
possibilidades de ação, mas também os inúmeros segredos, distâncias e histórias ocultas que,
segundo Lovell-Smith (2008), fazem parte do cenário gótico. A vastidão dos espaços quase
que impossíveis de capturar por um vislumbre causa um efeito sublime, provocado pela
impossibilidade de compreensão do que se presentifica.

Em De Quincey‟s Gothic Masquerade (2004), Patrick Bridgwater nos chama a atenção


para o fato de que as obras de Piranesi são classificadas por De Quincey como clássicas (no
sentido de historicamente não serem medievais e literariamente serem góticas)
(BRIDGWATER, 2004, p. 166). Nesse caso, a vastidão incomensurável das gravuras de
Piranesi oferece uma visão abissal em que a imaginação do artista romântico De Quincey tem
medo de se perder.

Estas prisões da imaginação, que deixam a imaginação sem saída a não ser a queda
para a morte, estão conectadas com a Catedral Gótica da Imaginação de Coleridge,
no Capítulo 13 da Bibiographia Literaria (1817) e Confessions de De Quincey, que
descreve visões arquitetônicas ―em proporções tão vastas que o olho físico não está
apto a enxergar‖, onde a distância é ―amplificada a uma extensão de um infinito auto
repetitivo e indizível‖ (L 223). As imagens de Piranesi personificam o encanto da
imaginação de De Quincey que comunica não apenas o sentido Gótico da vastidão
incompreensível na qual profundeza após profundeza reverte a imagem de Piranesi
de altitude após altitude enquanto retém seu significado desorientador, mas também
um sentido Gótico de claustrofobia e encarceramento. Em outras palavras,
representam o sublime do terror e apontam diretamente para o Poço que Poe
descreveu, a ―caverna da morte‖ e a ―caverna do horror‖ do romance popular
Gótico, o vazio do qual Shelley tinha medo que a engolisse, assim como realmente o
fez171 (BRIDGWATER, 2004, pp. 166-167).

O artigo ―Monstrous Space of Piranesi in the Works of M.G. Lewis and W.H.
Ainsworth‖, de Eva Čoupková (2015), parece solidificar ainda mais essas conexões entre os
trabalhos de Piranesi e a literatura gótica. A partir de sua revisão de literatura (2015, p. 18),
Čoupková estabelece, assim como fizemos, espaços arquitetônicos onde esse gênero literário
prioritariamente se caracterizaria: ―castelos, abadias, conventos etc‖ (MILES, 2002, apud

171
―These prisons of the imagination, which leave the imagination with no way out other than the fall into death,
are closely connected with Coleridge‘s Gothic Cathedral of Imagination in Chapter 13 of the Bibliographia
Liteararia (1817) and with de Quincey‘s Confessions, which describe architectural vistas ‗in proportions so vast
the bodily eye is not fitted to receive‘, where distance is ‗amplified to an extent of unutterable and self-repeating
infinity‘ (L 223). Piranesi‘s images embody the chasm of De Quincey‘s imagination that conveys not only a
Gothic sense of unfathomable vastness in which depth after depth reserves Piranesi‘s image of height after
height while retaining its giddying meaning, but also a Gothic sense of claustrophobia and incarceration. In other
words, they represent the sublime of terror and point straight to the Pit that Poe was to describe, the ‗cavern of
death‘ and ‗cavern of horror‘ of the Gothic popular novel, the emptiness that Shelley was afraid would swallow
him, as indeed it did‖ (BRIDGWATER, 2004, pp. 166-167).
186

ČOUPKOVÁ, 2015, p. 18). A atração dos escritores por esses espaços se deu, durante a
Revolução Francesa, por um interesse pela vida secreta desses ambientes obscuros, todos
repletos de um passado que envolvia castidade e disciplina, além da decrepitude dessas
instituições já decadentes no início do Iluminismo.

O trabalho de Piranesi cumpre tarefa importante nesse contexto. Suas gravuras da cena
romana exageram as escalas dos edifícios e ampliam as possibilidades de leitura dessas obras
arquitetônicas. Segundo Čoupková, o trabalho de Piranesi influenciou muitos escritores e
artistas góticos dos séculos VXIII-XIX. De acordo com Jørgen Andersen, ―tem uma passagem
ainda não explorada que leva de Carceri d‟invenzione até os ecos estranhos das abóbadas dos
romances góticos ingleses‖172 (1952, p. 50, apud ČOUPKOVÁ, 2015, p. 19). O primeiro
romance gótico, O Castelo de Otranto, de Horace Walpole (1764), foi profundamente
inspirado nas gravuras de Carceri d‟invenzione, de Piranesi (ČOUPKOVÁ, 2015, p. 19),
assim como na arquitetura do castelo que dá nome à narrativa.

A análise de Čoupková percorre os romances dos Tudors The Tower of London


(1840), Guy Fawkes (1841), e Windsor Castle (1843), escritos por William Harrison
Ainsworth, o romance The Monk (1796) e a peça The Castle Spectre (1797), de Matthew
Gregory Lewis. A autora conclui, coadunando com o nosso material cotejado na revisão
bibliográfica, que as construções arquitetônicas têm papel crucial na contextualização do
romance gótico. As gravuras de Piranesi produzem corporificações arquitetônicas de
elementos do gótico como o aprisionamento, a vastidão, a confusão e o confinamento, por
exemplo, e ampliam os motes desse gênero, como os segredos familiares, o lado obscuro das
relações humanas, corrupções, sentimentos de culpa, forças tradicionalistas e patriarcais e a
tirania sobre os membros mais fragilizados da sociedade, como as mulheres e as crianças. A
contribuição de Čoupková é importante no sentido de notar que as gravuras da obra Carceri
d‟invenzione de Piranesi influenciaram decisivamente esses escritores românticos que foram
os responsáveis pela criação do romance gótico. Ou seja, a obra de Piranesi traduziu as
inquietudes e anseios de escritores em forma de gravuras que manifestaram
arquitetonicamente a força hegemônica de uma sociedade tradicionalmente punitiva, religiosa,
patriarcal – o rosto por trás da máscara do romance gótico.

172
―[…] there is a passage still unexplored leading from the Carceri into the strangely echoing vaults of the
English Gothic novels‖ (1952, p. 50, apud ČOUPKOVÁ, 2015, p. 19).
187

Especificamente sobre Castlevania SoTN, encontra-se na internet um artigo da revista


Kill Screen chamado ―The impossible architecture of Castlevania: Symphony Of The Night‖,
de Jason Johnson (2015). Essa é uma matéria inclusa numa série de outras para uma semana
comemorativa dos jogos de Playstation One, e Johnson optou por discorrer com leveza sobre
as semelhanças dos ambientes de Castlevania com as gravuras de Piranesi em Carceri
d‟invenzione. Embora teça comentários sem referências, as considerações de Johnson
instigam devaneios pertinentes para nossa pesquisa.

Em primeiro lugar, Johnson fala sobre as condições de realização física de desenhos


engenhosos como os de Piranesi em Carceri d‟invenzione. Ele está certo ao dizer que
plataformas como o videogame podem transformar criações espaciais que desafiam a lógica
em lugares possíveis. A respeito disso, pode-se considerar que a experimentação desse espaço
por parte do jogador amplia ainda mais a imersão na ficção gótica. Temos, de um lado, o
efeito causado pela visão das obras de Carceri d‟invenzione; do outro, o efeito causado pela
experimentação visual-espacial de um espaço ilustrado, animado e com composição sonora,
através da movimentação de um avatar.

Outra consideração interessante feita por Johnson, e que precisa ser revista, é a da
condição autoral por parte dos designers do jogo. Pouparei este texto da discussão tecida na
nossa dissertação (2015), também sobre videogames, a respeito da autoria dos videogames (e
dos filmes); mas irei ilustrar brevemente o que se quer colocar em questão: a ideia de que
autor individual é um conceito romântico. Mesmo um romance publicado precisou ser
formado por várias mãos e sofreu influência de uma série de atores. Há um artigo173 publicado
acerca dessa problemática, mas dele citarei somente a esclarecedora acepção de Chartier, que
diz que

Os livros, manuscritos ou impressos, são sempre resultado de múltiplas operações


que pressupõem decisões, técnicas e competências bem diversas. [...] O que está em
jogo aqui não é somente a produção do livro, mas a do próprio texto, em suas formas
materiais e gráficas (CHARTIER, 2012, p. 8).

Ou seja, não é somente a produção do objeto livro que é marcada pela influência de
vários indivíduos, mas também o texto – o sentido.

173
FALQUETO-LEMOS, Adriana; DALVI, Maria Amélia. O videogame como materialidade de texto em uma
perspectiva histórico-cultural. Desenredo (PPGL/UPF), v. 10, pp. 355-369, 2014.
188

Johnson duvida de que o diretor de Castlevania SoTN, Koji Igarashi, tivesse visto as
gravuras de Piranesi para compor o cenário do jogo. De acordo com uma palestra dada por
Igarashi, Johnson explica que a amplitude e complexidade do cenário foram estratégias para
fazer com que os jogadores demorassem mais para terminar o jogo e para que o mercado de
revenda não ficasse tão aquecido, ou seja, se tornasse desinteressante. Mesmo o processo
criativo é posto em dúvida por Johnson: segundo o articulista, são vários designers de cenário
contratados para cumprir um projeto, todos praticamente sem rosto ou nome. Não entraremos
na seara da discussão sobre quem é o autor, quem não o é. O produto final e seu sentido são
resultado das interações de todos esses atores, de todas as suas contribuições, mas importa,
enormemente, a decisão do diretor Koji Igarashi diante desse conjunto da obra. É por isso que
esses jogos e franquias têm muitas vezes identidades tão bem consolidadas. São marcas
coadunadas oriundas de um universo de múltiplos agentes, mas que respondem, finalmente, a
uma cristalização unificada que foi verificada e aprovada por um diretor responsável por dar
unidade a esse objeto.

Se Igarashi conhecia Piranesi na época em que projetou o jogo é difícil saber, mas é
esse o caráter mais instigante dessa confabulação. Poderia não conhecer e ter produzido um
jogo que parece respirar as gravuras de Carceri d‟invenzione? É possível, observando-se o
fato de que De Quincey sonhou com imagens as quais ele nem mesmo tinha visto. O castelo
de Castlevania, assim como descrito em outro artigo interessante, não acadêmico, intitulado
―Why Dracula‘s castle is the real star of Castlevania‖, de Edge Staff (2015)174, parece ser o
verdadeiro protagonista da franquia. Na verdade, enquanto os personagens e motivos mudam
ao longo da série, o castelo permanece como estrutura permanente do enredo. A cada vez que
reaparece, mesmo em configuração diferente, é fruto das mesmas forças ocultas.

Esse castelo, segundo Staff, tem uma força metafísica. Percorrer suas salas é uma
jornada que permite uma experiência em busca de completude em um labirinto que parece
não ter fim. É como se as portas e escadas se multiplicassem continuamente, parecendo
impossível que todas aquelas câmaras e escadas sinuosas estivessem restritas às paredes do
castelo. Essa é a sensação relatada por Paul Martin em ―Ambivalence and Recursion in
Castlevania: Symphony of the Night‖ (2011) ao estudar o jogo – a de que a proposta dos
designers é de um constante retorno aos mesmos espaços. Esse percurso labiríntico, para

174
Edge Staff. ―Why Dracula‘s castle is the real star of Castlevania‖. GamesRadar, outubro de 2015. Disponível
em: <http://www.gamesradar.com/creating-draculas-castle-castlevania/>. Acesso em: 09 dez. 2017.
189

Martin, representaria metafisicamente a busca pessoal do personagem Alucard e sua


ambivalência. Até o embate final, estaria se afastando e se aproximando constantemente da
figura do pai, personagem antagônico.

Você é Alucard. Dentro de você está a fome e a sede de sangue de seu pai vampiro,
e a gentil e empática compaixão da sua mãe humana. Assim como você tem tentado
aceitar essa constante luta interna, você reconhece em uma luta exterior a
necessidade de destruir o Castlevania e enterrar os demônios que estão tanto dentro
do castelo quanto dentro de sua alma 175 (KONAMI, 1997, p. 14, apud MARTIN,
2011, p. 72).

A partir desse texto retirado do Manual do Jogador podemos ver indícios do caráter
dicotômico do personagem Alucard. O retorno ao castelo significa a chance de colocar um
ponto final nas ambiguidades vividas pelo protagonista. Nesse caso, Castlevania não é apenas
o espaço onde essa resolução se dará, mas é a própria materialização dos tormentos de
Alucard.

5.1 DEVANEIOS SEM FIM

Me resignarei ao fato de que não poderei compreender tudo o que gostaria, mas
esboçarei algumas considerações acerca da pesquisa, das análises empreendidas, e das leituras
feitas. É importante neste ponto retomar o romance Drácula e também O castelo de Otranto
para, em conjunto com a revisão de literatura feita no segundo capítulo, tecer considerações
sobre a importância do castelo não apenas como cenário, mas como materialização de temas
que concernem ao gótico. Assim, resgataremos as discussões já feitas e as cruzaremos com as
informações trazidas pela análise. Imiscuiremos, ainda, a leitura dos capítulos ―Ruínas‖,
―Desordens‖ e ―Citações e Memórias‖, de Charles Rosen, em A geração Romântica (2000,
pp. 146-171), atentando para as relações entre a música e as ruínas góticas da época
Renascentista, e como essas paisagens e sensações influenciaram os artistas.

Segundo Rosen, ―durante a Renascença, a ruína foi apreciada por seu significado
moral, por sua excentricidade e, também, por prestar testemunho de um passado sagrado‖

175
―You are Alucard. Raging through you is the hunger and bloodlust of your vampire father, and the gentle,
empathetic compassion of your human mother. As you have tried to come to terms with that constant internal
struggle, you have recognized an outer struggle as well—the need to destroy Castlevania and bury the demons
both within the castle and within your soul‖ (KONAMI, 1997, p. 14, apud MARTIN, 2011, p. 72)
190

(2000, p. 146). Para o pesquisador, a ruína nas construções arquitetônicas passou a ter um
caráter dramático entre os séculos XVI e XVII.

Piranesi retorna através da fala de Rosen, que o cita como um dos responsáveis por
expandir o panorama urbano, tornando-o melancólico e, portanto, inspirador. A ruína do
gravurista, segundo Rosen (2000), demonstra que a natureza retoma seu espaço nas
construções urbanas. Esse aspecto melancólico era produzido pelos arquitetos e jardineiros do
século XVII com a construção ―de ruínas em seus paisagismos‖ (p. 146). Assim, percebemos
a influência dessas visões arquitetônicas sobre a imaginação de Piranesi e em como essas
produções de Piranesi se imbricam na construção de universos representacionais que vieram a
posteriori. Uma fala interessante de Rosen se dedica à compreensão de que as obras de arte
(literatura e música, por exemplo) deixam as mãos do artista que as concebeu e passam a se
tornar ruínas, contando com a compreensão particular da audiência, localizada para sempre
distante do contexto de onde a obra surgiu: ―em suma, o artista mais responsável é aquele que
cria a obra tendo em vista sua inevitável ruína‖ (ROSEN, 2000, p. 147). Outro trecho
interessante da fala de Rosen é sobre a expectativa do artista. De acordo com o teórico,

A obra não está elaborada com a finalidade de revelar diretamente a experiência do


artista, como se ela fosse um telegrama, ou de substituir sua memória pela nossa: ela
é estruturada de modo a que seja preenchida por nossa experiência, como um
veículo para os sentimentos de todos que a ouvem (ROSEN, 2000, p. 148).

Essa ideia na verdade tem relações com as noções de leitura e interpretação que
concernem as nossas análises nesta tese. O sentido da obra, seja ela literária, musical, fílmica
etc., não se encerra nas expectativas autorais. Ao contrário, o significado desse trabalho
emerge a cada leitura. Assim sendo, aquilo que permanece erigido são vestígios de um todo
que jamais será recuperado. A recuperação desses fragmentos, por exemplo, quando
Schumann imbrica melodias de Beethoven em suas composições, cria citações que provocam
um efeito de nostalgia, ―como uma memória involuntária, uma recordação inconsciente‖
(ROSEN, 2000, p. 171).

Tomemos o efeito de Piranesi sobre De Quincey e em como essas citações foram se


acumulando em outros trabalhos góticos no desenrolar do tempo. As citações de ruínas de
obras compõem efeitos de nostalgia que nunca parecem ter se calado.

Em A invenção do Cotidiano, Michel de Certeau também nos fala sobre memória e


citação, e neste momento resgatamos sua fala para que possamos entender a relação desses
191

dois conceitos com o que percebemos que seja a estética de Castlevania: SoTN176 (1997): uma
colagem de signos plurais coadunados em uma estrutura estética que se propõe coesa, tanto
por parte dos designers quanto por parte do espectador. Essa colagem pode ser possível
porque

A memória prática é regulada pelo jogo múltiplo da alteração, não só por se


constituir apenas pelo fato de ser marcada pelos encontros externos e colecionar
esses brasões sucessivos e tatuagens do outro, mas também porque essas escrituras
invisíveis só são claramente ―lembradas‖ por novas circunstâncias. O modo da
rememoração é conforme ao modo da inscrição. Talvez a memória seja, aliás,
apenas essa ‗rememoração‘ ou chamamento pelo outro, cuja impressão se traçará
como em sobrecarga sobre um corpo há muito tempo alterado já mais sem o saber.
Essa escritura originária e secreta ‗sairia‘ aos poucos, onde fosse atingida pelos
toques. Seja como for, a memória é tocada pelas circunstâncias, como o piano que
‗produz‘ sons ao toque das mãos. Ela é sentido do outro. E por isso ela se
desenvolve também com a relação – nas sociedades ‗tradicionais‘, como no amor -
ao passo que se atrofia quando se dá a autonomização de lugares próprios. Mais que
registrar, ela responde às circunstâncias, até ao momento em que, perdendo sua
fragilidade móvel, tornando-se incapaz de novas alterações, ela só consegue repetir
suas primeiras respostas (CERTEAU, 2008, pp. 165-164).

Ou seja, a memória é plástica e se ―aproveita‖ de momentos que resgatam outros


tantos, estabelecendo chaves e ligações que conectam informações de maneira sensitiva.
Circunstancial e providencial, ela se adapta e se move de forma a relacionar isso com aquilo,
por um jogo tático que é produto de sentidos que se ativam circunstancialmente. Em jogos de
videogames, assim como em outros objetos culturais, temos contato com variadas
informações que compõem um mundo diegético. Essas informações são agrupadas e
organizadas de maneira a terem significado e estabelecerem conexão com o jogador. Ao
entrar em contato com o mundo do jogo, o jogador identifica informações e estabelece laços
entre elas, ao mesmo tempo em que usa de sua memória para relacionar tanto as informações
diegéticas quanto as não-diegéticas.

Outra questão interessante para nossas discussões será a ―citação‖, um conceito que
pode ter a ideia de ―intertextualidade‖. Mais do que um conceito preso aos escritos, a citação
de Certeau é responsável por dar credibilidade e coesão aos discursos:

A vida social multiplica os gestos e os comportamentos impressos por modelos


narrativos; reproduz e empilha sem cessar as ‗cópias‘ de relatos. A nossa sociedade
se tornou uma sociedade recitada, e isto num triplo sentido: é definida ao mesmo

176
Neste momento refiro-me apenas ao jogo, e não ao efeito Piranesi sobre as obras góticas – porque, de fato, no
caso das obras literárias, temos apenas a ―aderência‖ por citação de texto e imagem. Em Castlevania: SoTN,
temos texto, imagem e som.
192

tempo por relatos (as fábulas de nossas publicidades e de nossas informações), por
suas citações e por sua interminável recitação (CERTEAU, 2008, p. 288).

A citação será, portanto a arma absoluta do fazer crer. Como ela joga com aquilo
que o outro supostamente crê, é, portanto o meio pelo qual se institua o ‗real‘. Citar
o outro em seu favor é, portanto dar credibilidade aos simulacros produzidos num
lugar particular. [...] Citar é dar realidade ao simulacro produzido por um poder,
induzindo a crer que outros acreditem nele, mas sem fornecer nenhum objeto crível
(CERTEAU, 2008, pp. 290-291).

Dessa forma, a coesão estética do jogo estaria funcionando sob a égide da citação, com
colagens que acionariam a memória sensível, tanto na produção quanto na recepção.

Ainda sobre essas colagens, percebemos na fala de Anthony Giddens, em


Modernidade e Identidade (2002), sinais da inconsistência da pós-modernidade. Segundo o
autor,

As imagens visuais que a televisão, o cinema e os vídeos apresentam sem dúvida


criam texturas de experiência via mídia que não estão disponíveis na palavra
impressa. No entanto, como os jornais, revistas e periódicos e outros tipos de
matéria impressa, esses meios são tanto a expressão das tendências globalizantes,
desencaixadoras, da modernidade, como instrumentos dessas tendências. Como
modalidades de reorganização do tempo e do espaço, as semelhanças entre os meios
impressos e os eletrônicos são mais importantes que suas diferenças na constituição
das instituições modernas. E isso vale para as duas características básicas da
experiência transmitida pela mídia nas condições da modernidade. Uma é o efeito
colagem. Dado que o evento se tornou quase completamente dominante em relação
ao lugar, a apresentação dos meios de comunicação toma a forma de justaposição de
histórias e itens que nada têm em comum exceto serem ―oportunos‖ e terem
consequências (GIDDENS, 2002, p. 31).

Ou seja, as ―telas do presente‖, como já apontado por Chartier (2004), são formadas
por uma multiplicidade midiática que tem efeito de uma colagem que não pode ser descolada
da cultura escrita. Como só se pode entender o mundo através da representação, da totalização
e historicização narrativizadora (HUTCHEON, 2000, p. 59), a organização daquilo que
vemos, escutamos e lemos só poderá ser feito discursivamente. Vivemos organizando e
ordenando, em busca da construção de textos que se iniciem e se findem de maneira coesa,
criando documentos que podem ser desvendados mesmo sem o auxílio do autor de corpo
presente. Concordamos com Hutcheon, porque entendemos que jamais conheceremos coisa
alguma sem o filtro das representações. Nem o passado, nem o presente e nem o futuro –
todas as nossas impressões já se encontram ―contaminadas‖ pelo peso de representações do
―real‖.
193

Se levarmos em conta o fato de que não nos lembramos e nem nos apropriamos do
passado, mas que o ―criamos‖ à medida que o narramos, o uso de citações para a composição
de memórias mais robustas é completamente coerente. A simples concepção de ―pastiche‖ ou
―colagem‖ como termos que possam configurar o jogo Castlevania: SoTN (1997) nos parece
insuficiente, diante da perspectiva da crítica pós-moderna. A ilusão do objeto cultural
moderno – com aura – se desfaz diante da perspectiva de que qualquer concepção do mundo é
composta por narrativas representacionais e que jamais estaremos livres das redes ideológicas
totalizadoras.

A naturalização da coesão das narrativas também corresponde à expectativa e


ideologia de que somos atravessados pelo caminhar progressivo da história, que se iniciou na
Idade da Pedra e ruma para o espaço. Ao pensarmos esse conjunto de citações de diversos
fragmentos e diferentes códigos no jogo Castlevania: SoTN (1997), percebemos, finalmente,
que os textos eletrônicos, como diz Chartier (2004, p. 151), não são tão diferentes daqueles da
cultura escrita. Mesmo com toda sua multiplicidade e mobilidade, resta uma fôrma que os
comprime – a fôrma da totalização. Portanto, todos os diferentes códigos (som, imagem,
texto) desses jogos eletrônicos estão enredados a serviço da coesão do discurso diegético e
não diegético.

Novas mídias não transformam a maneira de ler, elas apenas oferecem citações em
diferentes códigos, mas essas são atravessadas pela máquina de totalização que incide
coerência na produção e na recepção. Giddens declara que

Uma colagem não é, por definição, uma narrativa; mas a coexistência de itens
diferentes nos meios de comunicação de massa não representa uma confusão caótica
de signos. Antes, as ―histórias‖ separadas que são exibidas lado a lado expressam
ordenamentos típicos de consequencialidade de um ambiente espaço-temporal
transformado, do qual a predominância do lugar praticamente se evaporou
(GIDDENS, 2002, p. 31).

Podendo-se, ao se conjugar a leitura de Hutcheon (2000), observar que esses


―ordenamentos típicos de consequencialidade‖ são de fato operações totalizadoras.

Sobre isso me lembro agora de um documentário intitulado A história do cinema:


Uma Odisséia177, dirigido por Mark Cousins (2011). A primeira parte cobre o período de

177
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M6vIDYFQtqk> Acesso em: 19 dez. 2017. A partir de
24:14 minutos.
194

1895 a 1969 e trata da transição de fotografias animadas em sequência até o estabelecimento


da mídia como linguagem própria da modernidade. Assim como pontuado por Cousins (2011)
e por Sergei Eisenstein em A Forma do Filme (2002), trata-se de uma arte de edição. Assim
sendo, é o ordenamento das sequências das imagens e, posteriormente, de cenas que constrói a
narrativa imagem/som, ou que gera o efeito do filme. Ao assistir à explicação de Cousins
sobre o curta-metragem intitulado ―Life of an American Fireman‖ (1903), de Edwin Staton
Porter, é possível compreender que a sequencialidade no cinema não surgiu naturalmente,
mas sim num processo de entendimento de que o ordenamento de cortes causaria a sensação
de coesão narrativa. A substituição de um espaço físico por outro em tela (a casa sendo vista
pelo lado de fora em contraponto com a cena do seu interior) causa a sequência narrativa com
a qual estamos acostumados hoje, assim como transições, voice-overs e outros efeitos
cinematográficos que já saltaram para a literatura, por exemplo.

E, mesmo assim, neste momento, questiono essa percepção, já que a organização de


nossas apreensões é parte da nossa atividade de dar sentido ao mundo, discursivamente.
Resgato a fala de Hutcheon a respeito do fato de que não há nada de ―natural sobre o ‗real‘ e
nunca houve – mesmo antes da existência da mídia de massa‖ (2000, p. 29). Essa proposição
de organização de imagens em sequência na verdade não seria uma proposição da mídia
cinematográfica, mas uma extensão do ordenamento discursivo próprio do processo de
compreensão desenvolvido pelo homem para apreender e dar sentido à ―realidade‖. O
processo de montagem cinematográfico de Eisenstein (2002) é a reprodução, com imagens,
do ordenamento discursivo natural do ser humano, ou seja, o processo cognitivo de apreensão
do mundo.

Assim, a colagem do que eu posso chamar de ―eventos estéticos‖ de diferentes esferas


e épocas numa ―coesão temporal discursiva‖ é um ato de citação pois provoca o efeito de
nostalgia, ativando a memória por uma espécie de processo de seleção por sensibilidade,
conforme proposto por Certeau:

Uma segunda característica da experiência transmitida pela mídia nos tempos


modernos é a intrusão de eventos distantes na consciência cotidiana, que é em boa
parte organizada em termos da consciência que se tem deles. Muitos dos eventos
relatados no noticiário, por exemplo, podem ser experimentados pelo indivíduo
como exteriores e remotos; mas muitos também se infiltram na atividade diária. A
familiaridade gerada pela experiência transmitida pela mídia pode talvez, com
frequência, produzir sensações de ―inversão da realidade‖: o objeto ou evento real,
quando encontrado, parece ter uma existência menos concreta que sua representação
na mídia (GIDDENS, 2002, p. 31).
195

Esse é outro ponto interessante na abordagem do nosso problema de pesquisa, visto


que estamos trabalhando com tempos e geografias distantes. A familiaridade e o tato no
acesso a essas ―memórias‖ e ―citações‖ de tempos e lugares remotos não se relacionam
diretamente a uma experiência com o real sensível. Pode-se citar aqui o ―efeito Piranesi‖
vivenciado, por exemplo, por De Quincey. Assim como declara Giddens, ―em suma, nas
condições da modernidade, os meios de comunicação não espelham realidades, mas em parte
as formam‖ (2002, p. 32). E, na verdade, neste momento, duvido que os meios de
comunicação possam ser os vetores dessas colagens – ou de formação de realidades, visto que
as operações de reordenação, organização e apropriação de sentidos do mundo sempre
existiram – não são fenômenos modernos. Na perspectiva de que nunca houve sequer contato
direto com a realidade (HUTCHEON, 2000, p. 31), o que há, repito-me, é uma organização
discursiva da apreensão do mundo sensível. A crítica ao apagamento dos agenciamentos
envolvidos na consolidação da realidade (ou da negação das narrativizações
representacionais) nos encaminha à crítica pós-moderna.

Em Castlevania: SoTN (1997), o universo é ficcional mas também se relaciona com


uma ideia virtual do período gótico e renascentista, que existiu através das visões de artistas
influenciados por Piranesi, como músicos e escritores.

Essas representações presentes no jogo são construídas pelos designers, mas também
são construções por si só (de memórias e de discursos que consolidaram essa estética). Dessa
forma, a ―reconstrução‖ de um estilo gótico através da organização de colagens em um
videogame é apenas uma vertigem, porque tenta resgatar uma memória de um ―real‖ que por
si só existiu apenas através da reverberação de vozes, visões, colagens e sonhos. Nesse
sentido, a colagem de citações para proposição do efeito de memória no jogo e a construção
discursiva do próprio jogo são processos indivisíveis no panorama da crítica pós-moderna. A
partir desse pensamento, o fazer artístico se apropria e subverte a ordem da narrativa
totalizadora e coesa, um modelo ideológico da modernidade. Nessa medida, observa-se que a
questão não está na crítica à tentativa de ―imitação‖ de uma estética de um tempo passado.
Diante de todo o estudo desenvolvido até aqui, acreditamos que essa tese se encerra
subversiva, fazendo-nos duvidar de noções que organizavam nossos discursos.

Essa perspectiva parece ampliar a própria noção de leitura e apreensão de mundo; essa
―habilidade‖ parece ganhar contornos cada vez menos ―burocráticos‖, como se a atividade de
leitura fosse se descolando cada vez mais da decodificação, atravessando a noção de leitura de
196

mundo de Paulo Freire e se liquefazendo diante do olhar que duvida do que entende por
mundo. Considero que o empreendimento das revisões de literatura e das análises desta tese
pavimentaram a estrada por onde andamos agora – mas ela não nos parece levar a um ―lugar‖,
senão a uma pletora, uma miríade de outros caminhos; caminhos esses que não passam de
capoeiras esperando para serem percorridas. É possível que as pesquisas em videogames
continuem, ao longo dos próximos anos, com análises nas quais as teorias literárias não serão
abarcadas, e é possível que se tente criar algo novo para o que se entende como sendo uma
―nova‖ forma de interação com ficções. A não ser que se apropriem de ideias e discussões
como as desenvolvidas por Jauss, Iser e Chartier, dentre outros, não haverá forma de
construção de um saber sólido sobre o que é a leitura de videogames: as revisões de literatura
nas quais nos calcamos nos permitem dizê-lo.

Advogamos, além disso, pelo desenvolvimento multidisciplinar de pesquisas. A


fragmentação disciplinar da vida não nos parece possível diante do aprofundamento que as
análises científicas podem produzir. A categorização das pesquisas em áreas pode suprimir
cientistas, fazendo-os adotarem perspectivas que reduzem a riqueza dos objetos pesquisados.

Portanto, é possível avaliarmos que conseguimos chegar ao final do nosso


empreendimento compreender como diferentes indícios materiais em Castlevania SoTN
ampliam a leitura de seu significado, tanto narrativo quanto estético, pois todo o seu conjunto
sincrético foi colado com o intúito de provocar o efeito de coesão e nostalgia estética.

Encerra-se esta tese, mas a pesquisa continuará. Num outro nível de estudo,
objetivamos analisar as narrativas fragmentadas em videogames, sob a ótica das
considerações tecidas ao final desta tese. A ideia será entender como as fragmentações são
organizadas pelo jogador-leitor de acordo com o prisma de que a compreensão dessas
colagens se dá por memória, sensibilidade e nostalgia.
197

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