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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE: CLÍNICA E CULTURA

TATIANNE SANTOS DANTAS

“ALI ONDE ESTÁ O ASSOMBRO”:

DESMARGINAÇÃO E CRIAÇÃO LITERÁRIA NA

TETRALOGIA DE ELENA FERRANTE

Porto Alegre

2019
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TATIANNE SANTOS DANTAS

“ALI ONDE ESTÁ O ASSOMBRO”:

DESMARGINAÇÃO E CRIAÇÃO LITERÁRIA NA

TETRALOGIA DE ELENA FERRANTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicanálise da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Psicanálise.

Orientadora: Prof.a Dr.a Simone Zanon Moschen

Porto Alegre

2019
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TATIANNE SANTOS DANTAS

“ALI ONDE ESTÁ O ASSOMBRO”:

DESMARGINAÇÃO E CRIAÇÃO LITERÁRIA NA

TETRALOGIA DE ELENA FERRANTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicanálise da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Psicanálise.

Orientadora: Prof.a Dr.a Simone Zanon Moschen

Aprovada em: ___________________________

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________

Prof.a Dr.a Lucia Serrano Pereira (APPOA)

_____________________________________________

Prof.a Dr.a Rita Lenira de Freitas Bittencourt (UFRGS)

_____________________________________________

Prof.. Dr. Edson Luiz André de Sousa (UFRGS)

Porto Alegre

2019
4

Para Ana Lúcia (em memória)


5

AGRADECIMENTOS

Escrever uma dissertação já implica, por si só, passar por uma mudança. No caso deste
trabalho, a mudança começou na localização geográfica: morar pela primeira vez em uma
cidade sem litoral. Em Porto Alegre aprendi que as pessoas podem ser mar nos nossos dias.
Meus agradecimentos são para quem fez dessa cidade um lugar tão bom de se viver e, para
aquelas e aqueles que, mesmo distantes no mapa, estiveram sempre ao meu lado.
À minha orientadora, Simone Zanon Moschen, por conduzir com tanta alegria,
delicadeza e poesia o caminho trilhado nesse mestrado. Quando coloquei seu nome no
processo seletivo como possível orientadora não imaginava que estava prestes a ter um dos
encontros mais bonitos da minha vida. Agradeço imensamente pela acolhida, pelo gesto que
mudou tudo.
À Lúcia Serrano, Edson de Sousa, Rita Lenira e Flávia Trocoli por comporem as
bancas de qualificação e de defesa, pela leitura tão generosa do projeto e da apresentação no
Rede Sul Letras, que tanto me ajudaram a trilhar a busca na literatura e na psicanálise.
Às/aos professores/as do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura, com quem aprendi
tanto. Às/aos colegas do mestrado, que sempre me trataram com tanto carinho.
Ao grupo de pesquisa mais querido: Ana Paula, Lia, Camila, Patrícia, Anna Letícia,
Luiz Henrique, Adriano, Sofia, Pedro, Luísa, Paula, Janniny, Sthefan e Thiago. Essa
dissertação tem um pouco de cada um de vocês. Às/aos integrantes do NUPPEC, por tantos
encontros emocionantes, por mostrar que pesquisa se faz compartilhando.
À Ana Paula, Lia, Helena e Karla, pelo laço tão forte que se fez na paixão pelos livros
de Elena Ferrante. Vocês são minhas amigas geniais.
Às amigas e amigos de Aracaju e de tantos outros lugares. Leila e Waldson, presentes
que a UNIT me trouxe; Olga, Thata, Pedro e Fabrina, pelo nosso grupo Vamo se amar pra
sempre, não teria atravessado outubro de 2018 sem vocês; Denise, pelas conversas que me
deixam sempre mais sabida. Ju, Kalebe e toda a trupe da Flip pelo nosso refúgio anual, de
algumas formas o anteprojeto de mestrado surgiu em 2016 em Paraty.
À mainha, pelo sertão; painho, pela literatura; Talita, minha companheira de
brincadeiras da infância e da vida adulta. Obrigada por estarem sempre comigo.
Allysson, por me fazer sorrir todos os dias, por ser minha neblina, pela vida tão bonita
que construímos.
À CAPES, pela bolsa que possibilitou fazer esse mestrado com tranquilidade. À
existência de uma universidade pública que me permitiu olhar para outras paragens.
6

A ela, à noite,
a sobrevoada de estrelas, a sobrerregada de mar
a ela a silenciada,
cujo sangue não coagulou, quando o dente venenoso
as sílabas atravessou

A ela a palavra silenciada.

Contra as outras, as que em breve,


as que prostituídas pelos ouvidos dos carrascos,
também escalam por tempos e tempos,
ela testemunha por último,
por último, quando apenas correntes ressoem,
ela dá testemunho da que ali jaz
entre ouro e esquecimento,
a ambos irmanada desde quanto -

Pois onde
alvora, então, diz, senão junto dela,
que na correnteza de suas lágrimas
aos sóis imersos a seara mostra
outra e outra vez?

Paul Celan

Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazios.

Ana Cristina Cesar


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RESUMO

Esta dissertação relaciona os caminhos da criação literária à noção de desmarginação,


cunhada por Elena Ferrante, na tetralogia napolitana. A desmarginação é um neologismo
inventado por uma das personagens principais desse romance com o intuito de nomear uma
sensação que experimenta, mais de uma vez, de perder as margens, de dissolver as fronteiras
entre si e seu entorno. Essa experiência indica um processo que propomos estar em causa na
criação literária o que permite a esse estudo destacar a desmarginação como um operador
conceitual que decanta da ficção de Ferrante, especialmente quando a fazemos conversar com
Maurice Blanchot, nos livros A parte do fogo, O espaço literário e O livro por vir. Na história
da série napolitana, a narradora Elena Greco começa a escrever os livros que temos em mãos
como uma forma de criar um lugar simbólico para o vazio deixado por sua melhor amiga, Lila
Cerullo, que desapareceu sem deixar vestígios. Na rememoração da vida que as duas tiveram
juntas, acompanhamos alguns acontecimentos que testemunham o processo de tornar-se de
escritora de Elena como um desdobramento do que restou inassimilável da relação com a
amiga. Junto com Blanchot, a psicanálise nos ajuda a olhar para as nuances dessa relação e
abre o caminho para pensarmos a personagem Lila como localização da desmarginação, um
movimento que propomos inerente à literatura, com a qual quem escreve precisa, em algum
momento, se encontrar.

PALAVRAS-CHAVE: Desmarginação; Criação Literária; Elena Ferrante; Maurice


Blanchot; Psicanálise.
8

ABSTRACT

This dissertation puts forth a study on literary creation as manifested in the work of Elena
Ferrante, mainly the famously known Neapolitan novels. The investigation stems from
smaginatura, a word invented by one of the main characters in the novels to name a sensation
compared to dissolving margins, what establishes in the narrative a paradigm to think literary
creation. We take, then, smaginatura as a theoretical operator, dwelling mainly on it through a
conversation with Maurice Blanchot in his works The work of Fire, The Space of Literature
and The Book to Come. In the Neapolitan novels, Elena Greco is both the narrator and the
writer of these same novels. She writes them to symbolically occupy the void left by her best
friend, Lila Cerullo, who disappears without leaving vestiges. In these remembrances of the
life they had together, we attest the becoming of Elena the writer as a consequence of Elena
the friend of Lila Cerullo. Psychoanalysis helps us to look at the nuances of this relationship,
making it possible to think Lila and her smaginatura as a movement inherent to literary
creation, as well as inescapable for whoever attempts to write literature.

KEYWORDS: Smarginatura; Literary Creation; Elena Ferrante; Maurice Blanchot;


Psychoanalysis.
9

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 10
2 A PAIXÃO PELA LEITURA, NOTAS SOBRE O MÉTODO ......................................... 22
3 “ESCREVER É SE VINGAR DA PERDA” ..................................................................... 30
(o instante da minha morte) .................................................................................................. 36
3.1 Vestígio, olhar para a ausência ................................................................................... 38
4 “ESSE QUARTO VAZIO EM QUE TUDO PERMANECE” .......................................... 47
4.1 O inquietante, travessia .............................................................................................. 58
(o fascínio da ausência do tempo) ........................................................................................ 71
4.2 Às margens do desamparo ......................................................................................... 72
5 “AVENTURA DE REGISTRAR A FENDA” ................................................................... 79
5.1 Desmarginação: a contrapalavra ............................................................................... 90
5.2 Palavra literária, alargamento das malhas do simbólico .......................................... 104
(o canto das sereias) ............................................................................................................ 113
6 CONCLUSÃO, O MAR ABERTO ................................................................................. 125
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 133
10

1 INTRODUÇÃO

Seguindo os rastros da desmarginação, nossa busca nesta dissertação será a de pensar


a criação literária na tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Blanchot nos diz que “no âmago
da literatura e da linguagem, para além dos movimentos aparentes que as transformam”
(BLANCHOT, 2011, p.350), existe um ponto de instabilidade, um poder de metamorfose
capaz de tudo mudar sem nada mudar. Segundo o autor, essa instabilidade tem, ao mesmo
tempo, o efeito de uma força desagregadora e de construção. Na história da série napolitana a
desmarginação, noção que surge a partir de uma das personagens principais, parece apontar
para essa força. Tentaremos mostrar que a desmarginação é a palavra que carrega consigo o
ponto em que “a realização da linguagem coincide com o seu desaparecimento, em que tudo
se fala, tudo é fala, mas em que a fala já não é mais do que a aparência do que desapareceu, é
o imaginário, o incessante e o interminável” (BLANCHOT, 2011, p.38).
Acreditamos, junto com a escritora e psicanalista Ana Cecília Carvalho (2002), que o
uso do termo criação literária em vez de literatura serve mais aos propósitos dos temas que
pretendemos abordar. Segundo a autora, criação literária descreve mais de perto a
funcionalidade da escrita, ou seja, tudo aquilo que revela a tensão envolvida no processo de
transformação do qual é resultada a escrita literária. O termo literatura, em sua amplitude,
implica perder de vista a especificidade de um processo que está em jogo quando se escreve
um texto literário.
A amiga genial (L’amica geniale [2015/2011]1 é o primeiro volume de uma série de
quatro livros escritos por Elena Ferrante que ficaram conhecidos como tetralogia napolitana.
Os demais volumes, em ordem de publicação, são: História no novo sobrenome (Storia del
nuovo cognome [2016/2011]), História de quem foge e de quem fica (Storia di chi fugge e di
chi resta [2017/2013]) e História da menina perdida (Storia della bambina perduta
[2017/2014])2. A narrativa conta a longa história de amizade entre Elena3 Greco e Rafaella
Cerullo; uma amizade que começa quando as duas são crianças e vivem em um bairro
periférico de Nápoles. Na velhice, quando ambas estão com 66 anos, Rafaella – chamada por

1 A primeira data de publicação corresponde à edição consultada, publicada pela editora Biblioteca Azul com
tradução de Maurício Santana Dias; a seguinte é a data de publicação na Itália.
2 A partir deste parágrafo, as citações da tetralogia napolitana constarão no corpo do texto, entre parênteses, com
as siglas AG para A amiga genial, HNN para História do novo sobrenome, HFF para História de quem foge e de
quem fica e HMP para História da menina perdida, seguidas das respectivas paginações.
3 Elena é chamada por Lila e pelos demais personagens ora de Lenù, ora de Lennuccia. Alternarei esses nomes
aqui quando falar da narradora.
11

Elena e, somente por ela, de Lila – desaparece. O sumiço é contado no prólogo de A amiga
genial, e é a partir dele que Elena começa a narrar a história que temos em mãos. Logo
percebemos que, além do romance sobre a amizade, estamos diante de uma narrativa sobre o
bairro onde elas nasceram e os acontecimentos históricos da segunda metade do século XX.
No romance, Elena Greco é escritora, o que torna a tetralogia uma autobiografia
ficcional que, além da trama, tece uma reflexão sobre a escrita literária e seus movimentos.
Em seu tornar-se escritora, Elena suscita questões que ocupam a teoria da literatura e a
psicanálise desde o seu surgimento e que, longe de estarem resolvidas, são perguntas em
constante processo de (re)construção. A desmarginação aparece como uma noção para pensar
a criação literária em sua relação com a morte e o que permanece não-dito no texto. O escritor
francês George Perec tem uma proposição que é pertinente citar, pois aproxima-se do que
intuímos na desmarginação como paradigma para pensar a escrita literária: “o indizível não
está escondido na escrita, é aquilo que, muito antes, a desencadeou” (PEREC, 1995, p.54).
A escrita da série napolitana segue uma sequência cronológica na maior parte do
tempo; narra a vida das personagens nas suas diversas fases, desde a infância até a velhice. No
entanto, uma observação cuidadosa permite ver que um elemento da ordem da
irrepresentabilidade precipita-se no texto: é quando entramos em contato com a
desmarginação, um fenômeno que acomete a personagem Lila Cerullo. Temos acesso a ele
através da narração de Elena, num movimento que, muitas vezes interrompe o fluxo do texto
com uma inquietante estranheza.
A conversa sobre escrita e desmarginação que se desenhará nestas páginas se dará
principalmente com alguns conceitos que se sobressaem na obra do teórico Maurice Blanchot.
Durante o percurso chamaremos psicanalistas, outros pensadores e pensadoras da literatura,
escritores e escritoras de ficção, poetas que nos ajudarão a ampliar nossas elaborações sobre
os mistérios da escrita literária Não temos a pretensão de desvendá-los, mas, parafraseando o
escritor norte-americano William Faulkner, de junto com a literatura saborear o efeito de
fósforo aceso no campo no meio da noite: a pequena chama não ilumina quase nada, mas nos
permite ver quanta escuridão existe ao redor. Elena Ferrante não escolhe a ausência:
Ela se diz presente em suas obras,
sua imagem que não está presente

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora que diz ter escolhido a ausência. Ela
só dá entrevistas por e-mail e através dos seus editores; o que conhecemos das suas reflexões
sobre literatura e escrita estão contidas em uma coletânea chamada Frantumaglia: Os
caminhos de uma escritora (La Frantumaglia [2017/2013]), compilação de diversas cartas,
bilhetes, ensaios e entrevistas concedidas por correio eletrônico. Em um dos trechos desse
12

livro, quando questionada quem é a escritora Elena Ferrante, ela responde: “Treze letras, nem
mais nem menos. A sua definição está toda contida nelas” (FERRANTE, 2017, p.321). Na
visão da autora, a ausência preserva um espaço de absoluta liberdade e criatividade que para
ela tornou-se imprescindível.
Além da série napolitana e de Frantumaglia, Elena Ferrante publicou os livros Um
amor incômodo (L’amore molesto [1992/2017]), Dias de abandono (Il giorni dell’abbandono
[2002/2016]), A filha perdida (La figlia oscura [2006/2016]) e um livro infantil chamado
Uma noite na praia (La spiaggia di notte [2007/2016]). Ou seja, antes da publicação de A
amiga genial, já era uma escritora conhecida no país que aparentemente é o de sua língua
materna, a Itália. Mas é só com o lançamento da série napolitana que o nome – e apenas o
nome – da autora passa a ser conhecido no resto do mundo. As vendas dos livros já somam
mais de 30 milhões de cópias, o que torna a tetralogia um verdadeiro best-seller. Em
novembro de 2018 começou a ser exibida uma série televisiva na HBO, em parceria com o
canal italiano RAI, baseada na narrativa de A amiga genial. Trata-se da primeira série
produzida pelo canal falada em um idioma que não é o inglês. A produção, que conta com a
própria Elena Ferrante como integrante da equipe de roteiristas, exigiu que as filmagens
fossem feitas no dialeto falado em Nápoles na década de 50, levando em conta algo de
importância primordial nos livros e na vida da narradora, o embate entre o dialeto do bairro e
o italiano culto.
No entanto, ao contrário da maioria dos livros que conquista um grande público, a
história de Elena e Lila também recebe elogiosas resenhas nos principais veículos de crítica
literária. Foi através de um ensaio publicado em 2013 por James Woods na revista The New
Yorker, intitulado Women in the Verge,4 que Ferrante começou a conquistar leitores e leitoras5
em várias partes do mundo. Ele destaca, entre as características de seus livros, o caráter
violento como as narradoras expõem suas vidas, deixando suas leitoras amarradas a um jorro
confessional até chegar à última página.
Seus livros são sempre narrados por mulheres e colocam em causa questões como
abuso infantil, divórcio, crianças que nasceram de uma gravidez não desejada, a repulsa ao
próprio corpo, narradoras que estão sempre tentando manter uma aparência coerente com o

4 Disponível em https://www.newyorker.com/magazine/2013/01/21/women-on-the-verge.
5 A língua portuguesa nos coloca um impasse nesta dissertação: apesar de ser comum usarmos o universalizante
leitores, deixar as leitoras de fora da escrita parece estranho; seria um impasse em qualquer situação já que
estamos num período de procurar brechas no discurso para que o masculino não seja o universalizante. No
entanto, quando se trata de Elena Ferrante, parece ainda mais, uma vez que é uma escritora com muito mais
leitoras que leitores. Por isso, na escrita deste trabalho, optamos por alternar entre um e outro, ora chamando de
leitor ora de leitora. De maneira semelhante se dará o tratamento ora de escritor, ora de escritora.
13

papel social que lhes foi dado de esposa e mãe, mas que, por alguma ruptura, se veem aos
pedaços. Muito do que foi escrito sobre os livros de Ferrante alertam para esse ponto ao tentar
compreender seu sucesso: “tudo leva a crer que as narrativas seriadas em torno de figuras
femininas respondem a uma demanda ainda obscura da nossa vida simbólica, como se
tocassem em algum ponto nevrálgico da sensibilidade contemporânea”. 6 No entanto, ao
contrário do que ocorre com algumas heroínas televisivas, “a densidade e a imaginação de
Ferrante e a qualidade de sua escrita nos obrigam a encarar a complexidade de seu romance
de formação. Para compreender esses livros é forçoso ultrapassar as evidências da mercadoria
e penetrar na opacidade da matéria literária”7

Nossa singularidade, nossa unicidade, nossa identidade se racha o tempo todo.


Quando, ao final de um dia, nos sentimos destroçadas, “aos pedaços”, não há nada
mais literalmente verdadeiro. Se olharmos com atenção, somos os empurrões
desestabilizadores que recebemos ou damos, e a história desses empurrões é a nossa
verdadeira história. (FERRANTE, 2017, p.396-397)

O sucesso gerou um documentário chamado Ferrante Fever (2018), ou Febre


Ferrante, que também é a maneira como o fenômeno de leitura dos seus livros ficou
conhecido. No filme, alguns escritores importantes da contemporaneidade como Jonathan
Franzen e Roberto Saviano, além de personalidades políticas como Michelle Obama e Hillary
Clinton, declaram ter encontrado na série napolitana algo poderoso e único, uma narrativa
sobre a experiência da mulher e amizade feminina com a qual nunca tiveram contato antes
através da literatura.
Mesmo sendo indicada para premiações – na Itália já em seu primeiro romance,
Ferrante obtém reconhecimento da crítica literária ao receber o prêmio Procida, Isola di
Arturo – Elsa Morante em 1992 –, Ferrante opta por não aparecer. Envia seus discursos
escritos para serem lidos ou publicados e toda a comunicação nesse caso é feita através de
seus editores. Sua ausência constitui-se como um mistério que, claro, foi apropriado pela
“ideologia capitalista”8 (BARTHES, 2012, p.58) a fim de vender mais livros e tornar sua obra
um fenômeno de mercado. Aqui, porém, nos interessará uma outra faceta do seu trabalho:
aquela que nos faz pensar em Elena Ferrante como uma personagem-autora e sua decisão de
se manter ausente como uma maneira de questionar o fazer literário desde o seu interior.

6 Disponível em: https://revista451.com.br/conteudos/visualizar/A-escritora-genial0


7 Idem.
8 Termo utilizado por Barthes em A morte do autor para falar sobre o movimento em que a literatura é capturada
pelas biografias, autobiografias que dão mais valor à figura do autor para vender mais livros. Barthes (2012) vai
nos dizer: “A explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria
mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só pessoa, o autor que nos entregasse
sua confidência” (p.58)
14

Assim, a autoria será abordada partindo do pressuposto que se trata de uma


personagem construída, a partir das informações que temos em Frantumaglia: Os caminhos
de uma escritora. Quando a série napolitana começou a fazer sucesso, muito se perguntou
sobre quem seria a autora, e foi levantada a hipótese que se tratava do escritor italiano
Domenico Starnone. O esforço para desvendar o mistério por trás da autoria fez com que a
Universidade La Sapienza de Roma criasse um algoritmo para comparar os livros de diversos
escritores italianos com os de Ferrante, e as semelhanças apontaram para Starnone. Alguns
também aventaram a hipótese de que não se trata de um autor ou autora, mas de um coletivo.
Uma reportagem feita pelo jornalista Claudio Gatti9 apontou que a autora seria a tradutora
Anita Raja; confirmando a ideia de Barthes sobre a ‘ideologia capitalista’, Gatti seguiu o
caminho do dinheiro e rastreou o imposto de renda de Raja, descobrindo que os ganhos dela
não são condizentes com os de uma tradutora. O argumento do jornalista era de que o mundo
precisava saber quem é Elena Ferrante: é impossível que uma pessoa venda tantos livros e
permaneça como um mistério. A resposta das leitoras foi de condenar a atitude de Gatti,
dizendo que o desejo de Ferrante deve ser respeitado. Através da sua editora, ela respondeu:
“Evidentemente, em um mundo onde a educação filológica praticamente desapareceu, onde
críticos não estão atentos ao estilo, a decisão de não estar presente como autor gera más
intenções e esse tipo de fantasia10”.
Os dados biográficos de Anita Raja não condizem com o que é dito sobre Elena
Ferrante através do Frantumaglia. Apesar de não ser nosso interesse saber quem é a pessoa
civil por trás da autora – como leitora e pesquisadora, penso que esse é o menor mistério
quando se trata de Ferrante –, parece importante detalhar o que aconteceu para que tenhamos
um chão mais sólido quando afirmamos que Elena Ferrante é uma personagem e a série
napolitana funciona com essa criação em uma estrutura de mise en abyme11: é um livro escrito
por uma personagem, a narradora do livro, que escreve sobre seu processo de tornar-se autora
através da influência e fascínio que sua amiga sempre exerceu sobre ela. É a partir desse
ponto que pensaremos as questões da criação literária.

Apesar de termos mais dados biográficos a seu respeito, podemos dizer que Maurice
Blanchot, assim como Ferrante, foi uma figura enigmática. Romancista, ensaísta, filósofo e

9 Disponível em: https://www.nybooks.com/daily/2016/10/02/elena-ferrante-an-answer/


10 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/03/cultura/1475489430_113758.html
11 Lucien Dällenbach (1977, p.18, apud Pino, 2004, p.50) define o mise en abyme a partir da obra de André Gide
como toda inserção de uma narrativa dentro da outra que apresenta alguma relação de similaridade com aquela
que a contém. Esse conceito será melhor explicitado no decorrer da dissertação.
15

crítico literário, parecia querer encenar, em um isolamento autoimposto, o desaparecimento do


autor que considerava condição imprescindível para o movimento da literatura. Algumas fotos
de sua juventude podem ser encontradas facilmente, assim como o registro de suas primeiras
atividades escrevendo para jornais. Em um primeiro momento de sua vida, Blanchot se dedica
à pesquisa e escrita sobre o fazer literário, sobre o que seria a literatura e como se dá sua
relação com o mundo. Começa a publicar artigos de crítica literária em vários jornais de sua
época, como por exemplo o Journal des débats, para o qual escreve de abril de 1941 a
outubro de 1944. Pimentel (2017, p.12) destaca que sua crítica nunca teve como objetivo
decifrar um texto ou uma obra, ou fornecer uma explicação mais legível que inserisse o livro
em um contexto pré-determinado. Seu papel crítico sempre esteve direcionado à elaboração
de um pensamento que buscava inserir o texto ficcional enquanto constituinte do que ele
pensava ser a literatura: “espaço da performance da palavra essencial-poética, em que
predominam a ambiguidade, o indeterminado e o neutro” (PIMENTEL, 2017, p.12).
Depois dessas primeiras publicações como crítico literário, Blanchot começa a
escrever ficção: seu trabalho inicial tem o título Thomas, l’obscur. Podemos dizer, junto com
Pimentel (2017), que esses dois movimentos da obra blanchotiana ensejam um movimento
que vai perdurar por toda sua literatura: como se suas narrativas ficcionais testemunhassem o
seu pensamento teórico. Elas são a performance da ideia de literatura que surge em O espaço
literário:

A obra de arte, a obra literária, não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos
diz é exclusivamente isso: que é – e nada mais. Fora disso, não é nada. Quem quer
fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime.
(BLANCHOT, 2011, p. 12)

Uma de suas principais ideias, que exploraremos com calma e junto com Elena
Ferrante no decorrer deste trabalho, é a linguagem de ficção que Blanchot coloca como
prerrogativa para a existência da literatura. Sendo o espaço literário um mundo que funciona
segundo suas próprias leis, sua existência não deve estar condicionada à relação com o mundo
fora da ficção. Não significa que ele não dialoga com o mundo exterior ou que não podemos
estabelecer relações entre um e outro; o que Blanchot defende é que essa relação não deve
estar na condição de sua existência. A literatura não é útil para entender o mundo e não deve
ser vista como uma ferramenta para significá-lo: em vez disso, busca suprimir a palavra
comum e substituí-la por sua ausência. O filósofo parece ir de encontro à ideia de Sartre, por
exemplo, que admitia uma função moral e utilitária para a literatura, de reconstrução utópica
do mundo através da arte. Blanchot assinala o viés desestabilizador da literatura, de ser o
16

espaço da contradição e negação do mundo. Como nos lembra Couto (2012), foi essa
diferença de pensamento em relação à Sartre que o levou à escrita do ensaio A literatura e o
direito à morte.
Tomando essa direção, junto com todo um grupo de pensadores franceses12, Blanchot
construiu um pensamento único sobre a literatura e sobre o que consiste o fazer literário,
pensamento este que se reflete na sua ficção.

Grande parte de suas criaturas estão diante da dificuldade de escrever, não sabendo
lidar com a questão da autoria (Celui que ne m’accompagnait pas); outras, são
autores demoníacos, destrutivos (Thomas, l’obscur); algumas são autores
fracassados em busca de uma verdade que não existe (Aminadab); um pouco mais à
frente temos narradores-escritores diante da morte e do estrangeiro (L’Arrêt de mort,
L’instant de ma morte e L’Idylle); na outra margem, escritores sem subjetividade que
narram a espera e o esquecimento (L’Attent l’oubli e Au moment voulu); e, em outro
patamar, escritores que relatam a impossibilidade de narrar o outro em toda sua
complexidade (Le dernier homme) (PIMENTEL, 2017, p.13).

É próprio de sua ficção contar o encontro, muitas vezes trágico, do escritor que sente o
chamado da literatura; cada um de seus narradores-personagens encontra-se no ponto
dramático em que escrever passa a ser ir em busca do desaparecimento. Talvez por isso tenha
ele mesmo se tornado, com o passar do tempo, um escritor que se recusava a comparecer a
palestras ou homenagens que lhe eram feitas. Ao abrir O livro por vir nos deparamos com a
seguinte nota: “Maurice Blanchot, romancista e crítico, nasceu em 1907. Sua vida foi
inteiramente dedicada à literatura e ao silêncio que lhe é próprio” (BLANCHOT, 2013).
Blanchot (2011, p.17) escrevia sobre a literatura como sendo um jogo onde, de saída,
os jogadores sabem que vão perder; isso não os impede de jogar. Para o teórico francês, a obra
literária encerra-se em si mesma e convida quem lê e escreve a habitar sua solidão. “O escritor
pertence a uma linguagem que ninguém fala, que não se dirige a ninguém, que não tem centro,
que nada revela” (BLANCHOT, 2011, p.17). Ou seja, não significa que a obra seja
incomunicável, mas quem se dispõe a adentrá-la deve afirmar também essa solidão, por ele
chamada de essencial.
Desde o início de sua obra, Blanchot (2011, p.31) mostrou-se envolvido com a
impossibilidade de escrever e a exigência da escrita herdadas de Mallarmé. Escrever, para
ambos, “é uma situação extrema que supõe uma reviravolta radical” (BLANCHOT, 2011,
p.31). Em diálogo com seus contemporâneos, o crítico francês soube encontrar em cada livro
sobre os quais falava uma fresta para entrever o cerne invisível ao redor do qual a literatura
acontece. “Um livro, mesmo fragmentário, possui um centro que o atrai: centro esse que não é

12 Georges Bataille, Roland Barthes, Emmanuel Levinas, Jacques Derrida, Michel Foucault e Jean-Luc Nancy,
para citar alguns.
17

fixo mas se desloca pela pressão do livro e pelas circunstâncias de sua composição”
(BLANCHOT, 2011, p.7). Esse centro pode se deslocar, mas nunca deixa de ser o mesmo,
incerto, imperioso; para escrever um livro, deve-se ignorá-lo. O sentimento de tocar esse lugar
é a ilusão de tê-lo atingido. Tanto os ensaios de crítica literária quanto a ficção de Blanchot
parecem ser a tentativa de evidenciar esse movimento em que, ao mesmo tempo, a obra busca
se realizar e se dirige ao ponto onde prova a sua impossibilidade.
Leyla Perrone-Moisés (1993, p.93) nos diz que a obra de Blanchot é uma obra de
crítica-escritura. As noções que apresenta têm um sentido intransitivo, não dizem nada além
delas mesmas. Nesse jogo discursivo, a literatura é vivida como um drama ontológico cujo
segredo de decodificação é tarefa de quem escreve. No ensaio A literatura e o direito à morte
(BLANCHOT, 2011, p. 311-351), um dos seus textos mais importantes, ele nos diz que a
literatura começa no momento em que se torna sua própria questão. A pergunta, no entanto,
não deve ser confundida com as inquietações ou escrúpulos de quem escreve: é na tessitura da
página escrita, no movimento do fazer literário, que a pergunta também se engendra. Talvez o
escritor nada saiba sobre a pergunta, e só diante da abordagem de um leitor é que essa questão
ganha corpo. É na linguagem que se tornou literatura que repousa silenciosamente a
indagação endereçada à linguagem feita por quem escreve.
Elena Ferrante também faz referência a esse ponto para onde a obra se direciona
quando fala sobre “o ato de escrever como uma longa, extenuante e prazerosa sedução”
(FERRANTE, 2017, p.73). As palavras trabalhadas no texto literário, as histórias contadas, os
personagens aos quais se tenta dar vida através da narrativa, “são apenas instrumentos com
que circundamos a coisa fugidia, inominada e sem forma que pertence apenas a nós mesmos e
que, no entanto, é uma espécie de chave para todas as portas” (FERRANTE, 2017, p.73), a
verdadeira razão que leva uma escritora a passar tanto tempo batendo em teclas, enchendo as
páginas. A pergunta que cada história guarda é se aquele é o movimento certo para “agarrar
aquilo que jaz em silêncio” (FERRANTE, 2017, p.73), a coisa que quando capturada estende
suas garras pelas páginas e dá vida ao inanimado. Segundo Ferrante, a resposta para isso é
incerta, mesmo quando se termina a escrita de um livro. Muitas vezes é difícil identificar o
que exatamente aconteceu nas linhas, entre as linhas; e é nesse não-saber que está o mistério
da literatura e o desespero de quem escreve.
O desvanecimento da imagem de Blanchot parece também encenar algo que já se
encontra presente em sua escrita. Efêmera, de difícil apreensão e leitura, nos faz pensar na
desmarginação. Como uma tempestade de neve que cai durante a noite, silenciosa, e acorda
as ruas e os telhados com uma paisagem totalmente diferente da que tinha sido vista no dia
18

interior. Diferente da chuva que deixa um rastro de barulho atrás de si, numa tempestade de
neve tudo muda sem que nada ouçamos. A escrita de Blanchot parece operar assim, inevitável
e silenciosa.
Derrida13 disse que para falar de Blanchot é preciso envolver os afetos. Até porque seu
texto não é do tipo pelo qual passamos sem que ele nos deixe marcas. Foucault (1999) disse
que

Blanchot encontra-se não somente fora de todos os livros de que fala, mas fora de
toda literatura (…) Desliza constantemente para fora da literatura, a cada vez que ele
fala dela. É alguém que nunca está dentro da literatura, mas que se situa
completamente fora. (FOUCAULT, 1999, p.231-232)

Esse estar fora da literatura parece nos encaminhar para um grau de indeterminação
que torna difícil afirmar qualquer coisa. Ele dizia que toda palavra é talvez. A única forma de
acompanhar sua escrita parece ser repetir o movimento de indefinição, escrever junto com ele
o talvez – na possibilidade de entrever, por uma fresta, a desmarginação.
Blanchot (2011, p.312) considera a potência da pergunta sobre o fazer literário como
algo que irrompe do interior do texto; questão que pode ter como resposta apenas o murmúrio.
Quem lê e escreve aceita participar do jogo de dissolver-se para que a experiência da
literatura possa emergir numa região em que categorias como leitor e escritor não fazem mais
sentido. Se há um anúncio do desaparecimento do autor, nada tem a ver com a ideia de um
escritor separado do mundo, trancado num quarto sendo visitado pela inspiração; o escritor
desaparece para dar lugar à linguagem. “A literatura se edifica sobre suas ruínas”
(BLANCHOT, 2011, p.312), nega-se a si própria e é através da negação que ela se revela. A
literatura acontece quando realiza sua própria irrealidade.

Esta dissertação propõe pensar a criação literária na série napolitana de Elena Ferrante
colocando como eixo de convergência a noção de desmarginação que decanta da ficção como
um operador conceitual. O diálogo principal se dará com a teoria de Maurice Blanchot a
respeito da literatura, principalmente com os livros A parte do fogo, O espaço literário e O
livro por vir. Começamos a esboçar a conversa entre Ferrante e Blanchot nesta introdução,
simulando um jogo de comparação no que sabemos sobre suas biografias, que pretendemos
manter no decorrer do trabalho. Jogo este que, em alguns momentos, pode parecer
desproporcional, mas que sentimos abertura em fazê-lo pelo estilo que encontramos em suas
obras. Apostamos na ancoragem nos pontos de intersecção encontrados entre os pensamentos
13
O filósofo Jacques Derrida fala sobre Blanchot no documentário Maurice Blanchot (1998), disponível na
plataforma youtube, no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=QTFUIYtiHXQ
19

de Ferrante e Blanchot, principalmente quando ambos falam sobre o que está em causa nos
movimentos da criação literária.
O filósofo francês escreveu e produziu literatura em um século marcado pelas guerras.
Instaurou uma discursividade no que diz respeito à literatura que produz diversos trabalhos
acadêmicos e parece cada vez mais atual. Ferrante parece seguir o por vir desses
acontecimentos, localizando o começo da série napolitana nos anos 50, em um bairro
periférico onde a violência predomina e o fantasma do fascismo assola as personagens nas
figuras das famílias que comandam a máfia no lugar. É uma escritora que discute o fazer
literário e os impasses que são colocados pela questão da autoria. Na série napolitana, nos
coloca a pensar sobre um tema que obseda a literatura: a narrativa que encena o próprio ato de
narrar, uma escrita que traz à tona a pergunta sobre o que é escrever. Na desmarginação
encontramos um lugar para pensar essas questões e este trabalho é tecido para circundar o que
essa palavra tem a nos dizer sobre a criação literária.
No capítulo que segue a esta introdução, intitulado A paixão pela leitura, notas sobre o
método, colocamos algumas referências sobre a metodologia utilizado na escrita desta
dissertação. Há uma breve apresentação do percurso da pesquisa, priorizando os caminhos
que foram trilhados para a escolha da série napolitana e da obra de Maurice Blanchot como
protagonistas deste trabalho. Sobre a utilização dos conceitos que tomamos da teoria
psicanalítica, dispensamos um cuidado especial, no sentido de não incorrer no equívoco de
uma psicanálise aplicada à literatura. Não se trata de interpretar a série napolitana ou tentar
encaixar a desmarginação em alguma patologia clínica, mas de colocar lado a lado, pelo viés
de uma troca de correspondências entre práticas singulares da palavra a criação literária, a
teoria da literatura e a psicanálise.
Depois das notas sobre o método, no capítulo “Escrever é se vingar da perda”
deixamo-nos guiar pelos episódios da série napolitana que fazem referência à criação literária,
estabelecendo uma reflexão sobre o que gera o movimento da escrita de Elena Greco em A
amiga genial. O desaparecimento de Lila Cerullo, narrado ainda no prólogo, nos permitiu
pensar sobre a relação entre a perda e a criação literária, o vazio deixado pela ausência de Lila
como um disparador do movimento narrativo. Há uma impossibilidade de narrar o
desaparecimento que está no surgimento do próprio ato de narração e, nesse sentido, há uma
correspondência entre o prólogo de A amiga genial e a novela O instante da minha morte de
Maurice Blanchot. O vestígio é um significante que se destaca no prólogo assim como nas
primeiras questões sobre o inconsciente formuladas pela psicanálise; é no rastro dele que
espraiamos uma relação entre o que gera a narrativa da série napolitana, o estudo que Freud
20

faz dos traços no aparelho psíquico e o que Lacan discute, através do romance Robinson
Crusoé de Daniel Defoe, sobre o movimento de ausência-presença-ausência.
“Esse quarto vazio em que tudo permanece” é o capítulo para aproximarmos o
acontecimento na infância da narradora dos livros, Elena Greco, com o que Blanchot chama
de “coração malicioso da narrativa”. Na série napolitana há um jogo enigmático que se
estabelece quando a amizade entre Lila e Elena começa, no momento em que as bonecas das
duas desaparecem no porão da casa de dom Achille. Esse jogo tem a ver com a construção da
narrativa, em uma estrutura de mise en abyme, na qual entra em cena a autora Elena Ferrante
como uma personagem cuja biografia podemos acessar através do livro Frantumaglia: os
caminhos de uma escritora. No mesmo capítulo há uma interlocução entre o que irrompe na
história da série napolitana, gerando um efeito de estranheza, o texto O inquietante de Freud e
o que a psicanálise nos diz sobre o desamparo. Conversa esta que será fértil para pensarmos,
posteriormente, a relação entre a criação literária e a desmarginação.
No capítulo 5, “Aventura de registrar a fenda”, pensamos a criação literária como um
movimento que se dá a partir da incursão de Lila e Elena no porão e na instauração do
mistério que está ligado aos acontecimentos posteriores do romance. Depois do
desaparecimento das bonecas, a literatura entra na vida das nossas personagens através do
livro Mulherzinhas de Louisa May Alcott; entrada esta que gera em Lila o desejo de escrever
seu próprio livro. A proposição de Freud em Além do princípio do prazer, de uma passagem
no jogo do fort da de posição passiva do sujeito para posição ativa, nos faz pensar no
movimento da escrita de Elena como uma passagem da posição de alienação em que se vê
fascinada em relação à Lila para uma posição ativa de sujeito. Esta passagem será importante
quando entra em cena a desmarginação, a contrapalavra. Na história da tetralogia, a
desmarginação é uma sensação que Lila experimenta, mais de uma vez, de perder as margens,
de dissolver as fronteiras entre si e seu entorno, e é nas pegadas da relação que se estabelece
entre a desmarginação e o texto literário que seguiremos. Vislumbramos a perda das margens
descrita por Lila como uma brecha que se abre para a criação literária e permite à narradora a
passagem do Eu ao Ela, condição colocada por Blanchot para que a escrita aconteça. No fim
do capítulo há um diálogo entre a desmarginação e o ensaio que abre O livro por vir,
intitulado O canto das sereias.
“Conclusão, o mar aberto” é o momento final da dissertação, onde retomaremos os
elementos trabalhados para chegar a uma imagem do que Elena Ferrante coloca em causa na
série napolitana quando pensa a desmarginação e a criação literária. Veremos a possibilidade
de pensar o texto como um corpo para a autoria desmarginada.
21

As noções aqui trabalhadas têm um caráter fugidio, de deslizamento e


desaparecimento, e nosso percurso se dará no movimento de tentar vislumbrar algo que, por
vezes, insiste em escapar. Nossa vontade é a de contribuir com temáticas para o início de um
trabalho sobre a obra de Elena Ferrante na universidade. Caminhamos pelas bordas da criação
literária, com a escrita em desmarginação, para articular um pensamento que tem como
intuito alargar as malhas do pensamento teórico através de uma obra ficcional. Um
pensamento que seja como as leituras propostas por Blanchot: uma busca pelo ponto de
passagem do Eu ao Ela, busca pelo movimento em que a criação literária se dá a ver.
22

2 A PAIXÃO PELA LEITURA, NOTAS SOBRE O MÉTODO

Comovo-me em excesso, por natureza e por ofício.


Acho medonho alguém viver sem paixões.
Graciliano Ramos

Há sempre um mistério que antecede a abertura de um livro pela primeira vez. Seja
numa biblioteca, numa livraria, na passagem das mãos de uma amiga que decidiu lhe
emprestar um volume dizendo ‘você vai gostar, esse livro é a sua cara’, há um instante em que
o tempo se ausenta diante das (im)possibilidades que as palavras ali enredadas podem criar.
Quem lê está sempre sujeito a entrar nesse jogo, e existem diversas formas de aproximação
com o livro; formas que dizem sobre a singularidade de cada leitor ou leitora. Ouvi a história
de uma leitora que tinha começado a ler em um esconderijo. Quando menina, na casa de sua
infância, existia uma estante que estava sempre com um dos nichos vazio. O lugar era do
tamanho exato de seu corpo aos 6 anos de idade. Ela entrava e colocava uma almofada na
frente para que só uma fresta de luz passasse, o suficiente para iluminar as letras, e pudesse
assim entrar no “mundo do livro”. A mãe de vez em quando entrava na sala para ver o que ela
estava fazendo e fingia que não estava enxergando a almofada fora de lugar. Quando a mãe
entrava, a menina prendia a respiração para não ser obrigada a fazer qualquer outra coisa além
de ler. Hoje ela conta que consegue ler em ambientes abertos, mas prefere mesmo estar num
quarto, com uma luz ao lado da poltrona, suficiente para iluminar a página. É por essa fresta
que a leitura começa.
No ensaio A paixão pela leitura, Virginia Woolf (2015, p.14) nos diz que a principal
obrigação de quem lê é aproximar-se do texto pela primeira vez como se o estivesse
escrevendo. Para que isso aconteça, é necessário sentar no banco dos réus e não na poltrona
do juiz. “Devemos, nesse ato de criação, não importa se bom ou ruim, ser cúmplices do
escritor. Pois cada um desses livros, não importando o gênero ou a qualidade, representa um
esforço para criar algo” (WOOLF, 2015, p.14). Tentar entender o que o escritor está fazendo,
desde a primeira palavra que compõe a primeira frase até a palavra que escolhe para terminar
o livro é, portanto, a primeira obrigação de quem lê.

Os livros são organismos complexos, as linhas que nos perturbaram profundamente


são o momento mais intenso de um terremoto interno que o texto provocou em nós,
como leitores, desde as primeiras páginas: assim, ou localizamos a falha geológica e
nos transformamos nessa falha, ou as palavras que pareceram escritas para nós
somem e, caso sejam encontradas, parecem banais, ou até mesmo lugares-comuns
(FERRANTE, 2017, p.15).
23

É isso que exigem os escritores e escritoras: que nos deixemos vergar e nos quebrar,
que nos joguem violentamente de um lado a outro. Quando se trata de quem escreve em um
tempo contemporâneo 14 ao nosso é preciso usar de toda imaginação e compreensão se
quisermos tirar o melhor daquilo que é oferecido. Segundo Woolf (2015, p.14), só depois de
sentar no banco dos réus, sofrer todas as torções, é possível sentar na poltrona do juiz para
decidir se o texto é bom ou ruim. Um processo não é mais fácil que o outro, mas ambos são
necessários para que a leitura assente e tenhamos a possibilidade de falar sobre ela.
O processo de julgar e decidir, apesar de prazeroso, é cheio de dificuldades. Opiniões
exteriores ajudam, mas não se pode esperar muito delas quando o livro que tanto nos
emocionou acabou de ser lido. Só depois de formarmos nossa opinião e estarmos em
condições de defender o julgamento que fizemos, estaremos também preparadas para
confrontá-las com a de outros, ou até mesmo com o nosso próprio pensar tecido a partir de
outra leitura. A leitura feita fica pendurada em um guarda-roupa, como um casaco de inverno
depois de uma temporada muito fria. Assim, por exemplo, se acabamos de ler Mrs Dalloway
de Virginia Woolf, nós o pegamos e deixamos que se mostre contra a forma que está
pendurada desde a leitura de Madame Bovary, de Gustave Flaubert. “Colocamos os dois lado
a lado e, imediatamente, as silhuetas dos livros aparecem recortadas uma contra a outra tal
como o canto de uma casa aparece recortado contra a plenitude da lua cheia” (WOOLF, 2015,
p.14). As características de Flaubert e Woolf são contrastadas – por que ele abordou dessa
forma e ela dessa outra? Por que as emoções suscitadas pelas leituras são tão diferentes,
apesar de não saber distinguir se há uma melhor que a outra? O que estava acontecendo no
mundo quando esses livros foram escritos afetou sua forma? E assim por diante… as
perguntas são infinitas. Ler pela primeira vez um livro é escrever junto sua história.

Piglia (2006) nos diz que há sempre algo de inquietante, ao mesmo tempo estranho e
familiar, na imagem de alguém que lê de maneira concentrada. Uma estranha intensidade
parece emanar, e o sujeito que se isola para a leitura dá a impressão de estar separado da
realidade. Borges (apud Piglia, 2006) vai nos trazer a imagem do leitor perdido na biblioteca,
alguém que passa de um livro a outro procurando algo que não sabe ao certo o que é e muito
menos como perdeu; “o leitor vai da citação para o texto como série de citações, do texto para

14 Agamben (2009) nos esclarece que o autor contemporâneo é aquele que “mantém fixo o olhar no seu tempo,
para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (p.62). Contemporâneo é aquele capaz de escrever “mergulhando
a pena nas trevas do presente”, pois só através do obscuro é possível gerar inquietação, provocar o desassossego.
Mas, é importante ressaltar, o movimento de perceber o escuro deve também ser capaz de perceber uma luz que
“dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós” (AGAMBEN, 2009, p.65).
24

o volume como série de textos, do volume para a enciclopédia, da enciclopédia para a


biblioteca” (PIGLIA, 2006, p.15). Habita um espaço fantástico que não tem fim porque supõe,
desde o começo, a impossibilidade de encerrar a leitura diante de tanta coisa que ainda falta
ler. Mas isso não impede o movimento, pelo contrário: é essa ausência que permite a
continuidade da leitura.

Tlön, Uqbar, Orbis Tertius – o conto de Borges que define sua obra – começa com
um texto perdido, um artigo da enciclopédia; alguém o leu, mas não consegue mais
encontrá-lo. O que irrompe não é o real, mas a ausência, um texto que não se tem e
cuja busca leva, como num sonho, ao encontro de outra realidade. (PIGLIA, 2006,
p.16)

A falta é assimilada ao que foi subtraído, alguém está de posse porque alguém o
apagou. Trata-se de um segredo no sentido etimológico, scernere significa ‘pôr à parte’,
‘esconder’. Uma página sumiu, a carta foi roubada, o sentido vacila e dessa vacilação emerge
a literatura. A versão contemporânea da pergunta “o que é um leitor?” instala-se nesse lugar
de quem lê perante o infinito e a proliferação: o leitor perdido em uma rede de signos.
Foucault (apud PIGLIA, 2006) dizia que o imaginário se aloja entre o livro e a lâmpada – a
leitora de que tivemos notícia no começo deste capítulo não sabia disso, mas intuiu a partir de
sua experiência. Para Borges (apud PIGLIA, 2006), o imaginário se instala no espaço entre os
livros, em meio à sucessão de volumes cuidadosamente colocados nas estantes de uma
biblioteca, num universo de livros sem fim.
Nessas condições, só é possível reler os livros, ler de outro modo, fazer do texto um
quebra-cabeça, usar a liberdade de leitura para dispor dele a seu bel-prazer. Há uma
arbitrariedade e uma inclinação deliberada para subverter a ordem da leitura; ler mal quem
sabe, pulando as páginas pouco interessantes para chegar logo no final; ler fora do lugar,
promover diálogos impossíveis. Se eu disponho da biblioteca posso, por exemplo, imaginar
um encontro entre Homero e o próprio Borges. Ou pensar, enquanto leio, na biblioteca que
aquela autora imaginou para escrever, nos livros da sua estante. Essa é a marca da autonomia
absoluta do leitor, segundo Borges, e o principal efeito de ficção produzido pela leitura. Piglia
(2006, p.16) nos diz que o maior ensinamento de Borges foi o de ter passado a certeza que a
ficção não depende apenas de quem a escreve, mas também de quem a lê.

A ficção também é uma posição do intérprete. Nem tudo é ficção, mas tudo pode ser
lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo
como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura.
(PIGLIA, 2006, p.16).
25

Esta dissertação foi escrita da paixão do encontro com duas leituras, no corpo que se
articulou na experiência, e do trabalho que foi preciso fazer para testemunhar algo desse
encontro. Primeiro, a leitura de Maurice Blanchot, que foi como um arrebatamento, tanto pela
linguagem poética encontrada na teoria, como pelos questionamentos que ele fazia sobre a
escrita e a literatura, que proporcionaram um alargamento do que eu já me perguntava como
leitora, escritora. Enveredando pelo caminho proposto n’O Espaço Literário (2011) e nas
bifurcações das Conversas Infinitas (2010), descobrimos um fio que ligava aquelas palavras
às da psicanálise. Um murmúrio que abre em cada fala uma voragem e convida a nela
desaparecer. O impossível que não cessa de não se escrever. Ruth Silviano Brandão (1996),
em um trabalho que investiga a relação entre psicanálise e literatura, nos diz que “são várias
as questões que se levantam a propósito de leituras de textos literários que se valem de
conceitos psicanalíticos, o que indica talvez uma inquietação em relação à própria psicanálise”
(BRANDÃO, 1996, p.26). Foi essa inquietação que o texto de Blanchot provocou.

Em 2015 os livros de Elena Ferrante começaram a ser lançados no Brasil. Andando


pelos corredores da livraria, buscava algo que me ajudasse a passar um tempo como
acompanhante de uma pessoa querida que se encontrava hospitalizada. Já tinha ouvido falar
vagamente da escritora através da menção em um blog de literatura que comemorava sua
chegada ao país, mas não sabia do que tratava a série e, muito menos, o livro em questão. Na
capa, mulheres com maiôs coloridos, do tipo usado nos anos 50, em um fundo azul, parecem
se proteger do sol. Seus braços estão cruzados sem se tocar. Detalhe que só percebi depois: os
chapéus que elas usam cobrem os olhos e nos impedem de ver seus rostos. A vivacidade das
cores me fez pensar que aquela seria uma história leve, ideal para passar longas horas no
ambiente sem cor do hospital. Qual não foi minha surpresa ao ser atingida, logo nas primeiras
páginas, pela violência e crueza daquela narrativa.
Em 2017, ao ingressar no mestrado, o último volume da série napolitana acabara de
ser lançado. O anteprojeto de pesquisa que apresentei para o processo seletivo ainda não era
sobre Elena Ferrante mas já falava sobre a escrita, o espaço literário, os mistérios da criação
literária; tratava-se de um alargamento do tema que abordei na monografia, um diálogo entre
a poesia de Ana Cristina Cesar e a psicanálise atravessado pela sublimação. No entanto, na
leitura de História da menina perdida, um parágrafo nas páginas iniciais do livro chamou
minha atenção. Cito um trecho dele:

Não devo seguir o primeiro caminho, no qual – já que a própria natureza de nossa
relação impõe que eu só possa chegar a ela passando por mim – eu acabaria, caso me
26

colocasse de fora, encontrando cada vez menos vestígios de Lila. Nem devo, por
outro lado, seguir o segundo. De fato, o que ela com certeza mais apoiaria é que eu
falasse de minha experiência cada vez mais profusamente. Vamos – me diria –, nos
conte que rumo sua vida tomou, quem se importa com a minha, confesse que ela não
interessa nem mesmo a você. E concluiria: eu sou um rascunho em cima de um
rascunho, totalmente inadequada para um de seus livros; me deixe em paz, Lenu,
não se narra um apagamento. (HMP, p. 15)

Fui arrebatada pelo parágrafo e pela afirmação tão categórica de Lila, feita através de
Lenù: Eu sou um rascunho em cima de um rascunho, totalmente inadequada para um de seus
livros; me deixe em paz, Lenù, não se narra um apagamento. Os livros somam mais de 1500
páginas e começam a ser narrados quando Lila decide desaparecer. É o vazio deixado por sua
ausência que faz a narradora vingar sua escrita, retomar antigas memórias e contar uma
história tão complexa. Podemos dizer que a série napolitana é uma obra que procura jogar luz
sobre a narrativa de amizade entre duas mulheres, algo raro na historiografia literária, ao
mesmo tempo em que tenta desvendar o enigma do desaparecimento de Lila. Nesse processo
Lenù, a nossa narradora, exprime através das palavras o impensável da morte, da violência, da
dor, do desvario, enquanto tece uma reflexão sobre a escrita, uma vez que acompanhamos ali
também o seu tornar-se escritora. Como, então, diante de tudo isso, Lila diz que não se narra
um apagamento? A pergunta que surgiu e foi abordada no projeto de qualificação no início de
2018 dizia respeito a essa inquietação, diante da pergunta de Maria Gabriela Llansol (2011):
Como separar a arte de compor da arte de desaparecer?... surgiu a pergunta que guiou aquele
momento da escria: Como narrar um desaparecimento?

Em 2018, a escrita tomou outros rumos, junto com os caminhos apontados na


qualificação. Na Conversa Infinita, Blanchot (2010) diz que a busca seria da mesma espécie
do erro. Errar é voltar e retornar, abandonar-se à magia do desvio. A busca levou a permanecer
na pergunta sobre a criação literária e a desmarginação surgiu como um operador para nos
acompanhar nos questionamentos sobre o fazer literário. Blanchot (2013, p.76) se pergunta:
“Mas como buscar no lugar certo quando se ignora até mesmo o que se procura?” e parece
apontar com esse questionamento o movimento de quem escreve. Talvez seja interessante
retomar a etimologia da palavra grega methodos, formada por dois radicais: meta (depois) e
hodos (jornada), significando perseguição, busca por algo. Ainda que pareça trivial falar disso,
o significado de método no dicionário nos aponta para algo que é central no trabalho aqui
escrito: “o caminho pelo qual se chega a um determinado resultado, ainda que esse caminho
não tenha sido fixado de antemão de modo deliberado e refletido” (FERREIRA, 1975, p.919
27

apud CARVALHO, 2002). Algo que transparece no estilo da escrita e até no título, é do
assombro que estamos falando e da potência que a literatura tem de fazer surgir esse assombro.
O texto literário questiona a psicanálise desde Freud e, muitas vezes, é através desse
questionamento que ela se dá a ver. Porém, como afirma Chemama (2002), muitas vezes os
analistas procuram a literatura como um lugar para fazer funcionar seu sistema, interpretando
a produção do escritor da mesma maneira que se interpreta um sintoma neurótico. Esse não
parece ser o posicionamento de Freud, pelo menos não nos primeiros delineamentos da
relação entre psicanálise e literatura. Em 1906, quando escreve o ensaio intitulado O delírio e
o sonho na Gradiva 15, Freud (1906/2015) inicia dizendo que os poetas e romancistas são
preciosos aliados para a psicanálise, uma vez que “no conhecimento da alma são nossos
mestres, homens vulgares, pois se banharam nas fontes que ainda não tornamos acessíveis à
ciência” (FREUD, 1906/2015, p.16). O texto se propõe a demonstrar que os sonhos de uma
personagem da ficção admitem as mesmas interpretações que os sonhos das pessoas reais, e
que, portanto, na produção da literatura atuam os mesmos mecanismos do inconsciente já
conhecidos através do trabalho do sonho. Há também no ensaio uma análise pormenorizada
dos delírios do protagonista, entremeada com explicações de alguns conceitos da psicanálise.
Portanto, alerta Chemama (2002), é inútil interpretar Édipo, uma vez que é antes o
Édipo que nos permite entender o que diz todo sujeito. No ensaio sobre a Gradiva, por
exemplo, Freud parece manter a vontade de que com o estudo da literatura pudéssemos obter
um pouco mais de compreensão sobre a natureza da atividade do criador literário16, apontando
que é no campo do inconsciente que se dá a criação. No entanto, não significa que, através da
análise da obra literária, é possível chegar ao inconsciente do artista; deduz-se, a partir da
aproximação de Freud, é que há algo na experiência da escrita que se assemelha ao processo
de análise. Bebe-se na mesma fonte, trabalha-se com o mesmo objeto – a palavra –, cada um
de acordo com seu método, para alcançar resultados semelhantes.
No texto Homenagem feita a Marguerite Duras do deslumbramento de Lol V. Stein,
Lacan (2003) retoma, de outro modo, o que Freud diz na Gradiva. A metodologia do diálogo
entre psicanálise e literatura adquire, através do olhar do psicanalista francês, uma ética pela
qual o campo psicanalítico se acha melhor balizado. Para ele, a única vantagem que o analista

15 O ensaio é um estudo sobre a obra Gradiva de Wilhelm Jensen, publicado em 1902.


16 O termo utilizado por Freud em alemão é Dichter, comumente traduzido como poeta ou escritor, mas que
parece abarcar também a criação literária. Em nota à sua tradução do Manuscrito N, Anexo à Carta a Fliess, de
31 de maio de 1897, Chaves (2016) fala sobre a controvérsia em torno da passagem para o português das
palavras alemãs Dichter e Dichtung. Segundo ele, Dichtung refere-se à criação artística, criação poética em geral
e não a um gênero literário específico, podendo referir-se também especificamente à poesia. De maneira
semelhante, Dichter ou pode ser o criador literário em geral ou uma figura específica, a do romancista, contista,
novelista, mas, principalmente, a do poeta.
28

teria o direito de tirar de sua posição é a de lembrar-se de que, em sua matéria, a arte sempre
precede a psicanálise e, portanto, não deve ele fazer-se de psicólogo em um caminho aberto
pelo artista.
Chemama (2002, p.55) tensiona as questões trazidas por Freud e Lacan no que diz
respeito à relação da psicanálise com a literatura afirmando que, muitas vezes, estudos
psicanalíticos consagrados a escritores caem no terreno da interpretação. No ensaio O
demônio da interpretação, o psicanalista cita a obra de Marie Bonaparte sobre Edgar Allan
Poe, como uma obra comprometida pela certeza do especialista, sempre pronta a negligenciar
o que o autor está dizendo se isso destoar do argumento estabelecido a priori. “Desse modo, o
autor é incessantemente contestado em nome de um saber já adquirido, de um saber orientado
para a biologia que tenderia a concluir-se em um rótulo nosológico” (CHEMAMA, 2002,
p.55). A obra de Marie Bonaparte parece inclinar-se a estabelecer um diagnóstico para o autor
a partir de sua obra, esterilizando a pesquisa, e reduzindo qualquer descoberta a uma
interpretação reducionista.
A disposição em encaixar a obra literária em um diagnóstico já estabelecido traz uma
perda para a pesquisa naquilo que a literatura pode acrescentar às teorias psicanalíticas.
Também há uma perda no trabalho da análise se, quando um paciente chega, o analista tenta
colocar tudo que ele diz em recipientes da teoria. Para Chemama (2002), as formações do
inconsciente não devem ser traduzidas por um código psicanalítico; antes disso, se constituem
como um enigma, acidentes do sentido: o sujeito, que acreditava saber o conteúdo da sua fala,
dá-se bruscamente conta de que não sabe sobre o que está dizendo. Ele pode, quando isso
acontece, tentar compreender o que o fez tropeçar, dar um sentido ao ato falho ou ao
esquecimento. No entanto, a experiência mais autêntica está no deslizamento. O analista faz
recair o acento sobre aquilo que, embora mais visível, não é percebido, aquilo que faz corte,
buraco, no discurso.

O analista toma o sujeito pela palavra. Dizemos, então, que ele pode tomar o texto à
letra. Ele não procurará ali um sentido, profundo, essencial, único, mas estará atento
ao próprio funcionamento da escrita. A interpretação, se conservarmos esse termo,
não será uma metalinguagem, remetendo o discurso de um escritor a um saber já
constituído. Ela será corte, escansão operada sobre os traços da própria escrita, que
permite fazer sobressair o que nela já está. (CHEMAMA, 2002, p. 65)

É no deslize que acontecem as descobertas e, nesse sentido, o que diz a literatura


possui algo que parece um saber irredutível a outros dizeres. Uma elaboração sistemática do
caminho ou tentar encaixar a obra literária em uma teoria já estabelecida pode, a depender de
quem escreve, tornar infrutífero o acesso. Assim, neste trabalho, apostamos na ficção como
29

um pensamento conceitual capaz de colocar em cifras enigmas que ocupam os psicanalistas,


desdobrando o que nos traz a desmarginação quando dela nos aproximamos, acompanhadas
por uma pergunta acerca do que envolve a criação literária. Parafraseando Walter Benjamin
(apud OLIVEIRA, 2011), temos pouco a mostrar e nada – ou quase nada – a dizer. A atenção
aqui dedicada à literatura se estabelece nesse pouco, quase, com o cuidado que as teorias
críticas e psicanalíticas não sejam um ruído a abafar o som do texto literário. Permanecemos
nas margens do texto, esperando que algo dele acene e permita a nossa entrada (OLIVEIRA,
2011).
30

3 “ESCREVER É SE VINGAR DA PERDA”

Só vagamente tomava conhecimento da espécie


de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse
criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora
de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser difícil
escrever esta história. Apesar de eu não ter nada
a ver com a moça, terei que me escrever todo
através dela por entre espantos meus. Os fatos
são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É
o sussurro o que me impressiona).
Clarice Lispector

O prólogo da série napolitana chama-se Apagar os vestígios e demorar nessa primeira


aproximação com a obra faz-se necessário. Trata-se de um começo que coloca em questão a
ausência e a presença, em um jogo de sedução que parece constituir o fazer literário.
“Hoje de manhã Rino me ligou, pensei que ele quisesse mais dinheiro e me preparei
para negar. No entanto, o motivo da chamada era outro: a mãe dele tinha desaparecido” (AG,
p.13). Essas são as frases que iniciam o prólogo e nos introduzem na história. Depois há uma
pergunta sobre o tempo de desaparecimento e, quando a narradora descobre que ela já está
desaparecida há duas semanas, parece entender algo que escapava à compreensão de Rino:
sua mãe não quer ser encontrada. É com esse conselho que a ligação termina. No trecho
seguinte, temos a apresentação de Rafaella Cerullo, melhor amiga da narradora, por ela – e,
somente por ela – chamada de Lila. Sabemos então o que Elena pensa de seu desaparecimento:

Faz pelo menos trinta anos que ela me diz que quer sumir sem deixar rastro, e só eu
sei o que isso quer dizer. Nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de
identidade, o sonho de refazer a vida noutro lugar. E jamais pensou em suicídio,
incomodada com a ideia de que Rino tivesse que lidar com seu corpo, cuidar dele.
Seu objetivo sempre foi outro: queria volatilizar-se, queria dissipar-se em cada
célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu. E, como a conheço bem –
ou pelo menos acho que conheço –, tenho certeza de que encontrou o meio de não
deixar sequer um fio de cabelo neste mundo, em lugar nenhum. (AG, p.15)

Apesar de ter aconselhado Rino a não ir atrás de Lila, Elena persegue o seu rastro.
Manda e-mails, abre gavetas e caixas de metal onde guardava coisas de todos os tipos, até se
dar conta que não possui objetos que pertenceram ou foram feitos por Lila, nada que traga a
sua imagem: nem uma fotografia, carta ou lembrança. “Será possível que em todos esses anos
31

ela não me tenha deixado nada de seu ou, pior, que eu não tenha querido guardar nada dela?”
(AG, p. 15), se pergunta, e imediatamente responde: é possível. Uma resposta que inquieta a
leitura e nos dá o primeiro vislumbre da relação entre as duas. Elena volta a ligar para Rino e
confirma que não apenas sua busca foi em vão, também na casa dele nada sobrou: não há
resquício da passagem de Lila pelo mundo a não ser a lembrança dos que com ela conviveram.
O filho traz um detalhe importante: ela recortou a própria imagem das fotos em que eles
apareciam juntos.
Elena se irrita e diz que, como sempre, Lila havia exagerado: “Estava extrapolando o
conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também apagar toda a vida que deixara
para trás” (AG, p.17). A raiva diante daquela constatação faz com que Elena ligue o
computador com um propósito: escrever cada detalhe daquela história, tudo que lhe ficou na
memória.
É a partir da ausência deixada por Lila que Elena escreve, como se estivesse a
embalsamar o vazio deixado pelo seu corpo com as palavras. Os livros que temos em nossas
mãos e estamos prestes a desbravar parecem a tentativa da narradora de levantar um túmulo
através da escrita, algo a que Lila se negou quando decidiu apagar-se sem deixar vestígios.
Jeanne-Marie Gagnebin (2014, p.14) nos lembra da proximidade entre o túmulo e a escrita:
“se o túmulo é um signo (sèma) construído com pedras, o poema é também um signo (sèma)
de palavras; ambos têm por tarefa lembrar aos vivos de amanhã a existência dos mortos de
ontem e de hoje” (GAGNEBIN, 2014, p.14). Desde os textos que fundaram a literatura
ocidental 17 , a relação entre morte e escrita existe, e é enfatizada na narração como uma
maneira de evitar o esquecimento e criar a ilusão de uma imortalidade coletiva. Os traços
gravados no túmulo encontram uma expansão na escrita, transformando a função fúnebre de
dizer a morte e a ausência dela decorrente na forte presença do canto poético.

17 Gagnebin (2014) traz a Ilíada e a Odisseia para enfatizar essa relação entre escrita e morte. As narrativas
tanto podem ser lidas como a história da ira de Aquiles e das aventuras de Ulisses, “mas também como uma
teoria poética sobre a força, sobre o poder da palavra poética” (GAGNEBIN, 2014, p.14-15). Através de Aquiles,
a Ilíada encena o paradigma que vai constituir a tradição grega e ocidental: ou morrer velho, com a casa cheia de
filhos e netos, modelo de uma vida feliz que não seria lembrada pela posteridade, ou morrer jovem, no auge da
beleza, em uma batalha heróica que será lembrada através do canto poético por todas as gerações futuras.
Aquiles escolhe a glória, pois só assim terá acesso à imortalidade através da palavra, uma sobrevivência não do
corpo, mas da poesia. Ele morre mas permanece vivo numa luta contra o fim biológico inevitável. Na Odisseia, a
relação entre escrita e morte acontece através da transmutação do aventureiro em narrador-poeta que sabe contar
histórias e encantar quem o ouve. Ulisses é o mestre do artifício e do ardil através das palavras, suas histórias
comovem e convencem quem as ouve. O núcleo da Odisseia, que exploraremos melhor junto com Blanchot no
decorrer deste trabalho, é a descida do marinheiro ao Hades para confrontar a morte e os mortos e a vitória sobre
as sereias. Ou seja, “na transfiguração da magia maléfica do canto em potência artística de rememoração”
(GAGNEBIN, 2014, p.16).
32

Em sua etimologia, a palavra lápide deriva do latim lapis: o nome escrito na pedra
tumular guarda um valor significante para a cultura e assinala ali a presença/ausência de um
corpo sem o sopro de vida. Lacan (1998) vai nos dizer no texto Função e campo da fala e da
linguagem que o túmulo é o primeiro símbolo de reconhecimento da humanidade em seus
vestígios, “e a intermediação da morte se reconhece em qualquer relação na qual o homem
entra na vida de sua história” (LACAN, 1998, p.320).
No entanto, no caso dos livros que temos em mãos, há a negação de Lila em se deixar
apreender, negação que se dá a ver a partir do que Elena nos diz sobre o seu desejo de
desaparecer. Além da tentativa de construir um túmulo para a amiga com suas palavras, nossa
narradora também quer vingar essa perda, ir contra o desejo manifesto de apagar-se, que Lila
enunciou durante toda a sua vida, não deixar nenhuma marca ou vestígio no mundo. Desejo
este que parece nos dizer já nas primeiras páginas sobre a desmarginação, uma vez que Lila
queria não só desaparecer mas dissipar-se, volatilizar-se em cada célula, até que não fosse
encontrado nada de seu. No último volume da tetralogia, a narradora nos fala um pouco mais
sobre esse desejo de apagar-se e refere-se a ele como um projeto estético:

Ela já havia expressado aquela vontade de se apagar várias vezes, mas a partir dos
anos 1990 – sobretudo de 2000 em diante – aquilo se tornou uma espécie de refrão
insolente. Era uma metáfora, naturalmente. Que a atraía, recorrera a ela nas
circunstâncias mais diversas, e nunca me ocorreu, nos tantos anos de nossa amizade
(…) que ela pensasse em suicídio. Apagar-se era uma espécie de projeto estético
(HMP, p.455)

Ana Cecília Carvalho (1994, p.3) nos lembra que a necessidade de escrever tanto pode
surgir a partir da vivência de um luto – ressaltando que não se trata necessariamente da morte
de alguém, mas da captação de um vazio qualquer – como ela é, principalmente, a tentativa de
revelar algo que se encontra nas lacunas do que é dito, de decifrar um enigma, um segredo ou
um mito, que pela sua própria natureza comporta espaço para inúmeras e incessantes versões.
“A produção literária serve bem a esta necessidade de representar uma ausência, substituindo
aquilo que foi, recuperando-a em um outro registro” (CARVALHO, 1994, p.3). Para a
psicanalista e escritora, escrever parece ser a tentativa de localizar uma perda inaugural,
engendrando uma pele simbólica de palavras para encobrir a ausência. Algo desapareceu, se
apagou e o escritor é aquele que tenta construir uma ponte, estabelecer um elo, que vai ajudá-
lo a recuperar algo ou alguém. É onde o mistério do outro nos aparece como um enigma que
encontramos a necessidade, a partir desse movimento sedutor de presença e ausência, de
produzir uma palavra – ou seja, uma tradução, uma significação, ou uma interpretação, para
que seja possível sobreviver, retomando esse outro de dentro.
33

No poema que pegamos emprestado para dar título a este capítulo, Waly Salomão
(1966) nos diz que “escrever é se vingar da perda / Embora o material tenha se derretido todo
/ igual queijo fundido” (p.33). Sousa (2007) aumenta um ponto ao afirmar que “a escrita é ela
mesma a materialização da experiência da perda. Isto nos ajuda, talvez, a entender a inibição
de muitos com a escrita, pois estão dispostos a nada perder” (SOUSA, 2007, p.240). Parece
ser esse o disparador da narrativa na série napolitana, o que convoca a narradora a abrir o
computador e começar a contar: Elena escreve para se vingar da perda. Busca a criação a
partir do caos que a ausência de Lila deixou, dar forma ao que não tem forma, ao material que
se derreteu, se derramou. O texto literário vem em seu auxílio como uma espécie de
nomeação para o enigma que ainda é indecifrável. Sabemos com a psicanálise que o luto por
alguém querido é ainda mais difícil pela mágoa que sentimos com a sua partida. Como se o
desaparecimento do outro levasse uma parte de nós. É o trabalho do luto que permite a quem
fica o tempo de elaborar o vazio deixado, de maneira a se proteger assim de uma violência
destrutiva. Ao escrever sobre o desaparecimento de Lila, Elena faz com que suas leitoras
sintam essa violência. Apesar de o sumiço não lhe ser estranho, como se fosse um
acontecimento esperado há muito tempo, sua concretização traz o sem-sentido que
acompanha uma perda. Ela parece escrever para recompor essa falta.
Segundo Gagnebin (2014, p.25) a literatura pode ser definida como a linguagem cuja
lei de estruturação é sua relação com a morte. Essa relação não precisa ser explícita, ela habita
o texto literário na medida em que não pretende falar do que existe, mas sim de criar outra
realidade, inventar outros mundos. Uma realidade em princípio inexistente, mas que passa a
existir de um modo diferente quando pensamos no possível da invenção. A ficção pode então
ser lida tanto na chave de uma mentira como na tentativa de revelar algo da ordem do
desconhecido. Quando alguém escreve sobre a beleza ou a dor do mundo, o faz revelando um
sentido que é criado a partir de suas palavras, algo inexistente antes daquelas palavras serem
colocadas. Dentro do texto de ficção “criar sentido é, portanto, manter esse mundo imediato à
distância, criar entre mim e ele um intervalo que dele me afasta, me separa, me corta, mas
também me permite nomeá-lo” (GAGNEBIN, 2014, p.25).
Na visão de Gagnebin (2014, p.25), Blanchot foi provavelmente o autor que mais
enfatizou a radicalidade desse corte, “espécie de aniquilamento da presença viva para que ela
se torne presente como ausência, como fala” (GAGNEBIN, 2014, p.25). Essa “destruição-
presentificação” é nomeada por Blanchot como um assassinato diferido, lugar onde quem
escreve se arrisca a matar a imediatidade da vida, na tentativa de instaurar um espaço de
ausência onde algo de outra ordem pode se articular, desdobrar e crescer, ou falhar e
34

desvanecer. Se a escrita configura o surgimento de algo é porque a ela é permitido entrar


nesse espaço onde se constituem a separação e a despedida, a intensidade de um começo que
anuncia ao mesmo tempo sua destruição.
Sentir a ausência como uma presença, viver com a ausência, esse é o laço que o
escritor estabelece com a palavra. Para Blanchot (2011, p.312), quem escreve morre para que
a palavra viva, uma morte que o faz viver intensamente: quando o eu é suspenso e cessa de
reivindicar algo é que a literatura pode surgir. “Somente a morte me permite agarrar o que
quero alcançar; nas palavras ela é a única possibilidade de seus sentidos. Sem a morte, tudo
desmoronaria no absurdo e no nada” (BLANCHOT, 2011, p.312)
Assumindo, junto com Gagnebin e Blanchot, que a literatura é regida estruturalmente
pela sua relação com a morte, podemos deduzir que é também para a morte que a escrita se
direciona. Blanchot (2013, p.293) vai dizer que, para quem escreve, a mão, destacada de
outras vozes, levada por um puro gesto de inscrição traça um campo cuja origem é a própria
linguagem, lugar desde onde a literatura se questiona e desaparece. Segundo o teórico

essas são contradições necessárias (…) só importa a obra, mas finalmente a obra só
está ali para conduzir à busca da obra; a obra é o movimento que nos leva até o
ponto puro da inspiração de que ela vem, e que só parece poder atingir
desaparecendo como obra. (BLANCHOT, 2013, p.293)

Não há, portanto, qualquer determinação que estabilize a literatura uma vez que sua
busca se direciona para o seu próprio desaparecimento, para o “grau zero da escrita”18, sempre
em vias de ser encontrado ou criado. Para Blanchot (2013), escrever é

primeiramente querer destruir o templo antes de o edificar; é pelo menos, antes de


ultrapassar seu limiar, interrogar-se sobre as servidões daquele lugar, sobre o pecado
original que constituirá a decisão de fechar-se nele. Escrever é, finalmente, recusar-
se a escrever (…) Escrever sem “escrita”, levar a literatura ao ponto de ausência em
que ela desaparece, em que não precisamos mais temer seus segredos que são
mentiras, esse é o “grau zero da escrita”, a neutralidade que todo escritor busca,
deliberadamente ou sem o saber, e que conduz alguns ao silêncio. (BLANCHOT,
2013, p.303)

O ponto de ausência e desaparecimento é o caminho para o qual a experiência literária


nos conduz. Por isso, na abordagem que faz do espaço literário, Blanchot (2011) acrescenta
uma expressão que atravessará sua teoria sobre a literatura e que retomaremos no decorrer do
trabalho: a escrita como entrega ao fascínio e ao risco da ausência do tempo. A entrega ao que
ele chama de ausência do tempo se faz por um movimento que leva a uma passagem onde o

18 Expressão utilizada por Barthes e retomada por Blanchot.


35

escritor torna-se anônimo e o que lhe acontece não acontece a mais ninguém; uma passagem
que diz respeito a um movimento de repetição numa disseminação infinita.
Através do prólogo do conto Josephine, de Kafka, Blanchot (2011, p.34) nos alerta
para a inutilidade – e, talvez, impossibilidade – da arte diante da ação. O escritor tcheco diz
que a redenção não pode ser escrita, apenas vivida; ter a consciência dessa legitimidade, no
entanto, não resolve o conflito. Mesmo anunciando a existência de algo que não pode ser
escrito, ele não para de escrever; Kafka morre corrigindo as cópias de um último livro. “Nesse
sentido, aquele que se propõe a escrever já está perdido” (BLANCHOT, 2011, p.34), mas isso
não é suficiente para parar o movimento da escrita.
Elena sabe que escrever sua história com Lila não vai evitar o desaparecimento da
amiga ou trazê-la de volta, mas isso não a impede de fazê-lo. A escrita, nesse sentido, enseja
também uma espécie de libertação. Kafka nos lembra em um de seus aforismas que a arte se
assemelha ao templo onde se acha gravada sobre cada pedra uma inscrição sacrílega; “tão
profundamente gravada que o sacrilégio durará mais tempo, tornar-se-á mais sagrado do que o
próprio templo” (BLANCHOT, 2011, p.34). Assim, a arte torna-se o lugar da inquietação e da
complacência, da insatisfação e da segurança; lugar de destruição de si mesma, desagregação
infinita e, ao mesmo tempo, ventura e eternidade.
O trabalho da escrita, apesar de longo e extenuante – lembremos que se tratam de mais
de 1500 páginas – não consegue revelar o mistério que circunda a história que começa em A
amiga genial, a causa do desaparecimento. O final inconcluso nos mostra que sempre há algo
que permanece não-dito, há um fracasso anunciado da escrita em recobrir a falta. Mas um
fenômeno curioso acontece em algumas narrativas, e talvez seja esse o motivo da sua atração:
percebe-se, em certo instante, que algo da ordem da verdade irrompe no tecido literário.
Como ressalta Walter Benjamin (2005, p.62) em suas teses Sobre o conceito de história: “A
verdadeira imagem do passado passa célere e furtiva. É somente como imagem que lampeja
justamente no instante da sua recognoscibilidade, para nunca mais ser vista, que o passado
tem de ser capturado” (BENJAMIN, 2005, p.62).
A proposta do autor parece ser a modificação mútua do passado no presente, sendo
essa imagem célere e furtiva a única maneira de alcançá-lo. O passado irrompe no presente,
emergindo como verdade capaz de ensejar o trabalho de reconfiguração do saber. Essa
imagem que lampeja parece ser a busca de Elena ao narrar a ausência de Lila, trazendo à tona
o real de um encontro faltoso que se revelou a partir do trauma do desaparecimento. Talvez
seja a palavra aprisionada no recalcado, ou impedida de advir tão intensa é a oposição do
inominável, que nossa narradora quer fazer surgir ao escrever incansavelmente sua história de
36

amizade, tudo que lhe ficou na memória. Mesmo sabendo, como nos alerta Blanchot, que esse
encontro é impossível, não cessa de buscá-lo através da escrita.
Segundo Anzieu (apud CARVALHO, 1994), as obras literárias mais tocantes são
aquelas que apenas sugerem a existência de um enigma e fazem com que leitores participem
dessa busca com dupla face de evidência e de incerteza, sabendo de antemão sobre o fracasso
inevitável de compreendê-las totalmente. À semelhança da escrita que surge a partir de um
enigma dado pelo outro, quem lê também deve encontrar no texto uma fresta por onde entrar,
ser fisgado e escrever a história à sua maneira, “reconstruir o texto com a sua leitura”
(ANZIEU, apud CARVALHO, 1994).
A história contada por Elena Greco seduz no convite para buscar, em sua companhia,
pistas para entender o desaparecimento de Lila. O percurso desconhecido, um caminho sobre
o que ela ainda não sabe sobre sua vida, sobre aquilo que se perdeu. Ela se representa e
(re)apresenta e, enquanto faz isso, “se divide entre sujeito do enunciado e da enunciação, do
significado e do significante, entre os quais flutua algo que permanece não-dito” (BRANDÃO,
2006, p.50). Alguma coisa escondida e deformada que se entrevê na cadeia enunciativa, algo
não-simbolizado que se derrama. Há uma proximidade, nesse ponto, do que se entende como
narrativa em análise: a proposta é contar aquilo que ainda não se sabe. Trata-se daquilo que
faz a narradora ser estranha (unheimlich) em sua própria casa.

(o instante da minha morte)

Há um texto de Blanchot (2003) chamado O instante da minha morte. Assim ele inicia:
“Recordo-me de um jovem – de um homem ainda jovem – impedido de morrer pela própria
morte – e talvez por erro da injustiça” (BLANCHOT, 2003, p.9).
O instante da minha morte é um texto que se encontra na margem. Até onde se sabe, é
o relato de uma experiência pessoal do jovem Maurice. Conta-se que, logo depois da
publicação de A parte do fogo, Blanchot decidiu tirar férias em sua cidade natal, uma pequena
cidade no interior da França chamada Quain. Lá, ele quase foi morto por um grupo de
soldados nazistas. Só cinquenta anos mais tarde ele escreve O instante da minha morte.
Talvez tenha sido assim.
O que se pode dizer é que a escrita desse texto parte de uma impossibilidade. Acusa
seu impossível ao acontecer: o pronome possessivo minha ao lado da palavra morte. Como
enunciar uma relação de posse com algo que, existindo, anula qualquer experiência? Essa
impossibilidade guarda em seu interior um mal-estar, que tem a ver com a possibilidade de
37

escrever. Há o tropeço da linguagem que anuncia a própria morte e, ao anunciá-la, se constitui


com uma parte faltante.
No entanto, há algo estranho na passagem do título para a primeira frase. É a própria
morte que pretende narrar, mas surge a referência a um – outro, ele – impedido de morrer pela
própria morte. “Diz-se que o escritor renuncia a dizer Eu - a literatura começa no momento
em que acontece a substituição do Eu pelo Ele” (BLANCHOT, 2011, p.17).
O erro da injustiça é um mal-entendido. O relato segue: “O tenente tartamudeou numa
linguagem estranha e, colocando diante do nariz do homem já menos jovem (envelhece-se
depressa) os cartuchos, as balas, uma granada, gritou com clareza: Eis o que vos espera”
(BLANCHOT, 2003, p.11)
O tenente fala em uma linguagem estranha. Foi uma tropa russa que interpelou
Blanchot, até onde se sabe. Ele está na ausência do tempo. No confronto com a morte, o
tempo para de obedecer a leis predeterminadas: será o encontro com o instante da própria
morte da mesma natureza que o encontro com a escrita? Será a impossibilidade que surge de
narrar a própria morte a impossibilidade para onde a escrita é atraída para o desaparecimento,
onde a ausência e o silêncio se avizinham?

Sei – sabê-lo-ei – que aquele que os Alemães já tinham na mira, não esperando
senão a ordem final, experimentou então um sentimento de extraordinária leveza,
uma espécie de beatitude (nada, porém, que se parecesse com a felicidade) – alegria
soberana? O encontro da morte e da morte? No seu lugar, não tentarei analisar esse
sentimento de leveza. De repente, ele era talvez invencível. Morto – imortal. Talvez
o êxtase. Ou antes o sentimento de compaixão pela humanidade sofredora, a
felicidade de não ser imortal nem eterno. Doravante, ficou ligado à morte, por uma
amizade sub-reptícia (BLANCHOT, 2003, p.13)

Um disparo. O tenente diz… Nós… não… russos. E faz um sinal para que ele
desapareça. Ele corre para o bosque sem que a sensação experimentada o abandone; quando
dá por si, olha ao redor, percebe os efeitos da guerra, se pergunta quanto tempo passou. O
tempo envelheceu no encontro com a morte.
Na tentativa de narrar a própria morte, parece haver o encontro com a experiência
literária da ausência do tempo. Abre-se uma brecha que introduz o narrador bruscamente no
tempo que é próprio da narrativa, sem o qual se pode encadear uma palavra na outra, colocar a
pontuação em lugares estratégicos, mas não é possível, de fato, começar a escrever. A
ausência do tempo, que abre brecha para a escrita, é também a que permite ao narrador dizer
não apenas Eu, mas metamorfosear-se na sombra que é o tornar-se personagem desse
encontro insólito. “A partir de um certo ponto não há mais retorno. Esse é o ponto que deve
38

ser alcançado.”, diz Kafka. O jovem que se encontrou com a própria morte parece atingir esse
ponto, o passo-não-passo-para-além. Desmarginação? Ainda não é possível dizer.

Permanecia todavia, como no momento em que o fuzilamento estava iminente, o


sentimento de leveza que não conseguia traduzir: liberto da vida? O infinito que se
abre? Nem felicidade, nem infelicidade. Nem a ausência de temor e talvez já o
passo-não passo para-além. Sei, imagino, que esse sentimento inanalisável mudou o
que lhe restava de existência. Como se a morte fora dele não pudesse doravante
senão embater contra a morte nele. “Estou vivo. Não, estás morto” (BLANCHOT,
2003, p. 21).

O aparecimento de uma voz no fim do texto que anuncia o embate entre uma primeira
e segunda pessoa deixa em estado de espanto quem está lendo. De quem é essa intromissão?
“A literatura é a vida que carrega a morte e nela se mantém” (BLANCHOT, 2011,
p.350).

3.1 Vestígio, olhar para a ausência

Lembremos do que Elena nos diz sobre Lila querer extrapolar o conceito de vestígio,
tentando barrar a transmissão de sua história. Seu desaparecimento causa uma disruptura na
ordem da vida da narradora, e é na página que ela busca o equilíbrio da relação entre as duas
que não conseguiu encontrar nem com ela mesma:

Nesta manhã, tento controlar o cansaço e volto à escrivaninha. Agora, que estou
perto do ponto mais doloroso de nossa história, quero buscar na página o equilíbrio
entre mim e ela que, na vida, não consegui encontrar sequer comigo mesma. (HMP,
p.15)

O trecho citado está na introdução do último volume da série napolitana, o que se


intitula História da menina perdida. Apesar de tratar-se de uma narrativa que obedece, na
maior parte do tempo, a uma ordem cronológica, existem momentos em que a voz da
narradora reflete no presente sobre o que está escrevendo. No começo de cada nova etapa da
vida – uma vez que os livros são divididos em: Prólogo, Infância, Adolescência, Juventude,
Tempo intermédio, Maturidade, Velhice e o Epílogo –, Elena reflete principalmente sobre o
que gerou a escrita daqueles livros, uma reflexão que irrompe no texto sem um elo aparente
com o que está sendo contado. Assim como o prólogo Apagar os vestígios nos coloca em
busca, junto com a narradora, de pistas para entender o desaparecimento de Lila, essas
pequenas introduções nos levam a pensar em por que Elena está escrevendo, como uma
lembrança que surge no texto sobre a impossibilidade de narrar aquele desaparecimento sem
colocar em questão também o próprio ato de narrar. Vejamos o que ela nos diz antes de iniciar
o último livro, o tempo da Maturidade.
39

Ela é a única que pode dizê-lo, se é verdade que conseguiu inserir-se nesta cadeia
longuíssima de palavras para modificar meu texto, para introduzir com astúcia
alguns elos faltantes, para desatar outros sem se dar a ver, para falar de mim mais do
que eu tenho vontade, mais do que sou capaz de dizer. Torço por essa intrusão,
espero por isso desde que comecei a esboçar nossa história, mas preciso chegar ao
fim e submeter todas estas páginas a uma verificação. Se eu tentasse fazer isso agora,
certamente travaria. Estou escrevendo há muito tempo e estou cansada, é cada vez
mais difícil manter esticado o fio do relato dentro do caos dos anos, dos
acontecimentos miúdos e grandes, dos humores. Sendo assim, ou tendo a passar por
cima dos fatos relacionados a mim para logo agarrar Lila pelos cabelos com todas as
complicações que ela tem, ou, pior, deixo-me tomar pelos acontecimentos de minha
vida apenas porque os desembucho com mais facilidade. Mas tenho de me furtar a
essa encruzilhada. Não devo seguir o primeiro caminho, no qual – já que a própria
natureza de nossa relação impõe que eu só possa chegar a ela passando por mim – eu
acabaria, caso me colocasse de fora, encontrando cada vez menos vestígios de Lila.
Nem devo, por outro lado, seguir o segundo. De fato, o que ela com certeza mais
apoiaria é que eu falasse de minha experiência cada vez mais profusamente. Vamos
– me diria –, nos conte que rumo sua vida tomou, quem se importa com a minha,
confesse que ela não interessa nem mesmo a você. E concluiria: eu sou um rascunho
em cima de um rascunho, totalmente inadequada para um de seus livros; me deixe
em paz, Lenù, não se narra um apagamento (HMP, 15).

Não é possível narrar aquela história sem se implicar, assim como não há como narrar
sem deixar que Lila passe por ela modificando o texto, inserindo nós para desatar outros, para
fazer com que Elena fale de si mais do que deve, se dê a ver através do texto de uma maneira
que nem ela mesma sabe. Nossa narradora torce por essa intromissão de Lila, como se só
assim conseguisse escrever com mais sinceridade. Escrever como a melhor amiga sempre foi
algo que ela almejou, e as razões para isso serão melhor abordadas nos próximos capítulos,
mas o que está em jogo nesse trecho, e que se relaciona com o prólogo, é como o movimento
de criação literária tem a ver com a recusa de Lila em se deixar narrar. Também como a
afirmação de Lenù, caso se colocasse de fora acabaria encontrando menos vestígios de Lila,
nos permite pensar a importância da palavra vestígio como algo que circunda a relação entre
escrita, desaparecimento e desmarginação.
Vestígio é significado no dicionário19 como um sinal deixado pela pisada ou passagem;
pegada, rastro; aquilo que restou de algo que desapareceu; sinal indicativo de algo, indício,
signo. É no rastro das pegadas de Lila que Elena tenta chegar a algum tipo de esclarecimento
sobre o que desconhece, a causa desse desaparecimento. Segundo Maud Mannoni (1999,
p.41), “o vestígio evoca a marca de uma passagem, orienta o olhar para um outro lugar, uma
ausência”. Ao ser confrontada com o vazio da ausência de Lila, a escritora Elena Greco
coloca-se a tarefa de dar um espaço, deixar um lugar através da escrita que conte sobre a
passagem da amiga pelo mundo. Como nos lembra Henry Michaux (apud MANNONI, 1999,

19 Dicionário Michaelis on line: https://michaelis.uol.com.br/


40

p.41), “quem deixa um vestígio deixa uma chaga”, e a recusa de Lila em deixar essa chaga é o
que convoca Elena à escrita.
O vestígio como rastro ou passagem está nas primeiras questões sobre o inconsciente
formuladas pela psicanálise, como nos mostra Freud (1896/2016) na carta 52 a Fliess, ao falar
de sua percepção sobre o mecanismo da memória:

Você sabe que eu trabalho com a suposição de que nosso mecanismo psíquico tenha
surgido de uma sobreposição de camadas, na qual, de tempos em tempos, o material
presente na forma de traços mnêmicos [Erinnerungsspuren] sofre uma
reorganização, uma reescrita, a partir de novas relações. Portanto, o que há de
fundamentalmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória não está
disposta em apenas uma, mas várias camadas, que é escrita com vários tipos de
signos [Zeichen] (FREUD, 1896/2016, p.337)

Nem todas as primeiras experiências vão marcar o psiquismo em sua constituição, mas
algumas inscrições deixarão traços/rastros20. Tais inscrições não têm uma correspondência de
representação fixa com os objetos do mundo, ou seja, a inscrição não diz respeito a uma
imagem do objeto. No Projeto para uma psicologia científica, Freud (1895/2016) aponta para
o não-registro integral das experiências vividas, pois é a partir de seu recorte qualitativo e
quantitativo que passam a ser inscritas como traços. A inscrição, portanto, não é uma marca
que representa o objeto ou uma cópia da realidade; o conceito de traço mnêmico comporta
mais um rastro, sulco, vestígio, deixado por uma experiência e que facilita futuras passagens
de investimentos. É a partir desse rastro que Freud pensará na repetição como um mecanismo
constituinte do psiquismo, uma repetição que é facilitada pelos rastros deixados anteriormente.
No entanto, nem toda inscrição se faz como um traço, ou seja, há uma inscrição que
não conserva nenhum traço do que aconteceu (FREUD, 1896/2016). Por isso o esquecimento
é indispensável para o surgimento do sujeito como pensa a psicanálise. Também na carta 52,
Freud (1896/2016) afirma que ao imaginar a memória disposta em camadas, nem tudo que se
inscreve em uma delas pode tranquilamente passar para a outra. Existem reorganizações,
reescritas operando no aparelho psíquico, mas nem todas as marcas podem passar por elas. Ou
seja, essas inscrições nem sempre se apresentam como uma escrita legível. Por isso, as
formações do inconsciente se constituem como um enigma para o sujeito: uma parte delas
pode ser articulada com outros significantes através da associação livre feita em análise, mas
uma outra grande parte está imersa no mar do ilegível, escrita com signos que não podem ser

20 A expressão Erinnerungsspuren é na maioria das vezes traduzida como traços mnêmicos, mas Gagnebin
(2014, p.21) sugere que seria melhor traduzi-la como rastros mnêmicos. Apesar de concordar com essa tradução,
nos livros consultados é predominante o uso de traços e achamos que trocá-la no texto dificultaria a leitura. No
entanto, gostaríamos que durante a leitura o termo rastros se presentificasse, pela proximidade com vestígios.
41

decifrados e que constituirão o que Freud chamou, em A interpretação dos sonhos


(1900/1996), de umbigo do sonho.
Freud pensa em um traço que diz sobre o primeiro tempo da constituição do sujeito,
que permanece como intraduzível, impossível de ser nomeado, uma ‘marca originária’. Esse
traço serve de possibilidade para a inscrição de outros traços de trilhamentos que se formam a
partir do sulco deixado por essa marca primeira, mas que pode ser lida apenas num só depois,
inaugurando o corte, a fenda através da qual, para a psicanálise, o sujeito emerge dividido.
Essa é a marca inaugural, que traz o sujeito para a linguagem, vivida através de uma
perda que se revela sob a figura do trauma. Essa perda diz de um inassimilável, inominável,
de uma falta aprisionada no recalcamento e impedida de advir, tão intensa é a oposição do
silêncio imposto, uma espécie de ausência que o sujeito tem de si em si mesmo e da qual tem
notícias vagas.
O estudo que Freud faz da inscrição de traços no aparelho psíquico é fundamental para
pensarmos o fazer literário como uma busca relacionada a essa perda, ausência da qual temos
vagas notícias, como nos mostra O instante da minha morte de Blanchot. “Vagas”, que tanto
pode significar lugar vazio quanto onda, que deixa uma marca de sua passagem na areia do
mar.; perda que dá notícias da queda que situa o sujeito em relação à origem.
O movimento em direção à literatura, segundo Blanchot, parece ser em direção a essa
ausência que busca escrever o impossível do instante da própria morte. Uma travessia por um
caminho desconhecido, de algo que foge às nossas elucubrações, que se mantém sempre à
distância. Tudo o que se pode compreender sobre a própria morte não atinge esse instante,
mesmo as pessoas que estão prestes a morrer não detém o poder sobre essa narrativa, elas só
podem dizer sobre a premência do fim. A morte não diz sobre um estágio, mas um espaço,
lugar que vai interessar Blanchot tanto em suas reflexões sobre a literatura quanto em seus
escritos de ficção. As histórias de Kafka são as que melhor escrevem esse espaço, assim como
a imagem de Orfeu voltando-se para Eurídice na saída do inferno 21 , imagem que está no

21 O mito de Orfeu encontra sua referência mais antiga no século VI a.C. através do poeta Íbico de Régio.
Segundo W.C. Guthrie (1952 apud PINTO, 2015, p.572) trata-se de um mito que não pertence à raiz homérica,
estando mais relacionado às práticas xamânicas. No núcleo da história que se repete na maioria das versões,
Orfeu apaixona-se e casa-se com a ninfa Eurídice que, certo dia, é mordida por uma serpente e morre. Revoltado
com a perda de sua esposa, Orfeu desce ao Hades para tentar resgatá-la, trocando a beleza do seu canto pelo
retorno de sua amada ao reino dos vivos. Uma única exigência é feita por Plutão e Perséfone quando consentem
que Eurídice volte à vida: ao sair com ela do Hades, Orfeu deve andar sempre à sua frente e, sob nenhuma
circunstância, deve voltar-se para trás até o momento em que eles estiverem fora do inferno. Orfeu não resiste à
tentação de fazer o que lhe fora proibido e, diante da sua desobediência, é punido com o desaparecimento de
Eurídice na escuridão. Blanchot utiliza o mito de Orfeu nos ensaios que compõem O espaço literário, afirmando,
na apresentação do livro que aquela história deve ser o centro para onde seu pensamento se direciona: o fazer
literário move-se no mesmo sentido que o olhar de Orfeu.
42

centro do livro que o autor chamou de O espaço Literário. De qualquer maneira, é algo da
ordem do desconhecido que está em jogo, que se apresenta como palavra na morte, e que
constitui a experiência literária.
Blanchot (2011, p.350-351) se pergunta sobre a existência oculta, na intimidade da
palavra, de uma força amiga e inimiga, uma arma feita para construir e destruir, que agiria por
trás da significação e não sobre a significação, que seria o movimento da escrita e da literatura.
Tal questão, para ele, não tem uma resposta, pois é a pergunta que guarda tanto o movimento
da palavra para a sua verdade quanto o seu retorno, pela realidade da linguagem, ao fundo
obscuro da existência, lembrança da marca originária.

Ausência pela qual a coisa é aniquilada, destruída, para se tornar ser e ideia (…) Se
chamarmos essa força de negação, ou irrealidade, ou morte, a morte, a negação, a
irrealidade, trabalhando no fundo da linguagem, ali significam a chegada da verdade
ao mundo, o ser inteligível que se constrói, o sentido que se forma. Porém, tão logo
o sinal se transforma, o sentido não representa mais a maravilha de compreender, e
sim nos devolve ao nada da morte, e o ser inteligível só significa a recusa à
existência, e o cuidado absoluto com a verdade se traduz como impotência de agir
realmente. (BLANCHOT, 2011, p.350-351)

A impossibilidade de pensar o instante da própria morte permite que o pensamento da


morte surja através da palavra, no que Blanchot (1980) chamou de Escritura do Desastre. O
desastre é a linguagem em sua impossibilidade de ser escrita, mas que não cessa de não se
escrever, a rasura no discurso, a própria ruína da palavra, ausência que se instala no momento
em que a coisa é nomeada. É no centro dessa ausência que o desastre se produz e reproduz.
No texto literário, o desastre é a potência de tudo poder dizer e de nada poder dizer, uma vez
que afirmar o nada também é um movimento da literatura. O desastre convoca à escrita e, ao
mesmo tempo, a impossibilita. O desastre nos dá um caminho para pensar a desmarginação.
Mas, antes, vamos seguir com o vestígio.
Lila desaparece e extrapola o conceito de vestígio ao tentar apagar qualquer imagem
sua no mundo. Lembremos que ela recorta as fotografias em que aparece junto a Rino, seu
filho, e Elena percebe que não guardou nenhuma imagem sua e tampouco tem alguma marca
de sua letra. A escrita de Lenù começa decidida a fazer vingar a presença de Lila no mundo e,
talvez assim, se libertar. O que vamos acompanhar na série napolitana é a incansável tentativa
de Elena de apreender o passado e expressar a ausência de Lila para poder se libertar de algo
que, no início, ela desconhece. Como veremos no epílogo, a escrita do livro abre a
possibilidade para a narradora de livrar-se do fascínio que a amiga sempre exerceu sobre ela,
movimento que fica nítido na frase que encerra o romance: “agora que Lila se fez ver tão
nitidamente, devo resignar-me a não vê-la nunca mais” (HMP, p.476).
43

Em um texto de 1925 intitulado Uma nota sobre o bloco mágico, Freud pensa a
constituição do aparelho psíquico e seu conteúdo através da escrita, numa referência que vai
desde o seu registro e inscrição como traço até à própria estruturação do aparelho. No começo
do artigo nos diz que o papel e o lápis surgem como um auxílio quando a memória falha,
sendo estes uma porção materializada do aparelho mnemônico que carregamos conosco. Se
posso resgatar o lugar em que foi acomodada a recordação, posso repeti-la à vontade, com a
segurança de que ela escapou incólume às deformações que talvez sofresse na memória. A
técnica dispõe de dois diferentes procedimentos: posso escrever com tinta e assim preservar
intacta a nota por tempo indeterminado, num traço mnêmico duradouro, ou posso escrever
com giz numa lousa, apagando no momento que a nota deixar de interessar, não se
constituindo ela como um traço duradouro. A desvantagem, no primeiro caso, é a de que com
o tempo a folha vai se encher de riscos e não teremos espaço vazio para anotar, enquanto, no
segundo caso é a impossibilidade de anotar algo a mais sem antes apagar o que já foi escrito.
“Portanto, irrestrita capacidade de receptora e conservação de traços duradouros parecem
excluir-se mutuamente nos dispositivos que substituem nossa memória; ou a superfície de
recepção tem de ser renovada ou as anotações têm de ser eliminadas” (FREUD,
1925/2011,p.243).
Diante desse impasse, entra em cena a estrutura do bloco mágico, um dispositivo que
promete ser mais do que a lousa ou a folha de papel.

O Bloco Mágico é uma tabuinha feita de cera ou resina marrom-escura, com


margens de papelão, sobre a qual há uma folha fina e translúcida, presa à tabuinha
de cera na parte superior e livre na parte inferior. Essa folha é a parte mais
interessante do pequeno aparelho. Consiste ela mesma de duas camadas, que podem
ser separadas uma da outra nas bordas laterais. A camada de cima é uma película de
celuloide transparente, a de baixo é um papel encerado, ou seja, translúcido. Quando
o aparelho de baixo não é utilizado, a superfície de baixo do papel encerado cola-se
levemente à superfície de cima da tabuinha de cera. (FREUD, 1925/2011, p. 244)

Freud situa o bloco mágico como um retorno ao modo como os antigos escreviam em
tabuinhas de argila e cera. Basta um estilete pontiagudo para fazer um risco na superfície,
constituindo assim a marca que origina a escrita. No aparato, o estilete não age diretamente na
cera, mas através da folha que a cobre, tornando as ranhuras visíveis na superfície do
celuloide. Para apagar o que foi escrito basta levantar a dupla folha de cobertura, a partir da
borda inferior que está solta, e o bloco fica novamente vazio, disponível para receber novas
anotações. Na comparação que faz entre o artefato e o aparelho de percepção-consciência, o
inconsciente é situado na prancha de cera que se encontra por trás das folhas: a escrita
44

desaparece e não volta a aparecer, mas o traço do que foi inscrito pode ser lido se dispormos
da iluminação adequada. Esse movimento de aparecimento e desaparecimento que, no bloco
mágico se dá através do movimento da mão a levantar a folha, no aparelho psíquico é
derivado de um investimento interno.
Simone Moschen (2007, p.75) nos diz que é possível articular, no trabalho que Freud
faz em torno do bloco mágico, “a extensão sem bordas de um espaço ilimitado e de inscrição,
que permite dar lugar à noção de atemporalidade inconsciente, e a intermitência, o intervalo
que corta, que separa e que permite temporalizar o registro” (MOSCHEN, 2007, p.75). No
que diz respeito ao tempo, o bloco mágico nos mostra a sua descontinuidade, estabelecendo-
se com o trabalho da escrita num intervalo entre traçado e apagamento22.
No seu retorno a Freud, Lacan (1961-1962/2003) começa a pensar, a partir do livro
Robinson Crusoé de Daniel Defoe (2004), o conceito de traço relacionado a um rastro, um
sulco, um corte na pele, que ao cicatrizar deixa a marca de que algo ali aconteceu. O
psicanalista francês utiliza um trecho do romance para situar o traço como a descoberta de
uma pegada: “Certo dia em que estava indo para o barco, por volta do meio dia, tive uma
enorme surpresa, de ver na praia a pegada de um pé humano, descalço, perfeitamente
desenhada na areia” (DEFOE, 2004, p.134).
Não há nada ao redor que denuncie a presença de outro ser humano, apenas aquela
pegada, solitária. Através da marca deixada pelo pé, Lacan discute o registro articulando-o de
forma paradoxal a uma perda, ou melhor, a um apagamento que possibilita o surgimento do
significante. Ele proporá que o registro implicará três tempos: a pegada, o apagamento e o
rastro oriundo do apagamento. A inscrição psíquica se dá a partir desses três momentos, que

22 O paradoxo da escrita como condição para o esquecimento nos é também colocado por Derrida (2005), no
texto A farmácia de Platão, quando ele retoma o mito da invenção da escrita no final de Fedro. Platão declara
que a palavra escrita não ensina a arte da justiça e da verdade. Como acontece com a pintura, a escrita cria
reproduções que se assemelham à sua imagem. A memória verdadeira é aquela que não recorre à escrita, sendo
esta um simulacro para provocar o esquecimento. Por isso o rei Thamous diz a Theuth que seu invento, a escrita,
não é um remédio para a memória pois não favorece a mnème; além disso, faz com que se esqueça o aprendido,
restando apenas as reminiscências. Ela funciona apenas para a rememoração. Derrida resgata esse mito
baseando-se na ambiguidade da palavra grega pharmakon, que pode significar tanto remédio quanto veneno e
promove sua articulação com a filosofia que é, também, ambígua, furtiva, sem fundo. Derrida diz que Theuth é
tanto o deus do cálculo, da aritmética e da ciência racional, como também está no comando das ciências ocultas,
astrologia, alquimia: “O deus da escritura é pois um deus da medicina (…) Do remédio e do veneno. O deus da
escritura é o deus do phármakon” (DERRIDA, 2005, p.38). O deus tem várias faces, viveu em várias épocas e
tem relação com outros lugares, e é nesse emaranhado de narrativas mitológicas que Derrida fala de alguns
traços semelhantes para quem busca reconstituir a figura platônica em parecença com outras figuras mitológicas
da origem da escritura. Ele lembra, por exemplo, a cena do julgamento dos mortos no inferno. Diante de Osíris,
Theuth consigna o peso do coração-alma do morto. O deus da escritura é, portanto, o deus da morte. A palavra
escrita é, então, associada à palavra morta.
45

colocam a letra como portadora de um enigma a se articular, futuramente, com o mecanismo


significante.

Partamos do que é um traço. Um traço é uma marca, não é um significante. A gente


sente, no entanto, que pode haver uma relação entre os dois, e, na verdade, o que
chamamos de material do significante sempre participa um pouco do caráter
evanescente do traço. Essa até parece ser uma das condições de existência do
material significante. A marca do pé de Sexta-Feira, que Robinson Crusoé descobre
durante seu passeio pela ilha não é um significante. Em contrapartida, supondo-se
que ele, Robinson, por uma razão qualquer, apague esse traço, nisso se introduz
claramente a dimensão do significante. A partir do momento em que é apagado, em
que há algum sentido em apagá-lo, aquilo do qual existe um traço é
manifestadamente constituído como significado. (…) O significante como tal é algo
que pode ser apagado e que não deixa mais que seu lugar, isto é, não se pode mais
encontrá-lo. (LACAN, 1957-1958/1999, p.355)

Robinson Crusoé escreve um X no lugar da pegada de Sexta-Feira depois de apagá-la.


Lacan fala do passo e rastro do passo de Sexta-Feira para explicar que o significante não
surge a partir da marca feita pela pegada do personagem, não surge a partir do seu rastro, mas
na sua condição de poder ser apagado. Crusoé apaga o rastro do passo de Sexta-Feira e, ao
colocar no seu lugar um X, configura o significante específico que diz respeito àquela pegada,
“algo que se apresenta como ele próprio podendo ser apagado e que justamente nesta
operação de apagamento como tal subsiste” (LACAN, 1961-1962/2003, p.95). Através de
Robinson Crusoé é possível distinguir os três tempos que, para Lacan, produzem inscrição do
traço: a pegada deixada pela passagem de um objeto, o apagamento dessa pegada e o rastro
produzido pelo apagamento responsável pelo registro da inscrição em uma outra ordem. Esses
tempos estão diretamente ligados à produção da letra como uma inscrição. A conclusão a que
Lacan chega nesse percurso que nos interessa aqui é que o significante só se configura na
medida em que pode virar vestígio.
O apagamento do rastro na praia impede o acesso do que antes esteve ali, mas institui
um movimento de ausência-presença-ausência que nos permite testemunhar que alguém
esteve na praia, sem sabermos quem foi esse alguém. Diante do apagamento da pegada surge
a possibilidade de articulação da letra, o X enquanto significante, possibilitando o
entendimento de que, no sistema de inscrição do traço que constitui o sujeito, a representação
não está colada ao objeto nem à imagem desse objeto. Seu significado só pode ser intuído a
partir de uma cadeia de significantes.
Por isso, Lacan vai nos dizer, um significante só pode ser lido quando encadeado com
mais significantes. Assim, o psicanalista vai falar do efeito do significante como condição
para a emergência do sujeito, o significante sendo o que representa um sujeito para outro
significante.
46

Um significante se distingue de um signo, primeiramente por aquilo que tentei fazer


vocês sentirem é que os significantes não manifestam senão em primeiro lugar, da
diferença como tal e nada mais (LACAN, 1961-1962/2003, p.63)

A repetição do traço em uma série encadeada é que permite o surgimento da diferença


em meio a uma cadeia de significantes. É o automatismo da repetição que vai nos lembrar que
algo não é nada mais que um significante. Elena parece nos indicar isso ao intitular o prólogo
do livro Apagar os vestígios. O que ela pretende, ao começar a escrever, é fazer o que Crusoé
fez em relação à pegada de Sexta-feira: apagar o rastro e fazer surgir, no lugar, como
significante, o livro que temos em mãos, a presença de Lila.
47

4 “ESSE QUARTO VAZIO EM QUE TUDO PERMANECE”

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha


xícara
Sem uso,
ela nos espia do aparador.
Carlos Drummond de Andrade

“Foi quando Lila e eu decidimos subir pela escada escura que levava, degrau a degrau,
patamar a patamar, até a porta do apartamento de dom Achille que nossa amizade começou”
(AG, p.19). É com o começo dessa amizade que Elena inicia a primeira parte do livro,
referente à Infância, intitulada História de Dom Achille. Ela segue enumerando uma série de
atividades que as duas faziam juntas, Lila sempre sendo a primeira a realizar alguma coisa
que demandava coragem, Elena fazendo por imitação.

Lila enfiava a mão e todo o braço na boca escura de um bueiro, e eu fazia o mesmo
logo em seguida, com o coração aos pulos, esperando que as baratas não corressem
por minha pele e os ratos não me mordessem. Lila trepava na janela térrea de dona
Spagnuolo, se pendurava na barra de ferro onde passava o fio de estender os panos,
se balançava e então deixava o corpo cair na calçada, e eu logo fazia a mesma coisa,
mesmo temendo cair de mau jeito e me machucar. Lila enfiava sob a pele a agulha
enferrujada que achara na rua não sei quando, mas que trazia sempre no bolso como
se fosse o presente de uma fada; eu observava a ponta de metal escavando um túnel
esbranquiçado em sua palma e, depois, quando ela a extraía e passava por mim, eu
fazia o mesmo (AG, p.19)

A certa altura, Lila lança um olhar para Elena, olhos apertados em forma de fenda,
como eles serão descritos mais adiante. Dirige-se para o prédio de dom Achille, “o ogro das
fábulas”, aquele de quem, por recomendação dos adultos, não devem se aproximar. Existia um
temor dos pais de Elena em relação àquele homem que a fizeram imaginá-lo como um
monstro, “apesar do ‘dom’, que sugeria uma autoridade plácida. Era um ser feito de não sei
que material, ferro, vidro, urtiga, mas vivo, vivo e com uma respiração quentíssima que lhe
saía do nariz e da boca” (AG, p.20). A narrativa ganha ares sombrios à medida que as meninas
chegam perto da casa de dom Achille, cada passo dado sendo sentido por Elena como uma
proximidade com algo terrível. “Subimos lentamente rumo ao pior de nossos temores de então,
íamos nos expor ao medo e interrogá-lo” (AG, p.21). No quarto lance de escadas, Lila volta-
se para Elena e dá a ela sua mão. Um gesto que mudaria as coisas entre as duas para sempre.
48

Elas estavam indo em direção à casa de dom Achille porque Lila havia jogado a
boneca de Elena no fundo de um porão. A descrição que Elena faz de sua boneca, de alguém
que sabia mais dela do que qualquer outra pessoa, associa o brinquedo a um ser vivo:

Tinha uma cara de celuloide com cabelos de celuloide e olhos de celuloide. Usava
um vestidinho azul que minha mãe costurara num raro momento feliz e era linda. Já
a boneca de Lila tinha um corpo de pano amarelado, cheio de serragem, e me parecia
feia e suja. As duas se espreitavam, se mediam, estavam prontas a fugir de nossos
braços se viesse um temporal, se trovejasse, se alguém maior e mais forte e de
dentes afiados as quisesse agarrar (AG, p.22).

O que mais fascinava as meninas era o desconhecido do subsolo, entrevisto por duas
frestas criadas pela grade. Através dessa fenda era possível “deixar cair pedrinhas na
escuridão e ouvir o barulho que faziam ao bater no piso” (AG, p.23). Elas entendiam que, por
essas aberturas, o escuro podia de repente tomar as bonecas das mãos das duas, no momento
em que elas estivessem seguras ou quando as deixavam de lado, expostas aos rumores
ameaçadores que vinham daquele buraco.
Diante disso, Elena declara que Nu e Tina não eram felizes. Principalmente porque,
assim como elas, as bonecas estavam expostas aos mesmos terrores e perigos da violência do
bairro. Um terror que pairava sobre as pedras e casas, sobre as pessoas que as habitavam.
Tudo estava sempre prestes a explodir e grande parte dessa sensação devia-se à presença de
dom Achille.

Dom Achille, por exemplo, estava não só em seu apartamento no último andar, mas
também ali embaixo, aranha entre aranhas, rato entre ratos, uma forma que assumia
todas as formas. Eu o imaginava de boca aberta, com suas longas presas de fera,
corpo de pedra reluzente e ervas venenosas, sempre pronto a recolher numa enorme
bolsa preta tudo o que deixávamos cair dos cantos desguarnecidos das grades.
Aquela bolsa era um traço fundamental de dom Achille, sempre com ela, até em casa,
na qual metia matéria viva e morta (AG, p.23).

Lila sabia que Elena se sentia daquela maneira em relação a dom Achille, ela dizia em
voz alta à Tina sobre o medo que sentia. No entanto, isso não impediu que, no dia em que as
duas trocaram pela primeira vez as bonecas, Lila a empurrasse “para além da grade, deixando-
a cair na escuridão” (AG, p.23).
Depois que conta sobre a queda, Elena interrompe o momento em que as duas estavam
juntas com as bonecas e volta o olhar para o bairro. O movimento que a narradora faz nesse
momento é cinematográfico, parece uma câmera que deixa de ter como foco uma cena e se
volta para o outro lado: o cenário. É quando vamos saber sobre a violência que impera no
lugar onde elas vivem. Claro, algo antes já se entrevê, principalmente pela descrição feita de
dom Achille; mas é uma descrição que não se distancia muito das figuras assustadoras que
49

povoam o imaginário das crianças: velho do saco e bicho-papão, para citar alguns exemplos.
A violência do bairro assemelha-se a um vórtice “cheio de palavras que matavam” (AG, p.23),
um mundo onde crianças e adultos frequentemente se feriam, “o sangue escorria das chagas,
que depois supuravam e às vezes se acabava morrendo. Para morrer bastava uma pedrada, e as
pedradas eram a norma” (AG, p.23). A narradora atribui os medos que a acompanharam por
toda a vida a esses vocábulos com os quais teve contato nos seus primeiros anos. Lila é o
contraste: no mundo onde tudo matava, a amiga parecia ter uma coragem fora do comum.
Por ser a amizade que se estabelece entre as duas o lugar em que Elena parece se
agarrar, durante a infância, para não sucumbir à violência do bairro, o episódio em que Lila
deixa cair a boneca merece ser visto com mais atenção. Os desdobramentos dele no decorrer
da narrativa apontam para esse momento como o umbigo do livro23, tomando de empréstimo a
expressão usada por Freud (1900/1996) em A interpretação dos sonhos.
Freud (1900/1996) caracteriza o sonho como linguagem pictográfica: o trabalho do
sonho, como ele o chama, conjuga imagens e palavras como resultado da transposição dos
pensamentos latentes em cenas visuais que são escritas novamente quando se conta o sonho.
Apesar de fazer a analogia do sonho com um “quadro onírico”, Freud diz que “os sonhos
constroem-se mesmo com palavras” (FREUD, 1900/1996, p.43). Rivera (2013, p.83) vai nos
dizer que, no sonho, a relação entre imagem e palavra não é exatamente contínua e
harmoniosa. “O pictograma onírico é rébus, é charada: assim como, para significar soldado,
podemos desenhar um sol ao lado de um dado” (Rivera, 2013, p.83). O sonho propõe um
enigma e, para chegar à sua solução, é necessário caminhar letra a letra dentro das palavras
que o compõem. Por essa razão, um sonho não pode ser comunicado, como uma notícia de
jornal, o sonho deve ser narrado, interpretado, a ele devem ser atribuídos múltiplos sentidos.
Nesse movimento de transposição o sonho é transformado, fragmentado e, ao fazer isso, deixa
lacunas. A metamorfose pela qual passa faz Freud afirmar que há sempre algo de perturbador
no sonho, mesmo quando ele nos deixa uma lembrança coerente, há o confronto com algo
estranho. Algo que nos faz arrodear um ponto cego, uma ausência que Freud chama de
umbigo – fazendo, assim, do sonho um corpo. Na multiplicidade de imagens que apresenta, o
sonho tem como núcleo um ponto de contato com o desconhecido. Nesse ponto, seu umbigo,
é que o sonho se torna obscuro e encontra o limite de sua interpretação. Apesar de encoberto,
é desse ponto inescrutável que vem a “potência formadora das imagens” – que seguem
arrodeando e cobrindo o ponto cego ao mesmo tempo que aponta para ele. Quando se chega

23 Essa expressão foi sugerida durante a qualificação por Lúcia Serrano.


50

muito próximo deste ponto impossível de imaginar, as imagens são postas em xeque, e a letra
deve vir em nosso socorro (RIVERA, 2013, p.83-84).
A queda das bonecas também parece nos direcionar para o ponto ambíguo onde, nos
dizeres de Blanchot (2011, p.91), surge o enigma que interroga a obra literária desde o seu
centro, “enigma com o qual não existe compromisso, porque ele exige que não se faça e não
se seja nada que não tenha sido atraído para ele” (BLANCHOT, 2011, p.91).
Através do livro A volta do parafuso, do escritor norte-americano Henry James
(1898/2008), Blanchot (2013, p.184) se pergunta o que é o assunto de uma narrativa e em que
consiste o seu “coração malicioso”, ponto de enigma. Começa pela leitura dos Carnês,
espécie de diário de James, lugar onde ele anotava fragmentos que depois seriam
desenvolvidos nos livros: histórias que ouvia nas festas da alta sociedade que frequentava,
conversas que capturava nas ruas, esboços do que será a obra. Por vezes uma página ou uma
única frase que, “engajada na profundidade da narrativa” (BLANCHOT, 2013, p.184),
configura a busca da narrativa por ela mesma, um caminho que só o movimento imprevisível
da escrita romanesca pode abrir.
Uma das frases dos Carnês que chama a atenção de Blanchot (2013) diz: “O assunto é
tudo – o assunto é tudo (…) Quanto mais avanço, mais intensamente percebo que é sobre a
solidez do assunto, a importância, a capacidade de emoção do assunto, e somente sobre isso,
que convirá estender-me” (BLANCHOT, 2013, p.185). Tudo o mais desmorona, parece pobre,
trai a confiança do escritor: apenas o assunto deve ser levado em consideração.
Mas o que é o assunto? A digressão de Blanchot (2013, p.187) encontra nos Carnês,
três anos antes, o trecho que será posteriormente transformado no livro A volta do parafuso.
Uma anedota que o bispo de Canterbury ouviu de uma senhora desprovida do dom da
expressão e da clareza:

A história de crianças (número e idade indeterminados) confiadas a empregados


num velho castelo no campo, sem dúvida depois da morte dos pais. Os empregados,
maus e depravados, corrompem e depravam as crianças; as crianças são más,
perversas a um grau sinistro. Os empregados morrem (a história deixa vago o que se
refere ao tipo de morte que tiveram) e seus fantasmas, suas figuras, vêm assombrar a
casa e as crianças, às quais eles parecem fazer sinais, que convidam e solicitam, no
fundo de cantos perigosos – no fosso profundo de um recinto desmoronado etc., para
incitá-las a se destruírem, a se perderem ao obedecer-lhes, colocando-se sob seu
domínio. Enquanto as crianças são mantidas longe deles, não se perdem; mas essas
presenças maléficas tentam incansavelmente apoderar-se delas, e atraí-las para o
lugar onde se encontram (…) Tudo isso é obscuro e imperfeito – o quadro, a história
–, mas ali a sugestão de um efeito, um estranho arrepio de horror. A história deve ser
contada – com credibilidade suficiente – por um espectador, um observador de fora.
(JAMES, apud BLANCHOT, 2013, p.187-188).
51

Blanchot (2013, p.190) se pergunta: será esse o assunto de A volta do parafuso? O


principal parece estar aí: as crianças, ligadas por uma relação dominadora com figuras que as
assombram, as atraem, pela lembrança do mal, para o espaço onde elas devem se perder. É
desse rascunho que James tira um dos efeitos mais cruéis do livro: a ambiguidade da
inocência das crianças, o enigma das aparições que são atribuídas aos adultos e a incerteza
que pesa sobre a projeção nelas do espírito alucinado de sua governanta. 24 O que há de
aterrador na história, evocação indireta do estranho, provém principalmente da desordem
causada pela presença dos fantasmas e não da presença em si. A desordem é provocada pelo
fato da governanta ser também a narradora do livro, com o seu não contentamento em apenas
ver os fantasmas mas também precisar falar deles, “atraindo-os para o espaço indeciso da
narração, naquele além irreal onde tudo se torna fantasma, tudo é deslizante, fugitivo, presente
e ausente (…), e que é talvez apenas o coração malicioso de toda narrativa” (BLANCHOT,
2013, p.190, grifo nosso).
Chama a atenção, na nota que James faz como rascunho da escrita do livro; para a
credibilidade da história é preciso que ela seja contada por um espectador, um observador de
fora. A volta do parafuso começa com a reunião de um grupo de amigos na véspera do natal
para contar histórias fantásticas. Um deles tem em mãos o manuscrito de uma história
supostamente verídica: as anotações de uma mulher sem nome, filha de um religioso,
contratada para trabalhar como governanta em uma casa de campo. Ou seja, a governanta
como narradora da história é “a própria intimidade da narrativa, uma intimidade estrangeira,
presença que tenta penetrar no centro da história em que ela permanece como uma intrusa,
uma testemunha excluída” (BLANCHOT, 2013, p.190). Ao se impor na narrativa de maneira
não-confiável ela nos revela a ambiguidade que tenta dissimular.
Através dessa narradora, Blanchot nos diz que o assunto de A volta do parafuso é a
maneira de girar em torno de um segredo. No entanto, não se trata de uma revelação, algum
pensamento ou sentença que possa ser verbalizada e, assim, teremos sua solução – como em
uma história policial tradicional. O segredo ao redor do qual a narrativa gira, seu assunto,
deve permanecer nessa região que não é a da luz, escapando a toda e qualquer revelação.
O que o filósofo francês nos deixa entrever através do assunto é que em A volta do
parafuso Henry James parte de uma história a ser contada que existe para ele antes mesmo de
ser contada. Quando o autor se dispõe a narrar, ele não quer descobrir de onde essa história

24 Segundo André Gide, A volta do parafuso não era uma história de fantasmas, mas uma narrativa freudiana na
qual a narradora – a governanta – faz com que as crianças vivam em contato com imagens assustadoras que, sem
ela, não perceberiam (BLANCHOT, 2013, p.188-189).
52

surge, qual sua origem – que deve permanecer como cifra do indecifrável –, mas fazer um
esforço de alargar as malhas do discurso. Essa é a potência da criação literária.
O momento do trabalho preliminar de Henry James, o esboço que anota em seus
Carnês, representa, para Blanchot (2013, p.194), o momento em que a obra, “próxima mas
não tocada, permanece sendo o centro secreto em torno do qual ele se entrega, com um prazer
quase perverso, a investigações que pode estender porque liberam a narrativa, mas não a
engajam ainda”(BLANCHOT, 2013, p. 194). Muitas das observações que ele faz nos
cadernos desaparecem na obra ou se reencontram nela com valores negativos, como se marcar
o que poderia ter acontecido e não aconteceu também fizesse parte do jogo de engano e
segredo da literatura. Assim, James mostra a tessitura da experiência, não da narrativa que
escreveu

mas do seu avesso, do outro lado da obra, aquele que oculta necessariamente o
movimento da escrita e que se preocupa com ele, como se tivesse a angústia e a
curiosidade por aquilo que existe atrás de sua obra, quando ele a escreve.
(BLANCHOT, 2013, p.194).

O que se chama de paradoxo apaixonado do plano de Henry James é que este


representa para ele a felicidade da criação, que coincide com a indeterminação da obra, a põe
à prova mas não a reduz – coloca em questão a narrativa o tempo inteiro, ao torná-la presente
a cada instante, como se a pergunta sobre o fazer literário fosse o combustível que a faz girar.
Uma narrativa que em sua forma faz pressentir outras formas, “o espaço infinito e leve da
narrativa tal como ela ainda poderia ser, tal como ela é antes de todo começo” (BLANCHOT,
2013, p.195). Essa condição que ele coloca para fazer surgir a obra não a limita, pelo
contrário, é a condição para que ela possa falar mais livremente, sem reservas. O título da
história A volta do parafuso 25, faz alusão a esse movimento, confirmando que James tem
noção do assunto da sua narrativa, mas não do seu segredo. O assunto teria então a função de
resguardar esse segredo, no perpétuo movimento de girar o parafuso. A maneira como a
governanta tenta extrair das crianças algo que elas não conseguem dizer, parte do invisível, é
o movimento da própria narrativa, “maravilhoso e terrível que o fato de escrever exerce sobre
a verdade, tormento, tortura, violência que conduz finalmente à morte na qual tudo parece
revelar-se, na qual, entretanto, tudo recai na dúvida e no vazio das trevas” (BLANCHOT,
2013, p.195).
Esse parece ser o movimento que começa a se desenhar quando Elena diz que, ao ver a
boneca cair, sente uma dor insuportável; para ela, Tina era um ser vivo, e saber que agora ela

25 O título original, em inglês, é The turn of the screw


53

estava no fundo de um porão, em contato com mil animais que ali viviam, a deixa
desesperada. No entanto, a menina contém o desespero, pega a boneca de Lila e a joga no
porão, dizendo: “o que você fizer, eu também faço” (AG, p.48). Lila exige que Elena vá
buscar sua Nu e Elena responde que as duas devem ir juntas. Elas adentram o espaço até então
desconhecido.
“Toda criança era tentada e ao mesmo tempo aterrorizada pela possibilidade de forçar
a portinha aquele tanto que tornaria possível passar para o outro lado” (AG, p.48), nos diz a
narradora, deixando explícito que a passagem para o desconhecido não é simples. Elas
conseguem abrir um espaço – suficiente para os corpos se esgueirarem portão adentro. Uma
vez lá dentro, primeiro Lila, depois Elena, descem os degraus de um local úmido e mal
iluminado. Nossa narradora sente medo, avança devagar, enquanto Lila vai decidida em
direção ao fundo. O entorno estava cheio de coisas impossíveis de identificar por causa da
escuridão, “objetos que estalavam, vidro, pedrisco, insetos, massas escuras, pontiagudas,
quadradas ou arredondadas” (AG, p.48). A pouca luz que entrava através do escuro dava a ver
também objetos conhecidos, mas era principalmente a desforma que dominava o local. Elena
conta que toma um grande susto ao deparar-se com uma “cara flácida com grandes olhos de
vidro, que se alongava num queixo em forma de caixa” (AG, p.48). Dá um grito e percebe que
se trata de uma máscara antigás que Lila põe no rosto, criando uma imagem grotesca.

Foram instantes que me ficaram bem impressos na memória. Não tenho certeza, mas
devo ter dado um verdadeiro grito de horror, porque ela se apressou em dizer com
voz retumbante que era apenas uma máscara, uma máscara antigás: seu pai a
chamava assim, tinha uma idêntica no depósito de casa (AG, p.49).

Lila apalpa o chão com as mãos, repetindo em dialeto a frase: não estão aqui, não
estão aqui, não estão aqui… Elena sentia o tempo lá dentro como interminável, sendo
invadida pelos sobressaltos que tocar em cada coisa naquele lugar lhe provocava. Por fim,
Lila decide ir embora e, do alto da escada profere: “Foi dom Achille que as roubou e enfiou na
bolsa preta” (AG, p.49). As duas saem correndo pela porta que, àquela altura, estava
escangalhada.
Assim como na narrativa de Henry James analisada por Blanchot, é possível ouvir
ecos de anotações anteriores de Elena Ferrante no trecho do desaparecimento das bonecas em
A amiga genial. De maneira análoga ao caso do escritor norte-americano, no livro
Frantumaglia Ferrante (2017) escreve um texto em resposta a uma pergunta e o intitula como
A fera no quartinho, trazendo um elemento para nos ajudar a pensar a questão da autora-
personagem nos livros. Também se trata de situarmos a estrutura mise en abyme em que o
54

livro é construído, pensando na repetição como uma pista para o mistério, um caminho para o
coração malicioso da narrativa. Por isso, antes de falar sobre o episódio da fera no quartinho,
abordaremos brevemente o que entendemos por mise en abyme.
A estrutura que ficou conhecida como mise en abyme é definida pelo crítico Lucien
Dallenbach (1977, p.18, apud PINO, p.160) como toda inserção de uma narrativa dentro de
outra que apresenta alguma relação de similitude com aquela que a contém. O objetivo deste
recurso, criado a partir da obra do surrealista André Gide, é o de colocar em evidência a
construção da obra. Na leitura de um relato dentro de outro é possível pensar em ambos como
construídos, o que, para Dallenbach, traz diferentes formas de pensar a narrativa. O crítico
enumera três dessas formas, a saber: a primeira, a mais simples, inspirada na técnica de
confecções de brasões 26 que inspirou Gide a transpor a mise en abyme para a literatura,
podemos definir como uma história dentro da outra. A segunda reproduz o efeito de reflexão
infinita de quando um espelho é colocado na frente do outro. Na literatura, essa forma se
manifesta como um relato dentro de um relato semelhante, que, por sua vez, contém outro
relato semelhante, e assim por diante. A terceira forma é a reflexão paradoxal, quando as
narrativas contidas uma dentro da outra (de maneira simples ou infinita) confundem-se, sem
que a leitura permita identificar o interior e o exterior de cada relato. É o caso de Os
moedeiros falsos de André Gide, no qual o personagem principal, Édouard, escreve um
romance chamado Os moedeiros falsos (PINO, 2004).
Pino (2004) ressalta que não há um consenso teórico sobre o conceito de mise en
abyme, principalmente pela sua proximidade com a noção de intertextualidade. Essa
dificuldade foi amenizada pela classificação realizada por Dallenbach, e é a partir dela que
pensaremos os reflexos de Elena Ferrante em Frantuumaglia em Elena Greco na tetralogia
napolitana. Nara Maia Antunes (1982, p.61) aponta que, na estruturação feita por Dallenbach,
o que deve ser levado em consideração é o grau de semelhança ou analogia possível de ser
estabelecida entre as narrativas componentes da mise en abyme, mesmo que tal similitude só
possa ser analisada a partir de fragmentos do texto. Antunes (1982, p.61) faz uma
esquematização que pensamos ser interessante citar para a hipótese que sustentaremos neste
trabalho:

1) a reduplicação simples: o fragmento mantém com a obra que o inclui uma relação
de semelhança simples (grau de analogia: similitude)
2) a reduplicação ao infinito: o fragmento mantém com a obra que o inclui uma
relação de semelhança a tal ponto que ele também inclui um fragmento que o

26 A técnica consiste em inserir uma figura de brasão dentro de outra figura de brasão.
55

reduplica, que também tem um fragmento que o reduplica, e assim sucessivamente


(grau de analogia: mimetismo)
3) a reduplicação paradoxal ou aporística: o fragmento reflexivo contém a obra que
o inclui (grau de analogia: identidade) (Antunes, 1982, p.61)

Blanchot alerta para a repetição no título quando fala do livro de Henry James, A volta
do parafuso, que em algumas traduções brasileiras ainda ganhou o reforço para a volta, sendo
chamado A outra volta do parafuso. Na série napolitana há uma repetição dos nomes da
escritora-narradora: Elena Ferrante é uma autora que cria Elena Greco, uma narradora-autora,,
e os fragmentos da biografia de Ferrante aos quais temos acesso em Frantumaglia mantém
uma relação de semelhança com o que acontece a Elena Greco na tetralogia que se inicia em
A amiga genial. No episódio narrado em Frantumaglia, que parece refletir-se na descida ao
porão da casa de dom Achille na narrativa de Elena Greco, acrescentamos um ponto para
pensarmos tais questões.
É a partir de uma pergunta sobre culpa e inocência feita por uma repórter que Ferrante
(2017, p.179) decide escrever as páginas sobre a fera no quartinho: “Nenhum dos seus
personagens pode se declarar inocente, mas tampouco inteiramente culpado. Como se
apresenta a culpa no feminino? E no masculino?”. A autora dá uma resposta longa, da qual
vamos extrair aqui alguns pontos para pensar como esse episódio se relaciona com a entrada
no porão, o desaparecimento das bonecas e o segredo da obra literária.
Ferrante diz que seus primeiros questionamentos sobre ética começaram há algumas
décadas, dentro de um quartinho. Ali desejou matar e se punir, aquele fora o lugar secreto de
um longo conflito que teve com sua mãe. Esse quartinho, segundo a autora, já apareceu em
seu primeiro livro, Um amor incômodo – tratava-se de um cômodo sem janelas, sem luz
elétrica, na casa napolitana de sua infância. “Era um quartinho de despejo, abarrotado de
coisas, mal dava para entrar (…) às vezes, a porta estava entreaberta e dava para sentir um
hálito frio com cheiro de inseticida” (FERRANTE, 2017, p.117). Ela havia se convencido que
se tratava do hálito de uma grande fera, pronta para devorá-la; a fera ficava à espreita, “entre
móveis velhos, cadeiras sem assento, caixas, lanternas, uma máscara antigás” (FERRANTE,
2017, p.117). Apesar do medo, ela não contava a ninguém, o quartinho permanecia como um
segredo seu.
Por volta dos dez anos de idade, Ferrante diz que o lugar se tornou de importância
capital para sua história; sua terceira irmã tinha quatro anos e era um obstáculo nas
brincadeiras com a outra irmã, de sete anos. Um dia, cansada das intromissões da caçula, ela
diz: precisamos de uma corda para continuar a brincadeira, tem uma no quartinho. Ela chama
a atenção para o fato de que não pediu à irmã que fosse pegar a corda, apenas sugeriu que elas
56

estavam precisando de uma para continuar a brincadeira e onde poderiam encontrá-la. Sentia-
se exasperada, desejava a morte da irmã que se intrometia nas brincadeiras entre as duas
desde que havia nascido. Por isso, ficou satisfeita com a frase que brotara com naturalidade,
afirmando que sempre se lembrará dela por ter sido o início consciente da sua relação com as
palavras: “precisamos de uma corda, tem uma no quartinho” (FERRANTE, 2017, p.118).
Conta então que, ao observar sua irmã ir em direção ao quarto, começa a imaginar que
a fera a está devorando. Essa imagem lhe dá embrulhos no estômago, “a imagem do corpo
reduzido a uma pasta de sangue” (FERRANTE, 2017, p.121) criara-lhe um mal-estar
insuportável. Elena corre até o quartinho para tentar acabar com aquele asco, passa na frente
da irmã e se tranca ela mesma lá. Diante da confusão armada pela caçula, a mãe aparece e dá
um tapa na menina mais velha, o que gera um conflito: como podia ser punida por ter salvo a
irmã? A partir de então, a autora diz que só acalmou suas dúvidas sobre culpa, inocência e
ética quando aos 18 anos encontrou a filosofia kantiana. Concentrou-se em dar a si mesma um
certo alívio pelo desejo que havia sentido e não tinha cessado nos anos seguintes: apesar de
ter salvo a irmã e se submetido à fera no quartinho no lugar dela, não era esse seu desejo. Se
ela correu e passou na frente fechando a porta atrás de si foi por não suportar a imagem do
corpo esmagado e reduzido a nada.

O percurso não é tão ordenado, a escrita que o faz assim. Do quartinho até o cômodo
no qual estou escrevendo agora o caminho é longo e muito mais tortuoso, mais
ramificado. O que pareceu uma passagem secundária, na época ganhou força depois
e se tornou primária. Aquele asco, por exemplo. E a chegada da minha mãe.
(FERRANTE, 2017, p.122)

Ferrante (2017, p.123) conta que depois se fechava com frequência no quartinho só
para testar a mãe, ver se ela se importava, se a amava mais do que qualquer outra coisa

(…) O quartinho deixa de ser o local de uma tocaia mortal para minha irmã e se
torna algo mais fugidio, um espaço estavelmente habitado na memória somente por
mim e por minha mãe, uma espécie de local de repetição, como em certos sonhos,
sempre a mesma ação, sempre a mesma necessidade (FERRANTE, 2017, p.123).

A autora diz que escreveu várias vezes sobre essa autorreclusão no quartinho sem bons
resultados. Ao longo dos anos, a lembrança tornou-se algo difícil de sistematizar em uma
página. No entanto, seus dois primeiros romances certamente partem daí, afirma Ferrante: a
porta fechada, a imaginação do mal e do medo estão no cerne dos acontecimentos de Um
amor incômodo27 e Dias de abandono, livros lançados até a data de publicação da entrevista.

27 Apesar de não ser nossa intenção explorar os livros de Elena Ferrante (2017) além da série napolitana, parece
importante mencionar um dos trechos de Um amor incômodo que faz referência ao quartinho: “Deixei a porta
aberta e entrei novamente no porão. Com a lanterna, procurei a portinha que levava ao nível mais baixo daquele
57

Podemos deduzir que também o episódio da queda das bonecas encontra essa cena distante da
infância da autora: a descrição do ambiente é parecida, inclusive há a imagem da máscara
antigás. A escritora parece colocar em evidência que esse episódio no quartinho tem a ver com
a sua criação posterior, como se suas obras literárias futuras fossem uma repetição daquele
início de sua relação com as palavras. As personagens que são criadas posteriormente, que
habitam também aquele quarto, são criações de outras realidades para salvar-se.
Retomando Pino (2004), o que parece acontecer na série napolitana em relação à
Frantumaglia é o reflexo no relato da história de Lila e Lenù de um ou mais elementos
narrativos de um primeiro relato com fragmentos biográficos da autora Elena Ferrante, reflexo
este que é radicalizado pela ausência da autora enquanto pessoa civil, engendrando diversas
possibilidades de teorização para a questão da autoria, os processos de criação literária e
leitura ou a manifestação da produção da obra e da recepção. Nosso recorte aqui é específico
nos livros que compõem a tetralogia napolitana, mas a leitura de algumas entrevistas de
Frantumaglia apontam para um jogo de espelhos também nas personagens dos livros mais
curtos de Elena Ferrante. Como a segunda forma de mise en abyme proposta por Dallebach
(apud PINO, 2004), um espelho na frente do outro origina uma série de imagens que se
reproduzem ao infinito.
Nesta seção, recolhemos o trecho do quartinho da fera que parece refletido na descida
de Lenù e Elena ao porão, como um primeiro degrau para pensar o reflexo que a palavra
herdada por Ferrante da sua mãe, a frantumaglia, relaciona-se ao que Elena Greco nos conta
sobre a desmarginação de Lila. Há algo que não se define na criação, que aparece na
deformidade do corpo esmagado da irmã que Elena Ferrante manda em direção à morte. Algo
que aparece quando Elena e Lila descem juntas ao porão, e que se repetirá quando estivermos
diante da desmarginação.28
Na entrada da pequena Elena Ferrante no quarto da fera, no momento em que
vislumbra um início da sua relação com as palavras, e na descida de Lila e Elena ao porão, há

andar subterrâneo. Eu lembrava que era de ferro pintado, talvez de marrom. Encontrei uma portinhola de
madeira com não mais do que cinquenta centímetros de altura: mais um postigo do que uma porta, entreaberto,
com um aro de metal na folha e outro no alizar. No último, estava enfiado um cadeado aberto (…) Abri a
portinhola e joguei o feixe de luz da lanterna lá dentro. Agachei-me, joelhos no peito, cabeça reclinada. Curvada
daquela maneira, arrastei-me pelos degraus escorregadios. Aceitei, ao longo do percurso, contar tudo a mim
mesma, todas as verdades guardadas pelas mentiras”. (Ferrante, 2017, p.161-162).
28 Na Divina Comédia, um acontecimento tão extraordinário quanto atravessar as portas do inferno só é possível
com a ajuda e companha de alguém que é ao mesmo tempo sábio e poeta. Virgílio, “a fonte que derrama tão
grande rio de linguagem”, é convocado como aquele que dá sustentação a Dante em sua viagem para ultrapassar
os dizeres mais tenebrosos que um mortal pode imaginar: “Vós que entrais, deixais aqui toda esperança”. A
potência criadora da poesia, da literatura, é o único guia capaz de ir “ao mais profundo do desespero humano
sem nele se perder” (PEREIRA, 2008, p.26).
58

algo que se aproxima do inquietante, estranho-familiar, unheimlich, diremos com Freud, tanto
em relação ao enredo do livro, quanto em relação à autoria. É com ele que vamos seguir
adentrando o mistério dessa narrativa.

4.1 O inquietante, travessia

Apesar de Freud sempre ter trabalhado com a arte, a escultura, a poesia e a literatura
na criação da psicanálise, muitas vezes seus textos resvalam para um excesso de interpretação
da obra e, principalmente, é comum vermos uma tentativa de explicar a obra pela vida do
artista que a criou. No entanto, quando pensa a questão do Inquietante (das Unheimliche)
(1919/2014), o psicanalista parece escapar ao determinismo da vida do artista sobre a criação.
Chaves (2016) assinala que o texto de 1919 introduz uma ruptura que favorece inteiramente a
virada que o psicanalista consolidará em sua teoria no ano seguinte, com a publicação de
Além do princípio do prazer (1920/2016); tanto os escritos anteriores como os posteriores se
veem diante da sombra que o Inquietante faz em relação à teoria e à tessitura da escrita.
Sobre a estética produzida pelo inquietante, Hèlene Cixous (1974, apud PORTUGAL,
2006) destaca o quanto o texto é impregnado do próprio conceito que destina a desenvolver,
designando-o como um “estranho romance teórico”. Cixous diz também que há algo de
selvagem no Unheimlich, um espírito de provocação que, às vezes, pega o próprio Freud
desprevenido. Texto de incerteza e hesitação, tecido a partir da fugacidade que é própria do
material literário, o inquietante aparece como uma sombra ou um duplo que está sempre
escapando. “Pensamos em seguir uma demonstração; sentimos o terreno abrir-se em fendas: o
texto estende suas raízes, ora no solo, ora no ar, como uma metáfora de si mesmo” (CIXOUS,
1974 apud PORTUGAL, 2006, p.80).

Nesse texto, ele pretende chegar cientificamente a um conceito e configurar seu


domínio. Com esse intuito, tenta fazer coincidir o significante Unheimliche com o
significado que lhe quer atribuir, mas a própria incerteza inerente ao conceito faz
com que o texto mesmo acabe sendo marcado pela hesitação e dubiedade
(BRANDÃO, 2006, p.37).

O método utilizado pelo psicanalista na escrita do ensaio é algo a se destacar pela


abertura que proporciona às questões que apresenta: na sua aproximação com experiências
pessoais, estudos linguísticos e referências à literatura, Freud propõe que a construção do
pensamento não deve se direcionar para uma resposta, mas sim à amplificação das perguntas.
59

Não é difícil aproximar a instabilidade aludida por Cixous e Brandão ao que Blanchot
diz sobre a literatura e ao que Elena Ferrante descreve em seus livros como desmarginação.
Por essa razão, e por acreditar que o ensaio de Freud nos ajuda a construir um pensamento
sobre o segredo que se instaura na narrativa de A amiga genial com o episódio da queda das
bonecas, vamos seguir por esse caminho com ele, desenredando alguns fios para entender
mais sobre a criação literária.
No início de O inquietante, Freud sublinha (1919/2010) que “é raro o psicanalista
sentir-se inclinado a investigações estéticas, mesmo quando a estética não é limitada à teoria
do belo, mas definida como teoria das qualidades do nosso sentir” (FREUD, 1919/2010,
p.329). Seu trabalho acontece com outras camadas da vida psíquica, e pouco lida com as
emoções que são próprias ao material da estética. No entanto, pode acontecer dele se
interessar por um aspecto específico da estética, aspecto marginal que é negligenciado por
quem se debruça sobre a matéria: o inquietante (das Unheimliche) parece ser um desses
domínios, que não diz respeito ao belo, mas a algo da ordem do assustador e angustiante. O
esforço que ele empreende é, então, na direção de especificar o que há de comum nos
fenômenos relacionados ao inquietante, diferentes daqueles que compõem o núcleo do
angustiante.

O tema do inquietante (…) sem dúvida, relaciona-se ao que é terrível, ao que


desperta angústia e horror, e também está claro que o termo não é usado sempre num
sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante. É lícito
esperarmos, no entanto, que exista um núcleo especial (de significado) que justifique
o uso de um termo conceitual específico. Gostaríamos de saber que núcleo comum é
esse, que talvez permita distinguir um inquietante no interior do que é angustiante
(FREUD, 1919/2010, p.329-330).

Na primeira parte do artigo, Freud se dispõe a fazer um estudo linguístico em torno da


palavra Unheimlich. Analisa o estudo de Jentsch (1906) para concluir que há uma experiência
de afeto concernente ao termo: “o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que
remonta ao que é muito conhecido, ao bastante familiar” (FREUD, 1919/2010, p.331).

A palavra alemã unheimlich é evidentemente o oposto de heimlich, heimisch,


vertraut [doméstico, autóctone, familiar], sendo natural concluir que algo é
assustador justamente por não ser conhecido e familiar. Claro que não é assustador
tudo o que é novo e não familiar, a relação não é reversível. Pode-se apenas dizer
que algo novo torna-se facilmente assustador e inquietante; algumas coisas novas
são assustadoras, certamente não todas. Algo tem que ser acrescentado ao novo e
não familiar, a fim de torná-lo inquietante (FREUD, 1919/2010, p.331-332)

Não convencido da explicação de Jentsch, que atribui o inquietante à incerteza


intelectual, Freud começa outras pesquisas. Busca primeiro nos dicionários de línguas
estrangeiras os significados e a etimologia da palavra. Para a nossa investigação é interessante
60

observar como Freud aproxima as palavras da literatura, até mesmo nas pesquisas que faz a
partir do dicionário. Do latim, ele traz significações que tem a ver tanto com o espaço quanto
com o tempo: “um local unheimlich; uma hora da noite unheimlich”; em árabe e hebraico há
uma aproximação com o “demoníaco, horripilante”; No alemão, a partir do dicionário de
Daniel Sanders (1860), há uma longa citação para mostrar a ambiguidade da palavra, tanto
próxima da intimidade, ao que pertence à casa, desperta a sensação de repouso agradável e
segurança como estar entre as quatro paredes de uma casa, quanto com o angustiante
ocultamento ao tirar algo de vista.: Heimlich é usada em expressões junto com o ato de ver, de
velar o que é visto, e quando há a adição da partícula un- enseja a ênfase no misterioso,
sobrenatural, presença de algo angustiante: “a palavra heimlich ostenta, entre suas várias
nuances de significado, também uma na qual coincide com seu oposto, unheimlich” (FREUD,
1919/2010, p.337).

Heimlich? Que entende você por heimlich? - ‘Bem… com eles tenho a impressão
que teria com uma fonte enterrada em um lago secado. Não se pode passar ali sem
achar que a água poderia novamente aparecer’ (FREUD, 1919/2010, p.339).

A investigação do Heimlich leva Freud, então, a enunciar que esta é uma palavra cujo
sentido coincide com algo que se afasta do conhecimento, está numa zona obscura e
inacessível. Os significados de heimlich se encadeiam de forma a compor uma zona de
indistinção com o unheimlich. É quando Freud encerra a primeira parte do ensaio e sua
digressão através da palavra concordando com a definição de Schelling: unheimlich é o nome
de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz (FREUD, 1919/2010)
Sobre a indistinção entre os dois termos, Ruth Silviano Brandão (2006, p.45) nos
lembra uma observação feita por Bernardo Mérigot sobre o engano de Freud quando se trata
do sentido oposto de palavras primitivas. Segundo a psicanalista, Mérigot acena para a
impossibilidade de um termo enunciar algo e seu contrário ao mesmo tempo, uma vez que só
nos contextos discursivos pode se encontrar a hesitação entre usar um ou outro termo; é na
cadeia significante que as oposições e coincidências se revelam, o termo isolado nada pode
significar.
A reflexão sobre essa impossibilidade e a importância do contexto discursivo nos leva
a pensar, junto com Brandão (2006, p.45), que trata-se de um impossível inerente à tradução e
à escrita, “alguma coisa permanece, mas também desliza de uma tradução para outra (…) algo
não se transporta de uma língua para outra sem perda” (BRANDÃO, 2006, p.45). O discurso
é onde percebemos os deslizamentos e efeitos dos significantes, a inscrição ou perda de um
traço se opera quando o sujeito se submete a uma passagem ao que há de mais familiar e é ao
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mesmo tempo inquietante. Como veremos, a desmarginação entra no discurso de Elena Greco
em um momento de passagem – tanto da década, é numa noite de ano-novo, quanto da
estrutura do livro, é quando saímos da infância para a adolescência; Lila lhe conta que
naquele momento sentiu uma repulsa inominável pela pessoa que lhe era mais familiar, a
pessoa que mais amava, seu irmão Rino.
Ana Maria Portugal (2006) nos ajuda no percurso em seu livro O vidro da palavra:
estranho, literatura e psicanálise. Próximo ao termo estranho-inquietante está o de
estranhamento, definido por Houaiss como o desvio do uso padrão da língua numa narrativa
literária. Uma ideia que nasceu no começo do século XX com a escola dos formalistas russos,
complementada por estudiosos de Praga, mas que, apesar de não chegar a elaborar um sistema
teórico, teve como mérito construir a noção que entre literatura e língua há uma teoria em
constante elaboração. A literatura seria a escrita que representa uma violência organizada
contra a fala comum (Roman Jakobson), um tipo de linguagem voltada sobre si mesma, a
existência material da obra podendo ser demonstrada por uma reunião de artifícios: “som,
imagem, ritmo, sintaxe, métrica, técnicas narrativas, com o efeito comum de estranhamento
ou de desfamiliarização” (PORTUGAL, 2006, p.20-21). Sua principal característica é
deformar a linguagem de várias maneiras: intensificando, condensando, reduzindo, ampliando,
invertendo e, graças a esse processo de estranhamento, o cotidiano adquire contornos não-
familiares. Um processo parecido com o que Freud vai descrever, também no começo do
século, sobre os sonhos, que precisa estar inserido na cadeia de associações do paciente para
ser interpretado. A noção que os formalistas estabelecem não tem a ver com a definição de
literatura, mas de literariedade do texto: há a suposição de que todo elemento presente numa
obra traz significação passível de ser interpretada dentro do código literário.
Essa literariedade remete-nos ao que Lacan diz sobre o significante, ao estruturar o
inconsciente como uma linguagem e, a partir de Saussure, indicar a arbitrariedade do signo
linguístico. Lacan defende a autonomia do significante em relação ao significado, postulando
o inconsciente condicionado à repetição de um significante no discurso do sujeito sem que ele
esteja associado à sua significação. Como exemplo, temos o sintoma, a dizer algo de maneira
indireta sobre o desejo do sujeito, mas que é inacessível para ele.

Portanto, o significante tem uma outra função além da de significar: ele representa o
sujeito para outro significante, oculto, recalcado, e, por este fato, também o
determina como sujeito do inconsciente. Por isso se fala em cadeia de significantes,
não existe para ele apenas o efeito de sentido: ele é o responsável pela posição do
sujeito diante do Outro, de adormecê-lo ou despertá-lo (CHEMAMA, 1993, p.265-
267).
62

Portugal (2006) compara os formalistas e o texto freudiano para concluir que o modo
como o ensaio sobre o inquietante é construído sugere a literariedade, uma vez que as
hipóteses propostas na psicanálise sobre sustentação e dissolução do fenômeno estão
correlacionadas ao manejo do autor ficcional.

É preciso esclarecer que, apesar de enfatizar questões que dizem respeito à cadeia
significante (sem manifestar, no entanto, qualquer conhecimento do trabalho dos
teóricos de Praga), Freud não abandona a vertente da significação, nem as relações
da obra literária com as motivações do autor. Embora sejam mantidas as hipóteses
da teoria do inconsciente e do recalque, especialmente nesse ensaio, o privilégio é
dado à ficção que, através da própria trama do texto, promove a identificação do
leitor com um ou outro personagem, provocando os mais amplos efeitos de
estranhamento que os vividos no cotidiano, ou conseguindo deslocá-los para outros,
como o efeito cômico (PORTUGAL, 2006, p.22).

Lembramos aqui Blanchot (2011, p.37), quando diz: “As palavras, como sabemos, têm
o poder de fazer desaparecer as coisas, de as fazer aparecer quando desaparecidas, aparência
que nada mais é senão a de um desaparecimento, presença que, por sua vez, retorna à ausência
pelo movimento de erosão” (BLANCHOT, 2011, p.37). Freud está ocupado em sistematizar o
unheimlich mas parece que esse poder das palavras de fazer passagem, travessia entre
presença e ausência, também é colocado em causa.
O ponto onde o literário faz margem com o inconsciente parece ser a plataforma para
Freud pensar o inquietante. Uma das conclusões a que ele chega sobre esse encontro é que o
escritor sente dificuldades em desfazer o efeito quando acontece a equivalência entre das
Unheimliche (o inquietante) e das Unbewusste (o inconsciente), sendo o prefixo un- a marca
do recalque. Quando Elena descreve a aparência do porão, ela nos diz que uma fresta de luz
entrava e dava a ver o formato de alguns objetos que se tornavam reconhecíveis, mas a
maioria estava na escuridão, com o aspecto deformado. Lembremos também de como ela se
refere a dom Achille, segundos antes de Lila bater à sua porta para perguntar onde estão as
bonecas: “uma forma que assumia todas as formas. Eu o imaginava de boca aberta, com suas
longas presas de fera, corpo de pedra reluzente e ervas venenosas, sempre pronto a recolher
numa enorme bolsa preta tudo que deixávamos cair dos cantos desguarnecidos das grades”
(AG, p.23).
A bolsa preta era o lugar onde dom Achille metia matéria viva ou morta e, no texto,
mais uma vez nos aproximamos do inquietante na forma e desforma daquele personagem, no
lugar onde a vida é insólita e a existência repleta de mistério. Ao subir as escadas, Elena diz
que, se antes estavam obrigadas a descer as escadas rumo ao desconhecido para recuperar as
bonecas, a tarefa agora era subir em direção ao medo. Para o alto ou para baixo, não
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importava, parecia que estavam sempre indo ao encontro de algo terrível que, mesmo
existindo antes, era a elas, e sempre a elas que aguardava.
Ao falar sobre a armadilha da outra noite em O espaço literário, Blanchot (2011,
p.183) diz que ela se localiza na primeira noite em que se pode penetrar, “onde se entra pela
porta da angústia, mas onde a angústia vos oculta e onde a insegurança se torna abrigo”
(BLANCHOT, 2011, p.183). A noite ainda pertence ao mundo, ao dia, é onde tudo desaparece,
ela precisa ser atravessada para que se alcance a outra noite onde o tudo desapareceu.
Caminhar por ela, porém, não é um trabalho simples, e o escritor evoca o aspecto animal da
obra de Kafka, no que sua escrita engendra de poder ser erguida no desconhecido. Quanto
mais concreta e sólida aparenta ser a narrativa de Kafka por uma mirada exterior, do fora,
mais perigosa ela se mostra no interior.

O que o animal pressente na lonjura, essa coisa monstruosa que vem eternamente ao
seu encontro, que aí trabalha eternamente, é ele próprio, e se pudesse alguma vez
encontrar-se em sua presença, o que encontraria é a sua própria ausência, é ele
mesmo mas transformado no outro, que não reconheceria, que jamais encontraria. A
outra noite é sempre o outro, e aquele que o ouve torna-se outro, aquele que se
aproxima distancia-se de si, não é mais aquele que se acerca mas o que se distancia,
que vai daqui, de lá. (BLANCHOT, 2011, p.184)

Quem entra na primeira noite e busca entrar em sua intimidade mais profunda, num
dado momento do percurso ouve a outra noite, nada mais do que ouvir a si mesmo, o eco que
repercute na eternidade de sua própria caminhada em direção ao silêncio; eco que lhe é
devolvido como uma imensidão sussurrante, que o direciona para o vazio, o vazio que se faz
presença para vir ao seu encontro. Entrar na proximidade da outra noite é perder toda a
possibilidade, um instante que tende a se evitar: “como é recomendado ao viajante evitar o
ponto em que o deserto se converte na sedução das miragens” (BLANCHOT, 2011, p.184).
Mas, Blanchot alerta, para quem se deixa levar pelo risco, pela escrita, essa prudência é
inadmissível: não existe um limite discernível entre a noite e outra noite, uma linha passível
de ser enxergada e onde se pode dizer não quero mais atravessar.
O risco da escrita é o fascínio da outra noite, a potência do erro, onde o vínculo entre
palavra e eu é quebrado. Ao entrar na “experiência da narrativa, a escrita mina
progressivamente a segurança de quem escreve, sua convicção de que dispõe de meios
expressivos adequados, as mesmas convenções que, no início, parecem lhe dar segurança”
(FERRANTE, 2017, p.356).
A outra noite nos faz voltar a esse ponto de questionamento do texto o inquietante,
quando Freud se dedica a examinar o conto O homem de areia de E.T.A. Hoffmann
(1817/2010). Como dito anteriormente, a incerteza intelectual atribuída por Jentsch como a
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causa do efeito inquietante – dubiedade em relação à boneca Olimpia ser um ser vivo ou um
autômato –, não convence Freud. O psicanalista vai nos dizer que o tema da

boneca aparentemente viva, Olímpia, não é o único nem o principal responsável pelo
efeito incomparavelmente inquietante da narrativa (…) No centro da história acha-se
um outro elemento, que ademais lhe empresta o título, e que sempre retorna nas
passagens decisivas: o tema do Homem da Areia, que arranca os olhos das crianças.
(FREUD, 1919/2010, p.341)

O conto de Hoffmann tem início com recordações da infância do protagonista,


Nathaniel, principalmente sobre o medo terrível de um personagem que habitava as histórias
de sua babá, o Homem de Areia. Ele aparecia para jogar areia nos olhos das crianças
desobedientes que se recusavam a dormir na hora. A areia fazia os olhos pularem fora das
órbitas e, com isso, os filhos do homem de areia seriam alimentados. Nathaniel funde a figura
da história com um amigo de seu pai, o advogado Copélio que, um dia, diante de um ataque
do menino, ameaça atirar brasas nos seus olhos. Anos depois, uma explosão mata o pai do
protagonista, numa ocasião em que o advogado o estivera visitando. O fato só faz aumentar o
horror pelo homem de areia. Já adulto, Nathaniel se depara com um oculista itinerante
chamado Coppola que quer lhe vender um telescópio e a figura do Homem de Areia volta a
aterrorizá-lo. Olhando através do telescópio para a janela da sua vizinha, percebe a existência
de Olímpia, uma jovem muito bela e imóvel, filha do mecânico Spalanzani. Ao presenciar
uma briga entre Spalanzani e Coppola, Nathaniel percebe que Olimpia é um autômato que
teve seus olhos criados pelo temido oculista. Em meio à discussão o protagonista tem um
ataque semelhante ao da infância e Coppola aproveita para fugir com a boneca, não sem antes
arrancar-lhe os olhos e arremessá-los em Nathaniel que grita, enlouquecido: “Rode, círculo de
fogo!”. No fim do conto, Nathaniel sobe em uma alta torre na companhia da sua noiva. Lá de
cima ele crê avistar a figura do Homem de areia e, ao se ver tomado pelo mesmo horror de
antes, tenta jogar a jovem do alto. Ela é salva por seu irmão, mas o jovem Nathaniel se lança
de cima da torre, repetindo aos gritos: “Rode, círculo de fogo!”.
Como dito, a afirmação de que é a presença da boneca que causa o efeito inquietante
não se sustenta para Freud. O que irrompe na narrativa e traz a sensação unheimlich pode ser
o medo de ter os olhos arrancados, uma vez que a experiência psicanalítica alerta para a
terrível angústia infantil que é o medo de ferir ou perder os olhos. “O estudo dos sonhos, das
fantasias, dos mitos nos ensinou que o medo em relação aos olhos, o medo de ficar cego, é
frequentemente um substituto para o medo da castração” (FREUD, 1919/2006, p.346). Ele se
remete ao ato de cegar a si mesmo de Édipo.
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No entanto, Freud continua se perguntando: por que o medo de ter os olhos arrancados
é colocado, no conto, em relação íntima com a morte do pai? Por que o Homem de Areia
sempre surge para perturbar o amor, até o ponto de levar Nathaniel ao suicídio? Esses e outros
traços na narrativa parecem soçobrar quando indica o unheimlich como o acontecimento entre
o medo de ter os olhos arrancados e a castração. Então, há algo além, que também não tem só
a ver com a incerteza intelectual aludida por Jentsch. Para Brandão (2006), “O homem de
areia é uma narrativa que se recusa a fechar num sentido único, pois como a areia, seu
significante mestre, ele não se imobiliza” (BRANDÃO, 2006, p.44). Ele desliza, é fugidio, e
esse efeito é encenado pelas associações que Nathaniel faz entre o seu pai, o oculista, o
advogado e o próprio homem de areia. O significante é deslizado na narrativa, se repetindo,
dizendo algo sobre o desejo do sujeito.
Guardadas as devidas proporções, podemos pensar na relação que se estabelece entre
Elena e Lila, um deslizamento desse tipo, que nos coloca em contato com as incertezas típicas
do inquietante e sua relação com a identidade e o duplo, como veremos a seguir. Quando
Elena descreve sua relação com a mãe, nos diz que desde sempre ela fizera de tudo para
mostrar que a menina era supérflua em sua vida. As duas guardavam uma antipatia mútua
uma pela outra. “Seu corpo me dava repulsa, o que ela provavelmente intuía (…) Mancava, e
seu passo me inquietava, especialmente à noite, quando não podia dormir e andava pelo
corredor, pela cozinha, voltava atrás, recomeçava” (AG, p.37). Esse caminhar da mãe cria na
menina, então com 6 anos, o medo de um dia ficar também daquele jeito: tinha medo de que,
uma hora ou outra, o corpo defeituoso de sua mãe emergisse de dentro dela e a fizesse
também mancar. Quando conhece Lila e percebe que em relação ao resto da classe, aquela
menina magra, provocadora, está sempre à frente, decide que vai seguir seu passo para não
ficar igual à mãe:

Pensei que, embora minhas pernas funcionassem bem, eu corria o risco permanente
de me tornar manca. Acordava com essa ideia na cabeça e me levantava logo da
cama, para ver se minhas pernas ainda estavam em ordem. Talvez por isso tenha me
fixado em Lila, que tinha pernas magérrimas, ligeiras, sempre em movimento,
balançando-as sempre quando se sentava ao lado da professora, tanto que esta se
irritava e a despachava logo para seu lugar. Algo me convenceu, então, de que se eu
caminhasse sempre atrás dela, seguindo sua marcha, o passo de minha mãe, que
entrara em minha mente e não saía mais, por fim deixaria de me ameaçar. Decidi que
deveria regular-me de acordo com aquela menina e nunca perdê-la de vista, ainda
que ela se aborrecesse e me escorraçasse (…) Talvez tenha disfarçado assim o
sentimento de subalternidade, o fascínio que experimentava. Com certeza me
adestrei em aceitar de bom grado a superioridade de Lila em tudo, inclusive seus
abusos (AG, p.38-39).
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Elena se coloca naquele momento como alguém que vai andar sempre na sombra de
Lila, e isso vai se repetir no ensaio de seus primeiros passos como escritora. O texto que ela
quer imitar é o da amiga, seja nas primeiras cartas que recebe quanto no primeiro livro que
Lila escreve, A fada azul. Essa posição da narradora nos leva, junto com o ensaio de Freud, ao
tema do duplo.
No texto o duplo é tratado como um tema ligado a fontes infantis. Freud traz como
disparador o estudo feito por Otto Rank (2014) a partir do filme O estudante de Praga. Para
Rank, o duplo é uma garantia contra o desaparecimento do Eu, um enérgico desmentido ao
poder da morte. Numa primeira abordagem, o duplo tem ligação com os reflexos no espelho,
as sombras, espíritos guardiães, crença na alma e medo da morte. Rank supõe que a alma
imortal teria sido o primeiro duplo do corpo, trazendo garantias contra a sua destruição e um
indício que prova essa afirmação é a repetição em muitas culturas da Antiguidade do ritual de
embalsamento.
Ao mencionar o estudo de Rank, Freud discorda de sua argumentação, ressaltando o
aparecimento do duplo como um desejo infantil que surge com o narcisismo primário e com o
amor ilimitado a si mesmo. Quando essa etapa é superada, o duplo transforma-se em estranho
anunciador da morte. Portugal (2006) nos diz que posteriormente associam-se a isso os
desejos não realizados que se cumprem repentinamente pelo acaso, a consciência crítica que
se destaca de maneira cruel nos delírios de observação e grande parte das fantasias. No
entanto, essas formações não justificam sozinhas a inquietação de que podem vir
acompanhadas: o inquietante se manifesta quando elas trazem o recalque – o que deveria ter
permanecido oculto, mas veio à luz.
Freud apresenta o duplo em três níveis: duplicação, divisão, troca ou confusão.
Situações que envolvem personagens idênticas ou muito semelhantes, nos processos mentais
que se revestem de um caráter telepático, ou ainda quando o sujeito duvida sobre si mesmo e
deixa-se encarnar por um eu estranhado. O duplo também se dá no retorno constante da
mesma coisa: estranha repetição de traços, características, atos, feitos e nomes através das
gerações. Freud toma a sua experiência como exemplo para dizer do efeito de inquietação e
desamparo que remete a alguns estados oníricos a que pode o sujeito ser levado em situações
de repetição. Em certa ocasião, ao andar pelas ruas desconhecidas de uma pequena cidade
italiana, ele chega a um lugar de prostituição e, apesar de sair dali o mais rápido que pode
quando percebe do que se trata, acaba voltando a ela, depois de vagar por algum tempo sem
orientação. Cita também um outro exemplo literário para mostrar o desamparo diante do
desconhecido: o capítulo XIII do relato de viagem A tramp abroad de Mark Twain
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(1880/1982). Numa noite em que o narrador, quase adormecido, ouve um barulho que se
aproxima e se afasta, seus sentidos são aguçados. Percebe que se trata de um rato, atira-lhe um
chinelo, mas acerta o companheiro de quarto. Para não perturbar ainda mais aquele que
dormia, engatinha pelo chão procurando seus sapatos, mas acaba fazendo mais barulho ao
esbarrar em cadeiras, mesas, espelho, até perder a noção do espaço do quarto e começar a
andar em círculos. A forma como Mark Twain conta esse episódio adquire um caráter cômico
mas há algo na repetição de esbarrar nos mesmos objetos na escuridão e, principalmente, na
perda das referências da dimensão das coisas que se assemelha à entrada de Lila e Elena no
porão em busca das bonecas e à experiência relatada por Elena Ferrante com a fera no
quartinho: há uma desestabilização das formas em ambos os casos, mas nos livros da série
napolitana, o ambiente não-familiar em que elas se encontram traz um efeito inquietante. A
escuridão não permite que as imagens brilhem e a falta de referências traz a desforma, tudo
cai.
Entre Lila e Elena vai existir uma relação especular que se desenha desde a epígrafe,
um trecho de Fausto, de Goethe:

O Senhor: Mas claro, apareça quando quiser, nunca odiei seus semelhantes; de todos
os espíritos que dizem não, o Zombeteiro é o que menos me incomoda. O agir
humano esmorece muito facilmente, em pouco tempo aspira ao repouso absoluto.
Por isso lhe dou de boa vontade um colega que lhe sempre o espicace e desempenhe
o papel do diabo.

Elas desenvolvem ora uma relação antagônica, ora estão envolvidas em uma situação
em que se completam. Quando estão afastadas geograficamente uma da outra e entabulam
conversa com os demais personagens, eles perguntam onde está Lila a Elena e vice-versa.
Somente na presença de Lila nossa narradora sente que sua criatividade explode, “como se
algo lhe atingisse a cabeça fazendo irromper imagens e palavras” (AG, p.96). Já adultas,
quando acontece das duas engravidarem e terem suas filhas ao mesmo tempo, Elena diz que
costumavam comparar os bebês em cada detalhe, “como para nos assegurarmos de que o
bem-estar ou o mal-estar de uma fosse o espelho nítido no bem-estar ou mal-estar da outra e,
assim, pudéssemos prontamente intervir para consolidar o primeiro e eliminar o segundo”
(HMP, p.212). Lila repete na filha o nome da boneca de Lenù que deixou cair chamando-a de
Tina. A menina desaparece, provocando um desequilíbrio na relação entre as duas, que Elena
busca equilibrar na escrita, como anunciado na entrada do último volume. O desaparecimento
de Tina nos remete ao sumiço das bonecas e ao próprio apagar-se posterior de Lila, assunto do
livro que estamos lendo.
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Vale lembrar que, antes da amizade se estabelecer com Lila, a narradora nos conta que
suas bonecas brincavam juntas, como a encenar a duplicidade que depois se colocará. A
brincadeira acontecia próxima ao porão da casa de dom Achille e gostavam daquele lugar
porque podiam colocar no limiar entre as barras de abertura tanto as coisas de Tina quanto as
de Nu.

O que Lina dizia a Nu, eu escutava e repetia em voz baixa a Tina, mas com
pequenas modificações. Se ela pegava uma tampa e a colocava na cabeça da boneca
como se fosse um chapéu, eu dizia à minha, em dialeto: Tina, ponha sua coroa de
rainha, senão vai ficar com frio. Se Nu brincava de amarelinha nos braços de Lila,
pouco depois eu fazia Tina agir do mesmo modo. Mas ainda não participávamos de
uma mesma brincadeira nem jogávamos juntas. Até o local escolhíamos sem
combinar, Lila ia para lá e eu ficava circulando, fingindo ir a um outro lugar. Depois,
na maior naturalidade, eu também me sentava em frente ao respiradouro, mas do
lado oposto (AG, p. 22).

Ao comentar sobre o processo de escrita da tetralogia, Elena Ferrante (2017) nos conta
que na primeira versão havia extensos episódios escritos por Lila, mas, depois, esse caminho
foi descartado. “Lila só pode ser a narrativa de Elena: fora dessa narrativa, ela mesma
provavelmente não saberia se definir. São as pessoas que nos amam ou que nos odeiam ou que
nutrem por nós os dois sentimentos que mantêm unidos os mil fragmentos de que somos
feitas” (p.389).
Pereira (2008, p.81) nos diz que é o movimento incessante de desdobramento-
redobramento do Eu característico do duplo o responsável por questionar as tentativas dessa
instância psíquica em constituir-se como sede absoluta da subjetividade. “A inquietante
estranheza desvenda o caráter de engodo imaginário do eu diante da ilusão de sua completude.
A emergência do outro, estranho ao eu – um antigo familiar caído no esquecimento – está na
base desse abalo” (PEREIRA, 2008, p.80). O fenômeno do inquietante parece se dar porque o
recalcado reaparece nos domínios da imagem-própria do Eu, perturbando as certezas do
sujeito quanto a si mesmo. Pierre Fédida (apud PEREIRA, 2008, p.81) descreve a propriedade
do inquietante de questionar a imagem e o visual em relação ao corpo-próprio: unheimlich
como a forma tomada pela angústia do recalcado regressando num atual visual do familiar.
Podemos pensar, a partir da reflexão de Freud sobre o duplo, que Elena se fixa29 em
Lila – como ela mesma diz quando compara a menina à sua mãe – por enxergar ali uma
depositária do seu desejo. No entanto, na figura do duplo há a garantia da realização do desejo

29 O uso do fixar como algo que acontece à nossa narradora em relação a Lila nos remete ao seminário 23,
intitulado O sinthoma, quando Lacan (2007) retoma o que disse sobre a pulsão ser uma ficção dizendo que ela é
uma fixão: a fixação do gozo do significante no corpo do sujeito. O psicanalista vai nos dizer que as pulsões são,
no corpo, o eco do fato de que há um dizer. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe e, para
que isso aconteça, é preciso que o corpo seja sensível a esse dizer.
69

ao preço da aniquilação da vontade livre e, portanto, da condição subjetiva de desejar.


Portugal (2006) afirma ser esse o paradoxo do duplo: a metáfora da repetição de si mesmo
funciona, no texto literário, como uma espécie de memória a impedir que a protagonista
esqueça seu desejo. Talvez seja por isso que o reencontro com o duplo é penoso e, por vezes,
quase insuportável.
Para Rivera (2005) o paradoxo inscrito no unheimlich indica uma propriedade inerente
ao eu. Na maior parte do tempo, o eu se vê como distinto do outro, existe um contorno que os
separa, mas essa posição pode ser deslocada e o sentimento de inquietante mostra que nele
coexistem correntes divergentes, lado a lado, que não obedecem a uma sucessão temporal. É o
que Lacan (1966/1998) vai nos mostrar em sua formalização do estádio do espelho, nessa
primeira e definitiva identificação do sujeito consigo mesmo, quando ele se aliena quando
mais esperava se integrar. O espelho, parâmetro do fora, lhe dá a chance de se ver inteiro ao
passo que se vê como outro – a figura do reflexo aparece invertida, assimétrica, imagem que
coloca a diferença no registro do idêntico na relação com o outro, e que traz como
consequência a alteridade. Assim, aquilo que é mais conhecido e familiar, nossa própria
imagem, torna-se estranha.
Na psicanálise, como vimos, o sujeito é dividido/descentrado. No entanto, isso não é
empecilho para que, na sua constituição, reste a ilusão de que em algum momento será
possível restaurar a imagem de completude para sempre perdida. Moschen (2002, p.58) nos
diz que essa ilusão é característica do sujeito, além de uma condição necessária para que ele
se sustente como tal. O que Lacan diz sobre o imaginário nos ajuda a compreender essa ilusão
de completude, a imagem corporal, para Lacan (1966/1998), é sempre uma construção
subjetiva, e situa a instância do eu antes de sua inserção no social, “numa linha de ficção, para
sempre irredutível para o indivíduo isolado” (LACAN, 1966/1998, p.95). O sujeito
experiencia a possibilidade de ser quando se encontra alienado em relação à imagem que lhe
vem do Outro e lhe acena com a antecipação da unidade. Ou seja, a forma total do corpo,
antecipada pelo sujeito como uma miragem, é dada como uma Gestalt, numa identificação
que se dá através da alienação de si: é através da imagem do outro que ele se estrutura, e não a
partir de si próprio. Mesmo que a separação, inscrita pelo corte sustentado por um terceiro,
torne para sempre perdida essa imagem totalizadora no espelho, o que resta do percurso feito
desdobra efeitos no sujeito de querer ver-se novamente unificado. O reflexo se configura
como o limiar dessa miragem e, por essa razão, o espelho é presença constante nas aparições
do duplo.
70

O eu não se torna autônomo com o passar do tempo, deixando definitivamente para


trás a fusão com o outro; essa confusão permanece como uma constante possibilidade de
funcionamento, que pode ressurgir em certas condições. A arte toma partido dessa
multiplicidade própria ao funcionamento do eu, sendo o tema do duplo um resgate dessa
condição. (RIVERA, 2005)
Em sua teorização poética sobre a escrita, que abre o Espaço Literário, Blanchot (2011,
p.17) nos diz que “escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu, quebrar a relação que,
fazendo-me falar para ‘ti’, dá-me a palavra no entendimento que essa palavra recebe de ti,
porquanto ela te interpela, é a interpelação que começa em mim porque termina em ti”
(BLANCHOT, 2011, p.17). Ou seja, escrever é retirar a palavra do curso do mundo,
desinvesti-la do que faz dela um poder pelo qual, se eu falo, um sentido se estabelece. Assim,
diz-se que o escritor renuncia a dizer Eu, como observa Kafka ao afirmar que entrou para a
literatura quando percebeu ser possível substituir o Eu pelo Ele. Transformação esta que não é
simples, uma vez que o escritor pertence a uma linguagem que ninguém fala, que não se
dirige especificamente a ninguém, que não tem centro nem pretende revelar. Quem escreve
precisa acreditar que se afirma nessa linguagem, mas o que ele afirma é destituído de saber, e
o escritor se vê inteiramente privado de si.
A passagem do Eu para o Ele, que Blanchot (2011, p.149) situa no começo da
literatura, não é apenas uma mudança de pronome. O Ele marca a intrusão do outro, em seu
“estranhamento irredutível, em sua perversidade astuta” (BLANCHOT, 2011, p.149). A
passagem, que se dá no entre, onde não há Eu nem Ele, marca a retirada da unidade,
“estabelecendo-o sempre fora do termo, do ato ou do sujeito em que ele pretende oferecer-se”
(BLANCHOT, 2011, p.149). Entre o eu e o outro – escrever, para Blanchot, é encontrar a
morte daquele que escreve, na medida em que se escreve “para dar passagem ao outro que
habita no exterior da obra” (BLANCHOT, 2011, p.149).
Elena parece falar dessa passagem ao usar a palavra transformar quando se vê, mais
uma vez, diante das façanhas de Lila. As duas estão afastadas há um tempo porque Elena se
casou e vive em Florença com o marido, portanto, além de longe de Lila, nossa narradora
encontra-se longe do bairro. Tentando acessar o que acontecera com a amiga durante esse
período, Lenù encontra respostas lacônicas, o que a deixa exasperada. “Ainda hoje, enquanto
escrevo, me dou conta de que não disponho de elementos suficientes para passar a Lila foi,
Lila fez, Lila encontrou, Lila planejou” (HFF, p.341).
O silêncio de Lila se faz sentir como se sua presença se agigantasse, a angústia de
Elena vai num crescente, apesar de não ter nenhuma informação concreta sobre suas
71

conjecturas: Lila tinha um trabalho novíssimo, ganhava muito, lidava com coisas difíceis, sua
relação com o filho não causava a mesma angústia que a relação de Lenù com as filhas, tinha
rompido com a família de origem e mesmo assim ainda era responsável por ela… “A vida
dela era agitada, a minha era imóvel” (HFF, p.342). Quando se vê nessa submissão mortífera à
vontade de Lila, aterrorizada com todas as coisas que a amiga faz e ela não, é na literatura que
Elena busca o abrigo: num certo jogo que se dá na posição de sujeito na escrita, entre estar
sujeita a Lila ou assumir a escrita como uma armadilha para capturá-la. O eu, que havia
desaparecido quando a narradora soube que havia perdido de vista o que Lila estava fazendo,
não se despedaça nessa operação porque entra em cena o verbo trasnformar.

Transformar. Esse era um verbo que sempre me obcecara, mas me dei conta disso
pela primeira vez somente naquela ocasião. Eu queria me transformar, embora
nunca tenha sabido em quê. E tinha me transformado, isso era certo, mas sem um
objeto, sem uma verdadeira paixão, sem uma ambição determinada. Tinha querido
me transformar em algo – aí está o ponto – só porque temia que Lila se
transformasse em sabe-se lá quem, e eu ficasse para trás. Minha transformação era
uma transformação dentro do seu rastro. Precisava recomeçar a me transformar,
mas para mim, como adulta, fora dela (HFF, p.342, grifos da autora).

Ao chegar em casa, Elena telefona para a sua editora e, tempos depois, começa a
pesquisa para escrever um novo livro. Se assumimos, junto com Blanchot (2011), que
escrever é entregar-se ao interminável, o incessante, a escritora que aceita sustentar-se nessa
posição perde o poder de dizer Eu, assim como o poder de fazer dizer Eu que lhe é dado por
outros. Mas o que está na tessitura do interminável, do incessante?

(o fascínio da ausência do tempo)

Escrever é entregar-se ao fascínio da ausência do tempo, ao tempo em que nada


começa, em que iniciar não é possível. Longe de ser um modo de constante negação é, pelo
contrário, um tempo onde nada se nega, nada se decide; aqui é também nenhum lugar, cada
coisa retira-se de sua imagem, e a ideia de eu que somos reconhece-se ao soçobrar na
neutralidade de um Ele sem rosto. A ausência do tempo é sempre presente, sem presença,
porquanto não é um presente que a devolve ao passado. É imbuída de uma lembrança, a
chamada lembrança do acontecimento: do que foi uma vez e agora não pode mais ser. Isso
jamais aconteceu, jamais houve uma primeira vez, no entanto, a lembrança não permite seu
esquecimento: o que nunca aconteceu recomeça, de novo, de novo, até o infinito, em uma
travessia sem fim. É sem fim, sem começo, sem futuro.
72

A ausência do tempo e o fascínio que ela exerce guarda algo do inquietante: do que
não é, mas retorna, vem como já e sempre passado, de modo que eu não a conheço, mas a
reconheço, e esse reconhecimento destrói a possibilidade de conhecer, o direito de apreender,
o inapreensível tornado também irrenunciável, o inacessível que não posso deixar de querer
alcançar, aquilo que não posso tomar para mim mas somente retomar – e não mais soltar. Na
região que aqui tentamos abordar, sabendo de antemão que isso é impossível, o tempo morto é
o tempo real em que a morte está presente, chega, mas nunca para de chegar, como se quando
chegasse tornasse o solo desértico e impedisse o tempo pelo qual chegou. O tempo morto é a
impossibilidade de realizar uma presença, impossibilidade que é a própria presença, que está a
duplicar todo e qualquer presente, na sombra do presente que contém e dissimula.
Aí, onde está a ausência do tempo, a perda é permanente, a intimidade com o fora se
dá sem lugar nem repouso. Quem está na ausência do tempo habita a dispersão, a fenda em
que o fora é a intrusão que sufoca, é a nudez, o frio daquilo que permanece descoberto, a
vertigem do espaçamento.
Aí, onde reina o fascínio, escrever é entregar-se à desmarginação?

4.2 Às margens do desamparo

Retomemos a novela de Blanchot, O instante da minha morte, através do que Freud


(1915/1996) nos diz em Reflexões para os tempos de guerra e morte. Neste artigo há uma
digressão sobre o que pode significar para o inconsciente o encontro com o irrepresentável da
própria morte. A impossibilidade que se coloca desde o título do escrito de Blanchot é
colocada também por Freud: ao tentarmos imaginar nossa própria morte, percebemos que o
fazemos como espectadores. “Por isso, a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que
no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que
no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade” (FREUD,
1915/1996, p.173).
Com frequência consideramos nossa morte como uma contingência que pode ser
evitada. A tentativa de eliminar a morte se dá através de um silêncio a seu respeito – e, se
pararmos para pensar nos desdobramentos da cultura nas últimas décadas, uma higienização
da morte acontece a passos largos desde a segunda metade do século XX. O cerne do artigo é
a demonstração de que a guerra obrigou a uma relação diferente do sujeito com a própria
morte, dada sua brutal imposição. Freud ressalta a confusão e a paralisia de capacidade de que
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sofremos como determinadas, entre outras coisas, pela nossa incapacidade de manter a atitude
de negação diante da morte quando ela se apresenta escancarada na nossa frente.
Pereira (2008, p.165) retoma o ensaio de Freud e afirma que a paralisia de nossa
atividade é gerada pelo desabamento de uma forma específica de relação que mantínhamos
com a morte:

Quando a morte não tem mais possibilidade de negação, não encontrando mais lugar
na fantasia – que chamamos “projeto”, então ela reaparece como erupção e terror. A
irrepresentabilidade da própria morte é reafirmada pelo fato de que ela
irrompe sem poder encontrar lugar na linguagem, ou seja, ela emerge como
paralisia e terror. Não se trata aqui de um contato direto, mítico com a morte-própria,
mas da impossibilidade de criação, pela linguagem, de novos lugares onde situar o
sujeito ante o enigma de sua existência e de sua morte. Ocorre a derrocada dos
processos de metaforização. O esmagamento da capacidade de representar o próprio
corpo é o correlativo necessário de toda essa desorganização referencial do psíquico
(PEREIRA, 2008, p.165, grifo nosso).

Não é à toa que o soldado, ao interpelar o narrador da novela de Blanchot, fala em


uma língua estranha, inaudível, mistura de idiomas que ele não consegue decifrar. Ele parece
representar o olhar do ser onipotente que, a partir do seu desejo absoluto, quer aniquilar o
outro enquanto sujeito. No momento em que é olhado, o narrador se depara com sua própria
incompletude, vivenciada em impotência e desamparo. A linguagem se dissolve na imagem
do outro. “O olhar do ser onipotente parece funcionar como um precipício, que convida ao
salto, a um entregar-se a ele em pura perda, para sempre” (PEREIRA, 2008, p.166). Há um
apelo ao abandono do olhar que parece ter a resposta para o desamparo fundamental do
indivíduo que se encontra submisso. Por isso, se instaura a dicotomia entre fascínio e terror, o
olhar tece um véu que esconde parcialmente o caráter mortal da alienação ao outro. Como
vimos, a metapsicologia freudiana é fundada na clivagem ou cisão do eu. A sedução do olhar
de onipotência está na garantia de um estado de não-cisão, indicando a fusão do eu com o
objeto colocado como ideal. O terror provém da perda da possibilidade de dividir-se e assim
constituir a imagem do seu corpo-próprio, o que o colocaria para sempre numa condição de
objeto.
Freud não dedicou um estudo específico à questão do desamparo, portanto, não há um
estatuto de conceito definido em sua obra; o que nos leva a considerá-lo mais como uma
noção que como um conceito. Vários autores, que destacaram a evolução não-linear das
hipóteses freudianas, perceberam que ele trata dos mesmos assuntos em diferentes momentos,
retomando e ampliando a questão. Em relação ao desamparo, Pereira (2008) diz que a
teorização pareceu avançar de modo contínuo, de uma maneira tal que os textos do final de
sua vida parecem aprofundar e precisar cada vez mais a sua dimensão metapsicológica. Assim,
74

vemos que o tema do desamparo é colocado no começo de sua obra em termos muito
concretos da incapacidade objetiva do recém-nascido em satisfazer suas próprias vontades e
exigências, para, posteriormente, ser retomado e reelaborado em questões decisivas como a
dos fundamentos da teoria da angústia, a constituição dos ideais e a estrutura do superego.

No fim de sua vida, Freud trata do desamparo a partir da perspectiva da radical falta
de garantias do ser humano, que a criação dos deuses busca compensar. Assim, na
época em que Freud interroga-se sobre a origem da religião e da criação dos deuses,
é precisamente o desamparo que ele encontra em primeiro plano, dessa vez
relacionado de modo íntimo ao Édipo e ao complexo paternal e assumindo uma
dimensão cultural (PEREIRA, 2008, p.127).

A evolução teórica de Freud em relação ao desamparo parece querer desaderi-lo em


relação ao evento traumático, colocá-lo além de uma simples regressão a uma fase em que o
recém-nascido encontrava-se incapaz de sobreviver pelos seus próprios meios, de localizá-lo
além das figuras aterrorizantes do superego, para dar-lhe um estatuto de dimensão
fundamental da vida psíquica que indica os limites e as condições em que é possível passar
pelo processo de simbolização. O desamparo não seria abandonado com o crescimento, e,
partindo dessa perspectiva, constitui-se como uma condição última da falta de garantias do
funcionamento psíquico, que o sujeito enfrenta quando está livre das ilusões protetoras que
cria para si mesmo.
Podemos observar reverberações disso quando Elena perde sua boneca e uma
característica de Lila vem à tona: sua habilidade com as palavras de transformar o acontecido
em uma história cheia de nuances. É uma habilidade que, aos poucos, percebe fazer parte da
inteligência fora do comum da menina, e que vai assombrá-la por toda a vida. Quando não
encontra Tina e Nu em meio aos escombros do porão, Lila diz: “Foi dom Achille quem as
roubou e enfiou na bolsa preta”. (AG, p.49). Uma afirmação que é tomada como verdade
incontestável por Elena, que abandona qualquer possibilidade de reencontrar a boneca: escapa
para não se perder de Lila, “que já se dobrava ágil, passando pela porta escangalhada” (AG,
p.49).
Elena retoma a imagem da agilidade de Lila para fixar o fato de que, a partir daquele
momento, suas vidas estão misturadas. Não se perder de Lila significa também não se perder.
Depois da queda das bonecas, Elena é tomada por um sofrimento que se assemelha ao que
será mais tarde descrito como a desmarginação para Lila. Esse é o primeiro momento em que
Lenù sente no corpo a desrealização atribuída à existência da amiga; outras vezes vamos
acompanhar algo parecido quando ela está escrevendo. O caráter especular da relação entre as
duas aparece como um vislumbre do por vir.
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Caí de febre, fiquei boa, piorei de novo. Fui tomada por uma espécie de disfunção
tátil, às vezes tinha a impressão de que, enquanto cada ser animado à minha volta
acelerava os ritmos de sua vida, as superfícies sólidas se tornavam moles sob meus
dedos ou inflavam, deixando espaços vazios entre sua massa interna e a camada da
superfície. Achei que meu próprio corpo, ao apalpá-lo, estivesse intumescido, e isso
me entristecia. Estava convencida de que tinha bochechas de balão, mãos cheias de
serragem, os lóbulos das orelhas parecendo sorvas maduras, pés em forma de batata.
(AG, p.50)

A sensação permanece quando, já recuperada da febre, Lenù volta a frequentar a rua e


a escola e vê uma mudança no espaço. Sente-se encarcerada entre dois polos escuros: o
buraco onde as bonecas tinham caído e o quarto andar do prédio onde morava dom Achille,
responsável pelo roubo. Diante dessas forças que vão em direções opostas, Lenù se vê no
meio, sendo esticada num movimento que quer levar seu corpo à desforma.

Eu me sentia pressionada naquele torniquete, em meio à massa de coisas e de


pessoas de todos os dias, e tinha um gosto ruim na boca, uma sensação permanente
de náusea que me abatia, como se o todo, assim comprimido, cada vez mais
apertado, me esmagasse, reduzindo-me a uma papa repugnante. (AG, p.50).

Pereira (2008) propõe, acompanhando o pensamento de Freud, que o terror do ser


impotente diante do ser onipotente provém do fato de que este último aparece como objeto
absoluto, levando a um fascínio de caráter fusional, acarretando o esmagamento de qualquer
referência de si enquanto alteridade diante do outro, com consequente dispersão da imagem
do corpo-próprio. Trata-se, portanto, de uma excitação transbordante, que não encontra
referência na linguagem e conduz ao desmoronamento do eu. Em correspondência, por
exercer fascínio e ser carregada de desejo, a imagem do outro especular, mortalmente
onipotente, é, ao mesmo tempo, aterrorizante.
Elena se vê diante do fascínio e terror quando é tomada pela imagem de dom Achille,
“o ogro das fábulas”, e, depois, quando ele é assassinado, na maneira como Lila conduz a
história. Quando a amiga garante que foi uma mulher que assassinou o mafioso do bairro, a
narradora se convence de que ela imaginava o culpado como mulher só porque assim lhe era
mais fácil assumir o papel. Em Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926/1996) delineia o
fundo aterrorizante do olhar hipnótico não apenas como ameaça exterior de morte mas como a
pulsão de destruição voltada para a própria pessoa. A emergência da pulsão destrutiva realiza
na situação de terror a instauração dos efeitos do inquietante, o fascínio do olhar do ser
onipotente é o sustentáculo para a auto-aniquilação, que só se revela como oca e vazia: “o
olho do pesadelo”. Podemos lembrar que o mais terrificante para Elena em sua descida ao
porão é a máscara antigás que ela enxerga como um rosto a manter os olhos gigantes sobre ela.
76

Escrever é entregar-se ao fascínio do desamparo, nos diz Blanchot (2011), e se


pergunta: Por que o fascínio? O escritor assume que o fascínio está no olhar, ser visto pelo
olho onipotente é o que desampara. Ver supõe uma distância, estar ativo na decisão de separar,
ter o poder de não estar em contato e de evitar o contato da confusão. Ver significa que a
distância colocada pela separação se tornou reencontro. O que acontece quando o que se vê,
ainda que distante, parece tocar-nos, quando a maneira de ver é uma espécie de toque à
distância? Quando o que é visto captura e o acordo tácito de manter a distância é quebrado,
arrastando e absorvendo quem olha para um movimento imóvel, para um fundo sem
profundidade? Esse contato que nos é dado à distância e subitamente nos captura é a imagem,
e o fascínio é a paixão da imagem.
O que nos fascina também arrebata qualquer poder de atribuir um sentido, porque há
um abandono do mundo, o olhar já não revela, “afirma-se numa presença estranha ao presente
do tempo e à presença no espaço” (BLANCHOT, 2011, p.24). A separação que dava
condições para ver agora imobiliza-se na impossibilidade do próprio olhar. Dessa maneira, o
olhar encontra naquilo que o torna possível o poder que o aniquila, não suspendendo ou
impedindo de olhar, pelo contrário, impede-o de jamais desviar os olhos e colocar um ponto
final, “corta-o de todo o começo, faz dele um clarão neutro extraviado que não se extingue,
que não ilumina, o círculo fechado sobre si mesmo, do olhar” (BLANCHOT, 2011, p.24).
Temos então uma expressão imediata da inversão que é o movimento da escrita, o fascínio é o
olhar do incessante e do interminável; quem se encontra fascinado não enxerga o contorno
dos objetos, pois o que está vendo não pertence ao mundo mas ao meio indeterminado da
fascinação, “onde soçobram os objetos quando se distanciam de seus respectivos sentidos,
quando se desintegram em suas imagens” (BLANCHOT, 2011, p.25). O meio da fascinação é
aquele onde o que se vê torna a vista interminável, onde o olhar se condensa em luz de fulgor
absoluto, o nosso próprio olhar no espelho, esse meio, por excelência, fascinante e que nos
convoca a afundar, assustador e atraente.
Blanchot (2011) traz a infância como o momento da fascinação, e a figura materna
como aquela que empresta seu fulgor à potência do fascínio, podendo-se dizer que a mãe
exerce esse atrativo porque há uma relação de encantamento. A criança está fascinada pelo
fato de a mãe ser fascinante, e, por isso, as impressões da primeira idade possuem algo de fixo
que decorre da fascinação. Em A amiga genial, como vimos, Lenù nutre uma antipatia pela
sua mãe por causa de uma repulsa pelo seu corpo e se deixa fascinar por Lila, a menina
brilhante que aprendeu a ler sozinha e quer ser escritora quando crescer. Quando descreve o
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olhar da amiga, Lenù sempre se remete a algo de animalesco e atraente, como se fosse o olhar
de Lila o chamado para o abismo:

Sua rapidez mental lembrava o sibilo, o bote, a mordida letal (…) Os olhos grandes
e vivíssimos sabiam se transformar em fissuras atrás das quais, antes de qualquer
resposta brilhante, havia um olhar que parecia não só pouco infantil, mas talvez nem
humano. Todo movimento dela dizia que fazer-lhe mal não serviria para nada,
porque, não importa como as coisas saíssem, ela acharia o modo de fazer ainda pior
(AG, p. 41)

A certa altura Lila também me pareceu belíssima. Em geral a bonita era eu, ela, ao
contrário, era seca que nem aliche salgado, emanava um cheiro selvagem, tinha o
rosto comprido, estreito nas têmporas, fechado entre duas bandas de cabelos lisos e
muito pretos. Porém, quando decidiu deixar para trás tanto Enzo como Alfonso, se
iluminou como uma santa guerreira. Subira-lhe um rubor nas faces que era o sinal de
uma labareda vinda de cada canto do corpo, tanto que pela primeira vez pensei: Lila
é mais bonita que eu. Então eu era a segunda em tudo. E torci para que ninguém
jamais percebesse (AG, p.44-45).

Blanchot (2011, p.25) vai nos dizer que quem está fascinado não vê propriamente o
que se apresenta, mas o que vê o afeta numa proximidade imediata, monopoliza e prende o
olhar. A fascinação está vinculada à presença neutra de alguém indeterminado e imenso, que
emana uma luz tão forte que cega: a relação que o olhar mantém com a profundidade sem
olhar e sem contorno, “a ausência que se vê porque ofuscante” (BLANCHOT, 2011, p.25).
Lembremos no ensaio sobre o inquietante em que Freud apresenta o duplo não só
como o significado que se converte em seu oposto, mas, também, como a imagem do outro
que anuncia a cisão do sujeito. Na sua exploração do conto O homem de areia (1816/2007) há
uma interpelação do olhar como ligado ao que inquieta, estranha; um olhar que hesita diante
de saber se Olimpia é um autômato ou um ser vivo, que identifica o sujeito com o que ele
próprio tem de inanimado, que o coloca na posição de objeto. Freud dá testemunho de um
encontro dessa natureza em uma nota de rodapé, quando, em uma viagem de trem, encontra
inesperadamente no banheiro um velho senhor de pijamas e gorro de viagem. Num primeiro
olhar a presença lhe causa estranhamento, pensou ter se enganado de cabine, mas logo
reconhece, perplexo, que o intruso era a sua própria imagem, refletida no espelho da porta de
comunicação (FREUD, 1919/2010, p.370). O fascínio da imagem parece ser essa percepção
de olhar para o estranho quando diante do espelho.
Nos aproximamos aqui do desamparo, do fascínio da imagem e da ausência do tempo,
com o que do sujeito surge para romper com a imagem de um ideal que carrega dentro de si,
um ideal que é a intrusão do outro. Deixar cair esse ideal, no sentido de destituí-lo dessa
posição imaginária, enxergá-lo como falha, tem algo de perigoso uma vez que nos
acreditamos imagem e semelhança desse ideal. Em sua queda, corremos o risco de sermos
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arrastados junto para o abismo. Entregar-se a esse terror fascinante parece ser a exigência da
escrita, que nos dá como contrapartida o anteparo da rede simbólica tecida pelas palavras,
material do próprio texto. É nesse sentido que vamos continuar nossa investigação.
79

5 “AVENTURA DE REGISTRAR A FENDA”

vasculho uma bolsa velha como quem revira um


túmulo.
e na curta efusão de palavras (no medo que
disseste, na aventura tímida de registrar a
indevida fenda)
tanto posso achar o ardil
como essência como o botão de plástico.
Ana Cristina Cesar

A aproximação com o mistério da criação exige uma dose de delicadeza. Ele é frágil,
fugidio, é o lugar onde qualquer tentativa de apreensão ou explicação encontra seu limite. O
impossível de ser dito só pode ser dito através do fracasso. Em um trecho citado logo no
começo deste estudo, Elena Ferrante nos diz que para ler é preciso tornar-se a falha que o
livro provoca em nós. Inserir-se na fresta que se abre quando ocorre um terremoto provocado
pela leitura é condição para que ela aconteça. Assim também parece ser escrever.
Pesquisar sobre o mistério da criação literária nos leva ao silêncio, à solidão da obra,
ao recolhimento, como pontua Blanchot (2011): “O escritor nunca sabe que a obra está
realizada. O que ele terminou num livro, recomeçá-lo-á ou destrui-lo-á num outro”
(BLANCHOT, 2011, p.11). Há na obra um privilégio do infinito, não significando que ao
artista é vedada a prerrogativa de pôr nela um fim, mas que o criador pode ser capaz de fazer
da obra o lugar fechado de um trabalho sem fim. Em determinado momento, as circunstâncias
sociais – a história, um editor –, podem ser responsáveis por pronunciar o fim temporário de
um livro. O artista é libertado momentaneamente daquele enlace por um desfecho que lhe é
imposto, mas a obra vai continuar em outro lugar.

A obra – a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que
ela nos diz é exclusivamente isso: que é – e nada mais. Fora disso, não é nada. Quem
quiser fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime.
Aquele que vive na dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la,
pertence à solidão do que só a palavra ser exprime: palavra que a linguagem abriga
dissimulando-a ou faz aparecer quando se oculta no vazio silencioso da obra (…) A
obra é solitária: isso não significa que ela seja incomunicável; que lhe falte o leitor.
Mas quem lê entra nessa afirmação da solidão da obra, tal como aquele que a
escreve pertence ao risco dessa solidão (BLANCHOT, 2011, p.12-13).

Freud (1908/1996) inicia o ensaio Escritores criativos e devaneio dizendo como “nós,
leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade (…) em saber de que fontes esse estranho ser,
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o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e
despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes” (FREUD, 1908/1996,
p.135). O interesse aumenta porque, quando perguntado sobre o mistério que o leva a escrever,
quase sempre nenhuma explicação é oferecida, ou, pelo menos, nenhuma é satisfatória. No
entanto, essa recusa não diminui o interesse, pelo contrário, não saber parece gerar um
movimento que faz nascer sempre novas perguntas. O caráter da obra é ser inesgotável.
Como dissemos, nos primeiros três livros da série napolitana, quando o assunto
abordado é a escrita, contar uma história ou narrar, um dom especial é atribuído a Lila. Tudo
começa com a leitura. Lila lê e entende o texto de maneira muito rápida e clara. Ela possui as
habilidades críticas que ainda faltam para a maioria. Além disso, Lila aprende a ler sozinha;
não é algo imposto pela escola. Isso faz com que sua relação com as palavras e a forma como
as usa seja muito diferente das outras crianças. É essa intimidade que ela introduz na vida da
nossa narradora. Elena descreve a habilidade de Lila com maiores detalhes quando ela está em
um trabalho de férias em Ischia. Ao receber uma carta da amiga, depois de enviar várias e não
obter respostas, percebe que algo na escrita de Lila transcende qualquer aspecto artificial.

Lila sabia falar por meio da escrita. (…) ela se expressava com frases de um extremo
apuro, sem nenhum erro, mesmo sem nem ter continuado os estudos, mas – além
disso – não deixava nenhum vestígio de inaturalidade, não se sentia o artifício da
palavra escrita. Eu lia e, ao mesmo tempo, podia vê-la, escutá-la. (AG, p.222)

Depois da incursão no porão, Lila decide confrontar dom Achille para tentar recuperar
as bonecas. Elena observa, incrédula, a cena que se desenrola ao fundo, da família se
preparando para o jantar. Alfonso, Stefano, Pinnuccia, tia Maria, são personagens que depois
ganharão destaque nos livros e com quem as meninas já convivem no bairro e na escola. O
contraste entre a imagem de ogro das fábulas e o que acontece é perceptível. Enquanto dom
Achille pergunta: “Eu peguei as bonecas de vocês e as coloquei na bolsa preta?”, Maria grita
ao fundo que o jantar está pronto. Depois da resposta afirmativa de Lila, ele retira da carteira
o dinheiro para que as meninas comprem novas bonecas. No entanto, em vez de fazê-lo, Lila
compra o romance Mulherzinhas de Louisa May-Alcott (1868/2017). A relação entre as
meninas, antes mediada por Tina e Nu, agora começa a se dar através da literatura. Um elo
que será imprescindível para o tornar-se escritora de Elena.
O livro já era um velho conhecido de Lila, na quarta série a professora Oliviero dera às
melhores alunas algumas coisas para ler, e, enquanto Lenù recebe uma novela de cunho
nacionalista chamada Coração, Lila recebe Mulherzinhas com um recado da professora: “Este
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é para maiores, mas já serve para você” (AG, p.61). A ideia de comprar o livro quando dom
Achille lhes dá o dinheiro é para poder lê-lo repetidas vezes e discutir com Lenù a respeito.

Assim que nos vimos proprietárias do livro, começamos a nos encontrar no pátio
para lê-lo, em silêncio ou em voz alta. Durante meses o lemos, e tantas vezes que o
livro ficou todo sujo, desconjuntado, perdeu a lombada, começou a desfiar, a
desfazer-se em cadernos. Mas era o nosso livro, e o amamos muito. Eu era sua
guardiã, mantinha-o em casa entre os livros da escola, porque Lila não se sentia
segura de guardá-lo na casa dela. Nos últimos tempos, o pai se enfurecia só de
flagrá-la na leitura. (AG, p.61-62).

O impedimento do pai de Lila tem a ver com a condição em que a mulher é colocada
naquele contexto: para uma menina não era importante estudar, sua obrigação era cuidar da
casa e, no futuro, ter uma família. Também deriva da condição social da família do sapateiro:
uma pessoa dedicada aos estudos significava um investimento financeiro que ele não estava
disposto a bancar. Enquanto Lenù recebe o incentivo de seu pai em casa para continuar os
estudos, através da intervenção da professora Oliviero, a Lila esse direito é negado de forma
violenta. Diante da insistência da menina em continuar a estudar, o pai a joga da janela do
apartamento, fazendo com que quebre um braço. Lila entrega o livro que elas liam juntas a
Lenù, que agora é guardiã das palavras que as uniram, das palavras que repetiram juntas até
decorar os trechos da história.
O livro Mulherzinhas é colocado, na fantasia das meninas, como um instrumento para
sair da pobreza. A história da autora do livro ecoa em A amiga genial: Mulherzinhas de
Louisa May Alcott foi lançado em 1868 com um grande sucesso de vendas. A narrativa que
conta o dia a dia das irmãs March teve três continuações, originando uma tetralogia não-
oficial com inúmeras adaptações cinematográficas, além de séries para a televisão. O livro é
narrado por Jo March, uma menina pobre que quer escrever quando todo mundo diz que ela
não pode.
No último ano da escola, ganhar dinheiro escrevendo livros se tornou uma ideia fixa
para Lila, que enxergava esse como o único caminho para se livrar das imposições do pai,
ideia que encontra um ressoo em Elena. “A riqueza era sempre um brilho de moedas de ouro
trancadas em cofres inumeráveis, mas para alcançá-la bastava estudar e escrever um livro”
(AG, p.64), nos diz a narradora, e é o que Lila faz: escreve um romance sozinha. Elena tenta
não demonstrar a decepção quando a amiga mostra a sua obra, o combinado era que as duas
escrevessem juntas e Lila havia quebrado o pacto. O livro parece ser um pedido de socorro da
menina direcionado a Elena, diante da violência do pai e da apatia da mãe em defendê-la, Lila
escreve.
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Eram umas dez folhas quadriculadas, dobradas e atadas por um alfinete de costureira.
Havia uma capa desenhada com pastéis, me lembro até do título: se chamava A fada
azul e era apaixonante, cheio de palavras difíceis. Eu lhe disse que ela devia mostrá-
lo à professora. Ela não quis. Insisti, me ofereci para levá-lo. Sem muita convicção,
fez sinal que sim. (AG, p. 64).

Lenù leva o livro até Oliviero que faz pouco caso dele. Ela se surpreende com a
atitude da professora, afinal, acreditava estar diante de algo tão bonito como só Lila seria
capaz de fazer. Diante do silêncio e da recusa em comentar a leitura, Lila se desanima. O
desinteresse da professora parece ter a ver com a falta de apoio dos pais de Lila para que ela
continuasse na escola e à inteligência tão feroz da menina que desorganizava a autoridade dos
professores, não sabemos ao certo. A fada azul fica guardado com a professora Oliviero e,
assim como o sumiço das bonecas, é um vórtice que atrai os outros elementos que compõem a
história e repete a relação especular entre as personagens.
O livro reaparece em um momento da narrativa em que Elena já havia escrito seu
primeiro livro e está prestes a publicá-lo. Recebe a notícia da morte de Oliviero junto com um
pacote enviado por sua irmã com cadernos do ensino fundamental que a professora tinha
guardado como recordação. É no meio dos seus cadernos que Lenù encontra o fascículo
magro e lembra do livro de Lila.

Senti um vazio repentino no peito, reconheci A fada azul, o conto que Lila tinha
escrito muitos anos antes, quantos? treze, quatorze (…) na época eu o tinha
considerado um livro de verdade e senti inveja. Abri o fascículo na página central. O
alfinete enferrujara, tinha desenhado o papel de marrom (…) me pus a ler A fada
azul desde o início, correndo pela tinta pálida, pela grafia tão parecida com a minha
de então. Mas já na primeira página comecei a sentir dor de estômago e logo me
cobri de suor. E somente no final admiti aquilo que eu tinha percebido já nas
primeiras linhas. As paginazinhas infantis de Lila eram o coração secreto do meu
livro. Quem quisesse saber o que lhe dava calor e de onde nascia o fio robusto mas
invisível que amarrava suas frases deveria remontar àquele fascículo de criança, dez
paginazinhas de caderno, o alfinete enferrujado, a capa colorida de modo vivo, o
título e nem sequer uma assinatura (HNS, p.454, grifo nosso)

Elena passa a noite em claro com a constatação de que seu livro havia nascido das
páginas perdidas escritas por Lila na infância. Sente mais uma vez o encontro com algo da
ordem do desamparo, tomada pelo fascínio que as palavras de Lila, faladas ou escritas,
sempre exerceram sobre ela. Durante a noite, no entanto, a hostilidade contra a amiga se
dissolve – percebe que, ao escrever um livro e publicar, tinha uma dívida em relação a Lila.
Sente vontade de voltar a compartilhar os cadernos, os escritos, voltar talvez aos momentos
em que as duas liam juntas ou brincavam de boneca. Mas, acima de tudo, sentia a necessidade
de sentar ao seu lado e dizer: veja como somos afinadas, como somos uma em duas, duas em
uma, como seu livro de menina lançou raízes tão profundas em mim que só consegui
83

desenraizá-lo também escrevendo um livro. Das fantasias que as duas tinham elaborado juntas
no pátio do bairro algo tinha sido criado, formando, deformando e reformando uma à outra e
ao mundo. “Desejava abraçá-la, beijá-la e dizer: Lila, de agora em diante, não importa o que
aconteça a mim ou a você, não devemos nos perder nunca mais” (HNS, p.455).
Ela vai em direção a Lila, atravessando o bairro para chegar à fábrica onde a amiga
agora trabalha. No trajeto, o contato com a pobreza, a violência, que agora não faz mais parte
de sua vida – Elena foi estudar em Pisa –, a atravessa. Quando chega na fábrica, encontra uma
pessoa com a pele acinzentada, sem sangue, com as mãos inchadas e feridas de cortes antigos
e novos, a aparência destruída pelo trabalho difícil do lugar. Lenù mostra a Lila o livro
devolvido por Oliviero, que a amiga trata com desdém. Agora tem outros interesses, está
envolvida com outro tipo de linguagem, a matemática, quer trabalhar com programação e,
novamente, Lenú sente o poder do fascínio quando Lila começa a falar de seu novo interesse.
Quando as duas se despedem, Elena olha de relance para trás, e percebe que Lila folheava A
fada azul. Num átimo, joga o livro no fogo.
Elena sente que sua vida foi esmagada, demora dias para restituir os contornos e voltar
a dar espessura ao cotidiano. “O que me restituiu definitivamente a mim mesma – mas qual
mim mesma? – foram as provas do livro: cento e trinta e nove páginas, papel grosso, as
palavras do caderno que eu preenchera com minha grafia tornadas agradavelmente estranhas
aos caracteres impressos” (HNS, p.467).
Lenù sente o desabamento ao encontrar Lila. Diante da imagem ideal da amiga, sente
seu Eu desmoronar. O que a restitui a si mesma é a materialidade da prova do livro que
publicará. Mas a pergunta entre travessões deixa evidente que não há um estilhaçamento sem
que algo se modifique, voltamos à imagem da xícara sem uso do poema de Drummond que,
tendo sido quebrada e tendo os cacos colados, espia do aparador. A queda do eu que Elena
experimenta não vem sem uma parcela de dor ou angústia, partes constituintes de qualquer
perda – perda que está na base do que a reconstrução da escrita pretende refazer.
Carvalho (1994) nos diz que além da transformação de uma realidade difícil ou sem
sentido, e além da intrusão do outro em nós, a criação literária está ligada à reparação. Para
dar a obra por encerrada é preciso entregá-la ao mundo, ao qual ela pertence daí em diante.
Finalizar um texto significa que devemos abrir mão dele; a economia desse processo se
mantém porque se antes acreditávamos causar um dano ao outro com o qual rompemos, o
84

texto está aí para reparar nele o estrago provocado, e ao mesmo tempo garantir a quem
escreve outras recomposições30
O que Elena Ferrante parece querer perscrutar em toda série napolitana e,
especialmente, no volume que se chama História do novo sobrenome e abarca a juventude das
meninas, é o caminho que Lenù faz para tornar-se escritora através de Lila. Quando está em
Pisa, começando a cursar a escola Normal, Elena se surpreende com a facilidade como fala de
si própria quando Lila não está por perto: como se Lila tornasse a escrita difícil. Mas, ao
mesmo tempo, não consegue desvencilhar-se completamente dela, suas vidas se apresentam
sempre misturadas, como se a palavra de uma fosse o eco da outra, no gesto de uma que é
sempre uma readaptação do gesto da outra, “naquele meu a menos que é assim por um seu a
mais, naquele meu a mais que é a caricatura de um seu a menos”. (HNS, p. 337).
Em Além do princípio do prazer Freud (1920/2016) nos dá, em sua teoria, elementos
que permitem pensar o eco de Lila na vida de Elena como uma travessia que tem a ver com o
movimento da escrita e o tornar-se escritora da narradora. Sabemos que em 1900, em A
interpretação dos sonhos, Freud postula o sonho como sendo a via régia de acesso ao
inconsciente, declarando ser ele a realização de um desejo. No texto de 1920, que representa
uma virada na teoria psicanalítica pelo delineamento do conceito de repetição e pulsão de
morte, Freud apresenta uma outra função para o sonho, através da escuta dos pacientes que
estão voltando da guerra e sofrem com neuroses traumáticas. Cito, a seguir, um trecho da
segunda parte do ensaio:

Podemos considerar o estudo dos sonhos o caminho mais seguro para a investigação
dos processos psíquicos profundos. Ora, os sonhos que ocorrem numa neurose
traumática têm a característica de que o doente sempre retorna à situação do acidente,
da qual desperta com renovado terror. As pessoas não se surpreendem o bastante
com isso. Acham que é justamente uma prova de como foi forte a impressão deixada
pela vivência traumática, que até no sonho volta a se impor ao doente. Este se acha,
então, psiquicamente fixado ao trauma, por assim dizer (…) Mas não é do meu
conhecimento que os que sofrem de neurose traumática se ocupem muito da
lembrança do acidente quando se acham acordados. Talvez procurem antes não
pensar nele. Aceitar como óbvio que o sonho noturno os devolve à situação
causadora da doença é compreender mal a natureza dos sonhos. Seria mais próprio
dela que o doente visse imagens do tempo em que era são ou da cura pela qual
anseia. Para que os sonhos dos neuróticos traumáticos não nos façam duvidar da
tendência realizadora de desejos do sonho, resta-nos a saída de que nesse estado a
função do sonho, como tantas outras coisas, também é abalada ou desviada de seus

30 O livro Reparação (2002) do escritor inglês Ian McEwan é um belo exemplo desse processo. A história é
narrada em primeira pessoa por Briony Tallis. Quando tinha 13 anos, Briony presenciou uma relação sexual entre
sua irmã, Cecília, e o empregado da família, Robbie. Abre uma carta que é entregue por engano e, a partir daí,
cria um mal-entendido que trará consequências desastrosas para a vida de Cecília e Robbie. Assim como Lila,
Briony era uma menina extremamente inventiva, com um talento para a escrita. O trauma gerado pelo mal-
entendido resulta no livro que temos em mãos, uma maneira da escritora, já adulta, reparar nas páginas o mal que
causou quando criança.
85

propósitos, ou teríamos que lembrar as enigmáticas tendências masoquistas do Eu


(FREUD, 1920/2016, p.126-127).

Freud coloca uma dúvida quanto ao sonho ser a realização de um desejo, inserindo
uma outra função que estaria associada à angústia. O mesmo, pode-se observar, que ocorre em
algumas brincadeiras infantis: em vez de produzirem prazer, são fontes de desprazer para a
criança. No entanto, ela insiste em jogá-las; o exemplo trazido no texto é o caso da
brincadeira de carretel do neto de Freud, na época contando 18 meses, com quem o
psicanalista estava vivendo por algumas semanas. O menino tinha o hábito de jogar para
longe um carretel, emitindo o som o-o-o-ó até ele sair de sua vista – o jogar tem relação com a
palavra alemã fort, que significa ausente, fora. O significado daquele arremesso era que o
brinquedo ia embora, associação feita quando Freud percebe que a brincadeira se dava
quando a mãe do menino estava ausente.
O jogo consistia em tirar o objeto da visão, jogando-o para além do cortinado que
envolvia o berço. Depois ele puxava o fio do carretel e saudava alegre a volta do objeto
desaparecido com um da que em alemão quer dizer aqui, cá. Há uma brincadeira de
desaparecimento e reaparição, que é repetida como um jogo; apesar de o prazer estar no
segundo ato, no retorno da coisa, o primeiro ato, seu desaparecimento era encenado mais
vezes. Através de uma nota de rodapé, Freud nos diz:

Esta interpretação foi confirmada inteiramente depois, mediante uma outra


observação. Num dia em que sua mãe estivera ausente por várias horas, foi recebida,
na sua volta, com a saudação: Bebi o-o-o-o!, que primeiramente foi incompreensível.
Logo se revelou, porém, que durante o longo período em que ficou só ele encontrara
um modo de fazer desaparecer a si próprio. Havia descoberto sua imagem no
espelho que vinha quase até o chão e se acocorado, de maneira que a imagem “foi
embora” (FREUD, 1920/2016, p.172)

A interpretação do jogo é simples, ela relaciona-se com a conquista cultural da criança,


a renúncia à satisfação pulsional por ela realizada, permitindo a ausência da mãe sem protestar.
Na encenação do desaparecimento e reaparição, o menino compensava a si mesmo com os
objetos que estavam ao seu alcance. Freud vai nos dizer que não há diferença para a avaliação
afetiva do jogo se ele foi inventado ou o menino se apropriou de algum estímulo: o que
interessa é saber ser impossível a ausência da mãe ser um afeto agradável para a criança.
Como é possível então que convivesse com o princípio do prazer a repetição da vivência
dolorosa, como uma brincadeira? Talvez se pense na resposta de que a encenação teria a ver
com o prazer obtido com o reaparecimento, mas essa hipótese não tem sustentação quando é
observado que o primeiro ato da brincadeira, a ausência, é muitas vezes encenada sozinha.
86

Freud deduz que o menino transformou a ausência em um jogo por outro motivo:
quando a mãe saía, ele se encontrava numa situação passiva e, ao reencenar aquela vivência
na brincadeira, como uma repetição, assumia o papel ativo. “O lançamento do objeto, de
modo que desapareça, poderia constituir a satisfação de um impulso, suprimido na vida, de
vingar-se da mãe por ter desaparecido para ele, tendo então o sentido desafiador” (FREUD,
1920/2016, p.129, grifo nosso).
Voltemos ao início do segundo volume da série napolitana, quando Elena nos conta
que, na primavera de 1966, Lila havia lhe confiado uma caixa de metal que continha oito
cadernos. Não podia mais manter os escritos em casa, tinha medo que o marido os lesse.
Elena faz um comentário irônico sobre a quantidade de barbantes que ata a caixa, mas a leva
consigo. Lila pede que ela não abra aquela caixa, nem leia seu conteúdo por razão nenhuma;
mas assim que se encontra no trem, Elena quebra o juramento, desata os nós que prendem o
objeto e começa a ler os cadernos. Embora ali estivessem contidos relatos minuciosos da vida
de Lila desde o ensino fundamental, a narradora diz que não se tratava de um diário: era um
exercício de escrita, a maneira que Lila encontrava para apreender o mundo ao seu redor
através da letra, “o rastro de uma teimosa autodisciplina de escrita”.

As descrições abundavam: um galho de árvore, os pântanos, uma pedra, uma folha


de nervuras brancas, as panelas de casa, as várias peças da maquininha de café, o
braseiro, o carvão e o atiçador, um mapa detalhadíssimo do pátio, o estradão, o
esqueleto de metal enferrujado além dos pântanos, os jardinzinhos e a igreja, o corte
da vegetação à beira da ferrovia, os edifícios novos, a casa dos pais, os instrumentos
que o pai e o irmão usavam para consertar sapatos, seus gestos quando trabalhavam,
sobretudo as cores, as cores de cada coisa em diversas fases do dia. (HNS, p.11-12)

Além das descrições, os cadernos também continham exercícios de tradução, trechos


inteiros escritos em inglês sobre o bairro e pensamentos sobre os livros que lia e os filmes que
via na sala do padre. Elena diz que, apesar do andamento descontínuo, tudo que Lila
apreendia na escritura ganhava relevo. Apesar de terem sido escritos quando estava com 11 ou
12 anos, não pareciam em nada com o que uma criança escreveria. Na maior parte do tempo,
Lila mantinha a escrita elegante que ambas tinham aprendido com a professora Oliviero.
“Mas, às vezes, como se uma droga lhe inundasse a veia, parecia não suportar a ordem que se
impusera” (HNS, p.12). É quando o escrito se torna árduo, as frases assumem um “risco
sobressaltado” e a pontuação desaparece. As páginas também são preenchidas com desenhos,
Elena diz sentir-se tomada tanto pela ordem quanto pela desordem, quanto mais aprofundava-
se na leitura, mais sentia-se enganada. Era um exercício semelhante ao da carta que Lila lhe
enviara um tempo antes, havia um artifício que a atraía e repugnava ao mesmo tempo. A
narradora recoloca os cadernos na caixa disposta a não mais mexer com eles, mas logo sente
87

novamente a vontade de abri-los: “os cadernos desprendiam a força de sedução que emanava
de Lila desde pequena” (HNS, p.12).
O mito de Pandora é convocado na série napolitana no momento em que entramos na
Juventude das personagens. A caixa, no mito grego, contém os males físicos e espirituais que
poderiam acometer o mundo caso fosse aberta. Pandora desconhece o conteúdo da caixa, mas
atiçada pela curiosidade usa sua beleza para que o marido permita sua abertura31. Assim como
a Eva bíblica, o surgimento do mal no mundo é atribuído à presença da mulher, algo que
Elena Ferrante coloca em questão em sua narrativa. Esse jogo subversivo parece estar em
cena no momento em que Lenù abre a caixa de Lila, que agora contém a sua percepção de
mundo marcada pelo que chama de desmarginação.
Mesmo que o objeto entregue a Elena por Lila esteja tão bem fechado, o efeito que ela
sente quando abre a caixa é o de algo que transborda nas páginas. Vale ressaltar que não se
trata apenas de um tipo de narrativa, Lenù faz questão de lembrar que não era um diário ou
um gênero que pode ser facilmente apreendido: embora os elementos estejam alinhados com
precisão, eles encontram-se também separados. O escrito pode ser lido em ordem cronológica,
mas também aleatoriamente; se organiza a partir de uma estrutura que sugere um número
infinito de aberturas e fechamentos, um jogo com intermináveis probabilidades.
Lembremos também que a caixa é de metal: uma estrutura sólida e reconfortante que
procura conter o perigo que aquela escrita anuncia. Lila pede a Elena que guarde porque tem
medo que seu marido a abra; não sabemos se Lila tem medo de que ele não compreenda o que
está escrito ou que tenha acesso à sua intimidade. No entanto, o que Ferrante parece sugerir é
que a escrita é o lugar que quebra com essa falsa sensação de segurança que temos diante de
uma caixa de metal atada com muitos barbantes. A escrita é aquilo que trai o recipiente, se
derrama, transborda.
Elena Greco não consegue lidar com o que a caixa libertou. Em uma noite de
novembro sai exasperada, para na ponte Solferino, apoia a caixa no parapeito e joga

empurrei-a devagar, devagar, um pouco a cada vez, até que caiu no rio quase como
se fosse ela, Lila em pessoa, a se precipitar, com seus pensamentos, suas palavras, a
maldade com que restituía golpe após golpe a cada um, seu modo de apropriar-se de
mim como fazia com qualquer pessoa ou coisa ou evento ou sabedoria que se
aproximasse: os livros e os sapatos, a doçura e a violência, o casamento e a primeira
noite de núpcias, o retorno ao bairro no novo papel de senhora Rafaella Carracci
(HNS, p.13-14).

31
As referências ao mito de Pandora e às caixas foram retiradas do prefácio intitulado Um escritor brilhante
escrito por Jhumpa Lahiri que se encontra na edição brasileira de Laços, de Domenico Starnone (2017), um
dos autores cujo nome de Elena Ferrante foi associado.
88

O empurrar da caixa de Lila por Elena nos remete a um outro momento do texto em
que há uma queda: as bonecas no porão de dom Achille. Jogar os cadernos de Lila parece ser
uma repetição do que acontece na queda, uma maneira de Elena passar da posição de
alienação em que se vê como objeto diante da palavra de Lila para a posição de sujeito. Como
no jogo do fort-da no ensaio de Freud, é como se ao jogar a caixa com os escritos da amiga,
ela pudesse se colocar numa posição ativa; antes de jogar a caixa no rio, Elena diz: “não
aguentava mais sentir Lila acima e dentro de mim” (HNS, p.14). Vale lembrar que, no
momento em que Lila deixa cair a boneca de Elena no porão, nossa narradora se apropria
imediatamente da boneca da amiga e a joga, declarando em voz alta, assustadíssima: O que
você fizer, eu também faço!
Carvalho (1994) coloca que a criação literária pode ter como função a transformação
de realidades externas penosas ou decepcionantes. Quem escreve pode fazer um sintoma
diante de possibilidades existenciais limitadoras e difíceis, como acontece com qualquer
pessoa. No entanto, uma das características do escritor criativo pode ser obter júbilo ao
compor várias partes de uma realidade inexorável e transformá-la em uma forma original,
singular, mas universalmente compartilhável através do registro de prazer. Ou seja, há uma
transformação em jogo, já que através da escrita há uma reinvenção ou uma invenção do
mundo por quem escreve. Uma reinvenção que aproxima as vizinhanças e borra os limites,
que se dá na passagem.
Não é novidade ouvirmos que os escritores estão sempre repetindo a mesma história.
No entanto, ali onde o sintoma quer expressar – ou mentir –, a mesma coisa, da mesma
maneira, a criação literária conta o mesmo tema, mas sempre de outro modo. Isso que faz da
criação literária um processo, um devir. Por isso Elena diz que se encontrava obcecada pelo
verbo transformar quando decide que precisava tornar-se adulta longe de Lila. Apesar de
admitir que tal transformação só pode acontecer no rastro da amiga, uma vez que assim a
história das duas foi construída, Lenù parece intuir que a escrita provém do reconhecimento
que nada pode preencher o espaço vazio deixado pelo enigma. “Esse espaço pode apenas ser
bordejado, bordado, recoberto pelas tramas dos fios texto-tecido, o qual sempre deixará uma
fresta, provocando o leitor com a sensação que quase tudo está dito” (CARVALHO, 1994).
Esse quase é o lugar onde a escrita se (ar)risca, onde a aventura de registrar a fenda acontece.
Como anunciamos no primeiro capítulo, o epílogo da série napolitana mantém o
mistério do desaparecimento das bonecas. Depois de ter narrado toda a vida das duas, Elena
escreve o que chama de Restituição. Relê o escrito temendo encontrar a prova de que Lila
havia se infiltrado no texto e decidido contribuir para escrevê-lo. Mas, precisa admitir, isso
89

não aconteceu: aquelas páginas são de sua responsabilidade. “Lila não está nestas palavras.
Há apenas o que eu fui capaz de fixar. A menos que, de tanto imaginar o que e como ela teria
escrito, eu já não esteja em condição de distinguir o meu e o dela” (HMP, p.471).
Durante o período da escrita, Lenù diz que voltou algumas vezes ao bairro, uma delas
para o enterro de seu pai. Se depara com a mesma violência, dessa vez um jovem assassinado
na frente da biblioteca, e pensa que a história daqueles livros poderia continuar infinitamente,
“narrando ora o esforço de jovens sem privilégios para melhorar de vida pescando livros entre
velhas prateleiras, como eu e Lila fizemos na infância, ora a meada de conversas sedutoras,
promessas, enganos e sangue” (HMP, p.472) que impedem o mundo e o bairro de melhorarem
efetivamente. Elena parece se dar conta que, sem Lila, não existe bairro ou cidade, pelo
menos não no que diz respeito à sua vida. Se o lugar sempre exerceu um fascínio, “uma
voragem da qual era ilusório tentar fugir” (HNS, p.216) é porque ele foi o espaço onde se
desenhou sua relação com Lila e, através dela, com a literatura. “Lila, sempre no mesmo lugar
e sempre fora de lugar” (HMP, p.473).

Mas o fato é que não havia mais vestígio dela. Naquelas ocasiões de luto, passeei
pelo bairro, perguntei a esmo por curiosidade: ninguém mais se lembrava dela, ou
talvez fingissem (…) Então para que me serviram todas estas páginas? Eu pretendia
agarrá-la, reavê-la a meu lado, e vou morrer sem saber se consegui (…) Nesta
manhã sentada na sacadinha que dá para o rio Pó, estou esperando (HMP, p.474).

Lila não retorna, o que volta, através da caixa de correspondência, é um embrulho mal
confeccionado com folhas de jornal. Nada dizia que se direcionava para Elena, mas ela sabia
que lhe pertencia. As bonecas, Tina e Nu, que uma depois da outra haviam caído nas
entranhas do bairro, retornam. “Eram mesmo as bonecas que nunca reencontramos, embora
tivéssemos descido ao fundo da terra para buscá-las” (HMP, p.475). As mesmas bonecas que,
uma vez perdidas, abriram passagem para que Lila comprasse o primeiro livro que as duas
possuíram juntas, Mulherzinhas, o livro que fez nascer o desejo de escrever como Louisa
May-Alcott.
Elena diz que Mulherzinhas foi o livro que induziu Lila a escrever A fada azul e a
levou a se tornar o que era hoje, a autora de muitos livros e de uma novela de notável sucesso
chamada Uma amizade. As bonecas não são substituídas, - como poderíamos substituir Tina e
Nu?, nos diz Elena –, sua ausência permanece. O que acontece com a escrita é uma
possibilidade de contornar esse vazio com uma malha simbólica. O enigma se mantém.
Quando percebe o que estava dentro do pacote, Lenù corre para ver se encontra algum rastro
de Lila, deseja mais que qualquer coisa olhar uma vez mais para a amiga, mas não a vê. Sobe
o elevador, olha as duas bonecas com cuidado e as coloca contra o dorso dos seus livros.
90

Ao constatar que eram pobres e feias, fiquei confusa. Diferentemente do que ocorre
nos romances, a vida verdadeira, depois que passou, tende não para a clareza, mas
para a obscuridade. Pensei: agora que Lila se fez ver tão nitidamente, devo resignar-
me a não vê-la nunca mais. (HMP, p.476)

5.1 Desmarginação: a contrapalavra32


Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e
grande dissolução? E que minha luta contra essa
desintegração está sendo esta: a de tentar agora
dar-lhe uma forma? (…) ou dou uma forma ao
nada, e este será o meu modo de integrar em mim
a minha própria desintegração? Mas estou tão
pouco preparada para entender.
Clarice Lispector

Vamos seguir no quase, no entre: é num momento de passagem que a palavra


desmarginação aparece pela primeira vez escrita na série napolitana. Passagem tanto em
relação à narrativa – uma vez que ela aparece quando a História de Dom Achille chega ao fim
e é iniciada a História dos Sapatos –, quanto em relação ao acontecimento: é a passagem da
infância para a adolescência de Lila e Elena que agora vamos acompanhar. Também é num
momento de passagem do calendário, uma nova década está começando, uma década que
supostamente deixará para trás os escombros de um período sombrio da história do Ocidente:
o período da guerra e do fascismo.

Em 31 de dezembro de 1959 Lila teve seu primeiro episódio de desmarginação. O


termo não é meu, ela sempre o utilizou forçando o sentido comum da palavra.
Dizia que, naquelas ocasiões, de repente se dissolviam as margens das pessoas e das
coisas. Quando naquela noite, em cima do terraço onde estávamos festejando a
chegada de 1960, ela foi tomada bruscamente por uma sensação daquele tipo,
assustou-se e manteve a coisa para si, ainda incapaz de nomeá-la. Somente anos
depois, numa tarde de novembro de 1980 – ambas já estávamos com trinta e cinco
anos, casadas, com filhos –, ela me contou minuciosamente o que lhe acontecera
naquela circunstância, e o que ainda lhe acontecia, recorrendo pela primeira vez a
essa palavra. (AG, p. 81, grifo nosso)

A narradora deixa uma pista nesse parágrafo que pretendemos seguir para falar da
desmarginação. No tempo do acontecimento que será narrado, a passagem do ano 1959 para
1960, ela ainda não tem contato com o termo, que só lhe será revelado cerca de 20 anos

32
O termo contrapalavra aparece no discurso O meridiano do poeta Paul Celan, onde ele assinala que ao
percorrer o caminho do impossível encontra “a contrapalavra que faz romper o arame (...) É um ato de
liberdade. É um passo” (CELAN, 1996).
91

depois, numa tarde de novembro de 1980. Assim como no prólogo Apagar os vestígios, Elena
parece endereçar à leitora a montagem de um quebra-cabeça a partir da entrada em cena da
palavra que não pode ser encontrada no dicionário.
Na língua portuguesa o sufixo Des- aparece para dar à palavra significado de
separação, ação contrária. É um sufixo adicionado para desfazer, desviar ou desenterrar seu
sentido original. Designa um argumento do silêncio, a presença de uma negação. Assim como
das Unheimliche no texto freudiano, a desmarginação ganha um outro sentido com a adição
do prefixo des- à marginação. No entanto, na palavra do texto freudiano a adição do sufixo
un- faz afirmar o inquietante, é a marca do recalque. Na desmarginação há uma negação do
que já designa um espaço pouco nítido: estamos falando do silêncio da margem.
No italiano, o processo de composição é semelhante, uma vez que smarginatura, a
palavra de partida usada por Elena Ferrante, é um neologismo criado pela adição da letra s- a
um significante já conhecido na língua: marginatura. A escolha do tradutor brasileiro
Maurício Santana Dias preserva a estranheza que vem junto com seu uso, o de criar uma
representação que carrega também sua negação: o que antes estava configurado em margens,
agora não está mais. É curioso observar que a tradutora estadunidense Ann Goldstein preferiu
usar a expressão dissolving boundaries (dissolver os contornos), uma solução explicativa que
exclui do jogo semântico algo marcante na obra de Elena Ferrante: “a justaposição entre
realidade e metáfora, entre o hiperrealismo e a distorção alucinatória”.33
A desmarginação evoca algo que julgamos ter centralidade no texto e serve como
bússola para a leitura. Cria uma espécie de dobra no livro que torna a narrativa mais espessa,
dotada de verso e reverso. “Atesta-se, aqui, algo que reluz por sua ausência. O silêncio não
consiste em um vazio, um nada, mas em algo eloquente” (OLIVEIRA, 2011, p.53). Diante do
indizível, do que não é possível nomear, parece que Lila tenta extrair algo, como se ouvisse
uma espécie de sussurro vindo do silêncio.
Quando questionada sobre a desmarginação, Elena Ferrante (2017, p.402) diz que
sempre se sentiu atraída pelas imagens de crise, de lacres rompidos, quando as formas se
tornam disformes e nos defrontamos com o que mais nos aterroriza. “Como nas Metamorfoses
de Ovídio e também de Kafka, e no extraordinário A paixão segundo G.H. de Clarice
Lispector.” (FERRANTE, 2017, p.402).

33 Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2014/oct/31/elena-ferrante-literary-sensation-nobody-


knows
92

Mas por que a criação de uma palavra quando o que Lila experimenta, como dito pela
própria Ferrante, é algo que marca a literatura desde Ovídio? Ainda, por que a criação de uma
palavra que traz consigo uma negação?
Assim como acontece com a fera no quartinho e a afirmação de Elena Ferrante de que
seus livros nascem da tentativa de entender as sensações que experimentou quando se viu
diante da porta fechada no quarto escuro, a desmarginação parece ser o ressoo de uma palavra
que a escritora se acostumou a ouvir na infância, no dialeto falado por sua mãe: frantumaglia.
Parece importante trazer essa palavra, uma vez que acenamos com a hipótese de que Elena
Ferrante seja uma personagem. Na relação que se desenha entre Elena Greco e Lila Cerullo,
parece haver uma repetição da que Elena Ferrante tinha com sua mãe: nossa hipótese é a de
que a desmarginação seria então um duplo narrativo da frantumaglia. Chama a atenção o fato
da escritora ter escolhido chamar seu livro de cartas, tésseras e ensaios de Frantumaglia: os
caminhos de uma escritora, como se para percorrer o caminho da escrita fosse preciso
debruçar-se sobre essa palavra desconhecida.
Elena Ferrante (2017, p.178) abre uma carta em que fala sobre a frantumaglia com a
palavra vórtices34. As jornalistas Giuliana Olivero e Camilla Valleti lhe enviam uma pergunta
a respeito da dor: “De maneiras muito diferentes, as protagonistas de seus romances provêm
de modelos femininos arcaicos, de mitos de matriz mediterrânea, dos quais se libertam apenas
em parte. A dor é resultado dessa relação intermitente com as próprias origens, desse
cansativo e nunca resolvido afastamento dos papéis tradicionais?” (FERRANTE, 2017, p.178).
Ferrante diz não querer fazer uso da palavra origem para responder a essa questão, pelo peso
que esse significante carrega na cultura ocidental. Decide, então, refletir sobre a palavra “dor”

34 O filósofo italiano Giorgio Agamben (2018) coloca que a palavra é um vórtice que perfura o fluxo semântico
da linguagem. Através do movimento arquetípico da água, a espiral, o filósofo diz sobre o momento em que no
curso do leito de um rio, duas correntes de temperatura ou velocidades diferentes se encontram: “veremos
formar-se redemoinhos, que parecem permanecer imóveis no fluxo das ondas ou das correntezas. Mas também a
voluta que se forma na crista das ondas é um vórtice, que, por efeito da força da gravidade, arrebenta, formando
a espuma” (AGAMBEN, 2018, p.83). O vórtice tem um ritmo próprio, comparado ao movimento dos planetas ao
redor do sol. A parte interna está em movimento com uma velocidade maior do que a margem externa e, “ao
enrolar-se em espiral, ele se alonga para baixo e depois sobe de novo numa espécie de pulsação íntima”
(AGAMBEN, 2018, p.84). Se um objeto cai no turbilhão que se forma, ele mantém a direção em que caiu, e esse
é o norte do vórtice. Um movimento caótico que mantém, dentro do caos, uma ordem que só corresponde a ele
mesmo. No centro ao redor do qual o vórtice gira, e não cessa de girar, age também uma “força de aspiração ou
de sucção infinita. Na experiência dos cientistas, diz-se que, no ponto do vórtice em que o raio é igual a zero, a
pressão é igual a menos infinito” (AGAMBEN, 2018, p.84). A reflexão de Agamben se direciona para o estatuto
de singularidade que define o vórtice: “uma forma que se separou do fluxo da água do qual fazia parte, e ainda
faz, de algum modo”. Esse “ainda fazer parte” fala sobre como cada pedaço do vórtice está ligada à totalidade no
qual o movimento está imerso, feito da mesma matéria que se choca continuamente com o que o cerca. O vórtice
traz a ideia de margem, entre o fazer e o feito, encerrado na ausência. Pode ser pensado como um campo onde as
palavras se dissolvem, num girar incessante onde o choque produz novos sentidos e matérias que guardam um
parentesco com algo que lhes precedeu. Situa-se num entre-lugar. A criação literária é o que emerge desse vórtice
quando retoma as palavras do fluxo do discurso e as joga no turbilhão.
93

que ela conhece desde a infância e que a acompanha na escrita dos seus livros: um vocábulo
do dialeto de sua mãe usado para dar conta do sentimento de ser puxada de um lado para o
outro por impressões contraditórias que a dilaceram.

Dizia que tinha dentro de si uma frantumaglia. A frantumaglia (ela pronunciava


frantumalha) a deprimia. Às vezes, causava-lhe tonteira, um gosto de ferro na boca.
Era a palavra para um mal-estar que não podia ser definido de outra maneira,
remetia a um monte de coisas heterogêneas na cabeça, detritos em uma água
lamacenta do cérebro (…) essa palavra ficou na minha mente desde a infância para
definir, sobretudo, os choros imprevistos e sem um motivo consciente: lágrimas de
frantumaglia (FERRANTE, 2017, p.105-106)

Ferrante segue arrodeando a palavra frantumaglia com as imagens que a remetem a


esse estado. Acreditava, quando criança, que a frantumaglia tinha o poder de trazer o mal para
as pessoas e senti-la era correr o risco de mais cedo ou mais tarde também tornar-se
frantumaglia. Paisagem instável, massa aérea ou aquática de destroços infinitos que se
revelam ao eu, depósito do tempo sem a ordem de uma narrativa, efeito da noção da perda.
No livro Dias de Abandono, ao ver desmoronar o mundo ao seu redor, a personagem Olga vê-
se diante de uma frantumaglia: “um zumbido que vai crescendo e um vórtice que vai
decompondo matéria viva e morta; um enxame de abelhas que se aproxima por sobre as copas
imóveis das árvores; o redemoinho repentino em um curso de água lento” (FERRANTE, 2016,
p.106).
A frantumaglia também é a palavra que a escritora usa para algo que viu quando
criança, “durante aquele tempo absolutamente inventado que, quando adultos, chamamos de
infância –, pouco antes de a língua entrar em mim e inocular uma linguagem: uma explosão
coloridíssima de sons, milhares e milhares de borboletas com asas sonoras”. (FERRANTE,
2017, p.107). Ferrante termina a digressão sobre a frantumaglia dizendo que este é,
provavelmente, apenas seu modo de chamar a angústia de morte; mas se ela pudesse dizer o
que é a dor para suas personagens, diria apenas: “é debruçar-se sobre a frantumaglia”
(FERRANTE, 2017, p.107).
Essa carta foi enviada em 2003, quase uma década antes do lançamento da tetralogia
napolitana, e podemos pensar que a desmarginação surge como um duplo narrativo da
frantumaglia, no sentido que também é uma tentativa de Lila de nomear algo da ordem do
indizível. Como se o nome possuísse algo manifesto e uma outra parte, oculta, silenciada, que
só se dá a ver nas frestas, no entre-lugar que não é a margem, mas a negação da margem. O
nome que rompe o silêncio é o mesmo que o reafirma, como a inserção da palavra estrangeira
na boca do soldado russo quando o narrador de O instante da minha morte se depara com o
irrepresentável da própria morte. Blanchot (2011) ressalta que a palavra estrangeira surge
94

muitas vezes em um texto para exercer um papel de sombra, uma sombra resplandecente e
provocante que, ao cavar a superfície da linguagem, introduz nela toda espécie de diferenças
de nível e desambientam as línguas para torná-las todas estrangeiras. É o que acontece em
Guerra e paz de Tolstói (1865-1869), quando as frases francesas colocadas na boca dos
personagens nos parecem ser de uma linguagem tão diferente para o francês quanto pode ser o
russo percebido por trás do francês na tradução. Claro, para que isso aconteça não basta
inserir a palavra no texto aleatoriamente, tem que haver o efeito de irrompimento do
inquietante, o pequeno tremor de algo inesperado que emerge.
A palavra estrangeira assim inserida nos indica que o que lemos não é exatamente o
que deveríamos ler, “é também essa metamorfose pela qual sentimos, através de nossa língua
habitual, abrirem-se interstícios e vazios onde nos é fácil vigiar a aproximação extremamente
misteriosa de uma outra língua, totalmente desconhecida por nós” (BLANCHOT, 2011,
p.199). Diante da palavra estrangeira há o sentimento de um ligeiro distanciamento entre as
palavras e aquilo que elas visam, abre-se uma possibilidade de deslizar para fora da forma que
lhes é dada que, no caso da tradução, é a língua original, mas é uma passagem que simboliza o
fundo original sobre o qual são tiradas as palavras por nascer de uma linguagem que está
muito perto do vazio.
A frantumaglia e a desmarginação aparecem como palavras enigmáticas nesse jogo
proposto através da literatura, de pensar a autoria como um mise en abyme. Irene Danowski
Viveiros de Castro (2017) é certeira ao dizer que um grande esforço é feito na tetralogia
napolitana para que os afetos não sejam estereotipados, ou seja, não caiam em formas e nomes
previsíveis, cujas consequências e causas já conhecemos por estarem imbuídas dos nossos
próprios contornos. Os livros são permeados por acontecimentos que não são descritos em
relação a um nome ou, quando isso é feito, é usado um nome que não está presente no léxico
familiar, como é o caso da desmarginação. Concordamos com Castro (2017) quando ela
afirma “A riqueza da narrativa só é possível na medida em que Lila não é diagnosticada como
esquizofrênica ou com ataques de pânico”.
Vamos seguir, então, as pistas do enigma da desmarginação na narrativa de Elena
Greco. É na tarde de novembro de 1980, quando Lila designa pela primeira vez a
desmarginação, que o fenômeno aparece, na nossa leitura, com mais contundência na
narrativa. É também um momento emblemático para as personagens, que trará consequências
para as suas vidas e para a história de Nápoles. Ambas estão grávidas; Elena vai até Lila e se
queixa que a criança em sua barriga está inquieta, no que Lila responde sentir o mesmo: “uma
marretada contínua no ventre” (HMP, p.155). Elena tem uma questão para a amiga quando vai
95

visitá-la, mas pretende rodeá-la com perguntas prosaicas antes. A pergunta que a atormenta
naquele momento é: o que você sabe de Nino que eu não sei?
Nino Sarratore é um personagem que está na série napolitana como um interesse
romântico de Elena, alguém que, como ela, conseguiu sair do bairro através do estudo e da
leitura; se ultrapassarmos essa primeira camada do romance, e nos detivermos nas linhas do
livro, para o que sustenta a relação entre Lila e Lenù, a pergunta ganha outras nuances, diz
algo sobre a literatura e o enigma que se desenrola com a entrada da desmarginação. Podemos,
então, pensar que Elena endereça a Lila a pergunta: o que você sabe que eu não sei? E, para a
nossa leitura, podemos reformular a questão da narradora para: o que Lila sabe, ao
desmarginar-se, que eu não sei?
Nos poucos minutos da conversa com Lila, Elena ressalta mais uma vez a habilidade
que ela tem de encher sua cabeça com novas imagens, “alargando um pouco as malhas do seu
discurso”. (HMP, p.161) Lila usa a expressão ‘sombra de sua sombra’ para referir-se a
Michele Solara, um dos filhos da família que passou a comandar a máfia no bairro depois da
morte de dom Achille e que, na década de 80, era responsável pelo tráfico de drogas. Com
essa expressão, Lila evoca além da figura de Michele, a de Alfonso, irmão do seu ex-marido e
filho de dom Achille, personagem presente na vida das meninas desde a infância e que, na
história da tetralogia, parece passar por uma transição de gênero e, nessa transição, segundo a
narradora, ele está se tornando cada vez mais o reflexo de Lila. Elena aponta na trama como
uma simples expressão de Lila dispara na sua imaginação toda uma elaboração dos
acontecimentos ao redor. Ela começa a olhar para toda a situação do bairro, imerso no tráfico
de drogas, depois que a mãe dos Solara foi assassinada. A narradora diz:

senti todo o fascínio daquela sua maneira de governar e desgovernar a seu bel-prazer,
com pouquíssimas palavras, a fantasia alheia: aquele afirmar, silenciar, deixar
imagens e emoções correrem sem acrescentar mais nada. Estou cometendo um erro
– disse a mim mesma confusamente – ao escrever como fiz até agora, registrando
tudo o que sei. Deveria escrever do modo como ela fala, abrindo voragens,
construindo pontes sem as terminar, forçando o leitor a fixar a correnteza”
(HMP, p.161, grifo nosso).

O que Elena escuta quando Lila fala é um texto que parece buscar seu próprio fracasso,
o fracasso definitivo da própria linguagem. Afirmar, silenciar, abrir voragens, construir pontes
sem terminar, nos remetem a imagens de uma aniquilação, desabamento da linguagem,
quando seria possível conhecer o vazio escondido atrás das palavras, um conhecimento que
possibilitaria acabar de vez com o mistério que causa angústia. Lila parece ter o que Blanchot
chama de fala profética, uma fala que “anuncia um futuro impossível, ou faz do futuro que
anuncia, e porque ela enuncia, algo de impossível, que não poderíamos viver e que deve
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transtornar todos os dados seguros da existência” (BLANCHOT, 2011, p.27). Quando a


palavra profética entra em cena, não é o futuro que é vislumbrado, mas sim o presente retirado,
e, junto com ele, toda possibilidade de uma presença firme, estável e durável. Até mesmo
cidades eternas e templos, considerados indestrutíveis, de repente sucumbem. O espaço se
torna um deserto, e a fala é a voz que precisa do deserto para gritar e que desperta em nós o
medo, a compreensão e a lembrança do deserto. “A fala profética é uma fala errante que volta
à exigência originária de um movimento, opondo-se a toda estabilidade, toda fixação e um
enraizamento que seria repouso” (BLANCHOT, 2011, p.27).
Ao falar, ou ao contar, Lila subverte a noção de que está fora do acontecimento, ela é o
acontecimento.35 Como já referido nos capítulos anteriores: suas palavras têm o poder de criar
o mundo, transformá-lo, destruí-lo, e é no rastro dessa criação que Elena se coloca. Se
pensarmos que o que Lila faz o tempo inteiro quando conta uma história, traduz-se como um
ato poético ou ato literário, é possível deduzir sua função de intervir no bairro para mudar
suas configurações.
Aproxima-se do que Blanchot (2011) diz ao explorar a potência negativa da palavra:

Experimentou o trabalho da ausência, captou nela uma presença, ainda uma potência,
tal como no não ser um estranho poder de afirmação. Todos os seus comentários
sobre a linguagem, como sabemos, tendem a reconhecer na palavra a aptidão para
exprimir as coisas ausentes, a suscitá-las nessa ausência, depois a manter-se fiel a
esse valor da ausência, a concretizá-lo até o fim num supremo e silencioso
desparecimento (BLANCHOT, 2011, p.115).

Na perspectiva de Blanchot, a morte é a possibilidade que se abre do humano se


nomear humano e de nomear o que está ao seu redor através da linguagem – linguagem que se
apresenta como a ferramenta para construir o mundo. A nomeação se dá através da perda, na
ausência que é o ato da linguagem no espaço cotidiano. De um objeto sem nome não se sabe o
que fazer, é a posse das palavras que lhe dá o domínio da coisa. No entanto, um domínio onde
o sopro de morte se apresenta como palavra, transformando-se em ausência assim que é
proferida. “A palavra me dá o que ela significa, mas primeiro o suprime” (BLANCHOT, 2011,
p.331). Para que eu possa dizer: essa flor, é preciso de uma maneira ou de outra que eu lhe

35 No momento em que conta algo, é possível articular o que Lila faz com uma performance. Rivera (2013) diz
que, no teatro tradicional, é a separação entre cena e público que assegura a partilha entre ficção e realidade; o
espectador tem acesso a uma janela intransponível. O que Lila faz, aos olhos de Elena, se assemelha ao que a
psicanalista e escritora diz sobre a performance: “nasce misturada à vida, ela é acontecimento e não narração, ela
se põe à nossa frente, nos faz esbarrar ou desvia nosso caminho” (RIVERA, 2013, p.37). A performance abre
voragens e força quem a está acompanhando a fixar uma correnteza que, no instante seguinte, já mudou de
direção. Um ato que se liga a uma configuração instável do espaço, onde o sujeito não é mais “olho fixo capaz de
centrar e possibilitar uma organização perspectiva” (RIVERA, 2013, p.37); um espaço de perda é delineado, não
há mais um espelhamento entre o eu e o mundo que permite a fixação da imagem. Abre-se uma fenda, uma
fratura.
97

retire o que a faz flor, que a torne ausente e a aniquile. Pimentel (2013), em um ensaio
intitulado A morte como linguagem nos escritos de Maurice Blanchot, vai nos dizer que

ao nos comunicarmos com outrem, ao nos apresentarmos a outrem ou ao falarmos


das coisas do mundo a outrem, não é o referente da palavra que será entregue por
nós, mas a ausência desse referente que está simbolicamente associado à palavra que
remete a esse referente posto em comunicação (PIMENTEL, 2013)

Elena impressiona-se tanto com a narração de Lila sobre o ambiente estabelecido no


bairro com o tráfico de drogas que diz ser difícil espantar as imagens de agulhas nas veias,
desejo e morte. Além disso, há algo estranho no ambiente, “algo que não andava”, o calor do
fim da tarde se entranhava em seu corpo, criando um peso nas pernas e suor no pescoço. A
narradora diz que não tem mais vontade de perguntar a Lila sobre Nino, “o que você sabe que
eu não sei?” é a pergunta que permanece sem resposta, como um enigma. “Sabia muito,
demais, e poderia me fazer imaginar o que quisesse, e eu nunca mais conseguiria apagar as
imagens da cabeça” (HMP, p.162). Elena recua diante da possibilidade de entrar em contato
com esse saber; não parece ter medo da resposta, mas do efeito de descentramento que ela é
capaz de produzir. Elena quer escrever como Lila, abrindo voragens, mas ao se aproximar da
desmargem, dá um passo para trás.
De que letra estamos falando quando Elena pensa na escrita de Lila? Letra foi um
conceito36 trabalhado ao longo do ensino de Lacan, desde A instância da letra no inconsciente
ou a razão desde Freud, passando pela elaboração feita no seminário sobre o conto de Edgar
Allan Poe, A carta roubada, até chegar num dos Escritos mais importantes do psicanalista
sobre a relação entre psicanálise e literatura, Lituraterra.
A primeira formulação de Lacan (1998, p.498) sobre a letra vai designá-la como
suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem. Há uma
identificação da letra com o significante. Posteriormente, no seminário sobre A carta roubada,
o conceito passa a ser delimitado na não-identificação com o significante: a letra não possui
uma primazia em relação ao significante, mas existe uma marca da letra que diz sobre a sua
literalidade. Lucia Castello Branco (2000) nos ajuda a compreender a questão quando diz:

Quando se fala de letra, é da literalidade que se trata. Pois se um significante é


aquilo que representa um sujeito para um outro significante, uma letra não
representa nada, mas está ali, em sua literalidade, a marcar o ponto de furo, a fazer
buraco no simbólico. (CASTELLO BRANCO, 2000, p.37)

36 Importante lembrar que para a psicanálise o conceito é tratado da mesma forma que as formações do
inconsciente: somente se fecha em torno do seu próprio vazio. Ritvo (2000) nos diz que “o conceito está
estruturado em um ponto de impossibilidade do qual não pode dar conta” (RITVO, 2000, p.11).
98

É quando sobrevoa uma paisagem da planície siberiana em uma viagem para o Japão
que Lacan vislumbra a letra separada/articulada ao significante. Na terra, o rastro do rio-
corrente, os sulcos abertos pela enxurrada trazem a composição da lituraterra. Uma escrita
que é diferente da literatura por ser composta por restos, rasuras, palavras que implodem a
consistência da significação. O termo surge a partir da leitura de Lacan de James Joyce e dá
notícias das margens entre literatura e psicanálise. Apesar de ser um anagrama de literatura, a
invenção da palavra não tem ligação com a letra que a compõe, mas com litura, que em latim
significa risco, alteração, mancha. De maneira semelhante a Joyce, através do deslizamento da
letter para litter, de letra para lixo, Lacan alcança sua lituraterra.
Estamos na margem entre dois diferentes territórios: Mar e Terra. Simbólico e Real.
Lacan situa a letra, agora destacada do significante, no litoral. “Não é a letra… litoral, mais
propriamente, ou seja, figurando que um campo inteiro serve de fronteira para outro, por
serem eles estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos?” (LACAN, 2003, p.18). O que a
letra desenha, através do risco da rasura, é a borda do furo do saber.
A pergunta diante da qual Lenù recua diz respeito a um saber. Podemos pensar que o
jeito de Lila falar, sua escritura que abre voragens, constrói pontes sem as terminar, força o
leitor a fixar correnteza, situa-se mais na lituraterra que na literatura. As descrições do que
Lila escreve apontam para o resto, o lixo, aquilo que borda o furo do saber. Também podemos
situá-la fora do meio literário, da literatura, diferente de Lenù que através da publicação torna-
se significante para o Outro, a escrita de Lila é. Podemos lembrar que na introdução do quarto
volume da série, Lila se define como um rascunho de um rascunho, um risco na rasura, “isso
que do litoral faz terra” (LACAN, 2003, p.21).
A palavra que Lila inventa, desmarginação, estrangeira, aponta para o que Lacan
definiu como saber em fracasso. Através de um jogo com a palavra francesa échec, que quer
dizer tanto fracasso como xeque (xeque-mate, limite, fim do jogo), a letra é a marca-limite do
indizível, a letra como borda do que é impossível saber e só se apresenta em fracasso. O
impossível de dizer só se dá a ver através do fracasso da linguagem, um fracasso que na série
napolitana se configura como um mise en abyme no jogo de espelhos que surge a partir da
narrativa dentro da narrativa, da palavra inventada desmarginação que reflete a frantumaglia.
Um jogo de espelhos de palavras, uma dentro da outra, que revela o vazio que atravessa a
história, o desaparecimento das bonecas e de Lila.
O que sucede ao recuo de Elena diante da pergunta “o que você sabe que eu não sei?”
é um som que se assemelha a um trovão que vem da terra, como se um caminhão estivesse
vindo em direção ao apartamento, prestes a colidir e “correr entre nossos fundamentos
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atingindo e derrubando tudo” (HMP, p.162). O terremoto de 23 de novembro de 1980, “com


sua devastação infinita” se entremeia nos ossos da narradora.

A terra se movia, uma tempestade invisível estava explodindo sob meus pés, sacudia
a sala com um uivo de bosque dobrado por rajadas de vento. Os muros estalavam,
pareciam inchados, se desarticulavam e rearticulavam nos ângulos. Do teto caía uma
névoa de pó à qual se juntava a névoa que se desprendia das paredes. Me lancei para
a porta ainda gritando: terremoto. Mas o movimento era só uma intenção, eu não
conseguia dar um passo. Meus pés pesavam, tudo pesava, a cabeça, o peito,
sobretudo a barriga. A terra na qual eu queria me apoiar se subtraía, por uma fração
de segundo, estava ali e depois já não estava (…) Lila estava de pé no centro da sala,
encurvada, a cabeça para baixo, os olhos estreitos, a testa franzida, as mãos
segurando a barriga como se temesse que explodisse e fosse se perder na poeira do
reboco. Os segundos voavam, mas nada dava a impressão de querer voltar à ordem
(HMP, p.163).

Elena (d)escreve o terremoto e há a sensação que o próprio texto acompanha o


movimento do tremor da terra. O uso da pontuação que apresenta ora sentenças longas ora
muito curtas, a presença de lugares que estão desabando e parecem se acumular um em cima
do outro; parece que a cena é narrada no momento em que aconteceu, não há a distância
temporal que é prerrogativa da história. O tempo está ausente, nos diria Blanchot.
É durante o terremoto que Lila fala sobre a desmarginação pela primeira vez.

Usou precisamente desmarginar. Foi naquela ocasião que ela recorreu pela primeira
vez àquele verbo, se agitou para explicar seu sentido, queria que eu entendesse bem
o que era a desmarginação e quanto aquilo a aterrorizava. Apertou ainda mais forte
minha mão, resfolegando. Disse que o contorno de coisas e pessoas era delicado,
que se desmanchava como fio de algodão. Murmurou que, para ela, era assim desde
sempre, uma coisa se desmarginava e se precipitava sobre outra, era tudo uma
dissolução de matérias heterogêneas, uma confusão, uma mistura. Exclamou que
sempre se esforçara para se convencer de que a vida tinha margens robustas, porque
sabia desde pequena que não era assim – não era assim de jeito nenhum –, e por isso
não conseguia confiar em sua resistência a choques e solavancos. Ao contrário do
que fizera até pouco antes, começou a escandir frases excitadas, abundantes, ora as
misturando com um léxico dialetal, ora recorrendo a infindáveis leituras que fizera
quando menina. Balbuciou que nunca deveria se distrair, quando se distraía as coisas
reais – que a aterrorizavam com suas contorções violentas e dolorosas – se
sobrepunham às falsas, que a acalmavam com sua compostura física e moral, e ela
submergia numa realidade empastada, viscosa, sem conseguir dar contornos nítidos
às sensações. Uma emoção tátil se diluía em visual, a visual se diluía em olfativa, ah,
Lenu, o que é o mundo real, a gente viu agora mesmo, nada, nada que se possa dizer
definitivamente: é assim. De modo que, se ela não estivesse atenta, se não cuidasse
das margens, tudo se desfazia em grumos sanguíneos de menstruação, em pólipos
sarcomatosos, em fragmentos de fibra amarelada (HMP, p.168-169, grifo da autora).

O capítulo que segue a essa irrupção da desmarginação é o momento em que a voz de


Lila parece se intrometer diretamente na história. Elena é atravessada por Lila, usa a primeira
pessoa como se fosse a própria amiga se colocando ali, e é nítido como o texto ganha o tom
de um fragmento à parte; sem interrupções de parágrafo, Lila reedita os diversos momentos
em que ela havia sido tomada pela sensação que tenta colocar em palavras. Saltam no texto
100

expressões que remetem à desintegração: “um ovo sólido que se rompe”, “sentia um estridor
de grânulos”, “a cabeça sempre acha uma brecha para olhar além – acima, embaixo, ao lado –
ali onde está o assombro”, “preciso sempre fazer, refazer, cobrir, descobrir, reforçar e depois,
de repente, desfazer e arrebentar”, “senti que a linha que o atava estava para se romper”,
“Michele se achava grande coisa, e no entanto bastou achar o fio de contorno e puxar, há-há-
há, eu o rasguei, quebrei sua linha e a embaracei com a de Alfonso, matéria de homem dentro
de matéria de homem, o pano que tece de dia se desfaz à noite, a cabeça acha um jeito”, “o
terror permanece, está sempre na fresta”… Lila recorre à panela de cobre que se rompeu no
assassinato de dom Achille como uma testemunha muda, que evoca a impossibilidade de
comunicar; o próprio terremoto se desenha na letra de Lila, com a repetição de expressões
como brecha, fresta, rompimento. O fim do capítulo é também um pedido de ajuda

há sempre um solvente que opera devagar, com um calor suave, e vai desmanchando
tudo, mesmo quando não há terremoto. Por isso, por favor, se lhe ofendo, se lhe digo
coisas horríveis, você tape os ouvidos, não quero fazer isso, mas faço. Por favor, por
favor, não me deixe agora, se não eu desmorono. (HMP, p.171)

Permanecemos com o efeito desorganizador do texto.37 Saímos da narrativa de Elena


para uma narrativa fragmentária, sem coerência em sua forma estrutural – uma espécie de
monólogo a dois, uma vez que Lila parece tentar estender um cobertor simbólico sobre um
mundo que está se rompendo. Não sabemos se ela fala para Elena ou para ela mesma, até o
pedido final de ajuda. A escrita borda a imagem da palavra até tocar no seu além: a palavra
inventada, a desmarginação; a palavra que nega a existência de margens e contornos: a
contrapalavra. Essa é a escrita de Lila, a qual só temos acesso indiretamente, através de Elena
em momentos pontuais do livro. Mas são instantes suficientes para percebermos o que
deslumbra a nossa narradora, suscita seu espanto, provoca a estranheza a ponto de ela ter que
jogar uma caixa com os cadernos da amiga no rio. É uma escrita que se configura na
linguagem do exterior, no estranho-familiar do inquietante como efeito da letra. Efeito este
que parte de um movimento em direção à destruição, à morte. Ali, onde o terror permanece,
está sempre na fresta, está também o assombro, nos diz Lila. E nós ficamos com a pergunta:
que palavra é essa que, fora do nosso léxico familiar, faz a escrita transcender e tremer a terra?

37 Aqui, um breve testemunho de leitura: na primeira vez que li esse capítulo, senti os efeitos do terremoto,
olhava para o chão, olhava para o livro, as letras se embaralhavam. Tentava deixar o livro de lado, mas a força da
história e do querer saber que efeito aquele terremoto teria na vida das personagens me faz continuar. Na
segunda leitura, já sabendo que o livro é meu objeto de pesquisa, tentei ler com mais calma, mas o efeito do
trecho é o mesmo: agora como já sei o que se desenrolará na trama, não consigo prosseguir a leitura e a pauso
por algumas semanas. Conversas com outras leitoras da tetralogia também apontaram para esse momento do
terremoto como um trecho da leitura em que é necessário parar, como se algo irrompesse no texto.
101

Vamos seguir as pegadas da relação da escritora com o texto deixadas pela


desmarginação. Falamos, até agora, da sedução que Lila sempre exerceu sobre Elena, do que
a levou a escrever seguindo o rastro do livro infantil A fada azul e dos cadernos aos quais teve
acesso ainda na adolescência. Quando Lenù escreve seu primeiro livro, parece estar moldada
pela experiência de ter visto a escrita de Lila naqueles cadernos, escrita que apontava para um
gênero inclassificável: diários, anotações, rabiscos, desenhos, descrições… Não se sabe ao
certo. O que podemos depreender do que a narradora nos diz é que Lila tentava circundar o
mundo à sua volta através da escrita, como se quisesse se misturar à coisa, olhando-a por
todos os ângulos, nela desaparecendo; aproxima-se do que Sartre dizia sobre conhecer algo:

Quando eu corro atrás de um bonde, quando eu olho para o relógio, quando eu estou
absorto contemplando um retrato, não existe mais Eu… Estou imerso num mundo
de qualidades que atraem e repelem – mas Eu, Eu desapareci (SARTRE, 1957, p.48-
49, tradução nossa) 38

Nas obras literárias que se propõe a analisar em O livro por vir, Blanchot parece
apontar, numa escrita que performa o assunto que quer tratar, a questão do neutro: o
movimento em direção à relação nua, o qual o escritor busca quando separa-se de si mesmo
para escrever, para alcançar o que ele chama de espaço literário. No entanto, o espaço não é
um lugar com fronteiras definidas, que possa ser encontrado ao bel prazer de quem escreve.
Blanchot parece empreender um esforço n’O livro por vir para traçar uma cartografia, através
da busca de alguns escritores, do que acontece nesse movimento de colocar-se fora de si
mesmo do neutro. Goethe, Antonin Artaud, Virginia Woolf, Joubert, Henry James, deixaram
escritos em seus diários, cartas, carnês, depoimentos sobre a experiência de escrever, e é atrás
delas que segue Blanchot, sendo atravessado no percurso pela sua própria relação com a
escrita.
O neutro é a escrita de quem está exterior a si mesmo, o movimento que orienta quem
deseja encontrar a origem da obra e entrar no espaço literário. Estado do sujeito fora de si,
onde há a possibilidade de uma fala sem poder, onde escrever é estilhaçar o que torna o
discurso possível. Em alguns ensaios de Blanchot o neutro aparece não apenas como tema
abordado, mas também como forma da linguagem. É quando sentimos que o texto dá um nó,
é acometido por uma espécie de loucura da escrita, como se a palavra estivesse em luta
consigo mesma: como uma fita moebiana, enquanto o neutro ganha força como noção, o texto
parece deslizar para um discurso onde quer ser incompreensível. A escritora Sheyla Cristina
Smanioto Macedo (2015) nos diz, em sua dissertação de mestrado, que “o neutro surge

38 “When I run after a streetcar, when I look at the time, when I am absorbed in contemplating a portrait, there is
no I… I am the plunged into the world of attractive and repellant qualities – but me, I have disappeared”
102

quando a escrita toca um nível arqueológico anterior, poético” (MACEDO, 2015, p.43), sua
própria origem.

Nessa especial forma de escrita (…) a palavra não afirma nada, é um dizer que não
diz nada, não porque tudo já tenha sido dito, mas antes porque, em ausência de uma
unidade que a sobredetermine, a palavra se abisma no vazio que a faz existir como
potência dispersa e privada de centro (MACEDO, 2015, p.44).

Ao colocar-se numa relação neutra para adentrar o espaço literário, quem escreve
passa por uma “des-subjetivação”, nos diz Blanchot, sendo este o único caminho possível. Na
passagem para o neutro não há mais Eu, sujeito ou sujeição: apenas a possibilidade de
participar do espaço literário. “Assim é que a busca pela obra literária se faz como uma
entrega desejante que parece avançar nos limites, desabando-os, e chega ao próprio Eu
exigindo ao escritor que largue a si mesmo no caminho” (MACEDO, 2015, p.46). Essa
relação não acontece sem risco, na medida em que só pode ser feita com um pacto que dê a
ver que o desconhecido não é um lugar, mas uma zona de promessa.
Por isso, Blanchot (2011) vai nos falar da preensão persecutória como uma poética do
gesto, exigência interminável, incessante da escrita: alguém segura um lápis, mesmo que
deseje soltá-lo, a mão não o solta. Ela fecha com mais força em volta do lápis, longe de abrir.
A outra mão, livre, intervém para abrir os dedos, mas a mão doente tenta retomar o objeto que
se distancia. É um movimento que acontece num tempo inumano, tanto a tentativa de segurar
o lápis como a de soltá-lo para depois pegar novamente. Não é o tempo da “ação viável, nem
o da esperança mas, antes, a sombra do tempo, ela própria sombra de uma mão deslizando
irrealmente para um objeto convertido em sua sombra” (BLANCHOT, 2011, p.15). A
exigência que essa mão experimenta para agarrar a todo custo o lápis é o fenômeno da
preensão persecutória.39
A mão é uma potência independente, não pertence a ninguém e não pode fazer nada
além de escrever: “uma mão morta, com a morte sendo a dissolução do sujeito e da sujeição.
Morta, como a ocasião para uma outra potência de vida” (MACEDO, 2015, p.50). Estabelece-
se uma relação entre a ausência e a escrita, no sentido de que, para avançar em direção ao

39 Em um ensaio sobre a presença do gesto na literatura, a escritora Moema Vilela (2017) nos ajuda a entender o
que Blanchot coloca em cena com a preensão persecutória: Se, após tocar a tecla “a” que encerra a palavra
“tecla”, eu movesse o mindinho esquerdo seis centímetros para cima, essa precisão não serviria de nada, pois o
gesto ainda não seria gesto, mas insignificância. Por outro lado, se esticasse essa mão até Marie Curie, a filhote
persa em meu colo, e à guisa de carícia e com o consentimento de sua pata quebrada, a fechasse em seu pescoço,
isso também não seria um gesto, seria gaticídio. Mais que o mero deslocamento do corpo, menos que uma ação:
eis a circunscrição do gesto. Intermediário entre o nada e a definição, entre o além e o aquém de sentido. Talvez
por isso, interpretá-lo, dizê-lo, notá-lo no cotidiano seja infrequente – ainda mais considerando a presença
expressiva do gesto em nossa vida, do despertar ao deitar na cama. Na literatura, essa representação se revela
igualmente ousada e inefável.
103

neutro é preciso um abandono de qualquer tentativa de buscar a verdade ou o acesso a uma


palavra inspirada.
É no neutro que se torna possível relacionar a escrita e a morte daquele que escreve,
pois escreve-se para dar passagem ao outro que habita o fora da obra. A relação do neutro
com a morte funciona naquilo de assombroso e indizível que tem o encontro com a própria
morte: uma operação difícil, como já vimos quando falamos do desamparo, mas um risco ao
qual a escrita parece convidar. Não a de fazer uma escrita de si, partindo de uma vontade
conhecida, mas em busca daquilo que cai quando se escreve, daquilo que atua na dissolução
da própria imagem, no murmúrio infinito:

Esse rumor em volta de nós, esse zumbido anônimo e contínuo em nós, essa
maravilhosa fala inesperada, ágil, incansável, que nos dota a cada momento de um
saber instantâneo, universal, e faz de nós a mera passagem de um movimento em
que cada um é sempre, de antemão, trocado por todos (BLANCHOT, 2011, p.296).

Quando Elena fala sobre a desmarginação de Lila estamos sempre em momentos de


crise na trama, momentos que se relacionam com o desabamento e a desintegração. Se formos
pensar quantitativamente nas mais de 1500 páginas que compõem a série napolitana, a palavra
aparece pouco no texto, em momentos muito específicos. No entanto, sentimos sua presença
atravessando toda a história, como algo que está sempre prestes a irromper. Para Lila, a
desmarginação começou quando o pai a jogou da janela e ela teve a certeza, enquanto via se
aproximar o asfalto, “de que pequenos animais avermelhados, muito simpáticos, estivessem
dissolvendo a composição da rua transformando-a numa matéria lisa e macia” (AG, p.83). Na
noite de ano-novo, quando Elena nos apresenta o fenômeno, o que antes tinha sido
experimentado como uma espécie de salvação, torna-se assustador: as mesmas entidades
desconhecidas destruíam o perfil costumeiro do mundo e mostravam sua natureza assustadora.
Lila diz que desmarginar é como “transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou uma
coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos” (AG, p.83),
Nesse transferir-se violando os contornos vislumbramos uma relação entre a
desmarginação e o neutro de que nos fala Blanchot. Na busca de uma linguagem que dê conta
da experiência vivida, a desmarginação aparece como palavra de um dicionário que ainda
será inventado, como a própria impossibilidade de encontrar na língua uma determinação
discursiva. A desmarginação, assim como o neutro, se faz presente como uma promessa de
linguagem. Pimentel (2012), em um artigo sobre o espaço literário, define o neutro como “a
potencialidade de tudo negar, não negando, e de tudo afirmar, não afirmando, afastando-se do
que é possível ou palpável para obter no infinito um espaço de permanência”. Distanciando-se
104

do que é possível, o neutro se afirma como um espaço que também é o espaço da literatura,
pois a narrativa literária, nos lembra Blanchot, não suporta ser o veículo transmissor de uma
verdade ou existir como uma intenção.

5.2 Palavra literária, alargamento das malhas do simbólico

Desde seus primeiros trabalhos, Blanchot mostrou uma preocupação em marcar o uso
próprio da palavra literária de fundar um universo ficcional que não está atrelado ao mundo
exterior. Tatiana Salem Levy (2011, p.12) ressalta que, opondo-se à ideia de que a literatura é
um meio para se chegar ao mundo exterior, Blanchot “defendia que a palavra literária é
fundadora de sua própria realidade (…) obscura, ambígua, desconhecida” (LEVY, 2011, p.12).
Assim, uma de suas primeiras inquietações foi estabelecer diferenças entre a linguagem
comum e a linguagem literária, tendo como objetivo mostrar como esta pode fazer emergir
um universo próprio.
Essa distinção atravessa toda sua teoria, mas é melhor sistematizada no ensaio
intitulado A linguagem da ficção (BLANCHOT, 2011, p.82) e em alguns textos sobre
Mallarmé. No primeiro, ele parte de uma assertiva que se encontra no início do livro O
castelo de Kafka para demonstrar como é diferente dizer dentro do universo ficcional O chefe
telefonou e ler ao chegar no escritório um recado deixado pela secretária. O conteúdo é o
mesmo, e é possível até atribuir o mesmo sentido a ambos. No entanto, entre a leitura do
recado e a do romance há uma grande distância.

Na existência diária, ler e ouvir supõe que a linguagem, longe de nos dar a plenitude
das coisas nas quais vivemos, seja cortada delas, pois se trata de uma linguagem de
sinais, cuja natureza não é ser preenchida com aquilo a que ela visa, mas ser
esvaziada, nem nos dar o que ela quer que alcancemos, mas nos torná-lo inútil
substituindo-o (…) No romance, o ato de ler não muda, mas a atitude daquele que lê
o torna diferente. “O chefe telefonou ele mesmo”, diz o filho do porteiro em O
castelo: “isso é embaraçoso para mim”. Sem dúvida essas palavras também são
sinais e agem como sinais. Mas aqui não partimos de uma realidade dada como
nossa. De um lado, trata-se de um mundo que vai ainda se revelar e, de outro, de um
conjunto imaginado que não pode deixar de ser irreal. Por essa razão, o sentido das
palavras sofre de uma falta primordial. (BLANCHOT, 2011, p.83-84, grifo nosso)

Uma narrativa escrita na prosa mais simples já implica uma mudança importante na
natureza da linguagem, mudança esta que se dá a ver na menor frase. Trazendo para o
contexto da série napolitana, quando leio numa notícia de jornal Uma mulher de 66 anos
desapareceu em Nápoles ou Um terremoto aconteceu em 23 de novembro de 1980, a relação
que tenho com essas palavras é diferente da que se dá nas páginas de um romance. Nos dois
casos não me fixo nas palavras, eu as atravesso, elas se abrem ao saber que lhes está ligado,
105

de maneira que entendo diretamente no meu registro, em vez das palavras que estão escritas, a
relação que terei com elas. Na leitura de ambos os textos, é na margem que se habita.
No entanto, há uma diferença de que margem estamos falando no registro que faço da
leitura do jornal e do romance. No primeiro caso, pego a notícia, sei algumas informações
sobre a localização geográfica de Nápoles, sobre a instabilidade da região – busco dados de
pessoas desaparecidas, mulheres que desapareceram. Ao ler a mesma coisa na ficção, me
torno infinitamente ignorante de tudo que acontece no mundo que se apresenta, uma
ignorância que faz parte da natureza deste mundo: é preciso conservar a ignorância para
penetrá-lo. O que é um desaparecimento? O que é um terremoto?, são perguntas possíveis de
surgir diante da ficção. Mesmo o acontecimento sendo minuciosamente descrito, mesmo que
eu conheça todas as personagens desde a infância, eu permaneço durante todo o tempo mais
ou menos consciente do pouco que sei. Essa pobreza é o que compõe a ficção, o de tornar
presente o que a faz irreal.
O que Blanchot delineia como pobreza que compõe a ficção nos faz pensar que a
posição de leitura diante desse texto se relaciona com a posição de escuta do psicanalista, no
sentido em que é uma posição que exige uma presunção de ignorância para ser assumida.
Desde A interpretação dos sonhos, Freud (1900/1996) nos mostra que o sonho é uma imagem
que pode ser lida; quando um paciente conta em análise sobre o que sonhou, o analista não
deve criar uma representação em imagem do que ele diz, mas adentrar o terreno da ignorância
onde o que é dito deve ser o tempo inteiro colocado em questão. Se o paciente diz: sonhei
com um terremoto, o analista deve abrir mão de tudo o que sabe sobre terremotos e, perguntar,
junto com ele: O que é um terremoto?
Rivera (2005) nos diz que o sonho é um palimpsesto, escrita múltipla do desejo. A
imagem do sonho é escrita, poesia latente, que obedece às leis da metáfora e da metonímia, e
obriga sempre a uma nova interpretação. O próprio relato do sonho já propõe uma leitura, e a
esta podem se seguir outras, que se mostram muitas vezes contraditórias, parciais, indicando a
existência de um ponto recôndito que sempre resiste à apreensão e gera toda sorte de
interpretações possíveis. Esse ponto é o umbigo do sonho, como já mencionamos, o lugar
onde o sonho se mostra insondável. A metáfora anatômica usada por Freud é digna de
destaque, pois nos lembra que há um corpo na formação de toda imagem, e é a partir de uma
inscrição primeira da linguagem no corpo que nunca encontra resolução absoluta, deixa um
resto, que o gozo pode ser circundado pela palavra, fornecendo a fagulha necessária para as
múltiplas leituras que a partir dela podemos realizar.
106

Para Blanchot (2011, p.213), ler no sentido da leitura literária é um movimento que se
direciona para longe de qualquer compreensão, distante de qualquer entendimento que
mantém o sentido: ler situa-se aquém ou além da compreensão. Ler tampouco é lançar um
apelo para que se descubra, por trás da aparência da fala comum, a obra única que deve
revelar-se na leitura. Se pegamos um livro pensando que nossa leitura deve desenredar todos
os fios, trazer a palavra literária para a linguagem do cotidiano, o fracasso da leitura é
anunciado. Existe uma espécie de apelo na leitura que só pode vir da obra e nela se encerrar:

Apelo silencioso, que no ruído geral impõe o silêncio, que o leitor só escuta
respondendo-lhe, que o desvia das relações habituais e o volta para o espaço junto
do qual, ao permanecer aí, a leitura torna-se aproximação, acolhimento encantado da
generosidade da obra, acolhimento que eleva o livro à obra que ele é, pelo mesmo
transporte que eleva a obra ao ser e faz do acolhimento o êxito em que a obra se
pronuncia. (BLANCHOT, 2011, p.213)

A leitura é essa permanência e tem a simplicidade do Sim leve e transparente que é


condição para essa permanência. Isso não significa que a leitora fica numa zona calma,
confortável; o Sim é condição para entrada em uma zona onde o ar é rarefeito e o chão escapa,
a leitura como participação na violência aberta que é a obra. Nesse sentido, para Blanchot
(2011, p.214) a leitura pode ser mais criadora do que a criação, embora não tenha um produto
final além dela própria. “Tem parte na decisão, tem a ligeireza, a irresponsabilidade e a
inocência dela” (BLANCHOT, 2011, p.214).
Em A conversa infinita, quando analisa a experiência total de ler, Blanchot (2010)
situa elementos que nos permitem aproximar ainda mais a posição de leitura literária da
posição de escuta em análise: é no atravessamento do espaço literário, mediante a leitura, que
o acontecimento mergulha o leitor num espaço de ressonância. Esse é o espaço que convoca o
leitor a trabalhar sobre as letras mortas da obra, dando sentido a elas, e compondo assim o seu
próprio vivido, que é convocado no espaço da leitura, como se criado pela própria leitura
naquilo que caracteriza a apreensão do texto. A experiência leitora é um acolhimento da
palavra que faz surgir a própria literatura enquanto se escreve; da palavra que vem do
encontro com o fora da linguagem, com o processo de desobramento. A leitura, assim como a
escuta, é acolhimento, ignorância e trabalho de entendimento.

A leitura é ignorante. Ela começa com isto que ela lê e descobre, por este meio, a
força de um começo. Ela é acolhimento e entendimento, não é poder de decifrar, de
ir além se desenvolvendo ou de retornar deste lado se desnudando (…) Maravilhosa
inocência. (BLANCHOT, 1969, p.468-469)

Em um artigo chamado A experiência total da leitura literária, Leonardo Pinto de


Almeida (2014) nos diz que a experiência leitora em Blanchot é um convite à aventura em um
107

território anteriormente desconhecido. O encontro com o objeto literário produz descobertas


ao nos seduzir com um canto que devemos acolher, não objetivando apreendê-lo com uma
análise interpretativa, mas deixando que a interpretação seja uma espécie de prótese em
relação à experiência. Estamos abandonados a essa experiência, pois não há nada além da
leitura; ignorantes, pois não há nada além do espaço experiencial da literatura que nos faça
sustentar a leitura. “Estamos abandonados à tarefa de entender e de ouvir o rumor do abismo
das palavras. O leitor acolhe a obra dando vida às letras mortas contidas no livro, porém ele é
acolhido por ela do mesmo modo. Assim, o leitor e a obra passam a existir” (ALMEIDA,
2014), numa existência que depende do campo experiencial em que interagem
Levy (2011, p.13) nos diz que, ao revestir as coisas concretas de um sentido abstrato, a
linguagem literária cria seu próprio mundo de coisas concretas e, ao fazer isso, não remete a
algo exterior a ela. A realização da linguagem literária só é possível em si mesma e, por isso, é
possível dizer, com Blanchot, que a literatura é “uma experiência que, ilusória ou não, aparece
como meio de descoberta e de um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir
o que não sabemos” (LEVY, 2011, p.13).
Há uma aproximação com a narrativa em análise, que acolhe o inquietante emergente
do sofrimento como uma lembrança sem lembrança, em meio a um relato fantasmático, por
demais convincente e repetitivo, que o sujeito entretém como garantia de sua identidade que o
aprisiona. Em vez de propor uma história que tenha a ver com a concretude do que pode ser
observado, ou uma única interpretação, o analista retoma as fraturas, os brancos, os tropeços e
atos falhos, para que o sujeito se arrisque – a partir do desastre –, a agir de maneira diferente
(PORTUGAL, 2006, p.155).
É na fratura da escrita que está o inquietante. Lembrando o que Freud (1919/2010,
p.276) nos diz em seu ensaio, quando afirma que o inquietante da ficção (da fantasia, da
literatura) tem uma maior riqueza de provocação, possibilita um contato maior com a criação
de cenas que o inquietante das vivências. “O contraste entre reprimido e superado não pode
ser transposto para o inquietante da literatura sem uma profunda modificação, pois o reino da
fantasia tem, como premissa de sua validade, o fato de seu conteúdo não estar sujeito à prova
da realidade” (FREUD, 1919/2010, p.276). O resultado é um paradoxo, pois na literatura nos
deparamos com o inquietante em coisas que não o seriam se estivéssemos em contato com
elas na vida real; na literatura existem muitos elementos para criar os efeitos inquietantes, dos
quais não dispomos na vida.
É trivial, embora de difícil explicação, o fato de que nosso encantamento com a
narrativa está na possibilidade de acompanhar, na leitura, a criação de vidas imaginadas.
108

Apesar da dificuldade em estabelecer porque ou como isso acontece, precisamos reconhecer


que o prazer de uma história sobre o que marca a aventura de uma amizade em formação não
é equivalente ao prazer de se cultivar uma amizade real. O escritor José Luiz Passos (2014),
em um ensaio sobre a imaginação nos romances de Machado de Assis, coloca que há um valor
de contentamento nas duas experiências – a real e a que acompanhamos na criação literária –,
mas algo que diz sobre nossa relação com o romance provém de um envolvimento voluntário
e ao mesmo tempo vigilante, com fatos imaginados que, por associação, analogia ou contraste,
encontram um nexo com o modo como concebemos nossas próprias vidas. A questão inversa
também se coloca para o autor:

Como entender o prazer na representação de eventos e paixões que, em si mesmas,


seriam desagradáveis se vividas efetivamente? Como explicar nosso apreço diante
da exposição de uma vida marcada pela denegação ruinosa, como, por exemplo, a do
narrador de Dom Casmurro? (PASSOS, 2014, p.133).

Se seguimos com Freud, podemos deduzir que esse apreço tem a ver com o familiar
que irrompe do inquietante; mas a pergunta que segue, principalmente em relação à literatura
é: por que nos dispomos a entrar nesse jogo de faz de conta com o desconhecido?
Passos (2014, p.77) nos dá um caminho para pensarmos o que Blanchot diz sobre a
linguagem literária: “valorizamos a narrativa de ficção não pela informação que ela veicula,
mas muito mais pela perspectiva que nos oferece diante de mundos que somos convidados a
imaginar” (PASSOS, 2014, p.77). O destino das pessoas nesses mundos são uma parte
importante da nossa relação com as narrativas de ficção enquanto obras de arte. Será que
ganhamos algo quando consideramos as protagonistas de um romance pessoas, e não apenas
instâncias de qualidades mais abstratas? Uma das intuições associadas à nossa relação com
personagens de ficção, e que revela porque alguns romances ganham um lugar privilegiado
dentro das nossas narrativas de vida, é o reconhecimento de aspectos nelas que nos dão
ferramentas para imaginar através dele pessoas situadas nas mesmas circunstâncias, que nos
inspiram compaixão, terror, júbilo, simpatia ou repulsa. Mais do que nas peças de teatro,
contos ou poemas, é no romance que acompanhamos o desenvolvimento de vidas com uma
minúcia difícil de encontrar em qualquer outro gênero. O romance nos coloca, muitas vezes,
no cerne da formação da experiência desse sujeito, nos termos da sua própria linguagem. É
esse oferecimento, pela linguagem, de um rumo da experiência humana particular e cambiante,
no momento mesmo em que ela acontece, a contribuição fundamental do gênero.

Após a leitura de Dom Quixote, Madame Bovary, Anna Kariênina, Dom Casmurro e
Macunaíma, o convívio com essas obras nos permite reconhecer feições desses
heróis mesmo fora dos seus próprios mundos (…) Podemos aplicar expressões como
109

“quixotesco”, “bovarismo”, “macunaímico” e “casmurro” ao nosso mundo, tomando


de empréstimo qualidades que aprendemos a perceber através da leitura dessas obras.
(PASSOS, 2014, p.79).

Através da leitura do romance é possível encontrar a palavra ou a nomeação para


sensações que antes pensávamos inexprimíveis, encontrar no texto a representação de
sentimentos que antes apenas intuíamos possíveis, além de ter acesso a experiências antes
experimentadas, mas jamais colocadas em palavras. A literatura, nesse sentido, permite
estender as fronteiras do simbólico, numa interação capaz de promover rupturas e produções
de sentidos.40
A distinção que Blanchot faz da linguagem da ficção é um dos caminhos que seguimos
para abrir uma fresta nos impasses que a desmarginação coloca para pensar a escrita literária.
O ensaio de Passos sobre como as vidas imaginadas nos dão acesso a outros mundos nos
ajuda a pensar a linguagem literária em Blanchot também no que ela contém de paradoxo: o
fato de sua realização residir na irrealização ou na negação. Para estar disposta a entrar em um
romance e acompanhar as vidas das personagens dentro daquilo que a ficção propõe, é preciso
negar o mundo e todas suas certezas.

A negação, assim como a morte, faz parte da palavra literária. Se a linguagem


comum a recusa, a linguagem literária, ao contrário, aproxima-a de si. Na literatura,
o ato de nomear é antes “um assassinato diferido”, um gesto de negação. A palavra
literária só encontra seu ser quando reflete o não ser do mundo, só se realiza em sua
própria falta e, justamente por isso, faz dessa falta a sua possibilidade. (LEVY, 2011,
p.15)

Levy (2011) ressalta que, para Blanchot, “a ambiguidade característica da linguagem


literária é precisamente o fato dela fazer as coisas desaparecerem e ao mesmo tempo revelar a
presença desse desaparecimento, o que seria o mesmo que afirmar que a obra só se torna obra
quando se desobra” (LEVY, 2011, p.15). Blanchot refere-se ao desobramento ao longo de sua
teoria, e a palavra ganha contornos de conceito: diz sobre a linguagem e a escrita literária em
seu caráter removedor de qualquer ordem de discurso do saber. Em O espaço literário, a
experiência da escrita é considerada uma experiência desobradora, pois passar por ela
significa se expor ao movimento centrífugo, voragem da impossibilidade de apreender a obra
em sua totalidade – o acesso à obra é dado apenas através dos fragmentos. Posteriormente, em
A conversa infinita, a desobra será a própria ausência da obra e do livro. Cabe à fala poética –
fala onde ninguém fala e o que fala não é ninguém – e à experiência da escrita, a exposição do
movimento de desobramento sem fim, movimento que alia-se à afirmação do anonimato da

40 Como nos diz Ogden (1996) em Os sujeitos da psicanálise, a leitura é uma perturbadora experiência de se ver
transformado num sujeito que você ainda não conhece, mas mesmo assim reconhece.
110

palavra literária para dar a ver a impossibilidade do sujeito que escreve e lê de conter a fala
poética ou deter esse movimento de vórtice, dispersão, fragmentação, que está no desastre.
Desastre, no que Blanchot propõe em A escritura do desastre, não significa
necessariamente morte ou catástrofe, mas dés-astre – a ruptura com o astro, com a fixidez do
ser, com a totalidade: traduz-se no fragmentário. Ana Maria Portugal (2006) nos diz que, em
Blanchot, desastre também é “o abandono do privilégio do sentido e da escrita transitiva, que
visa à comunicação, em favor da construção do espaço literário e das injunções da escritura”
(PORTUGAL, 2006, p.151). Além disso, no que diz respeito ao apagamento, Blanchot propõe
algo novo: o desastre situa-se ao lado do esquecimento, “o esquecimento sem memória, a
retração imóvel do que não foi traçado – o imemorial, talvez” (BLANCHOT, 1980 apud
PORTUGAL, 2006, p.151). Trata-se de um esquecimento imemorial, ligado ao que há de
mais antigo, que viria do fundo das eras sem jamais ter-se dado. Ao esquecimento também se
alia a ideia de morte e escritura:

Escrever, não é colocar no futuro a morte passada desde sempre, mas aceitar sofrê-la
sem torná-la presente e sem se tornar presente a ela, saber que ela teve lugar, se bem
que não tenha sido experimentada, e reconhecê-la no esquecimento que ela deixa, e
cujos traços, que se apagam, convidam a fazer-se exceção da ordem cósmica, lá
onde o desastre torna o real impossível e o desejo indesejável (BLANCHOT, 1980
apud PORTUGAL, 2006, p.151)

Segundo Anne-Lise Nordholt, para Blanchot o mundo não desaparece na escrita, mas
se desobra no outro de todos os mundos. Diz a autora: “a escrita nos fala dos seres e das
coisas, mas na medida em que eles estão desobrados em seus reflexos. Ela nos fala do mundo
invertido: o mesmo mundo, mas com um outro signo” (NORDHOLT, 1995 apud LEVY, 2011,
p.16). É um movimento de exteriorização derivado de um desobramento; a negação, ou o que
Blanchot denomina fora para a literatura, é o “outro de todos os mundos” que é revelado a
partir da escrita.
A relação com o fora denominada por Blanchot não é um estar em outro lugar do
mundo, mas estar na dobra de uma outra versão dele.

Tudo se passa como se na literatura o espaço, o tempo e a linguagem se


constituíssem num devir-imagem, em que o mundo se encontra desvirado, refletido.
Não se trata pois de um outro mundo, mas do outro de todos os mundos: o deserto, o
espaço do exílio e da errância, o fora. (BLANCHOT, 2013, p. 281)

A literatura, como negação dela própria, não significa a simples denúncia da arte ou do
artista como uma mistificação ou engodo; mas sim que ela guarde um certo fundo de
impostura, seja ilegítima. Nessa ilegitimidade que aponta para uma nulidade é que a literatura
se ergue com toda a sua força, tornando-se a revelação desse dentro vazio, que se abre para
111

um movimento negativo. No ponto de coincidência da literatura com o nada é que ela passa a
existir.
Em um texto chamado O paradoxo de Aytré, Blanchot (2011) apresenta William
Saroyan como um escritor que encontra a arte “perambulando pelas cidades, de olhos bem
abertos” (BLANCHOT, 2011, p.69). O que ele almeja é, a partir de sua própria caminhada,
inferir métodos e ideias sobre a literatura. A história que se quer contar não provém de um
bom domínio da língua ou da gramática, ela é uma rocha onde a palavra se articula com sua
própria ausência, “o silêncio manipulado e articulado” (BLANCHOT, 2011, p.69). O conselho
que Blanchot extrai da escrita de Saroyan é que para escrever é necessário habitar o silêncio
sem perturbá-lo. Tecer, com as palavras, o silêncio. No entanto, não é qualquer espécie de
silêncio, e nisso o conselho de Saroyan precisa ser esmiuçado. Blanchot lembra das palavras
de Bartleby, o escriturário, para resgatar de que tipo de silêncio estamos falando. Ao contrariar
todos os pedidos do mestre com a resposta “Eu preferia não fazê-lo”, Bartleby dá à palavra o
privilégio do silêncio.

Meu silêncio me faz participar inteiramente do sentido que lhe atribuo. Penetro no
que não digo, peso sobre o que está aliviado da minha palavra, entro mais
completamente em minha ausência de resposta do que em minha resposta. E não é
que seja assim porque, não falando, devo falar com todo o meu corpo, com minha
presença afirmada sem frases, pois o silêncio dos lábios exige também o silêncio do
rosto e o do corpo: um poder mais amplo que o do meu organismo, separado e
distinto, põe-se em marcha na ausência com a qual me expresso. O universo inteiro
que é o meu se vê engajado e comprometido nisso, porque esse silêncio tende
justamente a guardar de mim apenas o limite do mundo com o qual pretendo me
confundir. (BLANCHOT, 2011, p.70-71)

Do último encontro que Elena tem com Lila antes de seu desaparecimento, ela lembra
das palavras que marcam o fim do contato entre as duas: de mim, não. É na abertura do
terceiro livro da série, História de quem foge e de quem fica, num prelúdio que a narradora
chama de Tempo intermédio. Era o inverno de 2005 e as duas passeavam pelo estradão, lugar
que durante a infância tentaram atravessar para chegar no mar. Elena ressalta o caráter errático
da fala de Lila, que pronunciava coisas sem um nexo evidente em meio a um cantarolar
inteligível. Antes de chegar ao bairro, recebem a notícia que “tinha sido encontrado o cadáver
de uma mulher” (HFF, p.14). Era uma velha conhecida das duas, mais uma amiga de infância
que sucumbira à violência do bairro. Lila parece não se surpreender, nunca saíra dali, aquela
cena já era lugar-comum; mas Elena se comove e passa a observar o efeito do tempo no lugar
onde cresceram: “resistiam as casas baixas e cinzentas, o pátio de nossas brincadeiras, o
estradão, as bocas escuras do túnel e a violência (…) parecia que a cidade gestava nas vísceras
uma fúria que não conseguia extravasar”. (HFF, p.15 – 17).
112

Elena tenta falar com Lila no intuito de reparar algo, reconhecer que ela havia
compreendido desde criança a falta de fixidez das coisas, sua tendência para a desintegração.
A narradora tentara escapar do lugar onde nascera acreditando que fora dos limites do bairro
encontraria a cultura e a civilização, mas a velhice lhe mostra que Lila sempre estivera certa: a
violência está em todos os espaços e tempos.

“Agora vai bancar a sábia, proferir sentenças? Quais são suas intenções?
Quer escrever sobre nós? Quer escrever sobre mim?”
“Não.”
“Diga a verdade.”
“Seria muito complicado.”
“Mas pensou nisso, e continua pensando.”
“Um pouco, sim.”
“Me deixe em meu canto, Lenu. Deixe todo mundo para lá. Nós devemos
desaparecer, não merecemos nada, nem Gigliola nem eu, nem ninguém.”
(HMP, p.18-19)

Lila nega a Elena o direito de escrever sobre a história das duas, dizendo que ali nada
merece ser lembrado, tudo deve desaparecer. Há um embate que termina com uma negativa,
apontando para o cerne da tetralogia, a ausência que gera o movimento da escrita. Estamos
pensando a personagem Lila na série napolitana como localização de um movimento que
propomos inerente à literatura – a desmarginação, com a qual, quem escreve precisa em
algum momento se encontrar. A desmarginação que aponta não apenas para uma ausência de
palavra, mas uma ausência somente, “essa distância que colocamos entre as coisas e nós, e em
nós mesmos, e nas palavras, e que faz com que a linguagem mais plena seja também a mais
transparente, a mais nula, como se quisesse deixar fugir infinitamente a própria cavidade que
ela encerra, uma espécie de pequena cova do vazio” (BLANCHOT, 2011, p.81).
O trabalho da escrita, semelhante a uma artesania, é o de estar na intimidade de uma
ausência e tornar-se responsável por ela, assumir o risco que ela engendra e sustentar esse
risco. Quem sonda a palavra deve romper com qualquer ideia de verdade e de esperança, deve
(des)esperar. Ao procurar exprimir a linguagem pelo “ato só de escrever”, como reconhece
Mallarmé, o que se encontra é uma distinção em si mesma difícil de apreender, uma palavra
que diz, mas guarda em si mesma uma definição que a direciona para o silêncio. Uma fala que
é silenciosa porque é nula, “linguagem cuja força reside toda em não ser” (BLANCHOT, 2011,
p.71), em evocar a ausência: a linguagem da ficção provém do silêncio e é ao silêncio que ela
quer retornar. Para Blanchot, Mallarmé encontra esse silêncio na própria operação da
linguagem, no poder que tem a palavra de afastar a coisa para significá-la, “no branco da
margem” (BLANCHOT, 2011, p.72). Esse é o mito por excelência de Mallarmé: “uma
113

palavra não é a expressão de uma coisa, e sim a ausência dessa coisa” (BLANCHOT, 2011,
p.72). O que na palavra é poder de representação e de significação, cria entre as coisas e seus
nomes uma margem onde a criação propriamente dita tomará forma. A criação não pode
acontecer a partir da palavra e sim da ausência que ela provoca, donde deduzimos que a
criação só pode acontecer na desmargem.
Como dissemos, em O livro por vir Blanchot (2013) analisa a obra de alguns escritores
como Proust, Musil, Henry James, Joubert, para concluir que algumas pessoas se submetem a
uma condição, um fascínio incessante pelo gesto de escrever, semelhante ao canto das sereias
que arrasta os marinheiros para o fundo do mar. Essa seria uma experiência da ordem do
inquietante, na qual a obra em si mesma é colocada em causa junto com uma espécie de
compulsão que obriga o escritor a vivenciar, de modo intenso e imperativo, o que Blanchot
denomina a experiência da escrita.
Podemos aproximar, acompanhando o pensamento de Blanchot, a escrita com a
desmarginação – como algo que quem escreve (re)conhece, aprende a encontrar. Um
movimento que coloca quem escreve diante da impossibilidade da nomeação, diante do eco
de uma narrativa que explora os limites da linguagem, seus pontos de fratura, suas brechas e
dobras.
A desmarginação é a entrada de quem escreve no reino onde as imagens não são
estáveis, mas sim “passagem, inquietação, transição, alusão, ato de uma trajetória infinita”
(BLANCHOT, 2011, p.72). Passagem para o vazio das páginas, para o espaço livre entre duas
coisas que estão próximas, mas jamais se tocam.

(o canto das sereias)

O mar: incalculável, disperso, profundo, imóvel


em seu movimento monótono, do qual as ondas
são as frestas que o tornam visível. Imagem.
(… )
Como para o mar, é na profundidade, no silêncio,
que está o real do sentido. As ondas são apenas o
seu ruído, suas bordas (limites), seu movimento
periférico (palavras).
A linguagem supõe pois a transformação da
matéria significante por excelência (silêncio) em
114

significados apreensíveis, verbalizáveis. Matéria


e forma. A significação é um movimento.
Errância do sujeito, errância dos sentidos.
Eni Puccinelli Orlandi

O primeiro movimento em direção ao mar se dá pelo chamado de Lila.


Pouco antes do exame de conclusão da escola fundamental, a menina chama para fazer
uma dentre tantas outras coisas que Elena, sozinha, jamais teria coragem de encarar. Decidem
não ir à escola e, pela primeira vez, ultrapassar os limites do bairro. Elena não sabe bem por
que Lila tomara essa decisão, nunca demonstrara particular interesse em ultrapassar esses
limites. “Habituadas pelos livros da escola a falar com muita competência do que nunca
tínhamos visto era o invisível que nos excitava. Lila dizia que, bem na direção do Vesúvio,
havia o mar.” (AG, p. 67)
De manhã cedo já fazia calor. As meninas escapam, de mãos dadas, atravessando o
túnel, expostas ao desconhecido. Elena guarda a memória daquele dia como a primeira vez
que sentiu o prazer de estar livre, quando saíram do túnel e se viram numa estrada toda reta, a
perder de vista, a estrada que as levaria para o mar. Em vez do medo que sentiu antes, quando
desceu para o porão e depois subiu em direção à casa de dom Achille, agora a sensação era de
descoberta. Cada detalhe é observado, cada novidade chama a atenção. Os perigos aparecem,
mas não se transformam em obstáculos. Elena não sente em nenhum momento a
responsabilidade de não estar no caminho certo. Estava de mãos dadas com Lila mas, como
sempre, sentia que ela estava pelo menos uns dez passos à sua frente: naquela ocasião, no
entanto, não se incomodou. Desde que ela fosse a segunda e Lila a primeira, tudo ficaria bem.
Para Lenù, Lila estava com tudo ordenado em sua cabeça de tal maneira que nenhuma
desordem poderia atingi-la.
O caminho se torna longo, elas começam a sentir fome e sede. Elena sente que Lila
começa a suar, olhar constantemente para trás, algo parece estar errado. O céu, que de início
estava muito claro, começa a escurecer. Pesadas nuvens começam a se formar, trovões passam
a ser ouvidos ao longe. Elena sente medo, mas o que a assusta é perceber o medo de Lila.
“Estava de boca aberta, os olhos arregalados, mirava nervosamente à frente, aos lados, atrás, e
me apertava a mão com força. Será possível – me perguntei – que ela também esteja com
medo? O que está acontecendo?” (AG, p.70).
Lila diz que elas precisam voltar. Elena resiste, já estão no meio do caminho, se era
para percorrer a mesma distância, que fossem em direção ao mar. Lila diz que não e Elena,
115

tentando se colocar no rastro dela, aceita voltar. O medo de Lila naquela ocasião se tornará
um enigma, aceitar isso seria quebrar o ideal de completude que as duas juntas formam. Ela
nega. No entanto, mesmo depois de voltar para casa e levar uma surra, Elena diz que, ao se
afastar do bairro, sentiu pela primeira vez a distância como uma maneira de apagar qualquer
vínculo, qualquer preocupação.
(…)
Na segunda vez que Elena vai em direção ao mar, está com o pai. Vão juntos à cidade
para que ele a matricule no Liceu; ao contrário de Lila, que foi jogada pela janela e quebrou o
braço quando insistiu em estudar, Elena terá um caminho fora dos limites do bairro. A
desmarginação já entrou em cena na tetralogia, a passagem da Infância para a Adolescência,
da História de dom Achille para a História dos Sapatos. Elena diz “oscilar entre o fastio por
uma reconstrução que me parecia caricata e o fascínio pelo fato de que, embora diluídas, as
maneiras de Lila de qualquer modo me encantavam” (AG, p.87). Lenù começa a se dar conta
que Lila age sobre ela, como um fantasma exigente, “em sua ausência, após uma breve
hesitação, abre um espaço para ela dentro de si” (AG, p.88).
Lila está fazendo um sapato e não queria mais saber dos livros. De repente, a ideia de
fazer um sapato torna-se tão atraente para Lenù que ela olha para seus livros como se fossem
matéria opaca, sem vida. O poder da amiga com as palavras segue sendo seu encantamento
mais poderoso.
Quando Elena vê o mar pela primeira vez, descreve como um momento inesquecível.
O mar, texto de silêncio. “As ondas rolavam como um tubo de metal azul, levando no alto a
clara de ovo da espuma, e depois se arrebentavam em mil estilhaços cintilantes, chegando até
a rua com um oh que maravilha e temor por parte de todos nós que olhávamos” (AG, p.132).
Pena que Lila não estava ali, pensa Lenù. O mar lhe dá a sensação atordoante de que, mesmo
absorvendo muito daquele espetáculo, uma enormidade de coisas, inumeráveis, se dissiparia
ao redor sem se deixar apreender.

Naquele momento, cheio de luz e clamor, fingi-me sozinha dentro do novo da cidade,
nova eu mesma com toda a vida pela frente, exposta à fúria movente das coisas, mas
certamente vencedora: eu, eu e Lila, nós duas com aquela capacidade que juntas –
somente juntas – tínhamos de captar a massa de cores, de sons, cores e pessoas, e
depois narrá-las e dar-lhes força. (AG, p.132).

(…)
Não parece estranho que Blanchot tenha se interessado tanto pelo episódio da Odisseia
em que Ulisses se amarra ao mastro para ouvir o canto das sereias. Como alguém que viveu
debruçado sobre a escrita, a literatura, e cujas reflexões reverberam uma cartografia do
116

silêncio, a narrativa de um herói marítimo parece ser o maior dos atrativos. O mar, talvez o
espaço mais misterioso nos dias de hoje, quando câmeras vasculham cada centímetro do
planeta com google maps. O estilo de Blanchot também parece seguir o movimento escrito
por Elena, as ondas que se estilhaçam em mil fragmentos cintilantes quando chegam na beira
da praia, gerando uma expressão de espanto e temor em todos que olham, e que nos dá a
sensação atordoante de que, mesmo absorvendo grande parte do que ela proporciona, uma
enormidade de coisas se dissipam ao redor, fugidias.
Blanchot faz uma reflexão sobre a escrita, e ler seus ensaios é como navegar entre uma
infinidade de questões entre: filosofia, literatura, psicanálise, vida, morte, letra, palavra,
silêncio… No que diz respeito ao canto das sereias, ele faz algumas perguntas no início d’O
livro por vir, em uma seção intitulada O encontro do imaginário, perguntas que guiam o
ensaio e das quais faremos uso aqui como bússola para pensar a palavra que tem o mar por
meio, a desmarginação.

As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia, que
apenas dava a entender em que direção se abriam as verdadeiras fontes e a
verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus cantos imperfeitos, que não
passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em direção àquele
espaço onde o cantar começava de fato. Elas não o enganavam, portanto, levavam-
no realmente ao objetivo. Mas, tendo atingido o objetivo, o que acontecia? O que
era esse lugar? Era aquele onde só se podia desaparecer, porque a música, naquela
região de fonte e origem, tinha também desaparecido, mais completamente do que
em qualquer outro lugar do mundo (…) De que natureza era o canto das Sereias?
Em que consistia seu defeito? Por que esse defeito o tornava tão poderoso?
(BLANCHOT, 2013, p.4, grifo nosso).

A resposta que Blanchot ouve de alguns diante dessas indagações, respostas que
ecoam há milhares de anos, é que se tratava de um canto inumano – um ruído que faz parte da
natureza, mas localiza-se à margem dela, estranho, desperta em quem ouve o prazer da queda.
Havia algo naquele canto, revestido por potências inquietantes e imaginárias, que
convocavam para o esquecimento, canto que “uma vez ouvido, abria em cada fala uma
voragem e convidava fortemente a nela desaparecer” (BLANCHOT, 2013, p.4). O canto era
endereçado principalmente aos marinheiros, seres que aceitam correr os riscos inerentes à
vida no mar: risco da deriva, de encontro com o desconhecido. Ou, como nos diz Guimarães
Rosa (1956/2012), o risco de ir em direção a uma margem e cair em outra:

Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não-vejo! – só estava era entretido na


ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um
rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo,
bem diverso do em que primeiro se pensou (ROSA, 1956/2012, p.51).
117

Antes de Ulisses, o único que sobrevive para contar, imaginavam-se as maneiras que
os marinheiros morriam ao se aproximar da ilha. Alguns, talvez por impaciência, jogavam a
âncora prematuramente; outros, submetidos ao encantamento da promessa enigmática,
lutavam entre si acreditando-se escolhidos para ouvir o canto. Mas, diante da vitória, o que se
apresentava era um deserto, “como se a região-mãe da música fosse o único lugar totalmente
privado de música, um lugar de aridez e secura onde o silêncio, como o ruído, barrasse,
naquele que havia tido aquela disposição, toda via de acesso ao canto” (BLANCHOT, 2013,
p.5). Blanchot se pergunta se havia algo de malévolo naquele canto-convite para as
profundezas. Seriam as Sereias vozes falsas, que não devem ser ouvidas?
Ulisses, para ouvir o canto das sereias sem sucumbir ao abismo, amarra-se ao mastro
da embarcação, instrui seus companheiros a taparem seus ouvidos com cera e a não atender
aos pedidos do comandante de desatar os nós. Quando a embarcação se aproxima da ilha onde
as sereias habitavam, o vento para de soprar e as irresistíveis cantoras, diante dos marinheiros,
entoam o canto fatal. Atingido pela beleza e voragem do canto, Ulisses, como previsto,
implora para ser desamarrado, mas seus marinheiros não ouvem. Eles passam pela ilha e
seguem a viagem de volta para Ítaca.
A canção que as sereias endereçam a Ulisses diz respeito à viagem que eles
empreenderam até então. Cantam a façanha do herói, tão longe de sua terra natal, e, assim,
aliando o som à forma, o seduzem irresistivelmente. O episódio do encontro de Ulisses com
as sereias encena um jogo metafórico que envolve a tarefa de narrar e a sua perda. Primeiro, é
preciso ouvir o canto, aceitar que ele é inatingível porque leva à morte, para, só assim, ter
acesso a um canto segundo, agora transformado na poesia de Homero, na narração. É apenas
porque Ulisses aceita empreender a travessia pelo canto das sereias, perdê-lo e sobreviver a
ele, que lhe é dada a possibilidade de narrar. Contar significa tornar o canto presente,
reapropriar-se dele e revesti-lo com uma nova forma, que transmita uma verdade tão intensa
quanto aquela que se ouviu durante o canto, mas que, encoberto, não leva à morte. O que está
em cena no episódio das sereias, centro da narrativa da Odisseia, é a metáfora da travessia
entre tempo e palavra, jogo que se estabelece na narrativa. Seguindo Blanchot, é a partir do
canto XII da trajetória de Ulisses que nasce, para o Ocidente, a metáfora da narrativa, do
movimento que é necessário empreender para contar uma história. A Odisseia pode ser lida
como uma narrativa que encena a própria narração, uma narrativa que engendra a pergunta
sobre o que é narrar.
Ulisses consegue vencer as sereias, mas não sem usar de artifícios; é através da astúcia
e da perfídia que ele goza do canto sem correr os riscos. Diferente dos heróis da Ilíada,
118

conhecidos pela coragem e honra, Ulisses é portador de uma “covardia feliz e segura”,
fundada em um privilégio que o coloca fora da condição comum: é o responsável por narrar
aquela história e, para narrar o canto da voragem, é preciso ser humano com todas as suas
falhas.
Blanchot interpreta o canto das sereias como a imagem que inaugura a palavra poética
– canto que carrega uma falha, já que apenas indica, sob a névoa de uma imagem, o lugar
onde nasce o que na tradição ocidental chamamos de literatura. Para que a palavra poética
possa fundar-se é necessário o desaparecimento dessa obscura e mítica região de nascente, a
execução de uma travessia de risco e de uma experiência de perda dos limites, negação das
margens, tal como se dá no sonho, no êxtase, na loucura e na própria morte.

O canto das sereias envolve, portanto, uma distância a ser percorrida e um convite à
travessia de uma região limítrofe. Porém, o caminho que aí se insinua com o apelo
das sereias é o da volta ao passado e da perigosa tentação de nele perder-se
definitivamente, caminho inverso ao do retorno à pátria Ítaca que se cumpre como
temática regressão. Esse passado ao qual o canto das sereias convoca não é,
entretanto, um passado qualquer, mas antes um passado mítico – conciliação
originária desde sempre perdida, felicidade indivisa que o canto permite vislumbrar,
por um breve e intenso momento, como irresistível voragem, dissolução mortífera
para aqueles que desejam fruí-la plenamente e nela perder-se (OLIVEIRA, 2014,
p.103).

O canto das sereias remete a uma pátria diferente da Ítaca visada por Ulisses, a
nostalgia que o herói sente é por um lugar mítico, que nunca existiu. É para uma promessa de
felicidade que reluz esquecida no passado que ele se direciona. É a essa promessa utópica que
a experiência poética corresponde como configuração singular, que faz laço entre palavra e
imagem. Como a infância, a experiência poética é o lugar privilegiado de onde irrompe essa
promessa de felicidade e morada utópica. A literatura instaura, assim, um movimento
paradoxal e inesgotável: movimento de aproximação e fuga de uma obra completa, impossível,
e uma origem dispersa, inalcançável. Esse movimento de onde parte a experiência literária
tem um caráter imperfeito, como o canto poderoso pelo seu defeito – e nos fala desse desejo
de plenitude e da sua impossibilidade de realização.
Uma vez vencidas pelo malogro de Ulisses, a narrativa da Odisseia se transforma no
túmulo das sereias, e o seu canto deixa de ser a experiência do instante para tornar-se a
aventura da narrativa. Por isso, no ato inaugural de contar uma história está entranhada uma
perda originária e constitutiva, e sempre pressupõe alguma morte fundamental, real ou
119

imaginária: canto já não imediato, mas contado, por isso agora inofensivo, ode que se tornou
episódio. 41
O movimento narrativo da Odisseia parece ter como vórtice esse ponto de não-retorno
a partir do qual Ulisses se transforma em narrador e a sua história pode ser contada. É o
movimento de navegação que carrega o que Blanchot chamou de coração malicioso da
narrativa, um texto que, ao falar de si próprio, descreve uma origem e uma passagem. O
teórico francês afirma que o hoje chamado romance nasce desse embate entre reatualizar uma
cena da origem e a memória de uma passagem, entre o que fala no instante da experiência e a
palavra que rememora o passado no só depois. “A palavra de ordem que se impõe aos
navegantes é esta: que seja excluída toda alusão a um objetivo e a um destino (…) A palavra
de ordem é, portanto: silêncio, discrição, esquecimento” (BLANCHOT, 2013, p. 6 - 7).
A luta de Ulisses com o canto das sereias é o momento crucial que lhe permite
transformar-se em narrador, o nó onde Ulisses pode se tornar Homero e a voz do narrador
Homero se entremeia à de Ulisses. O ponto e o limite que tornam a narrativa possível de
realizar-se. Por isso, a palavra narrada só pode existir na medida em que esse canto originário
desaparece mas mantém o poder de atração e a força de novidade. O movimento que constitui
a narrativa somente pode cumprir-se graças à perda desse canto originário que deve manter,
contudo, a sua força de fundação.

O canto das sereias é, ao mesmo tempo, aquela poesia que deve desaparecer para
que haja vida, e aquela realidade que deve morrer para que haja literatura. O canto
das sereias deve cessar para que um canto sobre as sereias possa surgir. Se Ulisses
não tivesse ouvido as sereias, se tivesse perecido ao lado do seu rochedo, não
teríamos conhecido seu canto: todos os que tinham ouvido tinham morrido e não
puderam retransmiti-lo. Ulisses, privando as sereias de vida, deu-lhes a imortalidade.
E Homero, o aedo cujo canto é tão belo que o confundimos com o das sereias, pode
contar-nos a sua história como se fossem elas a fazê-lo. (TODOROV, 2006, p.110).

Amarrar-se ao mastro para proteger-se do canto das sereias é a astúcia e o


entendimento de Ulisses de estar diante de um poder maior, incompreensível. Ele abdica do
seu poder, assim como abre mão de ouvir plenamente o canto, recebendo em troca a
possibilidade de fixá-lo, mantendo uma distância entre a sobrevivência e a imagem da
felicidade perdida no paraíso mítico. Diferente de Ulisses, Achab decide correr o risco e
afundar junto com a cachalote em Moby Dick, romance de Herman Melville. Blanchot
compara o herói grego, que na recusa de atirar-se no abismo, antecipa o romance moderno, ao
capitão Achab, que se entrega ao poder que a força de Moby Dick exerce sobre ele. Ulisses se

41 A música que captura o corpo através das Sereias se torna a odos da Odisseia – ode, no grego, refere-se
simultaneamente ao caminho e ao canto.
120

recusa a sofrer a metamorfose na qual Achab afunda e desaparece; resiste à dissolução do


canto das sereias e preserva assim sua integridade, ao contrário de Achab que deixa pedaços
pelo caminho.

Depois da prova, Ulisses se reencontra tal como era, e o mundo se reencontra talvez
mais pobre, mas mais firme e seguro. Achab não se reencontra e, para o próprio
Melville, o mundo ameaça constantemente afundar naquele espaço sem mundo ao
qual o atrai o fascínio de uma única imagem. (BLANCHOT, 2013, p.11)

(…)
O canto das sereias nos fala da desmarginação. Voltamos à passagem da infância para
a adolescência, à travessia das décadas, quando a palavra desmarginação entra no léxico da
série napolitana. Diante da sensação de perder as margens, “Lila, não sei, estava muda,
arrebatada pelo espetáculo como por um enigma” (AG, p.171). Lila diz que sente como se

numa noite de lua cheia sobre o mar, uma massa preta de temporal avançasse sobre o
céu, engolisse toda a claridade e destruísse a circunferência do círculo lunar,
deformando o disco luminoso e reduzindo-o à sua verdadeira natureza de bruta
matéria insensata. Lila imaginou, viu, sentiu – como se fosse real – seu irmão se
rompendo (…) Ali, em meio a explosões violentíssimas, no frio, entre a fumaça que
queimava as narinas e o cheiro violento do enxofre, alguma coisa violou a estrutura
orgânica de seu irmão e exerceu sobre ele uma pressão tão intensa que desfez seus
contornos, e a matéria se expandiu como um magma, revelando-lhe de que
realmente era feito. Cada segundo daquela noite de festa lhe causou horror, teve a
impressão de que quando Rino se movia, quando se expandia em torno de si mesmo,
toda margem cedia, e também ela, suas margens, se tornavam cada vez mais fluidas
e cediças. (AG, p.171-172)

Os versos de Paul Celan que abrem esta dissertação como epígrafe, “a sobrevoada de
estrelas, a sobrerregada de mar”, parecem falar sobre a desmarginação. Em meio à euforia da
noite de ano-novo, à guerra de fogos de artifício que estava acontecendo entre as pessoas mais
pobres do bairro e os camorristas Solara, Lila está vivendo uma experiência profundamente
perturbadora, vertiginosa, de desorganização. Uma experiência que a faz perder a montagem
humana e encontrar-se com o horror – a experiência vivificadora da morte, nos diria Clarice
Lispector em seu A paixão segundo G.H. Lembremos que, ao contrário de G.H., aqui não
sabemos como Elena teve acesso a essa experiência de Lila: pode ter sido por uma narração a
posteriori, uma tentativa feita pela amiga de reconstruir a experiência por demais intensa que
ela viveu naquela noite, ou Elena leu o que Lila escreveu nos cadernos entregues pouco
depois do seu casamento. Lenù diz que muitas coisas lhe escapam dos acontecimentos
daquela noite, mas consegue notar, escrevendo, que a partir daquela passagem Lila começa a
passar por uma transformação interior: “ela agora tinha um irmão desmarginado, de onde
podia romper o irremediável” (AG, p.175).
121

Na carta que escreve para Elena no seu aniversário de 15 anos, a carta que dilacera
nossa narradora porque ela sente na letra da amiga um estilo semelhante ao que viu em A fada
azul, Lila conta sobre o momento em que viu uma panela de cobre explodir espontaneamente.
Estava pendurada no prego onde normalmente ficava, mas no centro tinha uma grande fenda,
as bordas estavam erguidas e retorcidas, e a panela estava toda deformada,

como se não conseguisse mais conservar sua aparência de panela (…) Esse é o tipo
de coisa, concluí Lila, que me assombra. Mais que Marcello, mais que qualquer um.
E sinto que preciso achar uma solução, senão, uma coisa atrás da outra, tudo se
rompe, tudo, tudo, tudo. (AG, p.225, grifo nosso)

Na carta que envia para Elena, nos escritos que depois sabemos que mantinha, Lila
parece buscar criar uma forma que contornasse o caos onde aquelas situações a mergulhavam,
uma forma que apaziguasse seu pavor de permanecer desmarginada. Há uma aproximação do
que Blanchot diz sobre as sereias, com seu canto que abria em cada fala uma voragem,
convidando fortemente a nela desaparecer, com o que Lenù nos diz sobre Lila pouco antes do
terremoto: o jeito dela falar se assemelhava a uma escritura que abre voragens, constrói pontes
sem as terminar, força o leitor a fixar correnteza. É o defeito do canto que leva as sereias
àquele espaço onde o cantar começa de fato, não há engano, o lugar onde só se pode
desaparecer porque a música, naquele lugar, é o próprio silêncio.
Vimos com Freud que o perigo de mexer com o desconhecido se relaciona à irrupção
do inquietante no que há de mais familiar: o horror de olhar para dentro de si mesmo e ter um
encontro com a ausência, o próprio desaparecimento. Com a desmarginação podemos intuir
que o inquietante está no centro de ambiguidade da narrativa, é o que compõe o canto das
sereias, de onde surge a armadilha das palavras. Lila temia “o tremor e a torção da matéria,
detestava a cavidade das palavras quando se esvaziavam de todo sentido possível” (HMP,
p.209). Talvez por isso, sua escrita forjasse um meio de (re)velar o vazio.
É possível pensar em Lila como uma sereia nessa narrativa de Elena? Por isso nela se
localiza a desmarginação, a experiência que é preciso adentrar para escrever? Blanchot nos
diz que a experiência literária conduz à ausência do tempo, ao desamparo dos deuses, à
passagem do Eu ao Ele, será nessa passagem que está a desmarginação, na voragem que se
abre quando Lila canta? Nós vimos que, apesar de a desmarginação ter sido nomeada por Lila,
nossa narradora também sofre efeitos que nos dão notícias do fenômeno; quando começa a
escrever seu segundo livro, Lenù diz que “tinha pensamentos na cabeça que não queria
formular nem para si mesma, temia que os fatos se adaptassem magicamente às palavras”
(HFF, p.306) e, ao mesmo tempo, sentia que não conseguiria apagar aquelas frases, como se
122

na sua cabeça a sintaxe já estivesse pronta, um processo ao mesmo tempo assustador e


fascinante. “Sentia como se seu corpo tivesse a consistência da casca do ovo e bastasse uma
leve pressão num braço, na testa, na barriga para rompê-lo e extrair dali todos os seus
segredos” (HFF, p.358).
Vamos nos permitir aqui fazer um jogo desproporcional, encontrar vestígios na jornada
de Lenù para tornar-se escritora com a jornada de Ulisses para voltar a Ítaca. Um jogo que nos
permitimos fazer pela própria abertura que a série napolitana nos dá: Lenù retoma a imagem
da sereia quando se refere a Lila. Além disso, traz Virgilio e sua Eneida como objeto de
estudo da narradora: seu primeiro trabalho relevante na escola foi um ensaio sobre o amor na
cidade a partir da personagem Dido, ensaio que ela escreve a partir de uma conversa que tem
com Lila sobre o livro. Gallippi (2017, p. 102) nos lembra que o desaparecimento de Lila
retoma o mito cheio de mistério do surgimento de Nápoles: o mito da sereia Parthenope e a
lenda de Virgilio como mágico e salvador da cidade. O autor sugere que um dos pontos mais
importantes do livro é a relação que Lila faz entre a história de amor de Dido e Eneias e a
visão dela do bairro e de Nápoles, uma relação que parece também cara à Elena Ferrante
(2017), como aponta um trecho de Frantumaglia:

Sem amor entre os povos não há acordos: as duas coisas caminham juntas. Um verso
diz mais do que mil leituras pesadas. E não há por que nos surpreendermos com isso.
Quem escreve histórias sabe que as razões poéticas não são mariposas com asas
transparentes. Elas têm carne e sangue, paixões, sentimentos complexos: a poesia é
remexer no próprio ventre com movimentos nunca previsíveis. Dido é nutrida por
suores e saliva, não é uma crosta de caramelo em cima de um crème brûlée. Ela sabe
maldizer a pessoa que ainda ama; sabe se matar com um presente do bem-amado
(FERRANTE, 2017, p.160).

Parthenope é uma sereia associada à fundação de Nápoles, sendo o primeiro nome


dado à cidade. As sereias antes eram mulheres, servas de Perséfone, que tiveram seu corpo
metamorfoseado em pássaro quando do rapto por Hades. A metamorfose acontece para que
elas ajudem na busca, mas acabam por desistir e se estabelecem na região de Anthemoessa –
hoje identificada como um lugar mítico próximo a Ischia, no golfo de Nápoles, lugar onde
Elena fica pela primeira vez longe de casa em férias, e onde recebe a carta de Lila onde
vislumbra pela primeira vez o artifício de sua escrita. Quando Ulisses passa incólume pelo
canto, conta-se que algumas sereias se suicidaram jogando-se no mar, e no lugar do
desaparecimento de Parthenope, surge a cidade.
Como dito, Lenù refere-se a Lila como uma sereia em diversos momentos nos livros,
principalmente quando quer ressaltar suas características de fascínio. É no epílogo de História
da menina perdida, quando Lila já havia desaparecido e Elena está prestes a finalizar a
123

história, que isso fica mais evidente: “Às vezes me pergunto onde ela se dissolveu. No fundo
do mar. Dentro de uma fenda ou de um túnel subterrâneo cuja existência só ela conhece”
(HMP, p.474). Lenù conta que, antes de desaparecer, Lila estava interessada em desvendar
todos os mistérios de Nápoles, como se tivesse a intenção de finalmente se misturar à cidade
de onde nunca saíra:

Descobri que o objeto no qual Lila se concentrava, sobre o qual escrevia talvez por
horas e horas, inclinada no seu computador, não era esse ou aquele monumento, mas
Nápoles em sua inteireza. Um projeto imenso, sobre o qual nunca havia falado
comigo (…) Dizia a minha filha: que cidade esplêndida e significativa: aqui foram
faladas todas as línguas, Imma, aqui se construiu de tudo e se destruiu de tudo, aqui
as pessoas não confiam em nenhuma falação e são bem falastronas, aqui há o
Vesúvio que todo dia recorda que o maior feito dos homens poderosos, a obra mais
esplêndida, o fogo, o terremoto, e as cinzas, e o mar em poucos segundos reduzem a
nada. (HMP, p.437-438).

Esse amalgamento de Lila com Nápoles, de Lila com o bairro, parece apontar para a
busca de Lenù na escrita: uma busca em direção ao enigma criado no episódio da queda das
bonecas e no enfrentamento com dom Achille, o momento em que Lila segurou sua mão e,
com aquele gesto, mudou tudo para sempre. O bairro em Nápoles é o lugar de onde é
impossível sair, assim como de Lila é impossível se afastar, como nos elucida o poeta Mário
Quintana: “Não importam que a tenham demolido / A gente continua morando na velha casa
em que nasceu”.
O bairro e Lila, para nossa narradora, são os lugares de onde emerge o sentimento de
inquietante familiaridade, onde ela busca abrigo, não desvanecendo, não permitindo que se
esqueça a perda. “Com o estranho, a memória não só funciona como um depósito, onde se
sedimentam as experiências, mas, na pulsação do tempo, revela o inédito, o que espera por
uma elaboração” (PORTUGAL, 2006, p.103). É o impossível de se ocultar, a experiência que
surge no encontro com o canto das sereias, a desmarginação.
Lenù escreve porque consegue se amarrar ao mastro no encontro com o canto da sereia,
desmargina, com sua escrita recompõe bordas e se inscreve no laço ao Outro. Nas coisas do
desejo, que sempre se manifestam numa aparente perturbação da memória – nos diz Freud
(1936/2010) na carta a Romain Rolland –, perdura um sentimento de perda de margens, de
uma temporalidade única, não linear, uma ausência do tempo. As relações que se manifestam
por meio do duplo, da impossibilidade de esquecer o desejo, que fazem emergir o recalcado,
que nos alienam de nós mesmos, nos castigam e nos atormentam, são as que exigem uma
escrita.
Portugal (2006) vai nos dizer que estranhezas desse tipo fazem parte da bagagem de
quem escreve, o que lhe permite manter sob tensão um tênue fio de imaginário, nem firme,
124

nem frouxo demais, apenas o suficiente para que o estranho não irrompa no excesso do
familiar. A imagem que Elena traz, do corpo com a consistência de uma casca de ovo, prestes
a fraturar ao menor toque, parece falar sobre essa tensão por onde anda quem escreve, “a
doença da escrita”, nos lembra Marguerite Duras (1994). Essa doença, que Duras chama de
loucura, podemos entrever na desmarginação: “uma loucura de escrever que existe em si
mesma, uma furiosa loucura de escrever, mas não é por isso que se cai na loucura” (DURAS,
1994, p.47-48).
125

6 CONCLUSÃO, O MAR ABERTO

Escrever
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não se pode
E se escreve.
Marguerite Duras

Caminhamos para o fim deste trabalho com as palavras de Marguerite Duras e com a
pergunta que elas inscrevem sobre a escrita. Escrever, não se pode. Ninguém pode. Mas se
escreve. É sobre o que não pode se escrever que se escreve? Mesmo estando sob a égide da
falta, do impossível, a escrita é imperativa: “o livro está ali, e grita, exige ser terminado, exige
que se escreva” (DURAS, 1994, p.21).
A artista que se oferece aos riscos da exigência sente-se ausente de si mesmo, exposta
a um movimento que a expele para fora da vida e de toda a vida, a torna vulnerável a esse
momento em que nada pode fazer e já não é ela própria. O mundo pode acusá-la de deserção,
abdicação, mas a censura é fácil para quem não sabe o que é correr o risco (BLANCHOT,
2011, p.49).
A criação literária começa quando, por um ardil, um salto feliz ou uma distração,
consegue-se driblar o impulso de que a escrita deve levar a algum lugar – de que o escrito tem
o poder de abrigar e afastar quem escreve do perigo. Drible que, por ser tão difícil quanto
perigoso de realizar, pega o escritor de surpresa quando a travessia é feita sem um naufrágio.

Com meus livros, sempre estive à beira-mar, pensava nisso agora mesmo. Tive
contato com o mar muito cedo na minha vida, quando minha mãe comprou a
barragem, a terra de Barragem contra o pacífico e que o mar invadiu completamente,
e ficamos arruinados. O mar me mete muito medo, é a coisa que mais me mete medo
no mundo… Meus pesadelos, meus sonhos de terror referem-se sempre à maré, à
invasão das águas (DURAS, 1987, p.84).

Em uma elaboração psicanalítica comparamos o trabalho da escrita ao do sonho e do


luto – como fizemos ao dizer com Waly Salomão que escrever é se vingar da perda – já que
esses processos funcionam com ganhos e perdas. Isto não significa, necessariamente,
sofrimento, sangue, lágrimas, mas, como nos disse Elena Greco, passar por um processo de
126

transformação42. Tentamos delinear o processo de escrita de Elena através de Lila com o


auxílio da psicanálise, pensando principalmente na passagem que foi preciso fazer em sua
posição para que a escrita pudesse acontecer: sair do fascínio em relação a Lila para escrever.
Na relação entre Lenù e Lila, o espaço da escrita se desenha como um lugar aberto à visitação,
mas não à permanência, porque escrever implica um desabamento do Eu, uma queda narcísica
que suspende tudo que nos dá a ilusão de coesão, coerência e sustenta nossa imagem. O
narcisismo cai para fazer surgir algo que sobrepassa o Eu na dimensão subjetivável, trazendo
a sensação que não somos nós que escrevemos o texto, mas somos escritas por ele. Esse é o
movimento que acompanhamos na série napolitana quando entra em jogo na narrativa a
desmarginação.

Nunca saberemos se os raros textos de Lila têm realmente a força que Elena lhes
atribui. O que sabemos é como eles acabam gerando uma espécie de modelo ao qual
Elena se esforça para aderir durante a vida toda. Sobre aquele modelo, ela nos diz
algo, mas não é isso que importa. O que importa é que, sem Lila, Elena não existiria
como escritora. Qualquer pessoa que escreve extrai os próprios textos de uma escrita
ideal que está sempre à sua frente, inalcançável. É um fantasma da mente,
inapreensível. Por conseguinte, o único rastro que sobra de como Lila escreve é a
escrita de Lenù (FERRANTE, 2017, p.310)

O fenômeno da desmarginação acontece com Lila porque é no rastro da amiga que


Elena se coloca para perseguir a escrita. É no movimento de passagem da posição em que se
encontra fascinada por tudo que Lila produz ao de abrir o caderno e escrever, que a série
napolitana nos põe a pensar nos meandros da criação literária, meandros estes que são
anunciados desde o prólogo, no começo da narrativa, como uma forma de vingança contra o
desaparecimento de Lila.
Voltemos ao mar de Blanchot. O canto das sereias é a primeira das quatro partes que
compõem O livro por vir. Nela, temos dois capítulos: O encontro do imaginário e A
experiência de Proust. O autor inicia O encontro do imaginário narrando ao mesmo tempo o
mito das sereias e como o mito se constituiu enquanto narrativa. Há um deslizamento entre
contar como aconteceu o episódio do encontro de Ulisses com as sereias e a reflexão sobre o
próprio ato de narrar que só se dá a ver no fim da primeira parte, quando irrompe um
pensamento que até então atuava no interior do texto; a navegação sobre a qual estamos lendo

42 Pontalis (1991) faz uma elaboração precisa sobre essa analogia: “O sonho transforma sensações presentes,
restos (diurnos), rostos e lembranças, pessoas e lugares: é um laboratório. O luto transforma o objeto perdido,
o incorpora e o idealiza, o fragmenta e o decompõe, e precisa de tempo para fazer isso. Mas a analogia com
a escrita não está somente no trabalho: escrever é também sonhar, é também estar de luto, sonhar-se e sonhar
o mundo, ser animado por um desejo louco de posse das coisas pela linguagem e ter a cada página, a cada
palavra, a prova de que nunca se obtém exatamente o resultado que se quer. Daí a febre, ou mesmo a
exaltação maníaca, e a melancolia que acompanham alternadamente o ato de escrever” (PONTALIS, 1991,
p.129-130).
127

não é a de Ulisses pelo mar, mas a “navegação feliz, infeliz, que é a da narrativa”
(BLANCHOT, 2013, p.6).
Blanchot escreve a sua leitura do encontro com as sereias, e depois identifica esse
encontro como o que é necessário para o surgimento da narrativa. Um pensamento que nos
devolve à série napolitana, construção da estrutura do texto como um mise en abyme em que a
ficção acontece enquanto reflete sobre as condições necessárias para narrar. Só percebemos
que isso está em questão quando já estamos no meio do furacão, ou, talvez seja melhor dizer,
em meio à desmarginação. Assim, podemos tomar os episódios em que esse fenômeno
aparece para pensar numa dimensão do texto, fora da ordem romanesca da história, onde é
possível refletir sobre a criação literária e suas nuances.
Numa das seções de O encontro do imaginário chamada A lei secreta da narrativa,
Blanchot (2013) apresenta suas próprias perspectivas sobre as camadas que constituem o texto,
falando do romance em dois momentos: há a navegação prévia, que acontece em primeiro
plano – deve ser uma história totalmente humana –, para que no segundo plano se desenrole,
de maneira sub-reptícia, a narrativa que reflete sobre o próprio ato de narrar.

Isso não é uma alegoria. Há uma luta muito obscura travada entre toda narrativa e o
encontro com as Sereias, aquele canto enigmático que é poderoso graças a seu
defeito. Luta na qual a prudência de Ulisses, o que há nele de verdade humana, de
mistificação, de aptidão obstinada a não jogar o jogo dos deuses, foi sempre
utilizada e aperfeiçoada. O que chamamos de romance nasceu dessa luta. Com o
romance, o que está em primeiro plano é a navegação prévia, a que leva Ulisses até
o ponto de encontro. Essa navegação é uma história totalmente humana (…) Quando
a narrativa se torna romance, longe de parecer mais pobre, torna-se a riqueza e a
amplitude de uma exploração, que ora abarca a imensidão navegante, ora se limita a
um quadradinho de espaço no tombadilho, ora desce às profundezas do navio onde
nunca se soube o que é a esperança do mar. (BLANCHOT, 2013, p.6)

O canto das sereias é o que possibilita a existência de uma outra narrativa dissimulada
na estrutura do romance. É importante, para isso, que não haja um destino, um lugar a se
chegar, ou um texto a se produzir. Por isso, na seção seguinte, chamada por Blanchot Quando
Ulisses se torna Homero, a história de Moby Dick é trazida para mostrar que outros caminhos
podem surgir além de se amarrar ao mastro. É possível também sucumbir à sedução e afundar.
Ulisses se transformar em Homero e Achab se tornar Melville são condições para que
a narrativa possa surgir; na medida em que se fazem, ambas as histórias produzem o que
contam, narrando a si mesmas, ou seja, narrando o surgimento da possibilidade de se narrar
uma história como a que narram. Quando Blanchot identifica a narrativa à navegação cria o
paradigma de que a história desses heróis é a história de todo escritor. Ao citar Homero,
128

Melville e, em outra parte do ensaio, Proust e Goethe, seguimos lendo e encontrando


correspondências entre os livros que são citados e a discussão sobre a escrita e o escritor.
Macedo (2015) afirma que é como se as sereias, errantes na terra incógnita das letras,
no deserto do espaço literário, estivessem sempre dizendo sobre a literatura, porque o que se
esconde no seu canto é o desconhecido; no final das contas, não cessam de dizer sobre esse
enigma que é o canto, ao mesmo tempo promessa e frustração dos poetas. Como personagens
da metalinguagem de Blanchot, o episódio das sereias torna-se o corpo que é o próprio texto,
performam o pensamento que disserta sobre a relação entre a criação literária e a promessa de
acesso ao desconhecido.
Quando falamos da frantumaglia ressaltamos a escolha de Elena Ferrante para intitular
seu livro de cartas, ensaios e entrevistas com a palavra estrangeira do dialeto, usada por sua
mãe quando se sentia puxada de um lado para o outro por impressões contraditórias que a
dilaceravam. Parece interessante pensar a criação literária para a escritora como partindo daí,
na palavra que refletirá a desmarginação na série napolitana. Pensar em como se dá, através
dela, a promessa de acesso ao desconhecido que nunca será revelada, mas que gera o
movimento da escrita. La Frantumaglia é o título escolhido para o livro, e o subtítulo Os
caminhos de uma escritora é uma pista para pensarmos nela relacionada à criação literária.
No convite à leitura do seu material mais biográfico, no lugar onde temos acesso às suas
reflexões sobre escrita e leitura, a autora usa a palavra que, no dialeto materno, aponta para o
silêncio, a aniquilação, o encontro com a própria morte. Citamos novamente:

A frantumaglia é o depósito do tempo sem a ordem de uma história, de uma


narrativa. A frantumaglia é o efeito da noção de perda, quando temos certeza de que
tudo o que nos parece estável, duradouro, uma ancoragem para a nossa vida, logo se
unirá àquela paisagem de detritos que temos a impressão de enxergar. A
frantumaglia é perceber com uma angústia muito dolorosa de qual multidão
heterogênea levantamos nossa voz e em qual multidão heterogênea ela está
destinada a se perder (FERRANTE, 2017, p.106).

Ferrante parece nos dizer que, se procurarmos naquelas páginas, não encontraremos
nada sobre sua identidade, mas sim o percurso que fez para tornar-se escritora; não
encontraremos uma pessoa civil, mas uma multidão de vozes heterogêneas sempre em vias de
dispersão. Falamos, com Blanchot, que escrever pressupõe a conquista de uma certa
espontaneidade, que permite o distanciamento do Eu em relação a si mesmo. Esse
distanciamento é tecido na separação entre o Eu e aquilo que não o reconhece, o Ele
irremediável, desconhecido, perdido nas sombras. Podemos pensar no duplo, no inquietante,
naquilo que irrompe da escrita quando aceitamos o jogo do desconhecido que é sua
prerrogativa. No pensamento blanchotiano, escrever é passar do Eu ao Ele sem rosto,
129

passagem esta situada na conceituação do neutro. A intrusão do neutro é a abertura para o


espaço literário, lugar onde acontece essa passagem, uma abertura que está na tessitura da
experiência de criação literária.
A busca por habitar o espaço literário se faz com uma negação das margens, uma
negação que pode ser perigosa, na medida em que deixa quem escreve à beira da loucura – na
“doença da loucura”, repetimos com Marguerite Duras. Por isso, é preciso que um pacto seja
realizado, um acordo onde o acesso ao desconhecido se dá como uma “zona de influência,
promessa de lugar” (MACEDO, 2015), e não como um caminho sem volta.
A passagem do Eu ao Ele, o neutro, deve ser uma conquista. A obra exige da escritora
que ela perca toda a ‘natureza’, todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros
e consigo mesmo pela decisão que a faz Eu, converta-se num lugar vazio onde se anuncia a
afirmação impessoal. Essa conversão é o que conduz à escrita, no movimento moebiano onde
ela se oferece dominada para depois ser aquilo que domina. A relação da passagem com a
criação literária é alcançada pela conjuração de um gesto 43 – o que se põe na busca pela
experiência literária – como se devêssemos forjar um corpo para que a escrita o ocupe.
Elena Ferrante retoma a frantumaglia ao responder uma pergunta sobre a presença da
fala de Lila na série napolitana como uma alusão simbólica a uma escrita ideal44. A jornalista
pergunta especificamente: seria a escrita de Lila a que a autora persegue enquanto escreve?
Ferrante responde que, no caso de Lenù sim, sem dúvida. Mas a ela, como leitora, o que
sempre chama a atenção é como os escritores rodeiam o assunto da própria escrita e, no final,
o afastam, para falar de rituais que os ajudam a trabalhar, mas não da realização da escrita em
si. Esta permanece sempre como um mistério. Com ela não acontece diferente. Ferrante
relaciona sua experiência à de Keats numa carta dele para Woodhouse: “Keats dizia que a
poesia não está na pessoa do poeta, mas no fazer-se dos versos, na faculdade de linguagem
que se materializa em escrita” (FERRANTE, 2017, p.309). Para ela, o fazer-se da escrita se dá
quando o ruído estável da frantumaglia prevalece sobre tudo, como uma força que a pressiona
de maneira constante para tornar-se história. O indivíduo, a pessoa, não existe naquele
momento, é apenas o ruído e a escrita e, por isso, se continua a escrever mesmo quando não
está mais diante do papel ou da tela do computador. A escrita ocupa toda a vida cotidiana, até

43 No Espaço Literário Blanchot propõe o que Macedo (2015) chama de pequena poética do gesto: a mão é
uma potência independente, que não pertence a ninguém, que não faz nada além de escrever. A mão move-se
num tempo pouco humano, que não é o da ação viável nem o da esperança mas, antes, a sombra do tempo. A
sombra de uma mão deslizando irrealmente para um objeto convertido em sua sombra. Uma mão que, para
Blanchot, está prestes a morrer e na morte encontra a dissolução do sujeito e da sujeição. Não se trata da
morte como uma aniquilação mas como a ocasião para que surja uma outra potência de vida.
44 Dissemos antes que Lila parece apresentar o que Blanchot chamou de fala profética.
130

o sono. O ato da escrita é uma passagem contínua da frantumaglia de sons, emoções e coisas
à palavra e à frase. Trata-se de uma escolha e de uma necessidade, de um fluxo, como água
que escorre, e, ao mesmo tempo, do resultado de um trabalho, de estudo, aquisição de técnicas
– de um prazer, um esforço de todo o corpo.

No final, o que vai parar na página é um organismo imaterial muito composto,


constituído por mim que escrevo e, digamos, por Lenù e pelas muitíssimas pessoas e
coisas que ela narra, pelo mundo a partir do qual ela narra e a partir do qual eu a
narro, bem como pela tradição literária à qual me remeto, com a qual aprendi, e por
tudo o que faz de quem escreve o componente de uma inteligência criativa coletiva –
a língua como é falada no ambiente onde nascemos e crescemos, as histórias orais
que nos contaram, a ética que adquirimos, etc. –, em suma, o fragmento de uma
longuíssima história que reduz muito nossa função de “autores” como a entendemos
hoje (…) Acho que a ambição secreta de qualquer pessoa que se dedique plenamente
à escrita é governar aquele ruidoso estilhaçamento constante na cabeça, explorar
aquele transformar-se em palavra que dura enquanto dura a história. Quando Keats
dizia que o poeta não tem identidade, queria dizer, a meu ver, que a única identidade
que importa é a do organismo imaterial que respira na obra e que se liberta para o
leitor, e não a que você atribui a si mesmo quando tudo chega ao fim e você diz: sou
uma autora, escrevi este livro (FERRANTE, 2017, p.309-310).

O caminho que a escrita percorre é o dessa passagem, o texto se constituindo como um


corpo para a autoria desmarginada; a construção da estrutura em mise en abyme que podemos
observar entre a frantumaglia e a desmarginação, Elena Ferrante e Elena Greco, reafirma a
dissolução do Eu de que estamos falando, prerrogativa para a entrada no espaço literário,
espaço este que se revela quando escapa à utilidade e sai da significação. A obra é o círculo
onde, enquanto escreve, a autora está exposta ao perigo que dela emana, à exigência da escrita.
Daí resulta o júbilo quando pode se libertar dessa exigência, não porque sabe antecipadamente
qual é o fim do caminho, mas porque pôde se submeter ao fascínio da obra.
Quando está escrevendo seu primeiro livro, Elena dá notícias do seu processo de
escrita e parece nos falar dessa passagem, não nomeando como desmarginação, afinal esta é a
palavra de Lila, mas pensando numa força obscura de dissolução que se esconde na vida de
sua protagonista, pronta a irromper no texto, uma entidade que parece ser o ponto para onde o
livro se dirige, aquele ponto que, por não poder atingir, é o único que vale a pena atingir.

Numa manhã comprei um caderno quadriculado e comecei a escrever em terceira


pessoa sobre o que me acontecera aquela noite na praia, em Barano. Depois, sempre
em terceira pessoa, escrevi sobre o que me acontecera em Ischia. Depois contei um
pouco sobre Nápoles e o bairro. Depois mudei nomes, lugares e situações. Depois
imaginei uma força obscura escondida na vida da protagonista, uma entidade que
tinha a capacidade de soldar o mundo à sua volta com as cores do maçarico: uma
calota azul-violácea onde tudo ia às maravilhas, espalhando centelhas, mas que logo
se dessoldava, cindindo-se em fragmentos cinzas e desprovidos de sentido. Demorei
vinte dias escrevendo aquela história, um lapso de tempo em que não vi ninguém,
saía apenas para andar e comer. No final, reli algumas páginas, não gostei e deixei
de lado. Entretanto me senti mais tranquila, como se a vergonha tivesse passado de
mim para o caderno. (HNS, p.433)
131

Elena ainda não sabe que aquele escrito se tornará um livro, o que ela faz é atender a
uma exigência que se coloca, como se o ruído da frantumaglia tivesse se estabelecido e a ela
não restasse outra saída além de contar aquela história. Blanchot (2011) nos diz que para
escrever é necessário um afastamento, como se a narrativa ficcional colocasse, no interior de
quem a escreve, uma distância, um intervalo (ele próprio fictício), sem o qual é impossível se
expressar. A distância deve se aprofundar quanto mais o escritor participa de sua narrativa,
quanto mais se põe em questão, nos dois sentidos ambíguos da palavra: é dele que trata a
questão ali narrada e é ele que está em questão – no limite, suprimido. Quando escreve seu
primeiro livro, é nesse espaço que Elena tateia: coloca-se em terceira pessoa, cria a distância
entre o que escreve e o bairro, e na transformação dos nomes para outros que ainda não
conhece sente surgir a força obscura na vida da protagonista, força que tem a capacidade de
soldar e dessoldar o mundo, que a impele a ultrapassar seus limites para alcançar limites que
só podem ser encontrados na página escrita.
Em Frantumaglia, que traz como o centro do texto a reflexão sobre a escrita, a
escritora-personagem encontra-se subjetivamente implicada nesse efeito de noção de perda,
de passagem, pois parece saber que é aquele o vórtice da sua obra, o lugar que deve ser
evitado, mas o único que realmente vale a pena atingir. Escrever a respeito da frantumaglia,
nos diz Ferrante (2017, p.114), causa uma sensação de confusão, é sentir que o passado deixa
de ser passado e o futuro deixa de ser futuro, não há mais ordem entre antes e depois. No
princípio

o Eu narra de modo pacato, realiza sínteses nítidas, faz com que os eventos deslizem
lentamente. Mas, quando a onda de um sentimento chega, a escrita se arqueia, fica
agitada, rodopia sem fôlego, absorvendo tudo, pondo rememorações, desejos, em
um redemoinho. (FERRANTE, 2017, p.114)

A narradora deve se acalmar aos poucos para que seu Eu retorne ao ritmo lento da
história. Mas é um retorno breve. Quando ela menos espera, o equilíbrio alcançado, que
ordenou os eventos, é apenas o momento do acúmulo de energia antes de um novo tufão. Esta
é uma imagem cara à sua escrita, diz Ferrante, pois permite pensar em um movimento que
seja também sonoridade da respiração, um vento dos pulmões que, ao produzir música, faz
com que “destroços de diferentes épocas rodopiem e, por fim, passem em um turbilhão”
(FERRANTE, 2017, p.115). Entrar nesse espaço é o que cria a possibilidade de narrar.
Para Blanchot (2013), a narrativa está ligada à metamorfose de Homero em Ulisses na
Odisseia, de Melville em Achab em Moby Dick. A ação presentificada é a da transformação,
aquilo que faz o romance avançar é o tempo dessa metamorfose, mais precisamente o desejo
132

de dar palavra ao tempo. A narrativa entra, para progredir, no tempo da ausência, a outra
navegação que é a passagem do canto real ao canto imaginário. Ou seja, o que torna a
narrativa presente é a passagem do Eu ao Ela, à ausência do tempo, ao desamparo, ao que
chamamos com Elena de desmarginação.
Depois de escrever sobre a criação literária, podemos dizer que a discussão sobre a
escrita na obra de Elena Ferrante é um lugar ainda-sempre em aberto, um texto que guarda
traços de um aguilhão que inquieta e nos colocou, a partir da sua leitura, a trabalhar. Trata-se
de uma ficção que discute o ato de escrever, “o mais impalpável, o menos redutível a uma
direção” (FERRANTE, 2017, p.308), e o que pretendemos na relação entre a série napolitana
e o que Blanchot escreve sobre a literatura foi iniciar uma conversa cujo fim não conseguimos
vislumbrar. Podemos dizer que se trata de uma conversa infinita. O que fizemos nesta
dissertação foi uma dobra que articulou a palavra estrangeira desmarginação à criação
literária, propondo que o trabalho de Elena Ferrante na tetralogia napolitana coloca em causa
o próprio ato de narrar.
Concluímos esta dobra tomando mais uma vez as palavras de Lila quando circunda a
desmarginação, pensando nela como um lugar onde se localiza o movimento da criação
literária. É sempre preciso fazer, refazer, cobrir, descobrir, reforçar e depois, de repente,
desfazer e arrebentar. Escrever é achar o fio de contorno e puxar, senti-lo rasgando… “o pano
que se tece de dia se desfaz à noite, o movimento tenta dar um contorno mas algo espreita,
está sempre na fresta, esperando que a página convide a se manifestar. A cabeça sempre acha
uma brecha para olhar além – acima, embaixo, ao lado –, ali onde está o assombro” (HMP,
p.170).
133

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