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I ENCONTRO DA REPÚBLICA TCHECA NO ESPÍRITO SANTO

MESAS-REDONDAS DE LITERATURA: 23 e 24/09/2010

UMA LEITURA DE “A METAMORFOSE” DE LUIS FERNANDO VERISSIMO


(por Wilberth Salgueiro / Ufes)

A metamorfose [1] [2] [1] O título do conto remete, de imediato, à célebre novela A metamorfose (Die Verwandlung)
[VERISSIMO, Luis Fernando. Ed Mort e outras histórias. de Franz Kafka [1883-1924], publicada em 1915. Escrita entre 17 de novembro e 7 dezembro
Porto Alegre: L&PM, 1979.] de 1912, teve a publicação recusada, em 1914, numa revista importante de então, que a
considerou longa demais para o veículo. No Brasil, aparece pela primeira vez em 1956. Em
Uma barata acordou um dia e viu que tinha 1985, a Brasiliense lança a primeira edição traduzida diretamente do alemão – por Modesto
se transformado num ser humano. [3] Começou a mexer Carone. E, em 1989, a Estação Liberdade lança nova edição, também do alemão, agora por
suas patas e descobriu que só tinha quatro, que eram Erlon Paschoal.
grandes e pesadas e de articulação difícil. Acionou suas [2] O tema da “metamorfose” é bastante antigo, remontando às origens da literatura, e
antenas e não tinha mais antenas. Quis emitir um continua bastante presente em textos contemporâneos. Há vários textos de Verissimo que
pequeno som de surpresa e, sem querer, deu um lançam mão desse recurso. Há, inclusive, dele, outro conto, intitulado “Metamorfose”, que está
grunhido. [4] As outras baratas fugiram aterrorizadas na antologia Os 100 melhores contos de humor da literatura universal (Flávio Moreira da Costa,
para trás do mó vel. Ela quis segui-las, mas não coube org. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 527-528), tendo sido publicado originalmente no jornal
atrás do mó vel. O seu primeiro pensamento humano foi: O Globo em 9 de setembro de 2001 (portanto, posterior ao conto “A metamorfose”, de 1979).
que vergonha, estou nua! O seu segundo pensamento Em “Metamorfose”, um certo Gregó rio Souza acorda metamorfoseado em Franz Kafka – e daí
humano foi, que horror! Preciso me livrar dessas baratas! surge o enredo e suas agruras.
[5] [3] O início de Kafka (sempre via tradução de Carone) sinaliza já todos os elementos
Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. estruturantes da narrativa (enredo, tempo, espaço, personagem e narrador): “Quando certa
Antigamente ela seguia o seu instinto. Agora precisava manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqü ilos, encontrou-se em sua cama
raciocinar. Fez uma espécie de manto da cortina da sala metamorfoseado num inseto monstruoso”. Ver reescrituras em Folha de São Paulo. A paró dia
para cobrir sua nudez. Saiu pela casa, caminhando junto à [par/ode: canto paralelo] é evidente: se, no original, o homem vira bicho, aqui o bicho vira
parede, porque os hábitos morrem devagar. [6] homem.
Encontrou um quarto, um armário, roupa de baixo, um [4] A habilidade da barata para se movimentar é destacada, em detrimento da lerdeza
vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para uma humana (na perspectiva do ortó ptero). O personagem de LFV vai aos poucos tomando
ex-barata. [7] Maquilou-se. Todas as baratas são iguais, “consciência” do novo corpo – agora humano. Em Kafka: “Gregor se assustou quando ouviu
mas uma mulher precisa realçar a sua personalidade. sua pró pria voz responder, era inconfundivelmente a voz antiga, mas nela se imiscuía, como
Adotou um nome: Vandirene. [8] Mais tarde descobriu se viesse de baixo, um pipilar irreprimível e doloroso, que só no primeiro momento mantinha
que só um nome não bastava. A que classe pertencia? literal a clareza das palavras, para destruí-las de tal forma quando acabavam de soar, que a
Tinha educação? Referências? Conseguiu, a muito custo, pessoa não sabia se havia escutado direito” (p. 11).
um emprego como faxineira. Sua experiência de barata [5] O “primeiro pensamento humano” vem ligado à ideia de pecado – “estou nua!” –, tal qual o
lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas, era uma boa mito adâmico. O “segundo pensamento humano” foi, por analogia, um fratricídio: agora
faxineira. [9] humana, a ex-barata deseja “se livrar” das companheiras, como Caim a Abel.
Difícil era ser gente. As baratas comem o [6] Em ambas as narrativas, há uma tensão permanente (trágica em Kafka, irô nica em
que encontram pela frente. Vandirene precisava comprar Verissimo) entre razão e instinto. Gregor aos poucos “reconhece” o novo modus vivendi:
sua comida e o dinheiro não chegava. [10] As baratas se “Havia ali legumes já passados, meio apodrecidos; ossos do jantar, rodeados por um molho
acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos branco já endurecido; algumas passas e amêndoas; um queijo que, dois dias antes, Gregor
não. Se conhecem, namoram, brigam, fazem as pazes, tinha declarado intragável; um pão seco, um pão com manteiga, e um pão com manteiga e sal.
resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar? (...) com lágrimas de satisfação nos olhos, ele devorou o queijo, os legumes e o molho: as
Conseguir casa, mó veis, eletrodomésticos, roupa de cama, comidas frescas, ao contrário, não o agradavam” (p. 38-39); “assim, para se distrair, ele adotou
mesa e banho. A primeira noite. Vandirene e seu torneiro o hábito de ziguezaguear pelas paredes e pelo teto” (p. 48).
mecânico. Difícil. Você não sabe nada, bem? Como dizer [7] Em pauta, a vaidade humana, em particular a feminina. A pausa da pontuação torna
que a virgindade é desconhecida entre as baratas? As cô mico o complemento.
preliminares, o nervosismo. Foi bom? Eu sei que não foi. [8] Etimologicamente, “Vanda” significa “andarilha”; “Irene”, “pacífica”. Mais significativo,
Você não me ama. Se eu fosse alguém você me amaria. porém, talvez seja um certo tom meio kitsch do nome composto. Ademais, registre-se,
[11] Vocês falam demais, disse Vandirene. Queria dizer, “Vandirene” aparece em outro conto de LFV, intitulado “Adolescência”, também como
vocês, os humanos, mas o marido não entendeu; pensou empregada.
que era vocês, os homens. Vandirene apanhou. O marido [9] Para “ser alguém” no sistema produtivo, o sujeito entra em competição feroz com os
a ameaçou de morte. Vandirene não entendeu. O conceito semelhantes. A profissão de “faxineira” de Verissimo funciona como alusão direta à
de morte não existe entre as baratas. Vandirene não personagem “faxineira” da novela de Kafka, que é a que “despacha” o cadáver de Gregor.
acreditou. Como é que alguém podia viver sabendo que ia [10] A presença onívora do dinheiro como imperativo das relaçõ es humanas se mostra em
morrer? [12] ambos os textos. Gregor Samsa era caixeiro-viajante e, com seu trabalho, sustentava a família.
Vandirene teve filhos. Lutou muito. Filas do [11] A relação entre os gêneros (homem, mulher; marido, esposa) também se faz ver:
INPS. Creches. Pouco leite. O marido desempregado. [13] inconstâncias, dú vidas, escolhas, falsidades regem nosso cotidiano.
Finalmente, acertou na esportiva. Quase quatro milhõ es. [12] Registra-se a violência histó rica do homem contra a mulher. O absurdo se amplifica dada
Entre as baratas, ter ou não ter quatro milhõ es não faria a risível causa da violência (a incompreensão do marido quanto à diferença entre “homens” e
diferença. A barata continuaria a ter o mesmo aspecto e a “humanos”).
andar com o mesmo grupo. Mas Vandirene mudou. [13] A realidade histó rica entra forte na estó ria, com a precisão do contexto social, em
Empregou o dinheiro. Trocou de bairro. Comprou casa. especial com a referência a INPS, indicando o lugar da ação: Brasil. (Nota: à época, o povão
Passou a vestir bem, a comer e dar de comer de tudo, a assim se referia a esta sigla: Infelizmente Não Podemos Socorrer.) O signo “INPS” é
cuidar onde colocava o pronome. Subiu de classe. (Entre sobredeterminado (Freud), pleno de informaçõ es, no caso, depreciativas, confirmadas pelo
as baratas, não existe o conceito de classe.) Contratou outro signo – “Filas”.
babás e entrou na PUC. [14] Começou a ler tudo o que [14] Com o dinheiro, vindo como um deus ex machina, Vandirene “sobe de classe”, quer de
podia. Sua maior preocupação era a morte. Ela ia morrer. ordem econô mica quanto cultural. O “falar bem”, isto é, saber usar o pronome, aparece como
Os filhos iam morrer. O marido ia morrer ― não que ele um dos sinais (irô nico, decerto) da mudança de classe, além da fartura (“comer de tudo”),
fizesse falta. O mundo inteiro, um dia, ia desaparecer. O contratação de empregadas e a referência à PUC, instituição privada a que se liga a imagem de
sol. O Universo. Tudo. Se espaço é o que existe entre a uma educação elitizada – sobretudo em 1979.
matéria, o que é que fica quando não há mais matéria? [15] Com a leitura, Vandirene passa a ter dú vidas metafísicas, acerca da existência, da
Como se chama a ausência do vazio? E o que será de mim transitoriedade da vida, do universo, do nada etc. De modo crítico e mordaz, constata e
quando não houver mais nem o nada? A angú stia é lamenta a morte dela mesma e dos filhos, mas não lamenta a do violento e inculto marido.
desconhecida entre as baratas. [15] [16] De volta à condição de barata, Vandirene é vítima do pró prio “feitiço”, e vai morrer por
Vandirene acordou um dia e viu que tinha causa da dedetização. Mas o “ú ltimo pensamento humano” vai para o “safado do marido” que
se transformado de novo numa barata. Seu penú ltimo iria se locupletar com a herança. Morre em cinco minutos “felizes”, possivelmente por ter
pensamento humano foi, meu Deus, a casa foi dedetizada abandonado a condição humana. Fora do “círculo antropoló gico”, os valores são outros –
há dois dias! Seu ú ltimo pensamento humano foi para o inacessíveis a nó s, humanos. Daí, nem “Kafka” nem “dinheiro” nem “angú stia” nem “morte”
seu dinheiro rendendo na financeira e o que o safado do nem “pensamento” nem “vaidade” nem “classe social”, nada disso existe para a barata.
marido, seu herdeiro legal, faria com tudo. Depois desceu Vale registrar a morte de Gregor: “Logo descobriu que não podia absolutamente mais se
pelo pé da cama e correu para trás de um mó vel. Não mexer. (...) Na realidade tinha dores no corpo todo, mas para ele era como se elas fossem ficar
pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu em cada vez mais fracas e e finalmente desaparecer por completo. A maçã apodrecida nas suas
cinco minutos, mas foram os cinco minutos mais felizes costas e a região inflamada em volta, inteiramente cobertas por uma poeira macia, quase não
da sua vida. Kafka não significa nada para as baratas. [16] o incomodavam. (...) Permaneceu nesse estado de meditação vazia e pacífica até que o reló gio
da torre bateu a terceira hora da manhã. Ele ainda vivenciou o início do clarear geral do dia lá
do lado de fora da janela. Depois, sem intervenção da sua vontade, a cabeça afundou
completamente e das ventas fluiu fraco o ú ltimo fô lego” (p. 80-81).
QUADRO COMPARATIVO

A metamorfose (Kafka) “A metamorfose” (Verissimo)


Narrador: 3ª pessoa. Discurso indireto livre.
Espaço: quarto fechado. Casa do pai. No final, “ar livre no subú rbio Espaço: quarto, casa, mundo, casa.
da cidade”.
Personagens: Gregor, família (pai, mãe, irmã: Grete), gerente, Personagens: Vandirene (de faxineira a rica). E marido, filhos, Kafka. E as baratas.
hó spedes, empregada, faxineira.
Enredo: em 3 partes, conta a estó ria do caixeiro-viajante Gregor Enredo: em 5 parágrafos, conta a estó ria de uma barata que, tornada gente, dá-se
Samsa que, virado inseto, é desprezado pela família (que até então o nome de Vandirene, se casa, tem filhos, batalha, ganha na loteria, enriquece,
sustentava) e, doente, morre, sendo varrido pela faxineira. estuda, se angustia, volta a barata e morre, feliz.
Tempo: toda a estó ria se passa em alguns meses. O ritmo é lento e Tempo: a estó ria se passa em alguns anos. O ritmo é rápido e dinâmico; as açõ es,
monó tono; as açõ es, repetitivas. variadas.
Dica: atentar para (a) as metamorfoses dos outros personagens e Dica: atentar para a critica, via humor, a instituiçõ es (casamento, escola),
(b) para a inversão de comportamentos: Gregor, melancó lico e comportamentos (violência, hipocrisia), conceitos (classe social, morte), saberes
sensível à mú sica; os demais, agressivos e mal-educados. (filosofia, literatura) etc.

SOBRE KAFKA E/OU A METAMORFOSE

ADORNO, Theodor. Anotaçõ es sobre Kafka [1942-1953]. Prismas – crítica cultural e sociedade. Tradução: Augustin Wernet e Jorge
Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Á tica, 2001, p. 252.
“Kafka procura com a lupa os vestígios de sujeira deixados pelos dedos do poder na edição suntuosa do livro da vida. Pois nenhum
mundo poderia ser mais homogêneo do que o mundo sufocante que ele comprime em totalidade por meio da angú stia do pequeno-burguês. O
sistema é ló gico do início ao fim e, como qualquer sistema, desprovido de sentido.”

SCHWARZ, Roberto. Uma barata é uma barata é uma barata [1961]. A sereia e o desconfiado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1981. [1965]
p. 60: “Um belo dia Gregor Samsa, heró i da novela, acorda transformado em barata (traduzimos assim para conservar a violência do
alemão Ungeziefer, inseto daninho)”.
p. 63: “Em A metamorfose a morte de Gregor restabelece a vida: sua família sai da casa sombria para o dia ensolarado, o futuro
torna-se de sú bito promissor, e os pais percebem, com gosto, a filha distendendo o corpo jovem que breve merecerá marido”.

LAGES, Susana Kampff. Desdobramentos do duplo em Kafka. Disponível em:


http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga18/matraga18a05.pdf. Acesso em 25 de setembro de 2010.
“[Kafka é o autor] de uma literatura, na qual as fronteiras entre real e ficcional se diluem, e toda busca de uma estabilidade
semântica apaziguadora está fadada ao fracasso, um fracasso sem dú vida extremamente produtivo, que é um traço de modernidade, característico
da escrita kafkiana”.

BORGES, Jorge Luis. Kafka e seus precursores. In: Obras completas. V.2, 1952 -1972. São Paulo: Globo, 2005, p. 96-98.
“Todo escritor cria seus precursores. Sua obra modifica nossa concepção de passado, como haverá de modificar o futuro”.

Ainda:

LIMA, Luiz Costa. Limites da voz: Kafka. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka, A propósito do décimo aniversário de sua morte, in Obra Escolhida, vol.1: Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 137-164.

CONCLUINDO:

Da paródia de LFV, em relação ao texto clássico de Kafka, se destacam:

(1) o “esvaziamento” das questões filosóficas, que impregnam o texto de Kafka,

(2) o evidente recurso humorístico, a partir da imprevisibilidade de certas frases, em contraste com o tom

hegemonicamente melancólico e niilista de A metamorfose,

(3) a afirmação do absurdo (kafkiano) de existir, particularmente num contexto de profundas desigualdades sociais, de

que o Brasil continua sendo um triste exemplo, com INPS para os pobres e PUC para alguns favorecidos,

(4) a desauratização da morte em ambas as narrativas: numa, a barata morre dedetizada atrás de um móvel; na outra, o

“inseto monstruoso” falece, agônico, após a infecção pela maçã apodrecida no corpo, e é varrido para fora de casa (da família, do afeto,

do sistema produtivo).

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