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“MANCHA”, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Na escada a mancha vermelha


que gerações sequentes em vão
tentam tirar.

Mancha em casamento com a madeira,


subiu da raiz ou foi o vento
que a imprimiu no tronco, selo do ar.

E virou mancha de sangue


de escravo torturado — por que antigo
dono da terra? Como apurar?

Lava que lava, raspa que raspa e raspa,


nunca há de sumir
este sangue embutido no degrau.

Este poema de Drummond parece andar esquecido pela fortuna crítica do poeta. Ele é
o sexto poema da série “Fazenda dos 12 vinténs, ou do Pontal, e terras em redor”, do livro
Boitempo, publicado em 19681. Na primeira leitura já se entende o teor dos versos: trata-se da
lembrança de um trauma histórico nacional, a escravidão. De que forma a memória, matéria-
prima de Boitempo, se relaciona com o trauma? Márcio Seligmann-Silva aponta: “o trauma é
caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa. O trauma mostra-se,
portanto, como o fato psicanalítico prototípico no que concerne à sua estrutura temporal” 2.
Sendo um passado que não passa, o trauma é, no entanto, atualizado a cada vez que, pela
memória, vem à tona. Os traços nebulosos e lacunares do trauma ganham guarida no
movimento da rememoração, também pleno de rasuras e incompletudes. O trauma
rememorado se faz via linguagem, que tenta entender aquilo que, repetidamente, repele.
No poema, a mancha e o sangue são metáforas do trauma. Por isso mesmo, aparecem
reiteradamente: antecipando sua relevância para o leitor, a “mancha” já se mostra no título,
signo fundamental de qualquer obra; no primeiro verso, ganha a cor vermelha, que “gerações”
tentarão, em vão, apagar; na segunda estrofe, a mancha está incorporada ao objeto (“em
casamento com a madeira”), indicando sua força de permanência; na terceira estrofe, a
suspeita se confirma: a mancha é de sangue e pertenceu a um “escravo torturado”,
despossuído da terra; por fim, o poema afirma que o “sangue embutido” ficará, qual um
trauma, para sempre: “nunca há de sumir”. A repetição de mancha e sangue se desdobra em
“raspa que raspa e raspa”, expressão que, isomórfica, encena o que diz, pois a ação de raspar o
sangue se multiplica na reiteração tripla do verbo e ganha reforço no som rascante do
fonema /r/, que, oral e vibrante, faz com que se simule um arranhão que se perpetua – pela
memória do poeta, pela história do país. Adriana Albano interpreta de forma similar este
recurso: “A repetição dos vocábulos na última estrofe nos remete à impossibilidade de
esquecer o passado do qual faz parte. O questionamento do eu poético assinala a necessidade
de ‘apuração’, a preocupação em marcar que existem culpados que precisam ser punidos por
seus crimes”3.
Em contexto diverso, vale lembrar, a metáfora da “mancha de sangue” serviu a outro
escritor em sua fabulação. No conto “A mancha”, de Luis Fernando Verissimo 4, o protagonista
Rogério vive de comprar e revender prédios em ruína. Certo dia, ele pensa reconhecer o local
em que, décadas antes, fora torturado. A pista, que desrecalca episódios duramente abafados
em seu inconsciente, é exatamente a mancha de sangue que outrora, numa sessão de tortura,
escorrera dele. Na sua busca por desvendar o passado traumático, é que o presente –
cúmplice do autoritarismo político de então – vai se revelando. Rogério descobre que ninguém
está interessado em revolver o passado. Como dirá uma antiga moradora, vizinha do prédio
que, supostamente, servira de base policial: “Quem é que se lembra dos anos 70? Eu não
lembro mais nada” (p. 23). A memória, ou melhor, a ausência deliberada de memória é o
sintoma mais visível da cumplicidade de certa parcela da população que, tacitamente, se calou,
consentindo, diante das atrocidades da ditadura iniciada com o golpe militar de 1964. As
“manchas” dos títulos apontam, assim, para a alegoria de um Brasil que, de um lado, tenta
esconder – lavando, raspando – a sujeira que se espalhou por todo o canto, e, de outro, tenta
entender o porquê de tanta sujeira, e talvez limpá-la (“apurar”), como quem exorciza um
fantasma. A mancha, na escravidão do poema de Drummond ou na tortura do conto de
Verissimo, é o trauma. Trauma, se recorde, vem do grego “τραύμα” e significa “ferida”,
herança que toda barbárie humana imprime e embute, para usar expressões do poema, nas
coisas e nas pessoas. Como escreveu Borges, não se pode abolir o passado 5.
Mas voltemos a Boitempo. E voltemos ao poema “Negra”, da série “Pretérito-mais-
que-perfeito”: “A negra para tudo / a negra para todos / a negra para capinar plantar / regar /
colher carregar empilhar no paiol / ensacar / lavar passar remendar costurar cozinhar / rachar
lenha / limpar a bunda dos nhozinhos / trepar. /// A negra para tudo / nada que não seja tudo
tudo tudo / até o minuto de / (único trabalho para seu proveito exclusivo) / morrer”. Como se
sabe, Boitempo dá robustez à poesia memorialística de Drummond, que, desde Alguma poesia,
elegeu a memória, a infância e a família como matéria de sua escrita. Como já indicaram
alguns estudiosos de Boitempo, há aqui um híbrido de história social e de reminiscências
individuais, que se misturam inextricavelmente. A trajetória de Drummond – crescido em
ambiente rural, escravocrata e patriarcal, e indo para a cidade se tornar funcionário do Estado
e “fazendeiro do ar” – diz muito de um processo de opressão que senhores brancos poderosos
exerceram sobre uma multidão de negros escravos: “torturados” e mortos em “Mancha”,
estupradas e coisificadas em “Negra”. O poeta adulto filtra, e agora fala, as lembranças do
infante, “as lembranças bobocas de menino”, como registra em “Intimação”, um dos quatro
poemas que abrem o livro. Com perspicácia, dirá Alcides Vilaça que “o menino fala pelo poeta,
o poeta fala pelo menino (...) a maturidade se esclarece com a infância, a infância se reilumina
na maturidade” (p. 116)6. Fala, esclarece, reilumina, mas isso não resolve ou repara o mal, não
raspa o sangue ancestral.
Boitempo é um neologismo que reúne a ideia de ruminação à de memória. O poeta
pensa o passado, que testemunha em versos. Theodor Adorno, no final de sua Teoria estética,
diz que “valia mais desejar que um dia melhor a arte desapareça do que ela esquecer o
sofrimento, que é a sua expressão e na qual a forma tem a sua substância” 7. É exatamente isto
que realiza o poema “Mancha”: não deixa esquecer a dor que fere a memória do menino e do
poeta, que conspurca a história do país e dos opressores, dor e memória que se estendem ao
leitor, mas, sobretudo, o poema apura e não deixa esquecer a dor, o sofrimento, a tortura, a
morte de milhões de seres humanos que durante séculos foram barbaramente tratados como
coisas, barbaramente destratados como escravos.
1
ANDRADE, Carlos Drummond de. Mancha. Boitempo. Carlos Drummond de Andrade – poesia completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2006, p. 906.
2
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe
e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p. 79 [p. 73-98].
3
ALBANO, Adriana. “O pilão de pilar lembranças”: a retórica confessional na poética memorialista de Carlos Drummond de
Andrade. Tese. Unesp – São José do Rio Preto, 2010, p. 127.
4
VERISSIMO, Luis Fernando. A mancha. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. (Coleção Vozes do golpe)
5
BORGES, Jorge Luis. Nathaniel Hawtorne. Outras inquisições – Obras completas, vol II. São Paulo: Globo, 2000. A frase de
Borges é: “o propósito de abolir o passado já ocorreu no passado e – paradoxalmente – é uma das provas de que o
passado não pode ser abolido. O passado é indestrutível; cedo ou tarde, todas as coisas voltam, e uma das coisas que
voltam é o projeto de abolir o passado” (p. 50).
6
VILLAÇA, Alcides. Poética da memória. Passos de Drummond. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 107-123.
7
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 392.

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