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Felipe Fortuna
A fome é mansa e casta. Quem não come não ama, nem odeia.
Nelson Rodrigues
No momento em que escrevo este prefácio para uma nova edição de Quarto de
Despejo (1960), o Banco Mundial divulgou dados nos quais se verifica que a
pobreza na América Latina não se alterou nos últimos 20 anos. Milhões de
indigentes povoam a região na qual o crescimento econômico não reduz os altos
níveis de desigualdade, em decorrência sobretudo de um gravíssimo problema
de distribuição de renda. No Rio de Janeiro, a favela da Rocinha foi ocupada, há
alguns dias, por cerca de 1,300 policiais, cuja missão era prender traficantes de
drogas instalados ali. Uma autoridade do Governo do Estado propôs a
construção de um muro para supostamente delimitar e conter o terreno e os
600 mil habitantes da maior favela da América Latina. Na cidade de São Paulo,
onde viveu e escreveu Carolina Maria de Jesus (1914-1977), um censo realizado
há 10 anos indicava que quase 20% dos seus moradores, cerca de 1 milhão e 900
mil habitantes, viviam em favelas. O filme Cidade de Deus, de Fernando
Meirelles, vem fascinando platéias ao narrar a história da formação de uma
favela no Rio de Janeiro e sua evolução ao longo das últimas décadas, marcada
por permanente violência. Por fim, em 2003, o Governo federal anunciou o
lançamento do “Programa Fome Zero”, que, conforme se lê, tem por objetivo
“promover segurança alimentar e nutricional a todos os brasileiros, atacando as
causas estruturais da pobreza.”
Muitos não entenderam por que Carolina Maria de Jesus foi tão agredida por
aqueles que dividiam com ela o território da favela. Uma das possíveis
explicações é que o ato de escrever conferia a ela um status singular e mesmo
incompreensível: os favelados, analfabetos, não poderiam ser seus leitores. Mas
sabiam, pela recepção e pela fama súbita que ganhou a escritora, que o livro
denunciava e expunha não apenas a indiferença do sistema político e o sórdido
oportunismo, mas também a vida dos moradores, considerada quase sempre
degradante. Em síntese, Carolina Maria de Jesus saía da indigência ao escrever,
o que tinha muitas conseqüências. Ela era, para todos, uma catadora de papéis.
Catava papéis durante o dia, mas, à noite, quando podia, defrontava-se com os
papéis de seu caderno. Dia e noite, papéis do chão e papéis pautados eram o
material de sua construção. Sua vida se dividiu entre a coleta de papéis e o
registro da memória. De dia, catar papéis significava dinheiro; de noite, escrever
sobre papéis era uma nova forma de sobrevivência.
O diário, por definição, não é uma criação controlada, nem é uma obra ficcional:
é, quase sempre, um texto que se sujeita às datas, e se desenvolve
cronologicamente, sem necessidade de clímax. No entanto, o diário de Carolina
Maria de Jesus sempre registra a sua vida na favela como uma experiência de
superação em que faz muita diferença a sucessão do dia e da noite. Em seguida,
ela registra não saber como será o dia seguinte, se haverá papel para catar e,
portanto, comida. Desse modo, a favela em que vive costuma deixá-la em
situação, como quem experimenta, durante anos, o trabalho num hospital,
numa penitenciária ou num manicômio. E a vida de Carolina Maria de Jesus é,
para ela e para os seus leitores, uma surpresa tão grande quanto o seu texto.
Miséria é uma palavra vaga. Aquele em quem se aplica a palavra pode ostentar
um estado geral de penúria, mas igualmente uma condição vergonhosa, muitas
vezes associada a imperfeições morais. Carolina Maria de Jesus convive com a
miséria, mas transmite sua atitude pragmática ao descrever a condição social de
uma favelada que trabalha para trazer dinheiro para casa. Ela não se sente
identificada com a extensão da miséria na favela, mas sim com a ambigüidade
que a situação de favelada e escritora lhe impõe. Por isso, seus textos também
denunciam os favelados, muitas vezes acusando-os severamente; noutros casos,
as questões raciais dão origem a comentários contraditórios. A descrição da
favela denota um intenso pessimismo: a escritora a compara freqüentemente a
um inferno sem solução. Seu projeto é o de fugir, tão logo possível, daquela
estrutura maldita. Algumas citações demonstram a eloqüência do seu
sentimento: “Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar
daqui”; “O único perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a
pinga”; “Aqui nesta favela a gente vê coisa de arrepiar os cabelos. A favela é uma
cidade esquisita e o prefeito daqui é o Diabo.”
Carolina Maria de Jesus é também conhecida pelos favelados como uma pessoa
de opinião segura, provavelmente por ser letrada. Durante todo o livro, ela
qualifica o comportamento e a moral dos favelados. A configuração da estrutura
social, segundo ela, é basicamente maniqueísta. Tem-se a impressão, em seu
diário, de que o surgimento das favelas é um fenômeno mais ou menos
espontâneo, sem relação com outras estruturas políticas e sociais. Superior por
saber ler e escrever, Carolina Maria de Jesus tornou-se personagem ambígua.
Seu relacionamento com os políticos parece, nesse sentido, bastante
esclarecedor. A escritora representava uma via de comunicação possível para
ambos os lados: os favelados, inúmeras vezes, lhe pediam que reclamasse contra
a falta d’água, o corte de luz, as brigas de ruas. Em diversas ocasiões,
espontaneamente, Carolina tomava a iniciativa de telefonar para a delegacia ou
para as redações dos jornais, pedindo ajuda. Seu diário não esconde o fato de
que muitas decisões na favela ou mesmo a provisória manutenção da ordem
pública dependia da sua pessoa, que por vezes lia artigos dos jornais em voz alta
ou orientava seus vizinhos nos trâmites burocráticos.