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Caroligrafias – Cidade e moradia nas obras de Carolina Maria de Jesus

Jaqueline de Abreu Pereira1

1 INTRODUÇÃO

Abordar cidade e moradia a partir da perspectiva de Carolina Maria de Jesus é de


grande importância, pois Carolina enquanto mulher, negra, escritora, mãe solteira e moradora
de um espaço periférico, viveu na própria pele as contradições sociais e políticas do Brasil. É
também um grande desafio porque sua identidade e obras ficaram soterradas por esse “lugar
único”² de favelada mesmo após a mudança do Canindé e da publicação de outros livros.
A vida de Carolina é assim atravessada por esses períodos e por essa cidade que vai se
estruturando a partir das bases da Modernidade e do capitalismo, nesse sentido a urbanização
que vai sendo construída no Brasil não levava em conta todos os grupos sociais gerando um
grande nível de desigualdade, sobretudo de moradia. Essa visão colonialista impactou e ainda
incide sobre territórios e corpos, mas essas questões não passam despercebidas por Carolina.
Inaugurando uma literatura de denúncia fora dos cânones literários dos anos 60, ela expõe o
momento político, o descaso com a favela, a divisão social e espacial na cidade.
Desta forma, essa análise parte de um olhar descolonial, com a proposta de fazer ecoar
a voz de Carolina Maria de Jesus a respeito da cidade e da moradia, não se prendendo apenas
a obra Quarto de despejo, mas acompanhando suas percepções em outras obras e
estabelecendo uma conexão com a atualidade.

2 CAROLINA: VIDA, OBRAS E QUESTÕES SÓCIO-ESPACIAIS

“Desde os meus 8 anos que estou procurando localizar a tranquilidade e a


esperança”
Carolina Maria de Jesus.

1
Mestranda em Sociologia do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade
Católica do Rio grande do Sul – PUCRS. Graduada em Ciências Sociais. PUCRS. Especializada em
Epistemologias del Sur pelo Conselho Latino Americano de Ciências Sociais – CLACSO.
A vida de Carolina é marcada pela mudança de cidade, de moradia, pelo racismo,
pelas dificuldades econômicas, pela segregação, mas também pela escrita que permite com
que ela consiga transitar por espaços sejam eles físicos ou sociais.
Carolina nasceu no ano de 1914 em Minas Gerais numa zona rural onde permaneceu
até meados de 1937 quando vai para cidade de São Paulo. Na “cidade grande” sua primeira
moradia foi num aglomerado de casas, que mais tarde sofreria despejo. Ela, a filha e os dois
filhos foram sendo empurrados para as margens do Tietê. Na favela do Canindé ela sobrevivia
e sustentava a família catando papel. Apesar das agruras, desde que foi alfabetiza, desenvolve
grande gosto pela escrita e leitura; escrevendo poemas, provérbios, composições musicais,
peças de teatro e seus diários. Fome, violência, suicídio, segregação, cansaço da longa jornada
de trabalho para conseguir se alimentar aparecem com força na obra Quarto de Despejo.
Diário de uma favelada, mas também aparecem espaços de fuga, de sonho e de imaginação,
elementos importantes que ficaram soterrados pela condição de favelada, mesmo depois da
fama2.
Esse livro lançado em 1960, fala muito sobre a questão sócio espacial, em sentido
físico; a necessidade de moradia e o ambiente desassistido pelo Estado e também o espaço
social e cultural enquanto sujeito de fala naquela sociedade. Em muitos momentos o “Quarto
de despejo” aparece como um “não lugar”, no sentido de não aparecer ou não se encaixar na
estrutura de Brasil daquela década que tentava espelhar o progresso e o desenvolvimento.
Carolina na obra e na sociedade está situada em vários desses “não lugares” enquanto mulher,
negra e moradora de um espaço periférico. O conceito de não lugar, usado aqui não se refere
a um lugar que não existe ou é passageiro e transitório, pelo contrário, é um lugar que existe e
(re)existe, mas é invisibilizado e silenciado. Na obra de Jesus ele se sobressai e grita. É
possível notar também que o Quarto de despejo em muitas passagens do livro ganha quase
uma conotação de sujeito à medida que age, molda, transforma, desencaminha e desestrutura
as pessoas que ali vão morar.

As vezes mudam algumas famílias para a favela, com crianças. No início são
iducadas, amáveis. Dias depois usam o calão, são soezes e repugnantes. São
diamentes que transformam em chumbo. Transformam-se em objetos que estavam
na sala de visita e foram para o quarto de despejo. (JESUS, 2019, p.38)

2
Em referência ao Perigo de uma história única de Chimamanda Ngozi.
A relação que ela tem com o entorno e com essa realidade tem tanta força nessa obra
que ela é na maioria das vezes exotizada e seu lado escritora, e seu fazer literário é quase
soterrado por esse espaço precarizado.
Para além desse livro, a preocupação da autora com a cidade e a moradia está presente
em outras obras como Casa de alvenaria, 1961, que ela faz questão de acrescentar ao título
“Diário de uma Ex-favelada”, pontuando a mudança de moradia e de condição. Diário de
Bitita, 1986, onde ela vai abordar uma parte da sua infância em Minas Gerais e o sonho de ir
para São Paulo. Onde estaes felicidade? Publicado postumamente em 2004, além de jogar
com as palavras do título já que felicidade aparece como uma pessoa nesse conto, a expressão
“onde estais” denota a busca de um lugar. Em Pedaços da fome, 1963, que é um conto sobre
uma jovem que sai do interior e vai para capital, o elemento espacial no que diz respeito à
cidade é trazido na idéia de pedaço como um fragmento, parte de um todo, mas que é
segregado, separado.
Carolina é tocada pelo seu entorno e reage a partir da sua escrita. É possível perceber
então que suas obras remetem a questão sócio-espacial e a relação entre sujeito, espaço e
realidade. O que faz sua obra ser tão real quanto visceral.

3 A PROBLEMÁTICA URBANA E HABITACIONAL NO BRASIL

Tentando achar o fio da meada ou os “caminhos” que nos conduzem até nossos
problemas habitacionais na atualidade, é importante frisar que o Brasil enquanto um país
Latino Americano tem suas próprias contradições e especificidades atravessadas pela invasão,
saqueio e colonização. O território passa então a ser usado com a finalidade, sobretudo
econômica. (FURTADO, 2007). Essa invasão e intromissão chega também nos corpos dos
nativos e escravizados. Corpo e território viram propriedades sob a lógica colonial. Então o
povo brasileiro já carrega essa marca de ser o “outro” o selvagem, não civilizado, periférico e
marginal. Esse colonialismo e colonialidade vão permanecer mesmo depois do fim da
colonização, se expressando sob outras formas de dominação; imperialismo e globalização,
periferização e segregação. (QUIJANO, 2005; SANTOS, 2004; MIGNOLO, 2017).
A República inaugura um novo momento na história do Brasil e a busca pela
Modernidade e Industrialização se acentuam. O “Mito da democracia racial” que foi ensejado
por Gilberto Freyre (2006) em Casa grande e senzala, publicado em 1933, é bastante
absorvido no governo de Getúlio Vargas, impulsionando a imagem de um Brasil Nação,
coeso, igualitário e com direitos para toda a população. Na prática não havia uma política para
atender o déficit habitacional que se aprofundava nas cidades. As reformas sanitárias e
urbanas que ocorrem na Europa vão influenciar muito a construção do espaço urbano
brasileiro, a Belle Époque que promove todo um processo de higienização social e territorial.
Essa “limpeza”, todavia, vinha influenciada por teorias eugenistas e sanitárias. Desta forma
ocorriam remoções da população mais pobre para partes periféricas. (DUDEQUE, 1995). A
falta de política para condições dignas de moradia e a política de limpeza da cidade nesse
período pode ser entendida a partir do conceito de Achile Mbembe (2016) como uma
Necropolítica no sentido de ser uma política de extermínio da população de baixa renda,
sendo o aumento da favelização e segregação urbana os resultados desse processo. O lema da
década de 50 era o Desenvolvimentismo, expresso no slogam de Jucelino Kubicheck
“Cinqüenta anos em cinco” São Paulo passa a ser um centro em potencial para esse
desenvolvimento e seu tecido urbano se amplia, no entanto, a moradia segue sem receber
atenção do Estado. Carolina vive a outra face desse desenvolvimento.

Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime
ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas
com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os
visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul
está enferma. Com as suas úlceras. As favelas. (JESUS, 2019, p. 85)

SÁ; SILVA (2017) destacam a partir da leitura de Regina Dalcastagné (2003), em


Sombras da cidade: o espaço na narrativa brasileira contemporânea, que

a narrativa de Carolina Maria de Jesus reivindica o espaço da segregação, uma vez


que suas personagens ocupam o espaço daqueles que estão impedidos de moverem-
se. Nesse impasse, o espaço configurar-se-ia como um local em que os indivíduos
ocupam o lado de fora do todo social, estando destituídos do direito de
movimentarem-se pela polis, logo “[...] as cidades, muito mais que espaços de
aglutinação, são territórios de segregação. (apud SÁ; SILVA, p.98.)

Carolina viveu então em meio a essas contradições, enquanto a intelectualidade da


época vendia a imagem de um Brasil democrático, moderno e desenvolvido a publicação de
Jesus retratava o contraste: Uma população pobre que vivia a exclusão, a falta de políticas
públicas e a fome.
4 CAROLIGRAFIAS - DESENHOS URBANOS
A vida é assim, “confusa igual um quebra-cabeça”
Carolina Maria de Jesus.

Carolina através de sua Escrevivência (EVARISTO, 2008) une memória, narrativas e


deslocamentos nos possibilitando olhares múltiplos. A famosa frase de Lélia Gonzáles (2018)
Agora o lixo vai falar e numa boa, em Racismo e sexismo na cultura brasileira demonstra a
importância desse olhar que rompe com as narrativas literárias sexistas, produzidas em grande
parte por homens nos anos 50 e 60, e pode ser também estendido para as análises da cidade.
De todo modo a experiência de Carolina se dá numa estrutura totalmente hierárquica. De
acordo com Bourdieu (1997);

Não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que
não exprima as hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos)
deformada e, sobretudo, dissimulada pelo efeito de naturalização que a inscrição
durável das realidades sociais no mundo natural acarreta: diferenças produzidas pela
lógica histórica podem, assim, parecer surgidas da natureza das coisas (basta pensar
na idéia de "fronteira natural"). (BOURDIEU, 1997, p.160)

Nesse sentido cabe destacar a discussão de Spivak (2014) em “Pode o subalterno


falar?”, segundo a autora; se você é pobre, negra e mulher, está envolvida de três maneiras.
(SPIVAK, 2014, p. 110). Outro conceito importante que vem ao encontro para essa
abordagem é o “Lugar de fala” de Djamila Ribeiro (2017) referindo justamente as
experiências nessas posições hierarquizadas, que tem suas vozes silenciadas. Nesse sentido a
autora coloca como “o outro do outro” a posição em que é situada a mulher negra.
Desta forma, para entendermos um pouco mais a perspectiva de Carolina é importante
acompanhar sua cartografia – Caroligrafias – seu percurso e como ela desenha em sua escrita
os espaços por onde passa e a realidade social e política em suas obras.
A mobilidade de Carolina de Minas Gerais para São Paulo demonstra os anseios,
sonhos e olhares da jovem interiorana criada numa comunidade rural, dando indícios de suas
concepções a respeito da cidade;

Até que enfim, eu iria conhecer a ínclita cidade de São Paulo! Eu trabalhava
cantando, porque todas as pessoas que vão residir na capital do estado de São
Paulo rejubilam como se fossem para o céu. [...] Quando cheguei à capital,gostei
da cidade porque São Paulo é o eixo do Brasil. É a espinha dorsal do nosso país.
Quantos políticos! Que cidade progressista. São Paulo deve ser o figurino para que
este país se transforme num bom Brasil para os brasileiros.” (JESUS, 1986, p. 202-
203).

Nesse trecho de Diário de Bitita é visível as expressões acentuadas pela autora em


referência à São Paulo, chamando a atenção para o potencial econômico e de progresso para a
cidade, mas para ela, São Paulo não simbolizava apenas um espaço físico. Como é possível
perceber nesse outro fragmento;

“O vovô nos contava que os pretos que moravam nas grandes cidades já sabiam ler
e tinham até dinheiro nos bancos. Ele não sabia ler, mas procurava saber se os
negros já estavam subindo na esfera social. “Oh!”, exclamávamos
admirados.”(JESUS, 1986, p. 81).

São Paulo enquanto “cidade grande” representa, além de sua centralidade econômica,
o espaço de ascensão social da população negra, representada também pela escrita, uma vez
que a escrita é uma forma de poder, de defesa, e possibilidade de contar sua história por conta
própria. Nota-se então o vislumbre e o idealismo com que a autora olha para a cidade;
Quando eu estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de
cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. (JESUS, 2004, p.33).
Quando Carolina vai para a capital, no entanto, é que se depara com uma cidade e uma
“não cidade”, o que Ermínia Maricato (2002) chama de Cidade legal versus cidade ilegal,
para designar a parte que conta com infraestrutura e a parte que nem ao menos é reconhecida.
Nas palavras de Carolina São Paulo é classificada como: Palácio é a sala de visita, a Prefeitura
é a sala de jantar e a cidade é o seu jardim. A favela é o quintal onde jogam os lixos.”
(JESUS, 2019, p. 32). Antes de ir para o Canindé Carolina já havia sofrido com as remoções
e com a dificuldade em pagar uma moradia, o custo dos gêneros alimentícios é bastante citado
em sua obra como das grandes dificuldades da vida nas cidades.

[...] em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os


edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados
e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o
quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos. (JESUS,
1961, p. 17)

Nesse momento não havia legislação específica para a habitação social, embora o
Estado estivesse começando a intervir nessas questões através de alguns mecanismos como o
decreto da Lei do inquilinato em 1942 que controlava os valores dos aluguéis, no entanto,
como aponta Nabil Bonduki (1994) esse decreto trouxe impactos acarretando no aumento dos
despejos.

A efetivação de maior parte destes expedientes passará pelo despejo ou pela ameaça
de despejo dos inquilinos, que se constituiu no grande problema que afligiu – e
mobilizou – uma boa parte da população dos grandes centros urbanos já alojada em
moradias de aluguel. [...] Se para a população que já ocupava uma moradia o
despejo significava a ameaça de ficar sem ter para onde ir, aos novos contingentes
de trabalhadores que chegavam em grande numero a São Paulo a questão já se
colocava de pronto: onde morar? Conseqüentemente iremos assistir, a partir da
década de 40, ao surgimento ou ao desenvolvimento em larga escala de novas
soluços habitacionais que até então eram inexistentes ou ainda não eram muito
difundidas em São Paulo: a favela e a casa própria autoconstruida em loteamentos
periféricos desprovidos de qualquer melhoria urbana. (BONDUKI, 1994, p. 123)

A favela do Canindé era situada próxima as margens do rio Tietê, o que ocasionava
seguidas enchentes, no entanto, depois que Carolina os moradores foram colocados num outro
espaço, sofrendo remoções conforme a urbanização, modificação e privatização do espaço
urbano. Como a escritora expressa, é uma condição de moradia provisória e móvel, sem um
paradeiro fixo; Nós viramos ciganos. É horrível estar hoje aqui, amanhã ali. Estamos imitando
os artistas de circo. ” (JESUS, 1986, p. 188).
Jesus vai então contornando essa cidade de desenho único expondo as linhas que
separam esses espaços, os mais nobres e centrais e os mais precários e distantes como aborda
em Quarto de despejo e Diário de Bitita;

Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as


margens do Tietê. (2019, p. 39)

Que vontade de morar numa rua calçada e com luz elétrica. Mas as ruas que eram
calçadas, iluminadas, eram para os ricos. A luz dos pobres eram as lamparinas a
querosene e o ferro a carvão. (JESUS, 1986, p 80)

Outro ponto que merece destaque na análise Caroliana, é o estereótipo da população


da favela, e que a autora se coloca na maioria das vezes para além dessa imagem nos seus
escritos, à medida que ela faz uma reflexão sobre esse modo de ser favelado, fazendo com que
ela se sinta na maioria das vezes deslocada por estar e mostrar a desintegração social desse
espaço, embora não compartilhe totalmente os hábitos inseridos a esse lugar;

As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é


considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto
dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos. [...] Os visinhos de
alvenaria olha os favelados com repugnância. Percebo seus olhares de odio porque
eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. [...] Quando alguem nos
insulta é só falar que é da favela e pronto. Nos deixa em paz. Percebi que nós da
favela somos temido. [...] Eu não gosto de briga. (JESUS, 2019, p. 54, 55, 84)

De acordo com Souza (2002), a forma pejorativa como esse espaço é encarado pela
sociedade é absorvido também pelos próprios moradores. (SOUZA, 2002). Esse sentimento é
também exposto por Carolina; Devo incluir-me, Sou rebotalho. E o que está no quarto de
despejo, ou queima-se ou joga-se no lixo. (JESUS, 2019, p.54). Ainda segundo Nascimento
(2012);

O estereótipo das pessoas que residiam nesses assentamentos era intrinsecamente


ligado aos aspectos negativos de uma civilização, tomando a alusão de que eram
zonas de contágio' para a população da cidade formal. Mais do que um nome, no
caso favela, elaborou-se uma imagem associada a muitos mitos que condenavam um
determinado espaço da cidade (NASCIMENTO, 2012, p 38.)

Esse estigma também vem carregado de concepções colonialistas, pois esses espaços
são vistos como zonas primitivas, promiscuas e doentias. Franz Fanon (2010) em
Condenados da Terra, faz uma análise sobre o olhar que é lançado para a cidade do
colonizado, aqui alguns aspectos são levantados, sobretudo o espaço desse “outro” que não
cabe na cidade civilizada, letrada e elitizada e é visto como um lugar hostil e incivilizado.
Achille Mbembe (2020) volta à discussão citando Fanon, aproximando-se do que Carolina
tenta visibilizar sobre a favela e a descartabilidade desses espaço e dos sujeitos que lá vivem;

A cidade do povo colonizado (...) é um lugar de má fama, povoado por homens de


má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não
importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os
outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de
sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, com uma
cidade sobre seus joelhos. (apud MBEMBE, 2020, p.135 )

Para Carolina (2019) era evidente que a riqueza das cidades com seus arranha-céus era
sustentada pelas “Meias de algodão que é a favela”. Em conexão com esse pensamento
Holston (2013) observa que para além dessas imagens construídas sobre as periferias, esses
espaços se desenvolveram como o lugar dos trabalhadores pobres e o lugar para os
trabalhadores pobres. ( HOLSTON, 2013, p. 197). Ainda de acordo com o autor;
[...] esses elementos também se referem à heterogeneidade e à especificidade de suas
histórias, nas quais suas periferias são um espaço emaranhado na amargura de uma
expulsão, de segregação, de ilegalidade, e de heroísmo de dominação e redefinição.
(HOLSTON, 2013, p. 208,209 )

Espaço e indivíduo se mesclam nesse lugar primitivo, animalizado e inculto sob a


lógica da colonialidade. Apesar desse enquadramento, Carolina projeta no seu ideal de cidade
uma rota de fuga.

5 ESTE LUGAR EXISTE OU É INVENÇÃO?

Posso dizer minha rua porque estou comprando uma casa no bairro.
Carolina Maria de Jesus.

A discussão trazida à tona pela leitura de Quarto de despejo demonstra como a


exclusão social e territorial era desconhecida pela elite da época. Tanto que se perguntava se
esse lugar existia ou não (JESUS, 1961).
A partir do momento que alcança a “sala de visitas”, quando vai morar na Casa de
Alvenaria, título que nomeia a próxima obra, marcando a mudança de casa, não mais
“barraco”, a mudança de vizinhança e de condição social. Na Casa de Alvenaria Carolina está
situada geograficamente, está no mapa, como pontua. No entanto, encontra tensionamentos,
agora não mais pela precariedade de moradia, mas para acessar essa “cidade” como espaço de
fala. Sua invisibilidade, em sintonia com o que Stuart Hall observa sobre a trajetória negra, é
trocada por uma visibilidade segregada e controlada. (HALL, 2013). Amarras que Carolina
tenta desprender em relação à imagem que o jornalista Audálio Dantas impulsiona sobre ela.
Ainda assim, estar nesse novo ambiente faz a autora refletir muito sobre a posição social e
étnica nesse espaço. Estar dentro e fora desse lugar demonstra a sensação de deslocamento
que ela sente tanto na favela como na nova morada. Esse entre espaço pode ser observado nos
dois primeiros livros publicados, quando Carolina alude ao céu como lugar de fuga;

Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes?
Será que eles são melhores do que nós? Será que o predomínio de lá supera o nosso?
Será que as nações de lá é variada igual aqui na terra? Ou é uma nação única? Será
que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na
favela? (JESUS, 2004, p.45)”

“O céu está bélissimo... Em todos os recantos existe a fusão de cores...Será que as


nuvens brancas pensam que são superiores as nuvens negras? Se as nuvens
chegassem até a terra iam ficar horrorizada com as diferenças de classe”
(JESUS,1961)

Esses trechos demonstram os problemas que rodeiam Carolina antes e depois das
mudanças: segregação espacial, racismo e diferenças de classe.

6 CAROLINA PERCEPÇÕES DA E NA CIDADE

“O roteiro que favelado conhece é Santa Casa, Central de polícia e Gabinete de investigação.”
Carolina Maria de Jesus.

Andanças e viagens para divulgação do livro compõe esse novo roteiro da autora que
registra em seu novo diário suas percepções territoriais que vão desde deslocamentos na
capital, cidades distantes, América Latina até EUA e África.

Fico horrorizada vendo o sacrificio dos operarios para tomar uma condução de
manhã, para ir trabalhar. Uns vão de pé, outros vão sentados. Quando êles chegam
ao trabalho já estão exautos. (...) A vida de um operário é dura. Com D maiusculo.
(JESUS, 1961, p. 57)

Quanto ao vasto território nacional, observa ela, que o Nordeste é o lugar mais
desassistido sendo o quarto de despejo do Brasil (JESUS, 1961). Na parte Sul do país ela nota
diferenças significativas nas condições de vida entre as favelas do Rio Grande do Sul para as
de São Paulo. Seus apontamentos remetem também ao trabalhador rural, e a importância do
espaço para a plantação, chegando a participar de comícios com Leonel Brizola, na época
militante pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Eu ia contemplando as paisagens magestosas e a quantidade de terras incultivadas.


Ficava pensando: Com tantas terras abandonadas e o povo passando fome! Essas
terras pertencem aos capitalistas. Ninguém pode chegar e plantar algo sem seu
consentimento. Eles tem dinheiro pra pagar a Dona Lei e suas confusões. O mundo
para ser bom é preciso que as terras sejam livres. O homem poderá usufruir da sua
terra, porque ela é inesgotável. As terras sendo livres todos plantam e a miséria
extingue-se. Um povo bem alimentado é um povo feliz (...) Porque é que o governo
não distribui as terras para o povo? (JESUS, 1961)

Moradia e alimentação são os temas mais recorrentes e que estão imbricados um ao


outro na sua escrita e que são por ela elencados como questões de grande importância para um
projeto de cidade e sociedade.
7 ENCONTRANDO CAROLINA HOJE
“A Carolina está ameaçada de despejo”
Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas - MG – Ocupação Carolina Maria de Jesus

Apesar das políticas de moradia alcançadas a partir das lutas populares, os centros
urbanos ainda são espaços segregados. Os programas habitacionais ainda não deram conta de
solucionar o déficit habitacional e o distanciamento; as trabalhadoras e trabalhadores
atravessam a cidade e ainda enfrentam longa horas no transporte público. Outro aspecto que é
importante frisar no que diz respeito à moradia e a discussão levantada por Carolina Maria de
Jesus é a intersecção entre etnia, classe e gênero. Segundo Helene (2019), as mulheres negras
ainda são as mais afetadas;

As mulheres, nesse sentido, ao lutar pelo direito de usufruir de condições inerentes à


vida desvelam dimensões fundamentais da luta pelo direito à cidade. As histórias de
vida na luta por moradia dessas mulheres explicitam que as diferenças de gênero se
articulam de forma indissociável às outras formas de opressão capitalista que
estruturam as desigualdades urbanas, engendrando uma luta por direito à cidade
marcada por segregações de classe, raça e gênero. (HELENE, 2019, p. 969)

A divisão que Carolina percebia em sua época ganhou novas formas e novos nomes.
Os processos de gentrificação e “revitalização”, privatizações dos espaços públicos para a
construção de centros comerciais e condomínios privados, imóveis ociosos a mercê da
especulação imobiliária acarretam na remoção da população dos centros para as partes mais
periféricas, e segundo Caldeira (2000) isso é preocupante, pois vai na contramão de uma
construção democrática;

As·mudanças que estamos vendo no espaço urbano são fundamentalmente não-


democráticas. O que está sendo reproduzido no espaço urbano é segregação e
intolerância. O espaço dessas cidades é a principal arena na qual essas tendências
antidemocráticas são articuladas. Entre as condições necessárias para a democracia
está a de que as pessoas reconheçam aqueles de grupos sociais diferentes como
concidadãos, com direitos equivalentes apesar de suas diferenças. No entanto,
cidades segregadas por muros e enclaves alimentam o sentimento de que grupos
diferentes pertencem a universos separados e têm reivindicações irreconciliáveis.
Cidades de muros não fortalecem a cidadania, mas contribuem para sua corrosão.
(CALDEIRA, 2000, p.340)

Há que se falar que a concepção de moradia para Carolina era a ideia da “casa
própria”, em função da experiência de vizinhança que ela coloca como não solidária. Ainda
assim, a exposição em tom de denúncia presente em suas obras aproxima-se aos movimentos
urbanos de moradia popular na forma de ocupações e retomada de território, na busca por
ocupar a cidade e lançando um olhar descolonial que tenciona esse espaço e a forma de
vivenciá-lo.

8 CONCLUSÃO

Muitas áreas das ciências humanas se dedicam ao estudo do espaço urbano, buscando
acrescentar e aprofundar as análises esse trabalho partiu de uma perspectiva descolonial,
através do percurso de Carolina Maria de Jesus, como mulher, negra e que buscava espaço e
visibilidade. Lugares que se cruzam no seu corpo, nos mundos onde percorre, na sua
existência e no seu olhar para a cidade e moradia.
Tudo isso compõe Carolina entrelaçando ao momento político, social e econômico do
Brasil. Num momento que carecia de políticas públicas para atender a demanda de moradia
digna, não raro em suas obras, aparecem críticas aos políticos da época, o descaso com a
população da favela e a divisão da cidade em Sala de visitas versus Quarto de despejo. Mas
além dessa segregação espacial a autora observa que a cidade é também um espaço de
projeção social. No entanto, ao acessar essa cidade ela se depara com outros confrontos
referentes à sua posição social e étnica nesse espaço. Na atualidade a segregação espacial
continua se aprofundando em decorrência de iniciativas privadas. Os movimentos de moradia,
por sua vez, através de suas lutas para ocupar a cidade se aproximam da narrativa de Carolina
onde etnia, gênero e classe se entrelaçam na busca pela cidade.
A escrita é então sua rota de fuga e a que permite à Carolina narrar sua história e a de
seus vizinhos, desenhar a partir das palavras sua trajetória e transitar pelos espaços
geográficos e sociais. A importância de revisitar suas obras e olhar a cidade e a moradia sob
sua perspectiva é analisar múltiplas dimensões, sujeitos e lugares apagados e silenciados.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O Perigo de uma história única. São Paulo: Companhia
das Letras, 2019.
BARONE, Ana Claudia Castilho. Carolina Maria de Jesus, uma trajetória urbana. BH.
FAU-USP, 2015. Disponível em: <https://repositorio.usp.br> . Acesso em: 30 de out. de
2020.

BONDUKI, Nabil. Crise de habitação e luta pela moradia no pós-guerra in KOWARICK,


Lúcio - As Lutas Sociais e a Cidade. São Paulo: Editora: Paz e Terra, 1994. p.113-146.

BOURDIEU, Pierre. Efeitos de Lugar. In: BOURDIEU, Pierre (org.). A Miséria do Mundo.
Petrópolis: Vozes, 1997, p. 159-175.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São
Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, SP, 2000.

DALCASTAGNÈ, Regina. Sombras da cidade : o espaço na narrativa brasileira


contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, v. 21, p. 33-53,
2003. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/estudos/article/viewFile/2200/1757>.
Acesso em: 28 nov. 2011

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