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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Quarto de despejo: Diário de uma favelada

Autora: Carolina Maria de Jesus

Resenhado por: Rodrigo Mendonça

Ao nos depararmos com textos que tratam sobre os anos 50, uma denominação muito
comum para essa época é os “Anos dourados”, pois nessa década pode se observar grandes
avanços no setor cultural e na paisagem urbana, com uma política desenvolvimentista liderada
por Juscelino Kubitscheck. Porém, é possível observar que esses avanços não atingiam todos
os grupos e todas as classes. Ao analisarmos com a obra Carolina Maria de Jesus, podemos
observar que o cotidiano dos favelados era extremamente marcado pela dificuldade de acesso
à alimentos básicos, a falta de políticas públicas e saneamento básico para esses grupos
marginalizados. Através da escrita, Carolina denuncia em Quarto de despejo: Diário de uma
favelada as irresponsabilidades dos governantes com estes grupos marginalizados e as formas
de sobrevivência diárias que uma mulher, preta, favelada e mãe tem de encontrar para lutar
com o maior mal que a assombrava: a fome.

A escrita de Carolina Maria de Jesus é de forma direta, sem muitos rodeios, o que
torna toda a experiência com o relato da autora muito difícil e necessário de digerir. Carolina
nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, em Minas Gerais. No ano de 1937 mudou-se para
São Paulo, em que ficou um período trabalhando como empregada doméstica. Se mudou para
a favela de Canindé, cenário onde se passa os relatos descritos na obra, em 1948. A
localização da favela ficava às margens do rio Tietê, e durante esse período residindo por lá
Carolina Maria de Jesus encontrou como forma de ganhar dinheiro catar materiais recicláveis,
principalmente papéis. A autora encontrava como formas de escape da dura realidade em que
vivenciava a literatura e a escrita, tanto que além de escrever diários, ela também escrevia
poemas. E foi utilizando a escrita que ela conseguiu sair da favela de Canindé e da realidade
em que sofria diariamente.
O diário tem início em 1955, há um pulo para o ano de 1958 e se encerra no primeiro
dia da década de 60. E durante esses períodos, Carolina Maria de Jesus vai relatando o seu
cotidiano e suas formas de conseguir alimento e outros utensílios necessários para si e para
seus 3 filhos, Vera Eunice, João José e José Carlos. Em muitas passagens do diário a autora
enfatiza o quanto a fome é o grande problema que a persegue, e como o acesso a essa
necessidade básica para o favelado é uma luta diária. E nos relatos, podemos ver a angústia e
o desespero diário de conseguir alimento para aquele dia e o próximo, e de como os dias de
chuvas são dias horríveis para Carolina, pois significa que ela não vai conseguir catar papéis e
conseguir dinheiro para se alimentar e alimentar seus filhos. A escritora descreve as formas
como ela e os seus vizinhos da favela de Canindé sobrevivem e enfrentam esse mal, seja
catando comida do lixo ou de feiras que ocorrem aos arredores, ou nas cidades.

Outro ponto importante que autora traz constantemente na obra, é sobre os políticos da
época. Carolina Maria de Jesus faz observações de como nos períodos de eleições, os
candidatos sempre “lembravam” desses grupos marginalizados, seja levando comida ou
socializando com eles para conseguir os seus votos, e após serem eleitos não visitavam mais a
favela. Carolina se mostra muito politizada quando se trata desses assuntos, levantando
críticas aos governantes e a forma como eles tratam os moradores da favela. Em uma das
passagens, a autora opina de que para governar o país seria necessário que um governante
saiba o que é a fome, que a tenha vivenciado de forma real. Durante a obra, Carolina faz
críticas aos governantes de São Paulo, e ao próprio JK, que era o presidente da república na
época, sobre os preços dos alimentos e a dificuldade acessá-los.

Com o título da obra Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus quis apresentar a sua
visão sobre o que era a favela, um local em que se era jogado os restos, o que está fora de uso.
Em muitos relatos no diário a autora expressa o seu desejo de sair da favela, e como residir
em uma favela é como viver no inferno, seja por conta das dificuldades enfrentadas pelo
ambiente que a rodeia, seja pelos seus vizinhos. A autora nos mostra como o machismo e a
violência doméstica ocorre de forma recorrente, a própria Carolina muitas vezes é criticada
por ser mãe solo e falar abertamente não está interessada em conseguir um parceiro, e é até
vista como “ameaça” para algumas mulheres da favela. E observar esses relatos da autora
sobre essas situações é também analisar de que forma o machismo e o racismo está no
cotidiano desses grupos, e de como muitas vezes é normalizado. Pensar na favela como um
quarto de despejo, como a autora traz, é perceber de como em um Brasil dos anos 50, no seu
auge de desenvolvimento urbano e industrial, a população preta e pobre não tinha espaço
nesses centros urbanos, o único espaço que os cabia era a favela.

Os aspectos raciais muitas vezes são trazidos por Carolina, e a mesma mostra a forma
como ama a sua cor e o seu cabelo, indo de contra a mentalidade racista que muitas vezes
eram impostas a população preta da época e até hoje em forma de auto-ódio.

Ao se deparar com a escrita de Carolina Maria de Jesus é possível observar uma


narrativa que não está nos padrões estéticos literários ou a linguagem academicista, possui
gírias e erros gramaticais, tais aspectos não limitam a obra a ser considerada não só literária,
como uma grande obra literária por apresentar vivencias de grupos que muitas vezes não são
ouvidos, por dar voz a população preta, pobre e favelada. A forma de relatar tais
acontecimentos do seu cotidiano de forma direta, faz com que o leitor fique próximo de
Carolina e sinta cada sentimento que ela está expressando em sua escrita.

O jornalista Audálio Dantas (1929-2018), em uma ida na favela de Canindé descobriu


a escrita de Carolina Maria de Jesus em seus diários, e ajudou os relatos da escritora da
realidade favelada ser publicada não só no Brasil, mas em outros países. Ao ler Quarto de
despejo, há algumas passagens que são cortadas, porque para o jornalista seriam repetitivas
demais alguns temas trazidos durante a obra. E ainda que mesmo com esses cortes, alguns
relatos possam parecer repetitivos, podemos entender porque é necessário que seja repetitivo,
eram as vivências que a autora lidava dia após dia.

Carolina Maria de Jesus, após a publicação do seu livro e de seu grande sucesso,
conseguiu sair da favela de Canindé e morar em uma casa de alvenaria como ela sempre
desejou. Mas o reconhecimento da importância e do talento de Carolina para a academia
literária foi bem resistida, em que até permeava acusações da veracidade das obras da autora.
E isso representa como a academia ainda trata literatura marginal de forma discriminatória. A
autora em vida não conseguiu ter o reconhecimento que tanto merecia, a elite da época tratava
a obra de Carolina como um entretenimento de caráter exótico, em que pouco foi acessado
pelos grupos marginalizados que estavam sendo representado em Quarto de Despejo.

Quarto de despejo é uma grande obra literária, que representa e apresente realidade
que muitas vezes não são mostradas, que não são ouvidas, mas que são vivenciadas por
grupos que por muito tempo não foram ouvidos e que até hoje, mesmo que estejam
conseguindo de forma gradativa, lutam para serem ouvidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. 10. Ed. São Paulo:
Ática,2014

SILVA, Pedro Puro Sasse da. O consumo da miséria: recepção e representação da favela
em Quarto de despejo. 2016

JUOZEPAVICIUS, Ricardo. O livro “Quarto de Despejo” e suas questões jurídicas.


Justificando, 2018. Disponível em: <http://www.justificando.com/2018/02/21/livro-quarto-
de-despejo-e-suas-questoes-juridicas/>. Acesso em: 03, novembro e 2021.

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