Você está na página 1de 2

“Vasto Mundo” - precisamos conhecer, ler e falar sobre Maria Valéria Resende!

Freira, comunista, feminista, pedagoga e educadora popular, a história e vida de Maria


Valéria Rezende prescinde a análise e o entendimento de sua obra. Vinda de uma família
de escritores, tem uma relação próxima com a literatura desde a infância, mas sua
grande paixão sempre foi conversar, ouvir e educar. Não da forma convencional, mas
sim na prática freiriana da dialética de ensinar e aprender, entre iguais, sem hierarquia,
valorizando, assim, o conhecimento popular.

Na faculdade de pedagogia, conheceu a Teoria da Libertação e se tornou noviça,


passando a fazer parte da Congregação de Santo Agostinho, pois, segundo conta em
entrevista à revista Marie Claire1 “(...) é muito mais interessante do que ficar em casa
cuidando de marido e filho”, já que na década de 60 eram poucas as opções das
mulheres. Nesse contexto, ajudou a esconder e libertar presos políticos da ditadura
militar, a tratar travestis que eram violentadas, a alimentar moradores de rua e, quando
o medo assolou o Brasil, passou a andar pela América Latina, articulando com os
movimentos sociais e de resistência.

Assim, iniciou a sua vida missionária, ganhou o mundo, viveu em países sul-americanos,
morou no México, na China, na Argélia, no Timor-Leste, aplicando a educação popular,
por meio da qual o educador ensina, mas também ouve e aprende, valorizando e
respeitando a cultura e a sabedoria de cada lugar. De volta ao Brasil, imergiu-se no
sertão, ensinou ao agricultor que este tinha direito à terra para plantar, enquanto
aprendeu com os seus hábitos e com a riqueza da sua língua e dos seus conhecimentos;
movimentou-se com os sindicalistas na capital; ouviu as prostitutas e os marginalizados
na periferia de São Paulo; vagou noites pelas ruas de Porto Alegre e, em 2016, idealizou
o “Mulherio das Letras”, movimento que propõe a visibilidade de escritoras as quais se
vêem com pouco espaço nas grandes editoras. Com toda essa bagagem, já aos 59 anos,
publicou seu primeiro livro, Vasto Mundo (2001, ed. Beca; 2015, ed. Alfagara).

A obra consiste em uma sequência de contos – ou causos – envoltos em um mesmo fio


condutor, representado pelo chão de uma cidadezinha do sertão da Paraíba, chamada
Farinhada, e denuncia, de forma lúdica, as opressões coronelistas e latifundiárias
personificadas em Assis Tenório, sobre um povo simples, mas rico de saber popular,
protegido por um padre progressista e, sobretudo, pela força da palavra falada.

1
https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2018/02/maria-valeria-rezende-
freira-escritora-e-feminista.html
Em Vasto Mundo, Maria Valeria Resende dá voz ao pobre, analfabeto, faminto,
agricultor, trabalhador, às mulheres, que aparecem como fortes, como Maria Raimunda,
que “só teme a Deus e o perigo de amolecer quando vê menino sem mãe, homem
chorando, criança carregando enterro de anjinho, velho sem teto, mulher gestante com
variz e fome, essas coisas. Prefere mesmo é ter raiva que dá coragem e força para
resolver tudo o que aparece pela frente”, com uma história marcante de sororidade e
luta contra as injustiças por meio do canto; e como bondosas e justas, na figura de dona
Eulália, esposa de Assis Tenório, o qual a cala e a subjuga, mas que lhe deixa as funções
de governança para tratar uma doença no Rio de Janeiro, proporcionando, assim, um
breve tempo de redistribuição de terras, fartura e felicidade na região.

A obra também é marcada pelo constante uso da linguagem sertaneja, deixando às


claras a sua riqueza, a despeito de não seguir a norma culta. Impressiona a capacidade
de contar histórias, fazendo o leitor ir do riso largo, como em “O tempo em que dona
Eulália foi feliz”, ao choro - no meu caso, em público -, como em “Boas notícias” e à
esperança na soberania popular, como no marcante “A guerra de Maria Raimunda.” A
autora nos traz constantemente a força da palavra, ouvida, dita, escrita, cantada e
rezada para a mobilização popular em torno das opressões, em uma perspectiva
coletiva, e para a sobrevivência em condições inóspitas impostas por um mundo
desigual, em uma perspectiva individual – ponto este que se repete de uma forma
incrível no seu romance “O vôo da Guará Vermelha” (2005, ed. Objetiva; 2015, ed.
Alfaguara), tornando-se uma obra essencial.

Maria Valéria Rezende foi 1º lugar do prêmio Jabuti (principal premiação literária
brasileira) nas categorias romance e livro do ano em 2015 com a obra Quarenta Dias
(2014, Alfaguara) e merece toda a visibilidade não só por sua escrita, mas, sobretudo,
pela mensagem que transmite pelo mundo, junto aos sem-teto, sem voz, sem trabalho
e dignidade.

Você também pode gostar