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Carolina Maria de Jesus

e a Literatura Marginal(izada)

Professora Ivana Amorim


https://www.nexojornal.com.br/especial/2019/11/06/Quem-foi-Carolina-Maria-de-Jesus-refer%C3%AAncia-da-literatura
Carolina Maria de Jesus

❖ Nasceu por volta de 1914, em


Sacramento, Minas Gerais;
❖ Foi de MG até SP caminhando;
❖ Estudou até o 2º ano primário;
❖ Instala-se na favela do Canindé
em 1947, grávida e
desempregada;
❖ Teve 3 filhos: João José (1948),
José Carlos (1949) e Vera Eunice
(1953);
❖ Faleceu em 13 de fevereiro de
1977, vítima de insuficiência
respiratória.
13 de maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia
da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. Nas prisões os
negros eram os bodes expiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E
não nos trata com desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos
sejam feliz. (...) Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. (...) E assim no
dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!
“O céu está salpicado
de estrelas. Eu que sou
exótica gostaria de
recortar um pedaço do
céu para fazer um
vestido.”

Carolina Maria de Jesus


O apagamento de gênero e raça na Literatura
O campo literário brasileiro é dominado por Os negros surgem quase sempre como
autores homens, brancos, de classe média, marginais e as mulheres, como
moradores de RJ e SP, professores ou jornalistas. donas-de-casa ou prostitutas.
O mesmo acontece com os personagens de seus
livros.

Estudo de Regina Dalcastagnè, unb


Romances de 5 grandes editoras brasileiras de
1990 a 2004

93,9% - autores brancos;


72,7% - autores homens;
82,6% - metrópole como local de narrativa dos
casos;
Uma alternativa a esse cenário

❖ Saraus Literários nas


periferias brasileiras;

❖ Coleção Literatura
Marginal - Revista caros
amigos 2001;

❖ Slam;

❖ Cultura hip hop - rap;

❖ Portal literafro - UFMG.


As vozes Negras: (r)existência anticolonial

Mbembe (Fanon): “a possibilidade, para cada ser humano e para cada


povo, de se erguerem, de caminharem com os seus próprios pés, de
escreverem - com o seu trabalho, as suas mãos, o seu rosto e o seu
corpo - a sua história nesse mundo que todos temos em comum e ao qual
temos direitos e dele somos herdeiros”.

❖ Melhor percepção do nosso regime histórico;


❖ Debate escolar e acadêmico sobre relações de exclusão, de
desigualdade, de poder, de gênero e de raça;
Gênero, Raça e Classe na Literatura

❖ Maria Firmina dos Reis (Úrsula - 1859) - primeiro romance brasileiro e afro-brasileiro, de
autoria feminina e negra, mas totalmente invisibilizado;

❖ “Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a


proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando?
Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente
majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos
tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam
durante séculos como escravas nas lavouras ou na ruas, como vendedoras, quituteiras,
prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as
mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de
mulheres com identidade de objeto.”

Sueli Carneiro
“Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles
respondia-me:

- É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele preta, e o meu cabelo


rustico. Eu até acho cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de
branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo
de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É
indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre
preta. (...)”
Obra de Carolina Maria de Jesus

1982
1960 1963
1961 1963
Características da Narrativa - Quarto de despejo

❖ Narrador em 1ª pessoa; ➔ 1955: Início em 15 de Julho;


❖ Autodiegético Término em 28 (13 dias).
(narrador e personagem); ➔ 1958: Início em 2 de maio;
❖ Espaço: Favela e o entorno término em 31 de dezembro
(São Paulo); (7 Meses).
❖ Escolha do Vestibular: ➔ 1959: 1 de janeiro; término
discussão Política num em 31 de dezembro (1 ano).
cenário de luta; ➔ 1960: 1 de janeiro (1 dia).
❖ Marcas de oralidade; Ano de publicação.
❖ Texto que sofreu alterações
de Audálio Dantas.
Personagens
Seu Manoel

Orlando Lopes

Cigano
José
Carlos Arnaldo

Mulheres e
homens da Favela
João
José
O Gênero Diário

❖ Quarto de despejo é um diário testemunhal, gênero de pouco prestígio para a


crítica literária em detrimento de romances, contos e poemas. Muitas vezes,
foi reduzido a mero documento de interesse sociológico.
❖ Ainda assim, o livro chegou a ser traduzido para 14 línguas, e a tiragem inicial
de dez mil cópias esgotou-se em uma semana.
❖ Miséria: uma narrativa sob um ângulo novo, o diário apresenta o modo de vida
da população excluída socialmente.
❖ O diário é escrito em linguagem informal, com o registro da data, e possui
caráter confidente.
❖ Tom memorialístico com traços poéticos: teoria literária, confiabilidade, estilo,
importância da fala.
❖ Junção: Matéria histórica, experiência e crítica social.
Período Histórico

❖ “Modernização, Progresso e desenvolvimentismo”: JK (1955) e o slogan “50


anos em 5”
❖ 24% da população rural migraram para as cidades em 1950;
❖ 50% de analfabetos 39%
❖ O rádio cresceu no início dos anos 1950, quando houve um aumento da
publicidade.

Para mim o mundo ao invés de evoluir


Tenho nojo, tenho pavor está retornando a primitividade. [...]
do dinheiro de alumínio Como é horrível ver um filho comer e
O dinheiro sem valor perguntar: “tem mais?” Esta palavra
Dinheiro de Juscelino “tem mais”fica oscilando dentro do
(p. 127) cerebro de uma mãe que olha as
panela e não tem mais. (p. 39)
A escrita como ferramenta de luta

❖ “19 de Julho: (...) Vocês são incultas, não pode compreender. Vou
escrever um livro referente à favela. Hei de citar tudo que aqui se
passa. E tudo o que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e
vocês com essas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.”
❖ “20 JULHO: Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.”
❖ Escrevivência - conceito cunhado mais tarde por Conceição Evaristo.
“Enquanto escrevo vou
pensando que resido num
castelo cor de ouro que
reluz na luz do sol. (...) É
preciso criar este
ambiente de fantasia,
para esquecer que estou
na favela.”

Carolina Maria de Jesus


A lúcida crítica social

❖ Política: “9 de maio: (...) O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa
que já passou fome. A fome também é professora.”
❖ “Eu quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o
Adhemar e queimar o juscelino. As dificuldades corta o afeto do
povo pelos políticos”
❖ “15 de Maio: (...) Eu classifico São Paulo assim: o Palácio, é a sala de
visita. A Prefeitura, é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a
favela é o quintal onde jogam os lixos.”
A fome

❖ Personagem, sujeito - A fome chega a ganhar cor na narrativa de


Carolina. Ela é amarela.

❖ “16 de Junho: (...) Hoje não temos nada para comer. Queria convidar
os filhos para suicidarmos. Desisti.”
❖ “24 de Julho: Como é horrível levantar de manhã e não ter nada pra
comer. Pensei até em me suicidar. Eu me suicidando é por fim a
deficiência da alimentação do meu estômago. E por infelicidade
amanheci com fome. Os meninos ganharam uns pães duros, mas
estavam recheados de pernas de baratas. (...)”
❖ Felicidade conectada diretamente à alimentação.
A Favela

❖ Descrições: Escritório do Diabo, Chiqueiro de São Paulo, Úlcera, Cortiço,


Barraco etc.
❖ Crítica constante ao alcoolismo: “mas, é sabido que as pessoas que são dadas
ao vício da embriaguez não compram nada. nem roupas. Os ébrios não
prosperam.”
❖ “20 de Julho: Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já
habituei-me a só andar suja. Já faz 8 anos que cato papel. O desgosto que eu
tenho é residir em favela.”
❖ Doenças: tuberculose, doença do caramujo (esquistossomose), vermes etc.
❖ A violência contra a mulher.
Construção da favela

❖ A favela do Canindé teve uma existência curta na cidade de São Paulo, entre
1948 e 1961.
❖ Margem do Tietê;
❖ Prefeitura Municipal: assentamentos de 99 famílias desalojadas;
❖ 1948: Mineira perde o emprego diante da gravidez e move-se à favela;
❖ De acordo com os documentos oficiais, em 1955, a situação da favela era a
seguinte: 96 barracos, 108 famílias, 463 pessoas;
❖ Em uma área de 34.500 metros com aproximadamente 300 barracos. Em 1960
e 1961, chuvas inundaram o local, realocando os moradores para bairros
diversos e periféricos.
Audálio Dantas: um debate

❖ Escutou uma briga no Canindé, da qual Carolina fazia parte e dizia que a
relataria em seu livro;
❖ Editor: pontuação, supressão, trechos.
❖ “A história da Favela que eu buscava estava escrita em uns 20 cadernos
encardidos que Carolina guardava em seu barraco.”
❖ “Fui responsável pelo que se chama edição de texto. A repetição da rotina
favelada, por mais fiel que fosse, seria exaustiva. (...) Foram feitos cortes,
selecionados os trechos mais significativos.”
Produção e Repercussão

❖ Do Quarto de Despejo Casa de Alvenaria Ostracismo final


❖ “Nos escritos de Carolina de Jesus, a casa de alvenaria aparece ora como
sonho, ora como morada do oponente, ora como frustração frente ao desejo
realizado.“
❖ “A recuperação da trajetória descrita por Carolina de Jesus sobre o
território urbano de São Paulo revelará um aspecto absolutamente relevante
da história da cidade que merece toda a atenção: o lugar, nela, reservado
aos negros.”
❖ Foi traduzido para dinamarquês, holandês, alemão, francês, inglês, checo,
italiano, japonês, castelhano, húngaro, polonês, sueco, romeno e russo.
Relação com outras obras
Olhos D’água (2014)

❖ Maternidade - Conceição Evaristo e as lágrimas de mulheres


❖ “20 de Julho: Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles
nao têm ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição
de mulher sozinha sem um homem no lar.”
❖ Condição de mulher e mãe solteira numa sociedade desumanizada e
colonial;
❖ Interpeladas pelo gênero, pela raça e pela sociedade patriarcal;
❖ O drama diário.
O Cortiço (1890)

❖ LAVADEIRAS: Junção em torno da torneira única. Falta de saneamento;


❖ Dia a dia coletivo em torno da sobrevivência;
❖ Lugar de moradia de pessoas em vulnerabilidade social;
❖ Embriaguez;
❖ Sexualidade: “4 de Junho: Mas o Arnaldo transformou-se em negro turututu
depois que cresceu. Ficou estúpido, pornográfico, obsceno e alcóolatra.”
Sermão do Vieira

❖ Padre Antônio Vieira e a Crítica à Ambição Humana:

“Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se
comem uns aos outros. [...] Mas para que conheçais a que chega a vossa
crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como
vós.”

Carolina:

❖ “27 de Maio: Percebi que no Frigorífico jogam creolina no lixo, para o


favelado não catar a carne para comer.”
❖ “o que eu revolto é com a ganância dos homens que espremem uns aos outros
como se espremesse uma laranja” (p. 46)

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