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Na língua de Roma, colo significou “eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trab alho, eu cultivo o
campo.” (...) Um herdeiro antigo de colo é incola, o habitante; outro é inquilinus, aquele que reside em terra
alheia. Quanto a agricola, já pertence a um segundo plano semântico vinculado à idéia de trabalho” (BOSI,
1992, p.11).
Colo — sistema verbal do presente, denota sempre alguma coisa de incompleto e transitivo.
“Colo é a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e
sujeitar” (BOSI, 1992, p.11).
Colonus é aquele que cultiva uma propriedade rural em vez de seu dono, que vem estabelecer-se em lugar
dos incolae.
“Não por acaso, sempre que se quer classificar os tipos de colonização, distinguem-se dois processos: o
que se atém ao simples povoamento, e o que conduz à exploração do solo. Colo está em ambos: eu moro;
eu cultivo” (BOSI, 1992, p.11).
O que diferencia, a rigor, o habitat e o cultivar do colonizar? “Em princípio, o deslocamento que os agentes
sociais fazem do seu mundo de vida para outro onde irão exercer a capacidade de lavrar ou fazer lavrar o solo
alheio. O incola que emigra torna-se colonus” (BOSI, 1992, p.12).
Espanha (1556): proibição oficial do uso das palavras conquista e conquistadores — descob rimento e
povoadores.
“Em ambos os exemplos, a colonização não pode ser tratada como uma simples corrente migratória: ela é a
resolução de carências e conflitos da matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio
sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo civilizatório”
(BOSI, 1992, p.13).
Passado — particípio cultus: “atribuía-se ao campo que já fôra arrorteado e plantado por gerações
sucessivas de lavradores. Cultus traz em si não só a ação sempre reproposta de colo, o cultivar através dos
séculos, mas principalmente a qualidade resultante desse trabalho e já incorporada à terra que se lavrou.
Quando os camponeses do Lácio chamavam culta às suas plantações, queriam dizer algo de cumulativo: o
ato em si de cultivar e o efeito de incontáveis tarefas, o que torna o particípio cultus, esse nome que é verbo,
uma forma significante mais densa e vivida do que a simples nomeação do labor presente. (...) Cultus é sinal
de que a sociedade que produziu seu alimento já tem memória” (BOSI, 1992, p.13).
Em cultus, -us: “substantivo, queria dizer não só o trato da terra como também o culto dos mortos, forma
primeira de religião como lembrança, chamamento ou esconjuro dos que já partiram” (BOSI, 1992, p.13).
“A colonização é um projeto totalizante cujas forças motrizes poderão sempre buscar-se no nível do colo:
ocupar um novo chão, explorar seus bens, submeter os seus naturais. Mas os agentes desse processo não
são apenas suportes fisicos de operações econômicas; são também crentes que trouxeram nas arcas da
memória e da linguagem aqueles mortos que não devem morrer” (BOSI, 1992, p.15).
Futuro — particípio culturus, “o que se vai trabalhar, o que se quer cultivar” (BOSI, 1992, p.16).
“Cultura é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem transmitir às
novas gerações para garantir a reprodução de um estado do coexistência social. A educação é o momento
institucional marcado do processo” (BOSI, 1992, p.16).
Em culturus, -urus: “enforma a idéia do porvir ou de movimento em sua direção. Nas sociedades
densamente urbanizadas, cultura foi tomando também o sentido de condição da vida mais humana, digna de
almejar-se, termo final de um processo cujo valor estimado, mais ou menos conscientemente, por todas as
classes e grupos” (BOSI, 1992, p.16).
“Cultura supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos
para o futuro. Essa dimensão de projeto, implícita no mito de Prometeu, que arrebatou a fogo dos céus para
mudar o destino material dos homens, tende a crescer em épocas nas quais há classes ou estratos
capazes de esperanças e propostas como na Renascença florentina, nas Luzes dos Setecentos, ao longo
das revoluções científicas e técnicas ou no ciclo das revoluções socialistas. O vetor moderno do titanismo,
manifesto nas teorias de evolução social, prolonga as certezas dos ilustrados e prefere conceituar cultura em
oposição a natureza, gerando uma visão ergótica da História como progresso das técnicas e
desenvolvimento das forças produtivas. Cultura aproxima-se, então, de colo, enquanto trabalho, e
distancia-se às vezes polemicamente de cultus. O presente se torna mola, instrumento, potencialmente, de
futuro. Acentua-se a função produtividade que requer um domínio sistemático do homem sobre a matéria e
sobre outros homens. Aculturar um povo se traduziria, afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos,
adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrão tido como superior. Em certos regimes industrial-militares
essa relação se desnuda sem pudores. Produzir é controlar o trabalhador e o consumidor, eventualmente
cidadãos. Economia já é política em estado bruto. Saber é poder, na equação crua de Francis Bacon” (BOSI,
1992, p.15-16).
“Esse vetor da cultura como consciência de um presente minado por graves desequilíbrios é o momento que
preside à criação de alternativas para um futuro de algum modo novo. Em outro contexto ideológico Antonio
Gramsci propôs a crítica do senso comum e a consciência da historicidade da própria visão do mundo como
pré-requisitos de uma nova ordem cultural” (BOSI, 1992, p.17).
“A partir do século XVIII aproximam-se e, às vezes, fundem-se as noções do cultura e progresso” (BOSI, 1992,
p.17).
“A inteligência dos povos ex-coloniais tem motivos de sobra e experiência acumulada para desconfiar de
uma linguagem ostensivamente neo-ilustrada que se reproduz complacente em meio às mazelas e aos
escombros deixados por uma pseudomodernidade racional sem outro horizonte além dos próprios lucros”
(BOSI, 1992, p.18).
“Marx via com lucidez que o processo colonizador não se esgota no seu efeito modernizante do eventual
propulsor do capitalismo mundial; quando estimulada, aciona ou reinventa regimes arcaicos de trabalho,
começando pelo extermínio ou a escravidão dos nativos nas áreas de maior interesse econômico. Quando é
aguçado o móvel da exploração a curto prazo, implantam-se nas regiões colonizáveis estilos violentos de
interação social. Estilos de que são exemplos, diversos entre si, a encomienda mexicana ou peruana, o
engenho do Nordeste brasileiro e das Antilhas, a hacienda platina. Sem entrar aqui na questão dos
conceitos qualificadores da economia colonial (feudal? semifeudal? capitalista?), não se pode negar o
caráter constante da coação e dependência estrita a que foram submetidos índios, negros, mestiços nas
várias formas produtivas das Américas portuguesa e espanhola. Para extrair os seus bens com mais
eficácia e segurança, o conquistador enrijou os mecanismos de exploração e de controle. A regressão das
táticas parece ter sido estrutural na estratégia da colonização, e a mistura de colono com agente mercantil
não é de molde a humanizar as relações de trabalho” (BOSI, 19992, p.20-21).
“A barbarização ecológica e populacional acompanhou as marchas colonizadoras entre nós, tanto na zona
canavieira quanto no sertão bandeirante; daí as queimadas, a morte ou a preação dos nativos. Diz Gilberto
Freyre, insuspeito no caso porque apologista da colonização portuguesa no Brasil e no mundo: ‘O açúcar
eliminou o índio’. Hoje poderíamos dizer: o gado expulsa o posseiro; a soja, o sitiante; a cana, a morador. O
projeto expansionista dos anos 70 e 80 foi e continua senda uma reatualização em nada menos cruenta do
que faram as incursões militares e econômicas dos tempos coloniais” (BOSI, 1992, p.22).
“A rigor, o termo anomalia aplicado por Marx ao regime dos latifúndios escravistas americanos, pressupõe a
vigência de uma (nomos), ou lei exemplar, que, no caso, era o modo de produção capitalista da Inglaterra nos
meados do século XIX; modo cuja precondição fôra precisamente, a passagem compulsória do servo do
campo a assalariado” (BOSI, 1992, p.23).
“Em síntese apertada, pode-se dizer que a formação colonial no Brasil vinculou-se: economicamente, aos
interesses dos mercadores de escravos, de açúcar, de ouro; politicamente, ao absolutismo reinol e ao
mandanismo rural, que engendrou um estilo de convivência patriarcal e estamental entre os poderosos,
escravista ou dependente entre os subalternos” (BOSI, 1992, p.24).
“O colono incorpora, literalmente, os bens materiais e culturais do negro e do índio, pois lhe interessa e lhe
dá sumo gosto tomar para si a força do seu braço, o corpo de suas mulheres, as suas receitas
bem-sucedidas de plantar e cozer e, por extensão, os seus expedientes rústicos, logo indispensáveis, de
sobrevivência. Desfrute no nível da pele e apropriação daquelas técnicas do corpo, tão bem descritas por
Marcel Mauss, não instauram um regime propriamente recíproco de aculturação. O máximo que se poderia
afirmar é que o colonizador tirou para si bom proveito da sua relação com o índio e o negro” (BOSI, 1992,
p.28).
“Os elementos de cultura material apontados ad nauseam como exemplos do adaptação do colonizador ao
colonizado não devem ser chamados a provar mais do que podem. Ilustram o uso e o abuso do nativo e do
africano pelo português tanto no nível do sistema econômico global quanto nos hábitos enraizados na
corporeidade. Por que idealizar que aconteceu? Deve o estudioso brasileiro competir com outros povos
irmãos para saber quem foi melhor colonizado? Não me parece que o conhecimento justo do processo
avance por meio desse jogo inconsciente e muitas vezes ingênuo do comparações que necessariamente
favoreçam o nosso colonizador. Importaria perguntar se, para além das adaptações mais evidentes, não
teriam o culto e a cultura (a arte que de ambos se nutre) suprido, pela sua faculdade de dar sentido à vida,
tudo quanto a rotina deixa insatisfeito ou intocado” (BOSI, 1992, p.29).
“Recapitulando: duas retóricas correram paralelas, mas às vezes tangenciaram-se nas letras coloniais, a
retórica humanista-cristã e a dos intelectuais porta-vozes do sistema agromercantil. Se a primeira aproxima
cultura e culto, utopia e tradição, a segunda amarra firmemente a escrita à eficiência da máquina econômica
articulando cultura e colo. Postas em rígido confronto, a linguagem humanista e a linguagem dos interesses
acordam sentimentos de contradição; mas examinadas de perto, no desenho de cada contexto, deixam
entrever mais uma linha cruzada” (BOSI, 1992, p.37).