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BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

1 — COLÔNIA, CULTO E CULTURA


COLO-CULTUS-CULTURA
“As palavras cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus
e o particípio futuro é culturus” (BOSI, 1992, p.11).

Na língua de Roma, colo significou “eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trab alho, eu cultivo o
campo.” (...) Um herdeiro antigo de colo é incola, o habitante; outro é inquilinus, aquele que reside em terra
alheia. Quanto a agricola, já pertence a um segundo plano semântico vinculado à idéia de trabalho” (BOSI,
1992, p.11).

Colo — sistema verbal do presente, denota sempre alguma coisa de incompleto e transitivo.

“Colo é a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e
sujeitar” (BOSI, 1992, p.11).

Colonus é aquele que cultiva uma propriedade rural em vez de seu dono, que vem estabelecer-se em lugar
dos incolae.

“Não por acaso, sempre que se quer classificar os tipos de colonização, distinguem-se dois processos: o
que se atém ao simples povoamento, e o que conduz à exploração do solo. Colo está em ambos: eu moro;
eu cultivo” (BOSI, 1992, p.11).

O que diferencia, a rigor, o habitat e o cultivar do colonizar? “Em princípio, o deslocamento que os agentes
sociais fazem do seu mundo de vida para outro onde irão exercer a capacidade de lavrar ou fazer lavrar o solo
alheio. O incola que emigra torna-se colonus” (BOSI, 1992, p.12).

“O traço grosso da dominação é inerente às diversas formas de colonizar e, quase sempre, as


sobredetermina. Tomar conta de, sentido básico de colo, importa não só em cuidar, mas também em
mandar” (BOSI, 1992, p.12).

Espanha (1556): proibição oficial do uso das palavras conquista e conquistadores — descob rimento e
povoadores.

“Em ambos os exemplos, a colonização não pode ser tratada como uma simples corrente migratória: ela é a
resolução de carências e conflitos da matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio
sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo civilizatório”
(BOSI, 1992, p.13).

Passado — particípio cultus: “atribuía-se ao campo que já fôra arrorteado e plantado por gerações
sucessivas de lavradores. Cultus traz em si não só a ação sempre reproposta de colo, o cultivar através dos
séculos, mas principalmente a qualidade resultante desse trabalho e já incorporada à terra que se lavrou.
Quando os camponeses do Lácio chamavam culta às suas plantações, queriam dizer algo de cumulativo: o
ato em si de cultivar e o efeito de incontáveis tarefas, o que torna o particípio cultus, esse nome que é verbo,
uma forma significante mais densa e vivida do que a simples nomeação do labor presente. (...) Cultus é sinal
de que a sociedade que produziu seu alimento já tem memória” (BOSI, 1992, p.13).

Em cultus, -us: “substantivo, queria dizer não só o trato da terra como também o culto dos mortos, forma
primeira de religião como lembrança, chamamento ou esconjuro dos que já partiram” (BOSI, 1992, p.13).

(1) cultus enquanto “o que foi trabalhado sobre a terra; cultivado”.


(2) cultus enquanto “o que se trabalham sob a terra; culto; enterro dos mortos; ritual feito em honra dos
antepassados” (BOSI, 1992, p.15).

“A colonização é um projeto totalizante cujas forças motrizes poderão sempre buscar-se no nível do colo:
ocupar um novo chão, explorar seus bens, submeter os seus naturais. Mas os agentes desse processo não
são apenas suportes fisicos de operações econômicas; são também crentes que trouxeram nas arcas da
memória e da linguagem aqueles mortos que não devem morrer” (BOSI, 1992, p.15).

Futuro — particípio culturus, “o que se vai trabalhar, o que se quer cultivar” (BOSI, 1992, p.16).

“Cultura é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem transmitir às
novas gerações para garantir a reprodução de um estado do coexistência social. A educação é o momento
institucional marcado do processo” (BOSI, 1992, p.16).

Em culturus, -urus: “enforma a idéia do porvir ou de movimento em sua direção. Nas sociedades
densamente urbanizadas, cultura foi tomando também o sentido de condição da vida mais humana, digna de
almejar-se, termo final de um processo cujo valor estimado, mais ou menos conscientemente, por todas as
classes e grupos” (BOSI, 1992, p.16).

“Cultura supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos
para o futuro. Essa dimensão de projeto, implícita no mito de Prometeu, que arrebatou a fogo dos céus para
mudar o destino material dos homens, tende a crescer em épocas nas quais há classes ou estratos
capazes de esperanças e propostas como na Renascença florentina, nas Luzes dos Setecentos, ao longo
das revoluções científicas e técnicas ou no ciclo das revoluções socialistas. O vetor moderno do titanismo,
manifesto nas teorias de evolução social, prolonga as certezas dos ilustrados e prefere conceituar cultura em
oposição a natureza, gerando uma visão ergótica da História como progresso das técnicas e
desenvolvimento das forças produtivas. Cultura aproxima-se, então, de colo, enquanto trabalho, e
distancia-se às vezes polemicamente de cultus. O presente se torna mola, instrumento, potencialmente, de
futuro. Acentua-se a função produtividade que requer um domínio sistemático do homem sobre a matéria e
sobre outros homens. Aculturar um povo se traduziria, afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos,
adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrão tido como superior. Em certos regimes industrial-militares
essa relação se desnuda sem pudores. Produzir é controlar o trabalhador e o consumidor, eventualmente
cidadãos. Economia já é política em estado bruto. Saber é poder, na equação crua de Francis Bacon” (BOSI,
1992, p.15-16).

“Esse vetor da cultura como consciência de um presente minado por graves desequilíbrios é o momento que
preside à criação de alternativas para um futuro de algum modo novo. Em outro contexto ideológico Antonio
Gramsci propôs a crítica do senso comum e a consciência da historicidade da própria visão do mundo como
pré-requisitos de uma nova ordem cultural” (BOSI, 1992, p.17).

“A partir do século XVIII aproximam-se e, às vezes, fundem-se as noções do cultura e progresso” (BOSI, 1992,
p.17).

“A inteligência dos povos ex-coloniais tem motivos de sobra e experiência acumulada para desconfiar de
uma linguagem ostensivamente neo-ilustrada que se reproduz complacente em meio às mazelas e aos
escombros deixados por uma pseudomodernidade racional sem outro horizonte além dos próprios lucros”
(BOSI, 1992, p.18).

REFLEXO AMPLIADO E CONTRADIÇÃO NO PROCESSO COLONIZADOR


A ordem do cultivo, em primeiro lugar as migrações e o povoamento reforçam o princípio básico do domínio
sobre a natureza, peculiar a todas as sociedades humanas. Novas terras, novos bens abrem-se à cobiça
dos invasores. Reaviva-se o ímpeto predatório e mercantil que leva à aceleração econômica da matriz em
termos de uma acumulação de riqueza em geral rápida e grávida de conseqüências para o sistema de
trocas internacional. Pode-se calcular o que significou para a burguesia européia, em pleno mercantilismo, a
maciça exploração açucareira e mineira da América Latina. Se o aumento na circulação de mercadorias se
traduz em progresso, não resta dúvida de que a colonização do Novo Mundo atuou como um agente
modernizador da rede comercial européia durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Nesse contexto, a economia
colonial foi efeito e estímulo dos mercados metropolitanos na longa fase que medeia entre a agonia do
feudalismo o surto da Revolução Industrial” (BOSI, 1992, p.20).

“Marx via com lucidez que o processo colonizador não se esgota no seu efeito modernizante do eventual
propulsor do capitalismo mundial; quando estimulada, aciona ou reinventa regimes arcaicos de trabalho,
começando pelo extermínio ou a escravidão dos nativos nas áreas de maior interesse econômico. Quando é
aguçado o móvel da exploração a curto prazo, implantam-se nas regiões colonizáveis estilos violentos de
interação social. Estilos de que são exemplos, diversos entre si, a encomienda mexicana ou peruana, o
engenho do Nordeste brasileiro e das Antilhas, a hacienda platina. Sem entrar aqui na questão dos
conceitos qualificadores da economia colonial (feudal? semifeudal? capitalista?), não se pode negar o
caráter constante da coação e dependência estrita a que foram submetidos índios, negros, mestiços nas
várias formas produtivas das Américas portuguesa e espanhola. Para extrair os seus bens com mais
eficácia e segurança, o conquistador enrijou os mecanismos de exploração e de controle. A regressão das
táticas parece ter sido estrutural na estratégia da colonização, e a mistura de colono com agente mercantil
não é de molde a humanizar as relações de trabalho” (BOSI, 19992, p.20-21).

“A barbarização ecológica e populacional acompanhou as marchas colonizadoras entre nós, tanto na zona
canavieira quanto no sertão bandeirante; daí as queimadas, a morte ou a preação dos nativos. Diz Gilberto
Freyre, insuspeito no caso porque apologista da colonização portuguesa no Brasil e no mundo: ‘O açúcar
eliminou o índio’. Hoje poderíamos dizer: o gado expulsa o posseiro; a soja, o sitiante; a cana, a morador. O
projeto expansionista dos anos 70 e 80 foi e continua senda uma reatualização em nada menos cruenta do
que faram as incursões militares e econômicas dos tempos coloniais” (BOSI, 1992, p.22).

“A rigor, o termo anomalia aplicado por Marx ao regime dos latifúndios escravistas americanos, pressupõe a
vigência de uma (nomos), ou lei exemplar, que, no caso, era o modo de produção capitalista da Inglaterra nos
meados do século XIX; modo cuja precondição fôra precisamente, a passagem compulsória do servo do
campo a assalariado” (BOSI, 1992, p.23).

“Em síntese apertada, pode-se dizer que a formação colonial no Brasil vinculou-se: economicamente, aos
interesses dos mercadores de escravos, de açúcar, de ouro; politicamente, ao absolutismo reinol e ao
mandanismo rural, que engendrou um estilo de convivência patriarcal e estamental entre os poderosos,
escravista ou dependente entre os subalternos” (BOSI, 1992, p.24).

A DIALÉTICA DO CULTO E DA CULTURA NA CONDIÇÃO COLONIAL


“Na formação do sistema exigiram-se reciprocamente tráfico e senzala, monopólio e monocultura. No plano
internacional determinou-se o ciclo de fluxo e refluxo da mercancia colonizada na linha das flutuações do
mercado e sob o império da concorrência entre os Estados metropolitanos. Em suma, a reprodução do
sistema no Brasil e o seu nexo com as economias centrais cunharam a frente e o verso da mesma moeda”
(BOSI, 1992, p.26).

“O colono incorpora, literalmente, os bens materiais e culturais do negro e do índio, pois lhe interessa e lhe
dá sumo gosto tomar para si a força do seu braço, o corpo de suas mulheres, as suas receitas
bem-sucedidas de plantar e cozer e, por extensão, os seus expedientes rústicos, logo indispensáveis, de
sobrevivência. Desfrute no nível da pele e apropriação daquelas técnicas do corpo, tão bem descritas por
Marcel Mauss, não instauram um regime propriamente recíproco de aculturação. O máximo que se poderia
afirmar é que o colonizador tirou para si bom proveito da sua relação com o índio e o negro” (BOSI, 1992,
p.28).

“Os elementos de cultura material apontados ad nauseam como exemplos do adaptação do colonizador ao
colonizado não devem ser chamados a provar mais do que podem. Ilustram o uso e o abuso do nativo e do
africano pelo português tanto no nível do sistema econômico global quanto nos hábitos enraizados na
corporeidade. Por que idealizar que aconteceu? Deve o estudioso brasileiro competir com outros povos
irmãos para saber quem foi melhor colonizado? Não me parece que o conhecimento justo do processo
avance por meio desse jogo inconsciente e muitas vezes ingênuo do comparações que necessariamente
favoreçam o nosso colonizador. Importaria perguntar se, para além das adaptações mais evidentes, não
teriam o culto e a cultura (a arte que de ambos se nutre) suprido, pela sua faculdade de dar sentido à vida,
tudo quanto a rotina deixa insatisfeito ou intocado” (BOSI, 1992, p.29).

“Recapitulando: duas retóricas correram paralelas, mas às vezes tangenciaram-se nas letras coloniais, a
retórica humanista-cristã e a dos intelectuais porta-vozes do sistema agromercantil. Se a primeira aproxima
cultura e culto, utopia e tradição, a segunda amarra firmemente a escrita à eficiência da máquina econômica
articulando cultura e colo. Postas em rígido confronto, a linguagem humanista e a linguagem dos interesses
acordam sentimentos de contradição; mas examinadas de perto, no desenho de cada contexto, deixam
entrever mais uma linha cruzada” (BOSI, 1992, p.37).

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