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Tradução de Maryalua Meyer. São Paulo: Ubu, 2020. Edição do Kindle. Não paginado.
INTRODUÇÃO
“Minha disciplina de origem — a sociologia, ou melhor, a antropologia das ciências — encontra-se hoje
reforçada pela evidência amplamente compartilhada de que a antiga constituição, que repartia os poderes
entre ciência e política, tornou-se obsoleta. Como se tivéssemos justamente passado de um Antigo Regime
para um Novo Regime, marcado pela irrupção multiforme da questão dos climas e, o que é ainda mais
estranho, do liame desses climas com o governo” (LATOUR, 2020, n.p.).
“Gaia é apresentada aqui como a oportunidade para um retorno à Terra que permite uma versão diferenciada
das qualidades específicas que podem ser exigidas das ciências, das políticas e das religiões, todas por fim
reduzidas a definições mais modestas e mais terrestres que suas antigas vocações” (LATOUR, 2020, n.p.).
“Com efeito, na tradição ocidental, a maior parte das definições do humano enfatiza até que ponto ele se
distingue da natureza. Isso é o que se quer exprimir, mais frequentemente, com as noções de ‘cultura’, de
‘sociedade’ ou de ‘civilização’” (LATOUR, 2020, n.p.).
“A dificuldade reside na própria expressão ‘relação com o mundo’, que supõe dois tipos de domínio, o da
natureza e o da cultura, que são ao mesmo tempo distintos e impossíveis de separar por completo. Não
tente definir apenas a natureza, porque você terá que definir também o termo ‘cultura’ (o humano é o que
escapa à natureza: um pouco, muito, apaixonadamente); não tente definir apenas ‘cultura’, porque de
imediato terá que definir também ‘natureza’ (o humano é o que não pode ‘escapar totalmente’ das restrições
da natureza). O que significa que não estamos lidando com domínios, mas com um e o mesmo conceito
separado em duas partes que se encontram ligadas, por assim dizer, por um forte elástico” (LATOUR, 2020,
n.p.).
“O que foi inventado pela pintura ocidental é um par cujos memb ros são igualmente bizarros, para não dizer
exóticos, do qual não se encontram traços em nenhuma outra civilização: o objeto para esse sujeito; o sujeito
para esse objeto. Aí está, então, a prova de que existe um operador, uma operação, que separa objeto e
sujeito, exatamente como existe um conceito comum que distribui os respectivos papéis da Natureza/Cultura
ocupando a mesma posição que o ‘humano’ diante das categorias marcadas homem/mulher” (LATOUR,
2020, n.p.).
“Nesse sentido, a natureza não existe (como um domínio), mas apenas como a metade de um par definido
por um conceito único. É preciso, portanto, tomar a oposição Natureza/Cultura como o tópico de nossa
atenção, e não mais como o recurso que nos permitiria sair de nossas dificuldades” (LATOUR, 2020, n.p.).
“Estamos num momento em que a carga moral da noção de ‘natureza’ está revertida de modo tão patente
que o primeiro reflexo de toda tradição crítica consiste em combater a naturalização. Basta dizer que uma
posição foi ‘naturalizada’ para tirar disso a conclusão de que convém combatê-la, historicizá-la ou, ao menos,
contextualizá-la. Com efeito, a partir do momento em que se ‘naturaliza’ ou que se ‘essencializa’ um estado
de fato, torna-se quase inevitável o enunciado de um estado de direito. Tanto é assim que, na prática, tudo se
passa como se o senso comum tivesse feito a fusão entre os enunciados de facto e de jure” (LATOUR, 2020,
n.p.).
“Seria preciso que pudéssemos introduzir uma oposição — não mais entre natureza e cultura (já que é por
causa das suas vibrações incessantes que enlouquecemos), mas sim entre, de um lado, Natureza/Cultura
e, de outro, um termo que os incluiria como um caso particular. Proponho chamar esse conceito mais aberto
simplesmente de mundo ou de ‘fazer mundo’, definindo-o, de um modo sem dúvida muito especulativo,
como o que abre, de um lado, para a multiplicidade dos existentes e, de outro, para a multiplicidade dos
modos que eles têm de existir” (LATOUR, 2020, n.p.).
“É por essa razão que, em tudo o que se segue, vamos tentar descer da ‘natureza’ rumo à multiplicidade do
mundo, mas evitando, é claro, nos encontrar mais uma vez apenas na diversidade de culturas. Essa
operação retoma as duas questões canônicas: quais existentes foram escolhidos e quais formas de
existência foram preferidos?” (LATOUR, 2020, n.p.).
“Numa época em que os comentadores deploram a ‘falta de um espírito revolucionário’ e o ‘colapso dos
ideais emancipatórios’, como não se surpreender que os historiadores da natureza sejam os anunciadores
de que a revolução já ocorreu, sob o nome da Grande Aceleração cujo começo marca o Antropoceno, e que
os eventos que temos de enfrentar não estão situados no futuro, mas sim num passado recente?” (LATOUR,
2020, n.p.).
“Sobre a aceleração da história já se tinha ouvido falar; mas que essa história pode acelerar também a
história geológica é o que nos mergulha na estupefação” (LATOUR, 2020, n.p.).
“Porque, desde esta manhã, de novo a Terra treme: não porque se mexa e se mova sob re sua órb ita inquieta
e sáb ia, não porque mude, de suas placas profundas para seu envoltório de ar, mas sim porque ela se
transforma pelo nosso fazer. Para o direito antigo e para a ciência moderna, a natureza era uma referência
porque não havia sujeito em seu lugar: o ob jetivo, no sentido do direito, assim como no sentido científico,
emanava de um espaço sem homem, que não dependia de nós e do qual dependíamos de direito e de fato;
ora, de agora em diante, ele depende tanto de nós que ele se movimenta e nós nos inquietamos, tamb ém,
com esse afastamento em relação aos equilíb rios esperados. Inquietamos a Terra e a fazemos tremer!
Agora, de novo, ela tem um sujeito” (SERRES apud LATOUR, 2020, n.p.).
“Não, desta vez, assim como nos mitos pré-científicos e não modernos, encontramos um agente que tira seu
nome de ‘sujeito’ do fato de que pode ser assujeitado aos caprichos, ao mau humor, às emoções, às
reações e até à vingança de outro agente, que tira, ele também, sua qualidade de ‘sujeito’ do fato de estar
igualmente assujeitado à sua ação” (LATOUR, 2020, n.p.).
“Ser sujeito não significa agir de forma autônoma em relação a um quadro objetivo; em vez disso, significa
compartilhar a potência de agir com outros assuntos que também perderam sua autonomia” (LATOUR, 2020,
n.p.).
“Tão logo se chega perto dos seres não humanos, não detectamos neles a inércia que nos permitiria, em
contraste, nos assumir como agentes, mas, ao contrário, potências de agir que não são mais alheias ao que
somos e ao que fazemos. Inversamente, a Terra, por seu lado (porém, não há mais ‘lado’!), não é mais
‘objetiva’, no sentido de que não pode mais ser mantida à distância, considerada do ponto de vista de Sirius
e como que esvaziada de todos os seus humanos. A ação humana é visível em toda parte na construção do
conhecimento, assim como na geração dos fenômenos aos quais essas ciências são chamadas a atestar.
É impossível, a partir de agora, brincar de opor dialeticamente sujeitos e objetos. A mola que fazia andar
Kant, Hegel e Marx está completamente distendida: não há mais objeto suficiente para se opor aos
humanos, nem sujeito suficiente para se opor aos objetos. Tudo se passa como se, por trás da
fantasmagoria da dialética, a zona metamórfica se tornasse visível novamente. Como se, sob a ‘natureza’, o
mundo estivesse reaparecendo” (LATOUR, 2020, n.p.).