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da Natureza
MILTON SANTOS
A Natureza abstrata
Dentro do atual sistema da Natureza, o homem se afasta em defi-
nitivo da possibilidade de relações totalizantes com o seu próprio qui-
nhão do território. De que vale indagar qual a fração da Natureza que
cabe a cada indivíduo ou cada grupo, se o exercício da vida exige de todos
uma referência constante a um grande número de lugares? Ali mesmo,
onde moro, freqüentemente não sei onde estou. Minha consciência de-
pende de um fluxo multiforme de informações que me ultrapassam ou
não me atingem, de modo que me escapam as possibilidades hoje tão
numerosas e concretas de uso ou de ação. O que parece estar ao alcance
de minhas mãos é concreto, mas não para mim. O que me cabe são
apenas partes desconexas do todo, fatias opulentas ou migalhas. Como
me identifico, assim, com o meu entorno? Sem dúvida, pode-se imaginar
o indivíduo como um ser no mundo, mas pode-se pensar que há um
homem total em um mundo global?
A Natureza da mídia
A mediação interessada, tantas vezes interesseira, da mídia, con-
duz, não raro, à doutorização da linguagem, necessária para ampliar o
seu crédito, e à falsidade do discurso, destinado a ensombrecer o enten-
dimento. O discurso do meio ambiente é carregado dessas tintas, exa-
gerando certos aspectos em detrimento de outros, mas, sobretudo, mu-
tilando o conjunto.
O terrorismo da linguagem (H. Lefebvre, 1971, p. 56) leva a con-
traverdades mediáticas, conforme nos ensina B. Kayser (1992). Este
autor nos dá alguns exemplos, convidando-nos a duvidar do próprio
fundamento de certos discursos das mídias. Por exemplo, " Sobre o aque-
cimento da terra e o efeito-estufa. Pode-se estar certo de que, apesar do
contínuo crescimento do teor em CO2 da atmosfera desde os começos da
era industrial, o clima não conheceu aquecimento no século 20. As nor-
mais medidas entre 1951 e 1980, em relação às do período 1921-1950,
mostram, ao contrário, uma baixa (não significativa) de -0,3°. De qual-
quer modo, a evolução é muito lenta, e dezenas de anos são necessários
para que se registre uma mudança climática. O apocalipse anunciado —
fusão de glaciares, elevação do nível do mar, etc. — não é seguramente
para amanhã. Se é necessário lutar contra a poluição, a degradação do
meio ambiente, devemos fazê-lo com os olhos abertos, com base em
análises científicas e não nos limitando a gritar: ' está pegando fogo!' ".
Se antes a Natureza podia criar o medo, hoje é o medo que cria
uma Natureza mediática e falsa, uma parte da Natureza sendo apresen-
tada como se fosse o todo.
O que, em nosso tempo, seja talvez o traço mais dramático, é o
papel que passaram a obter, na vida quotidiana, o medo e a fantasia.
Sempre houve épocas de medo. Mas esta é uma época de medo perma-
nente e generalizado. A fantasia sempre povoou o espírito dos homens.
Mas agora, industrializada, ela invade todos os momentos e todos os
recantos da existência a serviço do mercado e do poder e constitui, jun-
tamente com o medo, um dado essencial de nosso modelo de vida.
O império universal do medo e o império universal da fantasia são
criações sobrepostas. Já Freud (1920) escrevia que "A criação do domí-
nio mental da fantasia tem reprodução na criação de ' reservas' e ' par-
ques naturais' em lugares onde as incursões da agricultura, do trânsito
ou da indústria ameaçam transformar... rapidamente a terra em alguma
coisa irreconhecível. A ' reserva' se destina a manter o velho estado de
coisas que foram lamentavelmente sacrificadas à necessidade em todos os
outros lugares; ali, tudo pode crescer e expandir-se à vontade, inclusive
o que é inútil e até o que é prejudicial. O domínio mental da fantasia é
também uma reserva assim recuperada das invasões do princípio da rea-
lidade" (Leo Marx, 1976, p. 12).
Quanto ao medo, lembra-nos Ramsey Clark que ele "já nos induz
a pensar mais na incolumidade do que na justiça" e Furio Colombo
(1973, p. 56) utiliza esse testemunho para explicar as violações da lei
cada vez mais freqüentes, no mundo, pelos próprios órgãos legais.
E a mídia o grande veículo desse processo ameaçador da integri-
dade dos homens. Virtualmente possível, pelo uso adequado de tantos e
tão sofisticados recursos técnicos, a percepção é mutilada, quando a mí-
dia julga necessário, através do sensacional e do medo, captar a atenção.
Muitos movimentos ecológicos, cevados pela mídia, destroem, mutilam
ou reprimem a Natureza...
Quando o meio ambiente, como Natureza-espetáculo, substitui a
Natureza histórica, lugar de trabalho de todos os homens, e quando a
Natureza cibernética ou sintética substitui a Natureza analítica do pas-
sado, o processo de ocultação do significado da história atinge o seu
auge. É, também, desse modo, que se estabelece uma dolorosa confusão
entre sistemas técnicos, Natureza, sociedade, cultura e moral.
Bradamos contra certos efeitos da exploração selvagem da Natu-
reza. Mas não falamos bastante da relação entre sua dominação tecnica-
mente fundada, as forças mundiais que insistem em manter o mesmo
modelo de vida e o fato já apontado, desde os anos 50, por G. Fried-
mann, de que a tecnicização está levando ao condicionamento anárquico
do homem moderno. A racionalização da existência, tão dependente das
relações atuais entre técnica e sociedade, é um dos seus pilares.
Ontem, a técnica era submetida. Hoje, conduzida pelos grandes
atores da economia e da política, é ela que submete. Onde está a Natu-
reza servil? Na verdade, é o homem que se torna escravizado, num mun-
do em que os dominadores não querem se dar conta de que suas ações
podem ter objetivos, mas não têm sentido. O imperativo da competitivi-
dade, uma carreira desatinada sem destino, é o apanágio dessa dissocia-
cão entre moralidade e ação que caracteriza a implantação em marcha da
chamada nova ordem mundial, onde os objetivos humanos e sociais ce-
dem a frente da cena, definitivamente, a preocupações secamente eco-
nômicas, com papel hoje onímodo da mercadoria, incluindo a merca-
doria política. Não só a Natureza é apresentada em frangalhos, mas tam-
bém a moral, e, na ausência de um sentido comum, já dizia o Marx da
Miséria da filosofia, " é fácil inventar causas místicas".
Não basta, porém, o criticismo, para exorcizar esses perigos que
nos rondam. Já em 1949, Georges Friedmann nos aconselhava a consi-
derar que esse meio técnico " é a realidade com a qual nos defrontamos"
e que, por isso, "é preciso estudá-la com todos os recursos do conheci-
mento e tentar dominá-la e humanizá-la".
Bibliografia
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Resumo
Com a presença do homem sobre a Terra, a natureza está, sempre, sendo redescoberta, com
a criação da natureza social. É a história de uma rutura progressiva entre o homem e o en-
torno, acelerada pela mecanização. Mediante a tecnociência, a natureza artificializada alcan-
ça seu estágio supremo, onde a natureza e o homem tornam-se reciprocramente hostis. Com
a globalização da economia, da política e da cultura, não há mais relações totalizantes entre
a sociedade e o meio. A natureza tecnicizada se impõe como algo abstrato, exigindo um
discurso.
A questão do meio ambiente é um aspecto dessa evolução e reclama um estudo abrangente,
para permitir uma correta interpretação. Para alcançar essa interpretação, a universidade
deve fugir dos raciocínios técnicos e conformistas e enfrentar o entendimento do mundo
como um todo.
Abstract
With man on Earth, Nature is being permanently rediscovered through the creation of social
nature. The progressive rupture between man and his surrounding is quickened by
mechanization. More recently, with globalization of economy, politics and culture, there are
no longer totalizing relations between society and environment. Through technoscience,
nature and man become reciprocally hostile. Tecnicized nature emerges as an abstraction
that demands a discourse.
Environmental problems are only an aspect of this evolution, and ask for a comprehensive
approach, in order to reach its correct interpretation. University must fly away from
technical and conformicist reasonning and face the understanding of the world as a whole.
MILTON SANTOS
In memoriam
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das possibilidades abertas a quem chega aqui e a quem sai daqui, a
pesquisa; e isso que as universidades descobriram, como se fosse alfa e
ômega, e que se eu tivesse algum poder eliminaria do nosso vocabulário:
essa palavra horrível, a extensão. Como se o trabalho acadêmico bem feito
não fosse algo posto naturalmente à disposição da sociedade.
Eu creio que há essas duas coisas, vamos trabalhá-las agora na
medida do possível. O que é essa extensão possível a partir da Geografia?
De um lado há o que se chamou e se chama menos hoje: Geografia
aplicada. A Geografia aplicada é algo que é criado nos anos 50 pelo prof.
Jean Tricart, meu mestre. É quem, usando esta expressão, propõe esta
palavra, Geografia Aplicada, o que causou certo frisson em seu país, a
França, já que a universidade buscava resguardar-se de todo contato com o
mercado e, até certo ponto, com os governos, de modo a preservar a
liberdade total de pensamento dos mestres, porque não há universidade
onde não há também liberdade total de pensamento e de expressão do
pensamento.
Eu me recordo da polêmica que se estabeleceu, então, tendo de um
lado meu mestre Jean Tricart e, de outro lado, aquele que se tornou o
mestre de todos nós, ainda que à distância, Pierre George. Ele dizia, e com
ele outros, que se toda boa Geografia será aplicável para que chamá-la de
Geografia aplicada? E Jean Tricart respondia: é que chamando a Geografia,
Geografia aplicada, nós chamamos atenção dos que não são geógrafos, dos
que estão nos gabinetes do poder, do poder público ou do poder privado,
para a existência de uma disciplina suscetível de ter um papel na produção
de um novo espaço e, quem sabe, na produção de uma nova sociedade.
Essa discussão que se tornou no momento azeda (desculpe, contar esse
fuxico aqui) [risos], foi amenizada pelas esposas dos dois, que intervieram
para evitar que a discussão azedasse mais ainda.
É um momento importante da história da Geografia, disciplina criada
nas faculdades de Letras e Filosofia com a vocação de descrever o mundo,
às vezes de maneira crítica, e relegada também na França a um papel
menor do que aquele que merecia, na medida em que o grosso da tropa se
dirigia à tarefa de ensino, que é central, mas não preenche todas as
possibilidades oferecidas pela nossa disciplina. Geografia aplicada.
Aplicada a quê? Aplicada ao espaço das entrâncias? Aplicada ao espaço
dos fluxos? Aplicada ao espaço banal? Espaço banal é o espaço de todos os
homens, é o espaço de todas as instituições, é o espaço de todas as
empresas.
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Geografia aplicada ao espaço das empresas – eu vi o discurso do
representante do Banco Real, estamos contentes em saber que o Banco
Real ajudou a montar esta reunião e oferece créditos a estudantes e
professores, mesmo os que não são de Juiz de Fora, o que significa que
amanhã pela manhã eu me apresentarei [risos] para atender ao gentil
convite do diretor do Banco. Na França os bancos empregam muitos
geógrafos, é comum que os bancos franceses empreguem geógrafos, é um
país capitalista. Por conseguinte é um país onde há uma concorrência que
se extremou com a competitividade pelo mercado. O mercado é sinônimo
de território, então a conquista do mercado significa o conhecimento do
território pelo Banco, pela empresa jornalística, pelo supermercado, pelo
shopping center, por outras grandes organizações que têm que conhecer
como o território é, para conquistar o território. Isto é, conquistar o
mercado.
E aí está o geógrafo sendo chamado, quer dizer que o Banco Real vai
criar emprego para os geógrafos. Só que o Brasil é um país que não
organiza os seus fluxos em benefício da competitividade. E aí passamos
para a questão dos espaços e dos fluxos a serem estudados pela Geografia,
através dessa Geografia aplicada, de tal maneira que as grandes empresas
não necessitam se preocupar com o território.
Quando eu falo território não estou falando na superfície nua do país,
eu estou me referindo a um território usado, isto é, o território com seus
homens dentro, tal como eles são, eis o território que interessa ao geógrafo.
Mas não o território que interessa apenas às grandes empresas, o território
que interessa a todas as empresas. A todas as instituições, a todas as
pessoas, indiferentemente do que elas são, as instituições, indiferentemente
do que elas são, as empresas, indiferentemente do que elas são, do seu
poder.
Esse território é o espaço banal, é o espaço do geógrafo. O geógrafo
se interessa pelo território habitado, vivido, trabalhado, sofrido por todos.
O geógrafo não escolhe as empresas, o geógrafo não escolhe as
instituições, sobretudo, o geógrafo não pode escolher as pessoas, todas
constituem juntas aquilo que faz do território um espaço. O território
utilizado de maneira comum, ainda que de forma diversa por todos.
Então, para voltar à questão que a gente havia colocado no começo.
Geografia aplicada, mas aplicada a quê? Aplicada às empresas apenas?
Aplicada aos fluxos? E nós sabemos que os fluxos são comandados e nós
sabemos que há uma diferença entre produzir e caminhar. Isto é, entre criar
as massas e criar o movimento, o movimento é criação do poder. E quando
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a gente fala em espaço de fluxo, a gente está ao mesmo tempo dizendo que
há instituições, empresas, pessoas que podem mover-se no território e
outras que não podem, mas nós geógrafos nos interessamos por todos.
Todas as empresas, todas as instituições, todas as pessoas, é isso que faz o
espaço banal, que é o espaço do geógrafo.
O espaço do geógrafo não é o espaço do economista. O espaço do
geógrafo não é o mesmo espaço das outras disciplinas humanas ou sociais.
O espaço do geógrafo se distingue, sobretudo, do espaço chamado social
exatamente porque há o território. O território que participa da sociedade
como um fator, ele não é sofrido pela sociedade, ele não é um pano de
funda da vida social, ele é um fator, um ator. Ele é um ator porque tem
gente, é isso que o marketing distingue de outras frações do território.
Uma outra possibilidade de uma Geografia fora da escola, além do
professor, é a Geografia do militante. Importante, sem dúvida, mas
igualmente insuficiente e frequentemente enganosa. A militância vista de
forma autônoma, ela pode conduzir a inverter a cadeia causal no processo
de produção do conhecimento, colocando o efeito antes da causa, porque
com frequência a militância aponta para soluções ou remédios mesmo
antes da análise. A militância, para ser adequada, deve ser posterior à
análise e não anterior à análise.
O grande risco da vida acadêmica hoje, da produção científica, é
exatamente este, o risco de o efeito ser dominante sobre a causa. E é isto
que corrompe, e no Brasil isto é claro, esta corrupção de uma boa parte do
trabalho das ciências exatas e das ciências naturais que, neste país, provém
do fato de que o efeito é quem comanda a pesquisa. O efeito buscado,
porque reduz a possibilidade de encontrar, de abraçar a verdade.
Evidente que eu não posso comparar a militância do ponto de vista
moral à entrega que fazem algumas disciplinas a um interesse exclusivo de
certas empresas, não é a mesma coisa do ponto de vista moral. Mas do
ponto de vista epistemológico, há uma certa familiaridade entre os dois
métodos. A força do intelectual, a força do pesquisador, é o seu total
descompromisso. A força do pesquisador é a sua total incapacidade de ser
preconceituoso. É a sua disponibilidade permanente para busca, sobretudo
nos momentos em que as mudanças são muito rápidas.
É muito fácil imaginar que aquilo que é passado ainda está presente,
e é somente através da análise feita sem nenhum preconceito, que nós nos
encontramos com o novo. Quem não se encontra com o novo, quem não
tem essa capacidade, esta força de esquecer, tampouco é capaz de produzir
um "corpus" científico suscetível de ter influência, inclusive política. Pois
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a política se faz cada vez mais de forma científica. Ela é feita de forma
científica a partir de formas simbólicas. Daí, nós vivemos uma democracia
que não chega a sê-lo, porque democracia de mercado é o que temos neste
país e na América Latina de uma maneira mais geral, e cujo fermento, é o
marketing. Então a maneira que as eleições são frequentemente momento
de consumo político, mas não de política. Ora, se nós fazemos esta crítica
devemos estendê-la a nossa própria atividade intelectual.
O maior perigo, neste caso, é confundir aquilo que o grande
antropólogo Marcel Mauss chamou de fato social total com a totalidade.
Não é trocar uma coisa pela outra. Mauss dizia: devemos trabalhar o fato
social total. E muitos geógrafos, durante a maior parte deste século,
escreveram isso, basta ler a literatura geográfica francesa, alemã,
americana, inglesa e brasileira nas pegadas dessas escolas projetam
frequente alusão ao fato social total.
O que é o fato social total? É, ver todos os aspectos de uma
determinada coisa, ver todos aspectos de uma determinada coisa, ver todos
aspectos de uma determinada área, ver todos os aspectos de um
determinado lugar. Vejamos todos esses aspectos, vejamos até mesmo
todas as relações locais, mas a coisa só se entende a partir da totalidade das
coisas. Nenhuma coisa tem significado sozinha. As coisas só têm
significado a partir da totalidade. Na realidade o que dá significado às
coisas é muito mais que a totalidade, é o movimento da totalidade.
Voltaremos a isso daqui a pouco.
Então, o que estou sugerindo, para que a Geografia possa enfrentar
as tarefas do presente e, sobretudo, do futuro, é discutir novamente aquela
ideia do [inaudível, provavelmente Pierre George], para quem havia muitas
Geografias, quer dizer, ele adjetivava as geografias. Então haveria uma
geografia do transporte, uma geografia da indústria, uma geografia não sei
mais do quê. O que é Geografia? Não vou dizer que não se façam essas
Geografias particulares, essas Geografias adjetivadas, essas Geografias
singulares, essas Geografias específicas. Mas, o que nós precisamos fazer é
a Geografia sem adjetivo, isto é, a Geografia.
O espaço banal é o que nos interessa, porque se eu tomo um aspecto,
transporte ou agricultura, estarei cometendo um erro parecido com aquele
de tomar um grupo de empresas, um grupo de pessoas, um grupo de
instituições. É evidente que o trabalho de análise é necessário, e que não
posso ver tudo, então eu divido o trabalho: você vai trabalhar a indústria,
você vai trabalhar o comércio, o outro trabalha os transportes, e nós
produziremos a Geografia. Mas temos que ter em mente esse tipo de
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preocupação, por que sem isso, nós não faremos outra coisa senão ensinar.
Porque ensinar é chegar diante de uma sala e dizer o que deu em nossa
cabeça, com mais ou menos preparo, evidentemente [risos].
Só que a Geografia, hoje, tem grandes dificuldades de crescer
porque o mundo não quer. Mas quem é que disse que esse mundo vai ser
assim todo tempo? Quem é que disse que a globalização tem que ser
perversa? No Brasil não nos deixam sequer pensar que há outra coisa, além
dessa globalização perversa. E o Brasil tem requinte de perversidade. Na
produção da globalização, cada dia a gente acorda com uma perversidade
maior, não sabemos se quem organiza a globalização no Brasil quer ser
cômico ou cínico. E como a coisa é dita com tanta ênfase, acaba-se por
acreditar que não há outros caminhos.
Mas há outros caminhos. Só que, onde o social se torna residual, que
é o caso do Brasil, o que interessa às pessoas neste país? Três séculos de
afirmação do homem, depois que o homem é descoberto com o
Iluminismo, se dá uma conquista lenta, gradual, que parecia segura, a da
civilização, a da cultura. De repente, o homem não é mais o centro do
mundo, o centro do mundo é o dinheiro, mas não o dinheiro como o capital
a ser aplicado para produzir trabalho, para produzir coisas, para desviar o
esforço do homem, mas o dinheiro em estado puro, tudo para o dinheiro
em estado puro – a tal ponto de aceitarmos a situação oposta, nada para o
homem.
Nesse clima, a Geografia não tem como prosperar, se nós nos
interessamos por todas as instituições, por todas as empresas e por todos os
homens. Não há lugar para a Geografia num país que decidiu que o homem
é residual. Mas o homem não é residual, nós nos enganamos, às vezes,
porque frequentamos a classe média e nos esquecemos que, entre os
pobres, há uma produção social e cultural de enorme riqueza. Nós não os
tratamos suficientemente nos bancos da universidade, porque os pobres são
tratados como as pessoas perigosas da nossa sociedade. E o tratamento da
pobreza é quase como o tratamento do perigo na produção do medo.
Quando na realidade os pobres nas cidades brasileiras, sobretudo, estão
produzindo uma nova cultura que não conhecemos. Esta cultura é
fundamental, pois está intimamente relacionada com o território urbano. E
não é apenas a produção de uma cultura, é também a produção de uma
economia, e é uma produção, ainda que fragmentária, de um eixo político
que a cidade oferece.
Num mundo que não deseja totalizações, a Geografia tem
dificuldades de se instalar, ela é certamente a única disciplina que não
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aceita tombar ao comando total do mercado. Mercado que é uma palavra
muito grande, porque os que fazem parte deste mercado, cada qual está
lutando por sua fatia. Por conseguinte, os que aparecem como fatores do
mercado global, cada um deles tem uma linha de comportamento própria
que oferece no mundo da competitividade. Por conseguinte, esses agentes
da globalização são exigentes de soluções intelectuais pulverizadas,
fragmentárias, lineares. O que escapa da ideia central de nossa disciplina,
que trata o espaço banal, espaço de todas as pessoas, empresas e
instituições.
Daí o círculo vicioso em que nos encontramos. Mas a Geografia só
tem o mercado da escola, então vamos trabalhar com a escola ou vou
trabalhar com SIGs ou vou trabalhar para uma ONG, ou vou empregar uma
parte do meu talento a uma campanha ecológica qualquer. Quando o
espaço que interessa é o espaço de todos os homens, o espaço
historicamente construído. Então, com as solicitações do CREA ou
CONFEA etc., estabelecemos currículos que são uma cópia do mercado.
Se aceitamos currículos que são cópia de mercado, o que queremos? Se
não nos subordinamos ao mercado, se o mercado é apenas do professorado,
o que vamos fazer de outra forma?
Sendo assim, dá a impressão de que não temos mais fé, de que não
acreditamos que mudanças são possíveis, e que a globalização perversa não
tem a possibilidade de mostrar outra cara, numa fase de desemprego
provocado, porque só as técnicas não produzem desemprego e sim a
política. A técnica não é responsável, como ouvimos e lemos nestas
explicações simplórias dadas pelo poder, de que a modernização, a
globalização, o progresso tecnológico, levam obrigatoriamente à queda do
emprego. Não é verdade. A técnica só tem existência histórica a partir da
política. É a política que decide: 1º) a técnica que escolho; 2º) a forma
como as combino e 3º) onde as combino.
Quem aqui é testemunha da maneira como se faz o ensino, sabe que
se poderia multiplicar por três o número de professores se o ensino fosse
feito de uma forma decente. Quem, aqui, conheceu a doença, sabe que os
hospitais, as casas de saúde poderiam empregar quatro vezes mais gente
porque os nossos doentes não são bem tratados. Então não é a tecnologia a
responsável pelo desemprego, mas a política. Isto se vê melhor através da
Geografia, à medida em que ela examina a história se fazendo, pois a
história não se faz sem o espaço, então a forma de tomar as técnicas,
historicizá-las, supõe o conhecimento e a maneira como o espaço se
organiza a cada momento.
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Mais uma vez, a Geografia poderia ser uma fiel ajudante da
elaboração de políticas, a começar pela política de emprego. Na Europa
capitalista de hoje, a busca praticamente inútil de produção de novos
empregos está se dando a partir do território. O ministro do Interior da
França, que é quem se preocupa com o território, declarou recentemente
que aumentar o número de empregos só será possível a partir de uma
política territorial adequada.
Vejam aqui uma outra possibilidade para a Geografia, quando se
decidir uma política de emprego neste país. Isto significa que é um engano
insistir no pragmatismo na elaboração dos programas de ensino. É uma
diminuição imaginar que estamos despreparados para as coisas mais altas.
Outro dia eu falava em termos parecidos a propósito de outro tema, para
uma jornalista, e ela, no fim da entrevista, disse: “E o senhor não tem medo
que digam que o senhor é utópico?” Porque eu vou ter medo em dizer que
sou utópico?
O que distingue o homem dos outros animais é o projeto, então
aquele que não é utópico é aquele que quer ser o objeto. Eu sei que tem
muita gente que quer ser objeto, e felizmente não estão nesta sala [risos]. O
velho Sartre, de quem me lembro sempre, dizia que cada um de nós pode
ser objeto para o outro, mas jamais objeto para si mesmo. E, é isso que
produz a cada momento um programa na consciência, é que nós sabemos
que, mesmo sendo objeto para os outros, não somos objetos para nós
próprios.
Então a Geografia se assemelha a uma filosofia, não há disciplina
que seja mais próxima à Filosofia que a Geografia, porque a Geografia
estuda o espaço banal, isto é, o espaço de todos. Por conseguinte ela tem
que ser uma disciplina abrangente. Não é aquilo que se dizia no início do
século: a Geografia como rainha das disciplinas, única capaz de fazer a
ligação entre ciências naturais e ciências humanas, vã glória boba! Estou
me referindo a uma Geografia modesta que propõe uma filosofia modesta,
mas capaz de ser atuante. Capaz de ajudar a entender e, por conseguinte, a
propor, isto é, uma disciplina com papel certo na produção da política.
A Geografia brasileira está bem colocada para este papel, não há
disciplina mais dinâmica no Brasil e não há Geografia mais dinâmica que a
brasileira. O Norte, escravo das escolas, dos preconceitos, opondo conceito
sobre conceito, só excepcionalmente produz uma Geografia exemplar,
como casos da Geografia anglo-saxônica2. Basta ver as principais revistas
2
Esta última frase foi de difícil compreensão na transcrição.
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norte-americanas que notamos uma grande quantidade de temas de extrema
relevância mas, frequentemente, também, sem relevância. Dissertações
frequentemente vazias sobre filosofias de que não se entende, amarrações a
temas durante longos e longos anos sem que isso desemboque sobre um
entendimento das coisas e um progresso da disciplina.
A Geografia brasileira parte da realidade nacional, ela é inspirada nas
fontes da sociedade. A Geografia brasileira tem a vantagem de que o Brasil
tem o maior público de Geografia no Ocidente, não há país que tenha o
público que nós temos, somos 200 departamentos de Geografia e há 17
milhões de pessoas que, no Brasil, são obrigadas a estudar Geografia. Isso
não existe em nenhum outro país, isso significa que temos no Brasil, de um
lado, uma vocação a uma Geografia que nasce do debate, que se impõe a
partir da própria sociedade, sem escravizações de escolas e, por outro lado,
temos a nossa crítica para realizar essa Geografia.
É evidente que os autores de livros didáticos são, de uma maneira
geral, copiadores dos que pensam e se esforçam para criar uma Geografia.
Não importa que sejamos plagiados quotidianamente por esses autores de
livros didáticos, que têm tiragem milionária, e que, de uma forma ou de
outra, levam a esses 17 milhões de brasileiros, através da pressão que é
feita hoje, por entidades que vocês organizam, uma Geografia que sem
dúvida tem uma grande qualidade e que mantém nestes últimos 25 anos,
um debate extraordinário.
Por conseguinte, nós não podemos nos queixar da sorte. Acabamos
por entender que a produção dita utópica é essa que tem futuro, num
mundo que não pode fazer nada que não seja a partir das ideias. Esses 25
anos de história recente da Geografia brasileira mostram o triunfo de
algumas ideias levantadas por um punhado de geógrafos que, com enorme
dificuldade, sem organização, sem meios, acabou por se impor à Geografia
brasileira, inclusive com aqueles que não estão a favor, que não estão a
favor dessas ideias.
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MODO DE PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTíFICO
E DIFERENCIAÇÃO ESPACIAL
MILTON SANTOS *
lário da Geografia. Como juntar esses dois termos ambíguos numa tentativa
de interpretação geográfica do mundo atual?
Da mesma lo rma que OIivier BUC HES ENSCH UTZ (1987) lamenta que
os arqueólogos raramente se preocupem com os problemas tecnológicos (Ieia-
se processos técnicos) dos traços materiais deixados pelas atividades huma-
nas, não abordando de frente ess as questões, Françoi s SIGA UD (1981 ), tam-
bém se interroga a respeito da razão pela qual "os geógrafos evitam tão siste-
maticamente o estudo das técnicas, que estão no centro das relações socie-
dade-meio". Dir-se-á que há alguma injustiça nessa crítica, aliás reiterada em
1991 (SIGAUD, 1991), já que o tema das técnicas aparece em autores como
SORRE (1950), GOUROU (1973), GEORGE (1974), WAGNER (1974), FEL
(1978), J. E. SANCHEZ (1991) e outros. Mas é raro que o fenômeno técnico
haja merecido um esforço de generalização, uma preocupação sistemática
de tratá-lo como um dado explicativo capaz de servir à elaboração de uma
teoria ou epistemologia da geografia. A tão buscada filosofia das técnicas
muito teria a ganhar. E a reconstrução da teoria social receberia uma nova
versão.
A própria idéia de meio geográfico é inseparável da noção de sistema
técnico. Podemos admitir que a história do meio geográfico pode ser grossei-
ramente dividida em três etapas: o meio natural, o meio técnico, o meio técni-
co-c ientífico- informaciona I.
Quando tudo era meio natural, o homem escolhia da natureza aquelas
suas partes ou aspectos considerados fundamentais ao exercício da vida,
valorizando, diferentemente, segundo os lugares e as culturas, essas condi-
ções naturais que constituíam a base material da existência do grupo.
Desde o final do século XVIII vemos começar a mecanização do territó-
rio: o espaço se adensa com a presença das técnicas da máquina. Podemos
dizer, junto com SORRE (1948) e André SIEGFRIED (1955), que esse é o
momento da criação de um meio técnico, que se superpõe, em muitos luga-
res, ao meio natural, buscando substituí-lo. Já hoje não é mais de meio técni-
co que se trata, quando nos referimos às manifestações geográficas decor-
rentes dos novos progressos. Estamos diante da produção de algo novo, a
que estamos chamando de meio técnico-científico-informacional.
Da mesma forma como participam da criação de novos processos
vitais e da produção de novas espécies (animais e vegetais), a ciência e a
tecnologia, junto com a informação, estão na própria base da produção. da
utilização e do funcionamento do espaço e tendem a constituir o seu
substrato.
Cri a-se um verdadei ro tecn ocosm o (P RAD ES, 1992: 177), uma situ a-
ção em que a natureza natural tende a recuar, às vezes brutalmente. Segun-
do GELLNER (1989), "a natureza deixou de ser uma parte significativa do
nosso meio ambiente". A idéia de um meio artificial, avançada por LABRIOLA
em 1896 (em seu estudo intitulado Del materialismo stórico) faz-se uma evi-
dência. A técnica, produzindo um espaço cada vez mais denso, no dizer de
Modo de produção técnico-científico e diferenciação espacial 11
zam de todos os territórios. Mas o espaço reticular é o de sua eleição. Eis por
que os territórios nacionais se transformam num espaço nacional da econo-
mia internacional e os sistemas de engenharia mais modernos criados em
cada país são mais bem utilizados por firmas transnacionais que pela própria
sociedade nacional.
Daí a freqüente menção a um espaço sem fronteiras (J. ELLUL, 1967:
17; Y. MASUDA, 1962: 90), e a um "capitalismo sem fronteiras" (P.
CICCOLELLA, 1993), em que as empresas multinacionais "curto-circuitam"
os Estados (R. PETRELLA, 1989) e são os negócios e não os governos que
governam. Acreditar, todavia, que o Estado se tornou desnecessário é um
equívoco. A emergência de organizações e firmas multinacionais realça o
papel do Estado, tornado mais indispensável do que antes (A. GIDDENS,
1964: 135; H. SILVER, 1992; G. BOISMENU, 1993: 13; GROUPE de
LlSBONNE, 1994).
Nessa mesma corrente pós-modernista se inclui também a negação da
idéia de região. É fato que o fenômeno mudou fundamentalmente de signifi-
cado, mas não se pode declarar que ele deixou de existir.
Na definição atual das regiôes, longe estamos daquela solidariedade
orgânica que fora o próprio cerne da definição do fenômeno regional. O que
temos hoje diante de nós são solidariedades organizacionais. As regiões exis-
tem porque sobre elas se impõem arranjos organizacionais, criadores de uma
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Manifesto
Milton Santos=
. Colaboradores: Adriana Bernardes, Adriano Zerbini, Cilene Gomes, Edison Bicudo, Eliza
Almeida, Fabio Betioli Contei, Flávia Grimm, Gustavo Nobre, Lídia Antongiovanni, Maíra
Bueno Pinheiro, Marcos Xavier, María Laura Silveira, Marina Montenegro, Marisa Ferreira
da Rocha, Mónica Arroyo, Paula Borin, Soraia Ramos, Vanir de Lima Belo
3 4
7 8
Milton SANTOS2
Quando de sua primeira fundação oficial no fim do solidamente estabelecida, fundada, a um tempo, nos fatos
século XIX, a Geografia não pode tirar completamente as e na contribuição cada vez mais ampla de ciências que
conseqüências de nenhum dos fundamentos filosóficos então se renovavam ou criavam. Foi desse modo que as
que buscava: guardou uma retórica guardada para o condições se mostraram maduras para que a corrente já
homem, mas foi jogada, com os pés e mãos atados, a nascida utilitária, metamorfoseando antigas posições em
serviço de todo tipo de poder. A recém-criada Geografia novos aspectos e múltiplos disfarces, e ajudada pelas
Colonial, a idéia de região imbricada a gênero de vida, as novas exigências de realização da economia, terminasse
diversas modalidades de culturalismo, eram o lado prevalecendo.
instrumental que, na prática, faziam desaparecer a Conforme já o escrevemos alhures,3 a Geografia
possibilidade de realmente se alcançarem os proclamados acabou por se tornar a viúva do espaço, indiferente à sorte
princípios da atividade e da unidade da terra, assim como do homem. O que preocupa essa Geografia é o homem
outros postulados. médio e não o homem verdadeiro, e a sociedade
Como em toda fase de crise, como foi aquela em considerada como criadora de espaços é a sociedade
que a Geografia oficial se fundou, nem todos rezavam “global” e não a sociedade tal como ela é, dividida em
pela mesma cartilha, havendo os que propugnavam uma classes. Tal ponto de partida constitui, o essencial das
ciência mais engajada com a construção de um futuro preocupações e da pesquisa geográfica, e termina
melhor para o homem, onde ele estivesse. Mas a corrente aparecendo como se fosse o seu objeto, graças aos
instrumentalista ganhou, ainda que alguns propusessem recursos postos à disposição dos que, conscientemente
um discurso humanista e até, possivelmente, nele acredi- ou não, preferem tais idéias.
tassem. Felizmente, há os que se rebelam contra tal
Com as duas guerras e sobretudo após a segunda maneira de interpretar a face da terra a sua transformação
grande guerra, a mesma busca de renovação e o mesmo pelo trabalho dos homens. Há mais de dez anos, na
divórcio fundamental entre posições: de um lado, as Europa como na América Latina, nos Estados Unidos e
preocupações sociais, de outro os mandamentos do no Canadá como na Austrália, firmam-se relações em
utilitarismo. A primeira corrente deixou como herança uma múltiplas direções, revestindo uma direcionalidade maior
certa preocupação com o bem comum, mas faltava, em ou menor, mostrando sinceridade maior ou menor, num
bom número de casos, a elaboração de uma teoria movimento semelhante àquele que, sob a impulsão de
1
Artigo originalmente publicado no Boletim Paulista de Geografia, n. 59, p. 5-22, 1982. Agradecemos ao estagiário Luciano Félix da
Silva pelo trabalho de digitação do original.
2
Professor Adjunto Doutor do Depto. Geografia UFPR.
3
Tratamos amplamente desse assunto em nosso livro Por uma Geografia Nova, São Paulo: Hucitec, 1982.
Pierre George e Jean Dresch, se esboçara dentro das e dependentes em causas endógenas, mais culturais que
fronteiras da França após a Segunda Guerra Mundial e econômicas.
ainda agora produz os seus frutos. Pode-se dizer que as dificuldades com as quais
No âmbito internacional, a Geografia está hoje, se defronta o sistema capitalista no momento atual
novamente, marcada por uma oposição de tendências.4 exigem que a nova moralidade dos negócios, a ética das
De um lado, os que não desejam que a História se faça grandes empresas transnacionais, também encontre sua
em favor dos povos dependentes e das classes oprimidas. expressão nas ciências sociais. Estas são chamadas a
Do outro, os que pugnam por uma nova ordem social- dar sua contribuição à elaboração da nova ordem, através
mente mais justa. da codificação de novas regras de intercâmbio entre
Entre os primeiros, surgem novas formas de países, firmas e pessoas, em detrimento da moral
apresentação de velhas posições, tanto mais perigosas tradicional que o próprio capitalismo se havia imposto
quanto mais bem revestidas, mas há, também, uma em sua fase liberal. Trata-se, na verdade, da justificação
busca de parecer outra coisa, um mimetismo cuja do egoísmo em todas as escalas, desde a das relações
identificação nem sempre é fácil. A reencadernação da internacionais à das relações interpessoais. O
Geografia Cultural, o neodarwinismo redivivo sob a capa amoralismo ao qual as ciências do homem são convidadas
de sociobiologia e um humanismo de fachada, onde se parece indispensável para atribuir uma roupagem de idéias
incluem postulações fenomenológicas “sui-generis”. a um capitalismo tornado cada vez mais autoritário,
carapaça pseudocientífica indispensável a manter ao preço
da violência, se necessário, a dominação sobre os
NEOCULTURALISMO, NEODARWINISMO, recursos que constituem a base material do sistema,
SOCIOBIOLOGIA cada dia mais estreita.
É nessa mesma ordem de idéias que se busca
A Geografia Cultural de Sauer e de Gorou está reviver o neodarwinismo, através da sua renovação e
sendo novamente promovida como um enfoque incorporação às diversas ciências sociais.
fundamental à compreensão do espaço.5 Há cerca de 40 Uma certa Geografia já se havia apropriado no
anos, esse método conduzia a esconder as variáveis cuja passado da corruptela do darwinismo, a que Appleman
dimensão ultrapassava aquelas da área estudada6 e preferiu apelidar de “darwinisticismo”. Daí a observação
atribuía à cultura particular a uma sociedade um papel de Dickinson (1969, p. 189) ao escrever que o realmente
que, de fato, deveria ser buscado no âmbito de uma significativo desenvolvimento do conhecimento humano,
economia mais geral cujo funcionamento, sobretudo nos em sua relevância quanto ao desenvolvimento da geografia
países dependentes ou colonizadores (não se falava ainda moderna, deu-se no terceiro quartel do século XIX, com o
em subdesenvolvimento), pode ser explicado sem uma impacto do pensamento evolucionista de Darwin (após
vontade de ir procurar e localizar interesses distantes, 1859).7
os interesses das grandes potências, ao mesmo tempo Não deve causar espanto que, numa fase de crise
que as coisas internas. histórica aguda, um novo apelo seja feito às idéias de
Nos tempos atuais, os equívocos que o enfoque Darwin, como apoio à justificação do uso do poder dos
cultural suscitava se tornam mais numerosos e mais mais fortes sobre os mais fracos.
evidentes, devido à internacionalização da economia. A crise de nossos dias é feita também de
Regressar a esse método de interpretação da realidade confrontações numerosas entre detentores de matérias-
equivale a querer eliminar os efeitos perversos de uma primas e seus potenciais usuários, de fornecedores de
dependência econômica aumentada e a impor, como se trabalho e emprestadores de capital. Como os que
fosse legítima, uma interpretação segundo a qual deve- dominam a cena não desejam abandonar essa arena
se buscar explição para as dificuldades de países pobres privilegiada − embora cada vez mais contestada −, a
4
Um estudo fundamental das tendências recentes da Geografia é o de GILLES SAUTTER (1975), que constitui uma tentativa bem
sucedida de apresentar de modo objetivo − e também crítico − as diversas tendências filosóficas atuais e o modo como se apresentam na
prática geográfica em diversos países.
5
A propósito da renovação do enfoque culturalista ver, entre outros, NEWSON, Linda, Cultural Evolution: a basic concept for human
and historical geography, Journal of Historical Geography, n. 2, p. 239-255, 1976.
6
“O desenvolvimento da Geografia Cultural utilizou-se da reconstrução, em uma área, de culturas sucessivas, começando pela
mais antiga até chegar à mais recente de todas” (SAVER, 1962, p. 33).
7
Sobre esse tema consultar, por exemplo, Stoddart, D. P. Darwin’s Impact on Geography. Annals, Association of American Geographers,
v. 56, 1966, p. 683-689.
solução é o uso da violência, ainda que apresentada sob para sugerir as relações entre fenomenologia e Geografia,
novos modelos de sofisticação. A universidade teria que antes de publicar sua tese em 1973. Seu livro Place and
ser chamada a dar forma a novas justificações e, entre Placelesness (1980) é um grande esforço na mesma
as formas renovadas do darwinismo social, criou-se direção. Aliás, Yi-Fu Tuan havia, também, escrito nos
mesmo uma nova disciplina, cuja rápida expansão vai, Annals of the American Association of Geographers um
talvez, buscar sua explicação em sua utilidade. Referimo- artigo em sentido idêntico.
nos à Sociobiologia, que fornece também à Geografia Buttimer redigirá, em 1974 o seu belo ensaio sobre
um novo embasamento.8 Values in Geography, e, a pretexto de uma leitura dos
É, aliás, à mesma inspiração que se deve o esforço filósofos existencialistas, proporá, em 1976, em esboço de
de valorização da linguagem como forma de interpretação uma fenomenologia do espaço. Outros geógrafos, sobretudo
dos fatos correntes. Trata-se menos da linguagem como nos Estados Unidos, ocuparam-se de fenomenologia, como
expressão da sociedade e cuja construção se assemelha Walmsley (1974), Mercer e Powell (1972) e Billinge (1977)
à do espaço humano, e mais da linguagem chamada ou do humanismo, tais como Guelke (1974) e Entrikin (1976).
“ordinária”, resultado de um discurso da moda, hoje Mas outros esforços foram nessa mesma linha e, se não
imposto facilmente às populações, como mediação podemos citar todos eles, seria injusto esquecer o trabalho
perversa tomada indispensável entre a cultura profunda e pioneiro de Lowenthal (1961).
a cultura de massa. A “manipulação da linguagem” Todos esses estudos revelam diversas modalidades
sugerida por um geógrafo americano, constitui, de interesse pelo homem, na sua qualidade de
certamente, um novo disfarce para o neopositivismo, indivíduo,11 mas raramente concluem por fazer proposições
doutrina já surrada em nossa disciplina (SYMANSKI, concretas e viáveis em vista de uma mudança social que
1976).9 possa assegurar a chegada de uma nova situação. Pode-
Mas, o prato de resistência de Symanski é o seu se dizer que, em sua maioria, eles não ultrapassam o
estudo intitulado, em associação com Burley, Geography plano dos votos piedosos; ou que seu interesse humano é
and Natural Selection Revisited, uma espécie de apelo apenas literário. Também se poderia criticá-los pela falta
ao passado, como o título explicita.10 Para envolver-se de coerência filosófica que a abundância e o amontoado
com a moda da Sociobiologia, ele toma como ponto de de citações só faz tornar mais clara. Trata-se de um
partida um adepto fervoroso do chamado determinismo humanismo sem o homem verdadeiro e total, de uma
geográfico: Huntington (1924). moralidade sem conseqüência política. O discurso
A aplicação da Sociobiologia equivaleria à utilização epistemológico correspondente é freqüentemente confuso
de uma espécie de neodarwinismo moderno em e a escolha das bases filosóficas de discussão é parcial.
Geografia. Aos países e às regiões seria aplicado o Ensaios mais bem construídos, como os de Buttimer,
princípio da seleção natural, que acaba por consagrar os poderiam tirar mais partido do enfoque fenomenológico para
mais fortes e destruir os mais fracos, como resultado de mostrar como “o dinamismo do mundo vivo” depende de
uma lei inevitável que encontra similitude no próprio um processo que vai, incessantemente, da sociedade ao
comportamento da natureza. Tal lei da floresta aplicada espaço e vice-versa. Mas, o encasulamento nas idéias de
à Geografia mostra-se útil à explicação tanto das Heidegger acarreta uma concepção individualista e idealista,
diferenças também em outras frentes, como através do cujo resultado mais claro é o de substituir a praxis coletiva
humanismo e da fenomenologia. por uma praxis individual, suprimindo, assim, a possibi-
Entre os que pregam uma Geografia “humanística”, lidade de captar o movimento da sociedade e do espaço
a começar pela obra pioneira de Yi-Fu Tuan (1965, 1971, como dois dados contraditórios e, ao mesmo tempo,
1974) estão praticamente os mesmos que sugerem a complementares.
introdução de um enfoque fenomenológico em Geografia Aquilo que se chama a prática individual não pode
(e vice-versa). Edward Relph produzia, em 1970, um artigo ser confundido com a prática coletiva, ou melhor, com a
8
Sobre esta questão ver vários autores citados nas referências.
9
SYMANSKY, Richard The manipulation of ordinary language. Annals, Association of American Geographers, 1976, n. 4, v. 66, p.
605-614.
10
Esse longo trabalho de Richard Symansky e Nancy Burley foi publicado nas Discussion Paper Series n. 25, da Universidade de
Siracuso. O debate foi retomado aos cuidados de David J. Robinson, que reuniu trabalhos de nada menos que oito colegas, sob o título
Comments on Geography and Natural Selection, publicado na mesma coleção de 1977, sob o número 26.
11
... “o enfoque humanista jamais será realmente popular. A razão não vem apenas do fato de que ele parecerá muitíssimo menos
eficiente do que a manipulação direta do meio físico. Uma razão mais forte é que poucas pessoas se preocupam profundamente em si
mesmas com o seu próprio ser. O conhecimento de si mesmo, que é a mais alta recompensa da aventura humana, foi sempre coisa suspeita
na cultura ocidental” (YI-FU TUAN, 1976, p. 275/6).
prática social. O que se chama de prática individual são Podemos acrescentar que, dessa maneira, não
os comportamentos dos indivíduos na vida corrente, apenas o passo definitivo não foi dado para a ingente
conjunto de atitudes e de gestos com os quais cada tarefa de filosofar em nossa disciplina, isto é, para a
homem se insere na vida de sua própria coletividade como expansão de uma filosofia do espaço concreto que se
produto e como cidadão. Desse tipo de prática, diz-se beneficiasse da contribuição daquilo que Moscovici (1977)
freqüentemente que ela comporta uma parcela importante chamou de história humana da natureza.12
de escolha pessoal, de indeterminação e do que se Falta-nos, na verdade, essa necessária articulação
chama sorte. entre o pensamento filosófico e o nosso objeto de
A prática social é, na verdade, coisa diferente. Ela conhecimento, o chamado espaço geográfico.
é um resultado direto das necessidades sociais, num Mais de uma vez, geógrafos têm falhado no seu
lugar dado e num momento dado e, dessa maneira, ela desejo de transportar para a Geografia noções apresen-
se impõe a todos os que participam da coletividade, seja tadas ou maduramente adquiridas no convívio dos livros
qual for sua categoria, nos mencionados lugar e momento: de filósofos. Usando mal essas muletas, é pouco
por isso, ela é exterior aos indivíduos e se sobrepõe a freqüente que consigam fazer avançar a nossa disciplina
todos e a cada qual como necessária, isto é, como uma neste ou naquele ponto.
necessidade. A questão não é simples. A filosofia na Geografia
É à prática social que se deve reservar a fórmula supõe, para sua eficácia, uma filosofia da Geografia. Em
simplificada de prática ou praxis. Sem isto, tornar-se-ia outras palavras, é preciso pensar a nossa disciplina
impossível apreender e materializar o próprio objeto da dentro, e não fora. Sem esse pensamento de dentro, o
atividade do conhecimento. Se levarmos em conta as que se obtém é, apenas, um fraseado elegante,
praxis individuais ou, melhor dito, as correspondentes a paramentado com citações bem arrumadas, mas só. Um
cada indivíduo, encontraríamos uma multiplicidade de grande número de artigos e mesmo de livros recentemente
objetos de referência. Desse modo, a realidade, o objeto publicados nos Estados Unidos corresponde ao modelo
real, pareceria pulverizado, dividido em tantos objetos acima desenhado.
particulares quantas são as pessoas a quem sua Qual a razão de um resultado tão reles? A razão
realidade concerne. Em outras palavras, o objeto em si está no simples fato de que, quando se trata de um ramo
perderia sua realidade e, então, nenhum conhecimento particular do conhecimento, a filosofia particular respectiva
dele como o que ele é, seria possível. só se pode fazer ao redor de um objeto compatível e
O que, na verdade, ocorre é que a prática, a praxis, previamente preciso. Em nosso caso, por exemplo, sem
é, antes do mais, uma realidade estrutural, estruturada e isso não há como começar, nem como terminar, assim
estruturante ao mesmo tempo; assim ela depende como a teoria da Geografia – se queremos ter uma – é a
estreitamente da totalidade social e não o contrário. Os teoria do espaço do homem, uma filosofia da Geografia,
comportamentos dos indivíduos, isto é, as praxis se for admitido utilizar essa palavra, será uma filosofia do
individuais, são subordinados, estruturados pela praxis espaço do homem. Isto supõe que dois termos se ponham
social. A liberdade que é freqüentemente reconhecida como princípio e fim do raciocínio: a natureza e a
aos agentes não é outra coisa senão sua participação produção. Assim, conhecemos o espaço tal qual ele é,
nas praxis coletivas, por intermédio de uma escolha soma de coisas “naturais” e de coisas “fabricadas” e
limitada de opções já incluídas na própria estrutura. síntese dialética dessas duas séries de coisas, movida
Smith (1979) sugeriu que, através da popularidade pela própria produção, isto é, pelo homem e sua história.
alcançada pela fenomenologia, a porta ficava aberta para Fora daí, do que podemos falar? Como transferir
uma renovação do positivismo geográfico, apresentado categorias universais e −, portanto − fixas e gerais para a
sob novas cores. interpretação do que tem vida graças ao fato de reproduzir,
12
“Para irmos além do empirismo e das debilidades do pragmatismo, é necessária uma discussão mais explícita da filosofia e da
sociedade. É necessário reformular o quadro conceitual e a filosofia social da Geografia. Geografia é menos interessante do que poderia
ser, em parte porque sua filosofia é geralmente implícita e conservadora e, na verdade, sua “filosofia” freqüentemente é pouco mais que
“metodologia”. Isso tem contribuído para a síndrome do “vagão banda de música”. Em vez de analisar suas insatisfações, alguns geógrafos
se tornam “beachcombers wading in the shallows of theyr disciplines” (por exemplo, a biologia). Isto também implica em que alguns tópicos
(por exemplo, a pobreza) são necessariamente mais fecundos que outros (como a indústria). Mas o que se necessita não é “a topical
veneer, or guiltridden introspection” acerca dos valores pessoais. Uma análise científica adequada dos “desprivilegiados” e a produção
como distribuição da riqueza. Deveria, igualmente, incluir a respectiva produção de ideologias. Isso exige um “rekinalling of geography’s
holistic and historical hadition” (como exemplificado na escola escocesa, com H. J. Fleure) e reintegrando-a com os ganhos obtidos com as
“revoluções” quantitativa e comportamental, das quais até certo ponto foi a vítima” (ANDERSON, 1973, p. 5).
13
“...Não é a primazia dos motivos econômicos na explicação histórica que constitui a diferença decisiva entre o marxismo e o
pensamento burguês, mas o ponto de vista da totalidade” George LUKACKS (1968).
históricas, a nova significação das categorias marxistas particular, o ensinamento de Sartre é um bem mais
de análise, o que deveria levar à incorporação no instrutivo. Quando, através, e apesar da prática imposta
desenvolvimento teórico (se não nos exemplos concretos) pela sociedade, o indivíduo é capaz de superar-se, ele
de autores pós-marxistas. Isso não apenas ajudaria a entrevê novos caminhos para ele próprio e para a sociedade.
interpretação das realidades atuais, como reduziria o risco Sabemos das restrições que se fazem, entre
de dogmatismo. muitos marxistas, ao enfoque fenomenológico15 e às
posições existencialistas,16 o primeiro sendo apontado
como herético e o segundo como sendo revisionista. Mas
EXISTENCIALISMO E PRÁTICA MARXISTA a questão do fenômeno, definido como um aspecto do
real, somente encontra solução na busca do todo, de
Entre os grandes problemas da prática marxista onde vêm suas determinações. A decifração do fenômeno
continuam a estar a questão do encontro fecundo entre o tem de passar por uma metodologia capaz de, na prática,
teórico e o empírico e da redescoberta pelo indivíduo do realizar uma importante premissa marxista: a da união
seu próprio futuro, nas dobras do movimento social. Na dos métodos de dedução e de indução mediante o
medida em que a internacionalização da economia deu à caminho que leva do fato (como forma e como evento) ao
ciência geográfica, como teoria locacional da sociedade e conceito e deste, já sob uma feição teórica, regresse ao
teoria social dos lugares, uma nova dimensão, tanto uma fato. Como os eventos, junto com as formas, constituem,
fenomenologia bem entendida, como um existencialismo
em cada momento, a historicização geográfica do
à moda sartriana aparecem como instrumentos do
universo, as disciplinas geográficas não podem prescindir
conhecimento indispensáveis à ação e como componentes
desse método.17
de uma renovação do próprio enfoque marxista.
Sartre considerava o marxismo como uma filosofia Por outro lado, a questão da subordinação, cada
da qual o existencialismo seria uma interpretação. Desse vez maior, do homem às ideologias, coloca como crucial
ponto de vista, um esforço baseado no existencialismo o problema de sua liberação. O peso e a sofisticação
poderia ser de grande auxílio nessa busca. Jaspers das instituições e dos seus métodos de ação ensejam a
escreveu que “pensar o mundo objetivo é (...) negá-lo como elaboração administrativa de uma segunda natureza
subjetivo e anexá-lo à objetividade” (...) “mas o mundo humana, moldada à imagem do anti-homem. É pelo
objetivo não pode reivindicar a exclusividade ...”. Tal ponto mesmo mecanismo que se criam anti-espaços, dos quais
de vista pode conduzir a um encontro com os que, a partir as metrópoles – anti-cidades por excelência –, são o
da fenomenologia, recusam o papel histórico das praxis exemplo melhor. Pode o homem escapar ao império
coletivas, redutoras das praxis individuais.14 Nesse desta máquina que o tritura, ou sua objetificação é
14
“Pensar o mundo objetivo é, portanto, negá-lo como subjetivo e anexá-lo à objetividade. Mas o mundo objetivo, por sua vez, não
pode reivindicar a exclusividade, pois, no momento mesmo em que reduzo tudo a ele, eu me transformo numa pessoa que perde o prumo.
E isto pode ser entendido em dois sentidos. Por um lado, fico sendo o sujeito que não tem objeto, mero centro de referência para todo o saber
– o que equivale dizer que o princípio da imanência não pode ser deslocado. Por outro lado, quer dizer que o mundo objetivo se ordena no
mundo do sujeito que sou. É a partir do meu corpo que se desenrola o espaço, como a partir do meu presente (é) que se desenrola o tempo.
Sou eu o “hic et nunc” em que se apóia toda a realidade objetiva. E por mais despojada que ela seja, meu conhecimento fica sempre ligado
a meu ponto de vista. Por mais que eu queira deixar de ser o centro, nunca posso colocar-me do ponto de vista de Sírius, que seria o único
e o verdadeiro. (Karl Jaspers, visto como no livro de Michel Dufrenne e Paul Ricoeur Karl Jaspers et la Philosophie de l’Existence. Paris:
Editions du Seuil. Excerto de um trecho publicado na Folha de São Paulo, 16 abril 1978).
15
Fenomenologia. 1. Estudo descritivo de um fenômeno ou de um conjunto de um fenômenos em que estes se definem quer por
ocasião às leis abstratas e fixas que os ordenam, quer às realidades de que seriam a manifestação. 2 . Sistema de Edmund Husserl, filósofo
alemão (1859-1938) e de seus seguidores, caracterizado principalmente pela abordagem dos problemas filosóficos segundo um método
que busca a volta “às coisas mesmas”, numa tentativa de reencontrar a verdade nos dados originários da experiência (Novo Dicionário
Aurélio).
16
Existencialismo. Corrente de pensamento iniciada por Sören Kierkegaard, filósofo dinamarquês (1813-1855), na qual se distin-
guem Martin Heidegger, Karl Jaspers (1891) e Jean-Paul Sartre, e para a qual o objeto próprio da reflexão filosófica é o homem na sua
existência concreta, sempre definida nos termos de uma situação determinada, mas não necessária – o “ser-em-situação”, o “ser-no-
mundo” –, a partir da qual o homem, condenado à liberdade, por já não ser portador de uma essência abstrata e universal, surge como o
arquiteto da vida, o construtor do seu próprio destino, submetido embora a limitações concretas; filosofias existenciais; filosofias da
existência (Adaptado de Novo Dicionário Aurélio).
17
“O existencialismo, como o marxismo, dirige-se à experiência de forma a descobrir, por seu intermédio, sínteses concretas; ele
apenas pode conceber essas sínteses dentro de uma totalização progressiva e dialética que é nada mais do que história ou – do ponto de
vista estritamente cultural aqui adotado – a filosofia tornando-se o mundo (philosophy – becoming – the – world). Para nós, a verdade é algo
que está sempre surgindo ou nascendo de novo, ela já foi e ela, de novo, será. É uma totalização que está sempre sendo totalizada”.
(SARTRE, 1968, p. 30). “Fatos particulares não têm significado próprio; eles não são verdadeiros nem falsos até que sejam relacionados,
à realidade em processo, através da medição de várias totalidades parciais” (SARTRE, op. cit. p. 30-31).
irremediável? O existencialismo de Sartre parece mostrar- Mas, porque toda classificação generalizadora pode
nos “cientificamente” que o homem não é um ser levar-nos à uma margem de equívoco, talvez nem seja útil,
completamente perdido para o humano, restaurando-nos apontar de forma inquisitorial, mas ingênua, quem são os
a confiança no futuro. Não é também esta a visão do “bons” e quem são os “vilões”. Parece-nos bem mais
marxismo, desde que uma despojada de uma crença importante realçar as formas larvares ou camaleônicas que
mecanicista no econômico ou de toda outra forma de a Geografia vem tomando de uns anos pra cá. São
dogma?18 manifestações para as quais se estão abrindo as portas
Ora, uma ciência do espaço que não se contente, das instituições mais comprometidas com a manutenção
somente, em constatar o presente e deseje contribuir de um capitalismo selvagem e que encontra os favores de
para a reconstrução social deve, forçosamente, valer-se uma certa finança, corporativa ou oficial, cuja ingerência
dos instrumentos cognitivos e teóricos que não só avaliem perversa na atividade intelectual mundial não é suficiente
as virtualidades latentes nos indivíduos, mas que através conhecida. Aliás, um traço essencial de sua própria política
da entrevisão e codificação das possibilidades, também é exatamente o aliciamento de intelectuais estabelecidos
acelerem seu encontro consigo mesmos, isto é, com o ou emergentes, chegando, mesmo, a empalmar, mediante
provir.19 pecúnia, associações profissionais já estabilizadas.
Todo cuidado é pequeno. É justamente nas fases
que a história se acelera, que os conceitos envelhecem
À GUISA DE CONCLUSÃO mais depressa, abandonados pela realidade em
manutenção rápida. É a própria realidade que temos de
No mercado das idéias geográficas, uma dicotomia apreender, para não vermos escapar de nossas mãos a
aparecia bem clara nos fins do século passado e no compreensão do Presente e a possibilidade de ganhar o
começo do atual. Ela foi de distinção menos fácil quando Futuro. Por isso também, em tais fases críticas da História,
da chamada “revolução teorética”. Agora torna-se mais podem-se distinguir, em matéria de proposições
confusa, exigindo um esforço maior de discernimento para interpretativas do real, duas modalidades extremas ou puras
separar o joio e o trigo, idéias genuínas e “marketing”, e uma infinidade de posições intermediárias. Cabe lembrar
gente que assume posições próprias e a malta dos que aqui a advertência de GRAMSCI: “... o problema da
se põem a serviço de idéias programadas. Uma primeira identidade da teoria e da prática se põe, especial-mente...
distinção seria distinguir entre os que utilizam dos Vem, aliás, desse interesse prático, que exige
recursos intelectuais para ajudar a servir o futuro e os urgente justificação, a possibilidade de uma grande
que se esforçam para salvaguardar o passado. Entre estes confusão: entre o que espelha o movimento da sociedade
últimos há aqueles cujos possíveis equívocos são o como um todo (ainda que sob um aspecto particular) e o
resultado de convicções cimentadas em uma prática que, como particular e se impondo à vista de todos, pode
pessoal irreversível que permite falar deles como de parecer geral, sem todavia, ultrapassar a condição de um
pessoas honestas, ao menos com si mesmos. E há os fenômeno específico, bem localizado no tempo e no
outros, os que se organizam à base de projetos espaço. A expressão de ambas as situações pode,
financiados por agências deliberadamente criadas para evidentemente, aparecer como se fosse teórica, em termos
isso. O objetivo destes últimos, nem sempre clara ou formais. Mas, de um lado, está a teoria baseada nos fatos,
imediatamente discernível, é encontrar argumentos para em sua expressão universal; de outro, a fetichização da
retardar a inevitável reconquista do homem por si mesmo, aparência ou a mistificação da parte como se fosse o todo
e atrasar a construção de um novo mundo. ou, ainda, do aspecto como se fosse o geral.
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Vou começar como faço sempre, dizendo o seguinte: as aulas fáceis não têm o
menor interesse; os livros fáceis não têm o menor interesse; as conferências fáceis
são uma chantagem em relação aos que se dispuseram a escutá-las. Estou dizendo
isto com o temor de que para certos dos presentes algo do que vou dizer possivel-
mente venha a parecer complicado. Estou desde logo solicitando-lhes a tolerância,
mas também a atenção.
O tema que me foi encomendando é "Por Uma Geografia Cidadã". Tomei a li-
berdade de atribuir-lhe um subtítulo e esta conferência vai se chamar "Por Uma
Geografia Cidadã. Por uma Epistemologia da Existência". Esta conferência vai se
processar em quatro tempos ou pontos. Primeiro ponto: Por Uma Geografia Cida-
dã - por que uma Geografia Cidadã? Em outras palavras, para que trabalhamos
intelectualmente hoje? Pela necessidade da volta ao Homem. Segundo ponto: Geo-
grafias e Geografia, Espaços Adjetivados e Espaço Banal. Já falamos nisto em outro
lugar; voltaremos a isto nesta tarde. A discussão correta não é em torno da Geogra-
fia, mas do espaço, isto é, em torno do substantivo e do constitucional que é o espa-
ço e não a Geografia. Seria uma discussão sobre o valorativo e não sobre o adjetivo.
Terceiro ponto: O Cotidiano. Significa geografizar esta noção de cotidiano que os
geógrafos frequentemente incorporam a partir da Sociologia, quando é possível fazê-
lo a partir do próprio espaço, ou seja, da Geografia, o que nos deveria permitir en-
riquecer os enfoques sociológicos. Quarto ponto: Uma Epistemologia da Existên-
cia. Em outras palavras, trata-se da reconstrução do método através da vida, isto é,
do Homem vivendo.
Por uma Geografia cidadã_ Por que uma Geografia cidadã? - Como primeira ob-
servação, lembremos que a cidadania se dá segundo diversos níveis. Sobretudo neste
país, todos não são igualmente cidadãos, havendo os que nem são cidadãos e haven-
do os que não querem ser cidadãos, aqueles que buscam privilégios e não direitos.
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i Boletim Gaúcho de Geografia ---------P~;t~AJegre N" 21 p.7-192
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põem em relevo. Só que as metáforas não constituem sistema e, por conseguinte, não
ajudam na produção de conceitos e nem de teorias, fora das respectivas disciplinas.
mem no fim do século, e, de outro, a esfera das paixões, das crenças, dos desejos,
tão objetiva em nossa vida quanto objetiva é a esfera da materialidade.
Mas o cotidiano também sugere um outro par de dimensões: de um lado as nor-
mas e, de outro lado, a espontaneidade. O mundo de hoje é o mundo de normas. A
propaganda do neo-liberalismo fala de desregulação, mas nunca o mundo foi tão
regulado, tão normado: normas públicas, nonnas das empresas que se impõem por
sobre ou que orientam as normas do poder público; normas formais, normas infor-
mais, normas sempre. Tudo ou quase tudo é feito a partir de normas, o que já é
indicativo da tendência ao empobrecimento simbólico que estamos vivendo: esta
proliferação e esta hegemonia da norma. Mas, felizmente, o cotidiano também nos
apresenta possibilidades para a espontaneidade. E tanto a norma como a esponta-
neidade têm que ver com o espaço, com a forma como o espaço se constitui.
Ainda há outro par de dimensões. De um lado, os pragmatismos indicando, su-
gerindo, propondo, exigindo comportamentos verticais. E, do outro lado, a origina-
lidade, a inventividade: essa oposição entre a rotina e o novo, entre a repetição do
passado e a produção do futuro. Também por aí pode-se e deve-se estudar a ques-
tão do cotidiano, opondo, de um lado, a preocupação com o resultado que leva ao
utilitarismo, à competitividade, ao egoísmo, e, de outro lado, à generosidade, à bus-
ca dos valores, ao projeto, à comunhão.
Esses pares de variáveis nos ajudam a enfrentar urna outra questão. O espaço,
considerado primeiro como tendo duas dimensões, depois como tendo três, depois
confonne Einstein, como tendo quatro dimensões, tem também uma quinta dimen-
são que é o cotidiano. O espaço tem esta quinta dimensão. Mas, sobretudo, o coti-
diano tem como dimensão essencial no mundo de hoje a dimensão espacial. A di-
mensão espacial é a dimensão talvez central do cotidiano do mundo de hoje.
Como trabalhar a dimensão espacial do cotidiano e o cotidiano como quinta
dimensão do espaço? Tudo isto tem que ver com a questão da cidadania, com a
questão do espaço do cidadão, com a questão do espaço banal. O cotidiano é mar-
cado, sobretudo nas cidades, com aquilo que Sartre chamou de efeito de residên-
cia. Esse cotidiano é delimitado peJo espaço contínuo e não por um espaço de pon-
tos, ou de fluxos. É no espaço contínuo, onde todos os tipos de homens, todos os
tipos de empresas, todos os tipos de instituições trabalham juntos, funcionam jun-
tos e juntos estruturam a vida da comunidade e o espaço ao mesmo tempo. É o que
estou chamando de horizontalidade e se completa com as verticalidades formadas
por pontos discretos povoados por agentes hegemónicos desinteressados da vizi-
nhança, despreocupados da co-presença. Este espaço contínuo, que é quadro de
ação e que é limite à ação; esse espaço contínuo é o quadro de um funcionamento
harmónico de tantos desiguais - ainda que não seja um funcionamento harmonio-
so. Se os agentes são tão diversos, e as empresas e as instituições tão desiguais, se o
seu trabalho não é harmonioso - mas apenas harmônico -, o que comanda este
trabalho harmónico não é somente o mercado, é também {l território. Não fora o
território, da forma como está organizado, o mercado não poderia sozinho exercer
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uma cooperação que afinal descobrira um dia, ainda que não a entenda completa-
mente. É este o cotidiano dos homens neste fim de século, neste período de globa-
lização, frente às redes que são globais e são locais.
Ora, cuidem que estou falando da maneira como o espaço se organiza, como os
subespaços se articulam, e como cada espaço é constitucionalmente. E a qualidade
dita ativa do espaço inclui a sua capacidade de relação. Por conseguinte o que esta-
mos propondo é a construção de conceitos que se encaixam uns nos outros. E quando
é assim a teoria está feita. Creio que essa pode ser uma forma de enfrentar geogra-
ficamente a questão do cotidiano.
Os pobres, os migrantes, as minorias, aqueles que não têm a possibilidade de exer-
cer plenamente a modernidade, colocam-se mais facilmente com a possibilidade de
perceber as situações, ainda que confusamente, e devem ser ajudados pelos que sis-
tematizam o conhecimento relativo ao mundo de hoje. E este conhecimento, já vi-
mos, necessita da categoria "espaço geográfico" para ser corretamente sistematiza-
do. Daí o papel do geógrafo neste fim de século. O papel do geógrafo também se estende
à produção do político. O cotidiano é um produtor do fenômeno político na medida
em que mostra como as diferenças se estabelecem aconselhando a tomada de posi-
ções. É o caso dos agricultores, que se reúnem para defender interesses territoriais.
Tal comportamento éa priori economicista, mas para ter eficácia, deve ser, em segui-
da, um comportamento político. É essa produção do político mediatizada pelo espa-
cial que permite, a partir das metamorfoses do setorial em geral, do particularismo
em generalismo, as negociações explícitas e implícitas que permitem avançar, pri-
meiro na construção de um ente explicativo e, segundo, na construção de um projeto.
* Professor titular de Geografia Humana na UniVCl1l1dadc de São hulo I Texlo redigido a purtll da gravação da
conferência de abertura do XV I Encontro Estadual de Professores de Geografia.