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Notas Para Uma Ecofenomenologia dos Povos Originários

da Terra: Ontologia, Natureza, Ciência-Técnica e


Contracolonialidade (parte I)

Às vezes eu acho que todo preto como eu


Só quer um terreno no mato só seu
Sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as fruta no cacho
Aí, truta, é o que eu acho, quero também
Mas em São Paulo Deus é uma nota de 100
Vida loka

Racionais MC’s – Vida Loka (Parte 2)

O presente ensaio tem por objetivo introduzir a importância dos saberes


dos Povos Originários da Terra para a nossa produção de conhecimento e
“abertura da realidade”1. Esses aspectos2 se co-pertencem: o próprio Saber da
tradição lega e sustenta a abertura de ser-no-mundo, dito de maneira direta, o
que apreendemos da “realidade” não é apenas seu caráter material, mas o que nos
é possível de captar em meio ao real3 e como se dá a materialidade da realidade,
é sustentado por saberes enraizados na História4.

Para realizar o caminho desta introdução, buscaremos examinar o modo


como ontologicamente a natureza se desvela no paradigma colonial (sustentado
pela ciência-técnica), contrapondo a este o que nos é possível colher das
Sabedorias Originárias da Terra.

De saída, precisamos compreender que, ao falarmos de um saber, não se


trata de um comentário acerca de uma informação possível sobre um
determinado tema, mas que, saberes necessariamente produzem modos de

1 Devir enquanto a passagem da Ideia para o Manifesto.


2 “abertura da realidade” e produção de conhecimento.
3 O ser dos entes.

4 História enquanto Solo de Sustentação de Mundo, por isso: Tradição. Não Historiologia, estudo da história, mas
radicalmente História: Saberes que se enraízam na Vida e possibilitam a experiência da presença humana em relação
de uma forma correspondente a abertura de nossa Época.
desvelamento5 da “realidade”, como aponta Heidegger, “o conhecimento provoca
abertura. Abrindo, o conhecimento é um desencobrimento”6.

Que Saber, é o que abre a realidade na Era Técnica7? Heidegger nos diz que
“o desencobrimento dominante na técnica moderna não se desenvolve, porém, numa pro-
dução no sentido de poiesis8. O desencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma
exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal,
ser beneficiada e armazenada”9.

Aqui, temos uma abertura de diálogo importante que não


pormenorizaremos neste momento, mas onde as mazelas do mundo se
encontram: o sofrimento na - e da - mãe terra10, em suas diversas formas de seres
vivos, é fundamentado por uma presença relacional do ser-aí-humano que está
Sustentada11 em um modo de desencobrimento da Exploração. Desencobrimento
este que posiciona como o ser do outro me aparece e vem à luz da realidade.

O modo de desencobrimento da exploração reside essencialmente em um


aplacamento das dimensões Ontológicas12 dos seres vivos13 em detrimento de
uma fixação no caráter material da realidade dos entes. O biologicismo no

5ἀλήθεια: Verdade, desvelamento, desencobrimento. “Conceito” importante no interior do pensamento grego ancestral
e para o pensador Martin Heidegger. Descreve o movimento de fenomenologização dos fenômenos, a aparição (dar-
se) do ser dos entes. Cf HEIDEGGER, M. Platão: O Sofista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
6 HEIDEGGER, M. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Editora vozes, 2012, p. 17.
7 Há uma importante ressonância entre “Técnica”, “Ciência”, “maquinação calculadora” etc. com Colonialidade,
Patriarcado, Racismo, Capitalismo etc., não sendo algo possível de destrinchar aqui, mas percebemos já de saída o fato
de que respondem ao apelo da mesma essência: Exploração.
Também reside um indicativo interessante para futuras explicitações: a nível ontológico, a própria Era Técnica serve
como disposição afetiva/ontologia que dá condições de possibilidade para fundamentação e alastramento de formas de
presença relacional que ressoem ao apelo exploratório da Técnica.
8 Ποίησις: poética.
9HEIDEGGER, M. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Editora vozes, 2012, p. 19, grifo
nosso.
10Desenvolvemos esse nexo vital (cura e sofrimento da mãe terra com o ser humano) em outro trabalho. Cf. FONCK,
A. Ensaio Introdutório de Psicopatologia Ecofenomenológica Decolonial: Dos Saberes e Práticas de Cura dos Povos
Originários da Terra. São Paulo: Instituto Dasein, 2022. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1rWYe-
ZqWhpWxFgk1jtUNJdOAgSOYMAUY/view. Mas também presente na crítica de Kopenawa ao empobrecimento de
espírito do homem branco, em: KOPENAWA, D. & ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami.
São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
11 Sustento, em seu duplo aspecto: de “nutrição” e fundamento (Grund).
12Onotológico, mas também Onto-Teo-Lógico: Ontológico, e em seus aspectos espirituais/Formais (como em Plotino.
Cf HADOT, P. Plotino ou A Simplicidade do Olhar. São Paulo: É Realizações, 2019).
13 Mas também dos entes no geral.
racismo, a objetificação patriarcal, o especismo do homem-capitalista, todos
encontram sua validação exploratória em um modo de desencobrimento fixado
num caráter positivista-material. O que sustenta a possibilidade de relação
exploratória com as outras formas de vida é justamente o Espírito Técnico de
nossa era.

Cotidianamente, como uma árvore ou um animal me aparece, não é algo


desconexo do saber que nosso mundo lega: toda a abertura de nossa experiência
para os entes é marcada pela sustentação da significância do mundo, da tradição
na qual estamos enraizados. Husserl expõe isso de maneira categórica, ao traçar
o fundamento da fenomenologia: toda consciência é consciência de. Heidegger,
ao “ontologizar” esta afirmação, nos mostra que a experiência de algo como algo
se dá em aspectos ontológico-modais, sendo o próprio ser humano o canal de
conectividade e manifestabilidade das possibilidades possíveis ontológicas dos
entes:

“O ‘entre’ do ser-aí supera a separação14; não na medida em que ele constrói uma ponte
entre o seer (a entidade) e o ente como margens por assim dizer presentes, mas na medida
em que ele transforma o seer e o ente ao mesmo tempo em sua coetaneidade”15.

É a própria presença humana em meio aos entes que possibilita trazer à


luz um desvelamento16 possível destes.

Heidegger indaga os modos de desvelamento da Natureza, nos levando a


questionar o paradigma epocal no qual nos encontramos, onde a exploração da
maquinação técnica é o que rege nosso modo de viver:

“O que ainda são as plantas e os animais para nós, se deduzirmos as utilidades, o


embelezamento e a diversão? Se o vivente é o que não exige de nós qualquer esforço,
então ele é o que há de mais difícil de ser visto, se tudo está estabelecido com vistas ao
que exige esforço e à sua superação, se movimentando na maquinação! Pode haver
‘biologia’, enquanto faltar a ligação fundamental com o vivente, enquanto o vivente

14 Χωρισμός [chorismós, separação].


15HEIDEGGER, M. Contribuições à Filosofia (Do Acontecimento Apropriador). Rio de Janeiro: Via Verita, 2015, p.
30, grifo nosso.
16Sempre desvelamento ontológico, de ser: ἀλήθεια [Aletheia, verdade]. Cf Ser e tempo. Campinas: Editora da
Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes, 2012.
não tiver se transformado na outra ressonância do ser-aí? Mas, afinal, precisa haver
‘biologia’ lá onde ela só deriva o seu direito e a sua necessidade do domínio da ciência
no interior da maquinação moderna? Toda biologia não destruirá necessariamente o
‘vivente’ e impedirá a relação fundamental com ele? A ligação com o ‘vivente’ não
precisa ser buscada completamente fora da ‘ciência’? E em que espaço deve se manter
essa ligação? O ‘vivente’, tanto quanto tudo aquilo que é capaz de se tornar objeto,
oferecerá ao progresso da ciência possibilidades infinitas e se subtrairá cada vez mais
ao mesmo tempo, quanto mais desprovida de fundamento a ciência mesma se tornar. (...)
A natureza, extraída do ente pela ciência da natureza, o que acontece com ela por meio
da técnica? A destruição crescente da ‘natureza’, ou melhor, que se desenrola
simplesmente em direção ao seu fim. O que ela era outrora? O sítio do instante da
chegada e da estada dos deuses, quando ela, ainda physis, se baseava na essenciação
do seer. Desde então, ela logo se tornou um ente, e então, até mesmo o contraponto da
‘graça’ e, segundo essa degradação, ela é completamente exposta à imposição radical
da maquinação calculadora e da economia.(...) Por que se silencia a terra junto a essa
destruição? Porque não lhe é concedida a contenda com um mundo, porque não lhe é
concedida a verdade do seer. Por que não? Por que a coisa gigantesca homem é tanto
mais gigantesca quanto menor ela é?! É preciso abandonar a natureza e entregá-la à
maquinação? Conseguimos ainda buscar de maneira nova a terra? Quem é capaz de
atiçar aquela contenda, na qual ela encontra seu aberto, na qual ela se cerra e é terra?”17

Este dilema apresentado por Heidegger, dá contornos compreensíveis


para o modo de aparição18 dos seres vivos19 em nossa época: a isto, ele chama de
Técnica. A Técnica, ao que nos interessa no presente ensaio, é caracterizada por
marcar a presença humana em meio aos entes com o caráter exploratório. Dito
de maneira mais direta, o próprio saber que sustenta a nossa época nos posiciona
em presença relacional com os seres vivos de maneira em que eles não podem
mostrar seus modos de ser possíveis através de nós, mas somos nós que extraímos
o que desejamos deles. Essa lógica, onde o silêncio que abre espaço para
manifestabilidade do Ser dos entes é extinguido, gera uma relação de exploração

17HEIDEGGER, M. Contribuições à Filosofia (Do Acontecimento Apropriador). Rio de Janeiro: Via Verita, 2015, p.
280-2, grifo nosso.
18 Ou seja, modo de ser.
19 E da própria Natureza como um todo, portanto: Φύσις [Phýsis].
e dominação humana sobre os outros entes. Aqui, podemos perceber que isto está
presente em diversos níveis: é a ciência-técnica que desencobre a natureza como
fundo de energia para o “bem” humano; é a colonialidade, o capitalismo e o
patriarcado que hierarquiza as diferenças humanas em nome da exploração; etc.

Heidegger pontua o quão o paradigma Técnico de nossa época se trata de


uma relação de desrespeito20: “O subsolo passa a se desencobrir, como reservatório
de carvão, o chão, como jazidas de minério. Era diferente o campo que o camponês
outrora lavrava, quando lavras ainda significava cuidar e tratar. O trabalho camponês
não provoca e desafia o solo agrícola”21.

Catarina Nhimbopyruá durante Vivência de Fitoterapia Indígena na Aldeia Tapirema. Créditos:


Vivência na Aldeia e Cultive Resistência.

20 “Respeito vem de ‘respicere’, saber ver. Você vê por trás de cada coisa um episódio do divino, como em você.
Quando não deseja (ter) as coisas, não pense que você as trata pior, você as trata melhor. Porque respeita as coisas por
elas mesmas e não pelo que elas podem te servir”. GALVÃO, L. H. A Voz do Silêncio de Helena Blavatsky -
Comentários Filosóficos. Brasília: Nova Acrópole Brasil, 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=NQs4bA4hMUw&ab_channel=NOVAACR%C3%93POLEBRASIL
21 HEIDEGGER, M. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Editora vozes, 2012, p. 19.
A herança cultural22 da colonialidade, do capitalismo, da ciência técnica, é
a instauração de um modo de presença mediano na terra onde os seres humanos
se encontram em desarmonia com o Todo ao qual pertencemos. A grande parcela
das mazelas na qual os seres terrestres se encontram foram causadas pela
presença humana que não sabe viver em harmonia com outros entes, com
outros seres vivos. O Saber técnico reside em um não saber conviver (viver-com,
ser-com).

O que os estudos recentes nos apontam (para além do que os atentos


percebem no dia a dia da convivência humana) é que mantido o rumo atual da vida
na Terra, o futuro é impossível23. A Vida na Terra está se tornando impossível pela
humanidade estar ancorada no saber do paradigma técnico-científico-colonial-
capitalista, ou seja, por estar ancorada em um paradigma de saber onde a Vida 24
se abre na lógica da exploração, em outros termos, temos uma niilização da
Vida25, um esvaziamento ontológico da Vida. A pista que Heidegger nos lega para
nos reconectarmos com esta dimensão da Vida, envolve o silêncio.

Aqui, silêncio é compreendido como serenidade, deixar-ser26. Para


Heidegger, “a proximidade em relação ao último deus é o silenciamento” 27. Que
é Deus? A harmonia entre os seres vivos, através do cuidado do ser-aí humano
que se torna canal do apare-ser28 dos entes.

22 Dos saberes; Cultura, história, Fundadas em (e fundantes de) uma ontologia.


23 Como nos aponta Sidarta Ribeiro, em “Sonho manifesto: Dez exercícios urgentes de otimismo apocalíptico”.
24Em nossa relação com os viventes, com a natureza. Radicalmente ζωή [Zoé, vida]: “A ζωή, a ‘vida’ ou ‘forma de
vida’, é um termo técnico neoplatônico que designa, em relação à alma, a sua maneira de estar em movimento ou em
ação ou, como o explica Hermias em seu comentário sobre o Fedro de Platão, a alma sob o aspecto do movimento.”
HADOT apud LIMA, D. C. Conhecimento de si como caminho filosófico em Platão, Plotino e Proclo. São Paulo:
PUC-SP, 2018. p. 202. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/21491/2/Danllo%20Costa%20Lima.pdf
Este movimento da alma, sempre é necessariamente relacional (e ontológico).
25 Cf CABRAL, A. M. Niilismo e Hierofania: Uma abordagem a partir do confronto entre Nietzsche, Heidegger e a
tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o Deus não-cristão, volume 1. Rio de Janeiro: Mauad X, Faperj, 2014. 2v,
ênfase em “Capítulo 1: A Caracterização primária da morte de Deus e a gênese do problema do niilismo” p. 77 e segs.
26 Cf HEIDEGGER, M. Serenidade. Portugal: Instituto Piaget, 2000. Disponível em:
http://www.unirio.br/cch/filosofia/Members/ecio.pisetta/Biblio.Heidegger.Serenidade.1.pdf/view & HEIDEGGER,
M. Caminho do Campo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969. Disponível em:
https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2014/03/heidegger-sobre-o-problema-do-ser-a-caminho-do-campo.pdf
27HEIDEGGER, M. Contribuições à Filosofia (Do Acontecimento Apropriador). Rio de Janeiro: Via Verita, 2015, p.
27.
28O entre do ente e da entidade; parição de ser (entidade) do ente em relação ao próprio movimento da alma: fazer-
vivo, em relação a própria presença humana. Trazer à luz (verdade) um aspecto ontológico possível da entidade em
questão.
A necessidade do silenciamento frente a maquinação técnica reside em um
“deixar essenciar-se que afina completamente toda postura em meio ao ente e todo
comportamento em relação ao ente, o deixar essenciar-se do seer como acontecimento
apropriador”29.

A busca de uma medida de habitação na mãe terra e de um modo de


presença relacional não exploratório, no interior do acontecimento apropriador,
tem por finalidade, orientar o ser-aí humano a “tornar-se fundador e o guardião da
verdade do seer, ser o aí como o fundamento usado pela própria essência do seer 30: o
cuidado, não como pequena preocupação em torno de algo qualquer e não como
denegação do júbilo e da força, mas mais originário do que tudo isso, porque unicamente
‘em virtude do seer’, não do seer do homem, mas do seer do ente na totalidade”31.
Heidegger, ao associar a necessidade do silêncio frente a exploração técnica, visa
reordenar o papel da humanidade em meio ao Todo, como o entre do Ser e do
ente, como aquele que, em retenção “afina-se o ser-aí com vistas ao silêncio do passar
ao largo do último deus. De maneira criadora nessa tonalidade afetiva fundamental do
ser-aí (retenção), o homem torna-se o guardião desse silêncio”32.

O que se retem na presença silenciosa a ponto de Heidegger associá-la a


“Deus”? O caráter “Sagrado”33 da realidade, o caráter modal do ser dos entes, dos
seres vivos; o que sustenta a própria pluralidade de desvelamento do ser dos entes
no entre que é o ser-aí humano: a dimensão espiritual/formal da realidade, do
Todo.

29 Ibid., p. 31.
30 Aqui temos a ressonância Platônica em Heidegger, onde o ser-aí humano é o canal de manifestabilidade da Ideia
(ιδέα: idéa), norteados por esta, somos radicalmente Cuidado por sermos Verdade (αλήθεια; des-velamento.
Desvelamento de Ser, desvelamento que traz da Ideia ao manifesto).
Cf HEIDEGGER, M. As Questões Fundamentais da Filosofia: (“problemas” seletos da “lógica”). São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2017. & WIBMER, E. H. B. Metafísica como Onto-Teo-Logia: uma interpretação da filosofia
de Platão à luz do pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: PUC-RIO, 2008.
Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=12369@1
31 Ibid., p. 31-2.
32 Ibid., p. 33.
33 Cf CABRAL, A. M. Niilismo e Hierofania: Uma abordagem a partir do confronto entre Nietzsche, Heidegger e a
tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o Deus não-cristão, volume 1. Rio de Janeiro: Mauad X, Faperj, 2014. 2v.
Não precisamos ir muito além para a compreensão desse nexo vital entre
Silêncio e Dimensão Espiritual da Vida: Helena Blavatsky, em A Voz do Silêncio34,
nos diz que, a voz do silêncio nada mais é que “a voz no som espiritual”35.

A exploração humana-técnica resguarda um acesso ao Real onde, para


poder extrair e se beneficiar, a dimensão material 36 ganha prioridade frente a
dimensão espiritual da Vida. O que queremos aqui então, dizer por dimensão
espiritual da Vida? Ter de responder a esta simples pergunta, já nos mostra o
quão perdido estamos. De saída, ouçamos o que Bergson tem a nos dizer sobre
isso:

“Saber olhar o mundo sensível é ‘prolongar a visão do olho por uma visão do espírito’,
é, ‘por um potente esforço de visão mental, perfurar o invólucro material das coisas e ir
ler a fórmula, invisível ao olho, que desfaz sua materialidade’”37.

A Sabedoria Originária legada por Plotino e analisada por Pierre Hadot,


nos ajuda a entender esse dilema, em seus estudos sobre o Plano Formal e
Espiritual e sua conexão com o Plano Sensível e Material nos diz que

“Qual é então a relação entre o mundo das Formas e o mundo sensível? Se o primeiro
pode ser visto através do segundo, se a visão do espírito pode prolongar a visão do olho,
é por haver continuidade entre os dois mundos, é porque são a mesma coisa, mas em dois
níveis diferentes. Plotino insiste fortemente sobre essa continuidade: ‘como este mundo
aqui poderia existir se estivesse separado do mundo espiritual?’”38

De que nos importa as contribuições de Plotino? Com essas contribuições,


podemos compreender que há uma interligação entre Ser e Plano Espiritual: a
multiplicidade ontológica da realidade reside em sua fundamentação no Plano

34
Livro em que nos apresenta os Saberes Originários da Terra dos Povos do Tibete.

35BLAVATSKY, H. A Voz do Silêncio. São Paulo: Ajna Editora, 2021, p.31: “A voz sem som, ou a ‘voz do silêncio’.
Literalmente, isto devia talvez traduzir-se ‘voz no som espiritual’, visto que Nada é o equivalente sânscrito do termo
senzar”. Aqui vemos a ressonância entre Silêncio e Nada, assim como o clamor da consciência (uma voz sem voz) para
Heidegger em Ser e Tempo e a questão do silêncio nas Contribuições à Filosofia.
36Sobre Dimensão Material e Dimensão Formal/Espiritual da Vida, cf: HADOT, P. Plotino ou A Simplicidade do
Olhar. São Paulo: É Realizações, 2019.

37 HADOT, P. Plotino ou A Simplicidade do Olhar. São Paulo: É Realizações, 2019, p. 40.


38 Ibid. p. 43.
Espiritual; o desvelamento destas modalidades ontológicas reside no entre que é
o próprio ser-aí humano, A Clareira do Ser.

Como um perspectivismo que consegue ser canal ao captar a transição da


manifestabilidade de “algo 2D para o 3D”, o ser-aí humano é o próprio entre do
Plano Material e Espiritual, do Plano do Ser e do ente.

Talvez um diálogo com Bachelard na Poética do Espaço, no capítulo “A


Imensidão Íntima”, nos ajude a compreender este entre39 constitutivo da
Condição Humana:

“A imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de expansão do ser que a vida
refreia, que a prudência detém, mas que volta de novo na solidão. Quando estamos
imóveis, estamos além; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do
homem imóvel. 40

(...)

Por paradoxal que pareça, é frequentemente essa imensidão interior que dá sua
verdadeira significação a certas expressões referentes ao mundo que se oferece à nossa
vista. Para discutir sobre um exemplo preciso, examinemos de perto a que corresponde
a imensidão da Floresta. Essa ‘imensidão’ nasce de um corpo de impressões que não
derivam realmente das informações do geógrafo. Não há necessidade de permanecer nos
bosques para conhecer a impressão sempre um pouco ansiosa de que nos
‘aprofundamos’ num mundo sem limite.

(...)

Há outra coisa a exprimir, além daquilo que se oferece objetivamente à expressão. O que
seria necessário exprimir é a grandeza escondida, uma profundidade.

(...)

A floresta é um estado de alma.”41

39Que Heidegger chama de Acontecimento Apropriativo, Cf: HEIDEGGER, M. Contribuições à Filosofia (Do
Acontecimento Apropriador). Rio de Janeiro: Via Verita, 2015.
40 Imobilidade enquanto qualidade silenciosa de não acrescentar nenhuma camada ao que se mostra.
41BACHELARD, G. §7 da Poética do Espaço, “A Imensidão Íntima”. In: O Novo Espírito científico; A Poética do
Espaço (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 228 e segs.
Esse Estado de Alma, que também podemos compreender como um Modo
de Presença ou o que Heidegger chama de Cuidado, é justamente a assunção
através do entre do Plano Espiritual/de Ser e o Plano Material da Realidade que
somos. A Grandeza possível de um ser só se exprime em relação com a imensidão
íntima da Presença Humana.

Catarina Nhimbopyruá durante Vivência de Fitoterapia Indígena na Aldeia Tapirema. Créditos:


Vivência na Aldeia e Cultive Resistência.

Notas Para Uma Ecofenomenologia dos Povos Originários


da Terra: Ontologia, Natureza, Ciência-Técnica e
Contracolonialidade (parte II)

Se a Era Técnica-Colonial é Fundamentada por um Saber Exploratório que


niiliza a Dimensão Ontológico-Espiritual da Vida, onde podemos colher linhas de
fuga?

Nesta introdução buscaremos uma ecofenomenologia dos Saberes


Originários dos Povos da Terra por entendermos que estes Povos resguardam em
seus Saberes um Modo Originário de Ser Terra. Sim, Somos-Terra, e este também
é mais um elemento que o esvaziamento42 da Era Técnica nos faz perder de vista.
Como nos diz Leonardo Boff em Ética e Ecoespiritualidade, “somos a Terra no seu
momento de autorrealização e de autoconsciência. (...) temos a mesma origem e com o

42 Niilização da Vida: nadificação ontológica.


mesmo destino de todos os demais seres e da Terra. (Por isso é necessário sentir-se)
como a mente consciente da Terra, um sujeito coletivo, para além das culturas singulares
e dos estados-nações. (...) Ter esquecido nossa união com a Terra foi o equívoco do
racionalismo em todas as suas formas de expressão. Ele gerou a ruptura com a Mãe. Deu
origem ao antropocentrismo, na ilusão de que, pelo fato de pensarmos a Terra e
podermos intervir em seus ciclos, podemos colocar-nos sobre ela para dominá-la, dispor
dela a seu bel-prazer. O ser humano precisa refazer essa experiência espiritual de fusão
orgânica com a Terra, a fim de recuperar suas raízes e experimentar sua própria
identidade radical. Essa experiência de que somos Terra produz uma espiritualidade e
uma política”. 43

Davi Kopenawa em A Queda do Céu44 nos ajuda a compreender o


fenômeno de niilização da Vida45, do esvaziamento espiritual e ontológico que o
Real passa através do paradigma Racional-Técnico. Para o xamã, o modo de
relação explorador e desrespeitoso da Vida que a humanidade-técnica abre
poderá desembocar na extinção de todas as formas de Vida presentes na Mãe
Terra. Isto aponta para a compulsão técnica na entificação/reificação do Ser 46,
onde, desenraizada de um Saber Originário da Terra, as medidas para uma ética
habitacional-relacional se perdem. Há um conto que retrata essa desconexão
desrespeitosa para os Incas47:

“A MALDIÇÃO DA FOLHA DA COCA

‘Assim como o homem branco destrói a folha da coca, a folha da coca destruirá o homem
branco’48

43BOFF, L. Ecoespiritualidade: ser e sentir-se Terra. In: Ética e Ecoespiritualidade. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
2011. p. 72 e segs.
44Cf KOPENAWA, D. & ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das
Letras, 2020.
45 Cf CABRAL, A. M. Niilismo e Hierofania: Uma abordagem a partir do confronto entre Nietzsche, Heidegger e a
tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o Deus não-cristão, volume 1. Rio de Janeiro: Mauad X, Faperj, 2014. 2v.
46CASANOVA, M. Existência e Transitoriedade: gênese, compreensão e terapia dos transtornos existenciais. Rio
de Janeiro: Via Verita, 2021.
47Autoria desconhecida, disponível em:
https://web.facebook.com/ix.luzdadeusa/photos/a.114730386829413/114729453496173/?_rdc=1&_rdr
48Como aponta Eduardo Viveiro de Castros, homem branco é o correlato de inimigo, a partir do epistemicídio dos
povos originários; homem branco é o contrário de Índio, povo amigo. CASTRO, E. V. O Recado da Mata. Prefácio
de: KOPENAWA, D. & ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das
Letras, 2020. p.12-3.
No império Inca, tudo girava em torno das folhas sagradas da coca. Eram usadas como
moeda de troca, como oráculo e, principalmente, em cerimônias ritualísticas para
contatos espirituais. Os sacerdotes, após mascarem as folhas entravam em êxtase com o
espírito “Cocamama”. Outra utilixação espiritual simples era o ato de jogar as folhas
no chão para invocar divindades, como Viracocha.

Ainda nos tempos antigos, no templo da Coca localizado no Perú os homens de medicina
utilizavam para o transe, para afastar espíritos maléficos e induzir sonhos sagrados. O
espírito da planta, Coca Mama, era honrado neste templo promovendo uma conexão
íntima com o sagrado feminino, com a energia solar, com a cura e contemplação.

Fato histórico é que o conquistador Pizarro, através de ordens aos soldados espanhóis,
destruiu o templo consagrado a essa divindade e ordenou que queimassem as plantações
para desestruturar o modo de vida da população nativa e inserir uma forma de trabalho
tão cruel quanto a escravidão da população africana.

Há, porém, uma lenda sobre a destruição do templo que diz que sacerdotes incas
amaldiçoaram os destruidores e seus descendentes. ‘Assim como o homem branco destrói
a folha da coca, a folha da coca destruirá o homem branco’. A Deusa se veste de branco,
assim como a pele dos que macularam seu templo, e inicia a vingança por todo ódio e
destruição.

A cocaína, não a coca, é uma maldição. A utilização da cocaína sim levará a destruição,
desagregação de relações interpessoais, problemas de família, convulsões e mortes,
tanto por overdose de usuários quanto pelos riscos de morte que correm milhares de
jovens em situação de vulnerabilidade atraídos pelo narcotráfico. O mesmo espírito que
inspira amor, elevação e contato com o divino trás as duras consequências para aqueles
que dão mau uso ao seu corpo sagrado.

Sabendo disso, reflita sobre como utilizamos as plantas de poder. O Pai Tabaco é
honrado? O Pai Rapé? Todas elas possuem os seus dois lados e o que determina qual
deles iremos acessar é o intuito com o qual nos apresentamos diante delas.”
Catarina Nhimbopyruá durante Vivência de Fitoterapia Indígena na Aldeia Tapirema. Créditos:
Vivência na Aldeia e Cultive Resistência.

Intuito é a palavra que o sábio usa; a palavra intuito aponta para um


fundamento da Fenomenologia: intencionalidade. O que se intenciona define o
que irá ser desvelado49. Toda consciência é consciência de. A manifestabilidade
de algo como algo depende da intencionalidade em questão. Quando Heidegger
descreve a Diferença Ontológica (ser não é ente), está nos dizendo que não é a
materialidade do ente que o define. São os saberes50 que atuam como condição
de manifestabilidade de algo como algo, da abertura do ser dos entes na relação
com o ser humano. É a perda desses saberes que enraízam a materialidade das
plantas de poder em práticas sagradas de cura51, que desembocam na apropriação

49 O aspecto ontológico acessado do ente na presença humana.


50ἐπιστήμη [Epistemologia; conhecimento]. Cf. HEIDEGGER, M. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências.
Petrópolis: Editora vozes, 2012, p. 17.
51A este fenômeno se dá o nome ritual. Um rito é um saber que posiciona uma prática para a abertura de um modo
sagrado possível de ser.
viciosa e compulsiva do homem branco. É a abertura desrespeitosa da Vida que
esvazia o caráter sagrado dela, e que aprisiona o Homem-Técnico.

Como indicativo das diferentes formas de acesso à realidade que diferentes


saberes nos abrem, iremos nos deter na relação curadora com a Natureza52.

No paradigma técnico, o modo de cuidado das enfermidades do corpo e da


alma são levados a cabo, em sua grande parcela, pela indústria farmacêutica-
técnica. Esta, que vende (literalmente) a cura para o corpo e o espírito, é
alavancada para o combate do sintoma da desarmonia da Vida graças ao
capitalismo e às custas do apagamento das Sabedorias de Cura Originárias da
Terra. Combate ao sintoma pois, a indústria farmacêutica vende a lida de cuidado
com a depressão, mas não consegue combater a própria depressão, pois esta é um
estado de presença: o desequilíbrio bioquímico é apenas a manifestação material
deste espiritual estado de presença; mas como o meio de acesso é a própria
ciência-técnica, tudo o que ela consegue acessar diz respeito de uma pequena
parcela do constituinte material do complexo fenômeno da depressão.

Há tempos mil antes da farmacologia-técnica, os Povos Originários da


Terra carregavam consigo saberes de cura. O que perdemos aqui?

Do eco da sabedoria das plantas no candomblé fusionada no Brasil com o


xamanismo, temos o advento de curandeiras, parteiras, benzedeiras e rezadeiras.
Essas cuidadoras não aprendiam a curar lendo manuais médico-técnicos ou bulas
de remédios53, então como conseguiam curar sem o “Deus-Ciência-Técnica”
oferecer a “solução” para as mazelas da humanidade?

Elas ouvem/colhem54 na própria Natureza a cura. Não apenas através da


tradição oral que legou o saber da prática de cura para elas, mas as curandeiras
possuem um próprio modo de presença relacional com a Realidade que, em seu

52E, em específico, na “Sabedoria Vegetal” presente na Natureza, essa sabedoria é conhecida como “Medicinas da
Floresta” ou “Plantas de Poder”.
53 A prática curandeira é mais antiga do que a farmacologia técnica, vale ressaltar.
54Λόγος [logos]. Cf. HEIDEGGER, M. Logos (Heráclito, fragmento 50). In: Ensaios e Conferências. Petrópolis:
Editora vozes, 2012.
silêncio, se tornam canal de manifestabilidade da possibilidade de Ser cura
possível55 das plantas, por exemplo.

Catarina Nhimbopyruá e Awá Tenondeguá durante Vivência de Fitoterapia Indígena na Aldeia


Tapirema. Créditos: Vivência na Aldeia e Cultive Resistência.

Quando vemos o processo de cuidado dos Povos Originários da Terra,


descobrimos que o que está em jogo ali é um modo de presença de respeito e amor
com os outros seres vivos, e que é justamente esta harmonia que abre este canal
de Sabedoria. Não é exploração da Natureza, é ouvir no silêncio (do Ego) o que a
Natureza nos diz. Como diz um certo poeta-xamã56:

Eu ouço o silêncio da mata


Ouço o silêncio do vento
Eu ouço o silêncio
Do meu pensamento

55Ainda a título de exemplo: podíamos falar da “cura através do som”, que a música xamânica e a tradição espiritual
Vedanta trazem, ao abrir harmonicamente a vida (o que talvez para a “civilização” seja mais fácil ter um vislumbre no
canto gregoriano no mosteiro São Bento ou em uma meditação em um templo budista); a cura através de banho, inalação
e defumação que o Candomblé e a Umbanda nos abrem através das Plantas etc. etc. Todas essas práticas são,
radicalmente, modos de desvelamento através da presença relacional humana com a Vida.
56 JARBAS, T. Hinário “Deus no Silêncio”. Origem Desconhecida, 2015. URL:
https://soundcloud.com/beijamima/37-deus-no-sil-ncio-tony
É no silêncio que Deus está
Com ele eu vou me encontrar

Eu ouço o silêncio da noite


Ouço o silêncio do dia
Eu ouço o silêncio
Da harmonia

É no silêncio que Deus está


É nele que eu vou me firmar.

Para salvarmos o Destino da Humanidade contra as mazelas da Era


Técnica, contra o mundo das imagens, das ilusões, do predomínio da Matéria, é
urgente que possamos reestabelecer o eixo da experiência humana pautada nos
Saberes Originários da Terra, em todas as nossas ciências, políticas, relações no
geral. São nos Saberes Originários da Terra que residem os indicativos da própria
salvação da Vida na Terra.

A ecofenomenologia dos Povos Originários da Terra não é um conjunto de


informações acerca da natureza, muito pelo contrário, é um Saber que abre a
realidade de um modo específico, através da Fundamentação de um modo de
presença próprio, uma posição relacional de habitação na Terra que a permite Ser
em lógicas e paradigmas distintos dos quais estamos acostumados no interior da
Consumação Científico-Técnica de nossa época civilizatória.

É necessário um processo de Descolonização, dialogando 57 com os Povos


Originários da Terra, para que possamos rearticular nosso nexo vital com a Mãe-
Terra, com o Todo que somos parte, só assim podemos nos ancorar em um Saber
que redirecione nossos paradigmas espirituais, éticos, políticos, reorientando a
presença humana e nossas relações possíveis com a Vida.

57Não como uma retomada, em movimento de cega nostalgia, mas abrindo ressonância com uma Tradição Outra.
Fundar o Outro Início através do diálogo com a pluralidade de tradições que resguardam Ser para além da civilização
ocidental Grega, possibilitando nos arejar ontologicamente.
Meto terno por diversão
É subalterno ou subversão?
Tudo era inferno, eu fiz inversão
A meta é o eterno, a imensidão

Como abelha se acumula sob a telha


Eu pastoreio a negra ovelha que vagou dispersa
Polinização pauta a conversa
Até que nos chamem de colonização reversa

Emicida - Eminência Parda (part. Dona Onete, Jé Santiago e Papillon)

O Futuro É Ancestral.58

Ou não existirá.

58 Como nos lega Katiúscia Ribeiro.

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