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Topologias do não-ser:

discutindo (sub) ontologia


e colonialidade com Nelson
Maldonado-Torres
Topologias do não-ser:
discutindo (sub) ontologia e colonialidade com
Nelson Maldonado-Torres

Alexandre Marques Cabral

1ª edição
Rio de Janeiro, 2022

VV
Copyright@ViaVerita
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nr. 9610 de
12.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência
da editora.
Esse livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
EDITORA Via Verita LTDA
EDIÇÃO Monica Paape Casa Nova
CAPA E PROJETO GRÁFICO Arthur Rocha e Giovana Paape
DIAGRAMAÇÃO Alexandre Sacha Paape Casa Nova
Imagem de capa: Laura Fonseca Costa (@laurafonsecacosta_)
Dados internacionais para catalogação na publicação (CIP)
M244t

Marques Cabral, Alexandre


Topologias do não-ser : discutindo (sub) ontologia e
colonialidade com Nelson Maldonado-Torres. – 1. ed. – Rio de
Janeiro : Via Verita, 2022.
71 p. ; 21 cm.

Bibliografia: p. [72-75].
ISBN 978-65-998169-1-8

1. Filosofia. 2. Colonialidade. 3. Ontologia. I. Título.

CDD – 100
Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB-7 5587
VIA VERITA EDITORA
www.viaverita.com.br
editorial@viaverita.com.br
@via.verita
DIRETOR CULTURAL
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CONSELHO EDITORIAL
Marco Antonio Casanova (UERJ)
Robson Ramos dos Reis (UFSM)
André Duarte (UFPR)
Alexandre Marques Cabral (UERJ)

COMISSÃO EDITORIAL
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Giorgia Cechinatto (UFMG)
Marco Antonio Casanova (UERJ)
Deborah Guimarães (UNIFESP)
Robson Ramos dos Reis (UFSM)
Marcos Gleizer (UERJ)
Michael Steinmann (Stevens Institute for Technology)
Marlene Zarader (Universidade de Montpellier)
Irene Borges Duarte (Univ. de Évora)
Roberto Novaes de Sá (UFF)
Ernildo Stein (PUC-RS)
Cristine Mattar (UFF)
Índice

Topologias do não-ser 9

Introdução 11

1. Niilismo colonial 18

2. Catástrofe metafísica e desalterização 41

3. Topologias do não-ser, colonialidade


do ser e necroecopolítica 58

4. Considerações finais 69

8
Topologias do não-ser:
discutindo (sub) ontologia e colonialidade com
Nelson Maldonado-Torres

Alexandre Marques Cabral1

A coisa mais bonita que temos dentro de nós mesmos


é a dignidade. Mesmo se ela está maltratada. Mas
não há dor ou tristeza que o vento ou o mar não
apaguem... Bonito é florir no meio dos ensinamentos
impostos pelo poder. Bonito é florir no meio do
ódio, da inveja, da mentira ou do lixo da sociedade.
Bonito é sorrir ou amar quando uma cachoeira de
lágrimas nos cobre a alma! Bonito é poder dizer sim
e avançar. Bonito é construir e abrir as portas a partir
do nada. Bonito é renascer todos os dias. Um futuro
digno espera os povos indígenas de todo o mundo...
O importante é prosseguir. É comer caranguejo com
farinha, peixe seco com beiju e mandioca... Pedimos
que nossos espíritos se elevem ao mais sagrado da
sabedoria humana e receba a irradiação do amor, da
paz e do conhecimento a todas as nossas cabeças
indígenas e de outras etnias e povos, transforman-
do todo pensamento discordante, conflituoso em
pensamento de paz, que construa a unidade entre
todos os seres do planeta Terra. (Eliane Potiguara)

1. Professor dos departamentos de filosofia da UERJ


e do Colégio Pedro II. Doutor em filosofia (UERJ) e
teologia (PUC-RJ).

10
Introdução

Pensar a (co) relação espaço-tempo, isso é


certamente um desafio, porém não uma novidade. Basta
levar em conta a ciência da física, além de muitas ciências
humanas e da filosofia ocidental, sobretudo dos saberes
ocidentais modernos, para se perceber como essa questão
fora (e é) tematizada ao longo dessa tradição. Mas que
o pensamento se relacione com não-lugares – isso não
é tão simples assim. Não estou aqui a falar da relação
arendtiana entre pensamento e não-lugar. Para Arendt,
quando pensamos, se considerarmos a “perspectiva
do mundo cotidiano das aparências”, estamos, em
verdade, em “lugar nenhum”.2 O pensamento, segundo
essa filósofa, acontece mediante a relação do ser humano
consigo mesmo, que institui o que ela chamou de dois-
em-um, não-lugar “onde” se questiona o significado ou o
sentido dos fenômenos em geral. Não é desse não-lugar
que este ensaio trata. O não-lugar aqui em questão
assinala, em verdade, um paradoxo. Trata-se do lugar
de quem não tem lugar. O não-lugar é, de certa forma,
um lugar. Exatamente por isso, vidas, existências ou
corpos que não têm lugar são desontologizados, isto é,
sofrem o que se poderia chamar de destituição ontológica
ou de diminuição no e do ser. Não-lugares são lugares

de vidas que não podem ser. A inviabilização de ser é
o que entendo por desontologização. Como ainda devo
mostrar, essa desontologização só é possível porque
ela não é natural. Ela deriva de contextos específicos
2. ARENDT, 1992, p. 151.

11
históricos, que nada mais são que mundos históricos. São
os mundos que instituem e condicionam os não-lugares
como lugares de desontologização de certas existências.
Por isso, falo em topologias do não-ser, isto é, lugares de
quem não pode ser, o que se identifica com a noção
paradoxal de topologia do não-lugar.
Apesar de a questão das topologias do não-ser
ou das desontologizações históricas não ser usual,
ela não é historicamente inexistente. Sob outras
nomenclaturas, tal problema se revela incontornável
na já consolidada tradição decolonial de pensamento
(e de prática). A conhecida compreensão trinitária da
colonialidade, que se manifesta nas colonialidades do
poder (política), do saber (epistemológica) e do ser
(ontológica) e que se conjuga interseccionalmente
com outra trindade categorial, a saber, gênero, raça e
classe, de modo implícito ou explícito se interessa pela
produção e naturalização de não-lugares, entendidos
como índices de condicionamento de existências ou
corpos desontologizados. O conhecido mè ón (não-
ser) platônico aparece reabilitado na complexa lógica
colonial de estabilização e concretização do mundo.
Todavia, a caverna platônica, no caso da colonialidade
compreendida como lógos histórico-mundano, não
possui saídas, uma vez que foram justamente as cisões

metafísicas que foram, de um modo ou de outro,
operacionalizadas no interior da própria colonialidade.
Nesse sentido, o homem que sai da caverna e que,
segundo Platão, acessa o âmbito inteligível (sobretudo a
ideia de bem), em meio à colonialidade não experimenta

12
qualquer quinhão de libertação, mas somente passa de
um polo da lógica colonial a outro. Daí ser possível dizer
que, para a colonialidade, não há saídas da caverna. O
reino da luz e do bem, como ainda devo mostrar, passa
a se identificar justamente com a densidade de ser, com
o ser propriamente dito ou ainda com a mesmidade
ontológica (tò autó), colonialmente idênticos às figuras
do senhor, do europeu, do homem branco cisgênero, da
metrópole (em contraposição à periferia), das ciências
modernas, dos demais saberes ocidentais modernos
etc. Nesse sentido, os binarismos metafísicos atuam
sobretudo como dispositivos político-epistemológico-
ontológicos de construção e naturalização de não-lugares
históricos.3 Ora, o que estou a dizer não é absolutamente
uma novidade no interior da tradição decolonial. Ao
contrário, trata-se de uma questão que, no meu caso,
surgiu justamente da leitura de textos e experiências
pertencentes às lutas e questões decoloniais. Porquanto
não se pode pensar a não ser no interior de uma tradição
de pensamento, entendo ser necessário questionar o
sentido das topologias do não-ser por meio de uma
discussão com a tradição decolonial.
O que entendo por tradição decolonial está
condicionado por certa dialogicidade de base. Por um
lado, essa tradição se estrutura muitas vezes por meio

de um diálogo contínuo com autores e autoras, obras de
arte, práticas ético-políticas, religiosidades, dentre outros
modos de ser-saber-fazer que não se apresentaram
nem se compreenderam explicitamente como
3. Cf. CABRAL, 2022.

13
decoloniais. Contudo, o que se chamou posteriormente
de decolonialidade foi visto ou entrevisto de algum
modo em seus textos, obras, práticas etc. Por isso, não
é incomum encontrar em textos que se denominem
decoloniais referências a autores e autoras como Aimé
Cesaire, Franz Fanon, Paulo Freire, Lélia Gonzales,
Sojourner Truth, que são quase sempre entendidos/
as como operadores/as do conhecido giro decolonial
ou ainda são fornecedores/as de conceitos e questões
pertinentes para os problemas decoloniais. Isso equivale a
dizer que o pensamento decolonial se concretiza através
de uma prática hermenêutica que realiza leituras e/ou
apropriações decoloniais de autores, autoras, obras etc.
que não apresentam o arcabouço conceitual decolonial
presente nas obras explicitamente decoloniais. Trata-
se de uma dialogicidade exógena, aberta a tempos,
espaços, práticas, pensamentos, sabedorias que não se
compreenderam claramente como decoloniais, ainda que
operacionalizem certo conceito de colonização, como
é o caso de Cesaire ou ainda de Fanon e Freire. Por
outro lado, há na tradição decolonial uma dialogicidade
endógena, realizada por pesquisadores e pesquisadoras
ou ainda por ativistas que se entendem explicitamente
como teóricos/as e/ou práticos decoloniais. Daí ser
possível dizer que a hermenêutica decolonial acontece por

meio de discussões diversas. O presente ensaio depende
do sentido dialógico da hermenêutica decolonial e da
experiência de verdade que aí se funda.
Ainda que não seja aqui o lugar para o
aprofundamento da noção de verdade na hermenêutica

14
decolonial, é possível dizer que um de seus significados
consiste em promover a visibilidade histórica dos
corpos invisibilizados pela lógica colonial. Trata-se
do que chamaria de virada ético-política da verdade.
Tanto a descrição da situação histórico-mundana de
invisibilidade colonial quanto a criação de formas de
visibilização das vidas invisibilizadas pela colonialidade
fazem parte da noção decolonial de verdade e, por isso,
atravessam o que estou a caracterizar como hermenêutica
decolonial. A dialogicidade decolonial depende, por
conseguinte, da potencialização da compreensão das
formas históricas de invisibilidade colonial, assim como
da produção do giro ético-político da verdade. Dialogar
com autores, autoras, obras de arte, movimentos
sociais, sabedorias ancestrais etc. decolonialmente
possui como objetivo primário expandir o horizonte
compreensivo das condições coloniais de invisibilidade
de certos corpos, tornando visíveis seus sofrimentos
e possibilitando a criação de formas de visibilidade
dessas mesmas vidas. A dialogicidade não se instaura
com o simples intuito de assinalar quem tem a verdade
e quem não a possui. Não se trata de um conflito com
vistas à superioridade intelectual das partes envolvidas.
Também não está em questão a simples concordância,
certo cavalheirismo amenizador de conflitos e formas

distintas de pensar-sentir, uma espécie de política
da boa vizinhança. Antes, a dialogicidade tenciona
perspectivas, articula questões e conceitos, com vistas à
compreensão citada e à potencialização do sentido ético-
político da verdade. Com tal tensionamento certamente

15
aparecem os limites de certos conceitos, práticas e
abordagens. Contudo, no mesmo tensionamento, se
dão possibilidades de expansão hermenêutica, o que,
certamente, é uma conquista para a tradição decolonial.
Em outras palavras, limites hermenêuticos podem ser
transcendidos, superados, por meio da potência dialógica
das epistemologias decoloniais.
Entendo que a questão das topologias do não-ser
encontra na obra de Nelson Maldonado-Torres um
excelente horizonte de interlocução hermenêutica.
Esse filósofo porto-riquenho não é somente um dos
grandes expoentes da tradição decolonial de pensamento,
como também é a grande referência no que concerne
à colonialidade ontológica, ou seja, a colonialidade do
ser. No belíssimo ensaio “Sobre la colonialidad del ser:
contribuciones al desarrollo de un concepto”, texto
publicado agora em português brasileiro em forma de
livro pela editora Via Verita, Maldonado-Torres mostra a
amplitude deste tipo de colonialidade, além de assinalar
muitos de seus desafios. Discutir as topologias do não-ser
em diálogo com a questão da colonialidade do ser tal
qual pensada por Maldonado-Torres é a estratégia que
será adotada pelo presente ensaio. Por outro lado, a
questão da colonialidade do ser não se resume ao ensaio
agora traduzido para o público brasileiro e dos demais

países de língua portuguesa. Antes, ele parece atravessar
grande parte da produção acadêmica do filósofo porto-
riquenho. Discuti-la é, de algum modo, introduzir-se no
pensamento de Maldonado-Torres. Daí ser o meu ensaio
um modo de introdução ao seu pensamento, sobretudo

16
ao ensaio que aparece em seguida neste livro. Por outro
lado, tal discussão permite de certa forma compreender
a potência desse pensador latino-americano, uma vez
que a dialogicidade da hermenêutica decolonial deixa
transparecer o jogo de identidades e diferenças que
estrutura o mencionado tensionamento dessa prática
interpretativa. O que pode a decolonialidade do ser
pensada por Nelson Maldonado-Torres? – eis o que
também está em questão neste ensaio.
Para realizar um diálogo com Nelson Maldonado-
Torres, não seguirei, como deve ter ficado claro, o
caminho do comentário analítico, mas o da apropriação
crítico-especulativa de seus textos, enfatizando,
evidentemente, seu ensaio publicado neste livro. Para
isso, posicionarei questões e conceitos relacionados com
o que estou a chamar de topologias do não-ser, que
aparecerão como mediadoras do diálogo em questão.
Inicialmente, irei caracterizar o que chamarei de niilismo
colonial. Em seguida, abordarei a relação entre catástrofe
metafísica, desalterização e existências condenadas.
Por fim, devo caracterizar a relação entre topologias
do não-ser, colonialidade do ser e o que chamarei de
necroecopolítica. Nesse último tópico, deve ficar claro
que tanto a ideia de topologias do não-ser quanto a
colonialidade do ser devem ser estendidas para uma

perspectiva ecocêntrica, o que significa correlacionar os
conceitos de mundo e de Terra, esta última compreendida
como condição do próprio mundo histórico.

17
1. Niilismo colonial:
sobre o crepúsculo do ídolo “modernidade”

Ainda que o niilismo tenha sido uma questão


importante para a literatura russa novecentista, como
aparece, por exemplo, em Turgueniev e Dostoievski, fato
é que somente em Nietzsche essa questão assume um
tipo de elaboração conceitual que marca radicalmente o
destino do pensamento filosófico ocidental. Em verdade,
aparece em Nietzsche uma pluralidade de niilismos, ou
seja, niilismo não é uma categoria a ser compreendida
no singular. Nesse sentido, tudo se passa como se o
filósofo alemão formulasse a questão dos niilismos de
forma paradigmática. Ainda que Heidegger, Blanchot,
Deleuze, Vattimo, dentre outros, se interessem pelo
niilismo e contribuam ativamente para a ampliação
semântica deste conceito, é em Nietzsche que ele
assume formulação filosófica decisiva. Apesar disso,
a compreensão do niilismo abarca hegemonicamente
as tradições ocidentais. Aliás, o próprio Nietzsche
identifica o niilismo com o que chamou de niilismo
europeu. Trata-se, em verdade, de um claro reducionismo
hermenêutico, que acabou por determinar a história
desse conceito. Isso, contudo, não significa dizer que é
preciso deixar à deriva a noção de niilismo. Ao contrário,

entendo que seja necessário redimensionar o niilismo
a partir de contextos históricos não europeus. É o que
acontece com a colonialidade, uma vez que essa, ainda
que tenha sido iniciada pela Europa e, como ficará claro,
se identifique com a seiva histórica da modernidade, se

18
refere essencialmente ao não-europeu e ao não-ocidental.
Por isso, penso que é possível – e, em certo sentido,
necessário – ampliar a noção de niilismo europeu por
meio do que gostaria de chamar de niilismo colonial. Em
verdade, o niilismo colonial é a condição histórica de
possibilidade de a Europa ser niilista. Daí a palavra latina
nihil (nada), condição etimológica do termo niilismo,
ter de ser compreendida polissemicamente; sobretudo
quando levamos em conta o fato de as figuras do nada
no niilismo europeu não se identificarem com o nada
do niilismo colonial. Começo, portanto, perguntando
sobre o modo como Nietzsche compreendeu o niilismo
europeu. Quais os seus principais sentidos? As variações
desse conceito não serão aqui esgotadas. Escolherei dois
modos hegemônicos de o niilismo aparecer nos textos
nietzschianos, a saber, niilismo como crise dos valores
supremos da tradição metafísico-moral ocidental, o que o
atrela à morte de Deus, e o niilismo como a inexistência
de densidade vital (referente à vontade de poder) dos
valores criados pela tradição hegemônica ocidental,
especialmente pela modernidade (tardia). Em ambos
os casos, o que está em questão é uma hermenêutica
fisiopsicológica do niilismo, ou seja, uma interpretação
fundada na corporeidade e na capacidade de o corpo,
entendido como vontade de poder ou relação agonística

das forças, instituir valores.
Começo com um conhecido fragmento póstumo
de Nietzsche do outono de 1887: “Que significa
niilismo? Que os valores supremos se desvalorizaram.

19
Falta a finalidade; falta a resposta ao por quê?”4 Desse
fragmento é possível afirmar que niilismo é um conceito
que se refere essencialmente à noção de valor, ou seja,
niilismo é uma questão axiológica. Por outro lado, se
o niilismo nasce da perda de certos valores e tal perda
desemboca na falta de finalidade, então o niilismo
se identifica com a perda de sentido, pois um valor
institui finalidade, ou seja, direciona a existência e
determina o significado das suas experiências. Porém,
não se trata de todo e qualquer valor. O niilismo, ao
menos em seu sentido basilar, deriva da crise dos valores
supremos. Um valor supremo não é somente um valor
considerado historicamente relevante e tradicional. Sua
supremacia depende de um traço decisivo, a saber, seu
caráter metafísico. Isso fica claro em outro fragmento
póstumo de 1887: “O niilismo radical é a convicção
de uma absoluta inconsistência da existência, quando
se trata daqueles valores que se reconhecem como os
mais elevados, acrescentando o entendimento de que
nós não temos o menor direito a acrescentar um além
ou um em-si das coisas que seja ‘divino’ ou moral de
carne e osso.”5 Valores supremos são valores elevados e
valores elevados são aqueles que outrora acrescentavam
“um além ou um em-si das coisas”. Esse além ou em-si
pode ser divino ou moral. Mas, por que divino ou moral?

Resposta: por causa da ideia nietzschiana de metafísica.
Segundo Nietzsche, a metafísica se caracteriza por
acrescentar “ao condicionado, o incondicionado”. Daí
4. NF/FP 9 [35] do outono de 1887.
5. NF/FP 10 [192] do outono de 1887.

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o espanto: “Absurdo de toda metafísica como uma
dedução do condicionado a partir do incondicionado”.6
Em outras palavras, a metafísica é qualquer tipo de
doutrina dos dois mundos (Zweiwelten), que nasce de
um acréscimo, a saber, o acréscimo do incondicionado
ao condicionado. Entretanto, esse acréscimo não é
reconhecido como tal e, por isso, a metafísica almeja
depreender o condicionado do próprio condicionado que
ela ficticiamente produziu, o que é aparentemente um
absurdo. Tal cisão entre condicionado e incondicionado
já apresenta uma relação hierárquica ou de subordinação,
onde o incondicionado se apresenta como fundamento
do condicionado. Essa hierarquia revela uma avaliação
de base: o âmbito considerado fundamento vale mais
que o fundamentado. Uma vez que essa compreensão
ontológica organiza os modos de ser do vivente humano,
a metafísica não é uma simples constatação de como o
mundo funciona. Antes, os conceitos que atravessam
os modos metafísicos de compreensão da realidade
são valores. Por isso, o incondicionado, que nada mais
é que o “em-si”, atua como valor supremo; e, assim, se
identifica com o conceito moral e ontológico de bem.
Nesse sentido, toda compreensão metafísica é uma
avaliação moral da existência.
O que foi dito talvez fique mais claro se recorrermos

aos sentidos epistemológico, moral e ontológico do
acontecimento da morte de Deus. Afirmar a morte de
Deus não equivale a dizer que Deus, tradicionalmente
compreendido como ente religioso por excelência, não
6. NF/FP 8 [25] do verão de 1883.

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existe. Não se trata, portanto, de nenhum tipo de ateísmo.
Se entendermos por ateísmo a demonstração racional
de que certo objeto chamado “Deus” não existe, então
é preciso dizer que a morte de Deus coloca em xeque
a própria pretensão racional de provar a inexistência
divina. No sentido que aqui interessa, a morte de Deus
é um acontecimento histórico, que põe em colapso as
matrizes metafísicas que marcam hegemonicamente
a tradição ocidental. E não qualquer acontecimento.
Trata-se de um acontecimento decisivo. Por isso, quem
pertencer ao tempo da morte de Deus, faz parte de “uma
história mais elevada do que toda história até aqui!”7
Nesse sentido, a fala do homem louco que carregava
uma lanterna em plena manhã procurando Deus deixa
clara a potência desconstrutiva desse acontecimento de
proporções históricas: “Nós o [Deus] matamos – vocês
e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos
isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos
deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos
nós, ao desatar a terra de seu sol? Para onde se move
ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe
de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para
trás, para os lados, para a frente, em todas as direções?
Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não erramos
como que através de um nada infinito?”8 A morte de

Deus subtrai o mar, o horizonte e o sol, instituindo a
perda radical de sentidos organizadores e estruturadores
da nossa existência: o niilismo como crise dos valores
7. GC, §125.
8. Idem.

22
supremos. Ora, dentre essas metáforas de Deus (mar,
horizonte e sol), destaco a menção imagética à ideia de
bem em Platão: o sol.9
O sol platônico se identifica com a ideia das
ideias, aquela que fundamenta as demais ideias e que
responde pela inteligibilidade última do mundo: a ideia
de bem. Uma vez que o âmbito da ideia transcende
o âmbito sensível, sua textura ontológica é aquela
que se convencionou chamar de suprassensível. O sol,
metáfora do fundamento dos fundamentos, estrutura
e determina os binarismos metafísicos da tradição
ocidental: sensível-suprassensível, ser-devir, eternidade-
tempo, alma-corpo, em-si/para-si etc. Enquanto
fundamento infundado, o sol platônico, irredutível ao
plano empírico, não se imiscui nas relações que marcam
o devir. O que não é relacional nada mais é que a
coisa-em-si. Se Deus é sol, ele é o em-si, o fundamento
transcendente, o absoluto, a causa prima e última dos
fenômenos temporais, ou seja, o eixo em torno do
qual giram os binarismos metafísicos presentes no
pensamento e nas culturas ocidentais.10 A morte de Deus
assinala, portanto, a crise dos binarismos metafísicos e
a inviabilidade de suas cosmovisões estruturarem nossos
modos de ser, pensar, valorar, desejar etc. Porquanto as


9. Sobre a questão da morte de Deus e as metáforas de
Deus no aforismo 125 de A gaia ciência, cf. CASANOVA,
2013 e CABRAL, 2014.
10. A relação entre Deus, coisa-em-si e metafísica aparece
explicitamente em Crepúsculo dos ídolos, sobretudo nos
capítulos “A razão na filosofia” e “Os quatro erros”.

23
dicotomias metafísicas hegemonicamente respondem
pelos paradigmas epistemológicos, pelos códigos
morais, pelas compreensões religiosas de mundo, ou
seja, pela produção de valores, a morte de Deus é um
acontecimento epistemológico, moral, religioso e político
sem precedentes no Ocidente. Daí o vazio de valores, a
crise nos modos de ser, saber, sentir, crer... Daí o nada,
o vácuo na pele, a lanterna acesa de dia, os coveiros
a enterrar Deus. Primeiro significado de niilismo: o
esvaziamento dos valores metafísicos e a perda inicial
de sentido mobilizador das existências ocidentais.
O niilismo entendido como dissolução dos
valores supremos (metafísicos) e perda de sentidos
mobilizadores e estruturadores das existências é,
certamente, um dos grandes significados que este
conceito assume no pensamento de Nietzsche. O
segundo que será aqui realçado está atrelado a esse, qual
seja, o sentido fisiopsicológico do niilismo entendido
como a qualidade desvitalizada ou despotencializada dos
valores hegemônicos no Ocidente, sejam eles metafísicos
ou não. Niilismo, agora, se relaciona com as noções de
corpo, de vontade de poder e de décadence, o que deixa
claro o caráter complexo dessa compreensão. Trata-se
de uma compreensão de niilismo que se identifica com
as qualidades despotencializadas dos valores-sentidos

que estruturam vidas, corpos, ou seja, configurações
de determinadas vontades de poder. O niilismo diz
respeito, portanto, aos modos despotencializados,
desvitalizados de certos corpos se corporificarem, se
concretizarem. Nesse sentido, niilismo é condicionado

24
pelo que Nietzsche chamou de “valores de décadence”.11
Um valor ou um sentido de décadence é, em outras
palavras, aquele que “prefere o que lhe [à vida] é mais
desvantajoso”.12 Dito de modo direto, valores ou
sentidos niilistas são aqueles que condicionam formas
de vida que se estabilizam sob o modo da inversão
(Verkehtheit) do modo próprio de ser da vida. Ora, sem
entrar nos pormenores, é inerente à vida compreendida
como vontade de poder a pluralidade de relações (de
forças, de perspectivas), o devir (Werden) que revela
a finitude radical da existência e a constituição de
alguma unidade de duração relativa, derivada de uma
das forças que desponta como vetor organizacional das
demais, unidade essa que responde pela singularidade
de um existente.13 O sentido ascensional da vontade
de poder se revela quando um existente consegue
pluralizar sua rede relacional de forças, afirmar o devir
e potencializar, intensificar e expandir sua unidade vital
(autossuperação). Vidas niilistas invertem esse sentido
ascensional e promovem modos de vida que rejeitam
a pluralidade, a singularização e/ou o devir/finitude
das forças vitais. Daí a relação entre niilismo e valores
decadentes.
As informações acima mostram que ou bem o
niilismo assinala uma crise nos valores supremos de

caráter metafísico, ou bem caracteriza a qualidade
despotencializadora e desvitalizadora dos valores
11. AC, § 14.
12. Idem.
13. Cf. CABRAL, 2014 e CASANOVA, 2003.

25
hegemônicos das tradições ocidentais. O nada (nihil) que
sustenta o conceito de niilismo, nesse caso, diz respeito
ao vazio de valores supremos ou aos valores vazios de
vitalidade. O nada ainda se refere a vidas vivas, ainda que
vivas sem vitalidade. No caso do niilismo colonial, o que
está em questão é outro vazio, outro nada. Trata-se do
esvaziamento da possibilidade de existir. E isso porque
o nada é produzido pela morte e esta outra coisa não é
senão resultado de brutalidade ou violência. O niilismo
colonial assinala que a colonialidade é por si só um tipo
específico de niilismo fundado em práticas diversas e
conjugadas de violência. Ao se falar em niilismo colonial,
não se pode fazer menção à morte de Deus, mas somente
à morte da não-Europa. Mas por que a colonialidade
é essencialmente niilista? Como entender a noção de
colonialidade? Ouçamos Maldonado-Torres:

Colonialidade não significa o mesmo que colonia-


lismo. Colonialismo denota uma relação política e
econômica, na qual a soberania de um povo reside
no poder de outro povo ou nação, o que constitui tal
nação em um império. Diferentemente dessa ideia,
a colonialidade se refere a um padrão de poder que
emergiu como resultado do colonialismo moderno,
mas que, em vez de estar limitado a uma relação
formal de poder entre dois povos ou nações, se

refere ainda mais à forma como o trabalho, o conhe-
cimento, a autoridade e as relações intersubjetivas
se articulam entre si através do mercado capitalista
mundial e da ideia de raça. Assim, ainda que o co-
lonialismo preceda a colonialidade, a colonialidade

26
sobrevive ao colonialismo. Ela mesma se mantém
viva em manuais de aprendizagem, no critério para
o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido
comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações
dos sujeitos e em tantos outros aspectos de nossa
experiência moderna. Em um sentido, respiramos
a colonialidade na modernidade cotidianamente.14

Primeiramente, colonialidade não é colonização.
Portugal colonizou o Brasil e, após a independência
brasileira, a colonização conheceu seu ocaso. O mesmo
acontece com as colonizações promovidas pela Espanha
e pela Inglaterra. Os processos de independência
nacional destroem a colonização (ou o colonialismo),
porém não acabam com a colonialidade. Dessa forma,
a colonialidade surge com a colonização, mas não é
destruída com as independências nacionais. Nas palavras
de Maldonado-Torres: “a colonialidade sobrevive ao
colonialismo”. Essa sobrevivência deixa claro que a
colonialidade possui uma vigência histórica diferenciada.
Trata-se de uma presença tentacular, por vezes sutil, por
vezes bruta, atuando de diversos modos no tecido de uma
cultura e incidindo diretamente na formação político-
epistemológico-existencial-econômico-religioso-moral
de um povo. Em outros termos, a colonialidade atua
em âmbito micro e macropolítico, ou seja, condiciona

afetos, constitui saberes e destitui conhecimentos,
produz símbolos e crenças, normatiza comportamentos,
produz bens e os distribui segundo sua lógica interna,

14. MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131.

27
subjetiva pessoas e coletividades, condiciona a criação
e o andamento das instituições sociais etc. Por esse
motivo, a colonialidade se refere a modos específicos de
exercício de poder, cujo sentido é, dito resumidamente,
produzir dominação entre corpos e povos e distribuir
e naturalizar formas de violência.
Se a colonialidade deriva da colonização, é
possível afirmar que há uma relação direta entre as
matrizes da modernidade e a própria colonialidade. É
isso que afirmam os estudos decoloniais. Entendendo
a colonialidade como um lógos histórico, ou seja, uma
“lógica” que conduz hegemonicamente certos sistemas-
mundo históricos, sua gênese deriva do século XIV, mais
propriamente da invasão-invenção do Novo Mundo
a partir de 1492. Foi com “a expulsão dos Mouros e
Judeus da Península Ibérica e a invenção da América ao
longo dos séculos XVI e XVII”15, que a lógica colonial
encontrou o solo histórico em meio ao qual pôde
florescer ao longo dos séculos subsequentes. Todos e
todas conhecem o desdobramento da potência destrutiva
da colonialidade: expansão dos domínios portugueses
e espanhóis nas Américas a partir entre os séculos
XIV e XVIII, domínio colonial inglês da América do
Norte e, posteriormente, de parte da África negra e
da Índia, invenção do racismo estrutural, dominação

econômica do hemisfério norte a partir da mundialização
da economia capitalista pós-revolução industrial etc.
Atualmente, a lógica colonial e sua expansão imperialista
é exercida também por uma ex-colônia importante, a
15. GROSFOGUEL; MIGNOLO, 2008, p. 29.

28
saber, os Estados Unidos. Levando em consideração
as observações de Grosfoguel e Mignolo, diria que
a colonialidade revela uma perversa ambiguidade,
que se expressa nas suas seguintes características:
A) promoção da destruição política, epistemológica
e ontológica dos povos originários, posteriormente
chamados de indígenas, além da fabricação da escravidão
da África negra como combustível necessário para o
desenvolvimento de seu projeto econômico capitalista
e B) assim se fez com o intuito de salvar a alma
(ideologia religiosa cristã) e de potencializar o progresso
civilizatório. “Assim, a retórica positiva da Modernidade
justifica a lógica destrutiva da colonialidade”.16 Ora,
esse cenário exploratório não antecede a Modernidade;
ele é a própria seiva da Modernidade. Eis a razão pela
qual os estudos decoloniais falam em colonialidade-
modernidade entendida como um sistema-mundo
específico e não como uma oposição. Isso certamente
confronta os modos hegemônicos de a Europa falar
da própria Modernidade. A partir da perspectiva da
colonialidade, a modernidade se funda em um “ethos
colonizante”.17 Sem esse ethos, a Modernidade se resume
a um ufanismo europeu em relação à sua pretensa
superioridade civilizatória e ao caráter salvífico-
messiânico de seu movimento expansivo em direção

à dominação planetária. Por isso, Mignolo afirmou
que a colonialidade é “o outro lado (o lado escuro?) da

16. Ibidem, p. 31.


17. MALDONADO-TORRES, 2018, p. 30.

29
Modernidade”.18 O outro lado nada tem a ver com algum
tipo de efeito colateral. Antes, o outro lado é axial, é a
contraface, é o correlato da Modernidade, o outro lado
da moeda da Modernidade. Foi nesse sentido que Paul
Gilroy entendeu ser necessário reavaliar os modos de a
Europa compreender a Modernidade a partir de seus
ufanismos (sobretudo aqueles derivados do Iluminismo),
levando em conta a escravidão da África negra. Disse ele:

Em oposição a essa visão [iluminista], proponho


que a história da diáspora africana e uma reava-
liação da relação entre Modernidade e escravidão
podem exigir uma revisão das condições, nas quais os
debates sobre a Modernidade têm sido elaborados,
uma revisão mais completa do que qualquer um de
seus participantes acadêmicos pode estar disposto
a admitir.19

Se a Modernidade é, em verdade, o sistema-mundo


modernidade-colonialidade, então ela, por um lado,
precede Descartes e, por outro, funda um horizonte
hermenêutico, à luz do qual é possível correlacionar
saberes, conhecimentos, epistemologias modernas com
suas condições coloniais geralmente invisibilizadas
no interior dos sistemas modernos de pensamento.
Em outros termos, a colonialidade atravessa, ainda

que tacitamente, sistemas de pensamento filosóficos
modernos e, por isso, é possível realizar uma leitura

18. MIGNOLO, 2005, p. 73.


19. GILROY, 2019, p.109.

30
crítico-decolonial de sistemas de pensamento modernos.
Nas palavras de Dussel: “a filosofia moderna europeia,
mesmo antes do ego cogito, mas certamente a partir dele,
situa todos os homens, todas as culturas, e, com isso,
suas mulheres e filhos, dentro de suas próprias fronteiras
como úteis, manipuláveis, instrumentos”.20 Só é possível
falar do sentido manipulador, funcionalizador, utilitário
da filosofia moderna europeia, porque sua matriz é
muito mais geopolítica do que simplesmente racional.
Em outros termos, a filosofia moderna europeia está
diretamente condicionada por determinadas relações
geopolíticas de poder. Daí a possibilidade de se dizer
que o fundamento político-epistemológico do cogito
cartesiano é o eu conquisto, como o fez Dussel e como
o corroborou Maldonado-Torres: “Antes do ego cogito
existe o ego conquiro (o ‘eu conquisto’ é o fundamento
prático do ‘eu penso’)”.21 Dito de modo mais detalhado:
“O ego cogito moderno foi antecedido em mais de um
século pelo ego conquiro (eu conquisto) prático do luso-
hispano que impôs sua vontade (a primeira ‘Vontade-
de-poder’ moderna) sobre o índio americano”.22 Se
o eu conquisto é a condição de possibilidade do eu
penso, então deve haver uma relação entre a violenta
conquista colonial e as categorias modernas presentes
em Descartes, por exemplo. É justamente isso que

pensa Maldonado-Torres: Descartes é, de algum
modo, uma voz privilegiada para se compreender a
20. DUSSEL, 1977, p. 9.
21. Ibidem, p. 10.
22. DUSSEL, 2005, p. 63.

31
colonialidade, ao mesmo tempo em que a universalidade
de seu pensamento acaba por esconder os interesses
da particularidade da humanidade europeia, ou seja,
seu projeto imperial de conquista, que se traveste de
bastião da liberdade, da justiça, do progresso de todos
os seres humanos.
Ouçamos Maldonado-Torres: “o significado do
cogito cartesiano, para a identidade moderna europeia,
tem que ser entendido na relação com um ideal não
questionado de subjetividade, expresso na noção de ego
conquiro.”23 Se Descartes “chega” à certeza do cogito por
meio de três graus do exercício da dúvida, o ego conquiro
também se afirmou mediante o exercício da dúvida, mas
não de uma dúvida reduzida ao âmbito gnosiológico-
metafísico. Poder-se-ia dizer que o ceticismo colonial
possui caráter político-ontológico. Não se trata da dúvida
em relação a um objeto gnosiológico, ao conhecimento
sensível ou a uma ideia, mas uma dúvida derivada de
um processo de racialização, por meio do qual o não-
europeu não pode ser reconhecido como plenamente
humano, fundando, assim, a instância dos “sub-outros
colonizados e racializados”24. A certeza produzida por
essa dúvida diz respeito ao “ego conquiro ou homem
colonial”25, conceitos que passam a se identificar com a
humanidade propriamente dita. Consequentemente, um

novo binarismo hierárquico se forma: sujeitos humanos
(homens coloniais) de um lado e sub-humanizados/as
23. MALDONADO-TORRES, 2007, p. 133.
24. Ibidem, p.134.
25. Idem.

32
de outro. O ego conquiro não posiciona a realidade do
mundo como res extensa, como fizera Descartes. Ele
posiciona o outro como radicalmente inferior. Por isso,
o ceticismo colonial é de outra ordem: ele nada mais é
que “ceticismo maniqueísta misantrópico”.26 Mas, no
que consiste esse maniqueísmo misantrópico?
A colonialidade não forma uma experiência
genérica de ódio à humanidade, o que se identificaria
com a noção mais corrente de misantropia. Antes,
a colonialidade se afirma por meio do ódio às sub-
humanidades. São as vidas sub-humanizadas que
estão em questão no maniqueísmo misantrópico. Daí
as palavras de Maldonado-Torres: “O maniqueísmo
resiste ao movimento dialético, o que significa que,
na colonialidade, o mundo moderno está instalado
numa guerra permanente contra o povo colonizado,
seus costumes e um vasto conjunto de suas criações e
seus produtos mais diretos.”27 Por que é, porém, que
Maldonado-Torres fala em maniqueísmo, uma doutrina
desenvolvida no início da patrística, que opunha,
em níveis cosmológico, antropológico e moral, dois
princípios ontológicos identificados com o bem e o mal?
Exatamente pelo fato de a colonialidade possuir um
caráter moral, a saber, ela entende o colonizador como
bem e o/a colonizado/a como mal. Por isso, a sujeição

das vidas colonizadas é um ingrediente necessário
para a promoção do bem. A presença do elemento
cristão nessa lógica violenta incrementa e potencializa
26. Idem.
27. MALDONADO-TORRES, 2018, p. 38.

33
a presença da dicotomia bem-mal na colonialidade.
Nesse caso, a violência não é um mal, mas um antídoto
a ser usado contra os perigos do mal. Eis por que Fanon
fala da “cidade do colonizado” por meio da noção de
maniqueísmo. Fazer mal ao mal é uma importante
estratégia, para que a colonialidade se perceba fazendo
o bem. Ouçamos Fanon em Os condenados da Terra:

O mundo colonial é um mundo compartimentado.


É sem dúvida desnecessário, do ponto de vista da
descrição, recordar a existência de cidades indígenas
e de cidades, de escolas para indígenas e de escolas
para europeus, tal como é desnecessário recordar o
apartheid na África do Sul. No entanto, se penetra-
mos na intimidade dessa compartimentação, teremos
pelo menos a vantagem de pôr em evidência algumas
das linhas de força que ela comporta. (...)

O mundo colonizado é um mundo cortado ao meio. A


linha divisória, a fronteira é indicada pelos quarteis e pelas
esquadras de polícia. Nas colônias, o interlocutor válido
e institucional do colonizado, o porta-voz do colono
e do regime de opressão é o polícia ou o soldado. (...)

A zona habitada pelos colonizados não é comple-


mentar da zona habitada pelos colonos. Essas duas
zonas opõem-se, mas não a serviço de uma unidade

superior. Regidas por uma lógica puramente aristo-
télica, obedecem ao princípio de exclusão recíproca:
não há conciliação possível, um dos termos está a
mais. A cidade do colono é uma cidade firme, toda
ela de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfal-

34
tada, onde os caixotes do lixo transbordam sempre
de restos desconhecidos, jamais vistos, nem mesmo
sonhados. Os pés do colono nunca se vislumbram, a
não ser no mar, mas nunca se está suficientemente
perto deles. (...)

A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade do in-


dígena, a aldeia negra, a Medina, a reserva, é um lugar
de má fama, habitado por homens de má fama. Lá,
nasce-se em qualquer parte, de qualquer maneira. Lá,
morre-se em qualquer parte, de qualquer coisa. É um
mundo sem intervalos, onde os homens se amontoam
uns sobre os outros, as cubatas, umas sobre as outras. A
cidade dos colonizados é uma cidade faminta, faminta
de pão, de carne, de sapatos, de carvão e de luz.28

A cidade das vidas colonizadas retrata como os


corpos sub-humanizados são violentados, com vistas
ao controle ou mesmo à dizimação do mal. As favelas
no Rio de Janeiro e em outras partes do Brasil que
o dignam. Ratos a passear pelos barracos, baratas
coabitando lares, falta de saneamento básico, grande
vulnerabilidade às enchentes e tempestades, armas e mais
armas nas mãos de traficantes, milicianos e policiais,
estado permanente de sítio, guerra naturalizada, balas
“perdidas” que vitimam continuamente inocentes, corpos
negros assassinados, pobreza, insuficiência alimentar...

morte. A favela é do mal; o “asfalto”29 é do bem. As

28. FANON, 2021, p. 41-43.


29. Ser do asfalto é uma expressão corrente no Rio
de Janeiro; na maioria das vezes dita por quem mora

35
incursões violentas da polícia nas favelas, que geralmente
contam com o apoio da população “de bem”, assinalam
o maniqueísmo colonial dessa situação histórica. Eis o
sentido do maniqueísmo colonial e da sua moralidade
violenta. Ora, o combate ao mal deixa transparecer
o nada presente no niilismo colonial. Como então
entender esse nihil do niilismo colonial? Para responder
essa questão, farei uso de dois conceitos distintos, porém
inter-relacionados: a não-ética da guerra, tal como a
formulou Maldonado-Torres, e a necropolítica, como
pensada por Achille Mbembe. Começo com duas
passagens de Maldonado-Torres:

A modernidade/colonialidade é um paradigma de
guerra que se coloca como justo e que faz o contexto
colonial sempre violento, uma situação que normaliza
a violência bem além das fronteiras das colônias e
ex-colônias. A violência é desencadeada em múltiplas
direções, mesmo na metrópole, sendo que os sujeitos
colonizados tendem persistentemente a ser os alvos
diletos da violência sistemática.30

Quando os conquistadores chegaram às Américas,


eles não aplicaram o código ético que regulava seu
comportamento em seus reinados. Suas ações eram
reguladas pela ética, ou melhor, pela não-ética da

na favela. Uma vez que grande parte das favelas do
Rio de Janeiro se localiza em morros, ser do asfalto é
não se da favela. Daí a dicotomia colonial fluminense:
favela-asfalto.
30. MALDONADO-TORRES, 2018, p. 38.

36
guerra. Não se pode esquecer que, enquanto os cris-
tãos do primeiro século foram críticos da escravidão
no Império romano, cristãos posteriores justificavam
a escravidão dos inimigos em guerra. No mundo
antigo e no medievo, a escravidão era legítima, par-
ticularmente com respeito aos vencidos de guerra.
O que ocorreu nas Américas não foi só a aplicação dessa
ética, mas uma transformação e naturalização da não-
-ética da guerra, levada até o ponto de produzir uma
realidade definida pela condenação.31

A colonialidade-modernidade funciona sob o


paradigma da guerra. Por isso, a luta do bem contra o
mal se manifesta por meio de diversas violências. Nesse
sentido, a lógica colonial só ganha força se criar inimigos.
Esse éthos trabalha da seguinte forma: comportamentos
válidos entre colonizadores não se estendem na vida
dos/as colonizados/as. Por isso, se na metrópole os
“humanos” se tratam alguma vezes com dignidade, na
vida dos sub-humanos é possível aplicar toda sorte de
violência. Daí a não-ética da guerra, que se naturaliza e
se perpetua nas culturas e povos sub-humanizados até
hoje. Nessa lógica, o assassinato, o estupro sobretudo
de mulheres, o roubo, a tortura, o etnocídio, a fome, a
miséria se tornam comuns, óbvios, “naturais”. Como
não deixar um presidiário negro padecer de fome, frio,

abandono, doença? Como a população pobre da América
Latina poderia ter um sistema de saúde público de
alta qualidade? E a educação do/a pobre e populações

31. MALDONADO-TORRES, 2007, p. 138.

37
periféricas? Fodam-se todos e todas. Que se fodam!!!
Esse foda-se é uma sentença de morte. No entanto,
não qualquer morte.
Há mortes que glorificam, pois produzem
saudade, reconhecimento e grandeza. Que se pense
nos heróis e heroínas da Grécia antiga; que se pense
em Aquiles, Heitor, Antígona ou Ajax.32 E o que
dizer da conhecida morte voluntária apregoada pelo
Zaratustra, de Nietzsche? “Morre no tempo certo: é
o que ensina Zaratustra. (...) Livre para a morte livre
na morte, um sagrado negador quando não é mais
tempo de dizer sim: entende, assim, melhor da vida e
da morte. Que a vossa morte não seja uma blasfêmia
contra o ser humano e a terra, meus amigos: isto eu
rogo ao mel de vossas almas”.33 E o ser-para-a-morte
heideggeriano, índice de singularização existencial
e transparência fenomenológico-hermenêutica?34
Eis exemplos de mortalidades que possuem algum
quinhão de glorificação ontológica, seja na conquista
da imortalidade pela memória de quem vive (como na
Grécia), na copertinência de mortalidade e liberdade
(Nietzsche) ou ainda na relação entre morrer e
singularização (Heidegger). Não são essas mortes que
nascem da colonialidade. A lógica colonial reduz a morte
à eliminação violenta da vida e/ou ao impedimento de

que o exercício da existência seja realizado com alguma
32. Sobre a polissemia da morte (na verdade, do verbo
morrer), Cf. CABRAL, 2022, introdução.
33. ZA, I, “Da morte voluntária” (ou “Da morte livre”).
34. Cf. ST, §§ 48-60.

38
dignidade. Trata-se, em verdade, do sentido necropolítico
da morte.
Como mostrou Mbembe, nas práticas
necropolíticas, que constituem os sujeitos (subjetivação)
e condicionam o espaço da coexistência humana (mundo,
espaço político), o poder é exercido com o intuito
de “criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas
de existência social, nas quais vastas populações são
submetidas a condições de vida que lhes conferem o
estatuto de ‘mortos-vivos’”.35 Criar “mundos de morte”,
que condicionam modos de ser que possuem o estatuto
de “mortos-vivos”, significa submeter existências de um
grande contingente populacional à morte em vida e à
possibilidade contínua do extermínio. Vidas-mortas e
vidas expostas ao genocídio são o efeito direto (e não
colateral) do necropoder. Aliás, essa lógica assassina é
o que caracteriza o pensamento moderno e a própria
Modernidade, segundo Mbembe. Ele mesmo chega
a dizer: “no pensamento filosófico moderno, assim
como na prática e no imaginário político europeu, a
colônia representa o lugar em que a soberania consiste
fundamentalmente no exercício de um poder à margem
da lei (ab legibus solutus) e no qual a ‘paz’ tende a assumir
o rosto de uma ‘guerra sem fim’”.36 Porquanto na colônia
o poder se exerce fora da contenção legal, a estabilidade

social, o que equivaleria à paz numa sociedade, é
garantida, paradoxalmente, sob a manutenção da guerra,
“uma guerra sem fim”. Por esse motivo, a morte se revela
35. MBEMBE, 2018, p. 71.
36. Ibidem, p. 32.

39
de modo polissêmico. Primeiramente, ela significa um
estado qualitativo da existência, um tipo de vida sem
vida devido à vigência permanente da violência. Em um
segundo lugar, a morte equivale à contínua construção
de condições para que vidas sejam exterminadas. Desse
modo, diria que, em comparação com o biopoder de
Foucault, a necropolítica poderia ser caracterizada do
seguinte modo: exercício de poder violento que 1) faz
morrer, 2) deixa morrer e 3) produz vidas qualitativamente
mortas.
A não-ética da guerra e a necropolítica niilizam as
existências colonizadas. As mortes que se revelam nessa
forma brutal de violência se identificam com aquilo
que a tradição judaica chamou de iniquidade, a saber,
a naturalização da injustiça, que, segundo o capítulo 4
do livro de Gênesis, foi a condição da primeira morte
a se manifestar no mundo: Caim assassinou Abel.37
O nihil do niilismo colonial é justamente a injustiça
e a violência presentes na iniquidade. A injustiça-
violência-iniquidade condiciona o sistema-mundo
chamado modernidade-colonialidade. Justamente porque
a naturalização da guerra em todo tecido social transforma as
vidas colonizadas em mal a ser exterminado ou posicionado
em condições análogas à morte (precarização das condições
de existência) é que a necropolítica faz da iniquidade a

normalidade da colonialidade. Se o niilismo europeu
nietzschiano fala de vidas despotencializadas, vontades
de poder degeneradas, o niilismo colonial denuncia as
despotencializações vitais derivadas da brutalidade da
37. Sobre o conceito de iniquidade, Cf. CABRAL, 2021.

40
lógica do assassinato que caracteriza a colonialidade,
algo que Nietzsche não levou em conta.

2. Catástrofe metafísica e desalterização:


o problema das existências condenadas

Se a colonialidade condiciona modos de ser, saber,


poder, desejar, sentir, além de instituições, leis e crenças,
isso significa que sua lógica se apropria de maneira
tentacular de diversos campos da experiência humana.
Por isso, é possível suspeitar que o modo hegemônico
de o Ocidente pensar o mundo, desde a Modernidade,
se tornou um veículo da colonialidade. Nesse caso, a
metafísica, entendida por um lado como pensamento
binário de compreensão de mundo (conforme
Nietzsche) e como esquecimento do ser (segundo
Heidegger), tornar-se-ia um dispositivo político da
lógica colonial. O maniqueísmo colonial, tal como foi
pensado por Maldonado-Torres, parece apontar para essa
compreensão. Isso porque ele subsidia politicamente o
cogito cartesiano, uma vez que condiciona a misantropia
colonial, que identifica nas sub-humanidades o alvo
preferencial do seu ódio aos seres humanos. Como disse
na introdução, na colonialidade, a alegoria da caverna
de Platão continua viva, porém com uma restrição:

as vidas alienadas no não-ser presente no interior
da caverna não conseguem mais ascender ao ser, ao
espaço fora da caverna. Dessa forma, somente algumas
vidas se identificam com o ser, com a verdade, com a

41
liberdade de viver fora da caverna, enquanto muitas
outras se situarão no não-ser. Eis a presença viva do
binarismo metafísico ser/não-ser, agora pensado à luz
da violência colonial. É exatamente isso que deve ser
inquirido agora: a relação entre a violência colonial e
a metafísica entendida como modo hegemônico de a
modernidade europeia pensar o mundo.
A metafísica é, antes de tudo, um dispositivo político-
existencial.38 Por um lado, trata-se de um dispositivo
político, porque engendra e condiciona o espaço de
coexistência humana: a pólis. Por outro, é um dispositivo
existencial, porque produz modos de ser, condiciona
afetos, incide diretamente nas relações interpessoais.
Nesse sentido, enquanto dispositivo político-existencial,
a metafísica deixa de se reduzir ao espaço conceitual-
discursivo-teórico. As categorias metafísicas transcendem
o campo discursivo e atuam no espaço público, na vida
afetiva, na constituição dos afetos, nas instituições
sociais etc. Levando em conta o que foi dito no tópico
anterior sobre a morte de Deus compreendida como
crise dos binarismos ocidentais, fica claro que todo
sistema metafísico de inteligibilidade discursiva do
mundo atua por meio de eixos binários, que dicotomizam
e hierarquizam polos ontológicos distintos. Nesse
paradigma hermenêutico, um dos polos funciona como

fundamento ontológico do outro. Os polos em questão
são qualitativamente diferenciados e hierarquicamente
inter-relacionados. Isso assinala uma copertinência e não
38. Um outro desenvolvimento dessa questão se en-
contra em CABRAL, 2022, tópico 3.2.

42
uma separação absoluta entre eles. Tradicionalmente,
como já assinalado, o polo considerado hierarquicamente
superior se identifica com a instância metaempírica e,
por isso, possui caráter suprassensível. Da distinção e
hierarquização de sensível-suprassensível surgem outras
figuras da tradição metafísica: ser-devir, eternidade-
tempo, corpo-alma, masculino-feminino, consciente-
inconsciente, sujeito-objeto, heterossexual-homossexual
etc. Ainda que tais figuras binárias possuam a pretensão
de retratar o real tal qual ele é em si mesmo, a disposição
de seus polos deixa transparecer o investimento moral
que marca toda metafísica. O polo supremo, como
dito anteriormente, se identifica com a noção de
bem e, por isso, toda metafísica forma um sistema de
condução político-existencial, pois incide diretamente
em quem somos e como existimos com outrem.
Afirmar o sentido moral das metafísicas nada
mais é do que dizer que todo sistema binário de
significação de mundo normatiza modos de ser.
Entendo aqui por normatização o processo mediante
o qual os modos de ser, pensar, agir, sentir e desejar
repetem continuamente as normas derivadas do sentido
moral de alguma metafísica. Vidas normatizadas são
aquelas que são reguladas por identidades rígidas,
identidades substancialmente fixas. A esses modos

de ser chamo de existências identitárias. Não é aqui o
local para um pleno desenvolvimento dessa questão.
Contudo, algumas considerações se fazem necessárias.39
39. Desenvolvi melhor essa questão em outros lugares.
Cf. CABRAL, 2016, 2017, 2018, 2020.

43
Identidades metafisicamente engendradas seguem o
sentido lógico-ontológico do conhecido princípio de
identidade, que diz: A=A. Consigo mesmo um ente é
o que é nele mesmo: eis o que diz esse princípio, que
inicialmente caracteriza a autoidentificação de um
ente. A relação consigo é o que garante ao ente que
aquilo que ele é se perpetuará e atravessará o seu devir
temporal. Não por acaso, a identidade de um ente se
resume ao seu núcleo ontológico, que o faz ser o que
é a despeito do devir. Por isso, a identidade nada mais
é do que o fundamento do ente. Assim, a identidade
garante a significatividade originária do ente. Ora, essa
identidade assume no mais das vezes a noção gramatical
de substantivo. Quando dizemos que um ente é uma
árvore, o elemento que fornece sua significatividade
última é percebido como irredutível àquela árvore
que está sendo significada pela linguagem em um
dado momento. A identidade ontológica de um ente
assume, assim, certa duplicidade: marca o ente individual
em sua natureza, ao mesmo tempo em que possui
universalidade. Daí a ideia de que a identidade de uma
árvore se revela em cada árvore, porém não se esgota
em árvore alguma. Consequentemente, uma identidade
metafisicamente engendrada atua na significação dos
indivíduos, sustentando a pluralidade de seus elementos

não fundamentais. Ela é o princípio de unidade do
ente, seja quando considerada em sua universalidade
ou mesmo quando pensada no nível do indivíduo.
Essa unidade funciona como instância reguladora
dos entes, uma vez que deles exige coerência em seus

44
devires. Como o devir dos entes depende da identidade,
essa se transforma em princípio de normatização-
regulação. Se o devir sair de seu curso, a identidade
garante o horizonte de identificação do desvio e sua
respectiva correção. Nesse sentido, é possível dizer que
identidades metafisicamente produzidas estabelecem
práticas ortopédicas, ou seja, estratégias corretivas do
fluxo do devir. Eis o sentido moral dessas identidades.
Se os termos de um binarismo metafísico são
investidos pelo binômio bem-mal, então o polo
considerado derivado ou fundamentado é certamente
o mal. Todavia, quando ele é propriamente o mal? Será a
toda hora? Certamente não. A reta ordenação identitária
acontece quando a sujeição do polo fundamentado
acontece plenamente, por meio da atuação do polo-
fundamento. Quando o devir está submetido ao ser;
quando o corpo é sujeitado à alma; quando o tempo é
regulado pela eternidade; quando o objeto se revela para
e segundo o sujeito, então o mal não se fenomenologiza,
ou seja, não se visibiliza, não se manifesta. Nesse caso,
o mal é uma ameaça, mas não uma realidade efetiva.
Isso me permite afirmar que, em todo sistema binário
de significação de mundo, ser e bem se identificam
e não-ser e mal formam unidade, caso os termos do
binarismo em questão sejam pensados isoladamente.

Conjuntamente, o não-ser é um mal relativo, pois,
se dominado pelo ser, não produz mal algum. Nesse
sentido, o bem é o ser, que é a verdade, que é a identidade
suprema, que é o tò autó, a mesmidade, o Mesmo. O
outro, o não-Mesmo, o não-ser, é ontologicamente

45
inferior. Por esse motivo, em um sistema metafísico, ser
outro equivale a ser-menos. A metafísica desontologiza
o outro, subtrai sua possibilidade de plenamente ser.
A relação Mesmo-Outro se revela, nesse caso, como
essencialmente assimétrica e a assimetria em questão
é marcada por tipos específicos de sujeição. Entretanto,
é digno de nota que em todo sistema de significação
binária há sempre lugar para o outro entendido como
correlato inferior do Mesmo. Que o diga Simone de
Beauvoir, quando pensou a mulher como outro do
homem.40 Ainda que seja inferior ao homem, a mulher
pensada por Beauvoir ainda tem algum lugar. E quem
não é nem homem, nem mulher? Que lugar possui?
Trata-se dos/as terceiros/as excluídos/as, que se situam
fora do binarismo Mesmo-Outro.
Se os sistemas metafísicos binários se coadunam
com a relação Mesmo-Outro e produzem terceiros/as
excluídos/as, o Mesmo, como dito, se manifesta como
normatizador. Por conseguinte, isso significa que tais
sistemas instituem modos identitários de ser. Assim,
sistemas metafísicos dizem como se deve ser. Ao mesmo
tempo, produzem uma zona de tolerância, que deixa
espaço para o que pode ser, posto que não coloca em
risco o poder do Mesmo. Ademais, os limites do dever
ser inviabilizam modos outros de ser, que muitas vezes

aparecem como modos inimigos de ser e, dessa forma,
aparecem como elimináveis. Por fim, sistemas metafísicos
binários constituem gradações de visibilidades e
invisibilidades, chegando mesmo a criar o âmbito do
40. Cf. BEAUVOIR, 2019.

46
não-ser em absoluto. Dever ser, poder ser, não poder ser e
não ser em absoluto são conceitos que se interpenetram
nos sistemas binários de significação de mundo. É claro
que o não-ser em absoluto não é o mesmo não-ser que
se relaciona assimetricamente com o Mesmo. Trata-se
de uma plena invisibilidade. Resumindo: o binarismo
Mesmo-Outro produz terceiros/as excluídos/as e uma
gradação de visibilidades e invisibilidades. Outro, ainda
que ontologicamente inferior, aparece – ele pode ser,
mas não ser plenamente. Os/as terceiros/as excluídos/as
aparecem como perigo e, por isso, podem ser eliminados/
as ou simplesmente não aparecem.
O jogo de visibilidades e invisibilidades próprio dos
binarismos metafísicos, cuja normatização moral produz
identidades que se adequam ao Mesmo, identidades que
se submetem correlativamente ao Mesmo e identidades
que se constituem como terceiros excluídos, esse jogo
é redimensionado na colonialidade. A lógica colonial
transforma as metafísicas em importantes dispositivos de
controle e aniquilação político-existencial. Por isso, o sentido
da metafísica entendida como esquecimento de ser, como quis
Heidegger, sob o prisma de uma hermenêutica decolonial,
quer dizer: esquecer o ser é subtrair o ser de quem não
se identifica com o Mesmo e invisibilizá-lo em algum
grau. A lógica colonial, como mostrou Maldonado-Torres

com muita clareza41, opera por meio da racialização das
relações, da inserção das existências em classes econômicas
e da generificação, categorias que se entrecruzam (se
interseccionam) nos estudos decoloniais. Por esse motivo,
41. Cf. MALDONADO-TORRES, 2018.

47
a relação Mesmo-Outro tem de ser pensada no interior da
própria metrópole. No interior da França do século XVII,
havia claramente hierarquia de gênero e classe. Contudo,
tal sujeição se modifica radicalmente, quando o que está
em questão são pessoas negras ou indígenas, transgênero
e empobrecidas. Uma mulher-trans, negra e favelada, por
exemplo, é muito diferente de uma mulher cisgênero, branca
da classe média. Isso significa que a relação Mesmo-Outro é
violenta, porém as relações Mesmo e terceiros/as excluídos/
as possuem outras violências, baseadas em outros graus
de desontologização.42 Não estou querendo hierarquizar
o sofrimento e/ou exclusão em jogo nessas relações. O
que importa é dizer que a colonialidade produz uma
alteridade concebida sob o modo do terceiro excluído. Em
relação a essas alteridades, a metafísica colonial revela o seu
caráter catastrófico. Daí o conceito de catástrofe metafísica
desenvolvido por Maldonado-Torres. Nas suas palavras:

A catástrofe metafísica inclui o colapso massivo e


radical da estrutura Eu-Outro de subjetividade e
sociabilidade e o começo da relação Senhor-Escravo.
Isso introduz o que denominei em outro lugar de
diferença subontológica ou diferença entre seres e
aqueles abaixo dos seres. Isto é, a principal diferencia-
ção entre sujeitos será menos uma questão de crença
e mais de essência nessa nova ordem mundial.43

42. Um belo questionamento da mulher negra como outro,
que coloca em xeque a pretensa universalidade histórica das
descrições de Beauvoir, se encontra em KILOMBA, 2019.
43. MALDONADO-TORRES, 2018, p. 37.

48
Não é ainda o momento para um aprofundamento
da questão da diferença subontológica, o que envolve
uma ressignificação decolonial da noção heideggeriana
de diferença ontológica. Destaco, por outro lado, “o
colapso massivo e radical da estrutura Eu-Outro” que
se revela na “nova ordem mundial” engendrada pela
colonialidade. No lugar do Eu-Outro surge a relação
Senhor-Escravo. A catástrofe metafísica revela uma
perversão no sentido fenomenologicamente afirmativo
da relação Eu-Outro. Talvez, um reto entendimento
dessa relação na obra de Maldonado-Torres esteja
na sua leitura de Lévinas em Sobre a colonialidade do
ser: contribuições para o desenvolvimento de um conceito.
Ainda que não haja nenhuma defesa do modo como
Lévinas tematizou a alteridade, sua presença identificada
como parâmetro importante para a inteligibilidade do
sentido de alteridade das subontologias formadas pela
colonialidade já mostra que Maldonado-Torres pensa o
colapso de uma relação afirmativa com a alteridade por
meio de certa referência a Lévinas; e que ele valorizou,
a exemplo de Dussel44, o sentido trans-ontológico da
sua noção de outro. Aliás, foi a partir desse conceito
que Maldonado-Torres afirmou: “Gênero, classe, raça e
sexualidade são, talvez, as quatro formas de diferenciação
humana que serviram mais frequentemente como meios

para transgredir a primazia da relação entre eu e outro e
para obliterar as marcas da dimensão trans-ontológica
no mundo civilizado concreto”.45 Entendo, portanto,
44. Cf. DUSSEL, 1977.
45. MALDONADO-TORRES, 2007, p. 153.

49
que a noção levinasiana de alteridade é aquela que
talvez melhor se adéque à compreensão da perversão
da alteridade em meio à catástrofe metafísica. Uma
passagem de Totalidade e Infinito nos ajudará a entender
melhor o sentido fenomenologicamente positivo (ainda
que falar em fenomenologia levinasiana não seja algo
tão simples) da alteridade:

A alteridade, a heterogeneidade radical do Outro, só é


possível se o Outro é realmente outro em relação a um
termo cuja essência é permanecer no ponto de partida,
servir de entrada na relação, ser o Mesmo não relativa,
mas absolutamente. Um termo só pode permanecer
absolutamente no ponto de partida da relação como Eu.

Ser eu é, para além de toda a individualização que


se pode ter de um sistema de referências, possuir
a identidade como conteúdo. O eu não é um ser
que se mantém sempre o mesmo, mas o ser cujo
existir consiste em identificar-se, em reencontrar a
sua identidade através de tudo o que lhe acontece.
É a identidade por excelência, a obra original da
identificação.46

A passagem acima começa assinalando que o


conceito de alteridade só possui significatividade, caso
esteja em relação a um termo que permanece como

ponto de partida da relação em questão. Mais: esse
termo absoluto identifica-se com o conceito de eu.
Em outros termos: alteridade e egoidade se relacionam
46. LÉVINAS, 2000, p. 24.

50
contrastivamente. Ainda que a alteridade só possa
fenomenologizar sua significação de modo radical,
isto é, como “heterogeneidade radical do Outro”, fato
é que o eu, que se revela como instância de articulação
da Totalidade, manifesta-se “absolutamente no ponto de
partida da relação”. Como, então, se caracteriza esse ponto
de partida da relação? Lévinas responde: “É a identidade
por excelência, a obra original da identificação”. Em
outros termos: o eu pensado como ponto de partida da
relação com a alteridade nada mais é que a “identidade
por excelência”. O problema recai, então, sobre a
textura dessa identidade. Como compreendê-la? Até
que ponto a ideia de identidade se opõe radicalmente
à ideia de alteridade? Para entender o que Lévinas
compreende por identidade, é preciso levar em conta,
antes de tudo, a relação que ele promove, na passagem
acima reproduzida, entre identidade e identificação.
Identificação é o conceito que aparece conjugado com a
ideia de ação: “a obra [atuação] original da identificação”.
Se a identidade se conjuga com a ideia de identificação,
então toda identidade que caracteriza a dinâmica do
Mesmo nada mais é do que um processo, uma ação
ou uma dinâmica de identificação. Trata-se da ideia
de que “O Eu é idêntico mesmo nas suas alterações:
representa-as e pensa-as para si”47. A identidade do Eu

que constitui o Mesmo não é, portanto, fixa. Ela vive
da sempiterna dinâmica de reencontro consigo mesma,
após ter assimilado a alteridade e tê-la conduzido ao
seu horizonte de significação. Em outros termos: o
47. Idem.

51
Mesmo identifica-se consigo, à medida que retorna
constantemente a si em meio à ação de significação/
absorção/captura da alteridade do ente, ação essa que
nada mais faz do que fornecer o sentido do ente em
questão. A dinâmica do Mesmo, por conseguinte, acaba
se expressando como força do egoísmo. Como, então,
escapar do Mesmo? Como se caracteriza a alteridade?
Seria somente aquilo que não é o Mesmo? Uma espécie
de não-Mesmo?
Compreender o Outro como não-Mesmo é pensá-
lo à luz dos limites semânticos da mesmidade. Em outros
termos, se afirmarmos que o Outro é somente um não-
Mesmo, estamos dizendo que o Mesmo é o referente
que fornece significado ao que o Outro é. Tratar-se-ia,
consequentemente, de uma relação dialética, segundo
a qual só poderíamos saber algo do Outro por meio
da negação dos caracteres do Mesmo. Isso tornaria o
Outro refém da mesmidade, ou seja, ele seria absorvido
por sua unidade semântica. A medida da alteridade,
portanto, não pode ser fornecida pelo Mesmo. Conceitos
como resistência (o Outro resistiria ao Mesmo),
representação (o Outro poderia ser representado pelo
eu em comparação com sua identidade), fronteira (o
Outro apareceria nos limites do Mesmo) e inversão
(o Outro seria o inverso do Mesmo) não dão conta da

especificidade da alteridade. Não há equiparação possível
entre Outro e Mesmo, sobretudo se tomarmos como
eixo interpretativo o universo semântico do Mesmo.
Daí a ideia levinasiana de que o Outro é anterior ao
Mesmo. Sua significatividade aparece fora das investidas

52
da Totalidade. Isso equivale a dizer que o Outro já
aconteceu antes mesmo de a Totalidade tentar capturá-
lo. Anterioridade que não pode ser confundida com
antecedência cronológica, uma vez que tal compreensão
temporal assegura ao eu seu poder de previsibilidade
ou asseguramento dos entes. A alteridade se dá antes
mesmo de toda possibilidade de asseguramento do eu.
Como diz Lévinas:

O Outro metafisico é outro de uma alteridade que


não é formal, de uma alteridade que não é um simples
inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de
resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior
a toda iniciativa, a todo imperialismo do Mesmo;
outro de uma alteridade que não limita o Mesmo,
porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente
Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro
do sistema, ainda o Mesmo.48

Porquanto a alteridade do Outro assinala seu


caráter inassimilável pelo Mesmo, nada mais certo
do que dizer que o Outro é refratário ao Mesmo, por
ser incomparável a ele. Em outras palavras, o Outro é
heterogêneo, ou seja, intotalizável. Não só isso. Se o
Outro é anterior à Totalidade, ele não pode ser entendido
à luz de qualquer relação de proporcionalidade com a

medida global que delimita o “espaço” de autoafirmação
do Mesmo. Por isso, não se pode diferenciar o eu
do Outro por meio da comparação de propriedades
ontologicamente disponíveis à razão. Consequentemente,
48. Ibidem, p. 26.

53
o “Outro invoca, por certo, o ser separado, mas essa
invocação não se reduz a apelar para um correlativo”49.
O que Lévinas entende por correlação, a exemplo da
fenomenologia husserliana, identifica-se com a ideia de
proporcionalidade existente entre termos distintos entre
si relacionados. Sujeito-objeto, corpo-alma, criador-
criatura, homem-mulher, dentre outros pares, podem
ser pensados, ainda que muitas vezes não o sejam,
de modo correlativo. A alteridade do Outro assinala
justamente a desproporcionalidade em relação ao poder
de apreensão do Mesmo. O intotalizável é, em outros
termos, desproporcional. Por isso, o Outro é assimétrico.
Como afirma Lévinas, o Outro acontece “num ‘espaço’
essencialmente assimétrico”50. Se o outro é irredutível
e assimétrico, então qual o sentido do eu? A resposta
levinasiana a essa questão é complexa, mas, para o que
nos interessa, basta uma passagem de Humanismo do
outro homem, que articula eu e vulnerabilidade:

Na vulnerabilidade encontra-se, portanto, uma relação


com o outro que a causalidade não esgota. É uma
relação anterior a toda afecção pelo excitante. A identi-
dade do si não opõe limites ao suportar – nem mesmo
a última resistência que a matéria “em potência” opõe à
forma que a investe. A vulnerabilidade é obsessão pelo
outro ou proximidade do outro. Ela é para o outro (...)51

49. Ibidem, p. 193.


50. Ibidem, p. 194. Cf. também LÉVINAS, 1997, p. 142.
51. LÉVINAS, 1997, p. 119.

54
A subjetividade levinasiana é vulnerabilidade
radical, por ser ele um ser-para-o-outro e não
simplesmente um ser-com-o-outro. Por esse motivo,
por ser desde sempre afetada pela alteridade, a
existência consiste em ter de responder pelo outro. Essa
responsabilidade anterior a qualquer ontologia (anterior
ao próprio mundo, dirá Lévinas) funda a justiça e a
potência do amor. Justamente esse eu e essa alteridade
são aniquilados na lógica colonial. Daí a catástrofe
metafísica. A assimetria levinasiana do eu-outro deu
lugar às assimetrias Mesmo-Outro e Mesmo-Terceiros/
as excluídos/as. Se a colonialidade possui como alvo
preferencial esses/as terceiros/as excluídos/as, então
nela a alteridade é pervertida e se revela no interior
do binômio senhor-escravo. Justamente essa realidade
do/a escravo/a transforma a alteridade em condenado/a,
fruto maduro do maniqueísmo misantrópico colonial.
Maldonado-Torres se vale do termo francês damné
(condenado) para caracterizar o que considera ser o
sentido da subjetividade que nasce da colonialidade.
Trata-se de uma palavra que nasce em contexto teológico
cristão. “Condenado” é quem está destinado à realidade
escatológica do inferno. O próprio Maldonado-Torres
deixa claro esse vínculo entre a subjetividade derivada
da colonialidade e o inferno: “A colonialidade do poder,

ser e saber objetiva manter os condenados em seus
lugares fixos, como se eles estivessem no inferno. Esse
é o inferno em relação ao qual o céu e a salvação do
civilizado são concebidos e sobre os quais ele está

55
acoplado”.52 Ao conjugar colonialidade e inferno, Fanon
e Maldonado-Torres trabalham com o campo semântico
do inferno cristão, sobretudo aquele que se consolidou
ao longo do período patrístico. Nesse sentido, o inferno
assinala um estado de vida que padece de sofrimentos
intermináveis, em uma condição de vida post mortem.
O inferno caracteriza um suplício interminável e até
mesmo indescritível para quem fala dele ainda habitando
os limites desta vida. Daí as palavras de Agostinho:
“aquele inferno, também chamado lago de fogo e
enxofre, será fogo corpóreo e atormentará os corpos
dos condenados, sejam de homens ou de demônios, os
sólidos dos homens com seus espíritos e os aéreos dos
demônios ou somente os espíritos dos demônios sem
corpos, unidos ao fogo corpóreo para receber pena, não
para vivificá-lo”.53 Os/as condenados/as da terra são
aquelas vidas que, sob o jugo da violência colonial, não
precisaram morrer para conhecer um suplício que, no
arco da existência finita, não conhece fim. Isso assinala
uma condição de morte em vida, uma condição de vida
morta, que nada mais é que um não-ser-aí, algo que
subverte por inteiro a positividade ontológica do ser-aí
heideggeriano. Nas palavras de Maldonado-Torres:

Qual é o significado próprio do termo damné? O



damné é o sujeito que emerge no mundo marcado
pela colonialidade do ser. O damné, tal e como Fanon
o esclareceu, não tem resistência ontológica frente aos

52. MALDONADO-TORRES, 2018, p. 44.


53. AGOSTINHO, 1990, XXI, cap. X.

56
olhos do grupo dominador. O damné é, paradoxalmente,
invisível e excessivamente visível ao mesmo tempo. Este
existe na modalidade do não-estar-aí, o que aponta
para a proximidade da morte ou para sua companhia.
O damné é um sujeito concreto, mas é também um
conceito transcendental. (...) O damné é, literalmente,
o sujeito que não pode dar, porque o que ela ou ele tem
foi tomado dela ou dele. Quer dizer, damné se refere à
subjetividade, enquanto fundamentalmente se caracte-
riza pelo dar, mas se encontra em condições nas quais
não pode dar nada, pois o que tem lhe foi tomado.54

O condenado e a condenada são vidas


necropoliticamente investidas. Desde que nasceram,
já foram condenadas ao inferno da existência em
subcondições violentamente diversas. Esse ser-outro
das vidas condenadas nada mais é do que não poder ser
de fato outro enquanto existência irredutível, inabarcável,
como pensou Lévinas. Eis o fenômeno da desalterização,
a subtração do sentido afirmativo-positivo (em termos
fenomenológicos) da alteridade e a perversão desse
sentido na relação entre Mesmo-terceiros/as excluídos/
as. Daí o caráter de sub-alteridade diagnosticado por
Maldonado-Torres, em relação às vidas condenadas
nos mundos marcados pela colonialidade. Eis mais um
rastro do nada que marca o niilismo colonial.

54. MALDONADO-TORRES, 2007, p. 151.

57
3. Topologias do não-ser, colonialidade
do ser e necroecopolítica:
sobre o desafio do giro ecodecolonial

Ainda que para Lévinas a significatividade da


alteridade não possa ser localizável – “Acontece com
ele [o Outro] o mesmo que com as Ideias de Platão
que, segundo a fórmula de Aristóteles, não estão
num lugar”55 –, as alteridades desalterizadas, ou seja,
as subalternidades são “localizadas” no interior de
um mundo, cuja lógica hegemônica é a colonialidade.
Como afirmei na introdução, há o lugar do não-lugar,
lugar esse que se identifica com o lugar do não-ser. A
colonialidade se estabiliza, por conseguinte, mediante
a instanciação das existências. A instanciação se dá,
nesse caso, de modo hierarquizado. A hierarquização,
por sua vez, se articula com o já mencionado jogo de
visibilidades e invisibilidades. A colonialidade, por
conseguinte, topologiza grupos e pessoas e marca
com a força destrutiva do não-ser os/as terceiros/
as excluídos/as que vivem à margem dos limites do
Mesmo. Essa desontologização perversa se naturaliza,
passando a condicionar micro e macrofisicamente as
existências e o espaço de coexistência. Em termos mais
fenomenológicos, diria que, em meio à colonialidade,

existências são desfenomenologizadas por meio da
violência colonial. Nesse caso, se, como afirmou Hannah
Arendt, “(n)este mundo em que chegamos e aparecemos
55. LÉVINAS, 2000, p. 26.

58
vindos de lugar nenhum e do qual desaparecemos
em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem”56, então
a colonialidade desmundaniza o mundo, uma vez
que a lógica colonial divorcia ser e aparecer e, assim,
reedita a conhecida dicotomia metafísica ser-aparência.
Vidas negras aparecem, porém não são; vidas indígenas
aparecem, mas não são. Esse não-ser determina o que
estou a chamar de topologias do não-ser. Eis o sentido
da invisibilidade colonial: aparecer nada tem a ver
com ser. Nesse caso, a noção de colonialidade do ser
desenvolvida por Maldonado-Torres é essencial para o
entendimento dessas topologias.
A colonialidade do ser identifica colonialidade
e ontologia. Não irei aprofundar aqui os contornos da
noção de ontologia operacionalizada por Maldonado-
Torres. Contudo, devo levar em consideração o fato
de esse conceito derivar de um rico diálogo com a
ontologia heideggeriana, sobretudo aquela que se
desenvolve no período de Ser e tempo, a saber, a ontologia
fundamental. Destarte, a colonialidade do ser nada
mais é que a colonialidade ontológica. Ao conectar ser e
colonialidade, Maldonado-Torres acaba por chegar à
conclusão de que a ontologia fundamental é insuficiente,
quando o que está em questão é a desontologização
das vidas racializadas pela violência colonial. O ser-aí

heideggeriano (Dasein) nada mais é do que um ser-aí-
europeu, uma vez que tudo que dele se diz em Ser e tempo
desconsidera as existências de quem não-é-aí, não-pode-
ser-aí, ou ainda, não-tem-lugar-aí. Diria mais: o “aí”,
56. ARENDT, 1992, p. 17.

59
advérbio locativo na palavra ser-aí (Da-sein), assinala o
mundo compreendido como espaço histórico, horizonte
histórico cuja unidade desvela a totalidade dos entes e
a multiplicidade de possibilidades de ser da condição
humana, que, segundo Ser e tempo, é marcadamente
existencial.57 Por ser essencialmente existência, o ser-aí é
ontologicamente aberto e intencionalmente direcionado
para o mundo, que se revela, nesse caso, como seu
correlato de base.58 Dessa forma, a condição humana
é ontologicamente mundana. Porém, a caracterização
heideggeriana de mundo, ainda que deixe claro o seu
sentido histórico, assim o faz de modo formal, não
somente deixando de lado sua materialidade histórica,
como passando ao largo dos mecanismos de violência
entendidos como condições de concreção dos mundos.
Por isso, a mundaneidade do mundo em Ser e tempo
se revela como uma semântica que conjuga sentidos e
significados articulados pelos comportamentos humanos
em meio a um conjunto de relações com os entes
intramundanos e com os demais seres-aí com os quais
o mundo é compartilhado. Essa semântica possui um
primado praxiológico, que acaba por assinalar que
primariamente os entes distintos do ser-aí são utensílios
e não objetos e as possibilidades existenciárias no mais
das vezes estão a serviço de afazeres pragmáticos,

57. Que se leve em conta os parágrafos centrais de Ser
e tempo, que deixam claro o sentido existencial do ser-aí
e o mundo compreendido como correlato intencional
da existência (ser-no-mundo). Cf. ST, §§ 9,12, 15 e 18.
58. Cf. CASANOVA, 2017.

60
funcionais e não teórico-poético-contemplativos.59
Ainda que o mundo forneça possibilidades primárias
para o desdobramento das performances existenciárias
e essas possibilidades possuam caráter impessoal-
normativo60, tal normatividade nada fala sobre
relações violentas e hierárquicas, sobre a racialização
e a generificação do tecido de um mundo histórico. A
formalidade fenomenológica que orienta a descrição
de mundo inviabilizou a consideração sobre o sentido
das violências formadoras de mundo. Conflitividade e
violência são elementos que não fazem parte da analítica
heideggeriana do mundo.
Maldonado-Torres se aproxima da colonialidade
do ser por meio de uma leitura acurada do parágrafo
10 de Ser e tempo, onde Heidegger apresenta o cogito
cartesiano como epifenômeno e não como princípio
ontológico originário. Para Heidegger, Descartes
“Deixa totalmente indiscutido o sum”61 do cogito sum.
Se a ontologia fundamental reposiciona a questão do
sentido do ser por meio da análise fenomenológica
do ente que pode questionar o próprio sentido do ser
(ser-aí), ainda que o ser não seja um ente, então sentido
do ser e ser-aí se articulam congenitamente. Ora, em
Heidegger, o sentido de ser, a exemplo de Aristóteles,
é polissêmico. Contudo, diferentemente desse filósofo

grego, os diversos sentidos de ser não encontram em
uma instância ôntica (referente ao ente) seu fundamento
59. Cf.ST, §§ 12-15.
60. Cf. Ibidem, §§ 27, 34-38.
61. Ibidem, § 10.

61
último (por exemplo, a ousía, em Aristóteles). Para
Heidegger, a tradição filosófica se determina por meio
de decisões históricas, ou seja, de mundos históricos,
que condicionam os conceitos ontológico-metafísicos
considerados fundamentos últimos dos entes: ousía,
idea, Deus, subjetividade etc. Por isso, a ontologia
fundamental, a exemplo de Kant, possui um sentido
transcendental, a saber, almeja descrever as condições
de possibilidade de todas as ontologias históricas, que
apontam para a relação intencional ser-aí-mundo.
Isso marca a noção de ontologia com os traços da
historicidade. Se a tradição filosófica ocidental pensou,
na maior parte do tempo, o sentido do ser de modo
metafísico, isso se deve ao fato de que o sentido do
ser se identificou com algum elemento ôntico, ou seja,
hegemonicamente, o pensamento ocidental pensou o ser,
confundindo-o com o ente, como se o ser fosse um ente
(como o ente supremo, Deus) ou algum elemento do ente
considerado central. Se o cogito cartesiano se identifica
com o sentido do ser na aurora da Modernidade, qual
mundo possibilitou a Descartes pensar este sentido do
ser? Para Heidegger, o sum do cogito acaba por apontar
o pensamento para a relação entre ser (e não o ente),
existência e mundo, algo desconhecido por Descartes.
Exatamente o esquecimento dessa relação por parte

de Descartes e a sua desconstrução fenomenológica
por parte de Heidegger serão o foco da atenção de
Maldonado-Torres.
Segundo Maldonado-Torres, como já mostrado, a
condição do ego sum de Descartes não é o esquecimento

62
da questão do sentido do ser, mas o ego conquiro, como
fora descrito antes por Dussel. Porquanto Heidegger
se esqueceu da condição colonial do cogito cartesiano,
sua destruição ontológica de Descartes nada mais faz
do que deixar um novo problema vir a lume, a saber,
a pergunta sobre o sentido de ser se movimenta no
esquecimento da colonialidade do próprio ser. “Faltou a
Heidegger examinar o lado ‘mais obscuro’ da formulação
cartesiana. Seu giro ontológico ignorou a fundamentação
da colonialidade do saber e do ser no pensamento
moderno”.62 Na colonialidade do ser está em jogo certa
“exclusão ontológica”.63 Os seres sem ser são aqueles
que são racializados. No caso da América Latina, esses
seres são majoritariamente negros e indígenas. A perda
de ser é mais acentuada quando se intersecciona raça e
gênero. Mulheres negras possuem uma destituição de
ser mais complexamente acentuada do que homens
negros, por exemplo. Levando em conta novamente o
conceito fanoniano de condenado, para Maldonado-
Torres, a exclusão do ser marca as existências condenadas
com o paradoxo de serem sem possuir ser. Ao engendrar o
condenado, o ser-aí se transforma em não-ser-aí. Há,
portanto, distinção fundamental, que não é mais entre
ser e ente, mas entre ser e não-ser. A diferença instaurada
pela colonialidade não é ontológica, mas subontológica.

Se o trans-ontológico é a alteridade afirmada como outro
irredutível ao ser, ao mundo, aos horizontes totais de
significação, no sentido pensado por Lévinas, o sub-
62. MALDONADO-TORRES, 2007, p. 145.
63. Idem.

63
ontológico é o outro que perdeu a irredutibilidade de
sua alteridade (desalterização) e se converteu em outro-
menos. A diferença subontológica também é chamada
de “diferença ontológica colonial”64: “a diferença sub-
ontológica ou diferença ontológica colonial se refere à
colonialidade do ser em uma forma similar ao modo
como a diferença epistêmica colonial se relaciona com
a colonialidade do saber”.65
O (não) ser-aí colonial não é aquele, como
pensou Heidegger, que afirma plenamente seu ser-
no-mundo à medida que se torna mortal mediante
a decisão antecipadora da morte, ou seja, o não-
ser-aí não consegue conjugar mortalidade, pertença
ao mundo e singularidade. Ao mesmo tempo, se a
temporalidade ekstática é aquela que possui o acento
no futuro (futuração), o não-ser-aí não pode ser plena
abertura para o futuro. Sua temporalidade não é simples
antecipação do futuro. A necroexistência do não-ser-aí
transforma a morte, como já mostrado no último tópico,
em ameaça e exposição violenta à aniquilação e não à
singularização. Nas palavras de Maldonado-Torres:
“Enquanto o Dasein está perdido no ‘a gente’ e alcança
a autenticidade quando antecipa sua própria morte, o
condenado (damné) confronta a realidade de sua finitude
e o desejo pela sua desaparição como aventura diária”.66

A exposição ao desemprego, à fome, à bala perdida,
à falta de educação escolar, ao lar são condições de
64. Ibidem, p. 147.
65. Idem.
66. Ibidem, p. 148.

64
realização das necroexistências. Para Heidegger, isso seria
somente uma questão ôntica. Para Maldonado-Torres,
isso é condição fundamental da sub-ontologia colonial.
Somente assim se compreende por que a colonialidade
é a perversão radical do sentido afirmativo-positivo de
alteridade. “A colonialidade do ser não se refere, pois,
meramente à redução do particular à generalidade do
conceito ou a um horizonte de sentido específico, mas
à violação do sentido da alteridade humana, até o ponto
onde o alter-ego fica transformado em sub-alter.”67
Subontologia e subalteridades, portanto, se pertencem
na lógica colonial.
O não-ser-aí, em verdade, é um “ente invisível”68.
A invisibilidade nada tem em comum com não poder
afetar os sentidos corporais de alguém. Isso não tem
sentido algum. É mais que óbvio que quando uma
pessoa em situação de rua fala com alguém da classe
média na calçada, essa pessoa a vê e a ouve no mais
das vezes. A invisibilidade se refere ao apagamento
da humanidade dos/as condenados/as. São seres que
aparecem, porém sua humanidade não se revela, posto
que fora sequestrada pelo maniqueísmo colonial. Se a
pergunta por excelência de muitas metafísicas é “por que
há o ente e não antes o nada?”, no caso da colonialidade,
a pergunta central é: “‘Por que continuar?’”69 Faz sentido

continuar existindo em condições de subvida? Essas
perguntas vêm precedidas pelo grito e pelo pranto de
67. Ibidem, p. 150.
68. Idem.
69. Idem.

65
quem sofre as inúmeras violências coloniais. O grito e
o pranto chamam a atenção para a própria subtração
da humanidade das vidas condenadas colonialmente.
Essas vidas racializadas, essas vidas desvitalizadas pela
violência colonial, essas vidas mortas em vida são elas que
choram e, por isso, de algum modo assinalam que vivem
o insuportável; mas, por outro lado, são elas também que
dizem que querem continuar vivendo a despeito de...
Trata-se do que gostaria de chamar de sobre-morte: a
capacidade de viver se sobrepondo à naturalização dos
sentidos necropolíticos da morte.
Nesse ponto, é possível perceber melhor o
sentido das topologias do não-ser. Se, como entendeu
Maldonado-Torres, invisibilidade e não-ser se
coadunam na colonialidade e se os mundos estruturados
pela colonialidade estão atravessados por um jogo
necropolítico e maniqueísta marcado pelo binômio
visíveis-invisíveis, então a estabilidade histórica dos
mundos coloniais é garantida pelos lugares de quem não
tem lugar algum. Isso mostra que a visibilidade humana
em meio à colonialidade não é outra coisa senão um
privilégio garantido em detrimento das subalteridades
e preservado por meio de inúmeras violências. As
topologias do não-ser caracterizam os diversos lugares de
invisibilidade, que fazem da visibilidade um privilégio e

da violência a normalidade. A produção de visibilidade
de vidas invisíveis, a desconstrução dos lugares e não-
lugares que perpetuam a dicotomia visíveis-invisíveis
e a criação de possibilidades não coloniais para o
mundo, possibilidades essas que reconquistam o sentido

66
afirmativo-positivo da alteridade das subalteridades
– eis o que está em questão tanto na noção de giro
decolonial, quando na noção de reexistência. De uma
forma geral: “A atitude descolonial nasce quando o
grito diante do horror da colonialidade se traduz em
uma postura crítica ante o mundo da morte colonial
e numa busca pela afirmação da vida daqueles que
são mais afetados por tal mundo”.70 Por outro lado, a
reexistência assinala a radicalidade do tipo de resistência
em contexto colonial. “No mundo moderno/colonial, a
resistência em seu sentido mais radical talvez deva ser
entendida como esforço pela re-existência. Ou seja, a
resistência não trata somente de uma questão de negar
um poder opressor, mas também de criar maneiras de
existir, o que inclui formas de sentir, de pensar e de
atuar num mundo que se constrói ele mesmo através
de várias insurgências e irrupções que buscam construí-
lo como um mundo humano”.71 O giro decolonial
é condição para se reexistir em contexto colonial. A
criação de possibilidades não coloniais de existência e
coexistência é atravessada pela modificação dos modos
de ser (transformação existencial) e pela recusa de
instituições, formas de governabilidade, leis etc., com
o intuito de promover o sentido afirmativo-positivo
das alteridades desalterizadas. Giros decoloniais e

reexistências são formas de libertação de existências e
coletividades colonialmente oprimidas.

70. MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66-67.


71. MALDONADO-TORRES, 2007 b, p. 26.

67
Apesar da pertinência e urgência das reexistências
e giros decoloniais, o que foi visto até este momento
padece de um encurtamento grave: a desconsideração
da Terra, que abarca existências não humanas, sem as
quais as possibilidades de vida humana e não humana
são inexistentes. Isso significa que desconsiderei o
padecimento da Terra, em nome da colonialidade
identificada como lógos histórico produtor de iniquidades
diversas com seres humanos racionalizados como
subhumanos e subalteridades. O que gostaria de deixar
claro é que a colonialidade não pode ser pensada sem
a noção de antropoceno, essa nova era geológica em
meio à qual a humanidade (e não as sub-humanidades)
se transformou em perigo para o futuro da Terra. Se
a noção de mundo até aqui considerada se refere ao
espaço histórico no qual a coexistência humana é
possível, é preciso dizer que a condição do mundo é a
Terra.72 Conforme mostrou Ailton Krenak, os seres sub-
humanos estão grudados na Terra e, por isso, toda lógica
colonial mata sub-humanos e seres não humanos que
compõem a Terra.73 O projeto colonial não é somente
necropolítico, mas necro-eco-político. A Terra faz parte
dos terceiros/as excluídos/as que a metafísica colonial
inventa. Como, então, ouvir os gritos e prantos dos
seres não humanos? Como lutar pela Terra, contra

um sistema que racializa, generifica, enquadra vidas
humanas por meio de classes econômicas e que sacrifica
seres não humanos, como florestas, rios, mares, vegetais,
72. Cf. CABRAL, 2022.
73. Cf. KRENAK, 2019.

68
gatos, águias, minhocas, montes etc.? Sem levar em
conta o sentido geo-genocida da colonialidade, os giros
decoloniais são incompletos e as reexistências não
afirmam sua pretensão de radicalidade. A colonialidade
do ser e as topologias do não-ser devem pensar as
subcondições da Terra, os não-lugares dos seres não
humanos. É preciso, então, realizar giros ecodecoloniais e
ecorreexistências. Eis a resposta ao niilismo ecocolonial.

4. Considerações finais

A obra de Maldonado-Torres é um dos grandes


instrumentos para se pensar e praticar giros eco-
decoloniais e eco-reexistências. Sua grandeza se
revela, como em toda grande obra, na capacidade de
dialogar com problemas que nos afligem e possibilitar
possibilidades de (co) existência no mundo e na Terra
mais dignas de serem vividas. Se a iniquidade colonial
é a normalidade do nosso mundo histórico, então as
investigações de Maldonado-Torres deixam claro que,
para se viver em contextos de naturalização da morte
iníqua, é preciso enfrentar sofrimentos absurdos e
ilegítimos. Por isso, reexistir à colonialidade do ser, às
condições de condenação de vidas inocentes é um esforço
contínuo e difícil de ser realizado. Daí a importância de

lê-lo, relê-lo e exercê-lo. O livro recentemente publicado
em português Sobre a decolonialidade do ser: Contribuições
para o desenvolvimento de um conceito74 é uma das grandes
74. Nelson Maldonado-Torres, Sobre a colonialidade
do ser: Contribuições para o desenvolvimento de um

69
oportunidades para iniciar esse difícil caminho. Apesar
de seu grande rigor conceitual, nele está em jogo uma
poética da reexistência, pois ele almeja um mundo e uma
Terra mais belos. Por esse motivo, termino este ensaio
com uma canção imortalizada pela grande cantora
decolonial Mercedes Sosa, cujo conteúdo parece ser uma
bela síntese dos propósitos de um pensamento decolonial:

Solo le pido a Dios


Que el dolor no me sea indiferente
Que la reseca muerte no me encuentre
Vacía y sola sin haber hecho lo suficiente

Solo le pido a Dios


Que lo injusto no me sea indiferente
Que no me abofeteen la otra mejilla
Después que una garra me arañe esta suerte

Solo le pido a Dios


Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente

Solo le pido a Dios


Que el engaño no me sea indiferente

Si un traidor puede más que unos cuantos
Que esos cuantos no lo olviden fácilmente

contexto, tradução de Marco Casanova, Rio de Janeiro:


Editora Via Verita, 2022.

70
Solo le pido a Dios
Que el futuro no me sea indiferente
Desahuciado está el que tiene que marchar
A vivir una cultura diferente
Solo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente

71
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