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Inteligências arquitetônicas e urbanas - 1

Organizadores
Evandro Fiorin
Sandra Medina Benini
Geise Brizotti Pasquotto

INTELIGÊNCIAS
ARQUITETÔNICAS
E URBANAS

1ª Edição

ANAP
Tupã/SP
2023
2

EDITORA ANAP
Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista
Pessoa de Direito Privado Sem Fins Lucrativos, fundada em 14 de setembro de 2003.
www.editoraanap.org.br
editora@amigosdanatureza.org.br

Revisão Ortográfica - Smirna Cavalheiro


Arte da Capa e Fotografia – Rafael Marcos Zatta Krahl

Ficha Catalográfica

F521i Inteligências arquitetônicas e urbanas / Evandro Fiorin, Sandra


Medina Benini, Geise Brizotti Pasquotto, (orgs). 1 ed. – Tupã: ANAP,
2023.

197 p; il.; 14.8 x 21cm

Requisitos do Sistema: Adobe Acrobat Reader


ISBN 978-65-86753-69-1

1. Intêligência 2. Arquitetura 3. Urbanismo


I. Título.

CDD: 720
CDU: 720/49

Índice para catálogo sistemático


Brasil: Arquitetura
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 3

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Profa. Dra. Sandra Mara Alves da Silva Neves – UNEMAT – Câmpus de Cáceres
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 5

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Prof. Dr. Vitor Corrêa de Mattos Barretto – UNESP – Câmpus de Dracena
Prof. Dr. Wagner de Souza Rezende – UFG
Profa. Dra. Yanayne Benetti Barbosa
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Inteligências arquitetônicas e urbanas - 7

SUMÁRIO

Apresentação ................................................................................... 09
INTELIGÊNCIAS ARQUITETÔNICAS E URBANAS PARA UM
MUNDO HÍBRIDO
Evandro Fiorin

Capítulo 1 ......................................................................................... 11
SMART CITIES: DA UTOPIA ÀS PEQUENAS OPORTUNIDADES
Rovenir Bertola Duarte

Capítulo 2 ......................................................................................... 29
FENOMENOLOGIA DO ESPAÇO HABITADO: (NOVOS)
PENSAMENTOS ACERCA DO PROJETO E DA PESQUISA EM
ARQUITETURA E URBANISMO
Rodrigo Gonçalves dos Santos

Capítulo 3 ......................................................................................... 45
A HABITAÇÃO COLETIVA NO PROCESSO DE
REQUALIFICAÇÃO DA CIDADE CONTEMPORÂNEA. ESTUDO
DE CASOS NA ANDALUZIA (ESPANHA) E EM SÃO LUÍS DO
MARANHÃO (BRASIL)
Silvana Rodrigues de Oliveira
María Fernanda Carrascal Pérez

Capítulo 4 ....................................................................................... 73
ARQUITETURA LUSO-BRASILEIRA E PAISAGEM NA REGIÃO
DO COMPLEXO LAGUNAR (SC): PATRIMÔNIO CULTURAL EM
RISCO
Fabiano Teixeira dos Santos
Soraya Nór

Capítulo 5 ........................................................................................ 91
MOBILIDADE URBANA E ACESSIBILIDADE: DIREITO AO
LAZER E À INFORMAÇÃO PÚBLICA
Eduardo Cardoso
8

Capítulo 6 ........................................................................................ 105


O DESENHO URBANO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: A RELAÇÃO
ENTRE O DESENHO INSTITUCIONAL E A CONFIGURAÇÃO DA
CIDADE
Cristina Maria Perissinotto Baron
Sarah Lira Garrido

Capítulo 7 ........................................................................................ 131


GUIA DE “TELAS DE PROJEÇÃO” PARA HISTÓRIAS
APAGADAS
Lívia Zanelli de Morais
Marina Biazotto Frascareli

Capítulo 8 ........................................................................................ 149


GESTÃO DE RESÍDUOS EM PEQUENAS CONSTRUÇÕES
Mara Regina Pagliuso Rodrigues
Victoria de Oliveira Rosario

Capítulo 9 ........................................................................................ 171


PROTEÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL:
CONTRIBUIÇÕES DA ARQUITETURA PARA VISITAÇÃO NO
AROUCA GEOPARK
Gustavo Reis Machado
Luciana Cordeiro de Souza Fernandes
Claudio Lima Ferreira
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 9

Apresentação

INTELIGÊNCIAS ARQUITETÔNICAS E URBANAS PARA UM


MUNDO HÍBRIDO

Lançado há mais de 20 anos atrás, o filme do cineasta norte-americano


Steven Spielberg: “A. I.” Inteligência Artificial, contava a história de um menino
robô que queria se tornar humano. Antes, esse elo perdido entre as máquinas
e a nossa espécie parecia estar bastante longínquo; entretanto, nos dias de
hoje, acontecimentos acelerados pela epidemia do Coronavírus fizeram com
que dependêssemos, cada vez mais: dos chamados smartphones para
inúmeros serviços; das teleconferências pelo computador no âmbito do
trabalho remoto; e dos diversos gadgets que estão no nosso pulso, já fazem
parte da nossa casa, ou pululam nos espaços urbanos das nossas cidades.
Em todos esses contextos, a inteligência artificial vai coletando dados
em sistemas que imitam a capacidade humana de construir relações para
realizar algumas tarefas muito simples do nosso dia-a-dia, até o feitio de
trabalhos mais complexos em âmbitos empresariais. Uma interatividade que
não pode mais passar despercebida, sobretudo daqueles profissionais da
gestão que devem mapear e acompanhar processos. Contudo, em detrimento
desses avanços, a possibilidade de uma potencialização de resultados,
aumento de produtividade e economia de tempo terão o seu custo,
especialmente, quanto tratarmos da questão urbana. Isso porque, essas
mudanças perpassam pelo sucessivo esfacelamento da esfera pública, pela
dificuldade de relacionamento interpessoal, pela diminuição dos contatos face-
a-face e pelo redimensionamento das nossas inteligências arquitetônicas, seja
no âmbito do nosso ambiente domiciliar ou, em uma escala da cidade –
mormente, do que acreditávamos que ela fosse.
Não se trata de romantizar a praça pública ou a presença da cadeira na
calçada para o bate-papo vespertino; eles irão conviver com os chats,
whatsapp, telegram e inúmeras outras formas de conectividade on-line. Assim,
ao invés de “satanizar” tudo isso, precisamos ir pontuando, aos poucos, quais
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são alguns instrumentais que fundamentam o campo disciplinar da arquitetura


e urbanismo para usar corretamente os novos conceitos que aparecerão com
as Smart Cities. Nesse sentido, este e-book, se organiza para apontar alguns
traços que são importantes para que possamos lidar com o mundo híbrido que
se aproxima, na direção de “novos” pensamentos acerca do projeto, da
habitação, da preservação e conservação, da mobilidade e acessibilidade, das
políticas públicas, da intervenção e da gestão na cidade contemporânea.

Prof. Dr. Evandro Fiorin


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 11

Capítulo 1

SMART CITIES: DA UTOPIA ÀS PEQUENAS OPORTUNIDADES

Rovenir Bertola Duarte 1

1 INTRODUÇÃO

Cada vez que nos deparamos com algum novo termo adicionado a
conceitos aparentemente estabelecidos, nos perguntamos sobre o que este
acrescenta ou como nos reencontramos com o antigo conceito. Assim, é
compreensível que o termo smart city nos impulsione a pensar sobre, afinal,
qual o papel do “smart” adicionado ao velho conceito de cidade. Cugurullo
(2018), em sua busca pela origem do imaginário ao redor do termo smart city,
resgata a imagem utópica do romance de New Atlantis de 1626 de Francis
Bacon. Para o autor, “a primeira imagem de uma cidade totalmente
desenvolvida em sintonia com o desenvolvimento tecnológico” (CUGURULLO,
2018, p.4). Em direção semelhante, outros autores veem na utopia iluminista
da New Atlantis uma cidade governada cientificamente (CALVILLO et al., 2015)
ou uma cidade onde a ciência é soberana (GROSSI; PIANEZZI, 2017).
Em síntese, tal imaginário remete à utopia de um lugar governado
tecnocraticamente, onde uma espécie de solução maquínica produziria um
mundo ideal, baseado na ciência e conhecimento, descartando as inoperâncias
humanas. Como diz Cugurullo (2018), aqui se revela um fio ideológico comum
que chega até à smart city: uma fé inabalável na tecnologia e inovação. Desta
forma, é possível reconhecer uma fragrância utópica da smart city que remete
à grande oportunidade de resolver velhos problemas, como sustentabilidade,
segurança, transporte, desigualdade social e de gênero entre outras.
Assim, não por acaso, a palavra “utopia” figuraria, na segunda década
deste século, em diversos títulos de livros e artigos no tema (ANTHOPOULOS,
2016; GROSSI; PIANEZZI, 2017; MARVIN; LUQUE-AYALA; MCFARLANE, 2016;

1 Doutor, Universidade Estadual de Londrina e Programa Associado de Pós-Graduação em


Arquitetura e Urbanismo UEM e UEL – PPU. E-mail: rovenir@uel.br
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MORA; DEAKIN, 2019; TOWNSEND, 2013; WIIG, 2015). O emprego desta


palavra aparece, muitas vezes, como a origem de algo, superada ou não. Por
exemplo, Townsend (2013) propõe que as smart cities caminhariam,
semelhante à trajetória dos PCs, desde uma ideia utópica de geeks para o
mercado de massa, como diz seu subtítulo, “busca por uma Nova Utopia”.
Contudo, se retomarmos a afirmação seminal do filósofo inglês Francis Bacon,
o mesmo a idealizar a utopia da New Atlantis, que o conhecimento é poder
(BACON, 2007), a pergunta insistente parece ser: quem domina e dita tal
conhecimento por trás destas utopias? Em outras palavras, quem tem o poder
sobre a grande oportunidade?
Cugurullo (2018), na busca do imaginário da smart city, sugere que por
trás dos sonhos recentes do urbanismo inteligente, estaria a repetição da velha
ambição capitalista tradicional, mascarada pela promessa de progresso
tecnológico. Grossi e Pianezzi (2017) nos perguntam “utopia ou ideologia
neoliberal?”, acreditam que, apesar de as corporações e cidades privadas
promoverem a cidade inteligente como uma utopia revolucionária, o seu
paradigma é de uma expressão da ideologia neoliberal. Para Morozov e Bria
(2019), o modelo atual das cidades inteligentes é baseado na transformação de
soluções de problemas sociais e políticos em comodities, ao ponto de destacar
a dificuldade de execução de uma smart city não neoliberal. Hollands (2015),
na mesma direção, destaca a tendência crescente desta ideia de cidade pelas
influências corporativas e vínculos competitivos, adotando geralmente
modelos de governança empreendedora de desenvolvimento urbano pró-
negócios.
Podemos, então, nos indagar que a grande oportunidade, com verniz de
inovação e tecnologia, pode mascarar outras ambições e promessas, como a
expectativa do mercado da smart city movimentar 2,57 trilhões de dólares em
2025 (GRAND VIEW RESEARCH, 2018). Do mesmo modo, pensarmos tal ideia
de cidade além da grande oportunidade pode ser uma necessidade, voltar
nossos olhos para as pequenas oportunidades, mais distantes do grande capital
e próximo aos cidadãos.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 13

2 A GRANDE OPORTUNIDADE EM REFLEXÃO

Um caminho para buscar algo além do verniz da grande oportunidade


utópica poderia ser a decapagem da constelação de termos resplandecentes e
positivos que a palavra smart tenta abarcar. Segundo Morozov e Bria (2019),
existe um conjunto de valores e promessas associado ao smart, em constante
e rápida expansão, podendo muitas vezes ser ilusório e ambíguo. Assim, uma
TV, relógio, celular e, logicamente, uma cidade, vão sendo banhados com um
novo verniz, adquirindo uma aura tecnológica e inovadora. As promessas são
diversas que vão da mudança de comportamento das pessoas a novas riquezas.
Contudo, ainda que valores semânticos como conexão e tempo real estejam
muito presentes, existe um sentido marcante que parece unificar em boa parte
tais ideias, a busca pela maximização. A promessa desta grande oportunidade
é a de otimização de recursos ao máximo, para que nada seja desperdiçado,
“corridas sem fim” de Uber ou “diárias sem fim” do Airbnb (MOROZOV; BRIA,
2019).
Para entendermos, tomemos o exemplo da campanha de marketing do
Smarter Planet da IBM, de 2010. Como informava seu lema “let’s build a
smarter planet”, para um mundo marcado pelo desperdício, com 2,3 bilhões
de galões de combustível no tráfego ou 50% da energia instalada nos edifícios.
A proposta era maximizar os recursos através da tecnologia, ainda que, como
observa McNeill (2016), tal peça de marketing estava relacionada com a
necessidade e organizar e valorizar as capacidades globais de engenharia e
capital humano da empresa, como explica o autor, “subir na cadeia de valor”
para “campos mais lucrativos” (MCNEILL, 2016, n.p.). Uma ambição de
maximização dos lucros parece também acompanhar tais objetivos da grande
oportunidade.
Uma das importantes condições para esta maximização pode ser
encontrada na oportunidade utópica de se ter tudo conectado e em tempo
real. Agregaríamos enfim uma inteligência aos velhos conhecidos, como TV,
telefone e cidade? Aos moldes de uma empresa, existiria o propósito de
analisar dados, conectar ativos, minimizar gastos, para então otimizar
maximamente recursos e ações. Entretanto, as críticas a esta cidade em tempo
real e governança tecnocrática vêm ganhando maior relevância nos tempos
recentes (FERRERI; SANYAL, 2018; KITCHIN, 2014; MCNEILL, 2016). Como
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observa Kitchin (2014), esta leitura tecnocrática parece pressupor que todos os
aspectos de uma cidade são passíveis de serem medidos, monitorados e
tratados como problemas a serem resolvidos pela tecnologia. Uma abordagem
apoiada na ideia de que os dados podem instruir completamente a ação
(FERRERI; SANYAL, 2018). Assim, pouco a pouco, esta abordagem vai
defendendo a concentração de esforços na obtenção e análise de dados, algo
que os governos por si só não possuem condições de arcar. Essa lacuna,
segundo McNeill (2016), vai sendo preenchida por empresas globais de
tecnologia, que, em sua leitura, estão na vanguarda da naturalização de
“versões únicas da verdade”. Este preenchimento passa pela transformação
dos serviços públicos em negócios e a dependência do suporte das big techs.
Para alguns autores, essas transformações estão alterando a gestão da
cidade e aproximando-a de uma abordagem neoliberalista (MOROZOV; BRIA,
2019; GROSSI; PIANEZZI, 2017; HOLLANDS, 2015). Morozov e Bria (2019)
detectam uma lógica neste processo, uma espécie de regime de bem-estar
social privatizado. O processo iniciaria com a inclusão das tecnologias
avançadas em situações novas, onde tais tecnologias não eram comuns,
possibilitando custos minimizados. Com essa economia significativa para os
consumidores, não haveria empecilho de os custos serem totalmente
repassados para os usuários. Ao mesmo tempo, uma racionalização em prol da
maximização de recursos. Contudo, ainda segundo os autores, uma vez
privatizada, essa racionalização desapareceria, algo como o chamado “efeito
Wal-Mart” (FISHMAN, 2006) se concretiza, os preços abaixam carregando uma
precarização e queda dos salários, ainda que oportunidades de trabalho
flexíveis e de curto prazo apareçam como moedas de compensação.
Em clima de austeridade, com reduções drásticas dos fundos
disponíveis para serviços locais, as associações com as big techs e a privatização
desses serviços parecem ser um caminho salvador para muitos governos
municipais. Essas associações, contudo, também acarretam relações de
dependência, seja devida à propriedade tecnológica da big tech, que pode não
permitir intercambiar dados ou evoluir o sistema, seja pelo fato de estas
empresas se recusarem a abrir seus dados ou seguir as regras governamentais,
através de uma “desregulamentação regulada” (AALBERS, 2016). Essa
governança tecnocrática, guiada pelas big techs de dados, pode, segundo
Kitchin (2014), representar o perigo de um bloqueio tecnológico, no qual os
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 15

governos das cidades poderiam tornar-se reféns de plataformas tecnológicas e


fornecedores específicos por um longo período, criando posições de
monopólio. Aqui se forma um círculo vicioso:

[...] a lógica da privatização e da autoridade, somada com os vários


problemas que ela causa, lança as cidades nos braços das empresas de
tecnologia, atraindo-as com produtos oferecidos como tão essenciais e
únicos que, em nome da implementação de inteligências artificiais, os
centros urbanos embarcam em ondas sucessivas de privatização com o
objetivo de cortar gastos. (MOROZOV; BRIA, 2019, p. 69).

Como observam Grossi e Pianezzi (2017), essa utopia de cidade,


baseada no neoliberalismo, pode levar a uma privatização da tomada de
decisões e a um exercício de poder desconectado da responsabilidade
democrática, negligenciando a necessidade de respostas políticas, e não
apenas tecnológicas, aos interesses públicos e comuns. Morozov e Bria (2019)
acrescentam que quando dados, sensores e algoritmos são mediadores do
fornecimento de serviços de utilidade pública, tais como transporte, habitação,
educação e saúde, não tratam apenas de meras infraestruturas. Governança
liderada por meio de grandes empresas de dados pode levar a um caminho
corporativo de dependência que não pode ser facilmente desfeito ou desviado
(KITCHIN, 2014).
Existe, entretanto, um fator maior, como nos lembram Morozov e Bria
(2019), muitas vezes em troca da oferta de Wi-Fi “grátis”, as big techs não estão
coletando os nossos dados apenas para vender anúncios, esta coleta
atualmente vai muito mais além do que vender publicidade. Para acelerar o
desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial e para ajudar a
automatizar processos de interação é necessário coletar, reunir, organizar e
processar dados. “Quem controla os meios de produção da maior parte dos
dados consegue a melhor inteligência artificial” (MOROZOV; BRIA, 2019, p. 68).
Esta inteligência relaciona-se com o treinamento de poderosos modelos que
poderão, por exemplo, classificar e perceber padrões, de modo que a máquina
entenderá se um lugar é bonito ou tranquilo (QUERCIA; O’HARE; CRAMER,
2014; SERESINHE et al., 2019), ou, ainda, se é popular (SCHLÄPFER et al., 2021).
A máquina mais treinada será capaz, logicamente, de ajudar a fazer também
os lugares mais rentáveis ou comerciáveis.
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Desta forma, governos associados com grandes empresas vão


introduzindo ruas, praças e bairros inteligentes, quando não uma cidade inteira
nova, muitas vezes para poder coletar dados. Em todo caso, esse tipo de
inteligência nos atravessa de muitos modos, um deles se encontra em um tipo
de economia nomeada com uma das mais belas palavras: compartilhamento.

2.1 Um exemplo para ilustrar: Airbnb

Como Ferreri e Sanyal (2018) comentam, a “economia compartilhada”,


também conhecida como Economia de Plataforma, tornou-se uma nova
palavra da moda na vida urbana. Neste tipo de economia, empresas de
tecnologia geram plataformas para conectar pessoas e ativos não utilizados, ou
subutilizados, com aqueles que procuram alugá-los por curtos períodos. Um
forte exemplo de maximização oriundo da grande oportunidade. Na verdade,
a retórica de “compartilhamento” geralmente é orientada para o lucro
(FERRERI; SANYAL, 2018) relacionada com o chamado capitalismo da cognição
e netárquico, onde trabalho cognitivo e os dados de informação podem ser
comoditizados e monetizados no mercado (ZYGMUNTOWSKI, 2018).
Os diversos exemplos já nos são familiares, seja para carros, patinetes,
entregas de comida, carona, bicicletas ou imóveis, mas com potencial para
diversos outros serviços, como também alguns de seus possíveis danos, como
já aponta a também conhecida expressão “uberização”. Contudo, é necessário
refletir sobre os seus impactos, cada vez mais significativos, em formas
tradicionais de hospitalidade, transporte, indústria de serviços e habitação. Por
consequência, também é necessário discutir seu impacto na política de
planejamento e governança urbana (MOROZOV; BRIA, 2019). Para
exemplificação, olhemos o exemplo do Airbnb.
O Airbnb é uma plataforma de hospedagem peer-to-peer (P2P), nascida
em 2007, para aluguel de curto prazo dentro da economia compartilhada,
ainda que alguns não a considerem compartilhamento “puro” (GUTIÉRREZ et
al., 2017). Nesta plataforma existe uma promessa de hospitalidade “autêntica”
do lugar, embora, como observam Ferreri e Sanyal (2018), no lugar de uma
refeição caseira servida pelo anfitrião, alguém pode muito bem alugar um
edifício de uma empresa de gerenciamento e pegar as chaves com um agente.
Esta oferta de uma experiência “autêntica” do lugar, têm gerado
impactos nos ambientes urbanos, elevando os preços dos imóveis,
fragmentando comunidades, fechando negócios locais, produzindo
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 17

gentrificação, pressionando por flexibilização regulatória e, logo, dificultando a


gestão da cidade (BRIA, 2019; ÇAKAR; YARIŞ, 2020; GUTIÉRREZ et al., 2017;
MOROZOV; FERRERI; SANYAL, 2018). Lógico que por se tratar de um tipo
disruptivo de economia compartilhada, mais flexível e sob demanda, muitas
consequências são inesperadas. O Airbnb pode estar gerando diversos
impactos, tornando-se um desafio crescente às políticas de moradia popular
mais acessível ao fazer os preços dos aluguéis dispararem, agravando
desigualdades urbanas e impactando profundamente no direito à moradia
(FERRERI; SANYAL, 2018; MOROZOV; BRIA, 2019).
A principal motivação dessas mudanças, muito provavelmente, é o uso
profissional da plataforma Airbnb, onde se acumulam propriedades para obter
renda (FERRERI; SANYAL, 2018; GUTIÉRREZ et al., 2017; WACHSMUTH;
WEISLER, 2018), algo como “hotéis ilegais”. A procura por imóveis por agências
profissionais gera uma inflação local das propriedades, produzindo um impacto
significativo nos mercados locais de aluguel e propriedade. Este fenômeno traz
consequências inclusive para proprietários de imóveis que tradicionalmente os
ofertavam para aluguel de longo prazo, passando a alugá-los a curto prazo e
diminuindo ofertas para cidadãos da cidade, como também os encarecendo
(COCOLA-GANT, 2016). Neste sentido, Gutiérrez et al. (2017), em um estudo
sobre hotelaria em Barcelona, detectam a capilaridade do Airbnb em áreas
mais residenciais, distantes do centro, onde hotéis não são encontrados. Essas
regiões, normalmente caracterizadas pelo uso de moradores mais
permanentes, não estão preparadas, assim, tal transformação pode acarretar
gentrificações. Rabiei-Dastjerdi, McArdle e Hynes (2022), em um estudo entre
2016 e 2020 em Dublin, na Irlanda, apontam que a plataforma é um fator
contribuinte significativo para a gentrificação, ainda que ressaltem que a
Airbnb não é o único fator de gentrificação nessas áreas. Wachsmuth e Weisler
(2018), em uma pesquisa de três anos de atividade do Airbnb, em Nova York,
identificaram bairros que estão cada vez mais sob a pressão da gentrificação e
deslocando os nova-iorquinos residentes.
Outros impactos relevantes podem estar relacionados com a inserção
deste tipo de economia, por exemplo, Maldonado Guzmán (2020) investigou a
relação entre hospedagem Airbnb e crimes contra propriedades e pessoas nos
bairros de Barcelona. Este autor detectou índices mais altos de criminalidade
nos bairros com maior número de hospedagens, principalmente de natureza
patrimonial. Outro ponto, investigado por exemplo por Ferreri e Sanyal (2018)
e Honório (2021), trata de como a plataforma Airbnb está envolvida nas
18

alterações dos regulamentos existentes pelos governos. Ferreri e Sanyal


(2018), a partir do caso de Londres, investigaram a Lei de Desregulamentação
e Arrendamento de curto prazo de 2015, retomando o conceito de
“desregulamentação regulada” de Aalbers (2016). Os autores explicam que
não se trataria de uma retirada ou ausência de regulação, mas sim uma espécie
de re-regulação, contornando alguns dos regulamentos locais por meio de
novos regulamentos.
Honório (2021), que tratou das cidades de Nova York, Barcelona e
Berlim, comenta sobre as reações dos governos e pressões populares locais.
Em Nova York, a Procuradoria Geral do Estado elaborou um extenso estudo
sobre os efeitos do Airbnb entre 2010 e 2014, onde estimou que 72% do total
de aluguéis de curto prazo violavam as leis locais. Este relatório aponta que,
somente em 2013, as transações de aluguel de curto prazo retiraram do
mercado local mais de 4.600 unidades, deixando de estar disponíveis para
nova-iorquinos em busca de moradia. Em Barcelona, motivada por uma intensa
mobilização social, a prefeitura local aplicou multas entre 2014 e 2016 na
plataforma, por cadastrar imóveis sem o número de registro turístico da
Catalunha (RTC), considerando-a responsável direta pela relação entre
anfitrião e hóspede e não mera intermediária (HONÓRIO, 2021). O site da
prefeitura de Barcelona divulga uma multa de 600.000 euros em 2017, aplicada
a Airbnb por oferecer acomodações sem licença turística
(https://ajuntament.barcelona.cat/turisme/es/noticia/_537258). Em Berlim, a
prefeitura promulgou em 2016 novas legislações proibindo o aluguel via
Airbnb, com exceção dos de um quarto extra nas residências. Entretanto, em
2018 uma nova reformulação da legislação pareceu indicar o fim da “proibição”
do Airbnb em Berlim (HONÓRIO, 2021). Ferreri e Sanyal (2018) questionam se
a forma que os governos têm buscado impor a regulamentação não são muito
tradicionais, ou mesmo, obsoletas, diante de meios tão disruptivos.
De qualquer maneira, muitos impactos ainda poderão ser descobertos
e estudados com as inserções deste tipo de plataformas, mas como explicam
Ferreri e Sanyal (2018), o ritmo e escala de expansão é sem precedentes,
muitas vezes em benefício de um conjunto específico de pessoas, como os
proprietários de ativos. Assim, frente as ações da grande oportunidade, é
possível pensar na emergência das pequenas oportunidades.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 19

3 O CAMINHO DAS PEQUENAS OPORTUNIDADES

Diante de todo este cenário, Morozov e Bria (2019) falam sobre um


espírito emergente das “cidades rebeldes”, tomando a expressão de David
Harvey (2012), na luta pelo direito à cidade digital rumo à “soberania digital”.
Os autores levantam 9 pontos a serem conquistados nesta direção: (1)
Incentivo a regimes alternativos de propriedade de dados; (2) Realocação para
plataformas de código e padrão abertos; (3) Transformação das contratações
públicas a fim de torná-las éticas, sustentáveis e geradoras de inovação; (4)
Controle das plataformas digitais; (5) Construção e expansão das
infraestruturas digitais alternativas; (6) Desenvolvimento de modelos
cooperativos de fornecimento de serviços; (7) Potencialização de inovações
com valor social; (8) Reavaliação de esquemas de bem-estar social e
monetários locais; (9) Incentivo à democracia e à soberania digitais
(MOROZOV; BRIA; 2019).
Morozov e Bria (2019) apontam algumas iniciativas das cidades
dedicadas a cada um destes pontos, buscando formas de manter o acesso a
dados mais próximo aos cidadãos, além do monopólio das big techs. Trazer
alguns exemplos rápidos nos ajuda a perceber a lógica dessas iniciativas, como
exemplo a oferta de redes comunitárias para acesso à internet (6), em Viena,
Grécia e Catalunha. Especificamente a última, em Barcelona, a Guifi.net conta
com mais de 37.000 pontos na região metropolitana (ver https://guifi.net/),
ofertando rede muito barata para diversas pessoas graças à colaboração de
todos. Outros exemplos, em relação à transformação das contrações públicas
(3), podem ser encontrados na Open Contracting Data Standard (OCDS)
elaborado pela Omidyar Network em 2014, onde define documentos e dados
padrões para processos de contratação e aquisição para o setor público, sob
uma licença aberta. Deste modo, busca-se reduzir custos, maior competição e
evitar corrupção. De forma semelhante, a Impact Hub Network tem procurado
conectar pessoas criativas, freelancers e empreendedores de diversas cidades
ao redor do mundo, compartilhando recursos que permitam a continuidade do
desenvolvimento de suas ideias e projetos.
Uma importantíssima iniciativa encontra-se nas plataformas de
consulta à população sobre o orçamento (9), com o exemplo precursor do
projeto participativo de Porto Alegre em 1990. Numa perspectiva mais
tecnológica, destaca-se o exemplo da plataforma da cidade de Reykjavík, na
20

Islândia: o Betri Reykjavík. Uma plataforma de engajamento on-line da cidade


usada para o crowdsourcing de soluções para desafios urbanos, desenvolvida
pela Icelandic Citizens Foundation em 2010. O espaço dá a oportunidade de
apresentar, debater e priorizar propostas e ideias políticas, dando aos eleitores
uma influência direta na tomada de decisões. Existem nesta plataforma os
projetos “My Neighborhood”, onde se realiza o orçamento participativo da
cidade, como também o “Your Voice At The City Council”, que possibilita a
todos apresentarem ideias e soluções para questões de nível municipal
(BJARNASON; GRIMSSON; JOERGER, 2019). Segundo Morozov e Bria (2019),
recentemente esta plataforma lançou um novo serviço, o “Active Citizen”,
onde a inteligência artificial ajuda a fortalecer a participação popular.
Duas outras experiências em plataforma participativa devem ser
ressaltadas, as interessantes iniciativas espanholas da Decide Madrid (desde
2015) e a Decidim Barcelona (desde 2016). A Decidim, por exemplo, contou
com a participação de quase 40 mil pessoas (ver https://decidim.org/),
apresentando, segundo Morozov e Bria (2019), mais de 11.700 propostas.
Essas iniciativas colaborativas mais próximas aos usuários apresentam-se em
diversos setores, entre eles, no de plataformas de aluguel de curta duração
como o Airbnb.

3.1 Fairbnb e o cooperativismo de plataforma

Nessa perspectiva da cidade rebelde, discutida por Morozov e Bria


(2019), o cooperativismo surge como uma alternativa ao caminho criado pelas
big techs. Assim, destacam-se nesta direção os exemplos das plataformas
coletivas de cooperação de nova geração. O chamado cooperativismo de
plataforma pode ser um modo para uma economia digital mais justa, por meio
de reapropriação pelos próprios trabalhadores de tecnologias digitais (LIN,
2021). O cooperativismo de plataforma envolve bens comuns abertos e
estruturas organizacionais descentralizadas, onde a autoridade de tomada de
decisão é baseada no conhecimento livre e na economia social (FUSTER
MORELL; ESPELT, 2019).
A insistência em estimular iniciativas alternativas e criativas,
envolvendo e cooperação, pode ser um caminho contundente para cidades
mais democráticas. A OCP tem divulgado diversas experiências deste tipo
realizadas pelo mundo (ver https://cooperativismodeplataforma.com.br/),
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 21

destacando-se no Brasil, por exemplo, a experiência do “Contrate quem luta”,


organizado pelo Núcleo de Tecnologia do MTST, e a plataforma “Cataki”, criada
pela ONG Pimp My Carroça em 2017. A primeira proposta visa a conectar
pessoas que precisam de serviços a profissionais diversos, como cozinheiro,
ajudante geral, costureiro ou cuidador, tudo sem uma big tech intermediária
(ver https://contratequemluta.com/). A segunda plataforma conecta os
catadores de resíduos recicláveis, com mais de 3 mil catadores em mais de 470
cidades, e as pessoas que gostariam descartar resíduos. Este projeto ainda não
é de fato uma plataforma cooperativa, pois os trabalhadores não governam tal
organização, contudo, segundo o relatório do ICDE (ICDE RESEARCH FELLOW;
BRUNO, s.d.), tem grande potencial para se tornar, atingindo os catadores sem
acesso à sindicalização ou cooperativas tradicionais.
De modo semelhante, surgiu em 2016, inicialmente apenas em Bolonha,
Amsterdã e Veneza, o Fairbnb, uma plataforma alternativa criada em resposta
ao modelo do Airbnb, baseada no modelo de cooperativa social (ÇAKAR; YARIŞ,
2020). Como explica o documento do Manifesto da Fairbnb, trata-se da
primeira comunidade de ativistas onde codificadores, pesquisadores e
designers buscam enfrentar o desafio de recolocar o “compartilhamento de
volta na economia compartilhada” (FAIRBNB.COOP, 2017). Este grupo propõe
priorizar as pessoas sobre o lucro (FAIRBNB.COOP, 2017), em vez de iniciativas
que promovam a “financeirização da vida urbana” (MOROZOV; BRIA, 2019, p.
130). Assim, ao invés de investidores sem rosto, os colaboradores dão ênfase
nos atores locais, seja na figura de anfitriões, empresários locais ou vizinhos. A
proposta é incentivar um tipo de turismo mais sustentável e, ao mesmo tempo,
proporcionar aos viajantes uma experiência mais autêntica (ÇAKAR; YARIŞ,
2020).
A proposta do Fairbnb é que os cidadãos mantenham o lucro na
comunidade e que as decisões sejam tomadas para o bem dos seus bairros,
inclusive votando nos projetos que desejam ver concretizados (FAIRBNB.COOP,
2017). Como destacam Çakar e Yarış (2020), um turismo sustentável deve
centrar-se no local, protegendo ativos sociais, culturais e ambientais, ao invés
do mero cálculo de benefícios econômicos, algo que Fairbnb também
persegue. Este tipo de iniciativa aproxima o serviço, e sua arrecadação, de fato
dos cidadãos da cidade, contudo, estes ainda não estariam gerenciando os
dados e pensando como planejar a cidade a partir deles, pois o projeto a seguir
almeja exatamente isso.
22

3.2 O Kit Smart Citizen e a soberania digital

Uma experiência destacável em relação à participação popular, e às


pequenas oportunidades, pode ser encontrada no Kit Smart Citizen. Uma
iniciativa com diferentes reedições que trata da exploração do potencial de
sensores de baixo custo, como os do Arduino, para fornecer ferramentas e
redes de sensoriamento para cidadãos. Segundo Morozov e Bria (2019), este
projeto foi originalmente desenvolvido pelo Fab Lab Barcelona, no Instituto
para Arquitetura Avançada da Catalunha (IAAC). Mais recentemente, eles têm
se apresentado como um grupo de pesquisadores, ativistas, artistas e
designers inspirados no empoderamento dos cidadãos usando tecnologias de
código aberto (WOODS et al., 2018). O grupo envolve diversos atores, como
pesquisadores nas áreas de ciência cidadã, ativistas comunitários, funcionários
do governo e outros atores de políticas públicas que desejam incluir as vozes
dos cidadãos no processo de tomada de decisão.
De modo resumido, eles projetam e produzem kits com conjunto de
sensores para mensuração de níveis de poluição do ar e sonora ou de umidade
(MOROZOV; BRIA, 2019). Trata-se de uma solução de monitoramento
ambiental flexível, fácil de usar e de código totalmente aberto, podendo ser
facilmente manuseada pela população. Em algumas situações utilizam de
estações, mais complexas e precisas, chamadas de Smart Citizen Station
(CAMPRODON et al., 2019). A proposta é atuar nas proximidades de
residências, escolas ou escritórios para monitorar os ambientes destas regiões.
O design é baseado no princípio da reprodutibilidade, integrando também
componentes não hardware, como uma plataforma de armazenamento
dedicada e uma estrutura de análise de sensores (CAMPRODON et al., 2019).
Este projeto, segundo Morozov e Bria (2019), funciona como uma ponte
entre cidadãos técnicos e não técnicos em busca da resolução não
convencional de desafios ambientais. Camprodon et al. (2019) os classificam
como um tipo de ciência e sensibilização cidadã e atividades educacionais,
onde o objetivo principal é envolver os cidadãos no processo de medição e
conscientização sobre as preocupações ambientais. Desta forma engaja os
cidadãos em maior aprendizado sobre um problema que os preocupa e apoia
uma iniciativa com potencial de transformar seu mundo (WOODS et al., 2018),
possibilitando aos não especialistas a coletar, entender e usar dados para
monitorar e compreender mais o seu ambiente.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 23

Entre 2015 e 2018, o projeto Making Sense, desenvolvido como parte


do projeto iSCAPE (Improving Smart Control of Air Pollution in Europe) e
financiado Programa H2020 da Comunidade Europeia, encampou o Smart
Citizen. Este projeto combinou os esforços da Waag Society em Amsterdã;
Universidade de Dundee na Escócia; Fab Lab Barcelona do Instituto de
Arquitetura Avançada da Catalunha (IAAC); o Centro Comum de Investigação
da Comissão Europeia em Bruxelas; Rede de Educadores de Pares em Kosovo
e Universidade de Twente em Enschede. Eles desenvolveram um kit de
ferramentas para sensoriamento participativo destinado a aprofundar a
conscientização coletiva sobre o ambiente, nas cidades de Amsterdã,
Barcelona e Prishtina (WOODS et al., 2018).
O projeto seguiu quatro princípios orientadores gerais:
empoderamento, para gerar a percepção de controle e responsabilidade sobre
o ambiente; cocriação, com a prática colaborativa e métodos/ferramentas que
as pessoas comuns possam usar em condições de igualdade; transformação no
indivíduo, comunidade, no pensamento, atitudes e valores; e abertura e
transparência com os dados e ações, estendendo a um design aberto (WOODS
et al., 2018).
Figura 1 – Imagens do Projeto Making Sense em Amsterdã, Barcelona e Prishtina

Fonte: Adaptado pelo autor de Anap Woods et al. (2018).

A implementação do projeto foi dividida em oito etapas: definição do


escopo, construção da comunidade, planejamento, sensoriamento,
conscientização, ação, reflexão e entendimento do legado. Na primeira etapa
24

são levantados, mapeados e discutidos os problemas pela comunidade e


equipe do projeto. No segundo momento os participantes chegam a um
entendimento compartilhado sobre o assunto, os objetivos e organização do
projeto. Na etapa do planejamento as ferramentas de sensoriamento são
pensadas e desenvolvidas, como também, calibradas e testadas. Neste
momento, os participantes aprendem a manusear os sensores e as abordagens
para entender os dados. Na quinta etapa os dados são coletados pelo
sensoriamento, podendo ser complementados pelos registros das observações
dos usuários que vivenciam os problemas. A sexta etapa, uma vez
conscientizados sobre o problema, os participantes trabalham juntos para
proporem uma série de ações que possam causar algum impacto claro. A etapa
de reflexão é um momento de discussão sobre o processo e avaliação do
sucesso das atividades. Por fim, a etapa do legado, quando é avaliado o futuro
do projeto e possíveis impactos duradouros.
Alguns resultados impactantes emergiram das experiências nestas
cidades, como uma lei de qualidade do ar proposta em Kosovo; uma
plataforma nacional de sensoriamento participativo na Holanda; e mudanças
no uso do espaço público na Plaza del Sol em Barcelona. Tudo voltado para a
redução efetiva dos níveis de poluição ambiental. O potencial de envolver a
população na coleta e geração de dados, produzindo consciência sobre o seu
meio e sobre os dados produzidos, pode ser um caminho para o que Morozov
e Bria (2019) chamam de soberania digital.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final, a ideia de que conhecimento é poder introduz a importante


reflexão de como se produz conhecimento no contexto das smart cities e da
grande oportunidade, ou seja, a leitura utópica de criar uma nova ideia de
cidade onde tudo se resolve com a ajuda da máquina. Cugurullo (2018) observa
que o imaginário de inteligência neste contexto carece de conceitos mais
elevados como justiça, felicidade e democracia. Em relação à democracia, as
pequenas oportunidades, da chamada cidade digital rebelde de Morozov e Bria
(2019), parecem ter importantes contribuições, engajando os cidadãos em
abordagem que envolvam escolhas e decisões. Entender a importância dos
dados, como de seu domínio, nos contextos atuais é essencial, contudo, mais
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 25

ainda, é perceber que em momentos de grande emprego de tecnologia, a


maior das exigências é lembrarmos sempre de sermos humanos.

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28
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 29

Capítulo 2

FENOMENOLOGIA DO ESPAÇO HABITADO: (NOVOS)


PENSAMENTOS ACERCA DO PROJETO E DA PESQUISA EM
ARQUITETURA E URBANISMO

Rodrigo Gonçalves dos Santos2

1 UMA POSSIBILIDADE DE SE VER O PROJETO: COM O QUE SE DESENHA?

Há duas maneiras de se alcançar Despina: de navio ou de camelo. A


cidade se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou
por mar.
O cameleiro que vê despontar no horizonte do planalto os pináculos dos
arranha-céus, as antenas de radar, os sobressaltos das birutas brancas e
vermelhas, a fumaça das chaminés, imagina um navio; sabe que é uma
cidade, mas a imagina como uma embarcação que pode afastá-lo do
deserto, um veleiro que esteja para zarpar, com o vento que enche as
suas velas ainda não completamente soltas, ou um navio a vapor com a
caldeira que vibra na carena de ferro, e imagina todos os portos, as
mercadorias ultramarinas que os guindastes descarregam nos cais, as
tabernas em que tripulações de diferentes bandeiras quebram garrafas
na cabeça umas das outras, as janelas térreas iluminadas, cada uma com
uma mulher que se penteia.
Na neblina costeira, o marinheiro distingue a forma da corcunda de um
camelo, de uma sela bordada de franjas refulgentes entre duas
corcundas malhadas que avançam balançando; sabe que é uma cidade,
mas a imagina como um camelo de cuja albarda pendem odres e
alforges de fruta cristalizada, vinho de tâmaras, folhas de tabaco, e vê-
se ao comando de uma longa caravana que o afasta do deserto do mar
rumo a um oásis de água doce à sombra cerrada de palmeiras, rumo a
palácios de espessas paredes caiadas, de pátios azulejados onde as
bailarinas dançam descalças e movem os braços para dentro e para fora
do véu.
Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe; é assim que o
cameleiro e o marinheiro vêem Despina, cidade de confim entre dois
desertos.
(Ítalo Calvino, 1990, p. 21-22)

2 Professor Doutor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa

Catarina. E-mail: rodrigo.goncalves@ufsc.br


30

Projeto espaços para as pessoas habitarem. Estes espaços não existem


(ainda). São possibilidades. Estão na minha mente. Cada novo projeto, é uma
nova possibilidade. Nisto exercito meu ato criativo. Mas eu sou o único que
vejo os espaços que projeto antes de eles irem para o papel em forma de
desenhos (croquis, plantas, cortes, fachadas, elevações). Mesmo nestes
desenhos há pessoas que não conseguem ver os espaços, talvez por eles ainda
não estarem materializados, construídos fisicamente. Às vezes me pergunto se
eu mesmo consigo efetivamente ver os espaços que projeto. Tanto em minha
mente quanto nos desenhos, os espaços projetados assumem rumos que me
parecem obscuros, chegando ao ponto de quando são construídos eu sempre
me impressiono e comento: “é… ficou parecido com o que pensei!”. Há vezes
que me espanto: “nossa! Ficou igual ao meu desenho! Pensei exatamente
assim!”. O que acontece, então? Entre meu pensamento, minha visão interior
do espaço que (ainda) não existe e o espaço já construído, que semelhanças
existem? O que eu vi? O que eu não vi? Será que eu vi?
Caio, assim, numa tentativa de entender o que é ver. Ver seria o mesmo
que olhar? Para eu ver necessariamente precisa existir o que está sendo visto?
Bom, se precisa existir o que está sendo visto para eu ver, então, em meu ato
de projetar espaços eu não vejo nada, já que os espaços (ainda) não existem.
Será, dessa maneira, que enquanto projeto eu sou um ser que não vê? Se eu
não vejo, posso ser semelhante a um cego? Tenho ao projetar espaços uma
cegueira? Ver, não ver, cegueira, olhar, imagens, escuridão, invisível,
visualidade. Ações que evocam um aprofundamento para tentar se apropriar
destes termos e enriquecer nossa experiência de mundo. Não seríamos todos
pessoas com cegueira já que constantemente vemos e não vemos todos os
dias?
O que é cegueira? Detenho o impulso de conceituar a cegueira
adentrando em termos médicos, tampouco em questões de deficiências
sensoriais. Tal ação é recorrente e preocupo-me com algumas redundâncias
calcadas em números ou modelos de exclusão/inclusão. Gostaria de ir um
pouco além. Gostaria de adentrar num universo que ecoa em nossa comum
existência enquanto seres humanos. O que é ser humano? O que define um ser
humano? Um ser humano é definido pela presença ou ausência de um sentido,
de um membro, de um órgão? É Merleau-Ponty que nos fala:
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 31

Se nossos olhos fossem feitos de tal modo que nenhuma parte de nosso
corpo se expusesse ao nosso olhar, ou se um dispositivo maligno,
deixando-nos livres para passar as mãos sobre as coisas, nos impedisse
de tocar nosso corpo […], esse corpo que não se refletiria, não se
sentiria, esse corpo quase adamantino, que não seria inteiramente
carne, tampouco seria o corpo de um homem, e não haveria
humanidade. Mas a humanidade não é produzida como um efeito por
nossas articulações, pela implantação de nossos olhos. (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 17).

Sempre pensei que o desenho é cego, assim como o desenhista também


o é. A operação do desenho tem algo a ver com a cegueira. A origem do
desenho, o pensamento do desenho, é uma certa pose pensativa, uma
memória do traço que especula, como num sonho, sobre sua própria
possibilidade. Sua potência se desenvolve sempre à beira da cegueira,
penetrando-a. Num desenho é o ângulo da visão que é ameaçado ou
prometido, perdido ou restaurado.
Jacques Derrida, em seu livro Memoirs of the Blind, traz à tona
discussões acerca da experiência da escuridão para alcançar a visibilidade,
clarifica a possibilidade de uma experiência da visão em outra dimensão, no
âmbito da reflexão da ligação entre os mundos externos e internos. Derrida
(1993) nos sugere um lugar de leitura de escrituras/textos e de mundos nos
quais é possível ver como os olhos precisam ser abertos para uma estrutura de
mundo pautada em enganos. Para tanto, Derrida (1993) articula dois tipos de
cegueira: a transcendental e a sacrificial. O autor mostra-nos que essas duas
cegueiras estão interconectadas. A cegueira transcendental e a cegueira
sacrificial são, para Derrida (1993), duas formas de interpretação que
descentralizam a essência do olhar físico, guiando a interpretação para algo
que visualmente é uma escuridão.

I shall name them the transcendental and the sacrificial. The first would
be the invisible condition of the possibility of drawing, drawing itself, the
drawing of drawing. It would never be thematic. It could not be posited
or taken as the representable object of a drawing. The second, then, the
sacrificial event, that which comes to or meets the eyes, the narrative,
spectacle, or representation of the blind, would, in becoming the theme
of the first, reflect, so to speak, this impossibility. It would represent this
unrepresentable. (DERRIDA, 1993, p. 41).
32

As cegueiras sacrificial e transcendental estão unidas desde o momento


da visão inicial até o momento do julgamento do ato. A cegueira sacrificial
representa o ato físico de ver e a cegueira transcendental implica uma reflexão
sobre a visão. O cancelamento de um eu ou um olho físico torna-se necessário
para uma pura representação dos traços. A cegueira transcendental
complementa a cegueira sacrificial e vice-versa. O sacrifício, a perda, a morte
do olhar físico resultam na cegueira.
É o que Merleau-Ponty (2004) nos faz pensar quando se refere que ao
estarmos imersos no visível por nosso corpo, corpo o qual é próprio visível,
somos um corpo vidente que não se apropria do que vê, apenas nos aproxima
do visível pelo olhar. Derrida (1993), ao descentralizar a essência do olhar físico
por meio de suas cegueiras sacrificial e transcendental, endossa o enigma que
Merleau-Ponty (2004) traz quando nos diz que meu corpo é ao mesmo tempo
vidente e visível. Meu corpo olha todas as coisas, pode também se olhar, e
reconhece no que vê um outro lado de seu poder vidente. O corpo se vê
vidente, se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo.
Vidente e visível! Visível e sensível!
Agora, provoco… Quem é cego? Aquele que vê ou aquele que não vê?
Agora, novamente, provoco… O que é ver e não ver?
Agora, além de provocar, me (nos) situo… Eu (nós) vejo (vemos)? Eu
(nós) não vejo (não vemos)? Sou (somos) vidente(s)? Sou (somos) visível(is)?
Sou (somos) cego(s)?
Convidado para refletir junto com Derrida (1993) penso acerca da mão,
resumo do tato. A mão do cego (e peço que pensemos quem é este cego) é a
aliada principal do cego. Por ela, o cego sente e, à sua maneira, ele apalpa,
acaricia, tanto quanto ele (o cego que devemos pensar quem é) se inscreve,
confiando na memória de sinais e completando a visão. É como se um olho sem
pálpebra se abrisse na ponta dos dedos, um único olho, o olho de um ciclope.
Este guia, o olho, rastreia, é a lâmpada do mineiro no momento da escrita, um
substituto curioso e vigilante, a prótese de um vidente invisível. A imagem do
movimento, o que inscreve este olho do dedo, é assim delineado dentro de
mim. Ele coordena a possibilidade de ver, tocar e mover. A mão se precipita,
corre à frente, no lugar da cabeça, precedendo-a, preparando-a e protegendo-
a. Antecipação que faz adiantamentos, coloca os movimentos no espaço, a fim
de ser o primeiro a tomar, a fim de avançar no movimento de tomar conta,
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 33

fazer contato ou apreender. Sobre seus próprios dois pés, um cego explora a
sensação de estar fora de uma área que ele deve reconhecer ainda sem
cognição, e o que ele apreende, o que ele tem sobre as apreensões, na
verdade, é o abismo, a queda dele já ter ultrapassado.
Derrida (1993) diz-nos que ser um cego é, antes de tudo, um mostrar as
mãos, é um chamar a atenção para o que se desenha com a ajuda do com o que
se desenha. O próprio corpo como instrumento, a mão da obra, das
manipulações, das manobras e boas maneiras, a mão como o jogo ou um
trabalho de desenho, a mão como a cirurgia. Lembremos que, no caso do cego,
a audição vai mais longe do que a mão, e a mão vai mais longe do que o olho.
A mão tem ouvidos para evitar a queda, ou seja, o acidente, e assim a mão
comemora a possibilidade do acidente, a mantém em memória. A mão é, aqui,
a própria memória do acidente. Mas para quem vê, a antecipação visual
substitui a mão para ir ainda mais longe. Ver e não ver parecem, assim, ser duas
faces da mesma moeda: ora uma está para cima, ora outra. É um cara-ou-
coroa, um jogo no qual ao lançarmos a moeda não sabemos muito bem o que
poderá cair.
Quando Derrida sugere a mão como um resumo do tato, penso que a
situação de ser tocado por pessoas com cegueira revela a potência do tato
como um narrador de visualidades. É por meio do tato que se pode ver além
daquilo que supomos ver. As mãos, as quais podem ser consideradas um
prolongamento do espaço interno tocando o espaço externo na busca daquilo
que pode ser narrado, assumem, assim, uma grandiosidade perante a maneira
de se habitar um mundo. Arrisco situar o tato como criador de uma narrativa
ou até mesmo de uma obra de arte. O tato proporciona uma aisthesis
completa, trazendo o sensível em todas as esferas dos sentidos humanos.
Repensando o ditado que diz que “os olhos são as janelas da alma”, coloco que
as mãos são as portas do coração: nossos sentimentos iniciam-se pelas pontas
dos dedos, crescem na palma das mãos e destas obtém as chaves das portas
do coração, habitando-o ao abri-las.
Revejo e interrogo se o drama da cegueira consiste mesmo na
incapacidade de estabelecer as devidas diferenças visíveis entre os seres. O
tato (a mão?) não é apenas mais útil para encontrar um objeto azul sobre um
tapete que tenha a mesma coloração. Visível e móvel, meu corpo está entre as
coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma
34

coisa. “Mas, dado que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo a seu
redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas
em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo
mesmo do corpo” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 17).
Já ouvi pessoas dizerem que no processo de aprendizagem o sentido
visual desempenha papel central, por ser o mais útil para a prática da imitação,
a qual é uma das maneiras mais enfatizadas na aquisição do nosso acervo
cognitivo. Preocupo-me com isto. Não acredito que falta ao cego uma
possibilidade de educar-se (visualmente) pelo exemplo do outro. De repente,
pensar que uma educação visual só se dá pelo sentido da visão pode ser uma
forma de cegueira sacrificial sugerida por Derrida (1993). Merleau-Ponty
(2004) alerta claramente que qualidade, luz, cor, profundidade, estão a uma
certa distância diante de nós porque despertam um eco em nosso corpo,
porque este as acolhe. “Toda a questão é compreender que nossos olhos já são
muito mais que receptores para as luzes, as cores e as linhas: computadores
do mundo que têm o dom do visível, como se diz que o homem inspirado tem
o dom das línguas.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 19).
Acordo de manhã. Abro meus olhos. Vejo um mundo que estou a minha
vida inteira aprendendo a ver. Este mundo estou construindo paulatinamente
desde meu nascimento. Por meio de experiências, classificações e memórias,
construo o mundo em que vivo. Por que com um cego isto seria diferente?
Você poderia me dizer: “ah, porque ele não enxerga, essa construção é bem
diferente da minha”. Correto. Mas o que seria este enxergar? Fico pensando se
o cego não tem uma maneira sua de enxergar. Quando converso com um cego
eu me abro às suas experiências não visuais e me pego vendo que o cego vê
em seu ser não visual. Parece um paradoxo? Não sei… creio que não.
Oliver Sacks comenta que temos uma construção primal do mundo, e
esta pode ser visual ou não. Não é um esforço para as pessoas com a visão
normal construir formas, contornos, objetos e cenas a partir de sensações
puramente visuais. Elas fazem essas construções visuais, um mundo visual,
desde o nascimento e para tanto desenvolvem um vasto e desembaraçado
aparelho cognitivo. Mas Sacks (2006) enfatiza que os processos perceptivos-
cognitivos, enquanto fisiológicos, também são pessoais. Não é somente um
mundo que a pessoa percebe e constrói, mas o seu próprio mundo, o qual está
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 35

ligado e leva a um eu perceptivo, com uma vontade, uma orientação e um


estilo próprios.
Espaço e tempo. Insinuo uma reflexão sobre o espaço e o tempo e a
experiência visual e não visual. Presumindo que eu seja um não cego e tenha a
totalidade de meus sentidos, acredito viver no espaço e no tempo. E um cego?
Presumindo que eu seja cego e que não tenha a totalidade de meus sentidos
por não ver, acredito viver num mundo só de tempo. Mundo de espaço e
tempo, mundo de tempo. Aquele restrito ao não cego, este restrito ao cego.
Sacks (2006) nos coloca que as pessoas com cegueira constroem seus mundos
a partir de sequências de impressões (táteis, auditivas, olfativas) e não são
capazes, como as pessoas com visão, de uma percepção visual simultânea, de
conceber uma cena visual instantânea. É um mundo de narrativas (tão bem
conduzidas e contadas pela mão, por um tato, que revela sequencialmente um
mundo, quadro a quadro, como num filme) e um mundo visual, imagético. Se
alguém não consegue mais ver no espaço, a ideia de espaço torna-se
incompreensível. O espaço é reduzido ao próprio corpo, e a posição do corpo
é conhecida não pelos objetos que passaram por ele, mas pelo tempo que ele
esteve em movimento. Num espaço, se sou cego, as pessoas apenas estarão se
falarem. Elas precisam estar em movimento, são temporais, vêm e vão,
aparecem do nada e desaparecem.
Somo às cegueiras de Derrida (1993) a cegueira profunda de Sacks
(2007). A cegueira profunda é descrita como um mundo autêntico e autônomo,
um lugar completo por si só. É na cegueira profunda que Sacks (2007) convida-
nos a sermos videntes de corpo inteiro. Ser um vidente de corpo inteiro significa
desviar a atenção, o centro de gravidade para os demais sentidos, dando a eles
uma nova riqueza e poder. Seria como perceber o som da chuva e entender
como este som pode delinear uma paisagem, pois o barulho da água caindo
sobre um caminho no jardim é diferente da água que toca um gramado. Isto
pode dar uma nova intimidade com a natureza, diferente de qualquer coisa
que pode se ver. Assim, a cegueira pode ser uma espécie de dádiva sombria,
traduzindo um novo modo de ser humano. Reforço aqui que temos uma
maneira de um indivíduo conseguir (re)modelar uma nova identidade. Não há
uma sensação de perda, mas sim um viver num mundo construído por outros
sentidos. É um estado intermediário, interssensorial, metamodal, para o qual
não temos linguagem comum.
36

Parece-me que o mundo das pessoas com cegueira é extremamente


rico em estados intermediários ou interssensoriais. Parece-me, ainda que
nestes estados interssensoriais desponta a cidade de Despina de Ítalo Calvino.
Vejo ou não vejo a cidade de confim entre dois desertos, o deserto do ver e o
deserto do não ver. Despina se apresenta em ambos os desertos. Resta-nos
saber quando seremos o cameleiro e quando seremos o marinheiro. Não há o
certo ou o errado. Não há uma preferência pela melhor forma que a cidade se
apresenta, pois cada cidade apresentada é diferente. Cada Despina que surge
traz elementos de desfrute, de prazer, de trabalho. Apenas a opção dos dois
desertos é a mesma.

2 PARA SE VER ALÉM DO PROJETO: A POSSIBILIDADE DE UMA INSTÂNCIA


REFLEXIVA

É por meio deste contato com um outro que meu trabalho se inicia.
Assim, inicio pelo início por mais que ele pareça ser o fim. Eis um texto. Um
texto que se centra na angústia do olhar, da percepção. Traz consigo – num
incidente, talvez – o (in)visível. Não se trata de um texto que fala de pessoas
com cegueira. Se há um lugar de onde se ouve este texto, este lugar é o “entre”.
Logo, o texto está “entre” as pessoas com cegueira e pessoas sem cegueira.
Opto em utilizar com mais frequência o termo “pessoa com cegueira”. Tal
termo revela uma condição não visual de alguém o qual é um potencial
interlocutor, um outro que evidencia uma alteridade propriamente dita,
extrapolando a denominação de um indivíduo privado da vista. Os termos
“cego” e “não cego” aparecem em alguns momentos do texto, mas ressalto
que não os assumo focando um organismo deficiente, mas assumo “cego” e
“não cego” como sinônimo de “pessoas com cegueira”.
Alerto, assim, que a ênfase de meu trabalho é a experiência do ver e do
não ver, procurando desconstruir os aspectos pejorativos vinculados à
experiência com a cegueira. E o que emerge disto? Uma obra aberta. Opto por
já de início situar este texto como uma obra aberta. Aberta para possibilidades
de interpretações. Aberta para finalizar ciclos na mente de quem o lê. Aberta
para convites de reflexões. É uma escritura que procura vir com seriedade e
rigor científico envoltos na plasticidade das palavras, no rearranjo de frases, no
entrelaçamento de letras. Talvez, um desenrolar de ideias que pairavam soltas
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 37

e que decidiram tomar forma num texto. Será que elas encontrariam um lugar
para serem lidas? Pode ser o início de uma tentativa…
Decidi encarar a ciência sobre outro prisma, e encontrei um respaldo
em Maurice Merleau-Ponty. Assim como o autor, não quero polemizar e impor
uma maneira de pensar um objeto de pesquisa. Gostaria de tentar coexistir
com a ciência que, por vezes, se apresenta com uma supremacia objetiva a
todos nós. Não quero assumir, nas palavras de Merleau-Ponty (2004), um
pensamento de sobrevoo como um pensamento do objeto em geral. Tenho a
pretensão de que meu texto

torne a se colocar num “há” prévio, na paisagem, no solo do mundo


sensível e do mundo trabalhando tais como são em nossa vida, por
nosso corpo, não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma
máquina de informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a
sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus
atos. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 14).

Percebo que se uma ciência se torna meramente objetiva ela se perde


na positividade. Não gostaria que isto acontecesse novamente. Digo
novamente, pois em pesquisas anteriores essa foi minha angústia científica: a
de fechar conceitos, encerrar discussões pela excessiva objetividade. Foi com
Edmund Husserl que percebi que temos a verdade das coisas, mas não temos
a verdade de nossa posse das coisas. Com isto reparo que as verdades
científicas ficam a flutuar, ficam despossuídas, parecem não ser a verdade de
ninguém. Com Merleau-Ponty e Husserl decidi que, para ser totalmente
científico, eu precisaria investigar as atividades estruturais subjetivas que
operam na ciência. Este movimento exige algo mais complexo do que continuar
seguindo fazeres formais enclausurados num estado sólido. A exigência aqui é
de entender estados fluidos, líquidos, gasosos… Estes estados podem parecer
sem escrúpulos, por vezes heréticos. Mas a heresia científica desperta minha
curiosidade e soa-me como um desafio.
A heresia científica a que me refiro talvez precise ficar bem esclarecida.
O que chamo de heresia é o ato de (re)aproximar do âmbito científico a
possibilidade de investir numa fenda epistemológica, saindo de estruturas
objetivas dominantes nas ciências e entrar numa nova instância reflexiva, a
fenomenológica, a qual, de acordo com Sokolowski (2004), faz justiça às
intencionalidades que exercemos, mas não tematizamos, em nossos esforços
38

científicos anteriores. Meu texto, assim, procura vir com um modo ontológico
de redução, no qual a fenomenologia é tida como uma ciência e um rigoroso e
explícito empreendimento de autoconsciência. A fenomenologia parece-me,
de fato, uma ciência mais concreta do que quaisquer das investigações parciais.
Sokolowski (2004) comenta que a ciência da fenomenologia complementa e
completa outras ciências particulares, enquanto retém a elas e à sua validade,
de modo que, bastante paradoxalmente, a fenomenologia é a mais concreta
das ciências. Logo, a fenomenologia mostra como a ciência mesma é um tipo
de manifestação, e, consequentemente, mostra a ingenuidade do objetivismo,
ingenuidade por afirmar que o ser é indiferente à manifestação.
No entanto, Merleau-Ponty (1994) nos alerta que ainda não sabemos
nada sobre o mundo e o espaço objetivos! Vejo que para aguçarmos nossa
sapiência (adormecida) sobre o mundo e o espaço objetivos precisamos
descrever o fenômeno do mundo. Merleau-Ponty (1994) solicita-nos descrever
o nascimento do mundo para nós num campo onde cada percepção torna a
nos colocar, onde ainda estamos sós, onde os outros só aparecerão mais tarde,
onde o saber e, particularmente, a ciência ainda não reduziram e nivelaram a
perspectiva individual. É por meio desta perspectiva individual que devemos
ter acesso ao mundo, portanto, em primeiro lugar, é preciso descrevê-la.
Munido deste proceder (científico) investigo sobre a percepção daquilo
que supomos ver. Descrevo um olhar deslocando-se num espaço-tempo,
gerando momentos transversais no campo de meu trabalho. Descrevo o que
estamos vendo, o que poderíamos ver, o que não vemos. Desloco percepções.
Transpasso histórias procurando gerar uma narrativa visual sem imagens, ou
melhor, com muitas imagens que (ainda) não são vistas, mas que estão
procurando um território para coexistirem “entre” elas próprias e “entre” mim.

Mas a coexistência, que com efeito define o espaço, não é alheia ao


tempo, ela é a pertença de dois fenômenos à mesma vaga temporal.
Quanto à relação entre o objeto percebido e minha percepção, ela não
os liga no espaço e fora do tempo: eles são contemporâneos. (…) A
percepção me dá um “campo de presença”. (MERLEAU-PONTY, 1994, p.
358).

É por esta razão que meu texto exige uma escritura. Uma escritura que
é uma espécie de laboratório.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 39

Jacques Derrida coloca que “o tempo da escritura já não segue a linha


dos presentes modificados. O futuro não é um presente futuro, ontem não é
um presente passado” (DERRIDA, 2009, p. 434). Assim, meu texto não é linear,
bem como seu processo de escritura. Início e fim mesclam-se. Deslocam-se.
Neste sentido, coloco transversalmente em meu texto uma descrição
de As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, por serem tais cidades aquelas que
traduzem lugares os quais descrevem o inesgotável existir humano. É uma
licença que tomo para acionar potências latentes do ser no mundo. E por que
cidades? Tomo emprestado de Ítalo Calvino as cidades invisíveis por entender
que a cidade é um espaço no qual corpo e espaço se situam e interagem. A
cidade pode ser considerada um espaço configurado por casas. Assumo, então,
que a cidade é um espaço externo onde a movimentação das casas e suas
dinâmicas construtivas e seus habitares moldam sua composição.
A casa é outro espaço, desta vez interno, onde o sujeito relaciona-se
consigo mesmo na intimidade do seu modo de habitar. Trago de Gaston
Bachelard (1993) a ideia de que na nossa existência, a casa afasta contingências
e que sem ela seríamos seres dispersos. A casa nos mantém através das
tempestades do céu e da vida. A casa é corpo e é alma, sendo o primeiro
mundo do ser humano. Antes de sermos “jogados no mundo” somos colocados
no berço da casa. A vida começa protegida e agasalhada no regaço da casa.
Logo, o corpo é a casa da memória. Existe um corpo-casa que configura uma
cidade invisível a qual, por sua vez, revela um desenho de uma existência
humana. Cabe a nós deixar que estas cidades de corpos-casas se deixem
enunciar para conseguirmos enunciarmos nossa própria existência. É um
compromisso que assumo junto com Derrida (2009). Por meio destas
transversalidades textuais trago uma escritura de origem, escritura
descrevendo a origem, assinalando os sinais do seu desaparecimento, escritura
apaixonada pela origem.

A escritura, paixão da origem, deve entender-se também pela via do


genitivo. É a própria origem que é apaixonada, passiva e suscetível de
ser escrita. O que quer dizer inscrita. A inscrição da origem é sem dúvida
o seu ser-escrito, mas é também o seu ser-inscrito num sistema do qual
não passa de um lugar e de uma função. (DERRIDA, 2009, p. 429).

Pode ser uma escritura que excita. É uma excitação nos moldes de
Merleau-Ponty (1994), a qual é apreendida e reorganizada por funções
40

transversais que a fazem assemelhar-se à percepção que ela vai suscitar. E fica
claro, mais uma vez, o porquê da escolha pela descrição fenomenológica como
fio condutor de minha escritura. “Essa forma que se desenha no sistema
nervoso, esse desdobramento de uma estrutura, não posso representá-los
como uma série de processos em terceira pessoa, transmissão de movimento
ou determinação de uma variável por outra.” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 114).
Entendo, ainda, que este texto espacializado por esta escritura pode ser
traduzido por uma filosofia reflexionante. Destarte, parto do princípio de que,
se uma percepção deve poder ser minha, é preciso que, de agora em diante,
seja uma de minhas representações. É o que Merleau-Ponty (2007) indica ao
comentar que devemos ser como pensamento, efetuando a ligação dos
aspectos sob os quais o objeto se apresenta com sua síntese num objeto.

A reflexão, o retorno ao interior, não modificaria a percepção, visto que


se limitaria a liberar o que desde logo constituía o conjunto de seus
membros ou a juntura, e que a coisa percebida, se não é nada, é o
conjunto das operações de ligação que a reflexão enumera e explicita.
(MERLEAU-PONTY, 2007, p. 51).

É pela reflexão que o eu perdido em suas percepções se reencontra,


reencontrando-as como pensamentos. Interrogo: Há preexistência do mundo
diante de nossa percepção? Existem aspectos do mundo percebidos pelo outro
diante da percepção que terei mais tarde de meu mundo e do mundo dos
homens que vão nascer? Todos esses “mundos” constituem um mundo único
no sentido em que as coisas e o mundo são objetos de pensamento com suas
propriedades intrínsecas? É tomando emprestado a estrutura do mundo que
se constrói para nós o universo da verdade e do pensamento?
Minha abordagem durante todo este texto acolhe a possibilidade de um
corpo do outro que vejo, assim como suas palavras que ouço, serem dados a
mim como imediatamente presentes em um campo. Desta forma, me
presentifico à sua maneira aquilo a que nunca estarei presente, que me será
sempre invisível, de que nunca serei testemunha direta, uma ausência,
portanto. Será que isto predestina o outro a ser espelho de mim mesmo assim
como eu sou o espelho dele? O outro – aquele que me lê (texto, escritura e
autor) – me faz com que eu mesmo tenha, de alguém ou de mim, uma única
imagem, na qual eu e o outro estejamos implicados, “que minha consciência
de mim mesmo e o meu mito do outro sejam não duas contraditórias, mas o
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 41

avesso um da outra” (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 86): Quem me lê e quem é


lido?
A minha relação com o olhar do outro, esse olhar que lê meu texto,
espacializa-se por meu próprio texto. Quero despertar no outro aquilo que é
despertado em mim quando escrevo. O olhar de um outro sobre as coisas que
faço reclama o que lhe é devido.

O olhar de outro sobre as coisas é uma segunda abertura. […], é a


possibilidade de uma distância entre o nada que sou e o ser. […], o outro,
enquanto não me fala, permanece um habitante de meu mundo, mas
me lembra […] que este anônimo não monta o espetáculo para si
mesmo, que o monta para um X, para todos aqueles que
presuntivamente quisessem tomar parte nele. (MERLEAU-PONTY, 2007,
p. 65).

Com Merleau-Ponty (2007) pergunto: O que aconteceria se eu contasse,


não somente com minhas visões de mim mesmo, mas também com as que
outrem teria de si e de mim? Assumo meu texto como se fosse o meu corpo no
sentido merleau-pontyano. É um texto-corpo encenador de minha percepção,
destruindo a ilusão de uma coincidência de minha percepção com as próprias
coisas. Alerto que não é inteiramente meu texto-corpo que percebe. Entendo
que meu texto-corpo pode impedir-me de perceber, mas não posso perceber
sem sua permissão. No momento em que a percepção surge, meu texto-corpo
se apaga diante dela, e nunca ela o apanha no ato de perceber. Por sua vez,

esta reflexão do corpo sobre si mesmo sempre aborta no último


momento: no momento em que sinto minha mão esquerda com a
direita, correspondentemente paro de tocar minha mão direita com a
esquerda. […] a percepção não nasce em qualquer lugar, mas emerge
no recesso de um corpo. (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 20-21) [grifo meu].

Desloco mais uma vez. Na minha escritura aparece transversalmente


outra escritura. Descrevo uma experiência de um olhar o corpo do outro para
entender os termos que a escritura (oficial) apresenta. Poderia ser apenas uma
história de uma vivência acerca do corpo-espaço-objeto de um outro que é,
segundo Sacks (2007), vidente de corpo inteiro. Esta vivência é transversal
assim como são as cidades invisíveis. Semelhanças entre elas podem ser
traçadas, mas as deixo para o leitor fazê-las, pois como já disse, este texto é
uma obra aberta justamente para estas licenças poéticas. Por que faço isto?
42

Por que rompo com uma (pseudo)linearidade que é confortável aos olhos
preguiçosos de um leitor desavisado? É a incontinência de uma escritura… é
um texto-corpo que implora por tais experiências de leitura. É a possibilidade
de uma repetição, de uma morte, de uma origem que não reedita o texto,
apenas o faz coexistir a cada manusear, a cada leitura.

A morte está na aurora porque tudo começou pela repetição. Logo que
o centro ou a origem começaram por se repetir, por se redobrar, o duplo
não se acrescentava apenas ao simples. Dividia-o e fornecia-o. Havia
imediatamente uma dupla origem mais a sua repetição. Três é o
primeiro número da repetição. O último também, pois o abismo da
representação permanece sempre dominado pelo seu ritmo, ao infinito.
Sem dúvida, o infinito não é uno nem nulo, nem inumerável. É de
essência ternária. (DERRIDA, 2009, p. 434).

E para que tudo isto? Como já disse no início, para investigar a


percepção daquilo que supomos ver. Se realmente vemos, o que vemos? Se
realmente não vemos, o que não vemos? A cegueira não é escuridão. A
cegueira também não é invisibilidade. O que é a cegueira? É uma experiência
perceptiva? Estas perguntas, nem sei se as respondo. No início de tudo (e no
fim também) queria investigar a cegueira. Ledo engano! Acho que o verdadeiro
cego era eu ao querer investigar uma das milhares maneiras de habitar um
mundo. Será que esta maneira de habitar o mundo permite que eu também
habite o mundo à minha maneira? Eis o desafio maior. E do que escrevo,
então? Sobre tudo isto. Sobre existir, sobre perceber como existir, sobre ver e
não ver como existir, sobre entrelaçamentos de existires, sobre encontros
fortuitos num existir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.


CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009.
DERRIDA, J. Memoirs of the blind: the self portrait and other ruins. Chicago: University of
Chicago Press, 1993.
HUSSERL, E. Investigações lógicas. Sexta investigação (Elementos de uma elucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, 1996.
MEDEIROS, M. B. de. Aisthesis: estética, educação e comunidades. Chapecó: Argos, 2005.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 43

MERLEAU-PONTY, M. O homem e a comunicação: a prosa do mundo. Rio de Janeiro: Bloch,


1974.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
MERLEAU-PONTY, M. Conversas – 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007.
SACKS, O. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
SACKS, O. Anotações de um neurologista: o olho da mente: o que os cegos vêem. Mente
Cérebro, São Paulo, n. 176, p. 32-43, 2007.
SOKOLOWSKI, R. Introdução à fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004.
44
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 45

Capítulo 3

A HABITAÇÃO COLETIVA NO PROCESSO DE REQUALIFICAÇÃO


DA CIDADE CONTEMPORÂNEA. ESTUDO DE CASOS NA
ANDALUZIA (ESPANHA) E EM SÃO LUÍS DO MARANHÃO
(BRASIL)

Silvana Rodrigues de Oliveira3


María Fernanda Carrascal Pérez4

1 INTRODUÇÃO. REFERÊNCIAS DESDE PIRANESI, ESCHER E MOEBIUS

O mundo da criação artística é uma constante adição de


conhecimentos, ao ponto de podermos reconhecer na gravura de Escher
"Relatividade" a série de gravuras “Prisões imaginárias” de Piranesi 5, criada
dois séculos antes, nas quais existem caminhos infinitos com subidas e descidas
num sistema indefinido de escadarias. Da mesma forma, quando nós,
arquitetos, projetamos não começamos do zero, os programas e situações
podem ser novos, mas os nossos conhecimentos são acumulativos. Assim,
reconhecemos essa soma de conhecimento nos projetos que vamos
apresentar como estudo de casos. Não só através dos caminhos físicos, mas
também como uma busca comum no partido arquitetônico com trajetórias
espaciais, relações visuais e espaços de convivência sempre presentes.

3 Doutora Arquiteta pela Escola Internacional de Doutoramento da Universidade de Sevilha (2021);


arquiteta pela Escola Técnica Superior de Arquitetura Universidade de Sevilha (ETSA_US) (2006) e
pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo (1986). Professora do Departamento de Projetos
Arquitetônicos da ETSA_US, desde 2006. E-mail: srodrigues@us.es
4 Doutora Arquiteta pela Escola Internacional de Doutoramento da Universidade de Sevilha (2015);

arquiteta pela Escola Técnica Superior de Arquitetura Universidade de Sevilha (ETSA_US) (2007).
Professora do Departamento de História, Teoria e Composição Arquitetônicas da ETSA_US, desde
2011. E-mail: mcarrascal@us.es
5 Artista italiano Giovanni Battista Piranesi (1720-1778) e artista holandês Maurits Cornelis Escher

(1898-1972).
46

Estes projetos (Figura 1), analisados sob a metáfora de Piranesi e Escher


e a fita de Möbius6, foram levados a cabo pelo escritório sevilhano Carrascal –
Fernández de la Puente, que reúne diferentes soluções baixo um fio comum
projetual; são peças entrelaçadas no tecido urbano que assumem a
complexidade espacial da cidade histórica e propõem soluções que encontram
a sua escala na preexistência, evitando uma resposta literal dada apenas aos
aspectos de planejamento e códigos de obras e edificações.

Figura 1 –Projetos habitacionais realizados pelo Escritório Carrascal – Fernández de la


Puente

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1989-2014).

2 HABITAÇÃO COLETIVA E REGENERAÇÃO DE CENTROS HISTÓRICOS

O arquiteto e crítico Josep Maria Montaner, no seu livro La arquitectura


de la vivenda colectiva…, afirma que, desde o início da cidade moderna, a
habitação coletiva tornou-se o eixo fundamental do planejamento urbano.
Comenta que o texto "Sobre a questão da habitação" escrito por Friedrich
Engels, entre 1871-1873, já apresentava o debate e as pretensões do
"socialismo utópico", quando a necessidade de habitação aumentava ao
mesmo tempo que a industrialização crescia (MONTANER, 2015, p. 13). Como
primeira solução, o papel das vilas operárias para trabalhadores, construídas
ao lado das fábricas, foram fundamentais. Mais tarde, começaram os primeiros
embriões de habitação coletiva, que teriam impacto na disposição das áreas

6Fita de Möbius, descoberta em 1858 pelo matemático alemão August Ferdinand Möbius (1790-
1868), uma variedade bidimensional que influenciou as “figuras impossíveis” dos desenhos de
Escher.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 47

urbanas mudando o paradigma do desenho arquitetônico, que até então


centrava-se em edifícios administrativos e palácios importantes.
Assim, a habitação, que normalmente era de construção espontânea,
começou a exigir projetos específicos ligados à racionalidade construtiva. Ao
mesmo tempo, os anéis de expansão das cidades, "ensanches" perto das áreas
centrais, tendiam a ser ocupados por uma classe média e alta à procura de
casas mais modernas e higiênicas. Eram construções adaptadas aos novos
padrões de vida influenciados pelo Plano Haussman em Paris, estruturados em
novas artérias de tráfico e conceitos higiênicos, mais tarde cristalizados no
planejamento urbano moderno. No entanto, as habitações coletivas foram
construídas em bairros periféricos sem personalidades e muitas vezes distantes
dos lugares de trabalho.
Sem dúvida, as novas técnicas de construção do Movimento Moderno
permitiram edificar engenhosos edifícios de habitação coletiva em diferentes
lugares; lideradas pela Holanda, Alemanha, antiga União Soviética, entre
outros, deixaram paradigmáticos exemplos. Em geral, esses foram processos
inovadores discutidos nos diferentes Congressos Internacionais de Arquitetura
Moderna (CIAM), com soluções de casas mínimas e racionais, muitas vezes,
incorporavam serviços comunitários.
Após a Segunda Guerra Mundial, a demanda de moradias coletivas
aumentou drasticamente e se estenderam por muitos países como Itália,
França e Inglaterra, entre outros. No continente americano, de forma mais
esporádica, também se realizaram inovadoras obras no campo da habitação
social.
Entretanto, com o passar do tempo, os modelos estabelecidos se
desgastaram e surgiram vários debates criticando a produção em massa de
moradias baseadas nos conceitos de separação de usos da Carta de Atenas,
excessivamente impessoais, sem considerar os aspectos coletivos e os
interesses da população.
No IX CIAM, em 1953, foi aberto um debate, liderado pelo futuro grupo
TEAM X, gerando um importante ponto de inflexão na abordagem da habitação
coletiva do movimento moderno. Os arquitetos buscavam novas linhas de
atuação para a habitação coletiva com propostas que se adaptassem o máximo
possível às condições da realidade e identidade da população e que
respondessem com atenção ao fato em oposição ao objeto único (MONTANER
48

2015, p. 155). Surgiu um questionamento da hierarquia do urbanismo do


Movimento Moderno e propuseram trabalhar a partir da casa, da rua, do bairro
e, finalmente, a cidade. Portanto, a casa e o bairro deveriam ser os principais
motores da habitação social.
Este despertar também teve um impacto no tecido urbano de áreas
centrais consolidadas, embora muitas vezes obsoletas, passando a habitação a
ser o eixo fundamental para a regeneração dessas áreas, entendendo que a
moradia é o que garante a vida nesses bairros. Esta nova abordagem começou
gradualmente a gerar diferentes políticas habitacionais, que ocorreram em
paralelo em diferentes cidades.
No continente americano, a jornalista ativista Jane Jacobs, nos anos
1960, defendeu que as pessoas deveriam ser o foco principal da cidade e que
era essencial fomentar a vida comunitária. Após a publicação de seu artigo
"Downtown is for people" na revista Fortune (1958) e seu livro The Death and
Life of Great American Cities (1961), e confrontos polêmicos com a
Administração Pública, ela obteve sucesso e conseguiu deter o processo de
construção de novos conjuntos habitacionais que devastariam uma grande do
oeste de Manhattan (CARRASCAL; RODRIGUES DE OLIVEIRA).
Por outro lado, o debate também estava aberto na Europa e surgiram
novas visões de regeneração urbana, especialmente voltadas para a
reabilitação de tecidos históricos. Na vanguarda desta linha de trabalho se
encontrava a Conservação Urbana Integrada em Bolonha (concebida entre
1950-1970 por Pierluigi Cervellati) em vigor em 1969, no Plano Urbano de
Bolonha. Proposta que se concentrou em estudos tipológicos de edifícios
existentes, principalmente habitação coletiva e gradualmente abriu novas
linhas que davam prioridade ao tecido social existente, indo além do valor
patrimonial do edifício (MONTANER, 2015, p. 221).

3 CASOS DE ESTUDO E ATUAÇÕES SINGULARES NA ANDALUZIA

Os casos apresentados nesta pesquisa foram projetados pelo escritório


Carrascal-Fernández de la Puente, localizado em Sevilha, no sul da Espanha. A
equipe, composta pelos arquitetos Fernando Carrascal Calle e José María
Fernández de La Puente Irigoyen, profissionais com ampla experiência em
projetos, principalmente no campo da habitação social ligada a centros
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 49

históricos, foi assistida por vários estudantes e jovens arquitetos7. Essas


propostas de habitação coletiva, duas delas realizadas em Sevilha, uma em
Cádiz e a última em São Luís do Maranhão (Brasil), procuraram facilitar a
permanência dos habitantes nos bairros onde, muito deles, já moravam.
Expõe-se o projeto de uma pequena casa em Sevilha, para um cliente privado,
como uma integração das ações de investimento privado e entendendo que os
centros históricos devem acomodar diferentes tipos de habitantes.
O programa de reestruturação do Centro Histórico de Bolonha,
comentado anteriormente, sem dúvida, passou a ser evocador para os
programas de regeneração urbana em diferentes cidades. Caso alusivo para a
política de habitação coletiva adotada pela Junta de Andaluzia para os centros
históricos, chamadas “Atuações Singulares” no qual se insere três projetos aqui
estudados.

O programa "Actuaciones Singulares en materia de vivienda", financiado


pela Consejería de Obras Públicas y Transportes de la Junta de Andalucía,
tem como objetivo fundamental a reabilitação pública direta através de
intervenções de especial interesse arquitetônico, urbanístico e social. O
programa de ação se baseia em duas linhas: restauração de edifícios de
especial interesse arquitetônico; e intervenções em operações de
remodelação e reabilitação em áreas urbanas consolidadas.
Uma vez administrado a compra do imóvel, de preferência um edifício
de interesse singular ou em um lote urbano, que normalmente está
vazio devido ao abandono ou em estado de ruína, nos centros históricos,
uma equipe de arquitetos elabora um projeto de reabilitação no
primeiro caso, ou um novo projeto no segundo, e executa as obras para
obter, em qualquer caso, moradias para famílias modestas que
necessitam de uma acomodação decente. O regime de arrendamento é
o aluguel, apropriado ao nível de renda dos beneficiários, que, além
disso, são quase sempre as mesmas famílias que já viveram no imóvel
ou residentes do próprio bairro. (Tríptico Junta de Andaluzia).

Outro caso de estudo foi a atividade de coordenação do projeto para


vivendas coletivas em São Luís, realizado dentro do programa de Cooperação
Internacional da Junta de Andaluzia. Um trabalho em pareceria onde estava
presente a dificuldade de projetar baixo uma rígida legislação do Patrimônio

7Silvana Rodrigues de Oliveira colaborou pela primeira vez nesse escritório em outubro de 1988,
nas modificações do projeto da Reabilitação da Casa Hernán Cortés e na redação do projeto da
Casa Amiano. Depois, continuou participando em diferentes projetos em etapas intermitentes, até
2022.
50

Histórico, que dificultava a viabilidade da adaptação de um edifício histórico


para o uso de habitação social.
Com esses projetos pretendemos chamar a atenção para a importância
da habitação como um uso necessário para a regeneração urbana das áreas
centrais e, juntamente com outras atividades de apoio e espaços público,
garantir uma vida comunitária saudável na cidade contemporânea. Fomentar
a habitação social nessas áreas é fundamental para manter a população
original do bairro, evitando a gentrificação. As atuações devem ser equilibradas
impedindo os usos excessivamente comerciais e turísticos que não contribuem
para manter as pessoas em seus bairros. Os tipos de ações público-privadas
também podem ser uma alternativa viável sempre quando sejam
consensuadas e bem controladas.

3.1 Reabilitação da Casa Hernán Cortés e novo edifício – Sevilha (1988-1991)

Este estudo de caso é um exemplo claro da investigação de habitações


sociais inseridas em edifícios relevantes em centros históricos, a reabilitação
da antiga casa palaciana da metade do século XVII para habitação social, Casa
Hernán Cortés, inclui um novo prédio no terreno adjacente na rua Flandes.
Apresenta a dificuldade de alojamento em uma antiga edificação com
vãos estruturais e alturas de piso não preparadas para acomodar este novo
uso. Ao mesmo tempo, foi necessário gerar um diálogo entre a velha e a nova
construção, unificando o conjunto, como uma pequena cidadela, dentro do
tecido do centro histórico de Sevilla.
Figura 2 – Fachada principal Casa Hernán Cortés e lateral, dando ao “adarve” junto ao terreno
adjacente que foi incorporado ao projeto.

Fonte: Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1988).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 51

O professor e historiador de arte Alfredo Morales realizou uma pesquisa


inicial sobre a Casa Hernán Cortés que foi crucial para compreender as
características formais da antiga casa unifamiliar palaciana, o que ajudou a
definir as diretrizes para as ações de projeto. Esse estudo e as antigas
fotografias do Laboratório de Arte da Universidade de Sevilha permitiram
conhecer os acessos históricos do palacete e as transformações ocorridas ao
longo do tempo (Figura 2). Isto levou à conclusão, em primeiro lugar, de
recuperar o acesso original à casa através de uma antiga ruela e, em segundo
lugar, reabilitá-lo, conservando sua tipologia original, qual as habitações sociais
foram introduzidas em seus diferentes espaços e andares com um
“mecanismo” independente (Figura 3).

Figura 3 – Fachada principal Casa Hernán Cortés. Fachada lateral, dando ao “adarve” lateral
desde o terreno adjacente que foi incorporado ao projeto.

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1989-2014).

De modo que as células habitacionais inseridas nos cômodos antigos


foram projetadas com estruturas metálicas pré-fabricadas de dupla altura. No
primeiro andar estão unidas por meio de galerias, deixando um vazio dentro
da unidade (mezanino) que permite reconhecer as paredes e a altura dos
52

diferentes aposentos da construção antiga. Os quartos, cozinha e banheiro


foram delimitados por elementos leves que, no encontro com as paredes,
passam a ser de vidro.

Figura 4 – Pátio principal da casa Hernán Cortés reabilitado; detalhe da galeria; interior da
moradia; escadaria principal, “presença de Escher e de Scarpa”. Foto de Pepe Morón

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1989-2014).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 53

Do acesso recuperado ao palácio, emerge um mundo de circulações no


qual as gravuras de Piranesi e Escher podem ser reconhecidas, formalizando
diferentes percursos à maneira da fita de Möbius. A obra do arquiteto italiano
Carlos Scarpa também pode ser identificada no novo revestimento sobre a
antiga escadaria do palacete (Figura 4). Na cobertura se destina um espaço
para zonas comunitárias para os habitantes do conjunto (Figura 5).

Figura 5 – Fachada principal Casa Hernán Cortés. Fachada lateral, dando ao “adarve” lateral
desde o terreno adjacente que foi incorporado ao projeto. Foto de Pepe Morón

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1989-2014).


54

O novo edifício está alinhado num dos lados da ruela interior, que foi
ampliada para formar um pátio no qual se encontra uma de suas entradas e
que, ao mesmo tempo, atravessa o edifício e se comunica diretamente com a
rua Flandes; construtivamente foi projetado com paredes paralelas de
alvenaria estrutural. Neste corpo, as partes principais da moradia (estares e
quartos) se dirigem para o pátio ou para a rua, deixando as escadas e as áreas
molhadas voltadas para os pátios interiores na área central (Figura 5).
Como conclusão, é destacável o conceito adotado na reabilitação,
baseado praticamente em restaurar a construção antiga e acrescentar
elementos ligeiros para dotá-lo de espaços para o uso de moradia. Em um dado
momento, estas novas estruturas e paredes internas, fáceis de montar e
desmontar, são factíveis de remoção, podendo o antigo edifício ser recuperado
e reutilizado para outro fim.

3.2 “Antiguos Corrales Vírgenes-Trompero” – 63 habitações de promoção


pública – Sevilha

A pesquisa histórica sobre os dois edifícios antigos (Corral de Vírgenes e


Corral de Trompero), e as duas casas juntas que completaram o complexo foi
realizada com o professor e historiador de arte Alfredo Morales. Estas antigas
construções haviam sido demolidas vários anos antes do encargo do projeto;
tratava-se de um conjunto de tipologias de habitações coletivas tradicionais
comparáveis com os “conventillos" argentinos ou cortiços brasileiros. Neste
caso, construídas junto às divisórias do terreno, deixando grandes pátios nas
áreas centrais. Os planos elaborados alguns anos antes por estudantes da
Faculdade de Arquitetura de Sevilha revelaram a disposição das antigas
construções (Figura 6).
Posteriormente, durante o processo de construção, foram realizadas
escavações arqueológicas no local que trouxeram à luz restos romanos e
medievais, bem como os dos dois antigos "corrales"8, que afirmaram a
importância do enclave. Ao mesmo tempo, foi polémica na cidade (e valente)
a decisão da Junta de Andaluzia em destinar esse projeto à habitação social.

8
Durante as escavações arqueológicas foram encontrados restos medievais de uma antiga
tinturaria, e na cota 5 apareceram vestígios de Roma, talvez tenha sido um edifício administrativo
ou parte da muralha da etapa romana de Sevilha.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 55

Este projeto foi selecionado para a Bienal de Arquitetura de São Paulo


(1999) e posteriormente foi objeto de um artigo na revista on-line Vitruvius, na
seção Arquitextos (OLIVEIRA 1990)9. Também foi selecionado para a Bienal de
Arquitetura Espanhola, Bienal de Arquitetura de Veneza, entre outras
exposições e publicações em revistas europeias e recebeu mais de 20 visitas de
estudantes de diferentes faculdades de arquitetura, o que o distingue como
um projeto de destaque neste tipo de intervenção.

Figura 6 – Planimetria com as três propriedades. Nova proposta inserida na trama urbana

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (esq. s/ data) (der. 1995).

O complexo está localizado na parte mais alta da cidade, um bairro que


desde o início abrigou o núcleo principal da população. O terreno de 2.724,34
m², tem poucas conexões com as ruas: apenas 9,20 m de fachada na rua Conde
de Ibarra (única moradia existente na época); 17,85 m de fachada na rua
Vírgenes; e uma passarela de pedestres de 1,8 m de largura, também nesta
última rua. Este terreno, dentro do interior da quadra, tinha um perímetro
complexo, resultado da demolição de vários edifícios que compartilhavam
paredes e muitas vezes continham "servidumbre de luces", aberturas de

9 Artigo base para este texto.


56

ventilação alheias, que tinham que ser conservadas de acordo com o código de
construção de Sevilha (Figura 7).

Figura 7 – Perímetro dos lotes com as preexistências já demolidas. Abaixo, planos com a proposta
reconhecendo as três propriedades; perspectiva com a nova construção no miolo da quadra

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1995).

O projeto também deveria seguir as recomendações da Comissão do


Patrimônio Histórico, que indicava que a proposta deveria identificar os lotes
originais do conjunto. De modo que as paredes dos novos edifícios se apoiaram
nos perímetros dos terrenos de cada "corral". Assim desaparecem os muros
divisórios, confundindo-se entre uns e outros, criando edifícios entre os limites
e a própria fachada. Essa ação determinou os espaços cheios e vazios da futura
construção. Então, rejeitadas as tentações de uma nova ordem, indiferente ao
perímetro, parecia desejável que o projeto fosse entendido como unitário. A
aplicação da legislação permitiu que os quartos das casas no edifício central
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 57

ventilassem ao terreno ao qual pertenciam e os quartos e cozinhas ao terreno


vizinho, aproveitando uma ambiguidade na lei e criando uma "servidumbre de
luces", o que foi possível porque todo o terreno pertencia ao mesmo
proprietário, a mesma Administração Pública (Figura 8).
Na época do desenvolvimento da proposta, não eram permitidos
elevadores em projetos de habitação social de até quatro andares. Uma ponte
de comunicação tornou possível reduzir o número de escadas e agilizar os
percursos, ligando pisos térreos, galerias e coberturas; estas pontes conduzem
aos balcões registrando espacialmente o terreno alheio, mas pertencentes à
mesma propriedade (Figura 9).
Figura 8 – Planta baixa do conjunto

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1995).

As tipologias das células de moradias, normalmente com dois ou três


quartos, variam de acordo com as diferentes construções adaptadas aos
programas de habitação social promovidos pela Junta de Andaluzia.

O conjunto por um lado, se unifica pela cor e pelos materiais de


acabamento; a grande maioria de paredes exteriores foram rebocadas
e pintadas de branco, e algumas partes de fachada receberam
acabamento em concreto pré-fabricado, G.R.C. (projeção de concreto e
58

fibra de vidro). Estes produzem uma vibração nas fachadas nos casos de
invasões dos pátios por edificações anexas para marcar a diferença de
altura de algum corpo, ou em fachadas enfrentadas com tratamento
tipológico diferente. Nestes casos o sistema de escurecimento se realiza
por venezianas metálicas com o mesmo perfil dos paramentos. O dia e
a noite fazem que a fachada se feche e abra com múltiplos olhos, como
na vigília e no sonho”. Memorial do projeto. (OLIVEIRA, 1990).

Figura 9 – Espaço público interior: pátios e percursos. Foto de Duccio Malagamba

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1998).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 59

Podemos concluir que o complexo construído causa surpresa e produz


ambiguidade dimensional; o percurso de pedestre, notavelmente desenhado
através dos labirintos desde o pavimento térreo até as coberturas – que
lembram a faixa de Möbius – muda a percepção dos espaços. Os pátios, que
ademais de acomodar essa circulação de pedestres são verdadeiros espaços
públicos interiores, facilitam a vida comunitária entre os moradores e que
inclusive acolhem festas comunitárias (Figuras 8 e 9).

3.3 Conjunto de 35 habitações coletivas, rua Mirador, 35-37, Barrio de Santa


María – Cádiz (2001-2005)

A atuação inclui três edifícios germinados, e suas tipologias derivam da


evolução da residência doméstica barroca no centro histórico de Cádiz, que
antigamente incluía o uso comercial no térreo (Figura 10). Originalmente eram
casas unifamiliares e depois, com o declínio do comércio, foram subdivididas e
transformadas em casas multifamiliares com a ocupação dos pátios, galerias,
telhados etc. Estavam organizadas em torno de um pátio principal e outros
pátios secundários para iluminar a construção profunda. A escada principal
está habitualmente localizada no fundo do primeiro pátio e a distribuição por
andares é feita por meio de galerias que ocupam todos os lados do primeiro
pátio e, às vezes, os pátios menores.

Figura 10 – Localização da atuação no Bairro de Santa Maria em Cádiz

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (2001).


60

Figura 11 – Plantas (dir.- esq.) Térreo; 1º,2º e 3º andar.

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (2001).

A proposta de reabilitação procurou conservar ao máximo as tipologias


originais dos edifícios, realizando apenas operações de limpeza, com pequenas
transformações para esclarecer os espaços livres e a relação entre os diferentes
andares e, ao mesmo tempo, reconhecer e unificar as três propriedades. Assim,
os três pátios principais são mantidos e as galerias existentes continuam
atuando como acessos às diferentes moradias e se unem com as dos outros
edifícios. Esta solução torna possível a instalação de um único elevador para
servir as três propriedades (Figura 11).
A operação realizada com mais audácia foi a abertura de passagens no
pavimento térreo gerando espaços permeáveis entre os três edifícios. Esses
percursos contam com eliminação de barreiras arquitetônicas, facilitando a
acessibilidade para pessoas com deficiências. No final do percurso, no edifício
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 61

mais alto, está o elevador, que é exigido por lei e que pode ser usado por todos
os habitantes do empreendimento.

Figura 12 – Demolições durante a obra e estado depois da reabilitação. Foto escritório


Carrascal – Fernández de la Puente e foto inferior de Fernando Alda

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (2001 e 2005).


62

Construtivamente, as grossas paredes de alvenaria estrutural são


mantidas, e apenas recebem novas aberturas. As estruturas horizontais
formadas por vigas de madeira foram substituídas, parcial ou totalmente
(Figura 12). Para evitar a deterioração causada pelo efeito da água da chuva,
os pátios foram cobertos com claraboias de vidro ventiladas sobre elementos
de concreto. É uma solução tradicional em casas unifamiliares, mas até então
não adotada em habitações multifamiliares.

Figura 13 – Detalhe escada interior de moradia em dúplex. Mobiliário parede – mesa.


Foto de Fernando Alda

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (2005).

As tipologias de moradia obedecem aos regulamentos públicos e são


quase sempre de dois ou três quartos, de um andar ou dúplex. O cuidado
mobiliário permite que uma parede de madeira se transforme em mesa, uma
referência ao arquiteto espanhol Alejandro de la Sota (Figura 13).
Como conclusão, observa-se que a operação de escavação, como se os
arquitetos fossem espeleólogos, buscou cuidadosas aberturas e gerou uma
sequência de espaços cobertos e espaços vazios, claros-escuros – que
melhoram as condições de ventilação e iluminação do conjunto e das
dependências dos diferentes andares –, que resultaram em atrativos percursos
ao mesmo tempo que atualizaram o edifício respeitando a sua atmosfera
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 63

inicial. É um exemplo mais da aposta da administração pública andaluza em


manter a população nos seus bairros de origem.

3.4 Reabilitação de moradias no centro histórico de São Luís, Maranhão,


Brasil (2004-2011)

Entre as diferentes atividades realizadas pelos arquitetos Fernando


Carrascal e José María Fernández de la Puente Irigoyen foi a coordenação
(entre 2004-2014) da Cooperação Internacional da Junta de Andaluzia, no
campo do "Fomento à Arquitetura", com o Brasil, através do Ministério das
Cidades do Governo Federal do Brasil.
Os primeiros frutos dessa cooperação foram os guias de arquitetura e
paisagem: "São Luís, Ilha do Maranhão e Alcântara" (2008); depois "Salvador e
Baía de Todos os Santos" (2012). Este trabalho em parceria contou com
entidades locais que proporcionavam interessantes estudos prévios realizados
por arquitetos, historiadores, arqueólogos e fotógrafos, especialistas e nativos
destas cidades; o desenho e a impressão dos guias foram realizados na
Espanha. Os bons resultados de essa atividade em parceria abriram outras vias
de cooperação no campo da reabilitação de edifícios de interesse patrimonial
para habitação social.

Figura 14 – Fachada do imóvel Humberto Campos 170. Estado antes e depois da reabilitação

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (2012).


64

Então, numa fase posterior, nasceu a consultoria para a reabilitação de


um imóvel para habitação coletiva no centro histórico de São Luís, que também
recebeu um financiamento parcial da Junta de Andaluzia. O objetivo era
melhorar as condições de vida dos moradores que já ocupavam um prédio,
datado de 1960, localizado na rua Humberto de Campos, 170 (Figura 14). Não
era um edifício histórico tradicional do centro histórico de São Luís, por isso era
mais viável adaptá-lo para habitação coletiva, além disso, este já era o seu uso
naquela época.

Figura 15 – Programa de Cooperação Internacional. Reabilitação de moradias em São Luís,


Maranhão, Brasil

Fonte: Fragmentos do tríptico produzido pela Junta de Andaluzia (2012).

O imóvel estava composto por uma sequência de espaços conectados


por grandes corredores e com uma cobertura única, que abrangia todo o
terreno, sem a existência de pátios de iluminação e ventilação. A equipe
brasileira apresentou um anteprojeto de acordo com a legislação municipal,
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 65

que era pouco flexível e não permitia a abertura de pátios interiores que
afetassem os telhados.
De acordo com a experiência da equipe espanhola, tal como vimos,
nesse tipo de projetos realizados na Andaluzia, foram sugeridas algumas
modificações defendendo a necessária abertura de pequenos pátios para
conseguir melhorar a iluminação natural e gerar ventilações cruzadas,
imprescindíveis para a habitação coletiva. Mudanças que conduziu a um
questionamento das normas e a municipalidade (Coordenação de Patrimônio
Cultural – Fundação Municipal de Patrimônio Histórico)10, aceitou as sugestões
que melhoravam as condições de salubridade e ambientais, mais adequadas
aos exigentes requerimentos do uso habitacional proposto (Figuras 15 e 16).

Figura 16 – Corredores e escadaria no interior do edifício, estado reabilitado

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (2012).

“Neste espaço foram construídas 18 moradias, seis em cada pavimento,


obedecendo à modulação estrutural já existente [...], com um ou dois quartos,
sala – cozinha e banheiro social, tendo em média uns 40 m² [...]11.

10A través da assinatura do protocolo entre o Ministério das Cidades e a Junta de Andaluzia,
passando pela Oficina Técnica de Cooperação AECID, Embaixada de Espanha no Brasil.
11Junta de Andalucía. Consejería de Fomento y vivienda, 2012. “Rehabilitación de viviendas en el
Centro Histórico. San Luis (Marañon, Brasil)”. Tríptico, Depósito Legal: SE 3325-2012.
66

Foi muito importante o trabalho social sistemático realizado pela


municipalidade para a seleção das famílias a partir de critérios de renda,
condições de moradia, número de moradores por família, entre outros.
É possível concluir que essa experiência de consultoria para o projeto
de reabilitação de um imóvel em um país diferente ao lugar de trabalho
habitual da equipe, enriqueceu tanto aos arquitetos de Sevilha como aos de
São Luís. Conjuntamente reflexionaram sobre as dificuldades de enfrentar-se a
uma rígida legislação do Patrimônio Histórico e buscaram uma solução viável
para adaptar o edifício ao uso requerido de habitação social.

3.5 Reabilitação Casa Amiano, Sevilha (1988-1990)

A variação de usos na regeneração urbana é muito necessária para


conseguir um equilíbrio nos bairros, assim como é aconselhável a presença de
diferentes iniciativas, onde estejam presentes o capital público e privado,
controlados desde organismos públicos e a través dos seus códigos de obras e
edificações.
Em 1989, uma psicóloga e professora comprou uma pequena casa no
centro histórico de Sevilha que se encontrava muito deteriorada. Naquele
momento era um bairro perigoso, com a presença de drogas e prostituição. Foi
um ato de valentia da dona, já que ela não pôde comprovar o estado de
deterioração do imóvel (Figura 17).

Figura 17 – Fachada Casa Amiano. Estado anterior e durante a obra

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1989).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 67

A casa de dois andares, localizada na frente de uma antiga igreja, é


resultado de um desmembramento de uma casa mais ampla, conservando
somente um corpo unitário junto à rua, e um pequeno, na parte do fundo, onde
se encontravam as peças úmidas e escadas (Figura 18 s).
A proposta consistiu em esculpir um volume dentro do volume
existente. “O espaço da talha”, tendo como referência metafórica a igreja
ortodoxa de Biet Ghiorgis, Lalibela, Etiópia, escavada na roca (CARRASCAL
2003).

Figura 18 – Casa Amiano. Plantas estado anterior às obras (superiores) e reabilitadas (inferiores)

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1989).


68

O projeto de reabilitação inseriu no interior do edifício existente uma


nova construção, deixando detrás um pequeno afastamento entre o elemento
novo e o antigo. Vazio que recebeu luz zenital e onde estão dispostas as
circulações verticais e que ao mesmo tempo, permitiu ventilar as peças do
novo corpo (Figuras 18 i).
Terminou sendo como uma torre dentro da casa (Figura 19). Essa torre,
com quatro níveis de pouca altura passou a ser o espaço servidor – albergando
todas as zonas úmidas – que serve o espaço mais nobre da antiga casa, com
salas espaçosas e grandes janelas dirigidas à antiga igreja (Figura 20).

Figura 19 – Detalhes construtivos. Lavabo na galeria e claraboia de iluminação em zonas de


escadas e dependências localizadas na “torre”

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1989).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 69

Figura 20 – Torre e detalhes das escadas.

Fonte: Escritório Carrascal – Fernández de la Puente (1989 y 1999).

Sobre o último andar da torre se encontra o dormitório principal que


disfruta das belas vistas da igreja na calçada da frente. Um grande ajuste que
permitiu atualizar a antiga edificação aos requerimentos domésticos atuais.
70

4 CONCLUSÕES

A habitação é a razão de ser das cidades e a Administração Pública


deve garantir o direito das pessoas à habitação. A demanda por habitação
social aumenta constantemente e permanecerá sendo ascendente no futuro
próximo. No entanto, dado aos devastadores desafios de saúde pública (como
a crise de 2020 que passamos recentemente), e diante dos desafios oriundos
também das mudanças climáticas e da crescente demanda por equidade social,
precisamos ir mais além, buscando outras vias para a moradia coletiva. Como
técnicos (arquitetos, urbanistas, designers etc.) temos a obrigação de
desenvolver novas alternativas para programas de habitação social, com
programas mistos, financiados entre o capital público e privado, e que resultem
em claras respostas para a renovação urbana; essas deverão ser acessíveis,
mais saudáveis, mais sustentáveis e mais justas.
Esperamos que com esses projetos, que conjugam o novo com a
preexistência, incluídos nesse estudo baixo a metáfora de Piranesi e Escher à
fita de Möbius, que compõem este bucle contínuo de percursos infinitos,
mostrem o bom fazer dessa equipe de responsáveis arquitetos. São
profissionais que podem ser identificados no conceito de artesão de Richard
Sennett, no sentido de que ambos respondem ao impulso de fazer bem as
atividades (projetos) que eles priorizam. Na monografia que a revista
Documentos de Arquitectura, n. 51, dedica a Carrascal e Fernández de la
Puente, os autores da introdução, “La emoción de la Racionalidad”, José María
Montaner e Zaida Muxi, os consideram como um exemplo de “fidelidade ao
programa funcional e a busca de expressividade direta a partir de um
repertório limitado de materiais. Uma coincidência atemperada de
funcionalismo y racionalismo” (MONTANER; MUXI, 2002, p. 1).
Suas arquiteturas são sensíveis e querem contribuir para gerar uma
sociedade mais humana e equilibrada. Um exemplo e ao mesmo tempo um
alerta sobre a necessidade de que as Administrações Públicas dediquem seus
programas à habitação coletiva. Esses devem garantir o direito das pessoas à
moradia e são fundamentais para uma regeneração urbana eficiente.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 71

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AA:VV: Arquitectura pública en Andalucía: Consejería de Obras Públicas y Transportes, obras


construidas 1984-1994. Sevilla: Junta de Andalucía, Consejería de Obras Públicas y
Transportes,1994.
CARRASCAL, F.; FERNÁNDEZ DE LA PUENTE, J. M. Carrascal Calle, Monografía. Documentos de
Arquitectura, n. 51, 2002.
CARRASCAL, F. El espacio de la talla. In: Programa de Doctorado. El proyecto de la arquitectura
contemporánea. Departamento de Proyectos arquitectónicos. Escuela Técnica Superior de
Arquitectura de Sevilla. 2003.
CARRASCAL, F.; FERNÁNDEZ DE LA PUENTE, J.M. 35 viviendas en calle Santo Domingo 35, 37 Y
Mirador 13. Barrio de Santa María. Cádiz. In: Premio Andalucía de Arquitectura 08: Obra
Construida. Consejería de Vivienda y Ordenación del Territorio. Junta de Andalucía, 2009, p. 140-
147.
CARRASCAL, M.; RODRIGUES DE OLIVEIRA, S. La Fábrica-casa: hábitats colaborativos y patrimonio
industrial, desde los 60 en NYC. Proyecto, Progreso, Arquitectura, n. 27, 2022.
MONTANER, J. M.; MUXI, Z. La emoción de la racionalidad (introdução). Documentos de
Arquitectura, n. 51, 2002.
MONTANER, J. M. La arquitectura de la vivenda colectiva. Políticas y proyectos en la ciudad
comtemporánea. Barcelona: Editorial Reverté, 2015.
SENNETT, R. El artesano. [s/l]: Anagrama, 2009.
OLIVEIRA, S. R. de. Virgenes y trompero. 63 unidades de habitação social em Sevilha.
Arquitextos, São Paulo, ano 1, n. 002.01, jul. 2000. Disponível em:
https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.002/995. Acesso em: 30/07/2022.

Nota: imagens tomadas da bibliografia mencionada e da página web:


http://www.carrascal-fernandezdelapuente.com/
72
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 73

Capítulo 4

ARQUITETURA LUSO-BRASILEIRA E PAISAGEM NA REGIÃO DO


COMPLEXO LAGUNAR (SC): PATRIMÔNIO CULTURAL EM RISCO

Fabiano Teixeira dos Santos12


Soraya Nór13

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho integra a pesquisa de Doutorado do Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa
Catarina (PósARQ/UFSC), a qual encontra-se em curso, abrangendo a produção
arquitetônica e a formação dos primeiros assentamentos urbanos no contexto
da colonização portuguesa do litoral do Estado de Santa Catarina.
As contribuições desses primeiros povoadores no campo da arquitetura
e da produção urbana se estenderam durante todo o século XIX, chegando até
as primeiras décadas do século XX em localidades mais isoladas, no caso do
recorte geográfico aqui apresentado, constituindo-se em elementos
importantes na constituição da paisagem regional.
O tema em questão foi definido em decorrência da preocupação em se
constatar, sobretudo, nos últimos anos, a crescente perda da arquitetura
tradicional luso-brasileira, especialmente das residências urbanas e rurais, no
Complexo Lagunar. Essa região consiste numa extensa área do litoral sul
catarinense, constituída por uma rede de lagoas, rios e canais conectados ao
Oceano Atlântico por meio da Barra de Laguna, e que originalmente
compreendia parte do município de Laguna (até meados do século XX).
Atualmente, após sucessivos desmembramentos, resultou, além de
Laguna, nos municípios de Jaguaruna, Sangão, Tubarão, Gravatal, Capivari de
Baixo, Pescaria Brava, Imaruí e Imbituba, os quais, juntamente com outros

12
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal de Santa Catarina. E-mail: fabianoteixeiradossantos@gmail.com
13 Doutora em Arquitetura e Urbanismo e professora do Programa de Pós-Graduação em

Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: soraya.nor@ufsc.br


74

municípios vizinhos, integram a Associação de Municípios da Região de Laguna


(AMUREL).
Também se pode usar como referência para a abrangência territorial do
Complexo Lagunar as sub-bacias do rio D´Una e Complexo Lagunar, do Tubarão
Baixo e do Rio Capivari, integrantes da bacia hidrográfica do Rio Tubarão e
Complexo Lagunar, a qual, de acordo com o Diagnóstico Geral das Bacias
Hidrográficas do Estado de Santa Catarina (SDM, 1997), corresponde à Região
Hidrográfica Sul-Catarinense (RH9), totalizando 5.959,97 km².
Produzida pelas populações pioneiras do processo de colonização desse
território, a arquitetura luso-brasileira testemunhou a ocupação e o
desenvolvimento inicial da região em seus primórdios, por contingentes de
origem vicentista e portuguesa, principalmente (com destaque para os
açorianos), assim como africanos, em sua maioria na condição de cativos,
durante o regime escravista.
Por seu caráter predominantemente vernacular, de soluções simples e
funcionais, parece ter sido bem assimilada pelas gerações que se seguiram,
sendo mantida e reproduzida pelo menos até as primeiras décadas do século
XX, quando gradualmente outros modelos arquitetônicos e novas tecnologias
decorrentes da modernização da construção passaram a substituir as moradias
tradicionais.
Na sequência dessa ruptura, fatores diversos possivelmente
colaboraram para o quadro atual de abandono e descaso em relação às
edificações remanescentes, constatando-se principalmente na última década
o flagrante processo de desaparecimento da arquitetura luso-brasileira na
região, e, consequentemente, a alteração e descaracterização dos aspectos
culturais da paisagem.
Soma-se a escassez ou mesmo a inexistência de levantamentos e
estudos mais aprofundados a respeito do acervo edificado luso-brasileira em
Santa Catarina, de uma maneira geral, o que, por sua vez, resulta numa lacuna
para a sua historiografia da arquitetura no Estado, prejudicando o trabalho de
pesquisadores, bem como limitando a compreensão sobre o patrimônio
cultural edificado, integrado hoje por reduzido número de exemplares civis
luso-brasileiros.
Portanto, identificar e documentar em tempo esse patrimônio cultural
tornou-se tarefa fundamental e urgente, passando o próprio desenvolvimento
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 75

da pesquisa a depender da coleta do maior número possível de informações,


sobretudo levantamentos arquitetônicos e fotografias, conforme apresentado
aqui.

Fotografia 1 – Casa rural luso-brasileira e engenho de farinha na localidade de Perrixil, Laguna

Fonte: Autor (2013).

Fotografia 2 – Sarilhos (ranchos tradicionais de embarcações) junto à lagoa de Mirim

Fonte: Autor (2013).


76

2 PRESENÇA PORTUGUESA E ARQUITETURA EM SANTA CATARINA

Nos séculos XVII e XVIII, deu-se a introdução e adaptação dos modelos


e soluções construtivas de origem portuguesa no território catarinense,
começando pela faixa litorânea, onde os primeiros núcleos de povoamento
foram estabelecidos, e atingindo, na segunda metade do século XVIII, os
Campos de Lages, na região do planalto (PIAZZA, 1983, p. 110 e 164).
Ocorreu, assim, a formação de uma cultura arquitetônica luso-brasileira
em Santa Catarina, sobretudo, ao longo do século XIX, a qual subsistiu pelo
menos até os primeiros anos do século XX, consistindo em elemento
fundamental na constituição da paisagem regional, tanto no meio urbano
como nas zonas rurais (SANTOS, 2015, p. 53).
Como em outros Estados brasileiros, foi a partir do século XIX que
ocorreu o gradual afastamento da condição colonial em Santa Catarina,
inclusive no que diz respeito aos edifícios, adaptando-se os modelos
arquitetônicos portugueses à nova realidade das diferentes regiões (litoral e
planalto), em função de fatores como a disponibilidade de materiais e a
viabilidade das técnicas construtivas, as imposições da geografia e do clima, o
maior ou menor desenvolvimento econômico, dentre outros.
Tornou-se possível, para além de permanências e semelhanças, as
inovações e os regionalismos que acabaram, enfim, por caracterizar a
construção luso-brasileira catarinense, tanto formal como tecnologicamente,
especialmente no contexto de maior isolamento das áreas rurais (SANTOS,
2016).
Na faixa litorânea, e particularmente na área de enquadramento do
trabalho, a presença marcante dos colonizadores açorianos (chegados em
grande número entre 1748 e 1756) e a formação de uma sociedade
predominantemente rural, baseada na pequena propriedade e na agricultura
familiar, foram aspectos de grande importância para a estruturação da
sociedade, do território e de sua paisagem (PIAZZA, 1992).
De outra parte, estudos recentes coordenados pela historiadora Beatriz
Gallotti Mamigonian (2013), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
vêm demonstrando que a presença de cativos de origem africana foi
significativa até o fim do regime escravista, ainda que em menor quantidade
em relação a outras regiões, indicando ter sido expressivo o papel dessa
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 77

população no desenvolvimento social e econômico do Complexo Lagunar,


conforme já sugerido em trabalhos anteriores (PIAZZA, 1999).
O processo de ocupação territorial e formação da rede urbana deram-
se a partir da fundação da Vila de Laguna na segunda metade do século XVII, e
estruturou-se por meio de inúmeros povoados, em sua maioria dispostos ao
longo das lagoas e rios.
Esses cursos de água, juntamente com alguns caminhos terrestres de
ligação com as regiões vizinhas (incluindo a oeste o Planalto de Lages, no
“Sertão da Terra Firme”), constituíram importante sistema viário,
possibilitando não apenas a ocupação e o desenvolvimento populacional,
como também favoreceram a agricultura, a pesca e o comércio (SANTOS, 2015,
p. 37).
Como atividade econômica, destacou-se a produção de farinha de
mandioca, seguida do açúcar, da cachaça, do café e da banana, e sendo
complementadas pelo uso de áreas de pastagens (muitas vezes de uso
comunal) para criação de gado bovino, adquirido dos tropeiros lageanos. Nas
localidades costeiras, a pesca artesanal e a produção de peixe e camarão seco
foi um importante incremento para a economia local.
Disso resultou o fato de que, em muitos casos, foi indissociável a relação
entre a habitação e as instalações de trabalho, sendo as eiras e os telhados de
engenhos, ranchos de embarcações e galpões, contíguos às residências,
consistindo na sua extensão natural.

2.1 Arquitetura luso-brasileira no Complexo Lagunar

A arquitetura luso-brasileira encontrada na região do Complexo


Lagunar, como aliás em praticamente todo o Estado de Santa Catarina, em
geral difere-se daquela produzida em outras regiões brasileiras, onde a grande
concentração de trabalhadores escravizados (sobretudo, nas entressafras da
atividade produtiva) e maior disponibilidade de recursos financeiros e mão de
obra qualificada permitiram a construção de residências mais suntuosas e
sofisticadas, próprias das classes sociais abastadas dominantes.
Para o arquiteto e historiador Carlos Lemos, a construção colonial no sul
do Brasil sempre foi muito simples, de pedra e cal, sem mostrar absolutamente
nada de especial a não ser uma clara e nítida influência portuguesa, talvez
78

algarvia nas obras populares (LEMOS, 1979, p. 56). Nas praias, campos e
vilarejos povoados por descendentes de açorianos, a simplicidade e a
funcionalidade, de fato, prevaleceram (Fotografia 3).

Fotografia 3 – No entorno do Centro Histórico de Laguna, casa de chácara do século XIX


exemplifica a arquitetura luso-brasileira do Complexo Lagunar, caracterizada pela simplicidade

Fonte: Autor (2013).

Essa arquitetura simples tem suas raízes na arquitetura tradicional


portuguesa, que, embora seja rica em regionalismos, apresenta algo como uma
unidade ou homogeneidade plástica que lhe confere identidade. Característica
definida, sobretudo, em função de uma forte expressão vernacular transmitida
ao longo do tempo pelo conhecimento popular e pelo trabalho habilidoso dos
mestres construtores, e que, até meados do século XIX, foi absorvida ou
mesmo aperfeiçoada pelo academicismo, decorrente da larga atuação, em
Portugal e nas colônias, de engenheiros militares e arquitetos formados dentro
das concepções arquitetônicas renascentistas e barrocas (SANTOS, 2015, p. 54
e 55).
Nas vilas e cidades, a normatização dos códigos de posturas – que
dentre as mais variadas obrigações à população, buscava regrar a construção
nos espaços urbanos – teve importante papel na afirmação das feições luso-
brasileiras das edificações, consolidando o que já havia sido assimilado e
desenvolvido popularmente como arquitetura. Como as casas rurais, que
embora não seguissem nenhuma legislação para sua feitura, apresentavam
geralmente as mesmas características das casas urbanas (SANTOS, 2015, p. 57
e 58).
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 79

Além disso, essa legislação municipal, inspirada nas Ordenações Régias,


servia como instrumento para impor uma expressão comum aos núcleos
urbanos, aos moldes da Metrópole, o que permaneceu após a Independência
e deu origem a uma identidade arquitetônica luso-brasileira, tanto no meio
urbano como no rural (REIS FILHO, 1973, p. 24).
Desde São Francisco do Sul, ao norte, passando pela Ilha de Santa
Catarina e rumando para sul até a área em questão, em municípios como
Imaruí e Laguna, percebem-se nas moradias oitocentistas as mesmas fachadas
desprovidas de ornamentação, apenas emolduradas por cunhais e cimalhas,
ou simplesmente arrematadas pelos tradicionais beirais de telha (beira-
seveira).
Destacam-se igualmente os telhados de duas ou quatro águas em que a
curvatura elegante proporcionada pela presença de galbos de contrafeito
evidencia a origem lusitana. Em todas essas localidades é possível encontrar as
mesmas soluções formais e tecnológicas que remetem à arquitetura de origem
portuguesa.
De qualquer forma, é provável que a introdução da construção
portuguesa em Santa Catarina não tenha implicado tão somente nas
permanências, mas também na adaptação ou mesmo no abandono de
soluções usuais em Portugal e em outras áreas do Brasil, para a adoção de
soluções inovadoras, genuínas, que acabaram se mostrando mais exequíveis e
eficientes, em face das necessidades locais e da disponibilidade (ou
indisponibilidade) de certos materiais.
Como exemplo, cita-se o aparente desaparecimento de varandas e
alpendres (elementos comumente encontrados nas residências coloniais da
maior parte das regiões brasileiras), e uma perceptível integração/junção das
cozinhas ao corpo principal da moradia, valorizando-se as áreas abrigadas e
buscando maior proteção contra as intempéries. Isso, certamente, em razão
de um regime de chuvas diferenciado, da incidência de ventos mais intensos e
da ocorrência de invernos longos e rigorosos.
Também foi notório na faixa litorânea o aproveitamento dos sambaquis
(sítios arqueológicos pré-históricos formados por imensos depósitos de
conchas de moluscos) para a obtenção de cal, diante da inexistência de jazidas
de calcário (BROOS, 2002, p. 106). Algumas localidades conservam a
denominação “Caieira”, em referência às antigas fábricas de cal que aí
80

existiram junto a esses sítios, e no interior dos municípios de Imaruí e Laguna


é possível encontrar ruínas dos fornos das caieiras, erguidos em tijolos maciços,
justamente junto aos sambaquis.
Questão igualmente relevante e que carece investigação é o
agenciamento interno da casa, que parece pouco diferir casas rurais e urbanas,
talvez dependendo apenas da condição financeira dos proprietários. A
setorização dos ambientes, geralmente organizados em torno do acesso e dos
espaços de circulação, tradicionalmente reservava a parte da frente da
moradia ao uso social (salas), deixando o centro e o fundo para as atividades
íntimas dos moradores (dormitórios, alcovas e sala de jantar/refeições), assim
como os locais de serviço (cozinhas e quintais).

Fotografia 4 – Casa do século XIX com engenho contíguo para produção de farinha de mandioca,
açúcar e cachaça, na localidade de Morro do Mirim, Imbituba

Fonte: Autor (2014).

Nas propriedades rurais, a dependência do trabalho familiar foi


determinante do agenciamento da habitação, materializando-se
principalmente na grande proximidade, ou mesmo na continuidade existente
entre a moradia e as instalações de trabalho, sobretudo, os engenhos de
fabricação de farinha de mandioca (Fotografia 4).
Enquanto eiras pavimentadas com pedras ou tijolos ficavam à frente das
casas, usadas para a secagem de grãos, portas ligavam diretamente as
cozinhas, nos fundos, aos engenhos. Soluções com o intuito de facilitar o
quotidiano laborioso das famílias de agricultores descendentes de açorianos,
como ainda se observa em casas rurais encontradas nos municípios de
Imbituba e Gravatal (Fotografias 5 e 6).
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 81

Fotografia 5 – Casa da década de 1920, localizada em Pouso Alto, zona rural de Gravatal

Fonte: Autor (2014).

Fotografia 6 – Numa das laterais da casa mostrada na Fotografia 5, a eira utilizada para secagem
dos grãos produzidos na propriedade

Fonte: Autor (2014).

Há de se referir, ainda, nas localidades às margens das lagoas, a


presença marcante dos sarilhos (Fotografias 7 e 8), tipo de rancho de pesca
confeccionado geralmente com sobras de materiais de construção, que abriga
sobre a água, içadas, as embarcações tradicionais (canoas bordadas, baleeiras
e botes). Essa peculiaridade decorre possivelmente das características
82

topográficas das margens, em geral desprovidas de praias, aliado ao emprego


de pesados troncos de canela para a confecção das canoas tradicionais,
dificultando, portanto, o seu manuseio.

Fotografia 7 – Sarilho com canoa içada na lagoa de Imaruí, município de Pescaria Brava

Fonte: Autor (2014).

Fotografia 8 – Sarilhos na lagoa de Mirim, município de Imbituba

Fonte: Autor (2014).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 83

3 RISCOS AO PATRIMÔNIO EDIFICADO LUSO-BRASILEIRO E À PAISAGEM


CULTURAL NO COMPLEXO LAGUNAR

Especificamente na região em questão, tem se constatado grande


carência de dados a respeito do acervo arquitetônico luso-brasileiro, o que
reforça a importância do trabalho de documentação em curso.
Além de alguns trabalhos acadêmicos e artigos que se concentram no
Centro Histórico tombado de Laguna (justamente por se tratar de conjunto
urbano de reconhecido valor patrimonial), apenas o trabalho pioneiro de Hans
Broos sobre as construções antigas catarinenses, realizado em 1957 (publicado
apenas em 2002), contemplou a arquitetura luso-brasileira, trazendo alguns
levantamentos, fotos e anotações referentes a casas em Laguna e Tubarão
(BROOS, 2002).
A essa situação somam-se as transformações de natureza social e
econômica verificadas, sobretudo, nas últimas décadas, e a ausência ou
inoperância de instrumentos de proteção legal do patrimônio edificado (com
exceção do tombamento federal de Laguna).
Se nas áreas urbanas percebe-se a omissão da legislação, aliada à ação
da especulação imobiliária, nas zonas rurais é o isolamento, a falta de
perspectivas econômicas e o abandono das propriedades, os responsáveis pela
destruição das antigas edificações.
Essa perda resulta igualmente na extinção de tecnologias tradicionais e
na descaracterização das paisagens culturais, ou seja, saberes, fazeres, lugares
e mesmo modos de expressão e referências culturais diversas associadas às
construções antigas.
Não havendo uma educação patrimonial ou uma cultura
preservacionista nas comunidades, ano após ano tem se constatado a perda de
parcela significativa dos exemplares arquitetônicos remanescentes, situação
que acompanhamos com preocupação, como os casos flagrados nos
municípios de Imaruí (Fotografias 9 e 10), Jaguaruna (Fotografias 11 e 12) e
Sangão (Fotografias 13 e 14), entre 2013 e 2015.
Atualmente, além do processo acelerado de ampliação e adensamento
urbano, levando a uma gradual diminuição das áreas rurais, as antigas áreas de
pastagens e plantio convencional vêm sendo substituídas pela rizicultura, que
por sua maior rentabilidade, já supera a lavoura de mandioca, outrora
84

dominante. Nas lagoas, rios e praias, contabilizam-se perdas crescentes nas


safras de pescados como a tainha, o camarão e o siri, possivelmente em
decorrência da poluição e da pesca predatória.

Fotografia 9 – Antiga residência e armazém Capanema, localizava-se na zona rural de Imaruí

Fonte: Acervo da Diretoria de Patrimônio Cultural da Fundação Catarinense de Cultura (1998).

Fotografia 10 – A casa Capanema (mostrada na Fotografia 9), demolida em 2013

Fonte: Autor (2013).

As transformações mencionadas possivelmente têm refletido na


manutenção dos modos tradicionais de produção, diretamente associados
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 85

e/ou dependentes da paisagem singular à qual se associam as antigas


construções luso-brasileiras. Estas, em situação de vulnerabilidade, acabam
sendo abandonadas, descaracterizadas e demolidas, perdendo-se assim
parcela significativa do patrimônio cultural da região.

Fotografia 11 – Casa luso-brasileira localizada na área central de Jaguaruna, pertenceu ao


fundador da cidade, Luiz Francisco Pereira

Fonte: Autor (2014).

Fotografia 12 – Apesar de sua importância arquitetônica e histórica, a casa mostrada na


Fotografia 11 foi demolida em 2015

Fonte: Autor (2015).


86

Fotografia 13 – Casa de moradia e comércio na área urbana de Sangão, c. 1900

Fonte: Autor (2013).

Fotografia 14 – A edificação histórica mostrada na Fotografia 13, demolida para liberação do


terreno

Fonte: Autor (2015).

Situação visível no entorno das duas igrejas históricas situadas no


Complexo Lagunar que são reconhecidas como patrimônio em âmbito
estadual: Bom Jesus do Socorro, no município de Pescaria Brava, e Santana de
Vila Nova, no município de Imbituba, tombadas em 1996 e 1998,
respectivamente. Aí foram protegidas apenas as edificações religiosas,
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 87

havendo uma restrição parcial de novas construções na área de entorno


próximo, unicamente em relação ao gabarito (levando em consideração a
possibilidade de eventual obstrução visual do bem e prejuízo de sua
ambiência). Dessa forma, a medida protetiva não impediu a completa
substituição do casario original, fundamental para a ambiência da praça
histórica.
Exceção à regra na região, conforme referido, o Centro Histórico de
Laguna, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) em 1985, tem recebido constantes investimentos visando à
conservação e ao restauro de seu vasto conjunto edificado, formado por mais
de 600 imóveis, dentre os quais muitos exemplares luso-brasileiros (CITTADIN,
2011). Laguna, que conta com um escritório técnico do IPHAN, recentemente
teve a poligonal de proteção complementada por uma área de entorno, mais
abrangente, visando minimizar impactos decorrentes da degradação das áreas
vizinhas sobre a área tombada (STELLO et al., 2017).
Em outras regiões, o IPHAN promoveu recentemente o tombamento
dos núcleos de colonização açoriana de Florianópolis (Ribeirão da Ilha, Lagoa
da Conceição e Santo Antônio de Lisboa) e a Enseada de Brito, em Palhoça,
iniciativa que, somada à proteção já existente dos remanescentes da antiga
Vila de São Miguel (Biguaçu), possibilitou ainda que tardiamente o
reconhecimento de expressivo acervo arquitetônico luso-brasileiro. Já os
núcleos de São José e Garopaba seguem aguardando o tombamento estadual.
A mesma sorte não tiveram os conjuntos de Araquari e Penha, no litoral
norte, e Pescaria Brava, Ribeirão Pequeno (município de Laguna), Mirim e Vila
Nova (município de Imbituba) Jaguaruna e Imaruí (Fotografia 15), esses no
Complexo Lagunar. Nessas localidades, até pelo menos a década de 1980, havia
importantes acervos de arquitetura luso-brasileira, que acabaram não sendo
protegidos. Restaram fotografias que dão uma ideia do rico patrimônio
edificado que se perdeu.
Estudo recente que trata da trajetória da preservação do patrimônio
cultural catarinense sugere ter havido escolhas, baseadas em princípios
ideológicos, que nortearam as ações de preservação até o final do século XX
(GONÇALVES, 2016, p. 112), o que pode explicar o reduzido número de bens
imóveis protegidos por lei até esse período ou mesmo uma eventual
negligência para com o acervo edificado luso-brasileiro.
88

Fotografia 15 – Parte do conjunto arquitetônico luso-brasileiro da cidade de Imaruí, junto à lagoa


de mesmo nome, c. 1950. Seu desaparecimento exemplifica as profundas alterações ocorridas
desde a segunda metade do século XX na paisagem cultural da região do Complexo Lagunar

Fonte: Acervo de Pita Bitencourt (c. 1950).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A documentação da arquitetura luso-brasileira remanescente do


Complexo Lagunar, aliada à pesquisa documental, sobretudo, iconográfica,
vem possibilitando reunir as informações necessárias ao andamento do
trabalho e visando ao aprofundamento do conhecimento relativo à arquitetura
luso-brasileira no litoral catarinense, objeto da pesquisa.
Devido aos dados escassos ou estudos inexistentes a seu respeito,
conforme relatado, essas informações permitirão melhor compreensão sobre
como se construía e habitava na região, entre seus primórdios e as primeiras
décadas do século XX, destacando a cultura construtiva aí desenvolvida, os
materiais e técnicas empregados, os programas e usos, sua relação com
construções similares e/ou contemporâneas existentes em outras regiões,
apontando para possíveis origens, tentando identificar generalidades,
originalidades, definindo tipologias, a relação da arquitetura com o território
(urbano e rural) e com a paisagem etc.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 89

Além da caracterização das edificações, possibilitando seu


entendimento no âmbito da História da Arquitetura e da Cidade – o que por si
só deve consistir em tarefa importante e necessária – propõe-se ampliar o
olhar, de forma a abarcar também o valor patrimonial dessas construções,
reconhecendo-as como manifestações culturais da sociedade, portadoras da
identidade e da memória coletivas.
Será possível assim compreender melhor a situação de flagrante
abandono que vêm enfrentando, suas causas e consequências, consistindo em
diagnóstico que, quiçá, poderá fornecer subsídios para futuras ações de
acautelamento e preservação desse importante acervo arquitetônico que
ainda está por ser conhecido, reconhecido e apropriado.

Fotografia 16 – Casa luso-brasileira em processo de arruinamento, após abandono. Localidade de


Pouso Alto, município de Gravatal

Fonte: Autor (2014).

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Inteligências arquitetônicas e urbanas - 91

Capítulo 5

MOBILIDADE URBANA E ACESSIBILIDADE: DIREITO AO LAZER E


À INFORMAÇÃO PÚBLICA

Eduardo Cardoso14

1 INTRODUÇÃO

A crescente urbanização da sociedade contemporânea faz com que a


maioria das pessoas do mundo viva em cidades (UNICEF, 2012). Cogitar uma
cidade para todos requer refletir sobre o povo que a constitui, evidenciando-
se o fato de sua riqueza estar na diversidade. E nessa, encontram-se, também,
as pessoas com e sem deficiência, que, independentemente de sua identidade,
de seu histórico ou de suas habilidades (UNESCO, 2020), devem conviver em
sociedade com igualdade de oportunidades. E, para viver em sociedade, a
comunicação, enquanto um direito de todos, é essencial. Desse modo, a fim
de atender aos mais diversos públicos, deve-se exercitar a prática de comunicar
em múltiplos meios e formatos, ou seja, considerando diferentes
interlocutores e suas capacidades.
Algumas pessoas, por diferentes causas, apresentam uma defasagem
entre sua necessidade comunicativa e sua habilidade para expressar e/ou
compreender o que é dito e/ou escrito. Nesse grupo, encontram-se pessoas
com deficiência física causada por paralisia cerebral, acidente vascular
cerebral, trauma craniano, esclerose lateral amiotrófica, autismo, deficiência
intelectual, entre outras. Nessas circunstâncias, podem-se disponibilizar
recursos de Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA), e isso envolve o
uso integrado de símbolos (gráficos e corporais) e de recursos. Pensar em
múltiplos formatos é pensar em acessibilidade uma vez que: a palavra falada
pode ser sinalizada (como na Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS); ou a imagem
veiculada pode ser descrita (audiodescrição) ou mesmo ter relevo (Braille e/ou
recursos táteis); ou, ainda, um vídeo pode ter legendas descritivas,

14 Doutor em Design, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail:


eduardo.cardoso@ufrgs.br
92

considerando o público surdo que não utiliza Libras, ou mesmo idosos ou


estrangeiros, ou, igualmente, qualquer um que possa utilizar-se de outro
formato como apoio ou base para compreensão do que se comunica.
São muitas as possibilidades de comunicação em múltiplos formatos e
são muitos os recursos de Tecnologia Assistiva (TA) que podem promover a
participação de todos, incluindo as pessoas com deficiência sempre com foco
na eficiência de cada indivíduo.
No âmbito do turismo e do lazer, o Programa de Ação Mundial para
Pessoas com Deficiência das Nações Unidas afirma que:

Os países membros da ONU devem garantir que pessoas com deficiência


tenham as mesmas oportunidades de desfrutar de atividades
recreativas que têm os outros cidadãos. Isto envolve a possibilidade de
frequentar restaurantes, cinemas, teatros, bibliotecas, etc., assim como
locais de lazer, estádios esportivos, hotéis, praias e outros lugares de
recreação. Os países membros devem tomar a iniciativa removendo
todos os obstáculos. As autoridades de turismo, as agências de viagens,
organizações voluntárias e outras envolvidas na organização de
atividades recreativas ou oportunidades de viagem devem oferecer
serviços a todos e não discriminar as pessoas com deficiência. (ONU,
1982, s/p).

Ainda segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 15% da


população mundial (1 bilhão de pessoas) vive com algum tipo de deficiência. A
acessibilidade de todos às instalações, produtos e serviços turísticos deve ser
uma parte central de qualquer política de turismo responsável e
sustentável. Acessibilidade não é apenas sobre direitos humanos. É uma
oportunidade de negócios para destinos e empresas abraçarem a todos os
visitantes e aumentarem suas receitas.
Nesse sentido, este artigo buscava socializar ações desenvolvidas no
âmbito do Projeto POA Turismo Acessível, realizados na cidade de Porto Alegre,
no Estado do Rio Grande do Sul/Brasil, conforme apresentadas no VI SiBOGU -
Simpósio Brasileiro Online de Gestão Urbana.

2 TURISMO ACESSÍVEL

Favorecer condições de acessibilidade é um modo de tornar a sociedade


mais inclusiva, visto que fornecer acesso a todas as pessoas da sociedade
resulta minimizar barreiras que impedem as pessoas de ter acesso aos espaços
de convivência. Entretanto, para superar essas barreiras ainda existentes,
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 93

torna-se necessário um referencial legislativo a fim de garantir os direitos


básicos que muitas vezes são negados.
Considera-se a Lei 10.098, de dezembro de 2000, mais conhecida como
Lei da Acessibilidade, a qual em seu artigo 1º estabelece que:

Normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das


pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida,
mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços
públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e
nos meios de transporte e de comunicação. (BRASIL, 2000).

No Brasil, o Decreto 5.296, de 2 de dezembro de 2004, define o seguinte


conceito:

Condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida,


dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos
serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de
comunicação e informação, por pessoa portadora de deficiência ou com
mobilidade reduzida. (BRASIL, 2004).

Neste estudo, considera-se como acessível o produto, a solução ou o


espaço que possibilitam acessibilidade às pessoas sem a ocorrência de
dificuldades com promoção de acesso e de deslocamento de pessoas com
deficiência sem a necessidade do auxílio de outros indivíduos.
Contudo, acessibilidade não significa apenas permitir que pessoas com
deficiência possam se locomover pelos espaços. Ponderar sobre acessibilidade
é garantir a inclusão de todos em qualquer ambiente, atividade ou uso de
recurso.
De acordo com Sassaki (2010, p. 41), “a inclusão social é o processo pelo
qual a sociedade se adapta para poder incluir as pessoas com necessidades
especiais e, simultaneamente, estas pessoas se preparam para assumir seus
papéis na sociedade”.
Nesse sentido, pode-se afirmar que acessibilidade e a inclusão social
estão diretamente ligadas. Tal informação torna-se mais efetiva ao refletir que:

Para haver efetiva inclusão social é primordial a acessibilidade, que


significa a possibilidade de utilizar, com segurança e autonomia, os
espaços mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos
transportes e meios de comunicação, por pessoa com deficiência ou
mobilidade reduzida. (CERIGNONI; RODRIGUES, 2005, p. 62).
94

Schirmer (2008) considera barreiras na comunicação e na informação


quaisquer entraves ou obstáculos que dificultem ou impossibilitem a expressão
ou o recebimento de mensagens por intermédio dos dispositivos, meios ou
sistemas de comunicação, sejam ou não de massa, bem como aqueles que
dificultem ou impossibilitem o acesso à informação.
Dessa forma, considerar acessibilidade na comunicação é condição
essencial sem a qual não há inclusão. O ato de comunicar faz parte da natureza
humana (MANZINI; DELIBERATO, 2006) e somente pela comunicação o
indivíduo pode exercer seu papel como cidadão e influenciar, com sua
participação, o andamento e o rumo da sua história e da sociedade da qual faz
parte.
Ferreira, Ponte e Azevedo (1999) consideram que todas as pessoas,
independentemente da idade ou da condição, podem utilizar meios e modos
alternativos de comunicação como um meio temporário ou de longo prazo.
A fim de possibilitar às pessoas com deficiência viverem de forma
independente e participarem plenamente de todas as atividades do cotidiano,
a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência orienta em
seu art. 9º a adoção de medidas apropriadas para assegurar às pessoas com
deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,
ao meio físico, ao transporte, à informação e à comunicação, inclusive aos
sistemas e tecnologias da informação, entre outros.
Assim, os bens e equipamentos culturais devem garantir acessibilidade
às pessoas com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial e com
mobilidade reduzida no acesso e na interpretação das obras e atividades
culturais e do patrimônio histórico e artístico.
E as soluções de acessibilidade devem permitir que a pessoa com
deficiência interaja com o patrimônio e com os bens culturais em diversas
linguagens. Em caso de barreiras à interação com o acervo, devem ser
ofertados dispositivos com informações virtuais, mapas, maquetes, cópias de
peças do acervo, tecnologia assistiva para acessibilidade sensorial, cognitiva e
audiovisual, assegurando as condições de trânsito, de orientação e de
comunicação e facilitando a utilização desses bens e dos acervos para todo o
público.
Desse modo, ao refletir sobre as diversas barreiras que impedem a
pessoa com deficiência de ter acesso de forma digna aos lugares, destaca-se a
relevância da promoção da acessibilidade com objetivo de atender a todos e
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 95

todas, independentemente do contexto das deficiências, considerando as


especificidades e os aspectos diversos que permeiam as atividades humanas,
delineada com estratégias do desenho universal a considerar todos os
indivíduos que usufruem de um produto, serviço ou espaço.
A partir disto, reflete-se sobre o conceito de turismo, conforme a
Organização Mundial do Turismo (OMT), expresso como “o ato de visitar e
conhecer lugares preconizando um tempo de permanência e atividades que as
pessoas realizam durante viagens e estadas em lugares diferentes do seu
entorno habitual, com finalidade de lazer, negócios e outros” (OMT, 2001, p.
4).
Bull (1995) afirma que o turismo é uma atividade humana que envolve
movimentos e comportamentos humanos, usos de recursos, interação com
outras pessoas, relações econômicas e de diferentes ambientes. Nesse sentido,
convém perceber que, se há interação entre culturas e diferentes povos, torna-
se importante refletir o turismo enquanto um fenômeno sociocultural,
implicando em questões como direitos, exercício da cidadania e inclusão social
(SILVA; COSTA, 2018).
O turismo está ganhando cada vez mais espaço nas cidades, gerando
empregos e contribuindo de forma satisfatória para o desenvolvimento das
regiões (BRASIL, 2017). Nessa perspectiva, ações governamentais são
essenciais para garantir a participação de todos. De acordo com a OMT (OMT,
2017) e o Ministério do Turismo (MTUR) (BRASIL, 2017), estima-se que destinos
onde há turismo acessível, consequentemente, têm maior número de turistas.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), por meio das
Normas Brasileiras (NBR) 9050, orienta medidas para acessibilidade em
edificações, mobiliários e espaços, e equipamentos urbanos. No entanto, nem
sempre são cumpridas, recorrendo-se à necessidade de entidades ligadas ao
turismo acessível permanecerem vigilantes para a eliminação de barreiras que
impossibilitam o acesso das pessoas, sobretudo daquelas que apresentam
algum tipo de deficiência.
Este estudo considera o turismo acessível como “a possibilidade de
viajar sozinho para qualquer lugar, sem que haja nenhum tipo de
discriminação, devendo o produto turístico ser facilitado a todos,
principalmente aos que possuem necessidades específicas” (PEREIRA, 2011, p.
45).
No Brasil, as condições de acesso aos locais sem discriminações ou
impedimentos estão presentes na legislação desde a Constituição Brasileira de
96

1988 (BRASIL, 1988) e na Lei 10.098/2000 (BRASIL, 2000), conhecida como Lei
da Acessibilidade, estabelecendo que os espaços ofereçam acessibilidades
para as pessoas com deficiência, eliminando obstáculos e barreiras que
permeiam os espaços e dificultam o acesso.
O Decreto 5.296/2004 (BRASIL, 2004) reafirma a acessibilidade nos
espaços e garante condições para utilização total ou assistida com sistemas e
meios de comunicação e de informação.
No ano de 2007, lançou-se, no Brasil, o Plano Nacional de Turismo (PNT),
voltado ao período de 2007 a 2010 (BRASIL, 2007), em que o MTUR acionou
mecanismos de desenvolvimento econômico, tornando o Brasil um grande
indutor de inclusão social.
Dentre as ações, verificou-se o apoio ao turismo acessível por meio de
projetos que visam à acessibilidade urbana, adaptações de atividades
turísticas, impressão de materiais de apoio, ampliando o acesso a todos.
Somente em 2008, aprovou-se a Lei do Turismo 11.771/2008 (BRASIL, 2008),
que dispõe sobre a política nacional de turismo e define as atribuições do
Governo Federal no planejamento, desenvolvimento e estímulo ao setor
turístico.
Nesse sentido, os referenciais legais apontam que “a igualdade social
pressupõe garantir a acessibilidade a todos, independentemente das
diferenças” (BRASIL, 2009, p. 9).
O MTUR apresenta em documento, elaborado em 2009, bases para o
desenvolvimento do turismo acessível, destacando a importância dos
seguintes elementos: preparação do destino para a acessibilidade,
planejamento participativo, busca de parcerias e financiamentos,
estabelecimento de estratégias de comunicação e adoção de um plano de ação
(BRASIL, 2009).
Em 2015, a Lei 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão (LBI), tornou
obrigatório a estabelecimentos de lazer e de turismo oferecer acessibilidade a
seus frequentadores.

2.1 POA Turismo Acessível – um estudo de caso

A partir da temática turismo acessível foi realizado um projeto de


acessibilidade para uma rota turística da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande
do Sul, em disciplina do Programa de Pós-Graduação em Design (PGDesign) da
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 97

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, denominado POA Turismo


Acessível.
A primeira fase do projeto compreendeu o design de material gráfico
impresso de divulgação e informação turística para rota turística que pode ser
feita caminhando em Porto Alegre, no Brasil. O mapa com o percurso turístico
desenvolveu-se e aplicou-se em um folder a ser distribuído nos pontos
turísticos da cidade. Devido ao acesso ao grande público, buscou-se, neste
projeto, atender ao maior número de pessoas.
A Figura 1, a seguir, mostra um dos lados do folder com o mapa de
orientação da rota turística em seus três percursos e pontos turísticos por meio
de pictogramas.

Figura 1 – Folder com o Mapa Turístico – POA Acessível

Descrição da Imagem: Folder com o mapa turístico quadrado da Rota Cidade Baixa, em Porto
Alegre no Rio Grande do Sul, Brasil. Sobre fundo branco, as quadras são desenhadas em cinza,
parques em verde e as rotas em três cores, conforme sua duração: verde, amarelo e azul, da maior
para a menor. Doze pontos turísticos são marcados por setas de localização e ilustrações
simplificadas de suas formas. À direita, de cima para baixo, as legendas dos pontos turísticos,
legendas de informações de serviço, como sanitário, acessibilidade, entre outros, e, por fim, dois
QR codes com informações extras em áudio e em comunicação alternativa.
Fonte: Cardoso, Castelini, Bersch et al. (2020, p. 114).
98

No verso do folder há um breve texto informativo sobre os pontos


turísticos, além de pictogramas universais sobre as informações de serviço de
cada local. As mesmas informações foram reescritas de forma simples e com
símbolos pictográficos de comunicação (Figura 2) e podem ser acessadas por
Qrcode visto que no folder impresso verificam-se apenas as informações de
serviço.

Figura 2 – Texto em CAA - POA Acessível

Descrição da Imagem: Texto em comunicação alternativa com a utilização de pictogramas


dispostos em quadros em três linhas. Dentro do quadrado, acima de cada figura, uma palavra. E,
abaixo de cada linha de quadrados, o texto por extenso. Nessa peça, tem-se a seguinte mensagem:
Na primeira linha: “O passeio começa no caminho dos antiquários”; na segunda linha, “região com
lojas de antiguidades e feira de rua aos sábados”; e na terceira linha, “as lojas abrem durante a
semana das 10h às 15h”.
Fonte: Cardoso, Castelini, Bersch et al. (2020, p. 115).

Para a escrita com símbolos, utilizou-se a base de dados do Portal


Aragonés de la Comunicación Aumentativa y Alternativa (Portal ARASAAC;
http://www.arasaac.org/), assim como novos símbolos desenvolveram-se para
os dez pontos turísticos da rota turística a partir dos princípios de simplicidade
visual, relevância formal (identificação de elementos marcantes para o
desenho de cada pictograma), alto contraste e legibilidade para aplicação em
diferentes formatos e tamanhos.
A partir do trabalho inicial com o material gráfico informativo, partiu-se
para a segunda fase do projeto com a aplicação da Comunicação Aumentativa
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 99

e Alternativa (CAA) em placa de comunicação em parquinhos infantis de praças


da cidade.
O campo da Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) diz respeito
à concepção, ao desenvolvimento, à produção e à distribuição de assistência e
apoios. De acordo com a associação American Speech-Language-Hearing
Association (ASHA, 2004), a CAA consiste em um conjunto integrado de
símbolos, recursos, técnicas e estratégias.
O Sistema Pictográfico de Comunicação (SPC) consiste em símbolos que
constituem unidades representacionais, podendo envolver gestos, imagens ou
sons, os quais representam palavras ou mensagens. Os recursos podem ser
materiais impressos, físicos ou eletrônicos, envolvendo o uso de dispositivos,
como celulares, tablets e computadores (ASHA, 2004).
A partir da segunda metade da década de 1970, surgiram diferentes
sistemas de CAA, destacando-se os sistemas gráficos que contemplaram
pessoas com deficiência motora e/ou cognitiva, entre outros, desencadeando-
se na criação de novos signos gráficos, servindo, inclusive, às pessoas com
dificuldade do domínio da escrita (ROSELL; BASIL, 1998).
Em CAA, usam-se símbolos pictográficos para representar objetos,
ações, conceitos e emoções, podendo incluir desenhos, fotografias, objetos,
expressões faciais, gestos, símbolos auditivos (palavras faladas) ou ortográficos
(símbolos baseados no alfabeto). Segundo Sousa (2017), os símbolos gráficos
representam visualmente palavras ou conceitos divididos em seis categorias
gramaticais: pessoas, verbos, adjetivos, substantivos, sociais e diversos.
Todavia, os símbolos em um sistema CAA devem permitir flexibilidade,
pois não são universais em uma cultura. Por isso, é importante encontrar
símbolos relevantes ao indivíduo e à sua comunidade/contexto. Desse modo,
a seleção deles também é baseada na capacidade das pessoas de acessar, de
reconhecer e de aprender o significado dos símbolos.
O projeto-piloto iniciou por um dos pontos turísticos mais
emblemáticos da cidade, a Praça Júlio Mesquita, em frente à Usina do
Gasômetro, conforme exposto na Figura 3 a seguir.
100

Figura 3 – Implantação da placa com prancha de CAA na Praça Júlio Mesquita

Descrição da Imagem: Duas fotografias coloridas lado a lado. À esquerda, a implantação da placa
em metal adesivada com as informações em comunicação alternativa em uma praça da cidade. A
placa tem fundo branco e pictogramas coloridos dispostos em quadrados em dez colunas e cinco
linhas, que se dividem por cor, no fundo de cada quadrado, conforme classificação de uso, isto é,
em amarelo, verde, rosa, laranja, azul e branco. No topo, à esquerda, o logo POA Turismo Acessível
e, à direita, o texto: prancha de comunicação aumentativa e alternativa. À direita, imagem em
detalhe da foto anterior. Uma pessoa aponta para um dos símbolos em pictogramas.
Fonte: Cardoso, Castelini, Bersch et al. (2020, p. 115).

Para a CAA empregou-se em uma placa para interação em parquinho


infantil. A placa tem 1,50m x 1,20m, duas faces e um tubo central para fixação
no solo. Conta com a prancha de comunicação alternativa em um dos lados e
no outro com orientações gerais e um convite para se divertir ao se comunicar
com a prancha (Figura 3).
Os pictogramas também se redesenham a partir da base de dados do
Portal ARASAAC e reúnem um vocabulário de 55 símbolos selecionados por
uma equipe de profissionais das áreas de design, terapia ocupacional,
linguística, fonoaudiologia e fisioterapia.
Os símbolos organizam-se em: pronomes, saudações, ações, locais e
brinquedos, sensações e estados emocionais, indicação espacial, perguntas e
respostas. Dessa forma, buscam contemplar a maior parte de interações que
podem acontecer no parquinho infantil.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 101

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do trabalho desenvolvido, compreender o turismo acessível


como um processo de inclusão para todas as pessoas engloba diversas
dimensões, fortalecendo a convivência com a diversidade humana,
favorecendo a construção de novas relações e experiências, auxiliando no
rompimento de barreiras, transformando espaços das cidades,
conscientizando as pessoas para a construção de uma sociedade mais justa e
equânime.
Nos estudos de Nunes e Madureira (2015) evidencia-se a urgência em
se pensar em recursos, em práticas pedagógicas e em intervenções mais
inclusivas de modo a garantir o acesso, a participação e aprendizagem de
todos.
Nessa perspectiva, os folhetos acessíveis tornam-se aliados em
potencial do trabalho colaborativo (CASTELINI; SOUSA; VICENTE, 2019) ao
favorecer a comunicação acessível nos espaços culturais e educativos como
forma de responder à diversidade das necessidades e das potencialidades de
todos, oportunizando participação nos processos de aprendizagem e na vida
em comunidade.
Nesse sentido, os dados evidenciam os processos de promoção da
inclusão por meio da preocupação com a ampliação da acessibilidade nos
espaços educativos e culturais com a formação de equipes de trabalhos e de
pesquisas cada vez mais interdisciplinares.
Deville (2011) afirma que o turismo acessível tem a capacidade de
reconhecer que todas as pessoas podem usufruir de equipamentos e de
serviços, oferecendo satisfação e qualidade, tornando-se específico com as
necessidades e as exigências que cada um possui.
Levando em conta que as práticas inclusivas devem ser aplicadas em
diversos contextos, o turismo acessível implica muito mais que adaptações
arquitetônicas, haja vista os ambientes, equipamentos, recursos de
comunicação deverem ser pensados de forma a atender a todos, considerando
a diversidade existente desse público.
Dessa maneira, compreende-se que “o turismo passou a ser um bem
social de primeira necessidade, devendo ser acessível a todos, exigindo que os
espaços turísticos forneçam condições adequadas de acessibilidade, investindo
102

na formação dos profissionais e na diferenciação dos serviços prestados”


(DEVILLE, 2009, p. 38).
Em tempo, considera-se que este estudo não esgota as questões
abordadas uma vez que a inserção desse tema em debate possibilita a
ampliação de produção e de adoção de produtos e de serviços turísticos cada
vez mais inclusivos e que possam, de fato, chegar a um número maior de
pessoas com segurança, garantindo-lhes os direitos de acessibilidade no
turismo para todos os cidadãos.
Os direitos de cidadania convivem em sintonia com direitos ao lazer, à
comunicação, ao ir e ao vir; por isso mesmo não se deve esquecer da questão
da acessibilidade livre de discriminação, visando à eliminação de barreiras
físicas, arquitetônicas, ou até empecilhos comunicativos que possam, de
alguma maneira, dificultar ou impedir que as pessoas com deficiência
usufruam dos produtos e dos serviços turísticos.
O estudo pressupõe que transformar os espaços públicos, como
parques infantis e atividades turísticas, para bem atender a todas as pessoas
não é tarefa fácil, mas faz-se necessário. Fomentar projetos e ações que
consideram o turismo acessível, multiplicando formas de acessibilidade nos
espaços públicos, pressupõe modificações e ajustes necessários, assegurando
que as pessoas possam ter igualdade de oportunidades em conformidade com
a legislação vigente, inserindo nas políticas de turismo a necessidade de
acessibilidade, promoção da inclusão social e comunicação acessível nos
espaços públicos, atrativos e serviços turísticos nas cidades.

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Inteligências arquitetônicas e urbanas - 105

Capítulo 6

O DESENHO URBANO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: A RELAÇÃO


ENTRE O DESENHO INSTITUCIONAL E A CONFIGURAÇÃO DA
CIDADE

Cristina Maria Perissinotto Baron15


Sarah Lira Garrido16

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho traz uma discussão sobre as políticas públicas urbanas


buscando entender como elas se estruturam nas esferas federal, estadual e
municipal e qual o desenho de cidade que elas configuram. Pode-se dizer que
as políticas urbanas, ou melhor, as suas regulamentações através de leis,
decretos e planos, são responsáveis pela configuração no território ocupado
pelo ser humano, principalmente nas áreas urbanas onde há uma
concentração de pessoas vivendo.
O tema é amplo e aborda a gestão urbana dentro do recorte histórico
que tem como marco a Constituição de 1988 (CF/1988). Ainda no início dos
anos 1980, a ditadura militar, instaurada em 1964, já se encontrava desgastada
e encaminhava-se para o fim, enquanto, em contrapartida, tomavam voz
movimentos democráticos em todos os campos relativos as ações
governamentais, buscando difundir não só a democracia como um todo, mas
uma reforma geral na qual todas as ações passassem por processos
participativos, criando uma justiça social em todos os âmbitos da sociedade.
Dentre tais movimentos democráticos, um deles foi em defesa da
reforma urbana, termo que a partir das décadas de 1960 e 1970 ganhou um
novo significado, saindo de um conceito de intervenções urbanas para ganhar
um significado social, similar ao que era defendido para a reforma agrária:

15
Professora doutora, FCT-UNESP, campus Presidente Prudente. E-mail: cristina.baron@unesp.br
16 Discente Arquitetura e Urbanismo, FCT-UNESP, campus Presidente Prudente. E-mail:
sarah.garrido@unesp.br
106

Foi nesse momento, entre os meados e o fim da década de 80, que amadureceu
a concepção progressista de reforma urbana. Essa concepção pode ser
caracterizada como um conjunto articulado de políticas públicas, de caráter
redistributivista e universalista, voltado para atendimento do seguinte objetivo
primário: reduzir os níveis de injustiça social no meio urbano e promover uma
maior democratização do planejamento e da gestão das cidades (objetivos
auxiliares ou complementares, como a coibição da especulação imobiliária,
foram e são, também, muito enfatizados). (LOPES, 2001, p. 158).

Com o fim da ditadura militar em 1985 e a abertura de uma Assembleia


Constituinte de caráter democrático, a reforma urbana é um tema que toma
centralidade nos embates e discussões. Segundo Lopes (2001), os Planos
Diretores assumem um papel central nos munícipios como responsáveis de
gerar justiça social e urbana. Os artigos 182 e 183 da CF/1988 versam sobre a
política urbana; a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, Estatuto da Cidade,
regulamenta os referidos artigos e o Plano Diretor, no âmbito dos munícipios,
disciplina sobre as normas urbanísticas.
Para além da existência da regulamentação urbanística como forma de
garantir a justiça social, precisa-se saber se há garantia de qualidade de vida.
Quase simultaneamente ao se discutir sobre a qualidade de vida pensa-se
sobre os problemas das cidades, os quais se tornaram cada vez mais
complicados, inclusive dificultando as análises, leituras e diagnósticos urbanos,
necessários para subsidiar as políticas públicas. Questiona-se, portanto, qual é
a base que estrutura as políticas públicas urbanas atuais e como vêm sendo
produzidas. Porque os Planos Diretores e os Planos Setoriais – Habitação,
Mobilidade Urbana e Ambiental –, não estão sendo suficientes para garantir a
urbanidade, entendida como qualidade de vida, uma vez que a
responsabilidade é do próprio município realizar e implementar as políticas
públicas.
Aguiar (2012) desenvolve o conceito de urbanidade referindo-se à
qualidade dos espaços públicos, ou melhor, aos espaços que entremeiam a
cidade e são usufruídos pela população, porém, segundo o próprio autor,
ampliando o conceito, temos:

A espacialidade urbana é o que chamamos de urbanidade. As pessoas,


o corpo, individual ou coletivo, interagindo com o espaço, são, nesse
raciocínio, o parâmetro da urbanidade quanto à sua intensidade. As
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 107

pessoas, mesmo que inconscientemente, se relacionam naturalmente


com o espaço urbano e assim usufruem da urbanidade. A condição de
urbanidade estará, portanto, no modo como a cidade acolhe as pessoas,
recebe as pessoas, o corpo… No entanto, a urbanidade, essa condição,
essa característica, ela é própria da cidade, da forma, e não das pessoas.
(AGUIAR, 2012, s/p.).

As políticas públicas urbanas resultam em programas de governo para


implementar as diretrizes e ações previstas nos seus respectivos conteúdos. Ao
se transformarem em programas e estes se consolidarem em ações de
transformação nos espaços da cidade através de construções de habitações,
infraestruturas, equipamentos para realização dos serviços urbanos, significa
que essas políticas determinam urbanidade. Analisar as espacialidades que
vêm sendo produzidas e os agentes que atuam através da estrutura do poder
público, ou mesmo quem é o poder público, se faz necessário para a
compreensão da produção do espaço urbano.
A pesquisa fez um recorte espacial em função da Região Administrativa
de Presidente Prudente que, segundo dados da Fundação Seade (2011),
contava com cerca de 838 mil habitantes em 2011, distribuídos em 53
municípios que compõem a região.
O objetivo principal foi levantar, identificar e analisar quais cidades da
Região Administrativa de Presidente Prudente possuíam Planos Diretores após
o Estatuto da Cidade e, como específicos: apresentar um panorama sobre as
prefeituras municipais da região de Presidente Prudente, com as suas
estruturas administrativas identificando as secretarias municipais responsáveis
pelas políticas urbanas e verificar o grau de acessibilidade e transparência das
informações. Por fim, apresenta-se um estudo de caso de uma política urbana
na área habitacional como contraponto à legislação existente.
A metodologia partiu da revisão bibliográfica e do Estatuto da Cidade
(2001), que levou à escolha dos municípios de análise. Assim, selecionando-os
pela quantidade de habitantes devido às obrigatoriedades estabelecidas pelo
Estatuto da Cidade em seu 41º artigo, no qual fica definido como obrigatório o
Plano Diretor para municípios com mais de 20 mil habitantes, integrantes de
regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, municípios que pretendam
utilizar instrumentos previstos no § 4o do art. 182 da CF/1988, que sejam de
interesse especial turístico, que tenham empreendimentos ou atividades de
108

significativo impacto ambiental, e que estejam suscetíveis a deslizamentos,


inundações e processos geológicos.
Dentro dos procedimentos metodológicos foram trabalhados estudos
quantitativos, realizados a partir de levantamento de dados disponibilizados
por canais oficiais dos governos locais, com o intuito de estabelecer maior
definição para o estado atual do planejamento nestes municípios, além de
verificar o grau de transparência desses dados. Para tal, foram utilizados canais
on-line como as páginas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE
Cidades), Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), Instituto
Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo (IGC SP) e os respectivos sites
das prefeituras municipais, levantando municípios da Região Administrativa de
Presidente Prudente, quantidade de habitantes, se possuem Planos Diretores
ou Planos Municipais e outros dados que derivam desses e serão apresentados
no decorrer do trabalho.
A seguir apresentam-se as bases conceituais da pesquisa, os principais
resultados e as discussões.

2 AS LEIS E OS SEUS PRINCÍPIOS

A CF/1988, em seu art. 182, sobre a Política Urbana, discorre sobre a


valorização do desenvolvimento urbano como um elemento necessário para se
estruturar uma cidade para todos. Esse desenvolvimento deve ser executado
pelo poder público municipal e “[...] tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes” (BRASIL, 1988).
O ordenamento deve estar fixado através de leis, sendo o Plano Diretor,
aprovado pela Câmara Municipal, o principal instrumento para estabelecer a
política de desenvolvimento urbano e de expansão das cidades. Estabelece
ainda a obrigatoriedade para os municípios com mais de 20 mil habitantes e a
garantia de que a propriedade urbana deve cumprir sua função social, desde
que estabelecida nos respectivos planos diretores.
O art. 183, por sua vez, versa sobre usucapião para áreas urbanas
quando o imóvel é utilizado para moradia por cinco anos ininterruptamente,
possuindo área de até 250 m2. É uma maneira de cumprir a função social da
propriedade. As áreas públicas não são passíveis de usucapião.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 109

Do ponto de vista da Reforma Urbana e da necessidade de


redistribuição dos espaços intraurbanos das cidades, a CF/1988 não abrangia
todas as mudanças necessárias para que as gestões municipais e o
planejamento urbano sejam democráticos. Existe ainda a necessidade e a
dependência de que uma lei federal guie esses Planos Diretores, ou seja,
regulamente os artigos 182 e 183 da CF/1988 e promova mudanças estruturais.
A partir dessa necessidade, pode-se começar a pensar e esboçar o Estatuto da
Cidade (BASSUL, 2010).
O Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10/07/2001) se estabelece então
como um compilado que guia e direciona os aspectos da gestão democrática
da cidade, da justiça urbana e do equilíbrio ambiental, sendo seu tema central
a função social da propriedade, e sua incumbência o combate à segregação e
exclusão nos espaços urbanos, além do urbanismo predador e expansor
(MARICATO, 2010).
O Estatuto da Cidade vem regulamentar os direitos da Constituição,
reforçando o Plano Diretor como um dos principais instrumentos da política de
desenvolvimento e expansão urbana, ampliando sua obrigatoriedade para
além do número de habitantes. Estabelece diretrizes para as desapropriações
e para garantir o devido aproveitamento das terras urbanas através de
parcelamentos e estabelecimento de imposto progressivo no tempo sobre a
propriedade predial e territorial, entre outros instrumentos que visam ao
cumprimento da função social da cidade.
Sobre os municípios que têm obrigatoriedade de elaborar o Plano
Diretor, tem-se, além daqueles com mais de 20 mil habitantes, os que integram
regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; possuem intenção de utilizar
os instrumentos previstos na CF/1988 em seu art. 182 (imóveis que cumpram
a função social, desapropriações para imóveis não edificados, subutilizados ou
não utilizados através dos instrumentos de parcelamento ou edificação
compulsórios, a saber: imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
progressivo no tempo e desapropriação com pagamento mediante títulos da
dívida pública); municípios integrantes de áreas de especial interesse turístico,
inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com
significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional e, por último,
incluídas no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à
ocorrência de ações do meio ambiente, tais como deslizamentos, inundações
110

ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos. Este último requisito foi


incluído pela Lei 12.608, de 2012.
Juntamente ao empenho na aprovação do Estatuto da Cidade, durante
os anos 1990, os movimentos sociais pela reforma urbana também
reivindicavam um Fundo Nacional de Moradia, buscando, além do acesso ao
lote urbanizado, o acesso ao poder de construir neste. Mas para abertura de
programas e de fundos como estes se fazia necessário um órgão em nível
federal que articulasse tudo.
Em 1994, o então candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula
da Silva, propunha a criação de um ministério chamado Ministério da Reforma
Urbana. A ideia se estruturava a partir das três problemáticas urbanas que
precisavam ser trabalhadas e solucionadas: habitação, mobilidade urbana e
meio ambiente. Operando nesses eixos através de três fundos e três
secretarias nacionais, estes seriam geridos por um Conselho Nacional de
Política Urbana e Regional (CONPUR). O ministério ficaria encarregado também
de produzir um Plano Nacional de Política Urbana e Regional (PLANUR), que
seria discutido junto à população (GRAZIA; RODRIGUES, 2003).
As discussões prosseguem e, em 1998, Lula se candidata novamente,
continuando com a proposta de um ministério que trabalhe na união nacional
pela reforma urbana, mas mudando seu nome para Ministério das Cidades.
Ainda não sendo eleito neste ano, a proposta segue consistente, e logo após se
inicia o Projeto Moradia, iniciado pelo Instituto Cidadania e que tinha como
conselheiro o próprio Lula. O projeto tinha como objetivo a formulação de uma
política habitacional eficaz. Suas discussões reforçaram a necessidade de um
apoio institucional que implementasse essas políticas de forma integrada e
contínua, propondo também o Sistema Nacional de Habitação (GRAZIA;
RODRIGUES, 2003).
Dessa forma, tem-se o Ministério das Cidades elaborado como órgão
incumbido no âmbito federal de normatizar, planejar e articular as ações
referentes aos temas urbanos, estabelecendo assim um sistema permanente
de dados e continuidade dos programas.
Eleito em 2002, iniciando seu mandato em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva
abre o Ministério das Cidades, o então órgão federal coordenador, fomentador
e financiador, pensado para ser um pacto federativo pela política urbana. O
Ministério das Cidades tem o objetivo de buscar inovações nas políticas
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 111

urbanas através de uma política nacional de desenvolvimento urbano que


levasse em conta municípios e Estados, além da própria Federação e
trabalhasse, sobretudo, com instrumentos que garantissem a participação da
sociedade, com vistas à diminuição da desigualdade social e à sustentabilidade
ambiental.
Este é estruturado em secretarias nacionais setoriais, a fim de
corresponder ao desafio de promover a participação popular, e o Conselho
Nacional das Cidades fica responsável por garantir a transversalidade e
integração das políticas, evitando a fragmentação das mesmas. Por meio do
Conselho das Cidades também foram implementados programas como o
Programa Nacional de Regularização Fundiária e a Campanha Nacional pelos
Planos Diretores (MARICATO, 2006).
Assim, a criação do Ministério significa a busca da implementação do
Estatuto da Cidade articulando e definindo uma política e um sistema nacional
de desenvolvimento urbano, de forma a integrar a ação federal com Estados e
municípios e entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Com isso, enfrentaria as
problemáticas habitacionais, urbanas e de saneamento acumuladas ao longo
das décadas anteriores.
A partir dessa necessidade de integração, que permitiria a
racionalização de recursos, indicadores e diretrizes, promovendo a
continuidade de projetos e articulação entre os mesmos, o Ministério das
Cidades buscou em seus primeiros anos, até 2004, a sistematização de dados
relacionados a projetos, obras, investimentos, e dados de planejamento. Para
tal, foram implementados editais públicos para a liberação de recursos, e
foram criados órgãos e sistemas, como o Sistema Nacional de Informações das
Cidades (SNIC), que permitissem a unificação do Sistema Nacional de
Planejamento, de forma a promover uma gestão estratégica. Infelizmente, o
SNIC acabou por ser transformado somente em um sistema de
georreferenciamento, não cumprindo com seu propósito de instrumento de
gestão integrada (SUTTI, 2018).
Esses primeiros anos caminharam então para a estruturação do
Ministério, de forma burocrática, legal e sistematizada, intencionando a
implementação da política urbana de forma coordenada. É a partir deste
contexto que se estrutura a grande Campanha Nacional dos Planos Diretores
Participativos, agora sob um novo conceito, este é coordenado pela Secretaria
112

Nacional de Programas Urbanos, buscando apoiar a implementação do


Estatuto da Cidade nos municípios brasileiros (SUTTI, 2018).
É importante ressaltar que o Estatuto da Cidade já estabelecia que os
municípios com mais de 20 mil habitantes e integrantes de regiões
metropolitanas aprovassem seus planos até 2006, sendo que o prefeito que
não o fizesse se tornava passível de ação de improbidade administrativa. Assim,
se impunha uma obrigatoriedade para todos os municípios enquadrados
nesses requisitos em um país de dimensões continentais e com diferentes
situações de planejamento, o que impunha dificuldades. Tornava-se então
essencial que o Ministério trabalhasse de forma que essa obrigatoriedade se
tornasse uma oportunidade de elaborar novos processos de desenvolvimento
baseados em participação e inclusão da população (SUTTI, 2018).
É lançado então pela Secretaria Nacional de Programas Urbanos, em
2004, o Programa de Fortalecimento da Gestão Urbana e a Ação de Apoio aos
municípios para a implementação dos instrumentos do Estatuto da Cidade e a
elaboração dos Planos Diretores. O programa mobilizou recursos financeiros e
estabeleceu parcerias com os demais órgãos federais, construindo um
documento de referência que consolidava as intenções, princípios e diretrizes
na elaboração dos Planos Diretores.
No mesmo ano, em paralelo, o Conselho Nacional das Cidades lançou a
“campanha nacional de sensibilização e mobilização, visando à elaboração e
implementação dos Planos Diretores Participativos, com o objetivo de
construir cidades includentes, democráticas e sustentáveis”, sendo baseada na
inclusão territorial, justiça social e gestão democrática, caracterizando-se como
uma campanha de frequência, que promoveria sucessivas mobilizações.
Com estímulos para que se formassem núcleos de ação estaduais, o
governo federal lança, em 2005, a campanha nacional “Plano Diretor
Participativo: Cidade de Todos”, assim formando os núcleos estaduais que
trabalhariam de acordo com o Programa de Capacitação e Sensibilização,
mobilizando o país inteiro. As oficinas dadas aconteceram em cinco módulos
de através da introdução dos novos conceitos de planejamento demonstraram
a intencionalidade do ministério. E além das oficinas, foram distribuídos kits da
campanha, que incluíam o guia “Plano Diretor Participativo: Guia para
Elaboração pelos Municípios e Cidadãos” (SUTTI, 2018).
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 113

À medida que as oficinas aconteciam e eram concedidos os apoios


financeiros para os municípios, eram aprovados os Planos Diretores, criando
um banco de experiências que subsidiaria os próximos passos nesse
movimento nacional, e também caracterizando o período como o segundo
grande ciclo de produção de Planos Diretores, mas, diferentemente, estes
planos contavam com os mecanismos de participação popular e a
fundamentação na função social da propriedade e da cidade em si.
Por fim, a campanha se mostrou efetiva na mobilização dos municípios,
atingindo mais de dois mil deles, e na implementação dos instrumentos
urbanísticos, porém, algumas dificuldades se interpunham no que se refere à
regulamentação desses instrumentos pelos municípios e à ausência de
articulação entre as definições e o orçamento municipal.
É significativo que a partir de 2007 houve mudanças estruturais dentro
do Ministério das Cidades frente aos escândalos enfrentados pelo governo
federal, que ocasionou na decomposição da equipe original e em um modo de
ação financeiramente mais conservador não só para com o planejamento
urbano, mas também para com as questões habitacionais, que vinham sendo
enfrentadas por programas como o Programa de Aceleração de Crescimento,
e outros. E a partir da crise do sistema imobiliário internacional em 2009 a
questão se torna mais conservadora, dando enfoque à questão habitacional
como chave para o atravessamento da crise, surgindo o Programa Minha Casa
Minha Vida, originalmente pensado dentro do Ministério das Cidades, mas
lançado pelo Ministério da Fazenda, modificado de forma a promover maior
rentabilidade dos conjuntos e assegurar o mercado imobiliário e da construção
civil (BONDUKI, 2012).
Com uma nova crise política e o golpe dado à presidente Dilma Rousseff,
em 2016, retornou ao governo federal uma onda conservadora, austera e
neoliberal que deu fim ao Ministério das Cidades em 2019, alterando,
diminuindo e migrando os programas estabelecidos. Nota-se ainda um
pequeno esforço do Ministério do Desenvolvimento Regional que elaborou e
publicou, em 2021, o Guia para Elaboração e Revisão dos Planos Diretores, mas
o mesmo não teve grande profusão até o momento.
114

3 A REGIÃO ADMINISTRATIVA DE PRESIDENTE PRUDENTE-SP

A Região Administrativa de Presidente Prudente, localizada na porção


oeste do Estado de São Paulo (Figura 1), possui 53 municípios e, dentre estes,
segundo informações colhidas no IBGE (2021), apenas 12 deles contavam com
mais de 20 mil habitantes no Censo de 2010, e apenas Presidente Prudente
ultrapassa a marca de 100 mil habitantes. Na estimativa de 2020 tem-se 15
municípios com mais de 20 mil habitantes (Figura 2).

Figura 1 – Localização da Região Administrativa de Presidente Prudente

Fonte: IGC (2020), editado pelas autoras (2020).

Figura 2 – Região Administrativa de Presidente Prudente com setorização dos municípios por
número de habitantes considerando a projeção de 2020

Fonte: IGC (2020), editado pelas autoras (2020).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 115

Os municípios selecionados para estudo foram os que possuem uma


população superior a 20 mil habitantes, considerando as projeções feitas para
o ano de 2020. Além disso, foi incluído o município de Rosana, que é de
interesse turístico, apesar de possuir menos de 20 mil habitantes tanto em
2010 quanto nas projeções de 2020 (Quadro 1). Essa seleção ocorreu
considerando a obrigatoriedade da elaboração dos Planos Diretores como
discutido anteriormente.

Quadro 1 – Municípios selecionados para estudo e quantidade de habitantes

Fonte: IBGE Cidades (2020), elaborado pelas autoras (2020).

Assim, são 16 municípios com os dados iniciais levantados acerca de


seus Planos Diretores, seu ano de elaboração, última revisão feita, se a lei está
disponível nos sites das prefeituras, e se também são disponibilizados anexos
como zoneamentos, macrozoneamentos e até mesmo os diagnósticos.

3.1 Planos Diretores

Dentre os 16 municípios selecionados por terem mais de 20 mil


habitantes nas projeções de 2020 ou por serem de especial interesse turístico,
temos que 14 possuem plano diretor e apenas dois ainda não possuem, sendo
eles Junqueirópolis e Regente Feijó, que, apesar de terem mais de 20 mil
116

habitantes nas projeções para 2020, em 2010 tinham apenas 18.726 e 18.494
habitantes respectivamente, o que pode explicar a ausência do plano. Foi
levantado também que em Junqueirópolis, embora não tenha Plano Diretor,
em outubro de 2020 foi instituída a comissão de acompanhamento do Plano
Diretor na cidade (Quadro 2).

Quadro 2 – Municípios da Região Administrativa de Presidente Prudente com obrigatoriedade de


Planos Diretores com anos de elaboração e revisão

Fonte: IBGE Cidades (2020), sites oficiais (2020), elaborado pelas autoras (2020).

Todos os demais municípios possuem planos diretores, sendo 11 deles


produzidos entre 2006 e 2008, por já possuírem mais de 20 mil habitantes
quando instituído o Estatuto da Cidade e, portanto, já estarem na
obrigatoriedade de produzir o Plano. Outros três municípios elaboraram seus
planos a partir de 2010, sendo eles Lucélia, que elaborou seu plano em 2012,
Presidente Venceslau, em 2011, e Rosana, em 2015.

3.2 Transparência

A respeito da disponibilidade e acessibilidade dos Planos Diretores, fez-


se um levantamento de campo, ou seja, procuraram-se as leis, diagnósticos,
anexos e outros planos relacionados ao planejamento nos sites da prefeitura,
podendo verificar se eles estavam disponíveis e em que condições (Quadro 3).
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 117

Quadro 3 – Relação dos municípios que possuem seus Planos Diretores disponíveis em seus
respectivos sites

Fonte: Sites oficiais das prefeituras (2021).

Dos 14 municípios com Planos Diretores, dois deles não os tinham


disponíveis em seus sites, sendo eles Álvares Machado e Lucélia, visto que no
site da prefeitura de Álvares Machado (2021) não estão disponíveis leis
ordinárias anteriores a 2013 e leis complementares anteriores a 2017. No site
da Prefeitura de Lucélia (2021) ocorre a mesma situação, não estando
disponíveis leis ordinárias ou leis complementares anteriores a 2014.
Fora os dois exemplos acima citados, os demais sites dispunham das leis
que instituíram o Plano Diretor, e os que já haviam realizado revisão também
já dispunham da nova lei em seus sites.
Houve algumas dificuldades com relação à organização dos sites, muitas
vezes os links para os documentos das leis não possuíam título, dificultando a
identificação da Lei do Plano Diretor. Mas, de modo geral, foi possível
encontrá-los tendo conhecimento prévio do ano em que foram elaborados e
estrutura documental que possuem.
Então, a partir de experiência anterior, elaborou-se o Quadro 4, no qual
definiu-se se o Plano Diretor é de fácil acesso ou não através do site do
município. O parâmetro utilizado para a avaliação da facilidade de acesso ou
118

não dos planos diretores foi a quantidade de passos necessários para se


alcançar o documento dentro do site e o nível de conhecimento prévio do
mesmo, como ano e número da lei necessário.
Assim, os municípios classificados como de difícil acesso são aqueles em
que, além de se procurar a página do Poder Legislativo municipal, seria
necessário conhecer o ano e número da lei. Já os de fácil acesso se encontram
normalmente em uma aba na página inicial denominados como Plano Diretor.

Quadro 4 – Quadro de municípios que possuem maior ou menor facilidade de acesso ao seu
Plano Diretor

Fonte: Sites oficiais das prefeituras (2021).

3.3 Anexos e demais planos

Além dos Planos Diretores, buscaram-se outros documentos


relacionados ao planejamento, desenvolvimento e ordenamento da cidade,
tais como zoneamento e outros planos.
Durante a leitura das leis dos Planos Diretores é possível identificar
referências a anexos como zoneamento ou macrozoneamento, mas a maioria
destes não se encontram disponíveis junto às leis dos Planos Diretores nos
sites. Dos 14 municípios com Plano Diretor na região, apenas dois deles
apresentavam os anexos junto à lei, sendo eles Presidente Prudente, que
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 119

continha o (1) Zoneamento de Uso e Ocupação do Solo e o mapa das UEPs, e


Rosana, que dispunha do (2) Macrozoneamento, Zoneamento Beira Rio e
Campinho, Zoneamento Cidade de Rosana, Zoneamento Distrito de Primavera,
Zoneamento de Rosana Geral (Quadros 5 e 6).

Quadro 5 – Relação dos municípios, diagnósticos, anexos e outros planos disponíveis em seus
respectivos sites

Fonte: Sites oficiais das prefeituras (2021).

Quadro 6 – Relação de siglas de outros planos encontrados

Fonte: Sites oficiais das prefeituras (2021).

Dos 16 municípios com os quais estamos trabalhando, 12 deles


apresentavam um ou mais desses diferentes planos, até mesmo
Junqueirópolis, que não possui ainda o Plano Diretor, mas possui plano para
arborização e gestão integrada de resíduos sólidos. Álvares Machado e Dracena
não apresentaram em seus sites nenhum desses diferentes planos, e no site do
município de Pirapozinho a identificação desses planos se tornou impossível,
já que as leis disponibilizadas não continham títulos e se tornava necessário
120

abrir uma a uma para descobrir seus conteúdos. No caso de Regente Feijó, o
município não possui Plano Diretor, e no último levantamento relacionado a
esses planos, as informações acerca da legislação estavam fora do ar no site.

3.4 Responsabilidade de elaboração dos planos diretores

Posteriormente à análise das condições em que os Planos se


encontravam, buscou-se entender também o contexto em que estavam
inseridos, isto é, a organização das prefeituras e quais secretarias estavam
responsáveis pela elaboração dos Planos Diretores. Por meio dos
levantamentos é possível notar que dos 16 municípios estudados, um deles –
Pirapozinho, não conta com uma secretaria ou departamento de
Planejamento, normalmente a que é responsável pela organização e
elaboração do Plano Diretor e demais planos previstos para o desenvolvimento
urbano do município.
A partir do quadro de secretarias municipais levantadas, analisou-se
quais dessas secretarias se encontravam responsáveis pelos Planos Diretores.
A princípio foram buscadas de forma simples nesses sites as descrições
oferecidas por eles das secretarias e suas atribuições e, quando não
encontradas as informações desta forma mais simples, conferiram-se tais
atribuições nas Leis Orgânicas, Estatutos e Regimentos, desenvolvendo a
seguinte relação (Quadro 7).

Quadro 7 – Quadro de secretarias municipais responsáveis pela elaboração do Plano Diretor

Fonte: Sites oficiais das prefeituras (2021).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 121

Os municípios de Adamantina, Álvares Machado, Dracena, Presidente


Epitácio, Presidente Prudente e Teodoro Sampaio tinham explícita a
informação na descrição fornecida para cada secretaria, dando em suas
designações a elaboração do Plano Diretor dentre tantas outras.
Em alguns sites, a informação fica implícita na descrição oferecida,
como no caso de Lucélia (2021), que descreve o seguinte encargo para a
secretaria de Planejamento, Governo e Gestão: “Coordenar o planejamento
municipal para que seja elaborado em consonância com o planejamento
regional, visando ao desenvolvimento harmônico do município dentro da sua
região”. E este tipo de informação que fica subentendida ocorre também no
site do município de Presidente Venceslau.
Para os demais municípios que não tinham as descrições disponíveis, ou
que, mesmo com descrições, elas se encontravam incompletas ou não citavam
o Plano Diretor ou planejamento urbano, de fato foi necessário buscar em
documentos qual era a secretaria responsável. Foram conferidas então as Leis
Orgânicas, Regimentos Internos, Estatutos, Plano de Cargos e Carreiras.
Os resultados gerais de tal busca foram bastante correlatos às situações
definidas nos tópicos anteriores. O que se encontra são dados não
padronizados nos sites das prefeituras, sendo que algumas definem suas
secretarias e suas funções, enquanto outras não o fazem. Além disso, os
municípios que não definem suas secretarias não têm também essas
informações em fácil acesso, sendo necessário destrinchar documentos
legislativos até que se encontrem as definições procuradas.

4 ESTUDO DE CASO

Após estudarmos as principais legislações urbanas, verificar quais as


prefeituras que possuíam planos diretores e analisar as estruturas
administrativas delas, foi realizado um estudo de caso de uma política urbana
que possui um objeto bem definido e que, a priori, deveria considerar a
urbanidade como pré-requisito para a sua implantação. Trabalhou-se com a
política habitacional e a implantação de um conjunto habitacional de interesse
social no município de Presidente Prudente, pois este possui Plano Municipal
de Habitação de Interesse Social.
122

O atual Plano Diretor de Presidente Prudente foi formulado em 2008 e


sofreu a última revisão em 2018. Os documentos oficiais são: a Lei
Complementar 230/2018 e dois anexos, um sobre a divisão das Unidades
Espaciais de Planejamento (UEPs) e o outro sobre a Carta de Zoneamento.
Observa-se que nas Zonas Especiais de Interesse Urbanístico, 15 ao todo, não
há nenhuma destinada à habitação social. No Zoneamento proposto, as zonas
servem de orientação para parâmetros e índices urbanísticos, buscando
garantir baixas densidades em áreas com grande concentração de córregos e
nascentes (Plano Diretor de Presidente Prudente, Lei 230/2018; 2018).
A produção dos conjuntos habitacionais de interesse social no munícipio
segue, historicamente, a lógica de serem construídos na periferia da cidade,
como exemplo, em 1992, tivemos a implantação do conjunto habitacional Ana
Jacinta, distante 10 km aproximadamente do centro, com recursos da
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) (PLANO
MUNICIPAL DE HABITAÇÃO, 2014).
Dentre os norteadores das políticas urbanas está o Plano Municipal de
Habitação de Interesse Social de Presidente Prudente que apresenta em sua
conceitualização e, um dos seus princípios é garantir a moradia digna como
direito e vetor de inclusão social (PLANO MUNICIPAL DE HABITAÇÃO, 2014, p.
14-15).
Os conjuntos habitacionais formais no munícipio datam desde 1968,
sendo o primeiro, com 142 unidades, financiados pelo Banco Nacional de
Habitação (BNH). Somente depois de dez anos vamos verificar a implantação
de um conjunto de grande porte, em 1978, com 1017 unidades habitacionais
realizado pela Companhia Habitacional de Bauru (COHAB-Bauru). Depois
deste, houve uma continuidade na produção de conjuntos habitacionais, no
período do BNH, houve 3.583 unidades construídas e pós-BNH, têm-se 8300
unidades. Destas, 3.500 foram produzidas através do Programa Minha Casa
Minha Vida (Figura 3).
Observa-se que os conjuntos habitacionais se encontram em áreas
periféricas, os conjuntos mais bem localizados são os mais antigos, ou seja, o
tempo para a consolidação de um conjunto passa por mais de uma geração
familiar. O perímetro urbano é também “alargado” à medida que as áreas
escolhidas ficam cada vez mais distante das áreas consolidadas.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 123

Figura 3 – Mapa dos conjuntos habitacionais em Presidente Prudente até a década de 2010

Fonte: Plano Municipal de Habitação (2014). Editado por Garrido (2022).

O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), lançado em abril de


2009, com o objetivo de promover a produção ou aquisição de novas unidades
habitacionais, ou a requalificação de imóveis, para famílias com renda mensal
de até 10 salários-mínimos foi estruturado a partir das premissas e metas
desenhadas pelo Plano Nacional de Habitação (PlanHab). Com a meta de 3
milhões de moradias (fases 1 e 2) se propôs a enfrentar, de modo impactante,
a problemática habitacional do país.
O programa elevou os recursos orçamentários em habitação a um
padrão nunca antes estabelecido nas políticas habitacionais, considerando o
tempo previsto para a sua execução. Também ampliou, por meio de um novo
124

padrão de financiamento, o acesso à moradia por uma parcela da população


que o mercado habitacional não contemplava. Por outro lado, para atender às
necessidades de uma produção massiva e num horizonte temporal de curto
prazo, fixou-se na produção de unidades prontas, desconsiderando outras
alternativas de produção. Embora o programa considere, para a implantação
dos empreendimentos, a localização do terreno na malha urbana ou em área
de expansão, observado o respectivo Plano Diretor, desobrigou os municípios
do plano local de habitação que poderia estabelecer as diretrizes para a
implantação de novos empreendimentos.
Ou seja, poderíamos considerar em uma situação hipotética, que o
PMCMV foi lançado em um momento em os municípios haviam de preparado
para implementar suas políticas territoriais, no caso, a produção dos conjuntos
habitacionais de interesse social em áreas já consolidadas. Porém, esse
processo acabou sendo atropelado e os municípios voltaram os seus esforços
técnicos para conseguir áreas e construtoras para produzir as unidades.
Estudos de Arantes e Fix (2009) e Ferreira (2012) apontaram as
contradições do desenho institucional da Política Nacional de Habitação e a sua
implementação propriamente dita, considerando os produtos oferecidos para
os diversos segmentos que o PMCMV contempla.
Arantes e Fix (2009) apresentaram questões e suposições já no
lançamento do programa, o qual priorizava a construção de novas unidades
habitacionais pela iniciativa privada, ou seja, as construtoras são os tomadores
dos recursos financeiros para a produção dos empreendimentos habitacionais.
Esse fato acaba deixando de lado as empresas públicas, como exemplo as
Companhias Habitacionais, que já possuem corpo técnico e experiência na área
para produzir as habitações.
Outros aspectos colocados pelos autores dizem respeito à qualificação
arquitetônica, urbana e ambiental que os conjuntos habitacionais poderiam
ter, considerando, inclusive, a produção existente no Brasil e o parque
tecnológico instalado.
O conjunto habitacional João Domingos Netto (CHJDN), compreendido
na faixa de renda 1, está entre um dos maiores empreendimentos horizontais
realizados pelo PMCMV em Presidente Prudente, sendo inaugurado em 16 de
maio de 2015 e composto por 2.343 unidades habitacionais. Como a Caixa
Econômica Federal (CEF) determina que o tamanho máximo dos conjuntos
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 125

habitacionais não ultrapasse, em unidades, o tamanho de 500 unidades de


habitação, houve em Presidente Prudente uma manobra para a repartição das
unidades (em quantidades) e incorporadoras. Duas incorporadoras são
responsáveis por duas áreas, por isso tem mais de 500 unidades, como
observado no Quadro 8 e Figura 4.

Quadro 8 – Dados sobre os custos das unidades habitacionais do conjunto


EMPRESA RESPONSÁVEL UNIDADES DE HABITAÇÃO VALOR EMPREENDIDO (R$)

HLTS ENGENHARIA 949 62.680.980,00


LOMY ENGENHARIA 444 29.517.120,00
MENIN ENGENHARIA 950 62.707.788,00
TOTAL: 2.343 154.905.888,00
Fonte: Caixa Econômica Federal (2016).

Figura 4: Implantação do CHJDN

Fonte: Prefeitura de Presidente Prudente (2020).17

Embora as diretrizes para escolha de áreas devessem atender a alguns


critérios do próprio programa, parece contraditório comparando com a
realidade do Conjunto Habitacional João Domingos Netto, que foi implantado

17 Disponível em: http://www.presidenteprudente.sp.gov.br/site/publicacoes.xhtml?uni=13.


Acesso em: 3 jun de 2020.
126

a aproximadamente 8 km de distância do quadrilátero central da cidade.


Percebe-se a extrema contradição, dos ideários e das práticas, propriamente
ditas, com ações segregatícias.
Nesse sentido, é possível verificar que mesmo o programa possuindo
uma regra sobre a quantidade de unidades máximas por conjunto, com o
intuito de ocupar vazios urbanos, foi contornada com uma solução de dividir
os respectivos conjuntos.
Além das dinâmicas econômicas, sociais e políticas geradas na cidade a
partir da instalação do conjunto habitacional se deve levar em consideração os
efeitos ambientais ocorridos a partir de tal afirmativa. A construção civil,
segundo Martin (2015, p. 3), é responsável por impactos ambientais em todas
as etapas, logo o maior conjunto habitacional produzido pelo MCMV também
teve seus impactos.

[…] foi possível observar que em Presidente Prudente, os conjuntos


habitacionais seguem o mesmo padrão, que se pretendia superar, de
habitações construídas nas áreas periféricas das cidades e com o
agravante de que características físicas importantes não foram
consideradas, o que pode levar a um problema permanente de gastos
com controle de erosão. (MARTIN, 2015, p. 15).

A pretendida qualidade de vida considerando o conceito de urbanidade,


pode ser compreendido como tudo o que afeta a vida do usuário, logo a
interação meio ambiente e moradores, se não forem garantidas relações de
forma harmoniosa podem reduzir essa qualidade e debilitar a sustentabilidade
urbana. Ferreira (2012, p. 32) entende por “sustentabilidade urbana”, a
capacidade de equacionar, de antemão o conjunto dos impactos da
urbanização sobre a natureza e seu equilíbrio, de forma que as cidades e o meio
ambiente continuem a ser usufruídos, com qualidade e sem destruição, pelas
próximas gerações. Segundo o autor pensar na condição urbana de hoje é, na
prática, pensar na cidade do nosso amanhã.
O dado conceito, de urbanidade, não deve limitar-se apenas à
apropriação da população sobre o espaço, principalmente o público, mas se
deve ser entendido como possibilidades: compartilhamento de cultura urbana
(que se manifesta de diversas formas, nas mais variadas cidades, desde o
desenho de pisos nas calçadas até a expressão no comportamento em um dado
local), diversidade (de gênero, econômica, étnica e artística), troca de ideias
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 127

conflitantes, o que garante às cidades heterogeneidade, multiplicidade e


pluralidade.
Em um primeiro momento a repetição de tipos habitacionais sem
considerar as diversas composições familiares e as suas necessidades,
provocam locais apáticos e sem identidade com a comunidade, e tal fato aliado
ao direito à cidade que cada vez mais é negado, resultam na maioria dos
conjuntos habitacionais brasileiros (Figura 5).

Figura 5 – Conjunto Habitacional João Domingos Netto

Fonte: Prefeitura de Presidente Prudente (2015).

O cenário é ainda mais pessimista se considerarmos que as médias e


pequenas cidades, ainda relativamente isentas dos problemas mais
graves que assolam as grandes metrópoles, e que ainda teriam tempo
de reverter sua lógica de urbanização para novo padrão, mais
sustentável, reproduzem, ao contrário, em menor escala, os equívocos
das nossas grandes metrópoles. (FERREIRA, 2012, p. 32).

A Caixa Econômica Federal prega que os conjuntos habitacionais sejam


dispostos em áreas consolidadas e urbanizadas, de acordo com a Lei 12.424,
(2011):
Art. 3o Para a indicação dos beneficiários do PMCMV, deverão ser
observados os seguintes requisitos: § 1o Em áreas urbanas, os critérios
de prioridade para atendimento devem contemplar também: I – a
doação pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios de
128

terrenos localizados em área urbana consolidada para implantação de


empreendimentos vinculados ao programa;

Portanto, a partir dessa perspectiva, nota-se que o direito à cidade dos


moradores que cada vez mais vão morar distante de uma malha urbana
consolidada e estruturada é violado ou inexistente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho procurou compreender qual o desenho institucional das


políticas públicas urbanas a partir das leis e planos urbanos, bem como a
estrutura administrativa das prefeituras municipais, essas últimas responsáveis
pela criação e implementação das políticas na esfera municipal.
O estudo da Região Administrativa de Presidente Prudente possibilitou
verificar uma diversidade na composição das prefeituras municipais em relação
às suas secretarias municipais, assim como uma diversidade de planos urbanos,
os quais passam pela existência do Plano Diretor, obrigatório e objeto de Lei e
Planos nas áreas ambiental, de saneamento, arborização, cultura, resíduos
sólidos, drenagem urbana, mobilidade, habitação entre outros.
Houve uma dificuldade de obtenção de dados considerando o acesso
através dos sites oficiais em relação à localização e identificação dos
documentos. No caso dos Planos Diretores, o acesso através das Câmaras
Municipais foi mais fácil, porém, as informações gráficas necessárias para a
compreensão dos respectivos planos muitas vezes não existem, ou melhor, não
acompanham as leis. Os diagnósticos e estudos necessários para a elaboração
de qualquer plano urbano não permanecem disponíveis, levantando dúvidas
até sobre a sua existência. Não há uma memória urbana sobre o
desenvolvimento da malha urbana, sobre a sua evolução.
Os diversos planos urbanos existentes em várias secretarias levantaram
questionamentos sobre a compatibilização entre eles, apontando a
necessidade de pesquisas para verificar em que medida os planos são
complementares entre si. No estudo de caso no município de Presidente
Prudente o qual analisamos o Plano Diretor e o Plano Municipal de Habitação
de Interesse Social foi possível identificar essa falta de compatibilização entre
planos urbanos. O Plano de HIS, de 2014 não faz menção ao Plano Diretor de
2008 e, por sua vez, a revisão do Plano Diretor em 2018 não menciona possíveis
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 129

áreas de expansão considerando o Plano de HIS de 2014. A localização da


implantação do Conjunto Habitacional João Domingos Netto não considerou
os princípios do Plano de HIS do município e nem os próprios princípios da
Política Urbana vigente considerando as diretrizes estabelecidas pelo
Ministério das Cidades e a legislação da própria Caixa Econômica Federal. O
direito à cidade e à moradia digna com urbanidade ficam apenas nas teorias
das leis e diretrizes.
A cidade se constrói independente do Plano Diretor quando se trata da
localização dos empreendimentos para a classe de menor poder aquisitivo, a
especulação imobiliária ainda prevalece em relação à própria Constituição,
mesmo essa garantindo a função social da propriedade.
A fragmentação das estruturas administrativas contribui para a falta de
compreensão do território, como superar essa deficiência e o jogo dos agentes
envolvidos na produção do espaço urbano é um desafio que precisa ser
enfrentado. É urgente a retomada sobre a discussão da ocupação do território
para entendermos quem de fato produz, ou melhor, quem constrói a cidade.
Só assim será possível discutir sobre um desenho urbano qualificado e
moradias dignas, com bairros projetados com infraestruturas e serviços
urbanos, com escolas, equipamentos de saúde, esportes, lazer e cultura, entre
outros.

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reforma-urbana-no-Brasil-Miolo-Completo-Final.pdf. Acesso em: 2 fev. 2022.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 131

Capítulo 7

GUIA DE “TELAS DE PROJEÇÃO” PARA HISTÓRIAS APAGADAS

Lívia Zanelli de Morais18


Marina Biazotto Frascareli19

1 DO APAGAMENTO DE HISTÓRIAS

O que está através das paredes ruindo? Uma pele (in)visível que, se
pudesse, relataria memórias? Este artigo20, desdobramento de uma pesquisa
iniciada em 2017, aborda a relação entre esvaziamento das áreas centrais
históricas e as intervenções de arte na escala da arquitetura e urbanismo como
potencial alerta sobre a condição de abandono e apagamento 21 das histórias
guardadas nestes lugares. O problema, parte da cultura urbana e arquitetônica
de muitas cidades médias brasileiras (que, portanto, se amplia no território
para além da metrópole paulistana), coincide com a proposta de reconstrução
da 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, especialmente por
meio dos eixos corpos e memória. Nesse sentido, o texto desenvolve reflexões
sobre possibilidades de percepção e ocupação de áreas históricas abandonadas
e subutilizadas a partir de intervenções artísticas que podem apontar
problemas urbanos com múltiplas camadas de significados.
Tal temática é relevante por estabelecer debates sobre os espaços em
processo de apagamento para além da memória coletiva, mas também pelo

18
Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. E-mail:
lpzmorais@gmail.com
19 Mestranda em Arquitetura e Urbanismo, Unesp (PPGARQ FAAC). E-mail:
mbfrascareli@gmail.com
20 Publicado em dezembro de 2022 pelo periódico Arquitextos como Preâmbulo da 13ª Bienal

Internacional de Arquitetura de São Paulo. Fez parte também, em formato de vídeo, da exposição
da mesma Bienal entre maio e julho de 2022.
21 Considera aqui, sob a luz das discussões de Soraia Ansara (2012) e Giselle Beiguelman (2019),

apagamento como condição resultante de políticas do esquecimento. Para além de políticas que
impedem o acesso, são políticas que invisibilizam os espaços.
132

desaparecimento físico. Falamos a partir de uma cidade de porte médio e as


áreas centrais de várias destas cidades, apesar de compostas por complexas
redes de infraestrutura e serviços, encontram-se subutilizadas e permeadas
por vazios. Há uma degradação progressiva das estruturas urbanas: dos
edifícios, dos espaços públicos e das zonas comerciais nas cidades –
correspondente ao esvaziamento das áreas centrais como consequência de um
modelo de expansão difuso e de baixa densidade, devido ao crescimento
urbano que opera em condições quase irrestritas e indeterminadas.
Deste modo, o objetivo central deste artigo, como parte de um
preâmbulo da 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, é realizar
um levantamento dos espaços em processo de apagamento em centros
históricos, em prol de um resgate de histórias, apontando possibilidades de
usos por meio de intervenções artísticas – uma reconstrução – tendo como
estudo de caso a cidade de Bauru (São Paulo).
Se esse tipo de intervenção urbana tem caráter pontual, sem intenções
de englobar o todo, cada ação específica provoca contínuas rearticulações,
gerando possibilidades para novas funções e novos sentidos para os locais.
Assim sendo, discutimos outras maneiras (para além dos grandes projetos e
obras de renovação urbana) de intervir (artisticamente), gerando resultados
positivos em curto prazo e proporcionando arte acessível por meio de ações
extramuros (tão fundamentais em tempos pandêmicos e de sucessivas crises).

2 DAS TRANSITORIEDADES URBANAS

Ana Fani Carlos (2015, on-line) trabalha com a hipótese de que a


produção do espaço é indissociável à produção da vida. Ou seja, a
concretização do processo espacial se constitui na vida ordinária por meio das
relações sociais que produzem lugares. Subsequente a esse processo de
pensamento, evidencia-se a função da produção do espaço na reprodução da
sociedade contemporânea. Diante do sistema econômico capitalista, esta
prática de produção valida o próprio espaço como mercadoria. Segundo Carlos,
esta circunstância traz à tona a subordinação do espaço em duplo caráter, “o
espaço fica subordinado à lei do valor que o qualifica como um valor de uso e
de troca, condicionando seu acesso à existência da propriedade e à dinâmica
do mercado” (CARLOS, 2015, on-line).
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 133

Nesse sentido, é relevante destacar o processo contraditório por trás de


“novas aparências” que caracterizam a paisagem urbana; o sujeito como
consumidor, que busca espaços renovados; o urbano como mapa fragmentado
e descontínuo, resultante de um processo de produção do espaço atravessado
pela lógica capitalista. O entendimento da atual crise urbana deve considerar
como urgência o debate sobre as lógicas do apagamento e a busca das forças
residuais que ainda constituem este espaço.
No Brasil, o processo de urbanização foi impulsionado no século XX, a
partir da industrialização, de modo acelerado e desordenado. Há um padrão
de urbanização caracterizado na reprodução de eixos de expansão horizontal
impulsionado pelo planejamento econômico, territorial e pelas políticas de
financiamento e produção habitacional e de infraestruturas, principalmente de
sistemas de circulação e de saneamento (ROLNIK, 2015, on-line). A
disponibilidade de crédito a juros subsidiados impulsiona a produção de
imóveis novos, permitindo à classe média construir novos bairros e novas
centralidades, gerando, além de expansão horizontal, o esvaziamento dos
centros tradicionais – o ajuste espacial de David Harvey22 (2004, p. 65) que
pode ser ilustrado com o ciclo constante de criação de localidades nas franjas
das cidades capazes de absorver os excedentes de capital.
Já para a população de menor renda, a alternativa do loteamento ou
conjunto habitacional consagrou um modelo hegemônico, promovido por
preços mais baixos dos terrenos na periferia. Este modo de operação com os
mercados habitacionais impulsionando uma expansão centrífuga contribui
para o esvaziamento das áreas centrais e consequente abandono de edifícios
com relevância histórica que tradicionalmente estão localizados nestas áreas.
A expansão urbana dispersa e seu produto, o vazio urbano, demandam
significativos recursos públicos, além dos impactos ambientais e sociais da

22 "The term ‘fix’ has, however, a double meaning. A certain portion of the total capital becomes
literally fixed in some physical form for a relatively long period of time (depending on its economic
and physical lifetime). There is a sense in which social expenditures also become territorialized and
rendered geographically immobile through state commitments. (In what follows, however, I will
exclude social infrastructures from explicit consideration since the matter is complicated and
would take too much text to elucidate). Some fixed capital is geographically mobile (such as
machinery that can easily be unbolted from its moorings and taken elsewhere) but the rest is so
fixed in the land that it cannot be moved without being destroyed. Aircraft are mobile but the
airports to which they fly are not.”
134

transformação de terra rural em urbana – e para além do aumento das


distâncias físicas a serem percorridas no cotidiano, há o acirramento das
desigualdades e da segregação socioespacial.
Conforme Argan (2014, p. 15), a crise urbana foi atravessada por um
processo de apagamento do conceito de historicidade derivado da destruição
dos tecidos urbanos devido à especulação imobiliária – soma-se ainda, a
produção de arquitetura banal e descontextualizada e a crise do objeto como
fonte de valor. Em consonância com Ana Fani Carlos (2015, on-line), esse
espaço urbano atual (ao longo do tempo) foi produto de relações sociais que
carregam o sujeito e a sociedade. A autora afirma que frente ao processo
morfológico fugaz, os signos que caracterizam e embasam a vida na cidade se
transformam constantemente e a história acumulada perde o valor mais
profundo perante o dever da acumulação do capital.

A constante renovação – transformação do espaço urbano através das


mudanças morfológicas – produz constantes transformações nos
tempos urbanos da vida, nos modos e tempos de apropriação/uso dos
espaços públicos e privados. Os lugares vão se transformando de forma
irreversível com o aplainamento da história contida neles, tornando-os
iguais a tantos outros, colocando a sociedade em relação direta com um
espaço destituído da memória (como produto da constituição da
identidade revelada por uma história vivida enquanto prática
socioespacial). (CARLOS, 2015, on-line).

A partir desse cenário de memoricídio, Giselle Beiguelman (2019, p. 70)


discute o direito à memória em contraposição às ações políticas de
apagamento do passado. Segundo a autora, a história do Brasil carrega o
extermínio da memória como apagamento desde as origens da colonização –
apagamento este que reverbera até os dias de hoje. Aqui, fica evidente o valor
de resgatar a cidade do passado a fim de buscar referenciais identitários em
um movimento que torna possível a produção do significativo: fixar imagens e
discursos que friccionam uma certa identidade urbana, coleção de sentidos e
formas de representação e reconhecimentos que pormenorizam as histórias.
“O passado aí é uma espécie de vibração, de corrente que se propaga pelo
presente – apesar dele e a despeito dele” (BEIGUELMAN, 2019, p. 70). Em
concordância com Ansara (2012, p. 299), Beiguelman (2019, p. 70) ainda
sinaliza que o processo que constitui a memória é um ato de enfrentamento
contra o esquecimento e evidencia a importância e a necessidade de se
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 135

elaborar “políticas de memória” que se contraponham às “políticas de


esquecimento” (ANSARA, 2012, p. 301) estabelecidas ao longo da história.

3 DAS RENOVAÇÕES E INTERVENÇÕES URBANAS

No que pese a diferença entre os gestos de renovação urbana e


intervenção urbana, ressaltamos que a intenção aqui não é comparar as ações,
nem considerar substituições, mas sim possibilidades outras, especialmente
diante do atual contexto pandêmico.
De acordo com Miles (2012, on-line), na década de 1980 a manifestação
prevalecente nas cidades da Europa Ocidental e da América do Norte
legitimava que a renovação urbana de base cultural forneceria soluções para
problemas urbanos associados à desindustrialização – à medida que a
produção industrial foi transferida para os países do Sul, o desemprego
aumentava no Norte, as fábricas eram abandonadas e as centralidades urbanas
se encontravam em decadência. Em parte, os edifícios abandonados tornam-
se objetos de consumo e renovação após o período de obsolescência do uso,
alterando sua função original também pelo fato de a política urbana condenar
sua substituição – percepção esta que se alinha à necessidade de preservação
histórica e memorial na busca por referenciais identitários, um contraponto
aos movimentos homogeneizantes da globalização.
Neste cenário, a cidade cultural apropria-se da cidade de produção
material na proliferação de um estilo de vida da cultura do consumo. Apesar
de a cidade cultural ser método de revitalização, reabilitação e reapropriação,
esta regeneração dos centros degradados e zonas de desindustrialização pode
acontecer somente nos médio e longo prazos em virtude de serem grandes
intervenções estruturais. Sem garantias de sucesso, é capaz de gerar processos
de gentrificação. A renovação de base cultural pode ser uma resposta à
desindustrialização, mas conforme a produção imaterial domina a imagem
projetada nas marcas das cidades, estas tendem à despolitização com um
futuro guiado pelo mercado e um otimismo artificial.

O interesse que o capital tem na construção da cidade é semelhante à


lógica de uma empresa que visa ao lucro. O que temos visto, nos últimos
trinta anos, é a reocupação da maioria dos centros urbanos com
megaprojetos. Muitos desses projetos associam a urbanização ao
136

espetáculo. Invariavelmente, entre as consequências dos megaeventos


estão as remoções de pessoas de algumas áreas. (HARVEY, 2013, on-
line).

Neste contexto, a arquitetura passa a ser elemento central nos espaços


de exposição, atrai público para contemplação de suas formas plásticas e
materialidades – vide exemplo do Museu Guggenheim de Bilbao. Esta
influência midiática das renovações de base cultural é contestada por parte da
sociedade artística que não tem acesso aos circuitos museológicos e que é
responsável pela disseminação de arte mais acessível demandando, para isso,
ações extramuros. À margem dos circuitos museológicos e a fim de
proporcionar arte acessível, a busca por novos espaços para prática artística
toma impulso. Há uma evolução dos processos da land art23 (TUFNELL, 2006,
p. 23) e dos trabalhos propostos em site-specific24 (KWON, 2002, p. 86), nos
quais ocorrem ocupações pulverizadas pelas cidades.

Impõe-se então a estratégia artística – radicalmente oposta à que


marcou na origem a especificidade de um sítio – que consiste em
abandonar a pesquisa formal em favor da contextualização das obras.
Aqui, cada artista reage numa situação de exposição em relação ao
trabalho do outro e aceita as contaminações, interferências e sobre
determinações que possam daí resultar. (PEIXOTO, 2004, p. 21).

Colocada esta alternativa da cidade ao museu, os itinerários urbanos se


fortalecem em uma retomada contrária ao modelo do flâneur, tornando
importante o debate sobre as intervenções artísticas em prol da ocupação da
cidade. Sobre as intervenções urbanas, Fontes afirma que “[…] apesar de
temporárias, elas, paradoxalmente, têm um impacto sobre os lugares que pode
ser duradouro” (FONTES, 2012, p. 32). Para a mesma autora, a intervenção
temporária acontece na esfera do transitório, do pequeno, das relações sociais,
da participação, interação e subversão, a partir de situações existentes. Ainda,
tem o papel de acelerar aproximações, busca espaços democráticos e gera
debates sobre as transitoriedades e apagamentos. É possível visualizar o

23
Para Ben Tufnell, Land Art é a arte como parte do mundo, a arte não como uma adição, mas
vinculada ao mundo.
24 Segundo Miwon Kwon, nos anos 1960, um movimento nomeado site-specific surge como

contraponto ao papel da instituição na arte, de modo que o objeto de arte passa a ser ponderado
em relação ao seu contexto – uma inversão ao moderno no qual a arte tinha fim em si própria.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 137

campo das artes como dispositivo de reflexão e produção de moldes


identitários. Nesse sentido, entendemos que essas intervenções podem
tensionar ações que contrapõem os tradicionais mapas turísticos – aqueles que
reforçam o “desconhecido” no urbano.
Para Peixoto (2004, p. 13), o urbano pode ser definido como “[…] um
horizonte saturado de inscrições, depósitos em que se acumulam vestígios
arqueológicos, antigos monumentos, traços de memória e o imaginário criado
pela contemporaneidade”. Soma-se a isso, a cidade como lugar de encontros e
debates e, portanto, espaço político e cultural. Nesse sentido, tomamos
intervenção artística urbana, para este artigo em específico, a denominação de
manifestação da arte contemporânea realizada em espaço urbano que tem
como um de seus objetivos tensionar as discussões políticas e culturais
presentes envolvendo a sociedade. Quanto às potencialidades da arte nesta
esfera urbana, podemos considerar especialmente a retomada de espaços
invisíveis a partir de intervenções que explicitam os processos de apagamento
de histórias – novas projeções.
As intervenções urbanas, quando temporárias, tiram partido da
condição dinâmica e não duradoura dos eventos e relações contemporâneos
e, por este modo de operação mutável, extrapolam o olhar que se perde no
conjunto de informações cotidianas. Conforme Chase, Crawford e Kaliski
(1999, p. 181), para além do desenho formal e do planejamento oficial, o
“urbanismo cotidiano” também atua na formação da cidade.
Ainda sobre o reconhecimento e retomada destes lugares invisíveis, La
Varra (2008, on-line) utiliza o termo Post-it City para definir uma rede de
espaços não apropriados, ignorados ou abandonados pelos usos atuais da
cidade formal. Como o post-it, que interfere e se destaca em relação à um
padrão, reativa espaços de encontro retomando o tecido urbano de décadas
passadas, edifícios abandonados, lotes vazios e outros vazios urbanos de modo
temporário e alternativo. Ainda, os usos e intervenções espontâneos e
informais são formas de resistência aos padrões da cidade contemporânea, ao
espetáculo e ao consumismo. O post-it também assume seu caráter provisório
e “mesmo após o término do uso temporário, o local da temporalidade
permanece como uma tela de projeção sobre a qual podem ser feitas novas
projeções” (TEMEL, 2006, p. 60) – o mapa de levantamento do estudo de caso
apresentado na sequência revela estas “telas de projeção”. Se o post-it ilustra
138

o caráter momentâneo destas ações, Fontes (2012, p. 35) define o “urbanismo


temporário” como alternativa ao planejamento urbano, onde atividades
temporárias ocupam pontos do planejamento não definidos, enquanto outros
planos não são implementados em uma “pré-transformação” do espaço.
Sobre alternativas ao planejamento com base em intervenções
temporárias, o trabalho de Eduardo Srur, Acampamento dos Anjos (2004)25,
coloca em evidência uma lógica de resistência, um movimento de contrapoder,
a fim de questionar instituições artísticas e estruturas sociais por meio de uma
ação poética. O artista utiliza como “tela de projeção” a obra de um hospital
inacabado localizada na Avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo. O edifício,
pertencente a um órgão estadual e abandonado por mais de uma década, foi
anteparo da intervenção artística que buscou reativar poética e
espiritualmente um edifício que deveria salvar vidas e se encontrava em
situação de abandono. O artista fixou barracas de camping coloridas,
verticalmente na fachada do edifício – uma intervenção em uma obra pública,
um grande volume de concreto visualmente incômodo, disposto na paisagem
urbana que chama atenção para diversos problemas coletivos.
Outra obra constituída por meio do entrelaço com a arte e com a
política, produzida no espaço público e que explicita maneiras outras de
perceber a cidade-abandono é uma projeção do coletivo Bijari para o Valongo
Festival Internacional de Imagem (2018)26. Desde 2016, o Festival acontece em
um bairro histórico da cidade de Santos, configurando-se como uma
importante referência de práticas artísticas e construção de saberes. O coletivo
Bijari colabora com o desenvolvimento de uma atividade provocativa, uma
projeção capaz de conectar diferentes mídias do Festival. Para além da tarefa
expositiva, a intervenção abre espaço também para a denúncia de uma
arquitetura em processo de apagamento, anunciando a presença de ruínas do
bairro histórico e sua potente inscrição no resgate de parte da memória de uma
cidade.

25 Ver: Eduardo Srur. Acampamento dos Anjos. 2002. Disponível em:


https://www.eduardosrur.com.br/intervencoes/acampamento-dos-anjos.
26
Ver: Bijari. Design. Expografia Valongo, 2018. Disponível em:
https://bijari.com.br/design/expografia-valongo/.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 139

A galeria de arte a céu aberto em Salvador, Movimento Urbano de Arte


Livre (MURAL)27, apresenta possibilidades singulares. O projeto cultural 28
concebe um leque de “telas” e painéis para ativar espaços em processo de
apagamento ou pouco valorizados na capital baiana, na região histórica da
Cidade Baixa, contribuindo para outras percepções sobre a região e a história
da cidade.
Os três exemplos de intervenções citados apontam questões políticas e
sociais e buscam resgatar experiências entre espaços urbanos e arte. Este tipo
de ação emancipa questionamentos daqueles que vivem a cidade. Apesar de
existir correlações entre as denúncias, cada intervenção pontuada carrega um
nível de camadas de complexidades a serem absorvidas, sem, contanto,
esgotar os questionamentos comuns.

4 DO RETORNO AOS LIMITES NA “CIDADE SEM LIMITES”

Como artigo empírico, apresentamos uma pesquisa que foi a campo –


anterior à pandemia COVID-19, um processo cartográfico vivenciado pelo
corpo e que observou o ir e vir desconectado dos corpos nos espaços apagados,
para coletar e analisar dados quantitativos e qualitativos a partir do estudo de
caso na cidade de Bauru (São Paulo). Para comprovar o potencial do centro
histórico desta cidade (Figura 1) como área repleta de infraestrutura e histórias
foi realizado um levantamento que compreendeu 182 quadras, 3.257 lotes, 49
ruas e 1.234 fotografias (Figuras 2 e 3), destacando seis categorias de análise
em vazios urbanos: glebas e lotes vazios, lotes subutilizados, edifícios
subutilizados, edifícios históricos (tombados ou não) em uso e edifícios
históricos subutilizados. A partir dos dados coletados foram elaborados mapas
que denunciam, juntamente com o levantamento fotográfico, a situação de
abandono do centro histórico de Bauru, local, portanto, apto a receber
intervenções artísticas nas “telas de projeção” citadas por Temel (2006, p. 60)
com potencial de transformação da atual condição de apagamento das
memórias. Entende-se, aqui, o vazio urbano como espaços que não foram

27 Ver: MURAL – Movimento Urbano Arte Livre. Circuito de arte vertical. Salvador. Disponível em:
https://www.projetomural.art.br/projeto. Acesso em: 27 jun. 2021.
28
Projeto da Trevo Produções, contemplado pelo edital Arte em Toda a Parte – Ano III, da Fundação
Gregório de Matos, da Prefeitura de Salvador.
140

concebidos como espaços livres públicos, sem ocupação e sem uso, áreas
abandonadas, espaços residuais que, por sua improdutividade, têm caráter
negativo no tecido urbano, porém com grandes possibilidades de
transformação (fundos de vale e antigos leitos ferroviários). Já o termo
subutilizado define imóveis e lotes que têm uso e/ou ocupação, ainda que
parciais e temporários, porém, em processo de deterioração, ociosidade,
obsoleto. A partir deste discernimento conceitual, foi desenvolvido um banco
de dados com informações sobre os vazios/imóveis/lotes, originando um
diagnóstico quantitativo de cada categoria na área.

Figura 1 – Imagem aérea destacando a região central de Bauru

Fonte: Marina Frascareli (2022).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 141

Figura 2 – Montagem, em sentido horário: Estação Central de Bauru (subutilizada), hotel


Milanese e estação Paulista (desocupados)

Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).

Figura 3 – Montagem: Bauru Park (desocupado) e Instituto Nacional de Serviço Social (tombado
em 2004 pelo CONDEPAC e subutilizado)

Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).

Bauru é uma cidade de porte médio localizada no centro-oeste paulista,


fundada no fim do século XIX em terras originalmente ocupadas
142

principalmente pelos povos Kaingang e Guarani. No início do século XX, a


cidade começou a ganhar infraestrutura e o incremento populacional
aconteceu especialmente com a chegada da ferrovia, sendo a cidade um
importante entroncamento ferroviário por décadas. Com o extermínio dos
povos nativos (que chamamos de primeiro apagamento, concluído há um
século), o patrimônio considerado histórico está majoritariamente ligado ao
desenvolvimento da ferrovia na região central.
No fim dos anos 1970, Bauru, que nessa época já era chamada de
“cidade sem limites”, dava sinais de um longo processo de espraiamento
urbano com a inauguração dos núcleos habitacionais implantados pela
Companhia de Habitação Popular (Cohab) de Bauru, principalmente nas zonas
leste e depois norte da cidade. A partir dos anos 1990, observamos a expansão
da zona sul, que ocorre de modo acelerado nos anos 2000 com a implantação
dos loteamentos de acesso controlado destinados à população de renda mais
alta, no claro e evidente processo de ajuste espacial (HARVEY, 2004, p. 65) à
brasileira: as classes mais favorecidas economicamente abandonam o centro,
antes local da burguesia fundadora da cidade e agora deteriorado (segundo
apagamento, em trânsito), na busca pelos “condomínios” valorizados pela
expansão do capital.
Se Bauru, como tantas outras cidades brasileiras, vive uma urbanização
difusa, de baixa densidade, com esvaziamento dos centros que abrigam parte
relevante das histórias da cidade tendo a arquitetura como aparato, listamos,
a partir do levantamento in loco, 410 “telas de projeção” (Figura 4), além do
grande vazio indicado em verde, para potenciais intervenções urbanas que
podem contribuir para a reversão do apagamento de memórias. Deste total,
53% são edifícios subutilizados, 28% são lotes subutilizados, 2,6% são edifícios
históricos subutilizados, 14,4% são lotes sem ocupação e 1,4% são edifícios
históricos utilizados.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 143

Figura 4 – As 410 “telas de projeção” na área central de Bauru

Fonte: Marina Frascareli (2022).

A partir desta lista de vazios urbanos foi elaborado um impresso29,


versão preliminar do Guia das “telas de projeção” para histórias apagadas
(Figura 5). Um material para incentivar o conhecimento e reconhecimento de
lugares históricos por parte da população, ampliando a percepção sobre a
memória da cidade antes que seja completamente apagada. Considerando que
as “telas” são interligadas pelo espaço público, que é, por si só, político, este
torna-se lugar bastante apropriado para debater perdas de cultura e
identidade, pois contém uma grande diversidade de perspectivas que o fazem
tão potente. Ainda, a utilização do pré-guia foi sugerida via caminhadas e uso

29Em 2017, este material foi transformado em folheto e distribuído no calçadão da Rua Batista de
Carvalho, importante rua de comércio, localizada na área do levantamento. Os números do
levantamento também foram divulgados em página de rede social.
144

de transporte público e, por isso, também lista as paradas e linhas de ônibus


necessárias para o percurso pelos locais de histórias apagadas (Figura 6).

Figura 5 – Pré-guia com localização dos edifícios históricos com versão impressa no canto inferior
direito

Fonte: Marina Frascareli (2022).

Figura 6. Pré-guia com lista das linhas e paradas de ônibus

Fonte: Marina Frascareli (2022).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 145

É a partir deste reconhecimento dos lugares, suas histórias e a condição


atual destes que intervenções urbanas podem acontecer nas “telas de
projeção”. Mas antes mesmo de colocar intervenção artística como
enfrentamento de políticas de apagamento, o caminhar em questão já emergia
com capacidade interventiva frente aos arranjos que desencarnam a
urbanidade.
Assim, após o difícil ano pandêmico de 2020, que minou oportunidades
de trabalho de tantos artistas e o contato com arte pela população em geral
(cenário que se prolonga terrivelmente em 2021), o pré-guia é estendido para
a comunidade artística como Guia das “telas de projeção” para histórias
apagadas (já que, neste período, o caminhar fica em segundo plano) – uma
possibilidade de reconstruções nos espaços livres, a partir deste preâmbulo da
13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.

5 CONSIDERAÇÕES

A partir das pesquisas e análises realizadas para elaboração do guia,


destacamos algumas observações:
A degradação e apagamento de histórias nas áreas centrais de cidades
de porte médio brasileiras, especialmente no caso de Bauru, tem relação com
a expansão do capital que amplia suas fronteiras na cidade e se reestrutura
geograficamente, seguido por um processo de desvalorização do centro
histórico. Desse modo, novas configurações espaciais surgem como meio de
absorção do capital excedente, na lógica do ajuste espacial como solução
temporária para as crises. Em tempos de pandemia, nota-se a fuga e
potencialização do esvaziamento do centro e a busca pelas novas
configurações espaciais afastadas a partir de um entendimento equivocado de
que são espaços verdes/naturais/livres, permanecendo nas áreas
abandonadas os corpos mais vulneráveis.
As possíveis intervenções urbanas, além de denunciar os apagamentos
aqui narrados, podem iluminar possibilidades de transformação e reativar o
uso do espaço público, contribuindo para a reversão das histórias apagadas e
da degradação urbana decorrente do esvaziamento das áreas centrais.
146

O guia, por sua vez, pode fundamentar debates entre população,


artistas e poder público em prol de um resgate de memórias, revelando
questões históricas e possibilidades de intervenção, uso e ocupação das
cidades. Importante destacar que a relevância histórica não considera apenas
as histórias contadas, nesse sentido as intervenções artísticas têm papel
fundamental para revelar as memórias soterradas pelas histórias dos
vencedores, “[…] é o que nos resta para resistir à barbárie representada pelo
memoricídio e pelo revisionismo, que afetam políticas governamentais,
instituições, povos, fatos científicos e a própria história” (BEIGUELMAN, 2019)
– para uma reversão do apagamento de histórias e conexões memórias/corpos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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da matriz colonial. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 12, n. 24, 2012. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v12n24/v12n24a08.pdf. Acesso em: 26 jun. 2021.
ARGAN, G. C. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
BEIGUELMAN, G. Memória da amnésia: políticas do esquecimento. São Paulo: Edições Sesc,
2019.
CARLOS, A. F. A. A virada espacial. Mercator, Fortaleza, 2015. Disponível em:
https://doi.org/10.4215/RM2015.1404.0001. Acesso em: 25 maio 2021.
CHASE, J.; CRAWFORD, M.; KALISKI, J. Everyday urbanism. Nova York: The Monacelli Press, 1999
FONTES, A. S. Intervenções temporárias marcas permanentes na cidade contemporânea.
Arquitetura Revista, v. 8, 2012.
HARVEY, D. The ‘new’ imperialism: accumulation by dispossession. Socialist Register, v. 40, 2004.
HARVEY, David. Urbanização incompleta é estratégia do capital. Entrevista para a Federação
Nacional dos arquitetos e urbanistas, 2013. Disponível em:
<http://www.fna.org.br/2013/11/26/david-harvey-urbanizacao-incompleta-e-estrategia-do-
capital/>. Acesso em: 20 de maio de 2021.
KWON, M. One place after another. Site-specific art and locational identity. London: The MIT
Press, 2002.
LA VARRA, G. Post-it city: el último espacio público de la ciudad contemporánea. In: PERAN, M.
Post-it city: ciudades. Madrid: Turner, 2008. p. 180-181.
MILES, M. Uma cidade pós-criativa. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 99, 2012.
Disponível em: http://journals.openedition.org/rccs/5091. Acesso em: 25 maio 2021.
ROLNIK, R. et al. O Programa Minha Casa Minha Vida nas regiões metropolitanas de São Paulo e
Campinas: aspectos socioespaciais e segregação. Cadernos Metrópole, São Paulo, 2015.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3306. Acesso em: 25 maio 2021.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 147

PEIXOTO, N. B. Paisagens urbanas. São Paulo: Editora Senac, 2004.


TEMEL, R. The temporary in the city. In: HAYDN, F.; TEMEL, R. Temporary urban spaces: concepts
for the use of city spaces. Basel: Birkhäuser – Publishers for Architecture, 2006. p. 55-62.
TUFNELL, B. Land art. London: Tate Publishing, 2006.
148
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 149

Capítulo 8

GESTÃO DE RESÍDUOS EM PEQUENAS CONSTRUÇÕES

Mara Regina Pagliuso Rodrigues30


Victoria de Oliveira Rosario31

1 INTRODUÇÃO

O setor da Construção Civil é aquele que para o pleno desenvolvimento


de suas atividades necessita de um alto consumo de materiais e,
consequentemente, gera uma massiva quantidade de resíduos. A elevada
geração de resíduos, com a inadequada disposição dos mesmos, tem grande
potencial de afetar a qualidade de vida da população e de degradar todo o meio
ambiente. De acordo SindusCon (2012), o mau gerenciamento dos Resíduos de
Construção Civil (RCC) é considerado um enorme desperdício econômico, pois
a maior parte desses materiais poderiam passar por um processo de
beneficiamento sendo reciclados ou até reaproveitados, tendo grande apreço
econômico.
SindusCon (2015) expressa que há diversas fontes geradoras de
resíduos dentro do setor da construção civil, porém, cerca de 70% de todo
resíduo produzido é proveniente das pequenas construções, ou seja, de
reformas e da autoconstrução e são, em sua maioria, destinados à coleta
pública de resíduos comuns. Os 30% restantes são produzidos pelo gerador
formal, ou seja, pelas construtoras e empresas de grande porte do ramo.
O impacto ambiental do mau gerenciamento de resíduos requer que os
órgãos públicos elaborem planos, leis e decretos que estabeleçam as diretrizes
para uma correta gestão desses materiais, a fim de possibilitar um

30 Doutorado, professora com dedicação exclusiva no Instituto Federal de Educação, Ciência e


Tecnologia de São Paulo, Campus Votuporanga. E-mail: mara@ifsp.edu.br
31 Bacharel em Engenharia Civil no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São

Paulo, Campus Votuporanga. E-mail: victoria.oliveira@aluno.ifsp.edu.br


150

ordenamento urbano e melhorar as condições de saúde e saneamento das


cidades. Em 2002, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) publica
a Resolução 307 que se torna a principal diretriz para o setor público e privado
para gestão de resíduos. Em 2010, é aprovada a Política Nacional de Resíduos
Sólidos (PNRS), que possibilita a elaboração de planos municipais e planos
específicos para cada obra.
A cidade de Votuporanga, foco principal deste estudo, está localizada
na região noroeste do Estado de São Paulo (como retratado na Figura 1),
distante cerca de 539 km da capital do Estado e 82 km da cidade de São José
do Rio Preto, grande polo emergente no interior paulista. Notou-se que houve
nos últimos anos na cidade um intenso desenvolvimento no setor da
construção civil e, consequentemente, um aumento proporcional na
quantidade de resíduos gerados por essas atividades.

Figura 1 – Localização da cidade de Votuporanga em relação ao Estado de São Paulo

Fonte: Google Earth Pro (2022).

Votuporanga, de acordo com os estudos para a elaboração da


publicação SindusCon (2012), foi avaliada como uma cidade que possui uma
gestão de resíduos de construção civil mediana e, a partir do diagnóstico feito
para a elaboração do Plano Municipal de Gerenciamento de Resíduos Sólidos,
é evidente que o descarte irregular (em vias públicas, encostas de rios e
terrenos vazios) de RCC é um grande problema para a cidade, pois causa danos
ambientais, riscos para toda a população (principalmente de saúde pública por
serem locais para criadouros de agentes transmissores de diversas doenças,
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 151

como a dengue) e custos para a Administração Pública. Admite-se para tanto,


a necessidade de implementação de ações efetivas para o aprimoramento da
gestão desses resíduos.
2 CLASSIFICAÇÃO DOS RESÍDUOS DE CONSTRUÇÃO CIVIL

De acordo com a Norma Brasileira (NBR) 10.004, de 2004, da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) sobre “Resíduos Sólidos – Classificação”,
os resíduos sólidos são classificados como:

a) Resíduos classe I: Perigosos;


b) Resíduos classe II: Não perigosos;
● Resíduos classe II A: Não inertes;
● Resíduos classe II B: Inertes.

Os resíduos de construção civil se enquadram de modo geral na classe


“Resíduos classe II B: Inertes” como os tijolos, concretos e argamassas, mas há
também materiais utilizados na construção civil em outras classificações como
os restos de tintas que são resíduos perigosos e o gesso classificado como
material não inerte.
A partir da classificação da ABNT NBR 10.004/2004, os resíduos de
construção civil são especificamente classificados pela Resolução 307/2002 do
Conama, que “estabelece diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão
dos resíduos da construção civil” da seguinte forma:

a) Classe A: resíduos reutilizáveis ou recicláveis como agregados,


provenientes de obras de infraestrutura e pavimentação como solos,
cerâmicas, argamassas e concretos;
b) Classe B: resíduos recicláveis para outras destinações como plásticos,
papel, papelão, metais, vidros, madeiras, embalagens de tintas vazias
imobiliárias e gesso;
c) Classe C: resíduos que atualmente não têm tecnologias economicamente
viáveis para reciclagem ou recuperação como pincéis, lixas e resíduos de
lã de vidro;
152

d) Classe D: resíduos perigosos como tintas, solventes, aqueles contaminados


oriundos de demolições de clínicas radiológicas e materiais que possuam
em sua composição o amianto.

3 DIRETRIZES PARA PEQUENAS CONSTRUÇÕES

Os geradores de resíduos são quaisquer pessoas jurídicas ou físicas, de


cunho público ou privado responsáveis por atividades que geram resíduos
classificados como de construção civil. Os geradores, de acordo com a
Resolução 307 do Conama, deve ter como prioridade a não geração dos
resíduos, mas se isso não for possível, deve reduzir, reutilizar ou reciclar os
materiais. O Quadro 1 mostra os significados de cada termo apresentado.

Quadro 1 – Definição de termos relacionados a resíduos

Estudo dos Estabelecer uso


Caracteriza-se pelo
Não geração

consciente dos
Reutilização

materiais e suas Reciclagem processo de


Redução

aplicações dentro materiais e realizar É o processo de


a execução dos reaproveito de um
do canteiro de reaplicação de um resíduo após
obra, de forma a serviços com resíduo em outro
ferramentas passar por um
evitar sobras e local, diferente da processo de
assim garantir a adequadas e que sua origem.
permitam a transformação.
não geração de
resíduos. dosagem dos
materiais.

Fonte: Autoria própria (2022).

O papel de um engenheiro na elaboração de um projeto para uma


construção é a capacidade de analisar a eficiência e a relação custo-benefício
dos métodos construtivos que levam a um menor desperdício de materiais ou
até a não geração dos mesmos garantindo uma ou mais diretrizes explicitadas
no Quadro 1. Tentar projetar a casa com uma modulação dependendo do
tamanho dos tijolos ou blocos a serem utilizados ou levando em consideração
o tamanho dos pisos que serão instalados, são exemplos de ações que visam à
ausência ou minimização da geração de resíduos.
Vale lembrar que os resíduos são materiais comprados para serem
usados na obra, mas que não foram utilizados por terem estragado ou até
mesmo sobrado, assim há dois custos envolvidos neste componente, o de
compra e o valor para o descarte. Portanto, a não geração, redução,
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 153

reutilização ou reciclagem dos resíduos dentro de uma construção garante uma


economia por não ter custo para descartar e até mesmo por substituir outro
material que precisaria ser comprado.
O processo de gerenciamento de resíduos pode seguir um roteiro único
e dentro de cada etapa há as especificações dependendo do tipo de resíduo
considerado. O Esquema 1 a seguir mostra o processo geral para a gestão de
resíduos.

Esquema 1 – Processo para gestão de resíduos de construção civil

Classificação e Acondicionamento Destinação


Transporte
Separação Temporário Final

Fonte: Autoria própria (2022).

É importante ressaltar que a gestão de resíduos em uma construção


deve ser pensada e analisada caso a caso previamente ao início das atividades,
visto que cada obra possui suas necessidades construtivas e cada município
oferece formas diferentes de destinação final de RCC direcionando a tipos
específicos de acondicionamento, coleta e transporte dos mesmos.
As pequenas construções são as pequenas reformas, demolições e as
autoconstruções que não necessariamente possuem espaço fixo exclusivo para
a classificação, separação e acondicionamento temporário dos resíduos
gerados. Cabe aos responsáveis por esses tipos de obras a adequação das
ferramentas e recipientes necessários para o tratamento de resíduos dentro
do canteiro de obras (área onde ocorre as operações de apoio para a
construção).
Os tópicos a seguir irão mostrar como é o tratamento de cada classe de
resíduos dentro da cidade de Votuporanga.

3.1 Resíduos classe A

3.1.1 Classificação e separação

A etapa de classificação e separação é aquela onde os materiais são


separados de acordo com a Resolução 307 do Conama, explicada no tópico 2.
É nela que há o entendimento de quais resíduos devem ter separação
154

exclusiva, pelo fato de terem especificações no tratamento e na destinação


final e, se feita corretamente, facilita todas as etapas posteriores.
Os resíduos da classe A são os “entulhos”, aqueles advindos de
construções e demolições como concretos, argamassas, tijolos, blocos, telhas
e materiais cerâmicos, pisos quebrados, meios-fios e solos provenientes de
terraplenagem (retratados na Figura 2). São os materiais que podem ser
recicláveis ou reutilizáveis como agregados para argamassas e concretos sem
função estrutural.

Figura 2 – Exemplo de resíduos classe A

Fonte: Autoria própria (2022).

Esses resíduos devem ser separados dos demais, tendo destinação


consolidada e única. De modo geral, não se obriga a separação dos materiais
pertencentes a essa classe, mas recomenda-se a separação do solo, que pode
ter uma destinação diferente dentro da própria obra ou na etapa final de
reciclagem. Algumas empresas que locam caçambas não aceitam solo
misturado com os outros tipos de materiais, portanto, há necessidade de
separação desse material.

3.1.2 Acondicionamento temporário

O acondicionamento temporário é o ato de guardar um material em


recipiente por tempo determinado, visto que se planeja destiná-lo para um
local adequado. Esse recipiente deve ter tamanho e resistência suficiente para
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 155

as dimensões e o peso do material, além de ser adequado para o transporte,


não trazendo riscos de nenhum gênero.
Os materiais de classe A estão em maior quantidade dentro de um
canteiro, ocupam um grande volume e são muito pesados, portanto, busca-se
locar caçambas (de 3, 4 ou 5 m³) para o acondicionamento desse tipo de
material. Em Votuporanga há diversas empresas que locam caçambas (a
empresa Mejan Ambiental é uma delas como mostra a Figura 3), sendo elas
também responsáveis pelo transporte e destinação final desse material como
será explicado posteriormente.

Figura 3 – Caçambas da Empresa Mejan Ambiental em Votuporanga

Fonte: Autoria própria (2022).

Outra forma de acondicionamento temporário desse tipo de resíduo é


a utilização de sacos de ráfia (Figura 4). Tais recipientes possuem dimensões
variadas que suportam diferentes pesos. O mais comum usado na construção
civil aguenta aproximadamente 35 kg e tem dimensões de 55cm x 80cm. É
necessária uma grande quantidade desse tipo de material para acondicionar
todo o resíduo da obra, portanto, muitas pessoas o utilizam como
complemento ou para transportar o resíduo até a caçamba.
156

Figura 4 – Tipo de saco de ráfia para entulho

Fonte: Brassac (2022).

3.1.3 Transporte

A etapa de transporte dos resíduos é caracterizada pela remoção de


todo o material da obra e transportá-lo para lugares onde serão processados
ou até diretamente reaplicados em seu destino final. Deve-se pensar em uma
logística de transporte que não cause um acúmulo de material dentro da obra
e que não cause impacto negativo no trânsito local.
Para os resíduos classe A armazenados em caçambas, o transporte é de
responsabilidade das próprias empresas de locação por meio de caminhões
específicos, como mostra a Figura 5. O transporte dos sacos de ráfia é, em sua
maioria, feito por carros das próprias pessoas que estão reformando ou
construindo, já que vão ser destinados ao equipamento público que se
encarregará da destinação final desse material.

Figura 5 – Caminhão poliguindaste para caçambas

Fonte: Soluções (2022).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 157

3.1.4 Destinação final

A fase de destinação final dos resíduos de construção civil é a etapa pela


qual os materiais passam por processos que possibilitam uma nova utilização
após o seu tratamento, são armazenados até que tenham um fim correto ou
até destinados como lixo, sem qualquer perspectiva de utilização futura. Com
o tratamento do RCC tem-se a redução da poluição local pela diminuição da
quantidade de resíduos descartados irregularmente e com a aplicação do
resíduo tratado temos uma redução no uso de recursos naturais tornando as
construções cada vez mais sustentáveis.
Na cidade de Votuporanga, os resíduos da classe A, quando não são
armazenados em caçambas, são destinados aos chamados ECOTUDOs. Os
ECOTUDOs são equipamentos públicos patenteados pela cidade de
Votuporanga destinados ao recebimento, classificação, separação, transporte
e destinação final dos resíduos sólidos domiciliares, ilustrados na Figura 6.

Figura 6 – ECOTUDO Sul localizado em Votuporanga

Fonte: Autoria própria (2022).

É um projeto implantando pela empresa Saev Ambiental na cidade de


Votuporanga que traz grandes benefícios ambientais para a cidade como a
redução da poluição física e visual, além da redução da quantidade de resíduos
destinada para os aterros, aumentando a vida útil desses equipamentos.
Todas as classes de resíduos de construção civil são recebidas pelos
ECOTUDOs. O entulho pode ser jogado na caçamba com um máximo de 1m³,
ou seja, aproximadamente 1/3 do volume de uma caçamba comum (locada
158

com a empresa Mejan Ambiental). Para volumes maiores há uma gigante pilha
de entulho que é destinada para a recuperação de estradas rurais. A Figura 7
mostra as caçambas e a pilha onde são colocados os resíduos classe A logo
quando chegam ao ECOTUDO.

Figura 7 – Forma de acondicionar RCC nos ECOTUDOs

Fonte: Autoria própria (2022).

Para o transporte e destinação final dos materiais recebidos, o


ECOTUDO possui convênio com diversas empresas que se responsabilizam por
essas etapas finais. A empresa Mejan Ambiental se encarrega pelo tratamento
do entulho, os metais são levados para o ferro-velho, as madeiras são
trituradas, os plásticos e papelões são levados para as cooperativas, os vidros
são comprados por uma empresa que faz a reciclagem e as lâmpadas possuem
sua logística reversa.
Os resíduos de classe A armazenados em caçambas têm seu transporte
e destinação final sob responsabilidade da empresa que as locam. O material
coletado nas caçambas é levado para as áreas de transbordo (ATT), de
propriedade da empresa Mejan Ambiental, localizadas na cidade de
Votuporanga, conforme retratada na Figura 8. Neste local o material é
classificado e separado, além de ser armazenado temporariamente antes de
uma destinação.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 159

Figura 8 – Área de transbordo da empresa Mejan Ambiental

Fonte: SAEV (2022).

Parte desses resíduos é levada para a Usina de Reciclagem de RCC,


anexa à área de transbordo, onde possui um britador (Figura 9) com
capacidade de reciclagem de aproximadamente 25 toneladas de resíduos por
hora, reciclando de 60 a 70% do volume recebido na área de transbordo. Os
resíduos são triturados para atingir granulometrias menores e posteriormente
podem ser utilizados como agregados em concretos e argamassas sem função
estrutural ou aplicados na recuperação de estradas rurais.

Figura 9 – Britador da empresa Mejan Ambiental

Fonte: SAEV (2022).

O resíduo triturado e a outra parte dos resíduos que chega à área de


transbordo são armazenados no aterro de inertes (anexo à ATT e de
propriedade da empresa Mejan Ambiental). O primeiro aguarda sua posterior
utilização na indústria da construção civil e o segundo é armazenado para a
160

posterior britagem. A Figura 10 mostra a delimitação aproximada da ATT, do


aterro de inertes e do britador.

Figura 10 – Delimitação aproximada da ATT, do aterro de inertes e do britador

Fonte: Google Earth Pro (2022).

3.2 Resíduos classe B

3.2.1 Classificação e separação

Os resíduos de classe B são aqueles compostos por materiais recicláveis,


como os metais, plásticos, papéis, papelões, vidros, madeiras, entre outros que
advêm de embalagens de produtos ou da própria atividade da construção.
Como proposto para todos os tipos de resíduos, é importante que haja a análise
de reutilização desse material dentro do próprio canteiro de obra, em
construções provisórias, sinalizações, baías para armazenagem de resíduos e
materiais, entre outros. Caso não haja possibilidade devemos destinar
adequadamente tais materiais. A Figura 11 ilustra alguns resíduos
pertencentes a essa classificação.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 161

Figura 11 – Resíduos de construção civil de classe B

Fonte: No minuto (2022).

Os resíduos de classe B, por incluírem diversos materiais recicláveis,


devem ser separados por tipos, haja vista que diferentes materiais são tratados
por empresas diferentes, como é o caso do gesso, que passou a integrar a
classe B após a Resolução do Conama 431/2011. Desta forma, entende que se
devem separar os resíduos entre papéis, metais, madeiras, plásticos, vidros,
entre outros. A Figura 11 mostra muito bem a separação entre metais, plásticos
e papéis em um canteiro de obras.

3.2.2 Acondicionamento temporário

Como é entendido por todos, os resíduos de classe B são mais leves que
os volumes de classe A, podendo ser armazenados em recipientes menos
resistentes e robustos.
O primeiro recipiente recomendado são os chamados big bags, que são
sacos de ráfia grandes que armazenam um considerável volume de resíduos de
classe B (Figura 12). A partir do que foi dito no tópico anterior, deve separar os
materiais quanto aos vários tipos de resíduos classe B.
Até dentro dessa classificação pode haver outra quanto à forma de
destinação final específica de um resíduo, como é o caso de empresas com
logística reversa (conjunto de ações e procedimentos com intuito de coletar e
restituir os resíduos para a empresa responsável para um reaproveitamento
desse material). Desta forma, é recomendado um bag para cada tipo específico
de material.
162

Figura 12 – Big bags para armazenamento de resíduos de classe B

Fonte: Autoria própria (2022).

Os bags devem estar apoiados em suportes específicos para esses


recipientes, na maioria das vezes metálicos, em madeira ou plásticos de modo
a facilitar o despejo de resíduos e para a segurança de todos na construção. A
Figura 13 mostra o bag em suporte de madeira.

Figura 13 – Bags em suporte de madeira

Fonte: Autoria própria (2022).

O segundo tipo de recipiente são as baias para o acondicionamento de


resíduos que podem ser feitas em alvenaria ou até por madeiras (importante
ressaltar a ideia de reutilizar os resíduos para a construção desses recipientes).
Seguem as mesmas recomendações dos bags para cada tipo de material, além
disso podem ser móveis (Figura 14) ou fixas dentro do canteiro de obras.
Considerando pequenas construções, as mais viáveis são as baias
móveis, visto que as fixas ocupam grande espaço e são de difícil demolição,
gerando novamente um volume de resíduos. Para posterior transporte, os
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 163

resíduos das baias são armazenados em sacos de ráfia ou até em bags para
serem transportados.

Figura 14 – Baias acondicionamento de resíduos classe B

Fonte: Mettzer (2022).

Outra forma de acondicionamento de menor volume e que pode ser


disposta em vários lugares da obra, são as bombonas plásticas azuis, ilustradas
na Figura 15. São em menores dimensões, mas de grande utilidade que
funcionam como recipientes intermediários locados dentro da própria
construção, facilitando o trabalho do profissional que não precisa realizar
grandes deslocamentos para descartar os resíduos. Também deve ter uma
bombona para cada tipo de resíduo, facilitando o descarte final desses
materiais. Geralmente, os resíduos das bombonas são lançados nos bags ou
nas baias localizadas nos canteiros de obras.

Figura 15 – Bombonas destinadas para o acondicionamento de resíduos de classe B

Fonte: Souza (2007, p. 32).


164

3.2.3 Transporte

Os resíduos acondicionados em bags são transportados por caminhões


com guinchos específicos para esse tipo de recipiente, como mostra a Figura
16. Os resíduos das baias e das bombonas são transportados pelos carros das
próprias pessoas que estão reformando ou construindo, já que vão ser
destinados ao equipamento público que se encarregará da destinação final
desse material.

Figura 16 – Caminhão para transporte de bags

Fonte: Campo Vivo (2020).

3.2.4 Destinação final

Os resíduos que não são armazenados em caçambas são, em sua


maioria, destinados aos ECOTUDOS, pontos de entrega gratuitos citados no
tópico 3.1.4. Nesses lugares os resíduos serão classificados, separados e pelo
convênio dos ECOTUDOs serão destinados de forma adequada, possibilitando
seu reaproveitamento. Podem também ser destinados diretamente para
cooperativas que darão o tratamento correto.

3.3 Resíduos classe C

3.3.1 Classificação e separação

Os resíduos de classe C são os materiais que não têm tecnologias


específicas para o seu tratamento e transformação. São os pincéis, as lixas,
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 165

resíduos de lã de vidro e outros. A Figura 17 retrata alguns tipos dessa classe


de resíduos.

Figura 17 – Exemplos de resíduos de classe C

Fonte: Autoria própria (2022).

Em sua maioria, são materiais recicláveis, mas que entraram em contato


com algum material como tintas, vernizes, gesso, massa corrida e têm,
portanto, resquícios de algum material. Esses resíduos devem ser separados
dos demais pelo seu tipo de destinação.

3.3.2 Acondicionamento temporário

Os recipientes destinados para o acondicionamento desse tipo de


resíduo podem ser aqueles de menores dimensões, visto que não são em
grandes quantidades na construção em comparação aos resíduos de classe A e
B. Desta forma, os bags e as bombonas são os recipientes mais apropriados
para o acondicionamento desses materiais. O tópico 3.2.2 explicita
detalhadamente as condições necessárias para esses recipientes.

3.3.3 Transporte

São transportados da mesma forma que os resíduos de classe B,


portanto, o tópico 3.2.3 explica detalhadamente como realizar essa etapa com
eficiência.
166

3.3.4 Destinação final

O tópico 3.1.4 relata como devem ser destinados os resíduos de classe


C.

3.4 Resíduos classe D

3.4.1 Classificação e separação

Os resíduos de classe D são aqueles considerados perigosos à saúde


pública ou ao meio ambiente, contêm materiais contaminantes ou
componentes prejudiciais em sua composição, como ilustra a Figura 18.
Portanto, para realizar a classificação e a separação desses materiais o
profissional deve usar equipamentos de proteção individual (EPI) de forma a
evitar a contaminação. Além disso, é uma classe de resíduos que deve ser
separada dos demais, visto que o contato com outros resíduos causa a
contaminação dos mesmos.

Figura 18 – Telhas de amianto pertencentes à classe D

Fonte: Autoria própria (2022).

É válido ressaltar que os materiais de classe D podem ser de todos os


tipos, aqueles inclusos na classe A (advindos de construções e demolições
como concretos, materiais cerâmicos, meios-fios entre outros), na classe B
(materiais recicláveis) e na classe C (pincéis e lixas), mas que estão
contaminados por algum produto.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 167

3.4.2 Acondicionamento temporário

Os tipos de acondicionamento desses resíduos podem ser de todas as


formas citadas até agora, em caçambas, sacos de ráfia, bags, baias e bombonas,
mas devem ser exclusivos para esses resíduos pelas suas características de
inflamabilidade, corrosividade, toxicidade, patogenicidade, carcinogenicidade
entre outros. Portanto, tudo que é citado nos tópicos 3.1.2, 3.2.2 e 3.3.2 vale
para este tipo de resíduo.

3.4.3 Transporte

São transportados da mesma forma que os resíduos de classe A e B,


portanto, os tópicos 3.1.3 e 3.2.3 explicam detalhadamente como realizar essa
etapa com eficiência.

3.4.4 Destinação final

Os resíduos que não são armazenados em caçambas são, em sua


maioria, destinados aos ECOTUDOS, pontos de entrega gratuitos citados no
tópico 3.1.4. Nesses lugares os resíduos serão classificados, separados e pelo
convênio dos ECOTUDOs com diversas empresas, serão destinados de forma
adequada possibilitando seu reaproveitamento.
Os resíduos armazenados em caçambas serão destinados para a área de
transbordo pertencente à empresa Mejan Ambiental, onde também são
classificados, separados e destinados adequadamente.

4 VISITAS

Após algumas visitas em obras da cidade de Votuporanga é notável que


grande parte dos construtores fazem a separação dos RCC, geralmente para
reutilizar os melhores resíduos em outras obras. Porém, um dos únicos
recipientes utilizados para o acondicionamento de resíduos são as caçambas,
nas quais alguns colocam apenas o entulho e outros já misturam diversas
classes de resíduos. Quando há separação, as madeiras, papéis, plásticos,
168

vergalhões de aço e outros materiais são deixados em terrenos vizinhos vazios


ou dentro da própria obra até juntar certa quantidade para ser levada ao
destino final. O Quadro 2 mostra a disposição de resíduos em uma obra.

Quadro 2 – Disposição dos resíduos em uma obra

Fonte: Autoria própria (2022).

A grande maioria dos construtores conhece os ECOTUDOs e as


cooperativas que fazem a coleta e a destinação correta dos resíduos, mas
também há casos de a pessoa desconhecer esses serviços ou até mesmo ter a
ideia de que há cobrança de alguma taxa pelo descarte. Isso faz com que ela dê
um destino próprio aos resíduos como a queima da madeira, papéis e plásticos
ou até mesmo o descarte em lixo comum.

5 CONCLUSÃO

A situação das obras em Votuporanga revela um desconhecimento geral


da população quanto aos riscos que a má disposição dos resíduos dentro da
própria obra pode causar. Deixá-los dentro da construção, sem nenhuma
organização quanto aos recipientes adequados pode causar acidentes e uma
perda de material por desconhecimento do que pode ser útil.
É de extrema importância a divulgação de como realizar o
gerenciamento correto dos resíduos de construção civil, inclusive os meios
disponíveis na cidade para a destinação final dos mesmos e os benefícios
resultantes dessa ação. Alguns benefícios intrínsecos da gestão de resíduos são
listados a seguir:
• Mitiga os impactos ambientais.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 169

• Melhora as condições de saúde pública.


• Reduz os custos na compra de matéria-prima para a obra.
• Reduz os custos para o transporte e destinação final dos resíduos.
• Reduz a quantidade de acidentes dentro de um canteiro de obras.
• Torna a obra mais sustentável.

Vale ressaltar a ausência de estudos e aplicações reais dos resíduos de


classe A, há um acúmulo desse material, mas não há aplicação do mesmo após
ser coletado. A partir da análise do que é necessário para garantir que se tenha
uma gestão de resíduos eficiente, cartilhas e palestras com a população se
tornam estratégias válidas para levar conhecimento prático a toda a
população.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 10004: Resíduos Sólidos -


Classificação. Rio de Janeiro: ABNT, 2004.
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https://www.brassac.com.br/fios-e-linhas-para-sacaria/. Acesso em: 10 abr. 2022.
CAMPO VIVO. Utilização de big bag aprimora o trabalho dos produtores de café. [2020].
Disponível em: https://campovivo.com.br/cafeicultura/utilizacao-de-big-bag-aprimora-o-
trabalho-dos-produtores-de-cafe/. Acesso em: 14 maio 2022.
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (CONAMA). Resolução 307/2002, de 05 de julho de
2002. Estabelece diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão dos resíduos da construção
civil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2002. Disponível em:
https://www.unifesp.br/reitoria/dga/images/legislacao/residuos2/CONAMA_RES_CONS_2002_3
07.pdf. Acesso em: 20 maio 2002.
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (CONAMA). Resolução 431/2011, de 24 de maio
2011. Altera o art. 3º da Resolução 307, de 5 de julho de 2002, do Conselho Nacional do Meio
Ambiente-CONAMA, estabelecendo nova classificação para o gesso. Brasília: Ministério do Meio
Ambiente, 2011. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=114767. Acesso
em: 20 maio 2002.
FERREIRA, A. L. C. Gestão dos resíduos sólidos na construção civil: um estudo de caso na REGAP.
2013. Monografia (Curso de Especialização em Construção Civil) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2013. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-
9LEQ6H. Acesso em: 10 maio 2022.
FUTURE ENGENHARIA. Plano municipal de gerenciamento integrado de resíduos sólidos -
PMGIRS. Votuporanga: FUTURE, 2019.
GOOGLE. Google Earth. Disponível em: http://earth.google.com/. 2009.
170

METTZER. Implementação da NR-18 no canteiro de obras. Disponível em:


https://www.mettzer.com/hub/projects/implementacao-da-nr-18-no-canteiro-de-obras-
60c8778eb17df60018aba167. Acesso em: 12 maio 2022.
NO MINUTO. Construção civil sustentável: uma boa ideia a ser seguida. [2011]. Disponível em:
https://nominuto.com/noticias/economia/construcao-civil-sustentavel-uma-boa-ideia-a-ser-
seguida/75212/. Acesso em: 12 abr. 2022.
REVISTA ELETRÔNICA EM GESTÃO, EDUCAÇÃO E TECNOLOGIA AMBIENTAL. Santa Maria, Centro
de Ciências Naturais e Exatas (UFSM), 2015. ISSN 2236-1170 versão online. Disponível em:
https://periodicos.ufsm.br/reget. Acesso em: 27 maio 2022.
SAEV AMBIENTAL. Ecotudo. Disponível em: https://www.saev.com.br/ecotudo-1#. Acesso em: 10
abr. 2022.
SINDICATO DA INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO CIVIL NO ESTADO DE MINAS GERAIS. Alternativas
para a destinação de resíduos da construção civil. 3. ed. Belo Horizonte: Sinduscon-MG, 2014.
SINDICATO DA INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO CIVIL NO ESTADO DE SÃO PAULO. Gestão ambiental
de resíduos da construção civil - avanços institucionais e melhorias técnicas. São Paulo:
Sinduscon-SP, 2015.
SINDICATO DA INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO CIVIL NO ESTADO DE SÃO PAULO. Resíduos da
construção civil e o estado de São Paulo. São Paulo: Sinduscon-SP, 2012.
SOLUÇÕES INDUSTRIAIS. Produtos relacionados. Disponível em:
https://cargas.solucoesindustriais.com.br/. Acesso em: 10 abr. 2022.
SOUZA, P. C. M. Gestão de resíduos da construção civil em canteiros de obras de edifícios
multipiso na cidade do Recife/PE. João Pessoa, 2007.
VOTUPORANGA (SP). Diagnóstico dos resíduos da construção civil no município de Votuporanga
[Plano municipal de gerenciamento de resíduos da construção civil]. Prefeitura de Votuporanga,
ago. de 2012.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 171

Capítulo 9

PROTEÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL:


CONTRIBUIÇÕES DA ARQUITETURA PARA VISITAÇÃO NO
AROUCA GEOPARK

Gustavo Reis Machado32


Luciana Cordeiro de Souza Fernandes33
Claudio Lima Ferreira34

1 INTRODUÇÃO

Os geoparques se tornaram uma importante estratégia de


geoconservação, não apenas por sua contribuição na conservação do
patrimônio geológico, mas também por trazer uma visão holística de proteção,
educação e desenvolvimento sustentável ao território.
Com o intuito de demonstrar a importância da proteção do patrimônio
natural e material, este trabalho se propôs a discutir, com uma revisão
transdisciplinar, as contribuições da arquitetura na visitação em território de
geoparque, ilustrado a partir dos processos de conservação aplicados no
Arouca Geopark.
O Arouca Geopark está localizado no concelho de Arouca, o qual integra
a região metropolitana do Porto, região Norte do distrito de Aveiro - Portugal,

32 Doutorando em Arquitetura, Tecnologia e Cidade – FECFACU/UNICAMP, Mestre em Ensino e


História das Ciências da Terra – IG/UNICAMP. Docente na Universidade Anhembi Morumbi e na
Faculdade UNA de Pouso Alegre. gustavo.reism1@gmail.com
33 Doutora em Direito – PUC São Paulo. Docente no Programa de Pós-graduação em Ensino e

História das Ciências da Terra – IG/UNICAMP e na Faculdade de Ciências Aplicadas –


FCA/UNICAMP. luciana.fernandes@fca.unicamp.br
34 Pós-doutorado pela Universidade Mackenzie, Doutor em Artes – IA/UNICAMP. Docente no

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade FECFAU/UNICAMP e no Instituto


de Artes – UNICAMP. limacf@unicamp.br
172

e possui 22.359 habitantes (2001), distribuídos por 16 freguesias e a sede.


Ocupa um território com uma área equivalente a 328 km², que corresponde à
área administrativa do Concelho de Arouca (INE, 2012).
Integrado à Rede Global e Europeia de Geoparques (GGN e EGN) no ano
de 2009, esse geopark está inserido em uma região montanhosa, com cotas
que transitam entre 200m até 1.222m acima do nível do mar, o Arouca
Geopark conta com 41 geossítios de interesse geológico, reconhecidos pelos
seus valores científicos, didáticos e/ou turísticos, além de outros atrativos
como a biodiversidade, a arqueologia e seu patrimônio histórico-cultural
(ROCHA et al., 2010).
Com o propósito de realizar um desenvolvimento sustentável em todo
território arouquense, foram elaboradas estratégias que visam a proteção,
dinamização e uso dos geossítios em profícua integração com outros
elementos do patrimônio natural e cultural, como florísticos e faunísticos, os
ecológicos, os arqueológicos e os histórico-culturais (ROCHA et al., 2010),
notadamente do geoturismo.
O geoturismo tem ganhado novos formatos e alcançado cada vez mais
pessoas, considerado como uma prática ao lazer, possui grande vocação
econômica. Promove o deslocamento das pessoas pelo território, articulando
o desenvolvimento de novas propostas no âmbito político, cultural, social e
econômico.
Sendo um dos segmentos mais recente do turismo, essa atividade
pressupõe a apreciação e a geoconservação do patrimônio geológico de uma
determinada região, de maneira a garantir que os visitantes possam ter o lazer
atrelado ao conhecimento sobre o local visitado.
Beni (2003) defende que o geoturismo está inserido no conceito mais
abrangente do turismo sustentável, que envolve a compreensão dos impactos
turísticos; distribuição justa de custos e benefícios; geração de empregos locais
diretos e indiretos; fomento de negócios lucrativos; injeção de capital com
consequente diversificação da economia local; interação com todos os setores
e segmentos da sociedade; desenvolvimento estratégico e logístico de modais
de transporte; encorajamento ao uso produtivo de terras tidas como marginais
(turismo no espaço rural); subvenções para os custos de conservação
ambiental (BENI, 2003).
Seguindo o autor, o turismo sustentável tem como característica:
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 173

● Respeitar os destinos turísticos pela aplicação de estratégias de


gestão de modo a evitar modificações nos habitats naturais, no
patrimônio cultural e paisagístico e na cultura local;
● Conservar os recursos e minimizar a poluição, o lixo, o
consumo energético e o uso de água;
● Respeitar a cultura local e as tradições;
● Promover a qualidade em detrimento da quantidade; o
sucesso é medido não em termos do número de turistas, mas
sim por outros dados como a duração da estadia, a distribuição
do dinheiro gasto e a qualidade da experiência quer para os
turistas como para os seus anfitriões.

Hose (1995) entende o geoturismo como sendo uma atividade de


serviço que facilita a interpretação de um determinado sítio geológico ou
geomorfológico, dando ao visitante a compreensão e a aquisição de
conhecimento em vez da simples apreciação estética.
O geoturismo é responsável por um crescente número de visitações no
Arouca Geopark, que leva o turista a experienciar as atividades promovidas
pelo geoparque, o que resulta, num crescimento econômico local e regional
que movimenta hotéis, restaurantes e agências de ecoturismo. Sobretudo no
geossítio denominado “Passadiços do Paiva”, que dentre as diversas
premiações conquistadas, recebeu o prêmio de “Melhor Atração de Turismo
de Aventura do Mundo 2021” pelo 28º World Travel Awards, uma espécie de
Oscar do Turismo (Jornal de Notícias, 2021), gerando renda, trabalho e maior
respeito ao meio ambiente pelos seus habitantes, além de promover o retorno
de muitos portugueses ao município de Arouca, arouquenses que haviam
migrado e emigrado para diversas localidades da Europa e Américas.
Brilha (2009) comenta sobre a importância dos geoparques no contexto
da comunidade local, onde a percepção sobre a sua implantação são máximos
e vão diminuindo gradualmente de acordo com a abrangência (local, regional,
nacional e internacional), conforme ilustrado na Figura 1.
174

Figura 1 - Grau de impacto na sociedade de acordo com os conceitos do Geopark

Fonte: Brilha (2009), adaptado por Machado (2019).

Inúmeras ações são desenvolvidas para garantir a conservação do


patrimônio geológico, todavia esse é um grande desafio. Promover a
geoconservação exige um conjunto de ações sistematizadas que, por sua vez,
envolvem múltiplas áreas do conhecimento.
As práticas desenvolvidas pelo Arouca Geopark conciliam o
desenvolvimento socioeconômico sustentável e a proteção, valorização e
divulgação do patrimônio geológico. Seguindo a proposta da UNESCO para
geoparques, de desenvolver as regiões onde estão instalados, ao mesmo
tempo em que geram consciência coletiva sobre a proteção e conservação do
patrimônio geológico, vale destacar que as metodologias implantadas nos
geossítios do geoparque para proteção e conservação do patrimônio
geológico, são importantes exemplos de geoconservação atrelados ao
geoturismo.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 175

2 EQUIPAMENTOS ARQUITETÔNICOS A SERVIÇO DA VISITAÇÃO

Encarado como um fenômeno, o turismo foi se modificando com o


decorrer das décadas, ganhando novos formatos e se popularizando. Poon
(1993) levanta uma discussão sobre as características de um “velho” e o “novo”
turismo. O velho turismo, apresenta um consumo massificado, baseado em
uma monocultura turística, derivado do turismo 3S 35, porém não consegue se
manter na contemporânea. O novo turismo se baseia no modelo 3L36, nesse
novo modelo o turista busca novas experiências, a aventura, valoriza a cultura
local, rompendo com a concessão massificada, e pendendo para a
complementaridade.

A quantidade de turistas que têm vindo a optar por novas formas de


turismo, recusando ou misturando com o modelo tradicional de turismo
massificado, têm vindo a aumentar. A tomada de consciência dos novos
valores ambientais, associada a novos níveis de exigência, abriu uma
nova janela de oportunidades para práticas mais personalizadas, onde
se procuram valores centrados na qualidade, na cultura e no ambiente
(COSTA; SANTOS, 2018, p. 30).

O novo turista procura as singularidades dos lugares37 turísticos,


valoriza as potencialidades intrínsecas de cada sociedade, é uma figura que
respeita os valores patrimoniais e o meio ambiente local. Busca novas
experiências, aprendizado e vivências. (COSTA, SANTOS, 2018).

35 Sun, Sand and Sea (Sol, Areia e Mar), também conhecido por ser um modelo de turismo
quantitativo. Poon (1993) explica que o turismo velho (old tourism), tornou-se insustentável por:
a) não conseguir se alinhar com as práticas de conservação dos sistemas naturais, tampouco ter
um uso racional dos recursos naturais, b) manifestou-se dentro de um processo de crescimento
em claro prejuízo dos aspectos qualitativos associados, c) não foi equitativo na distribuição dos
dividendos do desenvolvimento turístico, d) não foi capaz de integrar o território e suas
singularidades na oferta turística, produzindo certa homogeneização e a consequente
descaracterização dos destinos turísticos.
36
Landscape, Leisure and Learning (Paisagem, Lazer e Aprendizado) se debruça sobre um modelo
qualitativo, que começou a tomar força nas últimas décadas do século XX.
37 Sentido do lugar – “As pessoas demonstram o seu sentido de lugar quando aplicam o

discernimento moral e estético sobre sítios e locais” (TUAN, 1983).


176

O turismo tem-se vindo a afirmar como uma das mais interessantes


formas de valorização do território (unidades ou conjuntos de paisagens
homogêneas ou heterogêneas). Estas abrangem espaços tão distintos
como: as que se caracterizam pelas baixas densidades ou ausências de
povoamento; as áreas de reserva ecológica que, numa lógica de
complementaridade, aproveitam as suas condições naturais para
aumentar e melhorar a qualidade de vida dos autóctones, com base na
prática da atividade turística; e, ainda, as grandes cidades densamente
povoadas e funcionalizadas. (COSTA; SANTOS, 2018, p. 24).

O processo de globalização trouxe novos valores aos territórios,


conduzindo um novo contexto econômico, definindo-se como maior
protagonismo e se posicionando estrategicamente na criação de novos
produtos e serviços. Dentre as maneiras de valorizar o território, à classificação
de áreas em nível nacional ou internacional, promove terrenos específicos que
podem ser desenvolvidos em prol desse território (RAMOS, 2015).
A criação de geoparques, ligada diretamente à GGN, Rede Mundial, e
dentro desta a uma Rede Europeia, como é o caso do Arouca Geopark,
possibilita a organização suficientemente competitiva nos territórios.

Este processo de afirmação pretende que os geoparques se construam


como estruturas fecundas de sinergias a um nível local, apontando para
a dinamização e operacionalização socioeconômica através da
associação de um coletivo de atores regionais e pressupondo a
prestação de serviços ligados ao turismo. (RAMOS, 2015, p. 185)

Os geoparques são uma importante estratégia, não apenas por sua


contribuição na conservação do patrimônio geológico, mas também por trazer
uma nova visão de desenvolvimento sustentável ao território. Dessa forma, se
compromete a proteger os registros geológicos para as gerações futuras;
promovendo a ciências da Terra, através da educação patrimonial e da
pesquisa e gerando possibilidades de desenvolvimento econômico na região
através de ações ligadas à preservação e à educação.
Rocha et al. (2010) argumentam que:

Num Geoparque estabelecem-se firmes ligações entre a


geoconservação, a educação para o desenvolvimento sustentado e o
turismo/geoturismo. São também fomentadas a construção de novas
infra-estruturas que promovam a conservação do Património Geológico,
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 177

a Educação e o Geoturismo, o desenvolvimento de novos produtos


locais e serviços, o encorajamento do artesanato e do crescimento
económico local e, desta forma, a criação de novas oportunidades de
emprego. (ROCHA et al., 2010, p. 56).

Entende-se por desenvolvimento sustentável38 a promoção da


harmonia entre os seres humanos e entre a humanidade e a natureza,
relacionando abordagens desenvolvimentistas e preservacionistas (WCED,
1987). Possibilita a interação equitativa entre o social e o econômico, esse
último de forma viável com o ambiente, e fecha o ciclo uma relação suportável
entre o ambiente e o social.
O Arouca Geopark possui diversas atividades ligadas a este conceito de
sustentabilidade através do geoturismo, essas agem como centro de atividade
econômica, possibilitando o beneficiamento e promovendo a inserção de
inúmeros atores (público e privado), cada qual apresentando um interesse
diferente, mas todos conscientes de um propósito único, que é a preservação
e conservação do patrimônio natural existente no território.
Dessa maneira, vemos a geodiversidade ao serviço do desenvolvimento:

Na estratégia de desenvolvimento do Arouca Geopark, em


complementaridade com este patrimônio, sítios de interesse ecológico,
arqueológico, histórico e/ou cultural (material e imaterial).
Estabelecem-se firmes ligações entre o geoturismo através do fomento
do desenvolvimento de novos produtos locais e serviços, do
encorajamento do artesanato e do crescimento econômico local e,
desta forma, da criação de novas oportunidades de emprego. (ROCHA,
2016, p. 21).

O diálogo entre a preservação e o desenvolvimento econômico e social


da região, advindo da implantação de um geoparque, pode ser percebido
através das múltiplas formas de turismo aplicadas ao território. O geoturismo
é a aplicação mais presente no território do Arouca Geopark, o qual se mantém
ligado a outras práticas – ecoturismo, turismo de aventura e turismo cultural.

38
O desenvolvimento sustentável em geoparques se posiciona como elemento básico no
desenvolvimento do território dos geoparques e na estrutura da gestão. Tendo o patrimônio
geológico como instrumento presente e de necessidade da população local.
178

A conexão entre o ecoturismo39 e o geoturismo é particularmente mais


forte. Existe uma ligação por utilizarem de uma mesma paisagem (relevo,
minerais, rochas, fósseis etc.), por mais que o ecoturismo tenha o foco na fauna
e na flora, a com intenção de conservação dessa biodiversidade, o meio
abiótico participa desse contexto, condicionando o tipo da vegetação pelo tipo
de solo, altitude do relevo e consequentemente a fauna (MOREIRA, 2014).
A motivação principal para visitação no Arouca Geopark está ligada a
conhecer a natureza e o território (55,3%), enquanto a prática do turismo de
aventura (21%) consiste em uma procura mediana por visitantes, seguida pela
descoberta da cultura local (10,7%) que se mostra como uma tendência menor
(OLIVEIRA; TAVARES; PACHECO, 2019).

A oferta de atrativos, por sua vez, tem se direcionado à promoção das


mais variadas atividades, com diversos modos de participação, sempre
em busca de proporcionar um grande espetáculo, o que torna, muitas
vezes, indiferente a escolha do local onde o evento acontece. Assim,
unem-se à gestão das atividades o ambiente natural e o ambiente
construído, espontânea ou planejadamente produzidos, a fim de
garantir uma oferta capaz de atrair turistas e investimentos. (VARGAS,
2016, p. 15-16).

Nesse sentido, o Arouca Geopark se mostra como um espaço que


oportuniza diversas possibilidades ao visitante, sejam elas de lazer, cultura ou
educação. O que contribui diretamente para a conservação, proteção,
sensibilização e para o desenvolvimento econômico da região. O intercâmbio
entre práticas de sucesso na rede de geoparques (GGN e EGN), também
contribuem para a oferta de produtos e serviços inovadores.
Dentre os importantes achados arquitetônicos no Arouca Geopark,
destacamos o Mosteiro de Santa Maria de Arouca e o Centro de Interpretação
Geológica: Canelas e Casa das Pedras Parideiras.

2.1 Mosteiro de Santa Maria de Arouca

O conceito de patrimônio é discutido desde 1931, na primeira


Conferência Internacional para a Conservação de Monumentos Históricos,

39 Dentro de um contexto voltado ao Turismo de Natureza.


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 179

ocorrida em Atenas. Na ocasião apenas países europeus participaram.


Posteriormente, em 1964, contou com a participação de países de outros
continentes, retomando a discussão em Veneza; mas só em 1979, com a
presença de 24 países de todos os continentes que o conceito de patrimônio
mundial foi definido (KUHL, 2005).
É preciso destacar a importância deste conceito, pois o patrimônio é o
legado que recebemos do passado, vivemos no presente e transmitimos às
futuras gerações. Nosso patrimônio cultural e natural é fonte insubstituível de
vida e inspiração, nossa pedra de toque, nosso ponto de referência, nossa
identidade (UNESCO, 2019).

Figura 2 - Calvário de Arouca: conjunto de seis cruzeiros

Fonte: Patrimônio Cultural, (2019).

A comunhão entre patrimônio – cultural e natural, pode ser expressada


em algumas edificações arquitetônicas de Arouca, um exemplo é o “Calvário
de Arouca”, bem patrimoniado40 que pôde ser observado na Figura 2, que
consiste em um conjunto de seis cruzeiros do século XVII, em granito,

40Categoria: IIP – Imóvel de interesse público, Decreto 37.077, DG, 1ª Série, nº 228, de 29 de
setembro de 1948.
180

construídos sobre um maciço rochoso, junto a um púlpito, também em granito


e com um nicho. Outros três cruzeiros, semelhantes, dispersos por outros
arruamentos, completam o conjunto que compõe uma Via Sacra, que se
iniciava no Mosteiro de Santa Maria de Arouca e terminava no último cruzeiro
(PATRIMÔNIO CULTURAL, 2019).

O Calvário e a Via Sacra foram erguidos pela Confraria do Senhor dos


Passos, instituída na Igreja (hoje Capela) da Misericórdia de Arouca em
1621. Esta irmandade organizava, desde 1626, a procissão da mesma
invocação, que partia do referido templo durante as celebrações da
Quaresma, terminando na Capela do Espírito Santo, junto do Calvário. O
cruzeiro central (restaurado) possui a data de 1627 inscrita no pedestal,
estando o púlpito, por sua vez, datado de 1643. A procissão saiu nos
mesmos moldes até 1855, ano em que se passou a chamar de procissão
do Senhor Morto. Ainda hoje se efectua este cortejo, também
conhecido por procissão dos Fogaréus, na quinta-feira Santa. As
restantes cruzes da Via Sacra encontram-se junto ao Mosteiro de
Arouca, na Rua de Santo António, e na via de acesso ao Calvário, junto a
uma casa senhorial. (PATRIMÔNIO CULTURAL, 2019, s/p).

O concelho de Arouca, hoje com 506 anos, fundado em 1513, têm sua
história associada ao Mosteiro41 de Santa Maria de Arouca, a construção
erguida no século X, por seus fundadores Loderigo e Vandilo, teve origem
humilde com uma pequena moradia, que abrigava religiosos e professores,
tendo como seu primeiro padroeiro São Pedro (PATRIMÔNIO CULTURAL,
2019).
A partir do século XVIII42, o Mosteiro de Arouca passou para a posse da
Coroa, e foi aí que sua comunidade religiosa passou a ser composta por figuras
da realeza, como D. Mafalda, filha do segundo rei de Portugal, D. Sancho I.
Por muitos anos o Mosteiro se fez maior que a vila, a construção em
forma de retângulo possui um eixo maior no sentido norte sul, como pode ser
visto na Figura 3. Com dois volumes retangulares que avançam cortando a

41 Tanto em Portugal como no Brasil, os Mosteiros foram instituições promotoras do fenômeno


urbano, gerando à sua volta aglomerados habitacionais que dependiam das necessidades
monásticas, condicionando e promovendo tanto o desenvolvimento urbano como as instituições
que referenciam a vida pública (ROCHA, 2007).
42 Para Rocha (2007, p. 528), “os Mosteiros impõem no universo português dos séculos XVI, XVII e

XVIII como pólos de desenvolvimento da estrutura e da vivência urbana”.


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 181

regularidade, um a nordeste, onde se localiza a antiga Igreja de S. Bartolomeu


(d), e outro a sudoeste, ocupado pelo celeiro. O centro é interrompido por três
espaços abertos que compõem o seu interior: o pátio norte (a), locado entre
os dormitórios voltados para rua principal e o claustro (b), que se localiza ao
meio e ao pátio sul (c) entre o refeitório e os dormitórios da face sul.

Figura 3 - Vista aérea do Mosteiro de Arouca

Fonte: Google Earth (2019), adaptado por MACHADO (2019).

Com cerca de 5.295 m², a edificação é classificada como um


Monumento Nacional43, foi construída no estilo classicismo romano, mas
sofreu várias intervenções, passando ao barroco. Em seu interior abriga um
Museu de Arte Sacra, com destaque para os elementos em madeira dourada e
o órgão, ainda em funcionamento (REVIVE44, 2019).
A geologia também está presente no patrimônio cultural, uma vez que
as edificações, como exemplo o Mosteiro de Santa Maria de Arouca, Figura 4,

43
Lei de Bases do Património português, 1985.
44O Programa REVIVE é conduzido por uma equipa técnica que integra representantes da Direção
Geral do Património Cultural, da Direção Geral do Tesouro e Finanças, da Direção Geral dos
Recursos da Defesa Nacional e do Turismo de Portugal, I.P., contando, ainda, com o envolvimento
dos municípios de localização dos imóveis, que asseguram, através das condições dos concursos, a
salvaguarda do património classificado ou em vias de classificação e a adequação do tipo de
exploração às necessidades de desenvolvimento de cada região.
182

tem o quartzodiorito de Arouca45, aplicado como material para a sua


construção. Assim como a prática do ecoturismo, o turismo cultural também
se correlaciona como o geoturismo no momento que se utiliza da
geodiversidade encontrada no local como palco para suas atividades.

Figura 4: Ornamentos arquitetônicos em quartzodiorito de Arouca formam as fachadas do


Mosteiro de Santa Maria de Arouca.

Fonte: Machado (2018).


A zona sul do Mosteiro encontra-se sem uso, com cerca de 52
acomodações, possui condições necessárias para ser transformada em um
estabelecimento de acomodações, segundo o Reabilitação, Património e
Turismo – REVIVE (2019).
A busca por essa edificação pelos visitantes está ligada ao seu valor
cultural e pela sua representatividade geológica. Dando à edificação o título de
maior monumento granítico construído em território português 46. A associação
da sua riqueza arquitetônica, cultural, à sua riqueza geológica transforma o
edifício no principal patrimônio cultural do Arouca Geopark.

45 Quartzodiorito de Arouca: corpo circunscrito, de forma elíptica, com orientação WNW-ESSE,


situado em posição central no Geoparque Arouca. Possui Textura fanerítica, de grão médio a
grosseiro. Pode ser encontrado em abundância da região de Arouca, este material pode ser
encontrado na Rota dos Geossítios, G-13: Pedra Cebola, onde é possível verificar a faturação
ortogonal, ainda em estágio inicial.
46 Plano de Dinamização – Arouca e o seu Mosteiro (ALEIXO; SILVA; GOMES, 2005).
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 183

2.2 Centro de Interpretação Geológica: Canelas e Casa das Pedras Parideiras

Em geoparques, Moreira (2014) destaca os museus e centros de


interpretação como bons exemplos relacionados aos aspectos geológicos da
região em que estão inseridos. O Arouca Geopark é equipado com dois centros
de interpretação geológica, sendo eles: o Museu das Trilobites – Centro de
Interpretação Geológica de Canelas (Figura 5), e a Casa das Pedras Parideiras,
(Figura 6).

Figura 5 - Museu das Trilobites – Centro de Interpretação Geológica de Canelas, construído em


ardósia e telhado em xistos

Fonte: Machado (2018).


184

Figura 6 - O Centro de Interpretações Geológicas Casa das Pedras Parideiras, contempla uma
edificação, construída em pedra de mão em dois pavimentos, e graças a um Retrofit permitiu a
instalação de um mini auditório e sala de recepção de turistas; o deck suspenso (à esquerda do
prédio) e as passarelas (ao fundo da imagem) protegem o afloramento de rochas e orientam as
visitas.

Fonte: Machado (2018).

A educação ambiental voltada para a geológica e a geomorfologia, a


UNESCO (2008) destaca o geoturismo em geoparques como importante
ferramenta educacional em nível local e nacional.

O geoturismo é uma forma sinérgica de turismo, onde os elementos da


paisagem e as formas de relevo, juntos, criam uma experiência turística
que é mais rica do que a soma das partes. A atividade proporciona
benefícios econômicos para a população local, além de ter um grande
papel no desenvolvimento regional. O seu desenvolvimento representa
uma parceria entre a população local, o setor privado e o governo. O
progresso dessa atividade pode oferecer aos moradores locais geração
de emprego e renda, bem como o desenvolvimento de competências.
(MEDEIROS; GOMES; NASCIMENTO, 2015, p. 346).
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 185

Como ferramentas de transferências de informação, os geoparques


utilizam de excursões para grupos de estudantes e professores, além de
seminários e palestras para o público visitante. Os espaços, como museus e
centros interpretativos, também se configuram como instrumentos ativos na
educação ambiental, servindo como locais para o desenvolvimento de
programas educativos (UNESCO, 2008).
O Centro de Interpretação Geológica de Canelas reúne uma coleção de
fósseis, encontrados na região ao longo de duas décadas. Os fósseis do período
Ordovícico Médio foram formados há cerca de 465 milhões de anos.
A extração de ardósias da Pedreira do Valério47 colocou em evidência
uma jazida fossilífera48, de onde foram descobertos importantes registros de
uma fauna de invertebrados que vivem às margens sul do paleocontinente
Gondwana49, constituída por trilobites, bivalves, rostroconchas, gastrópodes,
cefalópedes, braquiópodes, equinodermes, hyolítedeos, conulárias,
ostracodos, graptólitos e iconofósseis. Entre os fósseis, o que mais chama
atenção são as trilobites gigantes (Figura 7) classificando esse geossítio como
de interesse internacional.

[...] o registro paleontológico das trilobitas encontradas é importante


não pelo gigantismo alcançado por muitas espécies (as maiores do
mundo), mas também pelo seu estado de preservação. Nesse sentido,
as condições ambientais de então favoreceram as conservações de
mudas de carapaças junto a cadáveres completos de algumas espécies
de trilobitas, de modo que muitos destes fósseis completam o
conhecimento de alguns destes animais fósseis. (ROCHA, 2016, p. 107).

47 Nome popular.
48
Jazida paleontológica ou fossilífera é a designação dada em geologia e paleontologia às
localidades em cujas rochas se conserva, de forma natural, uma quantidade significativa de fósseis.
49 Foi formado durante o período Jurássico Superior, há cerca de duzentos milhões de anos, pela

separação da Pangeia. O supercontinente do sul Gondwana, incluía a maior parte das zonas de
terra firme que hoje constituem os continentes do hemisfério sul, incluindo a Antártida, América
do Sul, África, Madagascar, Seychelles, Índia, Oceania, Nova Guiné, Nova Zelândia, e Nova
Caledónia. (CPRM, 2018).
186

Figura 7 - Coleção paleontológica do Centro de Interpretação Geológica de Canelas, apresenta


fósseis de Trilobites Gigantes, animais extinguidos no final do Período Pérmico (há cerca de 230
milhões de anos), o último período da Era Paleozoóica

Fonte: Machado (2018).

Construído em 2016, o Centro de Interpretação Geológica de Canelas, é


uma instituição privada, que reúne alguns dos exemplares fósseis mais
notáveis encontrados durante a extração de rocha, sendo considerado por
Rocha (2016) como o geossítio de maior importância do Arouca Geopark. Seu
conteúdo geológico engloba paleontologia, estratigrafia, sedimentologia e
paleogeografia. Dentre os usos é classificado como Educativo, Turístico e
Científico (ROCHA, 2016).
Na sua construção foram privilegiados os materiais locais, o uso da
ardósia, do xisto e da madeira, compõe os materiais das paredes e teto da
edificação. Neste caso, o edifício expressa um valor iconográfico, colocando-se
de forma harmônica e equilibrada na paisagem, tomando como função
conservar a memória, incentivando a preservação e a conservação do meio
físico, em seus múltiplos interesses.

Aproveitando os recursos materiais locais, de modo a obter rapidez e


facilidade construtiva, conseguiram criar, com a produção desta
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 187

arquitetura, uma linguagem própria, capaz de expressar uma cultura


arquitetônica local, dominando a técnica de trabalhar a madeira e
criando um repertório arquitetônico rico e singular. (ZANI, 2003, p.8).

A aplicação de materiais e recursos do próprio ambiente, assim como a


tipologia arquitetônica local, aplicada à construção, sugere uma arquitetura
vernacular. Nesse tipo de arquitetura não são reconhecidos estilos
arquitetônicos, mas sim sua tipologia e morfologia, como pode ser observado,
que mostra a tipologia construtiva do local.
A Figura 8 apresenta a aldeia da Paradinha, localizada na freguesia de
Alvarenga, Arouca, um pequeno aglomerado de casas, construídas em sua
maioria com ardósia e xistos, prioriza-se o padrão de residência térrea com
porão e o telhado com duas águas. A comunidade é conhecida pelos visitantes
por sua prainha fluvial, às margens do rio Paiva. A tipologia e a morfologia
dessas edificações tradicionais foram replicadas na concepção do Centro de
Interpretação Geológica de Canelas.

Figura 8 - Vista da aldeia da Paradinha.

Fonte: Machado (2018).

A organização linear e tripartida da edificação remete a um conceito


metafórico, ao retratar na edificação o corpo da trilobita. A primeira e a
segunda parte da edificação possuem dois pavimentos, ambas com um hall de
188

pé direito duplo e mezanino central, na primeira parte: uma recepção e loja


compõem o espaço de voltado à visitação, além de um pequeno dormitório
com banheiro se encontram na área de acesso restrito. Na segunda parte: o
espaço é todo voltado para visitação, onde são expostos os fósseis encontrados
na pedreira. E a terceira parte, abriga um pequeno auditório/cinema, utilizado
para fins educativos dos visitantes.
O projeto urbano e das edificações50, da Casa das Pedras Parideiras –
Centro de Interpretação Geológica (Figura 9), teve como proposta para essa
intervenção arquitetônica um plano e programa de intervenções maior, com o
objetivo de gerar uma sede capaz de oportunizar a valorização da serra, da
floresta e do modo de vida serrano, na região da Aldeia da Castanheira. Houve
uma preocupação em qualificar e respeitar o patrimônio e os equipamentos já
existentes na Vila, ao mesmo tempo a intervenção tratou-se de gerar uma
fonte de economia local, melhor desenvolvida e sustentável.
A via de acesso divide o afloramento rochoso, para cada lado foi
adotada uma maneira diferente de conservação, na parte maior do
afloramento foram instaladas as passarelas, como evidenciado na Figura 10, o
protegendo do pisoteio dos visitantes, e do outro lado uma cobertura garante
a proteção do exemplar das intempéries, (Figuras 11 e 14).
Em uma primeira fase os trabalhos se concentraram na infraestrutura
viária e pedonal, melhorando os acessos aos sítios geológicos contidos no local,
juntamente com a construção de um mirante. Posteriormente tratou-se de
requalificar a construção já edificada no local, o programa de necessidade
contava: com espaços de recepção e loja, auditório com 30 lugares, banheiro,
uma área de amostra de afloramento rochoso coberto e a céu aberto, espaços
que também foram qualificados, o projeto pode ser visto nas Figuras 12 e 13.
(AROUCA GEOPARK, 2017).
Como visto, a intervenção nos remete ao conceito de restauro crítico
proposto por Brandi (2008), seguindo os princípios da distinguibilidade,
reversibilidade e a mínima intervenção. A participação da arquitetura neste
sítio, pode ser entendida como um instrumento qualificador do espaço

50
Elaborado pelo atelier de Arquitetura e Desenho Urbano Pompílio Souto Ltda., situado em
Aveiro, tendo como coordenador e autor o arquiteto e urbanista Pompílio Souto, e como co-
autores os arquitetos: Gil Moreira, Carlos Santos e a estagiária Sandra Couteiro.
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 189

científico, paisagístico e lúdico, ao mesmo tempo que corrobora com a


qualidade de vida das pessoas que ali residem.

Figura 9 - Projecto Geral Urbano na região da Castanheira.

Fonte: Atelier de Arquitetura e Desenho Urbano Pompílio Souto (s/ d).


190

Figura 10 - Passarelas em madeira protegem o afloramento de rocha e permitem uma melhor


visitação ao turista.

Fonte: Machado (2018).

Figura 11 - Deck suspenso permite o acesso a edificação do centro de interpretações e protege o


afloramento rochoso das intempéries e pisoteios.

Fonte: Machado (2018).


Inteligências arquitetônicas e urbanas - 191

Figura 12 - Planta baixa do subsolo da Casa das Pedras Parideiras: 1. Entrada Principal, 2.
Recepção, 3. Exposição, 4. Sanitários, 5. Afloramento das Rochas, 6. Passarelas.

Fonte: Atelier de Arquitetura e Desenho Urbano Pompílio Souto (s/d).

Figura 13 - Planta baixa do pavimento superior da Casa das Pedras Parideiras: 7. Deck e
Cobertura, 8. Bancos, 9. DML, 10 e 11. Informação ao turista e loja de souvenirs e 12. Acessos.

Fonte: Atelier de Arquitetura e Desenho Urbano Pompílio Souto, (s/d).


192

Figura 14 - Vista da passarela do afloramento externo desde o deck de cobertura e a entrada do


centro de interpretação geológica.

Fonte: Machado (2018).

E a educação ambiental está vinculada diretamente à forma de como se


percebe a natureza. Sendo assim, Moreira (2014) sugere que a educação
ambiental seja utilizada para incentivar o interesse da sociedade e de visitantes
pela história da Terra, desenvolvendo uma consciência social que servirá para
a proteção do patrimônio geológico, mas para isso é necessário incluir o
patrimônio geológico em atividades relacionadas ao meio ambiente natural.
A importância dos elementos culturais complementa a oferta turística
dos territórios geoparque e é uma variável fundamental para a sua assunção
como território turístico. As identidades e manifestação da cultura local (a
gastronomia, a arquitetura, as manifestações artísticas) constituem-se como
elementos de valor econômico na configuração produtiva (que pode ser
canalizado para o esforço de preservação e promoção desses elementos),
agregando valor através do turismo, contribuindo para o desenvolvimento
desse território (RAMOS, 2015, p. 201).
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 193

Dentro do território do geoparque é possível encontrar diversas


categorias de patrimônio, tanto cultural quanto natural – patrimônio
geológico, arquitetônico, arqueológico, móvel e imaterial. Choay (2017),
defende que o patrimônio histórico representado pelas edificações é a
categoria que mais se relaciona diretamente com a vida das pessoas. A autora
manifesta que não se pode limitar ao domínio do patrimônio, apenas o edifício
individual, uma vez que pode se apresentar como um aglomerado de
edificações, podendo ocupar a escala da cidade ou até mesmo um conjunto de
cidades.
Brilha (2005) evidencia uma preocupação quanto à relação entre a
sociedade e as questões relativas ao patrimônio geológico. Para o autor, a
sociedade ainda não é sensível aos assuntos relativos à história das ciências da
Terra. Moreira (2014) indica que a atividade de interpretação ambiental deve
ser vista como um facilitador do conhecimento da natureza, por traduzir em
uma linguagem comum das pessoas os fenômenos ocorridos no meio físico.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os objetivos de um geoparque vão além da preservação e conservação


do patrimônio geológico, a proposta provoca uma interação entre a
geodiversidade, biodiversidade e o meio antrópico. Preocupando-se em
envolver o tanto o patrimônio natural quanto o cultural, como estratégia para
conservação do mesmo e para o desenvolvimento socioeconômico do
território.
O fortalecimento das ações desenvolvidas no contexto dos geoparques
se deve graças à sinergia das Redes (GGN, EGN, CPRM e outras) que se colocam
disponíveis para as trocas, enriquecendo o objetivo ao qual se propõem. Além,
é claro, da atuação dos agentes locais (comunidade local e técnica, poder
público e universidades).
O Arouca Geopark se encontra em lugar de destaque em relação às suas
práticas de geoconservação e de desenvolvimento do território, sendo tomado
como objeto de análise neste trabalho. Dotado de um patrimônio geológico e
cultural, e da integração de ambos, o território deste geoparque disponibiliza
uma gama de produtos e destinos turísticos, que paralelamente com as
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medidas de conservação e proteção, potencializam o desenvolvimento


socioeconômico da comunidade.
De forma inovadora, o Arouca Geopark, desenvolve ações de educação,
formação, proteção e sensibilização, para os visitantes, efetivando neste
território a proposta de geoconservação à qual foi submetido. Essas ações são
favorecidas graças aos espaços criados nesse Geopark. Nesse sentido a
arquitetura se torna partícipe no cumprimento dos objetivos propostos pela
UNESCO para os geoparques (conservação, educação e desenvolvimento
sustentável).
Dessa maneira a arquitetura pode ser vista fisicamente envolvida na
infraestrutura e na garantia da conservação dos geossítios, e ou concepção de
diretrizes projetuais, que mesmo sendo utilizadas espontaneamente, garante
sua aplicação sem colocar em risco a integridade do patrimônio geológico.
A arquitetura contribui para as ações voltadas à educação ambiental, e
como visto, os Centros de Interpretação Geológica – de Canelas e das Pedras
Parideiras do Arouca Geopark -, contam com edificações que garantem as
práticas educativas, formativas e de sensibilização dos visitantes.
Os prédios seguem tipologias que dialogam com a arquitetura do local,
seja pelo padrão construtivo e ou pelo uso de materiais locais. Os espaços
concebidos como em Canelas ou requalificados como na Vila de Castanheira,
possibilitam ao visitante uma compreensão do território de forma didática,
utilizando recursos audiovisuais, expositivos e práticos.
Em se tratando do patrimônio cultural material, a arquitetura é
protagonista. Um dos exemplares mais expressivos é o Mosteiro de Santa
Maria de Arouca, cuja edificação histórica é um bem patrimoniado em todas as
instâncias, é reconhecido como gênese da urbanização do local e atrai turistas,
pela sua história e pelas relíquias que abriga.
Esta noção de lugar simbólico faz com o que o Mosteiro, enquanto
arquitetura, seja um facilitador na criação de uma consciência coletiva de
preservação e conservação do meio físico geológico, quando relacionado ao
uso dos materiais utilizados na sua construção, concebendo-o o título de maior
monumento granítico construído de Portugal. Sendo um atrativo para o
turismo cultural e o geoturismo.
Pode-se perceber que as práticas turísticas, com destaque para o
geoturismo e o turismo de natureza, são os maiores motivadores de visitação
Inteligências arquitetônicas e urbanas - 195

do Arouca Geopark, retratando uma gestão diversificada dos atrativos


turísticos que possibilitam maiores chances de um desenvolvimento
sustentável.

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