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da arquitetura
MARTA BOGÉA
101
Marta Bogéa
Tempo: matéria-prima da arquitetura
Ideias sobre futuro
I
talo Calvino introduz assim a série de seis 1.“O NOVO AMBIENTE DO VIDRO MUDARÁ
conferências do ciclo previsto para o ano COMPLETAMENTE OS HOMENS”
letivo de 1985 na Universidade de Harvard, em
Cambridge, no estado de Massachussets, denominado Essa frase de Scheerbart, citada por Benjamin no texto
.1 merece atenção, particularmente
102 no contexto proposto por Benjamin. O texto começa
Quando fui convidada a apresentar um artigo para o com uma reflexão sobre o que o autor denomina uma
Bloco (10): ideias sobre futuro2 , a primeira lembrança nova forma de barbárie. Nos seus termos:
que me ocorreu foi desse livro. Ao pensar sobre
um porvir na arquitetura, qual ou quais seriam as
qualidades particularmente caras para querer situá-las
em uma perspectiva de futuro?
Marta Bogéa
Tempo: matéria-prima da arquitetura
Aldo Rossi: Teatro do Mundo -
1979/1980.
Ideias sobre futuro
Do aço e vidro, para madeira, tijolo e pedra (e nesse ser lembrado e esquecido e transformado diante de
sentido, também o concreto aparente lido como nosso desejo de atualidade.
pedra processada – posteriormente acatando as
marcas das fôrmas de madeira que lhe configuram). E nesse desejo uma atenção renovada, por exemplo, a
Pois, se os chamados “novos materiais” ganhavam arquitetos como Wright ou Aalto reinseridos no debate
usos, sobretudo na engenharia desde meados do a partir da segunda metade do século diante de uma
século XIX, sua adesão irredutível ganha contornos nova compreensão (inclusive no uso singular à sua
mais claros na vanguarda moderna, quando vistos época de seu concreto ciclópico ou vitrais e tijolos,
a partir dessa lente proposta por Benjamin. E aqui respectivamente) a ponto de, arrisco dizer, nesse início
é preciso reconhecer arquitetura a partir da visão de século XXI estarem necessariamente presentes
de mundo na qual se insere e sem a qual se torna nas melhores bibliotecas do ramo! Uma natureza
pura materialidade, de difícil compreensão – como de arquitetura, que inova também ao considerar
reconhecer as pirâmides se ao menos não pudermos experiências e materiais ancestrais, e que alimentam
reconhecer o direito de se pensar num mundo após a certa geração atual. Vide o recentíssimo pavilhão de
morte? Do mesmo modo, como reconhecer o moderno Slamij Radic para Serpentine Gallery, em Londres. De
sem o direito de se ater a desconcertante primeira acordo com os curadores Julia Peyton-Jones, Diretora,
metade de século atravessado por duas guerras e e Hans Ulrich Obrist, Co-Diretor do Serpentine Galleries
doutrinado entre elas por uma ambição – que arrastou "Embora enigmaticamente arcaico, o projeto de Radic
boa parte de fortes pensadores junto – de uma pureza para o Pavilhão também parece excentricamente
abstrata a ponto de se pensar uma nova raça pura? futurista, parecendo uma cápsula espacial num terreno
Neolítico." (QUIRK: 2014)
104 Como, por outro lado, não então reconhecer o desejo
premente de um retono ao direto da experiência e da Uma coexistência de materiais e remissão a outros
cultura como contraposição crítica ao moderno? E, tempos inimagináveis no começo do século XX. Menos
passado o esforço de ruptura (que nos termos do pós- pela alegoria que se instalou na crítica imediata, o
moderno se traduzia em alegoria – e, vale recordar a pós-moderno, mais jocoso e irônico, e, mais como
surpresa da obra proposta por Aldo Rossi, Teatro do a oportunidade de quem sabe enfim, podermos nos
Mundo (1979/1980), naquela que guarda como marca reconciliar com a cultura.
ser a bienal do pós-moderno (a “estrada novíssima” na
bienal de arquitetura de Veneza ,
com curadoria de Paolo Portoguesi ocorrida em 1980) e
que se distinguia da fantasia alegórica e formal. 6
Marta Bogéa
Tempo: matéria-prima da arquitetura
uma intrigante questão se anuncia. Dentre a inequívoca
realidade, a ficção alimenta nossa reconciliação com
a cultura. No lugar de tantas “verdades”, bom será
se, na reinvenção dos espaços soubermos reinventar
aquilo que então chamaremos de realidade. Para isso,
voltemos ao homem em suas habilidades.
David
Chipperfield:
Neues Museum
– 1997/2009.
Marcas de tiros
conservadas.
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Tempo: matéria-prima da arquitetura
Ideias sobre futuro
Marta Bogéa
Tempo: matéria-prima da arquitetura
construção. Aqui reside uma importante distinção em escritas e publicadas.
relação às propostas das décadas de 60/70 resgatadas
por Banham em Megaestruturas10 . Lá, as diferentes 2
Agradeço a Tiago Balem o convite para participação
temporalidades levavam a uma natureza de conserto do nessa edição do Bloco.
tipo retificação, nos termos de Sennet (ou seja, aquele
no qual se substituem partes melhores tendo em vista 3
Parte dessas reflexões se origina no desenvolvimento
o mesmo fim). Diante dos projetos apontados nos quais do doutorado, orientado por Lucrécia D´Aléssio Ferrara,
o restauro é entendido como reconfiguração e não defendido em 2006. A tese encontra-se publicada
apenas restauro (que devolve ao original, como vimos). pela editora Senac (2009) com título Cidade Errante:
Parece possível reconhecer que o século XXI se inicia Arquitetura em movimento.
reconciliado com a cultura. Libertando-nos do passado
circular que nos devolveria sempre ao mesmo ponto (a 4
Vale lembrar aqui A obra de arte na época de sua
maldição de Morel, na ficção de Cortazar11 ) ao mesmo reprodutibilidade técnica, do mesmo autor, analisando
tempo que nos liberta do esforço radical de eterna a fotografia como obra reprodutível frente à aura do
reinvenção, ponto zero incessante a outro extremo da objeto artístico único, implicando em uma revisão de
mesma idealização. aura artística. Na edição consultada, no mesmo volume
desse texto e, escrito posteriormente a ele em 1936,
Quem sabe, para além do espetáculo e da eficiência publicado em 1955.
extremadas e, convenhamos, sempre um tanto ridícula
diante do esforço em se tornar excepcional – lugar 5
Sabe-se que a base dos vitrais é mais espessa que seu
comum em nossa época, tenhamos como reconhecer topo, um dos índices da natureza química do material,
qualidades comuns que nos são caras, a ponto de mas, que é imperceptível a olho nu.
Ideias sobre futuro
6
A esse respeito ver Otilia Arantes, Arquitetura BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. Em: Magia
Simulada, em O Olhar (NOVAES et al.: 1988). e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (obras
7
No texto do catálogo da exposição, os curadores escolhidas; v.1). p.114 a 119.
observam sobre a natureza de trabalho do artista: “The
works are not site-specific primarily in architectural, BIRNBAUM, Daniel e VOLZ, Jochen (editores). Fare
urban-development, or geographical meanings, but rather Mondi Making Worlds - 53rd International Art
based on exhaustive research into the history of a place Exhibition. Veneza: Fondazione La Biennale di Venezia l
and its inhabitants´colletive memory, myths, and desires.” Marsilio Editori, 2009.
(BIRNBAUM e VOLZ: 2009)
BOGÉA, Marta. Cidade Errante: arquitetura em
8
Nesse sentido como não lembrar a significativa reinvenção movimento. São Paulo: Editora Senac, 2009.
brasileira do canibalismo lido como antropofagia.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio:
9
Agradeço a Fernando Franco a leitura crítica desse lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras,
ensaio durante a qual se recorda de uma frase de Peter 1990.
Drucker (a respeito de administração e gestão) para quem
“a melhor forma de prever o futuro é criá-lo” seguido do CASARES, Adolfo Bioy . A invenção de Morel. São Paulo:
reconhecimento do autor de que “O planejamento não diz CosacNaify, 2006.
respeito às decisões futuras, mas às implicações futuras das
decisões presentes” que fortalecem a premissa deste texto. QUIRK, Vanessa. Smiljan Radic projetara o Serpentine
110 Pavilion 2014. 12 Mar 2014. ArchDaily. Acesso 29 Jul
10
Ver esse debate em Cidade Errante, especificamente 2014. <http://www.archdaily.com.br/182553/smiljan-
em Cidade em módulos de deslocamento (BOGÉA: radic-projetara-o-serpentine-pavilion-2014>
2009, p.141-155)
CHIPPERFIELD, David. Neues Museum. Acesso 01 de
11
Morel é inventor de uma máquina de imagens que agosto de 2014. http://www.davidchipperfield.co.uk/
reproduz realidades passadas. Na trama, um homem que, project/neues_museum
condenado por motivos políticos, foge para uma ilha
deserta do Pacífico conhecida por ser foco de uma epidemia YOSHIDA, Nobuyuki. (editor). Peter Zumthor. Japão:
letal. Lá encontra máquinas misteriosas e um grupo de a+u Publishing Co., 1998. Revista A+U Arquitecture and
turistas, que se diverte sem tomar conhecimento de sua Urbanism Fev 1998. Edição Extra.
presença. A projeção, infinitamente repetida aprisiona os
corpos (que como na fantasia indígena morrem a partir da
captação) num eterno retorno. (CASARES, 2006)
MARTA BOGÉA
REFERÊNCIAS:
Possui Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Arquitetura Universidade Federal do Espírito Santo (1987),
Simulada. Em: NOVAES, Adauto et al.O Olhar. São Mestrado em Comunicação e Semiótica pela
Paulo: Cia das Letras, 1988. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP
(1993), Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela
ARTIGAS, Rosa (org). Paulo Mendes da Rocha. São Universidade de São Paulo USP (2006). Atualmente é
Paulo: Cosac & Naify l Associação Brasil 500 anos Artes Professora no Departamento de Projeto da Faculdade de
Visuais l Fundação Bienal de São Paulo, 2000. Arquitetura e Urbanismo da USP.