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Vincenzo Russo

SUSPEITA DO AVESSO

Barroco e Neobarroco na Poesia Contemporânea Portuguesa

Prefácio por Roberto Vecchi

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PREFÁCIO
por Roberto Vecchi

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Os fantasmas do Bar Daniela

Não é só no método indiciário oitocentista praticado por Gio-


vanni Morelli – de que Carlo Ginzburg extrapolou justamente um
paradigma epistemológico famoso e fundamental para a moderni-
dade – que os detalhes se revelam como uma chave de acesso privi-
legiada para uma dimensão bem mais abrangente. Há, de facto, no
livro de Vincenzo Russo, que reelabora a sua tese de doutoramento
que tive o prazer de orientar, pequenos recortes que escancaram
portas tenazmente fechadas, entreabrindo territórios novos de pro-
blematização, em que é possível desdobrar a corrente reflexiva do-
minante numa multiplicidade de atalhos menores mas não menos
significativos, assim como deveria sempre ocorrer com os bons estu-
dos literários e culturais.
Logo no começo do seu denso percurso, de facto, Vincenzo põe-
nos perante uma imagem sugestiva: “Uma dobra barroca atravessa o
Século XX”. Um pormenor, certamente, no meio de um estudo vasto e
complexo que não se subtrai ao desafio atemorizador posto pelo tema
em virtude da sua magnitude. Mas também ao leitor menos informa-
do, a frase surge de imediato como não sendo estranha, como se tives-
se algo de familiar, de conhecido. Não é necessário dispor de erudição
transbordante para perceber como no palimpsesto da frase pulsa, com
alguns elementos diferenciais, um incipit bastante famoso, o do Ma-
nifesto de Marx e Engels de 1848 que, como todos nos lembramos,
principia de modo similar: “Anda um espectro pela Europa...”. Ora,
a variação é curiosa e talvez nos proporcione já uma entrada na estru-
tura engenhosa de um livro sobre engenhosidades como este. Vale a
pena inventariá-la porque amplifica a ressonância semântica da frase.
Não só o tempo – que é o da contemporaneidade – substitui o espaço
geográfico, na proposição de Russo. Mas é sobretudo a substituição
do espectro pela dobra que resulta interessante. Na verdade, e é isto
que sabemos, o barroco como dobra anda como um fantasma inse-
pulto, como um resquício que não se extingue, pelas culturas não só

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europeias do século XX. As suas andanças pela cultura portuguesa, e
em particular pela poesia, são, como se sabe, um lugar-comum crítico
que permeia a história literária do nosso presente.
Mas como no Manifesto, Vincenzo Russo assume a tarefa árdua
não só de construir um aparato crítico a contrapor às muitas lendas,
mas também às sólidas verdades, do barroco na poesia portuguesa
contemporânea. Se bem repararmos, a atitude que se constrói na pri-
meira parte do livro, a secção mais densa e complexa, que poderia
desde logo mutilar a aspiração de criar uma visão ao mesmo tempo
abrangente e, no entanto, dinâmica do repertório de problemas teó-
ricos, é marcada por um trabalho sistemático de localização crítica
dum aparato residuário de definições, etiquetas, tiques, figuras, que se
aproximam muito duma elaboração dum processo melancólico – ou
até enlutado– de restos culturais. Não se trata de simples resenha de
fontes secundárias como o formato da tese exigiria. Se assim fosse,
criar-se-ia uma armadura rígida que não permitiria nenhum avanço
numa problematização que desde a origem poder-se-ia tornar ino-
vadora na medida em que lograsse uma renovação de sua própria
instrumentação crítica.
Neste sentido, entre os muitos detectáveis, talvez valha realmente
a pena assinalar alguns pontos criticamente cruciais para compreen-
der a arquitectura latente que sustenta esta visão original da constela-
ção barroca. A meu ver isto decorre da ideia seminal do barroco como
construção contemporânea que coloca de imediato um problema por
certo de cânone, mas também obliquamente de anticânone, a ser en-
frentado, que ao mesmo tempo incorpora e imuniza o peso gravoso
duma tradição secular, dum repositório de códigos que acabariam
por bloquear, desde o começo, qualquer inclinação para a originali-
dade. O Vincenzo Russo de hoje talvez não usasse mais um termo tão
categórico e racionalizador como “construção” e o substituísse com
o termo mais poroso mas criticamente não menos denso de “repre-
sentação”. Isto proporciona o ensejo para extrapolar um movimento
que anima a reconstrução das representações críticas sobre o barroco
– se assim é lícito dizer – traçando uma potencialidade culturalista
implícita no discurso crítico que não se apaga no comprazimento pela
realização do acto interpretativo mas assume um objecto antes de
tudo carregado de uma historicidade que nunca o desreferencializa,
mas pelo contrário sempre integra uma preocupação de ordem con-
textual.

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A outra intuição que de certo modo se conjuga com a anterior
é o ênfase sobre o carácter póstumo implícito ao barroco contem-
porâneo, num dos seus multíplices retornos ou permanências. Para
nós italianos não se trata dum elemento surpreendente, tendo críticos
como Giulio Ferroni que se detiveram em particular não só sobre o
carácter póstumo de modo geral da literatura mas sobre os antagonis-
mos surpreendentes entre pós-modernidade e postumária, no sentido
que a condição póstuma da literatura contemporânea induz a repen-
sar as conexões profundas entre texto e modernidade. No entanto, é
oportuno notar que há pelo menos uma dualidade no póstumo a ser
evidenciada, sendo ao mesmo tempo acabado e não-acabado, morto,
certamente, mas também ainda em parte vivo, com uma significação
de alcance muito mais amplo, que decorre da relação cultural e cul-
tual que se instaura com o horizonte da morte, e com o mundo que
a ela se conecta. O póstumo como metáfora crítica parece apontar
para um suplemento, um depois, um além em que algo sobrevive à
perda e no marco do fim se dá uma continuidade, uma herança. Uma
continuidade no fragmentário, uma não coincidência de algo de qual-
quer modo inconcluso, de não acabado. Por isso no póstumo tem um
resto que persiste culturalmente “vivo-morto” na dimensão posterior,
no depois. O que contribui a esclarecer uma posição crítica famosa,
da teoria estética adorniana, de acordo com a qual o próprio limiar
qualitativo da arte moderna é a vida da obra de arte que se nutre da
morte.
Figura bem barroca, poderíamos considerar, mas que confere à
combinação crítica adoptada neste livro um potencial para repautar
brilhantemente as relações inclusive implícitas que a reconstrução da
tradição teórica contempla, resultando assim como o produto de uma
inteligente selecção distante de qualquer propósito de totalidade im-
possível e bem mais dirigida para a configuração de um instrumento
operacional. Aliás, poder-se-ia até observar, nesta nota perfeitamente
dispensável que se justapõe a uma leitura pelo contrário indispensável
do livro, que a teoria cria por sua vez uma espécie de dobra metafó-
rica: convocando no seu repertório, amplo e selectivo, uma tradição
morta e outra viva, uma constelação que amalgama Góngora e Boa-
ventura de Sousa Santos, o resultado que se produz é uma ideia ben-
jaminina do barroco onde se dá uma contemporaneidade entre duas
acções contrárias, o fim e o começo (ou melhor, o re-começo), uma
parte morta e outra viva, que só um olhar dinâmico pode declinar em

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imagens dialécticas bloqueando uma dualidade sem porém reduzir as
suas tensões, o que permite contemplar um outro lugar não menos
famoso do discurso de Walter Benjamin.
É por isso, através duma ferramenta conceptual – barroca por sua
vez – então adequada a um objecto ainda difícil por apreender como
a história da poesia portuguesa contemporânea, que se exibe numa
resenha renovada sobre um palco crítico, não como um eterno retor-
no do já visto ou cópia conforme do que foge e sobrevive ao recalca-
mento induzido pelo esvaziamento da história, mas, como deveria ser
num acto crítico qualificado, como reconfiguração que faz emergir a
diferença – e portanto o tempo histórico –, antes de tudo a partir da
originalidade do seu ponto de observação baseado noutro horizonte
teórico. A tendência barroquista, o impulso neobarroco, a reabilitação
barroca, implicam na verdade um acto de tradução, isto é, não como
tautologia, mas oximoricamente como uma repetição diferenciada da
tradição póstuma que recorta e viabiliza aquela suspeita do avesso
presente no objecto poético, demarcando a paisagem da modernidade
radical do presente, talvez porém, como não deixa de sublinhar Ana
Hatherly, no ponto extremo do seu esgotamento.
Livro engenhoso sobre engenhos poéticos, poder-se-ia concluir,
este de Vincenzo Russo, representa sobretudo algo que para nós em
Bologna, que nos costumamos reunir no minúsculo Bar Daniela perto
do Departamento onde tentamos dar uma forma crítica às nossas lei-
turas, é um ponto bem claro e assente: um acto de respeito e de amor
pelas culturas de língua portuguesa em cujas construções e ruínas, em
cujos restos e perdas, representações e choques, procuramos interro-
gar fantasmas que nos fogem sempre.

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INTRODUÇÃO

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Eu diria que é barroca a etapa final de toda a arte,
quando esta exibe e delapida os seus meios.

Jorge Luis Borges

A história deve ser reescrita por cada nova geração, porque se o passado não
muda, é o presente que muda;
cada geração coloca ao passado perguntas diversas,
e ao reviver aspectos diversos das experiências dos seus predecessores,
descobre que tem com estes novos pontos em comum.

Christopher Hill

Tal como aprendemos com Walter Benjamin, «o pensamento co-


meça sempre de novo, e volta sempre, minuciosamente, às mesmas
coisas» (Benjamin, 1984: 50): abandonámos, assim, a via da linea-
ridade das representações conceptuais, a favor da via indirecta, mais
tortuosa, a via da demora e, porque não, da errância teórica. A fi-
nalidade desta pesquisa participa sobretudo na ideia de texto como
espaço de uma experiência (dos limites, da possibilidade) e não tanto
na formulação de uma pretensa homogeneidade. Interrogar os traços
dispersos do barroco na poesia contemporânea portuguesa significou,
aqui, redescobrir por entre as intercepções da teoria, da estética e da
prática poética um horizonte “diverso”, não de todo desconhecido,
que contribuísse, também numa ínfima parte, e para além dos es-
quemas escolásticos, não tanto para a escrita de uma nova história,
mas sim para o desenterrar de todos aqueles elementos que a ela es-
caparam, aspirando, assim, à eliminação da sua fragmentaridade e
irredutibilidade.
Nesta errância por entre lugares (críticos), também descontínuos,
paragens (poéticas), inevitáveis interacções que existem em cada ca-

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minho entre a demora e a viagem, pudemos experimentar, a fundo, os
perigos da deriva e os benefícios da abertura, o desconforto da deso-
rientação e o prazer de procurar «todas as possíveis possibilidades»1.
De resto, já na origem, a nossa viagem – que, embora assistemática,
não desvaloriza a sua cientificidade –, ambicionava não tanto à meta
(a síntese, nas lógicas da dialéctica), mas sobretudo ao percurso, ao
intervalo entre partida e chegada, ao trânsito, àquele saber intermé-
dio que Mario Perniola conota como lugar de experiências que visam
«não à anulação, mas sim à conservação das oposições» (Perniola,
1987: 95): aceitar, então, ao mesmo tempo o desafio e a gratuitidade
do transitar por entre espaços e tempos, em nome do conhecimento
daquilo que, para além da perigosa e cativante equação Portugal/liris-
mo, mais ou menos metaforicamente, António Ramos Rosa chama de
«meu país de palavras. País de pedra. Que atravesso, país que treme,
hesita, rompe. Nu. Vivo. Pobre»2.
Se é verdade que partimos da constatação de que existem certos
traços barrocos na literatura portuguesa (mais evidentes na lírica),
mais ou menos situáveis entre a segunda metade dos anos 50 e os
anos 60 – constatação que, diga-se de passagem, embora subscrita
por muitos sem grandes aprofundamentos teóricos, teve e tem, por
um lado, a vantagem de ser ágil e, por outro, o risco de se reduzir a
mero refrão crítico, no intricado debate sobre as poéticas contempo-
râneas em Portugal, a nossa investigação pôs fundamentalmente em
evidência, pelo menos, três grandes nós:
1. a “barroquização” da literatura no período que compreende es-
tes anos é um fenómeno internacional, no qual Portugal participa por
contacto e para o qual contribui através da recuperação da tradição
nacional (sem todavia radicalizar a casualidade desta relação);
2. a sobreposição entre práticas críticas e estéticas faz nascer, no
contexto português, o processo de reconhecimento “especular” entre
o barroco histórico e o barroco moderno;
3. a presença de variados filões barrocos da modernidade em Por-
tugal, que se podem definir como uma grande constelação neobarro-
ca. Em conformidade com as próprias exigências estilísticas, retóri-
cas, temáticas ou ideológicas, cada poeta redescobriu / utilizou o seu

1
António Ramos Rosa, «Todas as possíveis possibilidades», A Pedra Nua, [RSV,
p. 226].
2
«Meu país de palavras...», Nos seus olhos de silêncio, [RSV, p. 169].

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Barroco: os experimentalistas fizeram-no exemplarmente ao recolher
do Barroco-maneirismo as formas de uma tradição por eles próprios
inventada e na qual se inseriam.
De facto, quem quer que um dia se tenha interessado pela poesia
portuguesa da segunda metade do século XX (chamado hoje, e com
alguma estranheza, século passado), admitiu unanimemente – com um
juízo que vai para além de uma «mera intuição estilística» (Melo e
Castro, 1990: 71) – a presença de características barrocas ou barroqui-
zantes, já a partir da segunda metade dos anos 50, a ponto de incluir
esta tendência barroca entre as correntes dominantes daquele decénio.
Depois desta constatação, as palavras extraídas de uma conferência
proferida por Ana Hatherly, poeta e estudiosa do barroco histórico
português, testemunham o carácter problemático e até agora irresolú-
vel da questão: «Por tendência barroca deve aqui entender-se o culto
de certos valores formais e até emocionais do estilo barroco, histórico,
que persistiu (e persiste ainda) em Portugal e no Brasil a partir dos anos
50, e que se pode verificar quer na poesia quer na prosa, tanto de Ex-
perimentalistas como de seguidores de outras tendências, e que veio a
constituir aquilo que hoje se chama Neobarroco português»3. Se existe
uma tendência barroca na poesia portuguesa, de imediato reconheci-
da por alguns (como Jorge de Sena ou Óscar Lopes) e hostilizada por
outros (como João Gaspar Simões), o corpus dos poetas, ou melhor di-
zendo, dos textos dos poetas, tem ainda limites muito lábeis tanto pela
quantidade de autores em causa e pelas suas experiências tão diversas,
quanto pelo amplo arco temporal que os abarca (a «persistência» ao
longo dos anos, de que fala Ana Hatherly). O cânone representado
pelas histórias da literatura, in primis a de António José Saraiva e de
Óscar Lopes, reconheceu apenas à Poesia Experimental (1964-1966),
ao grupo de Ana Hatherly, E.M. Melo e Castro, aquele forte traço
de «reivindicação da tradição lúdica barroca» (Saraiva-Lopes, 1996:
1076). E, embora tenham sido eles, conscientemente, os primeiros a

3
A comunicação intitulada «Experimentalismo, Barroco e Neobarroco» foi apresen-
tada no encontro ESCRIPTURA I COMBINATORIA, realizado em Barcelona em 1991,
e agora incluído in A. Hatherly, 1995: 190. Numa carta de 10 Abril de 1976 enviada a M.
Szabolcsi, Ana Hatherly fala nos mesmos termos do problema: «dans la poésie portugaise
contemporaine, la présence du baroque est un fait indiscutable, et accepté, notamment
par les “expérimentalistes” comme Melo e Castro et moi-même. Mais le phénomène peut
être détecté dans l’ouvre d’autres (et même de la plus part) poètes et prosateurs contempo-
rains», in Espólio de Ana Hatherly, [Res. N57], Biblioteca Nacional de Lisboa.

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afirmá-lo, tal reivindicação foi também fruto de uma posterior «revi-
são» crítica do experimentalismo poético. Não só os assim chamados
experimentalistas, mas também outros poetas anteriores – e não se fala-
rá aqui de «barroco intuitivo» – e posteriores, todos «seguidores de ou-
tras correntes», pertencem ou pertenceriam àquilo que «hoje se chama
Neobarroco Português». Apenas alguns nomes: Fernando Echevarría,
Pedro Tamen, António Ramos Rosa, Ruy Belo, Herberto Helder.
Até agora aceitámos os termos «barroco ou barroquizante» para
indicar um certo filão da poesia contemporânea portuguesa, sem
nos interrogarmos sobre a legitimidade da sua (re)utilização em ple-
no Novecento: a partir do momento em que um outro termo, como
“Neobarroco”, entra em jogo no léxico crítico (não exclusivamente
português), as historicidades conceptuais dos dois termos entram em
curto-circuito. Por isso, o estudo das fontes poéticas (não nos ocupa-
remos de prosadores, embora os haja, como já foi dito) será precedido
de uma espécie de recognição crítica dos conceitos de barroco e neo-
barroco, bem como de uma análise de todos os contributos teóricos
europeus e latino-americanos (poéticas explícitas, doutrinas estéti-
cas…) que o século XX produziu, não só, como escreve Jean Rousset,
para lançar pontes em direcção a um arquipélago que se ia afastando,
mas sobretudo para reconhecer no interior da moderna hipertrofia
semântica do barroco4 as propostas hermenêuticas que permitiram a
passagem para a definição de neobarroco.
De facto, nestes termos, a história da palavra e das estratificações
conceptuais que o “afortunado” termo “barroco” foi adquirindo,
nos vários campos da crítica de arte (arquitectura, artes figurativas,
música, literatura: e a ordem não é casual) e na teoria estética, dar-
nos-á conta, por um lado da construção eminentemente novecentista
da acepção moderna do seu significado (sobretudo no que diz respei-
to à sua reutilização literária), por outro das várias passagens que o
conceito conheceu nas letras europeias, nomeadamente em Portugal,

4
Sobre os riscos de inflação do termo, Pierre Charpentrat (1967) incluía ironica-
mente na sua «lista» barroca: o general De Gaulle, a vanguarda literária, a jogada de
um futebolista e as receitas de cozinha. Alguns anos depois, sempre em França, onde a
revalorização do barroco iniciara tarde relativamente a outras culturas, anunciava-se
paradoxalmente a morte da palavra barroco e da moda por ela originada: «Baroque:
mot à la mode dans le année 1950-1960, aujourd’hui veille et remplacé par d’autres
modes, par d’autres mots […] le baroque est mort entre-temps des abuses de langage»
(Dubois, 1973: 9).

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tanto que podemos resumir tudo isto à simplificação de uma fórmula:
da resistência ao Barroco à sua reabilitação. Terreno de confrontos
historiográficos (debate sobre as suas origens), ideológicos (reivin-
dicações de exclusividade nacional ou, pelo contrário, seu repúdio:
lembre-se a inadmissibilidade de um barroco francês in nomine ratio-
nis) e sobretudo estéticos, o Barroco – como se acenava – produziu
ao longo do nosso século (embora se faça coincidir a publicação, em
1888, de Renascimento e Barroco de Heinrich Wölfflin com o início
da discussão) um vastíssimo debate internacional que contribuiu para
a revisão de certos juízos acerca do século XVII «corrupto» e acerca
da negatividade que a palavra “barroco” implica, seja como estilo
deste mesmo século, seja na mais ampla acepção de «arte degenera-
da» que foi ganhando com o passar do tempo.
À pars destruens de censuras como as de Benedetto Croce nos anos
vinte, a historiografia crítica regista, na Europa e na América Latina,
a formação de um novo cânone literário propício à redescoberta da-
quela ignorada tradição barroca, voluntariamente esquecida, vilipen-
diada ou, para usar as palavras de Haroldo de Campos (mais voca-
cionadas, porém, para a realidade cultural brasileira e pós-colonial),
«sequestrada».
Se tal redescoberta é também reflexo de uma nossa predilecção
pela arte e pela poesia barroca, que faz com que Gérard Genette diga,
relativamente a esta sensação de convivência e afinidade, que «o pen-
samento moderno inventou o barroco tal como se nos fosse oferecido
um espelho», não será motivo de espanto sondar as relações que este
retorno do barroco (não só enquanto campo de indagação teórica,
mas também como significativo laboratório de práticas poéticas)
mantém com a Modernidade. Como fez notar o crítico canadiano
Walter Moser, na linha de Guy Scarpetta5, falar de retorno “do” em
vez de retorno “ao” barroco não é apenas uma «distiction byzanty-
ne». Insistindo nesta subtil discriminação linguística, nesta «nuance
sémantique» (Moser, 1996: 410), Scarpetta define com a expressão
“retorno ao barroco” todos os modernos e, por assim dizer, «reaccio-
nários» retornos em nome do revivalismo (pense-se na alma barroca
lusitana proposta pelo historiador de arte do Estado Novo Reynaldo

5
«Più che del ritorno AL Barocco, è opportuno parlare del ritorno DEL Barocco (cosa
completamente diversa). In altre parole, non si tratta di ritornare indietro, in una prospet-
tiva archeologica, nostalgica, è il Barocco stesso che torna» (Scarpetta, 1991: 21).

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dos Santos, ou pelos escritos de Herbert Cysarz, cujo «convite ao
barroco» na década de vinte na Alemanha não está isento de perigo-
sas posições autoritárias6), do historicismo ou, num certo sentido, do
espiritualismo meta-histórico à maneira de Eugenio d’Ors.
A história da crítica estética, assim como a história das poéticas
que documentam o renovado interesse de muitos escritores pelo bar-
roco, foi, ao mesmo tempo, marcada por aquela que definimos como
verdadeira criação do conceito de “barroco” e pela sobreposição do
termo «neobarroco», que, tal como o primeiro, foi inicialmente apli-
cado – qual óbvio decalque do mais famoso “neo”, o do classicismo
– pela terminologia da arquitectura. Para este último campo poder-
se-á citar Gillo Dorfles no volume de 1951, Barocco nell’architettura
moderna; mas já Marzot, para ficar no âmbito da literatura italiana,
nos anos 40 propunha, dir-se-ia inocentemente – isto é, sem nenhu-
ma pretensão heurística –, apelidar de «neobarrocos» poetas como
Pascoli e D’Annunzio, influenciados «pelas seivas e também pelos
venenos do romantismo e do decadentismo», em nome da compa-
ração entre o barroquismo de Seiscentos e os «ismos» de vanguarda
de início de século (Marzot, 1944: 21). O nosso interesse, portanto,
será verificar a natureza desta intersecção, da origem e da evolução
na linguagem das outras artes e, especialmente como paradigma da
teoria literária, da sua aplicabilidade à poesia: neobarroco, enquanto
conceito aberto que nos últimos tempos acabou por coincidir, atra-
vés de um tortuoso processo crítico, com “pós-moderno”, segundo as
indicações de Omar Calabrese (1998; 1991), presentes também, pelo
menos embrionariamente, em Guy Scarpetta e Gilles Deleuze, com
todas as consequências que esta deslocação semântica trouxe e traz
ainda consigo.
Uma densa e interessante bibliografia sobre barroco /neobarroco,
cujos contributos europeus e americanos aparecem já, grosso modo,
depois da segunda guerra mundial, oferece por isso um amplo espec-
tro de possibilidades hermenêuticas, à luz do qual é possível analisar

6
Sobre este problema, veja-se P. Francastel, 1945: 208-245; e G. Briganti, 1950:
6-14. Mas sobretudo, acerca do livro de Benjamin e do seu contexto histórico, a leitura
do barroco proposta por Cesare Cases: «[barocco] visto non già come un’allegoria del
presente, ma come una soluzione letterale dei suoi problemi, [esso] poteva diventare un
richiamo alle autorità e alle gerarchie, alla sottomissione e al sacrificio assoluto, alla
vanità della politica e all’eccellenza dell’identificazione mistica, all’accettazione e al
culto della morte» (Schiavoni, 1999: XXII).

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a poesia contemporânea portuguesa e o seu “retorno barroco”, como
praxis, não só poética, mas também teórica.

Agradecimentos

Esta tese é devedora de diversos contributos tanto científicos


como, na falta de outro termo, morais. Contributos na sua substância
muito heterogéneos, mas todos eles imprescindíveis, contributos que
me ampararam ao longo dos anos de investigação e de realização
deste trabalho. Tento agora, no breve espaço destas linhas, exprimir
a minha gratidão a todos aqueles que participaram no processo de
construção deste estudo.
Em primeiro lugar, quero agradecer a quem, em Lisboa, com tanta
gentileza e disponibilidade, como o Professor Fernando J. B. Martinho,
me ofereceu úteis indicações que, juntamente aos seus ensaios sobre a
poesia portuguesa da segunda metade do século XX, representaram
o caminho que, modestamente, a nossa investigação procurou seguir;
mas também a quem, como a Professora Ana Hatherly, poetisa neo-
barroca e estudiosa do barroco histórico, demonstrou o seu interesse,
autorizando-me a consulta da parte privada do seu espólio.
O meu “grazie” vai também para o Professor Abel Barros Bap-
tista, constante ponto de referência e de orientação durante as várias
estadias em Portugal.
À ajuda e ao exemplar trabalho de correcção e revisão do Profes-
sor Manuel G. Simões – profundo conhecedor destas duas margens
linguísticas, a portuguesa e a italiana – expresso o meu mais sincero
reconhecimento.
Para finalizar esta necessária, e incompleta, “resenha” de agrade-
cimentos, devo obrigatoriamente recordar, por todo o apoio dado e
pela pontual atenção com que seguiram a pesquisa, todos os professo-
res do Doutoramento em “Iberistica” da Università di Bologna e, em
particular, o seu responsável Professor Maurizio Fabbri.
As últimas palavras de gratidão reservei-as, todavia, ao Professor
Roberto Vecchi – relator da tese, a quem se deve também a sua ideia
originária – para mim e, dada a minha formação, verdadeiro «mestre,
querido mestre» (e não só) de coisas portuguesas e, acima de tudo, es-
timado amigo. O rigor científico, o conhecimento e o estímulo intelec-
tual foram o legado fundamental que os seus valiosos ensinamentos

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me ofereceram no curso de todos estes anos.
A todos aqueles que permanecem anónimos, mas só nesta página,
e que me ajudaram material e espiritualmente, de perto e de longe, o
meu mais profundo agradecimento.

Advertência

Para uma maior simplificação no aparato de citações das obras


poéticas, optou-se por citar exclusivamente o título do poema, segui-
do do título do livro de onde foi extraído e o número da(s) página(s)
respectiva(s), omitindo-se as restantes informações bibliográficas,
que poderão ser encontradas na bibliografia final. Sempre que pos-
sível recorreu-se às opera omnia dos autores em estudo e, neste caso,
convencionou-se que, para além do título do poema e da obra a que
pertence, a paginação dos poemas será sempre precedida pela sigla da
edição reunida utilizada, cujas referências completas serão igualmente
especificadas na secção bibliográfica .
Nas citações de obras críticas procurou-se sempre a tradução por-
tuguesa. Na ausência desta manteve-se ou a língua original ou a tra-
dução disponível.

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PRIMEIRA PARTE

REGOGNIÇÃO TEÓRICA SOBRE


BARROCO E NEOBARROCO

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Para uma Cartografia e uma Cronologia do (Neo)barroco

O barroco é a arte de um mundo


que perdeu o seu centro.

G. Debord7

Aussi bien, ce qui compte, ce ne sont pas les débuts ni le fissù, mais le milieu.
Les choses et les pensées poussent ou grandissent par le milieu, et c’est là qu’il faut
s’installer, c’est toujours là que ça se plie.

G. Deleuze8

De Tomar a Bolonha, da Mitteleuropa ao Brasil, de Havana a Pa-


ris: uma dobra barroca9 atravessa o Século XX. Contrariamente a
tudo quanto possa ter acontecido durante séculos, os pontos de parti-
da e de chegada sobrepuseram-se inexoravelmente e complicaram-se:
assim como Kepler anunciou o fim da circularidade orbital da Terra,
com o barroco manter-se-á, então, ainda menos o conceito de centro
e de periferia10. A elipse, como figura e representação da cosmologia

7
Debord, 1991: 151.
8
Deleuze, 1990: 219.
9
Para quem, como Deleuze, afirmou que a filosofia sempre consistiu em inventar
novos conceitos, este conceito de dobra aparece como o mais eficaz, o mais operativo,
tanto para caracterizar a vertente barroca da filosofia de Leibniz, quanto para instaurar
relações com a literatura barroca moderna (Deleuze 1988; 1990).
10
Sobre este sentimento de perda, de descentramento barroco entre intérieur
et extérieur, já reconhecível no paradigma religioso e científico de um pensador
como Pascal, Christine Buci-Glucksmann (1985: 174) escreve: «Dans ce monde
sans centre, sans site, sans point fixe de référence, “le centre est partout et la cir-
conférence nulle part”: “le point fixe est devenu point de vue” selon les termes de
Michel Serres».

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barroca (Sarduy, 1999: 1195-1253)11, já não existe como centro, mas
com dois focos: o espelho do barroco que o pensamento moderno
construiu reflecte por si mesmo, numa dupla perspectiva – dos dois
lados do Atlântico –, a tentativa de repensar o próprio passado como
origem, no sentido benjaminiano de Ursprung, de «carácter nascen-
te» do moderno, e mais especificamente, de reconhecer no Barroco
os sinais, os restos, daquela que foi definida como arqueologia da
Modernidade12.
Tal como foram apresentados (em uma ordem só aparentemente
confusa), estes lugares e estas cidades representam apenas alguns –
entre os mais significativos – lugares de destaque de uma ideal ge-
ografia “barroca” do século XX: quem esteja familiarizado com a
extensa historiografia crítica, produzida nos últimos séculos, sobre
toda a cultura seiscentista e sobre o mais debatido dos problemas, o
do Barroco, não tardará a reconhecer como a este mapa de espaços
corresponde toda uma série cronológica, de tal forma que se pode
admitir, parafraseando Bachtin, um cronotopo crítico do barroco e
daquilo que, com ele, se veio a constituir como barroco moderno ou
neobarroco.
Posto isto tentaremos desenrolar o cronotopo e verificar como a
invenção novecentista do Barroco13 (e do porquê), para além de ser
apenas uma história de reabilitação de «quella varietà del brutto»
(Croce), é qualquer coisa mais que uma simples versão moderna de
“disputa ou polémica sobre o Barroco”: o interesse que o proble-

11
Mas veja-se também Hocke, 1989: 221-234. Todavia o princípio de diferença
entre as duas formas geométricas já tinha sido preliminarmente avançado por Heinrich
Wölfflin, 1928,e também por Alois Riegl, 1908.
12
Do carácter de ex-centricidade da subjectividade barroca enquanto subjectivi-
dade da transição paradigmática fala Boaventura de Sousa Santos: «A relativa ausência
de poder central confere ao barroco um carácter aberto e inacabado que permite a
autonomia e a criatividade das margens e das periferias. Devido à sua excentricidade
e exagero, o próprio centro reproduz-se como se fosse margem e se torna mais forte
à medida que nos deslocamos das periferias internas do poder europeu para as suas
periferias externas na América Latina», (Santos, 2000: 331).
13
«Na nossa paisagem literária actual, a descoberta (ou a invenção) do barroco
tem mais importância do que a herança romântica, e o nosso Shakespeare não é o do
Voltaire, nem o de Hugo; ele é contemporâneo de Brecht e de Claudel, como o nosso
Cervantes é contemporâneo de Kafka. Uma época manifesta-se tanto por aquilo que lê
como por aquilo que escreve, e estes dois aspectos da sua “literatura” determinam-se
reciprocamente» (Genette, 1968: 391).

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ma suscitou entre os historiadores, os críticos, os escritores do nosso
tempo evidencia que o que está em jogo (ainda mais evidente numa
idade que se quis definir como neobarroca) não toca apenas a vertente
artística e estética, mas mais difusamente político-ideológica, enfim
cultural.
Quando em Pontigny, no ano de 1931, Eugenio D’Ors, com uma
documentada apresentação fotográfica, redescobria, por entre asso-
nâncias e diferenças, os primeiros sinais estilísticos do barroco his-
tórico na famosa janela do Convento de Cristo em Tomar (1515),
lançaram-se as bases para a fundação da teoria dos éons, das constan-
tes históricas, que terá desenvolvido no seu Du Baroque (a tradução
francesa data de 1935) até reconhecer vinte e dois «estilos barrocos»:
na visão metafisico-espiritualista do pensador catalão-parisiense, que
deixa já entrever germes daquela irracionalidade típica do tempo, a
constante barroca «que se volta a encontrar em épocas tão reciproca-
mente longínquas como o Alexandrismo o está da Contra-Reforma,
ou esta do período “Fim-de-Século”; quer dizer, do fim do séc. XIX,
e que se manifestou já nas regiões mais diversas, tanto no Oriente
como no Ocidente» (D’Ors, 1990: 69). Por agora basta-nos recordar
que o barrochus manuelinus passa pela janela de Tomar, que Portugal
pertence, por direito, à cartografia barroca novecentista. Mais tarde
veremos também que na doutrina dorsiana o Barroco deixa de ser
uma simples degeneração do Clássico, mas que a este último se opõe
por força da antítese mais ampla vida-razão: uma nova “solene” justi-
ficação e uma dignidade, por assim dizer, metafísica surgem agora do
barroco, como síntese do esforço teórico de reabilitação inaugurado
pela crítica alemã do final de Oitocentos. Não cabe aqui renovar os
méritos de uma inteira geração alemã de historiadores, que tem como
expoente máximo Wölfflin e o seu pioneiro Renascimento e Barocco,
trabalho maduramente repensado em 1915 com os Conceitos Fun-
damentais de História da Arte, mas sim tentar realinhar os fios desta
história de revalorização estética do barroco: uma história que se ini-
cia, ao nível crítico, em língua alemã e se des-dobra pela Europa in-
teira no primeiro pós-guerra. Se o Expressionismo favorece, de facto,
através daqueles paralelismos e analogias com o Barroco instituídos
por Bahr já em 1916 (Perniola, 1981), o clima cultural propício para
a recuperação do Barockstyl, ao qual se deve, sobretudo, a obra de
Walter Benjamin (1928), não poderemos deixar de reconhecer como
naqueles mesmos anos em Itália, em Inglaterra, em Espanha se assiste

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igualmente a um esforço hermenêutico (crítica literária, de arte, musi-
cal, filológica no sentido estrito de recuperação e publicação de anto-
logias de prosa e poesia do século XVII) e sobretudo a um trabalho de
releitura, depois de dois séculos de concepção derogatory, por parte
de uma geração de poetas – neste caso, como no Brasil ou em Portugal
nos anos 60, esses mesmos críticos ou seus aliados – da estatura de
Dámaso Alonso14 ou Garcia Lorca15, com toda a geração espanhola
que celebrará em 1927 o terceiro centenário da morte de Gôngora, de
T.S. Eliot com a redescoberta dos «metafísicos ingleses» (Eliot, 1992:
23-32), do Ungaretti das reflexões sobre a «analogia», que definia «il
Seicento il secolo delle conchiglie e dei mari lontani, sottintendendo in
questo modo una quantità di suggestioni, le stesse che lo inducevano a
leggere Góngora e Shakespeare» (Raimondi, 1995: 9).
«C’è un frequente avvicinarsi degli uomini del Novecento alle ope-
re del Seicento, e c’è il richiamo così frequente nei maggiori poeti e
critici contemporanei, a scoprire la verità della poesia del seicento,
nello splendido figurare metafore infinite e apertissime che fu modo
di conoscenza proprio del secolo» (Anceschi, 1984: 59). Luciano An-
ceschi, primeiro tradutor italiano de D’Ors, e artífice da reabilitação
do barroco nacional em moldes europeus, traça as razões e os moti-
vos desta «profonda e segreta relazione» entre os dois séculos: «nella
“sproporzione”, nella “svogliatura”, nella “tensione” dell’uomo ba-
rocco viveva la misura storica di un’angoscia che inquietava di sé stra-
ordinariamente tutte le forme significative dell’umana espressione; e
così con la novità del Barocco nasceva la novità insidiata dell’Europa
Moderna» (Anceschi, 1984: 94). Com as pesquisas sobre o barroco
histórico, quer no âmbito literário quer artístico, sobre as suas “reca-
ídas” e implicações modernas e pós-modernas, desenvolvidas de ma-
neira assídua, sobretudo depois de 1945, por Anceschi (1953; 1960;
1984) e outros eminentes estudiosos, Bolonha constitui-se como um
laboratório privilegiado onde «a ideia do barroco» se dobra em di-
ferentes modalidades culturais e se abre a novas categorias críticas:
podem conviver, então, ao lado uns dos outros, os nomes de Longhi

14
Cfr. para um apaixonado depoimento em primeira pessoa sobre a assim cha-
mada «vuelta a Góngora», as páginas dos «Recuerdos Gongorinos», agora em Dámaso
Alonso, 1976: 309-312.
15
Leia-se como melhor exemplo a sua conferência de 1927 «La imagen poética en
Don Luis de Góngora», Lorca, 1954: 67-90.

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para a história da arte; de Raimondi para a literatura de seiscentos,
com os seus estudos sobre as relações entre pintura e poesia, sobre o
barroco moderno em Gadda16 e, intertextualmente, no mesmo Lon-
ghi; de Piero Camporesi17 sobre a antropologia barroca; dos semió-
logos da primeira e da segunda geração, como Umberto Eco e o seu
aluno Omar Calabrese. E se a este último pertence a mais recente
tentativa de invenção daqueles «caratteri di emergenza» da nossa
época que propõe chamar de neobarroca por oposição ao abusadís-
simo – palavras suas – pós-moderno, coube a Eco, no longínquo ano
de 1962, identificar na obra barroca um exemplo premonitor daquela
estrutura de arte que entendeu como Opera Aperta:

podemos encontrar um evidente aspecto de “abertura” (na acepção


moderna do termo) na “forma aberta” barroca. Aqui é negada a defi-
nição estática e inequívoca da forma clássica renascentista, do espaço
desenvolvido em volta de um eixo central, delimitado por linhas simé-
tricas e ângulos fechados, convergindo no centro, de modo a sugerir
mais uma ideia de eternidade «essencial» do que de movimento. A
forma barroca, pelo contrário, é dinâmica, tende para uma indeter-
minação de efeito (com o seu jogo de cheios e vazios, de luz e de
obscuridade, com as suas curvas, as suas interrupções, os ângulos com
as inclinações mais diversas), e sugere uma dilatação progressiva do
espaço; a procura do movimento e do ilusório faz com que as massas
plásticas barrocas não permitam uma visão privilegiada, frontal, de-
finida, mas levem o observador a deslocar-se continuamente para ver
a obra sob aspectos sempre novos, como se ela estivesse em contínua
mutação. Se a espiritualidade barroca é vista como a primeira mani-
festação da cultura e da sensibilidade modernas, é porque aqui, pela
primeira vez, o homem se subtrai ao costume do canónico (garantido
pela ordem cósmica e pela estabilidade das essências) e se acha diante,

16
Raimondi sublinha que, no apêndice (imaginário diálogo entre o Editor e o Au-
tor) de La Cognizione del dolore, foi o próprio Gadda que escreveu no seu romance
que a sociedade da segunda metade do século XX estava representada por uma predi-
sposição «al grottesco e al barocco [che] albergano già nelle cose, nelle singole trovate
di una fenomenologia a noi esterna […] il grido-parola d’ordine “barocco è il G!”
potrebbe commutarsi nel più ragionevole e più pacato asserto “barocco è il mondo,
e il G. ne ha percepito e ritratto la baroccagine”», (Gadda, 2000: 198). Cfr. para o
aprofundamento desta relação Dombroski, 2002.
17
Cfr. Camporesi, 1991.

29

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na arte como na ciência, de um mundo em movimento que lhe pede
actos de invenção. As poéticas do espanto, do génio, da metáfora, ten-
dem no fundo, para além das suas aparências bizantinas, a estabelecer
esta tarefa inventiva do homem novo que vê na obra de arte não um
objecto fundado em relações evidentes para fruir como belo, mas um
mistério para investigar, uma tarefa a realizar, um estímulo para a
vivacidade da imaginação (Eco, 1989: 79)18.

Alguns anos antes, em Julho de 1955, no Diário de S. Paulo, apa-


recia já formulada, num artigo intitulado «A Obra de Arte Aberta»,
assinado por Haroldo de Campos, uma previsão sobre o carácter e
destino da obra neobarroca como «necessidade culturmorfológica
da expressão artística contemporânea» (H. de Campos, 1965: 31):
tal circunstância, como recorda o próprio Haroldo de Campos, in-
duz Umberto Eco, no prefácio à edição brasileira do seu livro (1968),
a escrever sobre a coincidência “curiosa” do facto de que: «alguns
anos antes de eu ter escrito Obra Aberta, Haroldo de Campos num
pequeno artigo tivesse antecipado os temas desse livro de maneira
assombrosa, como se ele houvesse escrito uma resenha do volume
que eu não havia ainda escrito e que escreveria sem ter lido o seu
artigo. Mas isto significa que certos problemas aparecem de modo
imperioso em um dado momento histórico, deduzindo-se quase que
automaticamente do estado das pesquisas em curso» (H. de Campos,
1996). De Bolonha ao Brasil, através do comentário “borgesiano”
de Eco: tempos e espaços do cronotopo barroco ganham contorno.
O Barroco, invertendo a frase de Anceschi, não é só uma questão
europeia nem tão pouco um europeísmo transposto para os trópi-
cos. A constituição moderna do continente americano, qual espaço
eminentemente barroco, conceptualização daquela «americanização
do Barroco» (Chiampi, 1998) – iniciada já nos fins dos anos 50 –, se
teve o efeito de deslocar a questão para âmbitos mais vastos, como
os da identidade nacional e cultural, de reapropriação pós-colonial de

18
Umberto Eco, aliás, reflectindo acerca da possibilidade de assimilar os dois
conceitos (com a advertência de não ver na poética barroca uma teorização consciente
da «obra aberta»), cita os estudos pioneiros de Luciano Anceschi sobre o problema da
relação entre Novecento e barroco. O próprio Eco – como dentro daquilo que pode-
mos considerar um grande intertexto – recorda que as investigações anceschianas, pelo
contributo dado a uma história da obra aberta, foram objecto de uma sua recensão ao
livro de 1960 Novecento e Barocco, (Eco, 1960: 445-448).

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categorias históricas, de reescritura estética, declara, também graças a
fórmulas de ruptura como a do cubano Lezama Lima de um barroco
como “cosa nuestra”, o início de uma perspectiva em tudo nova sobre
a qual se recoloca a relação problemática entre barroco e moderno/
pós-moderno: perspectiva, diga-se de imediato, que nos ajudará –
quase como se se tratasse da outra “perna” deste corpo problemático
– a «imparare a entrare, in pieno secolo 20, nel Barocco», segundo a
proposta fin de siècle de Guy Scarpetta. A história do debate crítico
na América do Sul, que tem nos já citados José Lezama Lima e Ha-
roldo de Campos, nos cubanos Alejo Carpentier e Severo Sarduy, em
Octavio Paz, em Jorge Luis Borges os seus melhores teóricos, dá-nos
conta, talvez mais elucidativamente, de tudo aquilo que aconteceu na
Europa, de como a «invenção» de uma tradição barroca andou pari
passu com a constatação de uma urgência neobarroca na literatura e
nas artes plásticas contemporâneas.

De fato, em nosso meio, a questão do Neobarroco ou do Barroco


Moderno vem sendo debatida desde a década de 50, como também
ocorre na Hispano-América, a partir, pelo menos, da obra seminal de
Lezama Lima, La Expresión Americana, 1957; entre nós, destaque-se
o livro de Afonso Ávila O Lúdico e as projeções do Mundo Barroco,
1971, livro que se detém argutamente sobre o fenômeno intersemióti-
co da festa barroca (H. de Campos, 1996)19.

Walter Moser faz coincidir o terceiro momento do novecentista


«retour du baroque», depois do início de século e do primeiro pós-
guerra, com o longo período que abrange o fim da Segunda Guerra
Mundial até aos anos 60, marcados, por um lado, pela «forte affir-
mation de l’identité baroque latinoaméricaine» e, por outro, pela
«découverte française du Baroque» (Moser, 1996: 405): enfim, de
Havana a Paris, como o êxul Severo Sarduy (Barthes, 1987: 209-210).
A meio caminho entre as sugestões do «herdeiro» José Lezama Lima e
as influências europeias (estruturalismo, convívio com o grupo da Tel
Quel, estudos de Rousset sobre o barroco francês), a obra ensaística
de Sarduy – a qual faz contraponto com uma rica produção poéti-
ca, narrativa, teatral que não entra no nosso estudo – funciona, pelo
menos sincronicamente, como um verdadeiro desenleamento herme-

19
Cfr. também Carlos Reis, 1995: 130-132.

31

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nêutico das categorias críticas de «El barroco y el neobarroco». Com
este título, de facto, em 1972 saiu o afortunado ensaio, resultado de
um decénio de estudos dedicados ao barroco, no célebre volume co-
lectivo América Latina en su literatura (C. Fernandes Moreno, 1972:
167-184). Texto fundador para a compreensão da noção de neobar-
roco na arte, sobretudo na literatura contemporânea, e para a recupe-
ração do barroco no continente sul-americano, Sarduy, pela primeira
vez, propõe, de uma forma sistemática, a possibilidade de codificar
através do conceito de barroco qual «esquema operatorio preciso»,
não só «la pertinencia de su aplicación al arte latinoamericano actu-
al», mas também o esboço de uma liminar definição de neobarroco
para esta arte:

el barroco actual, el neobarroco, refleja estructuralmente la inarmo-


nía, la ruptura de la homogeneidad, del logos en tanto que absoluto,
la carencia que constituye nuestro fundamento epistémico. Neobar-
roco del desequilibrio, reflejo estructural de un deseo que no puede
alcanzar su objeto, deseo para el cual el logos no ha organizado más
que una pantalla que esconde la carencia. […] Neobarroco: reflejo
necessariamente pulverizado de un saber que sabe que ya no está
«apaciblemente» cerrado sobre sí mismo. Arte del destronamiento y
la discusión (Sarduy, 1999: 1043).

Menos comprometido na demonstração de um barroco latino-


americano específico, o ensaio Barroco, de 1974, publicado em Bue-
nos Aires, centra-se na ideia de recaída, de retombée, definida como
“casualidad acrónica” ou “isomorfía no contigua”, que lhe permite
estabelecer uma homologia entre os resultados das descobertas cien-
tíficas e das práticas artísticas dos séculos XVII e XX. Um análogo
movimento epistemológico associa as duas épocas: assim como é pos-
sível atribuir à cosmologia kepleriana da elipse a revolução estéti-
ca barroca (retórica hiperbólica, Góngora na literatura, Velasquez,
Rubens, Caravaggio na pintura), do mesmo modo, a retombée das
modernas teorias do Big Bang (expansão inexorável do Universo) e
do Steady State (estado contínuo, “estável” do Universo) implicaria,
no plano da prática literária, no primeiro caso, o carácter descentrado
de textos em expansão, ou então, no segundo, «una creación continua
de materia fonética a partir de nada – ni sustentación semántica, ni
“fundamento” –: materia cuyo sentido sería justamente la exhibición

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de su estar en el presente, sin marca de origen, o marca de una origen
a partir de nada» (Sarduy, 1999: 1249).
O quadro até agora aqui proposto não tem a mínima pretensão de
exaustão, esta é apenas uma tentativa sumária de realinhamento de
certos fios, de lançamento de bases para certas conexões, de oferecer
um olhar de conjunto a um século e a um mundo que para com o Bar-
roco não teve somente «simpatia» – segundo as palavras de Calcaterra
(1949) – (de quem estamos aqui um pouco univocamente limitados de
falar): urge, quase como premissa do nosso estudo, recordar a grande
lição de Gérard Genette, para quem «le baroque s’il existe, n’est pas
plus une île (et encore moins une chasse gardée), mais un carrefour,
une «étoile» […]. Son génie est syncrétisme, son ordre est ouverture,
son propre est de n’avoir rien en propre et de pousser à leur extrême
des caractères qui sont, erratiquement, de tous les lieux et de tous les
temps. Ce qui nous importe en lui n’est pas ce qu’il a d’exclusif, mais
ce qu’il a, justement, de «typique» – c’est-à-dire d’exemplaire» (Ge-
nette, 1969 : 222).

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Primeiro Capítulo: The Resistance to Baroque

Talvez seja isto o barroco: uma contradição progressiva entre a


unidade e a totalidade, uma arte em que a extensão não é aditiva,
mas multiplicativa, em resumo, a espessura de uma aceleração.

Roland Barthes 20

20
Barthes, 1977: 147.

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1.1 O Barroco como Construção Novecentista

Sem dúvida, no que diz respeito a tipos e épocas históricas,


não podemos aceitar que idéias como a Renascença e o Barroco
sejam capazes de apreender conceitualmente o seu objeto.
Supor que poderíamos chegar a uma compreensão moderna
dos vários períodos históricos através de confrontações
polêmicas em que, como nas guinadas históricas decisivas,
as épocas se enfrentam, por assim dizer, com a viseira aberta,
seria desconhecer a natureza das nossas fontes,
que são determinadas por interesses atuais,
e não por idéias historiográficas.
Mas o que esses nomes não conseguem fazer como
conceitos, conseguem fazer como idéias. Pois nelas,
não é o semelhante que é absorvido,
e sim o extremo que chega à sua síntese.

Walter Benjamin21

O século XX construiu, à semelhança do papel que Lucien Febvre


(1966: 435-445) atribuiu a Michelet enquanto inventor do Renascimen-
to, o barroco. Ou talvez tenha contribuído para construir uma imagem
plurívoca de uma época que não tinha ainda a consciência de ser bar-
roca. Este baptismo da historiografia moderna é fiel ao mote segundo o
qual: «Histoire, Science de l’homme. Histoire, œuvre de l’Homme».
Antes de voltar a percorrer a história deste termo, já tantas vezes
feita, através das diversas passagens semânticas e das várias acepções
com que tem sido empregue, é oportuno, se não mesmo necessário,
recordar que «il termine Barocco, non è il termine con cui gli uomini
del Seicento definirono sé stessi, usavano alti termini quando li usano:
il termine Barocco viene costruito dopo, dalle generazioni successive

21
Benjamin, 1984: 63.

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che cominciano un processo polemico e critico nei confronti di ciò che
era stato il Seicento come manifestazioni soprattutto d’arte, come for-
me di comportamento»(Raimondi, 1990: 116). A advertência de Rai-
mondi não deve ser considerada óbvia: por um lado põe em questão
a utilização “sincrónica” da convenção historiográfica que com bar-
roco define tout court um século, um estilo, uma cultura; por outro,
resgata, para os contemporâneos como nós, que já metabolizaram
as estratificações semânticas desta palavra, o sentido de construção
conceptual ex post facto da categoria «barroco». Já em 1946 René
Wellek tinha pressentido tudo isto como uma conquista, poder-se-á
dizer uma conquista inteiramente do século XX, no momento em que
recordava, sintetizando os resultados, o tipo de noção «alargada» de
Barroco a que se tinha até então chegado:

In art history, today, baroque is recognized as the next stage of Euro-


pean art after the Renaissance. The term is used not only in architectu-
re, but also in sculpture and painting, and covers not only Tintoretto
and El Greco but also Rubens e Rembrandt.
Baroque is also fully established as a term in the history of music. […]
There are now also baroque philosophers: Spinoza has been called
baroque and I have seen the term applied to Leibniz, Comenius, and
even Berkeley. Spengler spoke of baroque painting, music, philosophy,
and even psychology, mathematics, and physics baroque. Baroque is
now used in general culture history for practically all manifestations
of seventeenth century civilization (Wellek, 1963: 71-72).

Antes de atingir este estádio, antes, enfim, de chegar a definir


como «barroca» a poesia de Marino ou de D. Francisco Manuel de
Melo, as esculturas de Bernini e do Aleijadinho, através de um juízo
crítico que nos parece hoje óbvio, seria conveniente não esquecer que
aquele conceito foi fruto da canonização novecentista. Cento (e tal)
anos de barroco são o testemunho significativo de como aquela época
resultou numa verdadeira projecção hermenêutica do historiador do
século XX, construída a partir da sua particular perspectiva e contin-
gente situação histórica.
Para melhor perceber o estatuto de conceito a posteriori, existem
ainda os inumeráveis contributos de interpretação aos quais o termo
barroco foi sujeito e a intervenção hermenêutica da historiografia no-
vecentista, que propôs novas e terminologicamente definidas grelhas

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críticas, onde se pudessem encastoar momentos ou épocas históricas.
São estes termos antigos com uma nova conceptualização que pas-
sam a designar aqueles que poderemos definir, de maneira geral e com
uma certa margem de erro (Silva, 1996: 420), épocas de passagem, de
transição, excluídas porque incompatíveis ou não necessárias às velhas
periodizações, como maneirismo e rococó, que agora se costumam si-
tuar respectivamente entre o Renascimento e o Barroco ou o Barro-
co e o Neoclassicismo, fragmentando, num certo sentido, a rígida e
compartimentada divisão vigente durante séculos. Quando, por volta
dos anos cinquenta, alguém como Curtius (seguido pelo seu discípulo
Hocke) propôs – talvez pela usura do termo ou pela dificuldade de
uma definição unívoca no campo literário – substituir por completo o
termo barroco pelo de «Maneirismo», mais do que resolver o proble-
ma, deslocou os parâmetros. O maneirismo, enquanto etiqueta crítica,
introduzido na linguagem dos historiadores de arte já nos anos com-
preendidos entre 1919 e 1928, extraído, a par do barroco, do campo
literário, acompanhará, com interferências, toda a discussão, não só
terminológica e periodológica, sobre a arte e sobre a cultura que se
estendem desde a segunda metade de Quinhentos até aos inícios de
Setecentos, passando a indicar, segundo as mais recentes observações,
o espírito de «anti-renascimento» situável entre o fim do século XVI
e o primeiro vinténio do século seguinte. Quando, por exemplo, en-
trarmos no problema da canonização do Barroco na história da crítica
portuguesa em pleno século XX, voltaremos a falar, pelo menos num
âmbito mais restrito (o âmbito da literatura) daquela que foi definida
como «dissolução do esquema historiográfico clássico» e, concomi-
tantemente, da utilização de termos como maneirismo e barroco.
Por agora basta-nos considerar o projecto historiográfico nove-
centista que subentende a urgência e a necessidade de re-sistematizar
épocas e tempos, culturas e movimentos artísticos e secunda a vontade
de reescrever a história de cada geração, renovando-a através dos ins-
trumentos e perspectivas do seu tempo que, de vez em quando, surgem
como as mais adequadas. Cada etiqueta que se cola a um determinado
período quase sempre contém em si um carácter de construção póstu-
ma: recordem-se, então, as palavras de Barraclough quando disse que
«se pode colher o carácter de uma época olhando-a somente retrospec-
tivamente de fora» (Barraclough, 1971: 21). Se se quiser radicalizar
a questão, tal como todo o objecto histórico, o Barroco foi construí-
do, inventado, fabricado: a mesma dificuldade no manejamento deste

39

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conceito histórico reside precisamente no seu carácter de acumulação
hermenêutica, mais do que do resultado sintético de um processo. Todo
o estudo do século XX sobre o barroco contribuiu não só para o com-
preender, para lhe dar uma definição, mas também para lhe dar uma
visão imprecisa, confusa, residual ou inflacionada.
Pareceria quase que o século XX, depois de ter aspirado ser o sé-
culo da «grande recusa» do preconceito sobre a arte do século XVII,
depois de lhe ter reabilitado os méritos e o «bom nome», depois de lhe
ter dado nova designação que, sem ser original, estava limpa da ne-
gatividade de dois séculos, pecou pela infinita, excessiva «simpatia»
pelo barroco, banalizando-lhe a voz, abusando do seu uso, para, no
fim, dele se despedir como um hóspede que permaneceu demasiado
tempo entre páginas e discursos: o uso desenfreado pode levar a uma
espécie de «escatologia estética», segundo a feliz expressão de Marc
Fumaroli22.
A parábola parece inevitável: da reabilitação mais prudente, ao
entusiasmo, até ao fastio pelo excesso do seu uso terminológico. To-
davia, depois das sanções daqueles que, como novos moralistas, pres-
creveram o seu emprego na crítica23, à palavra barroco dá-se uma
nova sorte – «car, mort ou vif, mis a prix ou déprécié, le baroque a
toujours bonne presse et bonne vent» (Pelegrin, 1983: 18) –, talvez
nunca verdadeiramente abalada. Esta fama reconhece-se em todas as
aproximações teóricas que, nos últimos quinze a vinte anos, tentaram
estabelecer as relações entre Barroco e Modernidade e, mais recente-
mente, exploraram as afinidades possíveis entre um «seu» retorno e a
condição pós-moderna:

22
A tal ameaça está ligado o irónico comentário de Aguiar e Silva que a seguir se
reproduz: «Falar, por exemplo, de barroco, acerca de qualquer texto literário só por-
que nele ocorrem antíteses, equivale a diagnosticar como tuberculose qualquer doença
em cujo quadro sintomatológico se inclua a tosse…» (Silva, 1971: 13).
23
Benito Pelegrin (1983: 17) fazia um irónico compêndio de todas as “orações
fúnebres” por ocasião da morte do barroco, de todos os seus alegados “adeuses”: «On
ne cesse de le répéter: le baroque est mort. Frappé d’un ostracisme persistant en France,
objet de mépris, le catégorie du baroque, venue de l’étranger, s’imposa peu à peu durant
l’entre-deux-guerres pour triompher indiscrètement dans les années 50-60, devenue, de
qualification péjorative, terme superlativement laudatif. “Aimez-vous le baroque? On
en a mis partout” ironise A. Baique «pour déplorer ce “déplaisant” succès” du mot».
Tel autre trouve “laudative mais inquiétante” l’inflation de ce “mot-miracle”, “cliché
emphatique mais appauvrissant”».

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C’est que scientifique ou non, concept transparent et univoque ou
non, le baroque en tant que concept en tant que réalité esthétique et
culturelle a une grande efficacité historique. Comme une comète dont
on ne voit guère le noyau, mais d’autant mieux la queue, le baroque
laisse sur son passage une large trace lumineux de débats culturels
(Moser, 1996: 409).

Se é verdade que o século XX decretou – e este é um dos seus


grandes méritos – a entrada “oficial” da categoria «barroco» na his-
toriografia, iniciada com o processo de reabilitação de uma arte, a
discussão em volta desta será escandida por outros problemas e, last
but not least, por aquele que a nós mais nos interessa, o neobarroco,
enquanto adopção terminológica, mais ou menos original, na lingua-
gem crítica e jornalística (Calabrese, 1988; 1991).

Para a Fundação da Positividade do Barroco: Na Vigília do Século

Abandonando, por agora, o problema das origens do termo, das


suas sucessivas sobreposições, da passagem decisiva para o seu uso,
como sempre “negativo”, em relação a obras de arte, iniciaremos a
nossa história crítica com um acto de «ruptura» com o qual se costu-
ma fazer coincidir, nas ciências estéticas, uma «nova» noção crítica
de Barroco. Não o faremos, porém, sem recordar, na esteira de Otto
Kurz, que esta palavra no seu significado moderno de estilo de um
século (aproximadamente o século XVII) se deve a Jacob Burckhar-
dt que, em 1855 com o seu Cicerone, teria desocupado o campo do
duplo equívoco, segundo o qual, por um lado, “baroque” era sim-
plesmente o equivalente de “bizarro”, “irregular” (tal como o tinha
entendido uma boa parte da tradição francesa e, com algumas excep-
ções, também a alemã), por outro, com uma clara acepção depreciati-
va sobre a qual interferiria a primeira, como sinal «não de um estilo»,
mas de um seu deplorável excesso, em tudo aplicável à arquitectura
pós-michelangelo (não só de Bernini, Borromini e Guarini, mas tam-
bém de artistas do fim do século XVIII, unidos pelas extravagâncias
e delírios, segundo o preconceito classicista). Não nos parece, então,
exagero afirmar que a história do uso do termo «barroco», sobretudo
para a já vista concepção negativa derivada directamente da sua ori-
gem lexical (que diferença terminológica, por exemplo, relativamen-

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te à época das Luzes atribuída, em grande parte, ao século XVIII!),
a partir do momento em que passa a indicar fenómenos de arte (e
não exclusivamente de Seiscentos), coincide por mais de dois séculos
com a reiterada censura e “resistência” a tudo quanto debaixo do seu
nome se queria circunscrever. No sub-capítulo sobre a história do
termo, ver-se-á como, num certo momento, a historiografia acusou,
exclusivamente, toda a produção artística seiscentista como sendo, na
sua generalidade, decadente.
Se foi, então, com Burckhardt que o conceito de barroco (sobre o
qual, contudo, o historiador não hesita exprimir as suas próprias re-
servas) se deslocou para um pólo de positividade, abrindo-se a novas
possibilidades hermenêuticas (Kurz, 1960; 1962), deve-se a Wölfflin,
não por acaso aluno do professor suíço, o início da reavaliação da
arte barroca. Pode dizer-se que, a partir daquele momento, se passa a
escrever Barroco com letra maiúscula, acedendo, enfim, à classe das
grandes correntes estilísticas que definem e decompõem a história de
arte. A acepção positiva, com a qual Wölfflin usa este termo e que,
enquanto tal, entra na linguagem da crítica – acepção, de resto não
aceite univocamente por todos – representa o esforço de «normaliza-
ção» ou «neutralização» da noção de barroco, quer relativamente à
sua vertente negativa, quer em relação à categoria canónica do classi-
cismo renascentista. Influenciado pelo evolucionismo, típico do tem-
po, o historiador não hesita em sublinhar o sentido de continuidade
dos sinais formais que vão do Renascimento ao Barroco (este último
não pode existir sem o primeiro, diz a advertência inicial): naquela
transição, que ele quer «explicar psicologicamente»(Wölfflin, 1928:
5), reside a dissolução de um estilo no outro.
O carácter liminar desta obra datada de 1888, Renascimento e Ba-
rocco, não escapa a ninguém: para além de penetrar em desenvolvidas
análises do estilo arquitectónico de Roma, é mérito de Wölfflin esta
primeira tentativa de estender um conceito como o de barroco (até
agora restrito às artes figurativas) aos campos da literatura e da mú-
sica. Não é de espantar que tenha sido através da música de Wagner
que Wölfflin retomou e redescobriu Palestrina – ideias essas que ele
próprio admite terem sido tiradas de Nietzsche24-. Wölfflin entrevê,

24
Muito conhecida é a afirmação nietzscheana de que: «No domínio da arte a
música foi a contra-Renascença; foi dela que surgiu a pintura posterior dos Carracci, e
talvez dela também o estilo barroco: em qualquer caso, mais dela que da arquitectura

42

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assim, a possibilidade de instaurar uma relação de afinidade, mais do
que um confronto, entre o fim de Oitocentos e o barroco:

Non si misconoscerà quanto appunto il nostro tempo sia affine al


Barocco italiano – almeno in certi fenomeni. Sono gli stessi slanci pas-
sionali quelli che costituiscono gli effetti di Riccardo Wagner. «Affo-
gare – sprofondare – inconsapevole – suprema voluttà». Il suo stile
musicale è uno stile genuinamente barocco, ed è significativo che egli
ritorni proprio al Palestrina. Il Palestrina è contemporaneo del Baroc-
co (Wölfflin, 1928: 129).

Um tempo particularmente fértil e disposto à inteligência do bar-


roco como categoria artística – assim será aquele fin de siècle percor-
rido por uma cultura e uma espiritualidade que se informavam no
simbolismo da poesia, no impressionismo da pintura, no wagnerismo
da música, no estilo liberty da arquitectura, no irracionalismo e no
relativismo de muitas correntes filosóficas. No clima desta ars nova,
inserindo-se na esteira da grande lição de Burckhardt e de Nietzsche
– para o qual era um gesto pedante a condenação do barroco –, Wöl-
fflin funda, com a doutrina da “pura visibilidade”, uma nova concep-
ção de Barroco como categoria absoluta de arte, não mais degenerada
em confronto com o Clássico, mas sim sua descendente: contraposta
uma à outra, toda a história de arte parece viver entre estes dois pólos
formais, nos quais se ouvem ecos não muito distantes das noções niet-
zschianas de arte apolínea e dionisíaca. Todavia, antes de alcançar a
cristalização precisa desta polaridade entre Renascimento e Barroco,
que a sua teoria dos opostos explica com os “famosos” cinco pares de
conceitos – linear-pictórico, superfície-profundidade, forma fechada-
forma aberta, multiplicidade-unidade, clareza absoluta-clareza rela-
tiva –, Wölfflin – que dá o maior contributo até que o Barroco seja
considerado o pólo oposto do Renascimento – parece vacilar ainda
entre a suspeita de que se trata de uma degradação deste último e a
afirmação explícita da sua completa autonomia, como algo totalmen-
te novo e que é uno em si mesmo. Daí decorre que o Barroco não seria
entendido como leitura diminuída da experiência renascentista.
Para a resolução do problema contribuirão a mediação das teses
sobre a Kunstwollen epocal, de Alois Riegl, e a recolha póstuma das

do Renascimento ou da Antiguidade» (Nietzsche, 1973: 184).

43

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suas lições universitárias em Viena entre 1901 e 1902, que culminará
na revisão crítica de 1915 a que Wölfflin dará o nome de Conceitos
Fundamentais da História da Arte, onde transforma e substancializa a
noção de Barroco, «irrigidendola in quella di “concetto fondamenta-
le” di categoria assoluta, e polo ineliminabile, contrapposto con egua-
le dignità al Classico, della vita dell’arte» (Anceschi, 1984: 52). Em
Die Entstehung der Barockkunst in Rom, obra organizada por Max
Dvorák em 1908, o historiador da arte austríaco Alois Riegl instaura
um diálogo na linha de Basilea de Burckhardt e Wölfflin, cujas ideias,
depois de ter pago o tributo de reconhecimento e de débito pelas suas
posições avançadas na matéria, procura desenvolver a fundo, não
aceitando, por exemplo, a ideia de uma certa decadência que ainda
permeava o Barroco de Wölfflin, mas afirmando a sua plena autono-
mia, como se fosse realmente um outro modo de ver e construir a rea-
lidade. Com efeito, ao recusar as interpretações históricas, sejam estas
de tipo evolucionista-mecanicista ou de tipo traumatico-catastrofista,
Riegl recorre a uma nova polaridade (já não renascimento / barroco,
mas clássico versus não-clássico): o barroco, reentrará então, segundo
ele, num processo muito mais amplo, que é a dimensão, a tendência, a
“vontade artística” (a Kunstwollen já teorizada) “não clássica” com-
parativamente à “clássica”.
Este breve reconhecimento que fundou a “positividade” do con-
ceito de barroco, entre o fim do século XIX e os inícios do século XX,
torna-se importante no momento em que toda a reavaliação teóri-
ca do barroco é atravessada por uma subterrânea e liminar ideia de
Modernidade: o embrional apelo wölffliniano (mesmo se tantas vezes
comentado) às afinidades do «nosso tempo» com «o barroco italia-
no», limitado «pelo menos a certos fenómenos», não deixa dúvidas
sobre a aplicação de conceitos do Impressionismo à arte do século
XVII (Hauser, 1989: 225). Se, aos olhos de Wölfflin, por exemplo, a
pintura de Velásquez anunciava o Impressionismo, parece indubitável
que as “novas” categorias «do nosso tempo» sabem melhor interpre-
tar e compreender o Barroco: o olhar moderno poisa pela primeira
vez sobre ele. Extremamente significativo é o passo à frente dado por
Riegl, quando afirma que «no fundo o Barroco tem qualquer coisa
a ver com o “Secessionismo”»: para ele, de facto, não basta que o
Barroco seja entendido na sua importância, é necessário entendê-lo
como parte da experiência moderna. Como escreveu Ezio Raimondi
sobre as suas teses:

44

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è evidente che il Barocco non interessa più soltanto i competenti, gli sto-
rici dell’arte, ma anche il pubblico, e la parola che usa esce dall’ambito
dell’élite culturale, investe una sensibilità più ampia, è una parola moder-
na, è anche moda. Quando una cosa diventa moda entra in un circuito più
ampio, non c’è moda senza pubblico. Quindi qui, quando diceva moda,
diceva un fenomeno tipicamente moderno (Raimondi, 1990: 216).

Tal como tinha acontecido a Wölfflin na arte, e veremos no campo


literário muitos exemplos deste tipo, também Riegl declarava explici-
tamente que o retorno do Barroco se relacionava com certas tendên-
cias, certos factos do gosto contemporâneo: a comparação, quer seja
com as correntes pictóricas, como o impressionismo (George, 1929)
ou o “secessionismo” vienense, ou o estilo liberty ou com o renova-
do interesse pela arte bizantina, leva ao estabelecimento de ligações,
analogias, ou simplesmente «afinidades» entre o barroco e a sensibili-
dade, os costumes, os modos de ser do próprio tempo, representando
não só um cómodo critério de conhecimento, mas também um moder-
no desafio à compreensão do hoje através do passado, porque, como
admite Christine Buci-Glucksmann, até ao Ottocento de Baudelaire
e Salomé e através das grandes culturas da crise – Musil, Weininger,
Klee – «cette région baroque […] n’a cessé de hanter notre présent,
celle d’un Barthes ou d’un Lacan» (Buci-Glucksmann, 1984: 12).

Uma Extensão menos Inócua: Da arte à Literatura

No fim do século XVIII, baroque era ainda um simples adjecti-


vo, pelo menos em francês (e é nesta forma que passará ao italiano),
e servia apenas para definir alguns arquitectos ou simplesmente os
seus jogos decorativos, mas, no início de Novecentos, a palavra viu-se
estendida às outras artes figurativas, segundo uma transferência que
Erwin Panofsky (1996: 24), num escrito de 1934, considerava inócua:
neste sentido não será arriscada – depois dos estudos decisivos de
Burckhardt-Wölfflin-Riegl – a proposta de alargamento do conceito
também à pintura e à escultura. Menos inócuo, ao invés, deveria ser
a segunda passagem25, na qual o conceito de barroco, adaptável a

25
Estas mesmas reservas acerca da legitimidade desta passagem estavam ainda ex-
pressas de forma irónica por M. A. Kies, nos finais da década de 50, na linha da total

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domínios para além da crítica de arte, teria comodamente transitado
para passar a definir textos literários ou composições musicais: o pri-
meiro impulso para esta nova extensão conceptual costuma fazer-se
coincidir com as duas páginas wöllflinianas sobre poesia, nas quais a
nova linguagem de Tasso, arquétipo do poetar barroco, teria expresso
«perfettamente il mutato stato d’animo» contra o poema renascimen-
tal de Ariosto ainda «semplice, brioso e svelto»26. Se outros, já antes
de 1888 ou logo a seguir, sem nenhum contacto com Wölfflin, tinham
já contemplado a possibilidade de aplicar o termo barroco ao campo
das letras, torna-se válida a tese wellekiana de «preenchimento de um
vazio»27, para quem tal transposição, em larga escala, acontece na
Alemanha do primeiro vinténio do século XX, expandindo-se daqui
para outros países: «The enormous vogue of baroque as a literary
term arose in Germany only about 1921-1922» (Wellek, 1963: 75).
Um «equívoco», a que se pode chamar «comparativista», teria es-
tado na origem desta renascimento de interesse pela poesia barroca
alemã que, naqueles anos, «was felt to be similar to the most recent
German expressionism, to its turbulent, tense, torn diction and tra-
gic view of the world induced by the aftermath of the war» (Wellek,
1963: 90). Se aceitarmos a «tese germanista» de René Wellek, não

recusa defendida por Curtius: «En définissant le baroque littéraire d‘après le baroque
artistique, on se livre à un jeu d’analogies qui est à la méthode scientifique ce que la
recherche de la pierre philosophale est à la chimie moderne», in «Montaigne e saint
François de Sales sont-ils baroques?», (Sayce, 1973: 43). Mas confronte-se também
Curtius (1992) e Rousset (1954: 8) que se perguntava sobre quais seriam as condições
de um transfer legítimo das artes figurativas para as artes literárias.
26
«Generalizzando si può dire: mentre il Rinascimento si addentrava con amorosa
cura in ogni dettaglio, e si interessava alla sua vita particolare, tanto che l’arte si studia-
va con infinita cura di riprodurre la varietà e di conformare fin nel più intimo il singolo
oggetto, ora ci si allontana dall’oggetto, e non solo si cerca la grandezza nel singolo,
ma si vuole ottenere soltanto un’impressione generale: meno osservazione, cioè, e più
sentimento» (Wölfflin, 1928: 125-126): ao aplicar este esquema aos incipit dos poemas
de Ariosto e de Tasso, explicava a mudança do estado de ânimo de um estilo poético
para outro, com a advertência fundamental na nota de rodapé de que o Marinismo
nada teria a ver com o primeiro período do Barroco.
27
«In Germany the term succeeded because it found a vacuum: terms such as the
first and the second Silesian school, which were used before, were obviously inadequate
and purely external. Baroque has become a laudatory term in the fine arts and could
easily be used for literature which beauties was discovered during the change of taste
caused by expressionism», (Wellek, 1963: 88).

46

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poderemos ignorar (algo de que o próprio crítico se desculpa no pos-
fácio de 1962) todos os exemplos onde se usam os termos «barroco»
ou mesmo «barroquismo», embora sem a forte conotação de cate-
goria estilística, tal como a tinha fixado, por volta de 1914-1915,
a crítica de arte. O «démon da analogia», na expressão de German
Bazin, para quem conceitos de arte se transfeririam para a literatu-
ra, não é ainda exclusivamente apanágio da historiografia alemã. Já
em 1887 Menendez y Pelayo recordava os méritos de Luís António
Verney (definido «crítico português de Oitocentos [sic]») na sua luta
contra o «barroquismo literário», precisamente contra o gosto lite-
rário a que o mesmo chama de sexcentismo. Outros exemplos do
uso do termo barroco no âmbito das letras não faltam, sobretudo
provenientes do Império Austro-Húngaro ou da Croácia ou mesmo
do famoso e citadíssimo passo (que é apenas um aceno) da denúncia
de Carducci (1860) contra o «manierato de’ cinquecentisti», o «ba-
rocco de’ secentisti», a «scempiata nullità degli arcadi». Em suma,
o fenómeno da transposição é europeu; aquilo que, no entanto, é de
salientar é o significado moderno desta operação. O primeiro «retour
du baroque», que paradoxalmente coincide com a sua conceptualiza-
ção crítica, seja a um nível artístico (arquitectura-escultura-pintura),
seja literário, alimenta-se do particular clima finissecular que, por um
lado, contribui para legitimar a redescoberta do Barroco e, por outro,
procura a sua própria justificação estética através das novas pesquisas
e estudos sobre o seiscentismo literário. Como, porém, foi fortemente
sublinhado, frequentemente sucedia o contrário: o confronto entre
ambas as épocas, de facto, «se da un lato portava, a causa della for-
te simpatia per la letteratura contemporanea, a salvare il Barocco,
d’altro lato si risolveva non infrequentemente in una condanna del
secentismo». Também o seu correspondente negativo nos dá a im-
portância de como «il problema del Seicento era nell’aria come un
problema vivo e attuale, quasi un problema di letteratura militante,
di un’accesa contemporaneità» (Getto, 1960: 248). Tudo aquilo que
cabe debaixo do nome «neoseiscentismo», ou renascimento do seis-
centismo, está documentado em muitos escritos daquele tempo: em
França, com as considerações de Baudelaire ou Gautier, assim como
em Itália ou na Península Ibérica. Geralmente considerado como uma
das primeiras transposições do conceito de barroco às letras em Itália
é o ensaio de Enrico Nencioni, que adquire um significado particular
pela avançada e moderna concepção de barroquismo literário, pelas

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ousadas intuições, que o próprio rotula de «discutibilíssimas», pelo
notável olhar com que liga o gosto contemporâneo ao passado, pelo
questionar – quase uma aniquilação – do eterno ideal clássico:

Questo barocchismo di cui ho esposto qualcuno dei molteplici aspetti


che ha nelle varie sue fasi del grandioso e dell’ardito, dello stravagante
e del ridicolo, del molle e del triste; è essenzialmente moderno, nella
sua appassionata ricerca del nuovo a ogni costo: e certe sue espressio-
ni, prima che esso deliri assolutamente, ci simpatizzano più della ina-
ppuntabile symmetria prisca. […] Noi siamo oggi tutti un po’ barbari,
un po’ bizantini, un po’ barocchi (Nencioni, 1898).

Se, na verdade, o escritor florentino nos leva a sublinhar a neces-


sidade de não confundir o barroco dos «audaci», como o de Bernini
ou o do padre Bartoli, com o dos «deliranti» como Borromini ou o
padre Orchi, não excluía neste último, com uma atitude cúmplice e ao
mesmo tempo irónica, a possibilidade de fazer «oggi furore a Parigi
fra certi simbolisti, non meno stravaganti e sibillini di lui». Reencon-
tramos aqui antecipadas todas as conexões e estudos comparatistas
entre a poética do século XVII e a poética decadentistico-simbolista,
na linha ideal de Stefan George e Mallarmé, de Ruben Darío ou de
Verlaine, sobre os quais tanta crítica já reflectiu e com os quais, ainda
em 1932, brinca o historiador da literatura Alfredo Pimenta:

Não compreendo que a crítica fique boquiaberta diante das charadas


de Mallarmé e do seu pastiche nosso contemporâneo, Paul Valery, e
capitule de insulsas e coisa pior as delicadezas e arabescos de alguns
dos nossos seiscentistas (Pimenta, 1932: 132).

Simbolismo e barroco na poesia, barroco e decadentismo na litera-


tura ou, como se viu, na pintura, barroco relacionado com o impressio-
nismo ou com o secessionismo (e se Roma tinha sido a capital do barro-
co histórico, poder-se-á eleger Viena para o mesmo papel relativamente
ao barroco moderno): deste momento em diante, todas as vezes que
uma corrente poética se manifestar, consciente ou inconscientemente,
devedora do Barroco, admitirá peremptoriamente a sua renovada e re-
novável contemporaneidade. Desde 1894 que o escândalo de se con-
siderar, hoje, «un po’ barocchi» atravessou o século, acabando talvez
por perder a carga de transgressão que recebia do próprio ambiente li-

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terário que, naqueles mesmos anos, o recusava como «un’apparisciente
bugia». Cada retorno barroco fará sua, obviamente de um modo di-
verso, segundo novas fórmulas, a forte reivindicação da sua própria
modernidade artística. Invertendo os termos, poder-se-á dizer que, se o
pensamento moderno se funda no inabalável valor do absolutamente
“novo”, a seus olhos o barroco se apresenta com todas as caracterís-
ticas de novidade. A urgência de restituir, de recolocar a actualidade
do barroco literário torna-se um nó interpretativo fundamental já no
primeiro pós-guerra, onde o reconhecimento benjaminiano sobre «mo-
derno» não pode prescindir do diálogo com as figuras tutelares deste
paradigma (Baudelaire, Nietzsche, mas também Blanqui) e do reconhe-
cimento de «un rivolgimento profondo introdotto dall’espressionismo»
que contribuiu para uma «comprensione autentica del fenomeno» do
barroco. Com o Drama de Benjamin completa-se o ciclo: este texto
resume «a campanha de conquista» (Perniola, 1981: 30) de toda a ge-
ração de historiadores da literatura28, que entre os anos dez e vinte
fixaram o conceito de Barroco no âmbito das letras alemãs, advertindo,
ao mesmo tempo, para a censura feita pela “inteligência” deste período
histórico, devido ao clima cultural propiciado pelo Expressionismo e
suas afinidades com a tradição poética de Seiscentos.

Mas os velhos preconceitos começam a perder sua vigência. Analo-


gias perceptíveis entre o Barroco e o estado atual da literatura alemã
ocasionaram um interesse, na maioria das vezes sentimental, mas em
todo o caso positivo, pela cultura daquela época. Já em 1904 escreveu
um historiador da literatura: “Tenho a impressão de que, nos últimos
duzentos anos, nenhuma sensibilidade artística teve tantas afinidades
com a do Barroco, em sua busca de expressão estilística, como a que
caracteriza os nossos dias. Interiormente vazios ou profundamente
convulsionados, exteriormente absorvidos por problemas técnicos e
formais: assim foram os poetas barrocos, e assim parecem ser os poe-
tas do nosso tempo, ou pelo menos aqueles que imprimiram em suas
obras a força de sua personalidade”. No meio tempo, essa opinião,
muito sóbria e reservada, foi confirmada num sentido bem mais am-
plo. (Benjamin, 1984: 76)

28
«Elaboré en histoire de l’art, le concept fut par le suite transféré en étude litté-
raires, par exemple par Strich (1916), Spoerri (1922), Walzel (1917)», (Moser, 1996:
408). Contudo, para uma lista completa dos nomes e das obras cfr. Wellek, 1963.

49

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Com extrema consciência, Walter Benjamin, nestas páginas (du-
rante muito tempo desconhecidas da cultura europeia) estabelece já a
relação profunda entre ideia artística barroca e ideia artística moder-
na, à qual regressaremos na discussão sobre a constituição de um bar-
roco moderno que György Lukács, pela primeira vez, entrevê como
«a mais audaz e coerente teorização artística novecentista»29:

Em 1915 apareceu a peça de Werfel, Die Troerinnen, inaugurando o


drama expressionista. Não é por acaso que Opitz abordou o mesmo
tema no início do drama do período barroco. Nas duas obras, os poe-
tas se preocuparam com o instrumento lingüístico e com a ressonância
das lamentações. Nos dois casos, os autores negligenciaram desenvol-
vimentos complicados e artificiais, concentrando-se numa versificação
modelada sobre o recitativo dramático. É na dimensão da linguagem
que aparece com toda a sua clareza a analogia entre as criações da-
quela época e as contemporâneas, ou do passado recente. O exagero
é uma característica comum a todas. Essas produções não brotam no
solo de uma existência comunitária estável; a violência voluntarista do
seu estilo procura, pelo contrário, mascarar, pela literatura, a ausência
de produções socialmente válidas. Como o expressionismo, o Barroco
é menos a era de um fazer artístico, que de um inflexível querer ar-
tístico. É o que sempre ocorre nas chamadas épocas de decadência. A
realidade mais alta da arte é a obra isolada e perfeita. Por vezes, no en-
tanto, a obra acabada só é acessível aos epígonos. São os períodos de
“decadência” artística, de “vontade” artística. Por isso Riegl cunhou
esse termo exatamente com relação às últimas criações artísticas do
império romano. Somente a forma como tal está ao alcance dessa von-
tade, e não a obra individual bem construída. É nesse querer que se
funda a atualidade do Barroco, depois do colapso da cultura clássica
alemã (Benjamin, 1984: 77).

Das reflexões nascidas da experiência figurativa ao esforço teórico


de aplicação da categoria «barroco» às letras, cujos resultados são já
perceptíveis, como se pode constatar, no fim dos anos 20, escoltámos
(não apenas as filigranas, como demonstram as brilhantes teses de
Benjamin) uma recorrente e forte ideia de modernidade, que suben-

29
Para a consideração de G. Lukács importa aqui lembrar o que escreveu: «Julgamos
ver cair a máscara do barroco e surgir a caveira do vanguardismo», (Lukács, 1964: 47).

50

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tende toda a reflexão crítica sobre barroco: por agora limitámo-nos a
tornar perceptível o facto de como a própria história crítica da noção
de barroco começou com a primeira reivindicação de modernidade.
Ajudando à fundação do conceito de estilo barroco, Wölfflin intuiu
a sua existência vindoura, a sua condição já não «póstuma», mas to-
mando as palavras de Benjamin, «actual»: um século depois o diálogo
continua entre o “moderno” barroco histórico e aquele que se costu-
ma indicar como barroco moderno ou neobarroco, porque «le Baro-
que est devant, je vais au-devant, j’y entre» (Scarpetta, 1985: 358).30
Como numa sonata, cumpriu-se o primeiro andamento: o fin-de-
siècle iniciou a construção conceptual de barroco e especularmente
utilizou os seus reflexos para se compreender. Mas, logo no primeiro
pós-guerra, o «espelho do barroco» alarga-se à literatura (e à músi-
ca31): a estrada foi traçada, a cada olhar sucessivo corresponderá, a
partir de agora, um novo reflexo, uma nova e moderna «reflectio»
sobre o problema:

Cominciando dal mondo figurativo, entrava così nella cultura del


primo Novecento l’idea del barocco intesa come entità intimamente
congiunta nelle sue matrici profonde al destino del moderno, tale in
qualche caso da essere pensata come l’origine stessa del moderno (Rai-
mondi, 1995: 7).

Barroco ad aeternum

Retomemos, de passagem, as considerações de Panofsky que, de-


pois de quase cinquenta anos de historiografia crítica sobre o barroco,
reconhecia o alcance e a possibilidade de uma «definição neutra» do
género «“estilo que se segue ao Renascimento” que equivale a dizer
o estilo de 600 e do princípio de 700». O significado do adjectivo
neutro, para uma noção ainda in fieri, vem de imediato explicitado:

30
A esta ideia de posteridade, de acontecimento futuro do barroco estão ligadas as
primeiras linhas de Klébaner (1979: 7): «Plus qu’un climat, qu’une culture, le baroque
me semble être une condition, je veux dire un destin».
31
Para uma história do conceito de barroco na música veja-se Beaussant, 1981;
para a questão do neobarroco musical – muito ligada, como veremos com a de um
neobarroco literário – veja-se Deshoulières, 2000.

51

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«l’accezione neutra, o se si preferisce, la storicizzazione del vecchio
termo spregiativo portò a varie estensioni nell’uso, alcune delle quali
comportano qualche rischio». Um destes – o transfer conceptual das
artes figurativas para a «poesia, para a música» e «até para a mate-
mática» – já o apelidámos de «extensão menos inócua», ficando por
tratar um dos significados que, aos olhos do historiador de arte, é
muito mais perigoso e que, em tudo, é atribuível a «persone che stori-
ci dell’arte non sono e che quindi non sono neppure aggiornate sulle
graduali correzioni apportate dai primi ai propri errori», induzindo a
notáveis confusões.

troviamo un’estensione ancor meno innocua oltre i limiti del periodo:


così ogni stile che si suppone sia correlato allo stile precedente, come il
barocco in senso stretto sia correlato al Rinascimento, può essere indi-
cato da denominazioni composite come «barocco ellenistico», «baroc-
co romanico», «barocco tardogotico» e così via (Panofsky, 1996: 24).

Não o pondo em causa directamente, embora seja demasiado visí-


vel, o alvo polémico panofskiano é Eugenio D’Ors e a sua concepção
meta-histórica do barroco, mas não só. A crítica estende-se a todos
aqueles que com ele, até aquele momento, tinham abusado da noção,
alargando-a à definição de um fenómeno recorrente em toda a histó-
ria. Não será difícil imaginar esta linha ideal que usa a palavra barro-
co como «termo tipológico»: Walzel, Worringer, Spengler, um certo
Croce, D’Ors, mas também aqueles que retomam as teses deste último
– embora sem referência explícita –, como é o caso do ensaio de Henry
Focillon, Vie des Formes, publicado em 1934, ano em que foram tam-
bém escritas (e só postumamente editadas) as linhas de Panofsky.
Se, de facto, o problema de uma definição meta-histórica dos es-
tilos estava já liminarmente presente na proposta wölffliniana das
categorias “eternas” de classicismo e barroco, a publicação – entre
as décadas de vinte e trinta (para chegar directamente aos primeiros
anos da década de 60)32 –, de estudos em defesa da perenidade históri-
32
Aguiar e Silva recorda, sem poupar nas suas críticas, como esta concepção meta-
histórica de barroco era defendida por poucos, entre os quais o marquês de Lozoya
que, ainda em 1962, afirmava: «Não temos de reiterar aqui a teoria, hoje geralmente
admitida pelos estudiosos da História da Cultura, segundo a qual o barroco não é um
facto que aparece num momento determinado da História, em fins do século XVI,
quando o gosto europeu começava a sentir fadiga dos cânones greco-romanos restau-

52

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ca do barroco deu lugar a um aceso debate no interior da mais ampla
«polémica sobre o barroco novecentista»: com as devidas distinções,
podemos compreender a inclusão de George Weise na fileira daqueles
para quem o barroco, qual tendência nórdica direccionada para uma
arbitrária e orgânica decoração, reconhecível na arte e na literatura
dos períodos de transição, é «sinónimo de estilo florido, precioso,
decorativo que se encontra em todas as épocas e em todos os países»
(Wellek, 1963: 105) ou a formulação de Benedetto Croce, precedente-
mente contrariada ou posteriormente refutada33, de barroco «non già
come un momento storico della vita dell’arte, ma un’espressione della
“non-arte”, del sentimento pratico in una volontà edonistica e sensu-
ale, che, se ebbe particolare coscienza nel Seicento, si può egualmente
trovare nell’ordine di tutto lo svolgimento estetico dell’umanità, es-
pressione di un errore di cui bisogna moralmente liberarsi» (Ances-
chi, 1984: 87). Sob o denominador comum de «arte da decadência»
conviviam Marino e D’Annunzio: as razões literárias desta “dupla”
condenação (como se pode ver, a polémica contra a literatura coeva
é também reflexo da polémica contra o século XVII) sobrepõem-se
às éticas (a reacção à moda “barroca” de importação estrangeira) e
político-ideológicas (a recusa em nome do idealismo de modelo clás-
sico-desanctisiano e renascentista).

Le origini mostrano che la parola e il concetto di «barocco» nacquero


con intento reprobativo per contrassegnare non già un’epoca della sto-
ria dello spirito e una forma dell’arte, ma un modo di perversione e di
bruttezza artistica. A mio avviso, è necessario che essi serbino o ripren-
dano, nell’uso rigoroso e scientifico, quest’ufficio e significato, amplian-
dolo e dandogli migliore determinazione logica (Croce, 1957: 20).

A esta acepção «psicológica» de significado, para seguir Getto,


através da qual o Barroco se encontraria em todos os tempos e luga-
res, Benedetto Croce chegou apenas em 1929, quando força, em senti-

rados pelo Renascimento, mas sim uma constante histórica que ressurge fatalmente no
final de todas as culturas, como termo de um processo que se inicia com o arcaico e tem
no classicismo a sua culminação» (Silva, 1996: 454).
33
Como é sabido, a reflexão crociana sobre a poesia e a literatura do século XVII
abrange um longo período: desde a publicação de I trattatisti italiani del concettismo
e Baltasar Gracián, 1899 até aos Nuovi saggi sulla letteratura italiana del Seicento,
1931.

53

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do indiscriminadamente negativo, o seu juízo – aliás já crítico – sobre
a arte «de decadência» do século XVII. Não nos cabe a nós retomar
a discussão sobre o complexo percurso teórico crociano, basta-nos
recordar as etapas de um programa de trabalho desde logo orientado
no sentido historicista e filológico para o «terreno del tutto incolto»
que é a literatura seiscentista – e daqui o mérito que lhe foi unanime-
mente reconhecido pela crítica posterior. Se conhecer historicamente
antes de julgar parece o convite do primeiro Croce, no momento em
que o conceito-etiqueta de «barroco» aparece, já no título do ensaio
Storia dell’età Barocca in Italia, como substituto de «seiscentismo»,
o mesmo termo adquire uma valência mais ampla, um acrescento se-
mântico que o eleva a categoria, a espécie eterna ou, com as próprias
palavras do filósofo, a «varietà del brutto» e do impoético.

Il Barocco è una sorta di brutto artistico, e, come tale, non è niente


di artistico, ma anzi, al contrario, qualcosa di diverso dall’arte, di cui
ha mentito l’aspetto e il nome, e nel cui luogo si è introdotto o si è
sostituito. E questo qualcosa, non obbedendo alla legge della coerenza
artistica, ribellandosi a essa e frodandola, risponde, com’è chiaro, a
un’altra legge, che non può essere se non quella della libito, del como-
do, del capriccio, e perciò utilitaria o edonistica che si chiami. Dove il
barocco, come ogni sorta di brutto artistico, ha il suo fondamento in
un bisogno pratico, quale che esso sia e, comunque, si sia formato, ma
che, nei casi come questo che si considera, si configura semplicemente
in richiesta e godimento di cosa che diletta, contro tutto e, anzitutto,
contro l’arte stessa (Croce, 1957: 25).

Esta definição de «não-estilo», de «estilo fingido» com o qual Cro-


ce procura compreender todo o fenómeno barroco, enquanto cate-
goria atemporal, é – curiosamente – abandonada não só «por razões
práticas», mas sobretudo como refutação de qualquer «paralelo» ou
«analogia», ilegítimos ou inúteis, com outras manifestações artísticas,
incorrendo sempre no risco de qualquer abuso crítico e de «subjec-
tivismo arbitrário sensu deteriori». O significado de barroco, agora
com uma nova inversão teórica, deve-se necessariamente restringir a
um tempo histórico e a um lugar para evitar «cadere in certe esagera-
zioni, alle quali la moda odierna, che nelle arti figurative si viene ri-
volgendo al barocco, potrebbe non difficilmente sedurre». Paradigma
de toda a censura novecentista do barroco, o sistema crociano retrata

54

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cada instância de atemporalidade, estabelece precisas coordenadas
históricas e geográficas: por barroco entende-se

quella perversione artistica, dominata dal bisogno dello stupefacente,


che si osserva in Europa, a un dipresso, dagli ultimi decenni del Cin-
quecento alla fine del Seicento […] Il barocchismo fu, sostanzialmente,
italianismo.

Sobre todo um século de «depressão espiritual», sobre o seu centro


de irradiação, a Itália, e sobre os efeitos europeus desta manifestação
corrupta, abate-se toda a condenação crociana que, antes de ser esté-
tica, é resolutamente moral.
Todavia, na economia do nosso discurso, até este preciso momen-
to podemos apenas discorrer sobre as prefigurações daquilo que al-
guns viram como um perigoso alargamento do conceito de Barroco:
nem a Croce nem aos outros pertencia a carga transgressiva teórica
da doutrina d’orsiana, o impulso semântico e conceptual, irreversível
num certo sentido, que subjaz ao complexo sistema cultural, e não
só artístico, do pensador franco-espanhol. Pontigny assinala, talvez
inevitavelmente, o ponto decisivo da «explosão barroca» no século
XX. Na sua famosa conferência sobre a “janela” de Tomar (1931),
Eugenio D’Ors ilustra os termos da sua doutrina dualística, fundada
sobre a antítese vida-razão, enquanto melhor suporte crítico em defe-
sa e em justificação du Baroque. O alcance teórico de uma concepção
“eterna” do barroco contém já em si um extraordinário carácter de
originalidade e novidade, sobretudo se comparado ao clima cultural
no qual o pensamento d’orsiano – como bem se viu – se forma: um
caleidoscópio de movimentos artísticos e de manifestações filosóficas
nessa Paris pós-bélica, «al tempo della ripresa classica tra Le Corbu-
sier e Valéry, tra certo Picasso e certo Alain, nel tempo della metafisica
e dell’architettura razionale e dello stile saggistico» (Anceschi, 1984:
88). Com efeito, quase como reacção ao obstinado juízo de Croce, à
sua posição «così negativa e esorcizzante» do Barroco, D’Ors recon-
duz a antítese metafísica de Vida (ou salto das forças irracionais) e
Razão (ou actividade criadora das leis lógicas), a antítese estilístico-
tipológica de Classicismo e Barroco:

Sendo, por essência, todo o classicismo intellectualista, é, por defini-


ção, normativo e autoritário. Reciprocamente, porque todo o barro-

55

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quismo é vitalista, será libertino e traduzirá um abandono, uma vene-
ração perante a força (D’Ors, 1990: 87).

Em nome da prescrição destes princípios eternos, reconhecíveis


antagonicamente através de toda a história da arte, através de toda a
civilização, ou mesmo «per estensione» através de «tutta la morfolo-
gia della natura», Barroco e Classicismo são promovidos a categorias
atemporais, constantes eternas ou, na linguagem d’orsiana, éons de
igual dignidade e prestígio, já não uma doença, no caso do primeiro,
ou degenerescência, no caso do segundo. Nas mais diversas condições
temporais e espaciais o eterno ideal barroco pode renascer (e renas-
ce) como uma real e verdadeira necessidade vital34 nos seus vinte e
dois variados géneros para os quais a fantasiosa engenharia lexical de
D’Ors construiu tantos outros nomes: do «barocchus pristinus» ao
«archaicus», do «macedonicus» ao «gothicus», passando pelo «ro-
manus» ou «buddhicus». O barroco é agora verdadeiramente eterno
e, se o estilo histórico apelidado de «tridentinus, sive romanicus, sive
gesuiticus» se derrete e se perde na fúria coleccionista deste Barock-
museum, o mérito da sua proposta está no ter sabido reconhecer, com
grande agudeza, a modernidade intrínseca ao barroco, já detectada
por outros, mas que ele reconduz ao «barrochus finissecularis» (de
Wagner, Rodin, Rimbaud, dos decadentistas, de Bergson, de William
James) ou ao «postbellicus» (do pós-guerra): entre intuições fecundas
e posições contraditórias e, sobretudo, para além das suas classifica-
ções «à maneira de Lineu», D’Ors abre ao barroco a possibilidade,
em tudo novecentista, de ser repensado e reescrito, tal como demons-
trou a história da cultura do século que agora terminou. Não é por
acaso, de facto, que o pensamento gnóstico de D’Ors, que canonizou
uma concepção meta-histórica do barroco, é retomado, não só por
outros estudiosos na esteira do inicial e coevo entusiasmo pelas suas
teses e também, apesar de uma forte recusa académica, por autores
como o “fenomenografo” Maffesoli que – no meio daqueles que são
definidos «morphologues qui travaillant dans une phénoménologie
esthétique du concret» (Moser, 1996: 408) – quis desenvolver a in-

34
«A excepção, a aventura, a evasão são indispensáveis com a plenitude das suas
possibilidades, com a sua riqueza. Convém que, assim como Anteu no contacto com
a terra, a Cultura venha de quando em quando refrescar-se nas águas vivas – vivas e
turvas – do Barroco Carnaval, férias da história» (D’Ors, 1990: 113).

56

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tuição de d’Ors utilizando o barroco, não tanto como «ensemble ar-
tistique bien délimité» ou como «type de sensibilité», mas sim como
«levier méthodologique» adaptado à compreensão do nosso tempo
e daquilo a que gosta de chamar «baroquisation de l’existence» na
nossa sociedade35.
A proposta libertadora de um barroco «grande agitador de for-
mas», como resultado da discriminação supra-histórica entre «for-
mas que voam» e classicizantes «formas que pesam», foi recebida
e desenvolvida no quadro de teorização estética de um dos pais da
crítica formal da história da arte, Henry Focillon. Logo na sua Vie
des formes, é posta em relevo uma concepção da história que rejeita a
positivista e progressiva sucessão cronológica do tempo36, que define
«mistica secolar» em favor de uma ideia de história como «conflito
de precocidades, actualidades e atrasos» (Focillon, s.d.: 103). Isto é
ainda mais verdadeiro para a obra de arte que, nesta história – que já
não é « um seguimento bem ligado de um quadro harmonioso» mas,
em cada um dos seus pontos, «diversidade, troca, conflito» – está
atarefada, pois que a arte «sendo acção, age dentro dela e fora dela».
Com base nestas teses, Focillon admite a existência de um estado bar-
roco atemporal que «permite igualmente reencontrar a constância
dos mesmos caracteres nos meios e tempos mais diversos» (Focillon,
s.d.: 30). O “despregar” da multiplicidade das formas artísticas não
obedece, portanto, a nenhuma lei temporal ou espacial: já não se fala
em analogias e influências e, nem sequer, em imitação entre épocas
diferentes, a partir do momento em que a vida de cada estilo já não
é apercebida como algo imutável, mas sim como «o desenvolvimento
de um conjunto coerente de formas unidas por uma concordância
recíproca, mas cuja harmonia, se faz e desfaz com diversidade» (Fo-

35
«A l’image du genre félin (Felix leo, Felix tigris, Felix catus), [d’Ors] donne
au genre Barocchus une série d’espèces (buddichus, rococo, romanticus, vulgaris…).
Pourquoi ne pas continuer la liste, et se demander si n’est pas en train de naître un
Barocchus post-modernus, aux contours théoriques encore indéterminés, mais dont
les multiples manifestations n’échappent pas à l’observateur averti. C’est cela même
qu’induit l’aventure intellectuelle dont il vient d’être question: saisir à l’état naissant
une nouvelle manière d’être-ensemble fonde moins sur la causalité linéaire ou sur une
mécanique extérieure (politique ou économique) que sur une attraction organique à
partir d’images que l’on partage» (Maffesoli, 1990: 154-155).
36
«A história não é unilinear e puramente sucessiva ; pode ser considerada como
uma sucessão de presentes profundamente extensos» (Focillon, s.d.: 102).

57

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cillon, s.d.: 19). Assim como «o classicismo não é o privilégio da arte
antiga, que passou por estados diversos e que deixa de ser clássica
quando se torna arte barroca» (Focillon, s.d.: 28), este último estilo
«desde há três séculos que deixou de ser apanágio da Europa ». As-
sim, também para Focillon, o Barroco

É apenas um momento da vida das formas e sem dúvida o mais liber-


to. Foi o momento em que ellas esqueceram ou desnaturaram o prin-
cípio da conveniência íntima cujo acordo com os enquadrmaentos,
e sobretudo com os da arquitectura, constitui um aspecto essencial ;
vivem por si mesma intensamente, espalham-se sem freios, proliferam
como um mostro vegetal. Vão-se separando à medida que crescem,
tentam invadir o espaço e perfurá-lo por todos os lados, desposar-
lhe todas as possibilidades, e dir-se-ia que se deleitam com esta posse
(Focillon, s.d.: 30).

A esta concepção “dialéctica” dos estilos, que actuaria através de


um processo a dois tempos (de uma fase «clássica», «de estabilidade»
a uma fase «barroca»), Raimondi aproxima a tentativa de Curtius, ou
seja, esvaziar o Maneirismo de todos os estilhaços do tempo histórico,
para que, em vez da representação de um episódio exclusivo e unívo-
co da história, se constitua como verdadeira tradição «que encontre
em si mesma a sua lei de desenvolvimento» e como tendência retó-
rica, em cuja continuidade conviveriam «lado a lado o preciosismo
da Idade Média latina e o conceptismo do assim chamado Barroco»
(Raimondi, 1962: 61-62).

58

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1.2 Le Mot et le Concept

Il y a aurait une thèse à écrire…


Elle serait exclusivement consacrée aux variations de sens et
d’emploi du mot «baroque», comme aux allégorèses du mot, qui
se commentent les unes les autres…«L’ensemble ferait au moins mille pages».
Car il y a presque autant de théories du baroque que de livres sur la question…

C. Desoulières37

Da filologia, cujos melhores estudos se concentram entre os anos


50 e 60 – tendo em conta a advertência de Wellek, para quem, em
1946, ainda não tinha sido feita uma «história completa» do termo,
apreendemos que a palavra barroco existia já antes da idade, ou do
estilo, que viria a definir (o mesmo se passará com a palavra neobar-
roco). Apreendemos também, para além das arriscadas, ou mesmo
fantásticas, conjecturas38, que uma dupla proveniência está na sua
origem: numa, barroco é o quarto modo da segunda figura na nomen-
clatura escolástica dos silogismos39. Defendida por Borinski, Croce
e Calcaterra, esta etimologia justifica-se sobretudo à luz da fortuna
que a história da sua paródia registou, em numerosos exemplos, a
partir do século XVI, quando, superada a lógica medieval, os seus
raciocínios, a sua terminologia e a sua maneira de pensar passaram

37
Deshoulières, 2000: 71-72.
38
Entre as muitas é de salientar aquela que faz derivar a palavra «barroco» do
nome de Federico Barocci, o iniciador da pintura barroca ou, se se quiser, «para entrar
no campo das etimologias desenfreadas», aquela que se baseia no termo alemão “Pe-
rücke” «peruca», objecto usado na sociedade barroca que, pronunciado em dialecto de
Viena, se aproxima a “Barucken” (Kurz, 1962: 17-18).
39
«Gli scrittori di logica medievale coniarono un numero di parole artificiali che
aiutavano a tenere in mente i vari sillogismi. Oggigiorno i primi due “Barbara, Cela-
rent”, sono i più famosi; vi è però anche un Baroco, come risulta dal I versus memoria-
lis che per molti secoli tutti gli studenti dovevano imparare a memoria

59

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a ser objecto de escárnio e divertimento. Para além dos conhecidos
exemplos dentro do âmbito italiano – com a vistosa excepção de
Montaigne – que Giovanni Getto40 recolhe, demonstrando que, pelo
menos durante dois séculos, até ao século XVIII, o termo barroco tem
«come punto di partenza il termine tecnico scolastico sopra ricordato,
e come linea di sviluppo l’uso polemico e irrisorio di esso». Bruno Mi-
gliorini (1962: 39-49), acrescenta outros exemplos: antes, pois, que
Annibal Caro na sua Apologia degli Accademici ridicularize «estes
silogismos», ou Giovan Francesco Ferrari nas Rime Burlesche (1570)
escarneça dos «argomenti in baricoco», o sentido pejorativo do termo
pode já encontrar-se em Erasmo na Ratio seu compendium theologiae
(1519) ou então na crítica aos professores da Sorbonne apelidados de
«sofistas in baroco e baralipton» pelo humanista espanhol Juan Vives
(1519), ou ainda num texto latino de 1517 Epistolae Obscurorum vi-
rorum novae, segundo a proposta de Aguiar e Silva (1996: 440) que,
contudo, limita o alcance científico desta derivação.
A esta hipótese, por assim dizer, «italianista» alguém (Venturi,
Woermann) quis sobrepor uma outra origem etimológica que, tal
como a primeira, remonta a uma tradição exclusivamente “italia-
na”: Baroccho o Barocchio (assim como “Scrocchio”, “Ritrangolo”),
encontrados num manuscrito italiano de Mabillon, sobre os quais o
mesmo pedia informações, seriam, como consta da carta de resposta
de Magliabecchi em 1688, termos equivalentes para indicar uma for-
ma específica de usura fraudulenta, de engano ou, na língua do tem-
po, de «altri simili baronerie e iniquisissime usure». A Kurz, que lhe
traçou uma breve mas significativa história, do «baraccolo» da baixa
Idade Média até à forma «barroco» dos finais de 700 citado nos di-

Barbara, Celarent, Darii, Ferion, Baralipton,


Celantes, Dabitis, Fapesmo, Frisesomorum,
Cesare, Camestres, Festino, Baroco, Darapti,
Felapto, Disamis, Datisi, Bocardo, Ferison.
La parola Baroco contiene la vocale A che indica il carattere universale affermativo
della premessa maggiore e le due vocali O che indicano che la minore e la conclusione sono
negative. La consonante B si riferisce al sillogismo Barbara, ecc.» (Kurz, 1960: 415).
40
Estão referidos os excertos (para o séc. XVII) de Fulvio Testi, de Francesco Fulvio
Frugoni, de Magalotti e (para o séc. XVIII) de Clasio, que fazem o contraponto com o
excerto mais conhecido de Montaigne: «C’est Baroco et Baralipton qui rendent leurs
supports ainsi crottez et enfumez; ce n’est pas elle [isto é, a filosofia]» (Getto, 1960:
213-214).

60

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cionários, devemos contudo a ponderada posição na qual se admite
a dificuldade de transpor este terminus techinicus, que permaneceu,
fora do seu contexto e para sempre desconhecido, como nome de um
estilo (Kurz, 1960: 417-419).
Resta, em última análise, recordar uma outra e – hoje em dia –
mais atestada proveniência etimológica de “barroco”, enquanto ter-
mo português que indica um tipo de pérola não esférica (Getto, 1960:
214; Corominas, s.d.: 450-451) que, na sua dupla acepção semântica
luso-espanhola «barroco-barrueco», passou em forma adjectival ao
francês «baroque». A pesquisa documental reconhece, já a partir de
Quinhentos, em textos espanhóis e franceses a denominação destas
pérolas bolbosas e irregulares com a forma berrueco ou com baro-
que; algumas destas atestações são mesmo anteriores ao impulso co-
mercial, desenvolvido pelos portugueses no Oriente, de venda destas
pérolas, com a fundação da importante escala mercantil em Diu, nas
imediações de Barokia cidade do “Guzarate” (a antiga Baryzaga de
Ptolomeu). Uma nova intermitência léxico-formal – as pérolas de Ba-
rokia (segundo tese de Butler) – teria apenas servido para reforçar o
portuguesismo “barroco”41 que, de resto, “apenas” se encontra refe-
rido em 1563 nos Colóquios dos Simples e Drogas da Índia de Garcia
de Orta, a partir do momento em que, como termo de ourivesaria,
em francês, a sua difusão se abre a notáveis mutações semânticas.
Com efeito, depois da acepção de pérola irregular, com a qual ain-
da em 1694 é admitida no Dictionaire de l’Académie Française, o
termo «baroque» conhecerá pelo menos dois grandes momentos de
passagem antes de se fixar, como vimos depois da segunda metade do
século XIX, como nome de um estilo, mais concretamente em Seiscen-
tos. O primeiro momento corresponde, aproximadamente, ao sentido
figurado que em Setecentos se atribui ao adjectivo baroque, resumível
na fórmula do Dicionário de Trévoux: «Baroque, se dit aussi au figu-
ré pour irrégulier, bizarre, inégal. Un esprit baroque. Une expression
baroque. Une figure baroque». Muitos são os exemplos franceses do
século XVII (Marivaux, de Brosses), nos quais se dá a passagem de
um termo rigidamente técnico a um significado mais genérico de “bi-
zarro” aplicado a realidades físicas ou morais. Nesta direcção parece,
em tudo, justificado o termo baroque, como sinónimo de não harmo-

41
Para o aprofundamento da história “portuguesa” do termo «barroco», cfr. Silva,
1996: 438-444; Butler, 1959: 9 e ss.; Hatzfeld, 1972.

61

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nioso, seja este utilizado «por extensão» aos objectos de arte, como
resultado da terceira acepção reportada não só por Trévoux, mas
também por A. J. Pernety. Quer um, quer outro falam de baroque na
pintura (como fará, mudando o adjectivo francês, Winckelmann) com
o mesmo significado que, por exemplo, Charles de Brosses usa em
relação ao costume (confundindo gosto gótico e gosto barroco), ou
mesmo Jean-Jacques Rousseau que o faz, pelo menos duas vezes, em
relação à música: «Une musique baroque est celle, dont l’harmonie
est confuse, chargée de modulations et de dissonances, ce chant dur et
peu naturel, l’intonation difficile, et le mouvant contraire».
Todos estes exemplos reforçam a ideia de que, pelo menos em
França, sobre o adjectivo reina ainda uma indefinição semântica, des-
tinada a perdurar para além da sua fixação substantiva como nome
de estilo: baroque sinónimo de bizarro servia para tudo. Hoje, de-
pois do «século barroco», aquele sentido indefinido que subjaz a esta
palavra parece reemergir e triunfar na língua quotidiana, libertada
das canonizações historiográficas e das limitações académicas; parece
mesmo reivindicar o seu princípio de indeterminação.
Quem mais precisamente falará de «baroque» para uma arte como
a arquitectura será Quatremère de Quincy – seguido, sem origina-
lidade alguma, por Milizia que, pela primeira vez em Itália, aplica
barroco ao âmbito da arte – não ainda, porém, como estilo de um
momento histórico preciso, mas como contraste pejorativo, relativo
a um grupo de arquitectos acomodados ao abuso de ter trazido o
ridículo ao excesso:

Le Baroque, en architecture, est une nuance du bizarre. Il en est, si on


veut, le raffinement, ou s’il était possible de le dire, l’abus. Ce que la
sévérité est la sagesse du goût, le baroque l’est au bizarre, c’est-à-dire
qu’il en est le superlatif. L’idée du baroque entraîne avec soi celle de
ridicule posé à l’excès (Quincy, 1832: 159).

O adjectivo francês faz o seu exórdio na terminologia da crítica


de arte: o seu significado aplicado genericamente às artes figurativas
(mas também à música), em particular à arquitectura, não conhece
outra acepção senão a negativa de «degradazione del bizzarro», de
«capriccio», de «sregolato»: pronunciar a palavra baroque signifi-
ca, então, condenar ou censurar. Se, com efeito, Milizia – em 1797,
nove anos depois de Quincy – à lista de arquitectos de gosto baroque

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do francês (Borromini e Guarini) acrescenta os nomes de um «seis-
centista» como Pozzi e de um seu contemporâneo como Marchione,
compreende-se como, por um lado, o barroco é ainda «il superlativo
del bizzarro, l’eccesso del ridicolo» (Milizia, 1822: 12) e, por outro,
como por detrás do gesto de condenação, se entrevê uma primeira
e imprecisa espécie de catalogação. Não é por acaso que, daqui em
diante, quando se fala de arte frequentemente se confundirão os pe-
ríodos de Barroco e Rocaille e que, quando «baroque» é usado como
simples adjectivo, possa recobrir uma multiplicidade de sentidos:
eram barrocas as pessoas, não menos que os objectos, um tipo de
dialecto ou até as montanhas suíças… talvez prefigurações d’orsianas
de um «mar barroco».
No entanto, se não estamos longe de chegar ao significado «mo-
derno» da palavra, um outro grande ajuste semântico deverá intervir
neste conceito, no momento em que for elevado a categoria estilística
com contornos históricos específicos. Como pudemos fazer notar, ca-
berá à historiografia alemã a primeira sistematização do Barroco num
esquema cronológico dos estilos artísticos. Se, tal como sugere Otto
Kurz, não é justo falar de uma palavra quando existem pelo menos
três distintas que subjazem ao significante “barroco”, não se deve
esquecer como, a partir do momento em que o seu conceito se des-
vinculou das suas origens etimológicas – conservando-lhe a conota-
ção pejorativa – ele foi objecto de continuação, controversa, polémica
exegese, durante todo o século XX.

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1.3 Do Seiscentismo ao Barroco: Breve História Crítica da In-
terpretação de um Século

Querem-me aqui todos mal,


E eu quero mal a todos.
Êles e eu, por varios modos,
Nos pagamos tal por tal.

E querendo eu mal a quantos


Me têm ódio tão vemente,
o meu ódio é mais valente,
Pois sou só, e êles tantos.

Gregório de Matos

Se admitirmos que a historiografia literária funciona como re-


construção, segundo proposta de Romano Luperini (1998: 5-7), o
cânone crítico que, de um modo geral, poderemos definir como «anti-
seiscentista» funda-se, na história da literatura portuguesa, na famosa
condenação de António Verney contida na carta VII do seu Verda-
deiro Método de Estudar, publicado em Nápoles em 1746 (síntese
de uma reacção que se pode fazer retroceder no tempo: o papel do
Conde de Ericeira em finais do século XVII, o Exame Crítico de 1739
de Valadares e Sousa). Os termos “seiscentismo” e “seiscentista”,
adoptados pela crítica italiana da época, entram no léxico historio-
gráfico português para atribuir a todos os fenómenos de arte, ou me-
lhor literários, o significado cronológico e uma fortíssima conotação
«estético-depreciativa» (Aguiar e Silva, 1973: 147). De facto, se é pos-
sível traçar genealogicamente um percurso , como de resto foi já feito,
no qual os primeiros sintomas críticos são já reconhecíveis no século
XVII, será apenas com a canonização neo-clássica que toda a produ-
ção poética de Seiscentos virá a ser rejeitada em nome da fundação de
uma nova poética (Arcádia) ou em nome de um projecto pedagógico-

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iluminista (Verney): o «seiscentismo» poético como extrema síntese
da produção conceptista (ou gongórica) e culterana é uma invenção
do século XVIII; um só nome basta para denegrir todas as manifesta-
ções de um século. Em Setecentos censura-se. No século precedente,
os exemplos de crítica aos excessos e aos abusos da literatura não por
acaso provêm de textos metapoéticos; o seu carácter é quase sempre
lúdico e irrisório, quase como se a própria poesia (“doente” como
alguém mais tarde dirá) encontrasse os antídotos contra si própria. O
caso mais significativo é, talvez, o dos versos das Saudades de Apollo
de D. Próspero dos Mártires, nos quais se escarnece de toda a poe-
sia “culta” da época e que, paradoxalmente (mas só para alguns),
se encontra recolhida na mesma antologia: a Fénix Renascida que
juntamente com o Postilhão de Apolo virão um dia a representar os
cancioneiros de poesia barroca portuguesa.

Do quarto globo a gema nunca avara,


Que tem por casca o Ceo, nuvens por clara;
Nunca ninguem tal dice,
Não vi mais descarada parvoice!
Grande cousa he ser culto,
Fingir quiméras, e fallar a vulto!
Mas sempre ouvi dizer desta Poesia,
Que vestido de imagem parecia;
Pois quando vemos o que dentro encobre,
Quatro páos carunchosos nos descobre.
Faça-lhe a culturana
Muy bom proveito à lingua Castelhana;
Que a frase Portugueza por sizuda,
Por prezada, e por grave não se muda,
Não se occulta entre cultas ignorancias,
Pois toda he cultivada de elegancias

(Fénix Renascida, tomo V, pp. 54-55).

“Pastiche” satírico da poesia culterana assim foi definido (Aguiar


e Silva, 1973: 126), mas não só. A sua linguagem, que prefere «fin-
gir quimeras», com insistência na metáfora e hipérbato nos primei-
ros dois versos, é rotulada como sendo a «mais descarada parvoice»,
a própria essência do culteranismo é a sua aparência: «vestido de

65

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imagem» que nada contém, artifício exterior e «quatro páos ca-
runchosos» na sua maior profundidade. Poesia que não se adap-
ta obviamente à língua portuguesa, «por prezada», mas apenas à
castelhana, num misto de apologia ao idioma (baseada em motivos
ideológico-políticos) e de polémica acenada, mas incisiva relativa-
mente aos gongorantes.
Como bem notou Aguiar e Silva, a reacção «seiscentista» anti-
seiscentista diz quase exclusivamente respeito à vertente culterana da
poesia lírica, e, no fim de contas, as suas críticas não eram senão a
«observação avulsa», a «condenação de exíguo fôlego e amplitude»,
o «traço caricatural» (Aguiar e Silva, 1973: 159).
A censura neoclássica da poesia precedente insere-se, ao invés,
num âmbito mais extenso de sistematização de uma teoria estético-
literária: restaurar modelos e preceitos clássicos da mimesis entre arte
e natureza significa resolver o problema da determinação de leis ob-
jectivas do belo, de uma sua teoria que se integra coerentemente num
projecto de carácter racionalista:

Para a estética clássica é a ideia de natureza que permite uma essência


do belo, um belo absoluto, determinando a existência, em todos os
espíritos, de uma ideia acerca do agrado, da excelência e da perfei-
ção. Para lá de toda a arbitrariedade, que é a instituição humana, a
essência do belo residirá na ordem, regularidade, proporção e simetria
(Calafate, 2001a: 249).

O anti-seiscentismo torna-se canónico no momento em que a esté-


tica neoclássica decreta a própria estrutura legislativa: a condenação
da poesia do século precedente serve de contraste para a elaboração de
algumas regras pouco flexíveis, características de uma civilização lite-
rária que «arrivata a un certo punto del suo sviluppo,sente il bisogno,
per usare un termine di Habermas, non solo di “autocomprensione”,
ma anche di rendere certa e permanente questa “autocomprensione”»
(Curi, 1997: 497). Se, por um lado, o cânone classicista for entendido
na acepção de conjunto de normas retóricas de gosto, de poética, pela
necessidade de se ater fielmente às regras clássicas, não pode senão
prescindir, com um repúdio a priori e não resultante de uma pesquisa
histórica, da poesia produzida desde os fins do século XVI até aos pri-
meiros decénios do século XVIII (por volta de 1580-1720, de acordo
com o topos repetido até ao século XX, segundo o qual de Camões se

66

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«conserva» e «salva» somente o épico em detrimento do lírico42); por
outro lado, o mesmo cânone classicista, entendido do ponto de vista
da recepção, deve erguer-se à posição de legislador, mas de modo a
ser «l’interprete delle esigenze della classe e della cultura dominante»
(Curi, 1997: 497). O neoclassicismo funda, então, o seu cânone tam-
bém para indicar «a tábua dos valores prevalentes» na sua época: a
condenação do século XVII por parte de tanta historiografia iluminis-
ta (muitas vezes directamente inspirada pelo e em favor do Marquês
de Pombal) desembocará na condenação romântica da qual integra-
rá muitos aspectos, mais concretamente, e tem razão Aguiar e Silva,
numa nova perspectiva historico-literária.
Com efeito, privilegiando aquela pista hermenêutica que tende a
interpretar, segundo uma relação de estreita causalidade (quase me-
canicista), fenómenos literários e fenómenos históricos, sociais e polí-
ticos, a historiografia literária romântica, na sua fúria motivacionista
da decadência do século XVII, acaba por extravasar o puro âmbi-
to estético-artístico, misturando causas religiosas (a expulsão dos
hebreus da Península, a Inquisição), políticas (Alcácer-Quibir como
símbolo da derrota e consequente perda da independência), sociais
(a ruína do império ultramarino, a mediocridade dos reinos bragan-
tinos, a dissolução dos costumes, a indolência dos portugueses, a sua
repulsa pelas profissões burguesas – comércio, indústria – caracte-
rísticas dos estados europeus modernos). Por tais causas (as supra
citadas sintetizam apenas as considerações de Simonde de Sismondi,
posteriormente resumidas por Ferdinand Denis, às quais acrescenta a
nefasta «influência monástica e jesuíta»), o juízo sobre a poesia, em
particular sobre a lírica, não pode senão girar em torno do já conheci-
do refrão da «decadência»: degenerescência, monotonia, extravagan-
42
Gostaríamos de lembrar que, no final da década de vinte, Fernando Pessoa, em
nome de um projecto de poesia genuinamente nacional, reduziu a «intervalo alheio»
pelo menos trezentos anos de poesia portuguesa, onde os Lusíadas são o terminus a
quo e Antero o terminus ad quem: «Entre o fim da nossa poesia medieval, que era
nossa, e o princípio da Escola de Coimbra. Em que de novo fomos nossos em verso, a
poesia portuguesa decorreu súbdita de influências estranhas. Portugal poético, como
nação independente, adormeceu com Gil Vicente e metade de Camões, e despertou só
com Antero. O intervalo foi alheio» (Pessoa, 2000: 409-410). Neste sentido parece,
todavia, excessivamente redutor falar, como pretende E. M. de Melo e Castro (1990;
1995), de condenação pessoana do Barroco nacional, ou até da poesia tout court (e o
adorado Milton, por exemplo?) daquele período «em consonância com a crítica mate-
rialista e positivista do século XIX» (Melo e Castro, 1995: 44).

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ce, futilidade são apenas o contraponto estético de uma condenação
que antes de tudo é ideológica:

Condenam nessa poesia o cálculo e o frio artificialismo […] e essa


conceituação alicerça-se numa ideologia liberalista, segundo a qual os
dois grandes inimigos da liberdade do homem e consequentemente, do
florescimento das artes e da cultura, são a tirania régia e o despotismo
inquisitorial aliado ao obscurantismo religioso (Silva, 1971: 164).

«Triste data», «dias de luto», «corrupção do gosto», «barbárie»:


para o período que vai aproximadamente de 1580 a 1720, para os
historiadores liberais do século XIX, como Garrett, o Cardeal Saraiva,
Francisco Freire de Carvalho, mas também Alexandre Herculano, a
condenação é unívoca. A produção lírica, em particular, passa tam-
bém a ser espelho fiel desta decadência nacional e espiritual: a perda da
independência serve para explicar o culto do castelhano e das modas
importadas como o gongorismo ou o conceptismo italiano43, a Inqui-
sição e os jesuítas são culpados pelo atraso cultural, pela imposição da
restrição à livre circulação de obras e ideias novas; há até quem, como
Rebelo da Silva, na linha dos preceitos herderianos da filosofia da his-
tória, faça derivar da “suspensão” que o Renascimento representou
na evolução do génio poético nacional (nascido da Idade Média), com
a importação de modelos que teriam sufocado a potência criadora de
um povo, os motivos da decadência da literatura seiscentista.
Obra de charneira entre a historiografia de Oitocentos e a de No-
vecentos, a História da Literatura Portuguesa de Teófilo Braga (o
terceiro volume intitula-se Os Seiscentistas) traduz todas as interpre-
tações da crítica liberal e transporta-as para o novo século, sob os
auspícios da ideologia positivista e laica, para a qual: «a história da
nossa literatura no século XVII é síntese desta decadência». Portugal,
enquanto “colónia dos Jesuítas”, reprimido por um poder monárqui-
co que limitou todas as liberdades individuais, é sobretudo o labora-
tório onde (e talvez em maior escala em confronto com outros países
católicos) «a corrente científica devia ser suplantada pelo humanismo
da educação jesuítica» (Braga, 1984: 11): à certeira preponderância
dos ensinamentos dos Jesuítas, tudo em prejuízo do estudo da Ciên-

43
Cfr. por exemplo, sobre a «teoria da propagação do erro» de Itália para a Penín-
sula Ibérica, Herculano, 1986: 17.

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cia, como bom comtiano, Teófilo Braga atribui o papel determinante
da corrupção literária: «a literatura tornou-se uma ocupação de ocio-
sos, sem relação com os interesses morais e sociais do tempo» (Braga,
1984: 11). Mas não só: a literatura europeia do século XVII foi cor-
rompida por um «prurido novo» que tem em Espanha o seu centro
de irradiação chamado Culteranismo – conceptismo, preciosismo e
eufuismo respectivamente para Itália, França e Inglaterra44– também
Portugal, «sob o domínio castelhano, tanto em política como em lite-
ratura» (Braga, 1984: 13), não teria ficado imune à influência deste
verdadeiro «envenenamento»: mais uma vez uma causa política se
sobrepõe a uma causa estética. Todavia, Teófilo Braga reconhece que,
se as letras portuguesas se deixaram desviar pela imperante moda cas-
telhana, pelo menos alguns espíritos cultos de Seiscentos (Francisco
Rodrigues Lobo, Fr. Luís de Sousa, D. Francisco Manuel de Melo, e
outros), «apoiando a expressão do sentimento nacional pela revives-
cência dos modelos clássicos quinhentistas» (Braga, 1984: 7), teriam
sabido resistir contra a ameaça de extinção (tal como tinha acon-
tecido com as literaturas da Galiza e de Aragão). Ambiguidade da
historiografia braguiana e do projecto que a ela subjaz; condenação e
compreensão ao mesmo tempo: rejeição de uma literatura decadente
em nome do espírito positivo; e adesão (pelo menos) parcial quando
se trata de reivindicar in nomine historiae patriae a continuidade da
língua e da cultura portuguesas também em circunstâncias adversas.
Neste sentido, por um lado, para os seus continuadores da primeira
metade do século XX, a obra de Teófilo Braga representa a sistemati-
zação do cânone “republicano” anti-seiscentista, por outro, torna-se
no alvo crítico contra o qual se moverá muita da reacção da historio-
grafia dos anos 20. Com efeito, o século XVII virá a ser considerado
como terreno de embate, de discussão ideológica, no qual o discurso
estético é apenas uma parte daqueloutro mais amplo da história da
cultura e das mentalidades: e se é verdade que as conclusões que daí
sairão estarão muitas vezes comprometidas com questões político-
ideológicas, é também possível reconhecer nesta reflexão mais ampla

44
Mas, pelo menos relativamente a estas literaturas, o juízo de Teófilo Braga (1984:
17), por assim dizer, é mais conciliador: «As liberdades de elocução poética, chamadas
o culteranismo, tanto na Itália, França, Inglaterra e Espanha, que caracterizam o século
XVII não são uma perversão artística mas sim uma reforma ou renovação desordenada
e mal compreendida».

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o mérito de ter iniciado uma obra de desenvelhecimento dos antigos
preconceitos e um renovado interesse pelas problemáticas de um sécu-
lo. A “inteligência” de Seiscentos, que durante séculos houvera sido,
quase exclusivamente, fundada sobre “repetições” de lugares comuns
historiográficos, fora abalada por conflitos interpretativos e por ques-
tões de «hegemonia cultural» do presente: em suma o seiscentismo
veio a ser o campo de batalha do reconhecimento da própria identi-
dade cultural e nacional, espelho das posições políticas dos intelectu-
ais portugueses. A assim chamada polémica sobre o «seiscentismo»
(Calafate, 2001b: 124-127), que tem na origem a publicação de um
panfleto de Manuel Múrias, O Seiscentismo em Portugal – primeira
tentativa de revisão crítica de certos topoi historiográficos que o pró-
prio define como “calúnias”45 e de uma consequente (mas ainda in-
dulgente) compreensão da poesia daquele século –, prolongar-se-á até
aos primeiros anos da década de 40, vendo alinhados, por um lado, os
intelectuais do “Integralismo Lusitano”, aqueles que gravitavam na
órbita do periódico Nação Portuguesa e, por outro, os republicanos
da Seara Nova. Se não cabe aqui a reprodução das várias fases da po-
lémica, mais relacionada com a história das ideias que com as questões
estéticas, já nos parece útil registar as oscilações às quais foi sujeita a
interpretação do passado, neste caso da história de Seiscentos, através
de todo o século XX, e por isso mesmo centraremos a nossa análise
nas figuras de primeiro plano da polémica: António Sardinha e Antó-

45
Múrias, ao declarar que a história do século XVII, e também a de Portugal, está
ainda por fazer, recusa todo o preconceito “jacobino” da decadência da literatura do
século: os Jesuítas, o Index censório (que ele restauraria com todo o gosto), a Inqui-
sição não são incompatíveis com o florescer da cultura. As causas estão algures: e se
também Fidelino de Figueiredo excluíra os jesuítas, o domínio espanhol e a censura
da Inquisição, para explicar que o culteranismo era típico nas literaturas influenciadas
pelo Renascimento italiano (ao contrário do que acontecia com a literatura russa e
húngara que não tinham conhecido esta fase), o próprio Múrias não hesita em falar de
gongorismo em termos de «doença», produto certamente do «desenvolvimento natural
da escola clássica-italiana, com uma incompreensão manifesta do justo equilíbrio das
figuras de retórica que os seiscentistas admiravam nos autores do século precedente,
mas poucas souberam aplicar com medida e bom gosto», mas também de contribuição
para a riqueza da língua nacional: «A língua porém lucrou com a doença porque dela
saiu maleável e dúctil capaz de todos os requintes e pronta a todas as manifestações a
que pretendessem dispô-la […] sendo assim o idioma do Gongorismo um instrumento
muito mais rico, polido, e ágil do que lhe fora legado pelo século anterior», O Seiscen-
tismo em Portugal, Lisboa, 1923, pp. 46-47.

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nio Sérgio. O primeiro, em defesa do panfleto de Múrias, já em 1924
o saudava como primeiro contributo para a revisão da história pátria,
para quem o século XVII, longe de ser o receptáculo de todo o obscu-
rantismo, «é o século em que, proporcionalmente, a cultura geral se
acha mais difundida com maior largueza e profundidade» (Sardinha,
1929: 259). O Seiscentos de Sardinha, como período estruturalmen-
te mais intelectual da história portuguesa, numa análise detalhada,
reduz-se a verdadeiro elogio silogístico: os Jesuítas, enquanto defen-
sores da ortodoxia tridentina (de um catolicismo intrínseco à nação)
e enquanto «obreiros do Portugal-Restaurado», assinalam todo o sé-
culo XVII, que não pode ser senão o século jesuíta por excelência e
«essencialmente português desde a medula à alma» (Sardinha, 1929:
255). Deste modo se rebatia também quem atribuía toda a culpa da
decadência literária aos Jesuítas (como Mendes dos Remédios)46: o
gongorismo é apenas o produto do falso conceito de cultura clássica
herdado do Renascimento, é uma degradação da qual os Jesuítas não
podem ser responsabilizados, mas sim considerados vítimas. Ao filo-
jesuitismo (Mendes, 1939-1940; e Durão, 1932) de Sardinha (simples
resposta à “jesuitofobia”?), António Sérgio, na linha da sua missão
teórica de servir o sério e eficaz progresso da nação, opõe a sua tese
«da Pausa»: se, comedidamente, se distancia daquela historiografia
jacobina que via nos Jesuítas a origem de toda a decadência, ao mes-
mo tempo o seu domínio não pode senão reentrar no mais vasto movi-
mento de divórcio do espírito científico (e por isso europeu) do século
XVII, específico da cultura portuguesa. O Renascimento teria visto os
intelectuais da nação como a vanguarda do «livre espírito de investi-
gação», verdadeiros «pioneiros do novo saber experimental» (Sérgio,
1926: 26), até que no século XVII «a fonte secou. Há só as vácuas, as
mortas, as paradoxais “humanidades” da Companhia de Jesus, – pre-
cisamente o contrário das verdadeiras Humanidades, como seria fácil
de demonstrar» (Sérgio, 1926: 27). Enfim, entre a epopeia marítima
originada por uma «corte de inovadores» nascida no seio da «nossa
cultura» e uma «plêiada de renovadores» como os “estrangeirados”
46
«...assente-se logo de entrada que não os Jesuítas, mas sim a prática subserviente
do Humanismo é que contribuiu para o definhamento sensível da nossa literatura,
principalmente da nossa poesia. Surge-nos com isto uma questão gravíssima – a da Re-
nascença. A Renascença é para Portugal, dum modo geral e debaixo de todos os pontos
de vista, uma crise de profunda desnacionalização», (Sardinha, 1926: 101-102). Ensaio
polémico contra os juízos de Remédios, 1921.

71

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do século XVIII, não existe senão «a Pausa»: «Não se cria; comenta-
se. Abandona-se o saber científico, perde-se a ideia de investigação.
É este o Facto Dominador» (Sérgio, 1926: 27). Dotada de idealismo
racionalista, revisitada à luz de hoje, também a crítica sergiana se
apresenta em toda a sua forma dogmática, característica do dogma
moderno que, em nome da racionalidade cartesiana, rejeita todo um
século, o século do «Reino Cadaveroso» (Sérgio, 1976: 25-27): o elo-
gio da modernidade de tipo iluminista-racional, afirmada no panora-
ma adverso do Portugal dos anos 20, deveria passar inevitavelmente
por um tal projecto ético-pedagógico-político que informasse a crítica
do passado nacional e, sobretudo, a história do presente.
Se Aguiar e Silva pôde já detectar, perante a lírica do século XVII,
indícios oitocentistas de uma nova atitude imparcial em Costa e Silva
ou de simpatia em Camilo Castelo Branco, data dos inícios dos anos
30 do século XX uma primeira reabilitação crítica, por um lado na
esteira das polémicas nacionais em torno da cultura do século, por
outro graças à influência da “Generación del 27” que, em Espanha,
recuperava o «príncipe das trevas», Góngora, por ocasião do tricen-
tenário da sua morte. A influência de tal circunstância, sobre a qual
a crítica se costuma referir como evento liminar de um renovado in-
teresse europeu pela lírica barroca, não tardará também a sentir-se
na crítica portuguesa daqueles anos, tanto que uma série de autores
tenta reler toda a produção poética nacional daquele século à luz dos
estudos mais actuais, sejam estes meramente históricos sobre a poesia
gongórica, sejam sobre os comparatistas, reformulando-lhes o antigo
juízo. Não é por acaso, então, que Alfredo Pimenta revaloriza a mu-
sicalidade dos versos da Fénix Renascida, comparando-os à sensibili-
dade estética decadente-simbolista, ou Paiva Boléo, num artigo sobre
«gongorismo de ontem e de hoje», na esteira de Dámaso Alonso, Al-
fonso Reyes, e Walter Pabst, privilegia as teses (extraídas de D’Ors,
que todavia não cita) de um gongorismo que reaparece de quando em
vez, em cada século, em cada literatura:

O gongorismo e o conceitismo não morreram no séc. XVII, nem mor-


rerão jamais por completo [...]. É devido em parte a esta tendência
geral que o gongorismo e o conceitismo puderam continuar-se nos
«outeiros» do século 18, nalgumas poesias de Filinto, e surgir de novo
no século XIX e na época actual, embora sob modalidades algo dife-
rentes. É sabido que foi Rubén Darío que chamou a atenção dos sim-

72

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bolistas franceses, para a figura do Gôngora; daí data a ressurreição
do poeta, à qual mais tarde se juntou a atenção mais reabilitadora da
crítica. Há numerosos pontos de contacto entre o Gôngora e os sim-
bolistas: num e noutros o mesmo culto da raridade, o mesmo gosto
pela vaguidez (pelo «mistério» na poesia), a mesma procura dos efei-
tos musicais do verso, o mesmo desejo de despertar emoções estéticas
antes que sentimento – Dentro os simbolistas, aquele que mais se asse-
melhas a Gôngora é Mallarmé, já pelo gosto da imagem intelectualiza-
da, já pela forma do pensamento elíptico (Paiva Bóleo, 1937).

Em Portugal – continua o crítico – entre os melhores exemplos


de aproximação, não se pode esquecer, por um lado, o simbolista
Eugénio de Castro e, por outro, (e parece-nos altamente significativo)
Fernando Pessoa, no qual é «igualmente fácil encontrar revivescências
do passado no que respeita a técnica» (Paiva Bóleo, 1937).
O clima de reabilitação da poesia seiscentista está, todavia, também
apto a acolher e a englobar na sua discussão um termo que, se até
aquele momento tinha servido para definir a cultura do século XVII em
geral (enquanto simples adjectivo como, em António Sérgio47), ou um
estilo arquitectónico, à semelhança da reflexão iniciada na Alemanha
e difundida na Europa, passava também agora, na primeira metade
dos anos 40, ao léxico da crítica literária: barroco. A também deter-
minante influência em Portugal da obra de 1932 de D’Ors, grande im-
pulsionador do Barroco, é já reconhecível em Hernâni Cidade que, em
1943, discute as suas teses e, em 1945, adere plenamente ao transfert
semântico segundo o qual também na literatura pode existir um «Sécu-
lo Barroco»(Cidade, 1943: 375-391; 1945: 112-137). Interrogando-se,
com efeito, sobre a legitimidade de estender ao estilo literário de Seis-

47
«Eis aí os motivos porque da noção de «barroco» nunca quis fazer eu uma
categoria histórica, ligada a uma época, senão que só psicológica (ou estético-psico-
lógica), isto é, uma forma de mentalidade de quem faz arte e letras. Podem aparecer
mentalidades barrocas em todos os momentos da história de um povo: mas topamos
um período em que estiveram em moda, em que se quis ser barroco, – período mais
longo nas nações hispânicas (de 1580, digamos, até 1680) do que no centro e no Norte
do continente da Europa. [...] Tal como o defino, o artista barroco, anti-intelectual e
fraudulento, visa sobretudo a suscitar o espanto, a provocar a estranheza, a deslum-
brar a mente, a realizar «maravilhas»; em suma: a estarrecer o seu público por uma
habilidade estrambótica, – com muita decoração, com muito espectáculo, com muito
rebuscamento, com muito artifício: prestidigitador, contorcionista, todo ornamental,
pirotécnico» (Sérgio e Cidade, 1997: XXV-XVVI).

73

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centos «o conceito actualmente em voga de barroco» (Cidade, 1945:
134), e re-evocando a oposição d’orsiana clássico/barroco, propõe uma
solução historicista na qual, por exemplo, não se confundam as cate-
gorias de romântico e de barroco, nas quais a descrição dos aspectos
de um (tanto quanto possam ser comparáveis) não se sobreponham ao
outro. Contudo, se o dado tinha sido lançado, ainda em 1950, quando
o conceito de barroco tinha sido introduzido na linguagem literária de
há, pelo menos, trinta anos, Afrânio Coutinho reconheceria como, em
língua portuguesa, a questão tinha apenas agora sido levantada:

A palavra tem sido escassamente usada pelos críticos da língua com


aplicação à literatura, e ainda assim revelando pouca precisão doutri-
nária. Na pena de Antônio Sérgio […] ela encontrou um acolhimento
mais rigoroso embora ainda restrita ao plano estilístico. Em outros,
como Hernâni Cidade, permanece prêsa ao tradicional esquema do
culteranismo e conceitismo, e sobretudo envolvida pelo preconceito
classicista segundo o qual a literatura culterana ou gongórica passa a
ser uma forma degenerada e inferior. Aliás, êsse preconceito é que faz
vigorar entre os portugueses o juízo pejorativo sôbre todo o seiscentis-
mo, que seria uma época de decadência (Coutinho, 1950: 121).

A passagem de «seiscentismo» (com toda a sua carga historiográ-


fica negativa) para a categoria “comprometida” de «barroco» dar-
se-á plenamente só nos anos 50: não obstante os estudos que toda a
produção do século XVII lhe começou a dedicar48, também à luz de
novas perspectivas abertas pela crítica europeia sobre o problema do
conceito de barroco, e não obstante a estreia do conceito de barroco
no esquema periodológico da história da literatura portuguesa49, cabe

48
Cfr. por exemplo, Oliveira, (1944) e Belchior, (1953: 178), onde a noção de bar-
roco aplicada à poesia portuguesa tem ainda limitações, ou é apenas aceite na acepção
hatzfeldiana de “barroquismo” como mera imitação de Góngora: «Parnaso barroco?
Sim, na medida em que segue e imita a poesia barroca de Espanha; não, se barroco cor-
responde a uma nova mentalidade, a uma atmosfera gnoseológica profundamente aba-
lada por problemas que implicam uma nova maneira de encarar a vida e o Homem».
49
A primeira edição, de 1955, da História da Literatura Portuguesa de A. J. Saraiva
e Ó. Lopes propõe uma divisão com correspondências entre épocas e séculos: Renas-
cença, século XVI; Época Barroca, séc. XVII; etc. Aguiar e Silva notou que a quinta
edição preferia, com um evidente retrocesso, à dicção estético-literária de “Época Bar-
roca” a histórico-política de “Restauração e época joanina”.

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a Jorge de Sena, através da teoria das várias tipologias literárias e das
«atitudes estéticas» (Sena, 1970), o mérito de ter canonizado histo-
riograficamente os grandes períodos literários que vão da segunda
metade do século XV ao início do século XIX, tentando esbater cada
ambiguidade terminológica (Renascimento 1400-1550; Maneirismo
1550-1620; Barroco 1620-1750; Rococó 1750-1820). Num certo
sentido, a fúria sistemática seniana devia-se, em parte, à reivindicação
do uso, também no esquema historiográfico português, das categorias
críticas que conheciam na Europa uma grande difusão e à sua vontade
de romper definitivamente com certos preconceitos (sobre o barroco,
por exemplo, como arte degenerada) e com certos juízos retóricos
como o Camões classicista e renascentista. Jorge de Sena é, então,
aquele que “inventa” o Maneirismo português (também por reacção
à moda “espanhola” de um barroco hipertrófico e aglutinador de
todo o século XVI) e faz de Camões o seu melhor representante: é
aliás pela geração de Camões que passa a fronteira imaginária que
divide o maneirismo do barroquismo:

Antes de mais, uma dicotomia, que tem sido revelada como uma con-
tradição camoniana, entre o senso do real e o senso das formas ideais
válidas por si mesmo no seu contexto lúdico. [...] Em Camões, como
nos outros maneiristas, não há dois estilos. Há, sim, uma dialéctica
entre a realidade vital e a lição intelectual extratável dela, indepen-
dentemente de em Camões, haver, como em todos os grandes artistas,
uma adequação das formas e da linguagem ao tom e ao nível em que,
lùdicamente a criação se coloca. [...] O barroquismo traz a libertação
cultista. Se a vida humana tem uma realidade inescapável, o caso é que
ela se processa no “Grande Teatro do Mundo” (Sena, 1965: 44-47).

Mas a obra crítica de Sena, em conformidade com as indagações


fenomenológicas da linha husserliana e a reboque do debate sobre
barroco e maneirismo entre os anos 50 e 60, representa, só por si,
a tentativa de refundar novas grelhas interpretativas do fenómeno
histórico-literário e de as analisar como verdadeiras categorias tipo-
lógicas. Em suma, como bem sublinhou Luís Adriano Carlos (1999),
na visão dialéctica seniana, existem dois níveis complementares de
textualidade literária, correspondentes ao sentido “periodológico”
ou “histórico-literário” e a um “estético-tipológico” ou “fenome-
nológico”. Mais do que criticar a eficácia desta metodologia crítica,

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interessa-nos sobretudo evidenciar o papel, por assim dizer, media-
dor da produção de Jorge de Sena; talvez a ele se possa atribuir
a acção de desenleamento crítico que nos permite dobrar o nosso
discurso, do ponto de vista exclusivamente crítico (como até aqui
temos feito) para o da pura prática poética (mas os dois níveis nunca
são realmente impermeáveis – tanto mais numa literatura novecen-
tista “dupla” de poetas-críticos, como acontece com a portuguesa).
Poderemos conceber toda a produção de Sena como uma conste-
lação de discursos que abordam o barroco através de uma tripla
perspectiva: a já mencionada perspectiva do historiador, a do crítico
“militante” que utiliza a categoria de “barroco ou barroquismo”
para ler a poesia que lhe é contemporânea, e a do poeta que pratica
o barroco como experiência de escrita. Se existe realmente um neo-
barroco português, este – parafraseando Genette – só pode ser uma
encruzilhada de práticas críticas e estéticas: a tendência barroqui-
zante que atravessa muita da produção dos anos 50 e 60 (que o pró-
prio Sena ajudará a delinear, por exemplo – como já se fez notar e,
como de seguida melhor se dirá –, em António Gedeão) conhece um
ante facto significativo na arte poética seniana. A literatura destes
anos barroquiza-se, em parte graças à crítica que do barroco tomou
finalmente consciência e que usa o seu nome para etiquetá-la (ou
simplesmente caracterizá-la); e, vice versa, pode acontecer que da
prática poética intencionalmente experimental proceda a reivindi-
cação da tradição barroca, seja como gesto provocatório, seja como
legitimação literária por parte da Vanguarda Experimental. O caso
de Ana Hatherly é neste sentido paradigmático da passagem de um
esforço teórico de “justificação” da vanguarda, através da tradição
“maldita” do maneirismo e do barroco (e não só), para um verda-
deiro plano de indagação histórico-erudita sobre os aspectos literá-
rios, pictóricos, iconográficos dos séculos XVI e XVII e do século
XVIII50. Passagem susceptível de ser datada por volta dos fins dos
anos 70 e inícios dos anos 80 e que pode ser testemunhada naquela
summa que é A Experiência do Prodígio. Bases teóricas e antologia
de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII, de 1982. A

50
De facto, é de uma pesquisa arqueológica dos precedentes históricos da poesia
experimental (um pouco à maneira de Hocke, mas também de Giovanni Pozzi) que
arranca a recognição mais geral sobre os períodos do maneirismo e do barroco; cfr.
Hatherly, 1979.

76

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pesquisa hatherlyana nestes últimos vinte anos, para além de divul-
gar a poesia barroca através de várias edições modernas de corpus
como os de Sóror Maria do Céu ou de Jerónimo Baia51, ou de textos
“marginais” como Poemas em Língua de Preto dos Séculos XVII e
XVIII, abordou, segundo a prática interdisciplinar que a estudiosa
sempre privilegiou, vários aspectos da produção artística barroca
(Hatherly, 1995; 1997), chegando a fundar e a dirigir (a partir de
1990) a revista de «estudos barrocos» Claro-Escuro.
A revisão do esquema historiográfico das letras portuguesas en-
tre o século XVI e o século XVIII, a sua sistematização nas grandes
categorias de Barroco e Maneirismo são, portanto, parte de uma his-
tória recente que se inicia com Sena naquele clima de reabilitação e
sobreposição de práticas críticas e poéticas e têm no já considerado
clássico ensaio de Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco
na poesia lírica portuguesa de 1971, a sua obra fundamental, enrique-
cida posteriormente, pelo mesmo estudioso, com outros contributos
na última edição da sua Teoria da Literatura52. A partir dos inícios
dos anos setenta, para além dos grandes estudos de conjunto sobre a
cultura do período, em termos de retórica e teorização literária (Pinto
de Castro, 1973), de influência das academias (Palma-Ferreira, 1982),
em termos de estética (Moisés, 1997), da fortuna da tradição camo-
niana (Maria Lucília Gonçalves Pires), o interesse pela literatura do
“longo século” (1580-1750) produziu – talvez como consequência
da tardia reacção ao esquecimento – uma massa bibliográfica onde
se assinalam não só os estudos monográficos sobre autores que não
tinham nunca perdido o seu prestígio (Francisco Rodrigues Lobo,
Francisco Manuel de Melo ou Padre António Vieira), mas sobretudo
a publicação de edições (críticas e não), muitas vezes principes, de po-
etas como Gregório de Matos, Jerónimo Baía, Sóror Violante do Céu,
Sóror Maria do Céu, de António Barbosa Bacelar, ou de antologias de
divulgação de poesia como a de Natália Correia (1982) e M. Lucília
Gonçalves Pires (1985; 2002) (o ilustre precedente remonta a 1967:
51
Cfr. respectivamente Lampadário de Cristal, apresent. crít., fixação do texto, no-
tas, glossário e roteiro de leitura, Lisboa, Ed. Comunicação, 1992 e A Preciosa de Sóror
Maria do Céu, edição actualizada do códice 3773 da Biblioteca Nacional precedida de
um estudo histórico, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990.
52
«A sua Teoria da Literatura só na terceira edição (1979) inclui um capítulo inti-
tulado «Maneirismo e Barroco», pois nas edições anteriores (1967 e 1968) o capítulo
correspondente intitulava-se apenas «O Barroco» (Pires e Carvalho, 2001: 13).

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edição brasileira organizada por S. Spina e M. A. Santilli, Apresenta-
ção da poesia barroca portuguesa).
Esperando (finalmente) pelas edições modernas dos dois grandes
cancioneiros barrocos (a Fénix Renascida e o Postilhão de Apolo) –
estando, pelo menos a primeira, inserida no projecto de edição das
obras clássicas da literatura portuguesa – hoje, talvez menos encan-
deados por aquela «miragem barroca» que envolveu a literatura nos
anos 50 e 60 e que, contudo, contribuiu para a canonização historio-
gráfica da sua expressão estética, julgamos – ao contrário da profecia
d’orsiana – que não é ainda tempo de nos despedirmos (como alguém
queria) do barroco: o adeus está por agora (para sempre?) adiado.
Sobre a sua vida podem ainda repetir-se as duas primeiras quadras de
um soneto de Sóror Violante do Céu:

Vida que não acaba de acabar-se,


Chegando já de vós a despedir-se,
Ou deixa, por sentida, de sentir-se,
Ou pode de imortal acreditar-se.

Vida que já não chega a terminar-se,


Pois chega já de vós a dividir-se,
Ou procura, vivendo, consumir-se,
Ou pretende, matando, eternizar-se.

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Segundo Capítulo: Epifanias Barrocas

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2.1 O “Neo” do Barroco

(parece que a nossa época não nos deixa senão neos!)

Giorgio Ruffolo

Continuemos e façamos, então, uma vez mais, a história de um


termo, de um termo-contentor: neobarroco. Contudo, antes de seguir
os rastos desta nova conceitualização, é importante ter em conta tudo
quanto se disse nas páginas anteriores: em primeiro lugar que a histó-
ria do conceito “neobarroco” é também a história de uma interferên-
cia ou, se se quiser, de um impulso conceptual originado pela reflexão
in progress sobre o barroco, ao longo do século XX. Barroco, por
um lado, na nossa ideia fundadora, como construção eminentemente
novecentista, fruto de um contributo crítico e teórico e, por outro,
de prática poética; ambos os aspectos, aliás, nunca foram completa-
mente separados. Em segundo lugar, a reivindicação (ao nível esté-
tico e não só) da crítica e de muitos escritores, de que existiria uma
espécie de “actualidade” ou contemporaneidade do barroco, como
traço comum a toda a reflexão sobre a descoberta da cultura de um
século, de Wölfflin a Benjamin, de Riegl a Anceschi. Neste sentido,
tem razão Benito Pelegrin ao falar de relação intelectual entre Barroco
histórico e Neobarroco contemporâneo (definidos como “baroque”
e “rebaroque”), ou seja, se a revalorização e redescoberta da arte do
século XVII, instituídas já desde finais de Oitocentos (e prolongadas
por todo o século XX), coincidiu com a sua própria construção termi-
nológica e hermenêutica – diga-se de passagem que esse ponto funda-
mental foi muitas vezes esquecido – («c’est conscience a posteriori que
l’érige en objet de science»), é a mesma abordagem contemporânea e
intelectualizante às coisas feitas que se pode definir, na mais ampla
acepção, como «neobarroco». Em suma, somos nós próprios que, ao
assumir a responsabilidade de inventar retrospectivamente o Barroco,
não podemos senão apelidar-nos de neobarrocos:

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Au départ du Baroque, donc il y a ce regard intellectuel contemporain
qui le cerne, le limite, tente de le définir : qui le construit. Dans cette
reconstruction rétrospective de l’objet «baroque», il y a déjà implicite,
la construction d’un «neo-baroque […] C’est donc à travers la criti-
que «neo-baroque» que nous saisons inévitablement le «Baroque» et
même le Baroque «historique» est une reconstruction de notre présent
(Pelegrin, 1990: 33).

O termo neobarroco (utilizado em todas as línguas “indiferente-


mente” nesta forma ou naqueloutra com hífen) remete, desde logo e
como já foi possível constatar, para aquele processo, por assim dizer,
de “neoização” através do qual, no decurso da história da cultura e,
na ausência de adaptações sintácticas ou, pura e simplesmente, pela
vontade de filiação a uma tradição passada e historicamente defini-
da, uma denominação estilística sofria um surplus semântico que a
partícula “neo” (tal como, de resto, “pós”), inevitavelmente, trouxe
consigo (Maldonado, 1987; Calinescu, 1999).
A especificidade semântica do caso “neobarroco” reside, todavia,
na estreita correspondência que este mantém com a sua própria raiz
“barroco” e, sobretudo, com a evolução conceptual que lhe foi desti-
nada, ao longo dos últimos anos. De tal maneira que, se é verdade que
«el concepto de “neobarroco” ha ido ganando cada día progresiva
aceptación en muy diversos territorios de la critica cultural, ya sea en
formulaciones escritas, ya en variantes o en derivaciones más o me-
nos certeras», pela sua difusão mediática, o mesmo conceito «corre
el peligro de convertirse, como tantos otros hoy dia, en una palabra
huera»(Sánchez Robayna, 1993: 115-116).
Da reflexão sobre o barroco do século XX decorreu, por filiação
directa, quando não por verdadeira excrescência, uma discussão so-
bre o neobarroco – sem dúvida um pouco atrasada a nível temporal
– que contribuiu, por um lado, para a especificação das acepções de
barroco, enquanto conceito histórico, e, por outro, para a revisitação
das várias espécies de regresso do barroco no século XX, admitindo
a possibilidade de existir um “barroco moderno”. Antes de mais, e
retomando as considerações de Walter Moser, é possível entendermos
a expressão regresso do barroco como um vasto e complexo fenó-
meno visível, «simultanément dans plusieurs secteurs et à différent
niveaux de la vie littéraire et culturelle», onde «une recrudescenze
des recherches» (Moser, 1996: 406) sobre o barroco como fenómeno

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histórico, resultante numa nova teorização sobre o século XVII, faz
de contraponto à existência de uma produção artística sob o signo
da estética barroca. Mas não apenas em termos de causalidade. Tal
como o estudo histórico, filológico, arqueológico de Seiscentos pode
representar o horizonte crítico, relativamente aos interesses do artista
(e do escritor, no nosso caso), assim foi, grosso modo, para Severo
Sarduy, para quem a prática estética não desempenha só um papel
antecipador relativamente à teorização, mas também um papel de
potencial condutor no sentido da pesquisa erudito-científica de uma
tradição, como a seiscentista, que sempre foi desconhecida ou mes-
mo esquecida. Conforme veremos, este é o caso de Ana Hatherly,
uma das mais importantes representantes da vanguarda experimental
(não por acaso, auto-apelidada de barroco-experimental) da década
de 60 em Portugal; com efeito, toda a sua produção, ao longo destes
anos, constituiu um verdadeiro paradigma de intersecções artísticas,
teóricas e críticas. Se reflectirmos, aliás, com Hans Robert Jauss, do
ponto de vista da recepção, é a própria produção poética que, através
da «evolução literária», ao dar lugar «à actualização de uma forma
nova», permite encontrar «o acesso à compreensão da forma antiga,
até aí desconhecida» (Jauss, 1992: 94). O aparecimento de uma nova
forma literária fornece os instrumentos para melhor se perceber uma
literatura esquecida, a tradição literária do século XVII, que, por não
ter sido transmitida por si própria, precisa de uma nova recepção que
a actualize «seja porque ao mudar de orientação estética o presente
se volte propositadamente para o passado para dele se apropriar seja
porque um novo momento da evolução literária lança uma inespe-
rada luz sobre uma literatura esquecida, permitindo encontrar nela
algo que não pudera ser anteriormente buscado» (Jauss, 1992: 95).
Ao falar-se de três séculos de esquecimento ou de “sequestro” do bar-
roco, a unidade que mede a distância que vai da primeira leitura (de
repúdio), à assimilação e à compreensão moderna é a própria resis-
tência à recepção da obra:

Foi preciso, por exemplo, esperar pelo lirismo hermético de Mallar-


mé e dos seus discípulos para que se tornasse possível um retorno à
poesia barroca, ignorada por muito tempo, e por isso esquecida, e,
em especial, para que fosse possível a nova interpretação filológica e
«renascimento» de Góngora (Jauss, 1992: 94-95).

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Neste amplo espectro ou “síndroma” do regresso novecentista do
barroco, cujas vertentes – é bom repetir – não se limitam apenas à li-
teratura, mas interessam também à pintura, à música, passando pela
arquitectura e pelo cinema (Varderi, 1996) e até pela sociologia e an-
tropologia – e mesmo pela moda: (Calloway, 1995; Couto e Galhardo,
1990), a discussão teórica sobre o problema do neobarroco tem, em
alguns aspectos, certas analogias com o problema, já revisitado no pri-
meiro capítulo, do barroco. Tal como acontece com este último, tam-
bém o percurso do neobarroco está constelado por transfers semânti-
cos, por atribuições mais ou menos legítimas, por sobreposições, por
ambiguidades, ou por deslizes de uma disciplina para outra, e é por isso
que, também neste termo e neste conceito, reina a confusão das línguas.
Como o barroco, também o neobarroco deve a sua entrada no léxico
teórico-académico pelo uso que lhe foi dado pela crítica arquitectónica;
as primeiras utilizações a revelar uma certa valência hermenêutica, ou
seja, sem que “neo” não fosse apenas um simples prefixo, podem ser
detectadas nas propostas de Gillo Dorfles. Foi ele quem, em 1951, re-
tomando a lição de Brinckmann sobre a predição de um reflorescer de
formas mais livres e barrocas, após um curto período de imobilidade e
cristalização neo-clássica, reconheceu no neobarroco um «novus ordo
architettonico», sem uma escola, sem uma doutrina, onde, contudo,
apareciam «diversi impulsi, ancora amorfi, diversi tentativi ancora em-
brionali e due o tre personalità singole già compiutamente evolute»
(Dorfles, 1984: 19), como em Mendelssohn, Scharoun, Steiner.
No mais amplo «debate sobre o barroco», naqueles anos mais
vivo do que nunca, Dorfles, depois de ter apontado a Eugenio D’Ors
muitos erros de interpretação, in primis o de não ter compreendido
que o Barroco é algo de determinado e definido, ligado – historica e
esteticamente – a uma época individual (o século XVII), lembra que
«la nostra età può essere considerata semmai come il prolungamento
e l’estrema propaggine (ed è solo in questo senso che intendo adottare
qui l’appellativo di neobarocco)» (Dorfles, 1984: 19). O neobarroco,
então, enquanto discurso que decorre de certos rumos da arquitectura
mais recente e mais viva, resulta «non già una rinascita o un’imitazione
barocca, ma solo un risvegliarsi di nuove forze plastiche e dinamiche
che smuoveva le acque frigide e statiche dai dettami del Bauhaus gro-
pusiano e dal successivo irrigidimento razionalista e neoplasticista»
(Dorfles, 1984: 76) para definir aquele prolongamento e continuação
da idade barroca na nossa época, que sobretudo

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nell’architettura, ma anche nella pittura, nella scultura e nella musica,
vede oggi ridivenire attuale lo spirito del Barocco, nell’accezione più
felice di questo termine: inteso cioè come dinamismo contrapposto a
staticità, come modulazione plastica contrapposta a quella geometri-
ca, come umanizzazione e – diciamolo pure – organicità, contrapposta
alla frigida meccanicità e all’aridità tecnica (Dorfles, 1984: 54).

Hoje, a reflexão dorflesiana sobre o neobarroco configura-se como


proposta, quase profecia hermenêutica, no início da década de 50,
contraposta à outra “falsa”, de D’Ors («Amanhã será clássico»); pro-
posta essa que teria acompanhado o seu autor ao longo destes anos,
entre distinções e sistematizações terminológicas. E, se o escritor de
Du Baroque foi não só apaixonado, mas também fiel – embora com
certos arrependimentos – a uma categoria, Dorfles, por seu lado, tem
conseguido defender as suas teses e constatar a exactidão da sua hi-
pótese, em relação aos novos conceitos53 que a crítica foi adquirindo,
depois de tantos anos (é de 1981 o seguinte fragmento), que o próprio
define como «ilações de então»:

Credo, effettivamente di poter affermare oggi come molte delle più


recenti spinte dissacratorie nell’arte visiva – dal postmodernismo ar-

53
Sem pretender, agora, resolver a inteira problemática, específica da crítica arqui-
tectónica, acerca da relação entre neobarroco e pós-moderno (que ultrapassa o campo
da nossa investigação), pode, todavia, constatar-se que se, por um lado, o neobarroco
dorflesiano tem uma dimensão histórica que o fixa num período, já ultrapassado, do
século XX e, por isso, anterior ao pós-moderno, como julga Calabrese; por outro lado,
o mesmo conceito parece, por assim dizer, “voraz”, de tal forma inclui correntes e
arquitectos da primeira metade do século, mas também o estilo pós-moderno: neobar-
roco aberto, portanto, às possibilidades do porvir. Na premissa do seu livro, Dorfles
frisa que o último grupo de escritos tem a ver com o problema do postmodern e dá
indicações sobre eventuais afinidades entre esta tendência (ou melhor algumas destas
tendências, mesmo distantes, são etiquetadas com esse nome) e o neobarocco: «Mi
guarderei bene dal volere identificare tout court il neobarocco da me difeso sin dagli
anni ’50 con il postmoderno dei nostri giorni. Eppure con le debite riserve circa i molti
limiti e i molti abbagli del postmoderno (o di quanto di solito viene indicato con questo
appellativo) credo di poter affermare come – davvero – esistono alcuni elementi del
postmoderno “migliore”che sono facilmente riconducibili a quel genere di concezione
architettonica che ebbi a definire come neobarocca», (Dorfles, 1984: 7).

85

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chitettonico al post-espressionismo pittorico – si possono senz’altro
considerare come «neobarocche»: la presenza di un’esacerbata sen-
sualità (più che sessualità), la ricerca d’una ambiguità dell’immagine
[…], la rottura con i rigidi schematismi del Movimento Moderno, che
rispecchia la rottura secentesca da parte d’un Borromini, rispetto alle
rigide composizioni manieristiche coeve, e non.
E, ancora, abbandonando, il settore delle arti figurative, la visione, ad un
tempo egocentrica del nostro universo personale, e geocentrica del nos-
tro universo cosmico, che richiama subito alla mente le sconvolgenti sco-
perte di Galileo, le sue intuizioni attorno ad una nuova situazione umana
e planetaria: proprio come oggi nuove evasioni dall’universo geofisico
invischiano tanti giovani non più soddisfatti dell’ubi consistam mate-
rialista, e non ancora preparati per avventure del pensiero che sappiano
prescindere dai puntelli della ragione o da quelli della religione […] tutti
questi elementi mi sembrano davvero permettere di ipotizzare la presen-
za di un parallelismo, non solo estrinseco ma molto più profondo, tra lo
spirito dell’età barocca e quello d’una nostra – solo in parte affermatasi
anzi forse di là da venire – età neobarocca (Dorfles, 1984: 63).

Antes de esta expressão ter sido retomada no título do livro de


Omar Calabrese, o conceito de neobarroco transitaria do léxico das
artes visuais para o de outras disciplinas, mesmo sem ter havido influ-
ência directa. Todavia, é preciso frisar que a potencialidade intrínseca
ao significado de neobarroco não permite uma utilização unívoca do
termo, ainda que se queira limitar exclusivamente à linguagem da
arte. Daí deriva não só uma oscilação semântica, mas também uma
verdadeira confusão terminológica, de tal forma que, na ampla acep-
ção da denominação de neobarroco, como se vê em diferentes dicio-
nários temáticos, podem coexistir certos revivals arquitectónicos da
primeira metade do século XIX em Inglaterra e certas práticas retro
na arte portuguesa dos anos 40 do século passado.
Foi, presumivelmente, da arquitectura que a crítica musical e li-
terária extraiu a palavra neobarroco, ou melhor, talvez resida na re-
lação, nas correspondências entre estas duas linguagens, a origem da
sua difusão. Aliás, Gillo Dorfles tinha já instaurado, em nome do
barroco, um primeiro paralelismo entre a música e a arquitectura de
hoje e estas mesmas artes de há três séculos: a comparação entre a
estrutura “contrapontística” de um Bach, indisciplinador da estatici-
dade musical harmónica, e a estrutura cromática seis-setecentista que

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revolve a harmonia do edifício, é pendant daquela comparação entre
o “atonalismo arquitectónico” dos edifícios neobarroccos actuais e a
revolução musical que vai de Wagner a Hindemith, até à dodecafonia
de Schönberg. A crítica insistiu muito nesta preocupação relativamen-
te ao passado, no fascínio perante a sua história, reparou nas dife-
rentes tentativas, por parte da música moderna, de a reescrever. De
facto, é possível destrinçar, como escreve Deshoulières, já nos inícios
do século XX, os primeiros sinais de regresso barroco, detectáveis em
Schönberg ou no próprio Hindemith, de maneira que «le regard mo-
derne aime y contempler le mis en jeu de sa propre théâtralité à travers
les fonctions conventionelles de l’impromptu baroque» (Deshoulières,
2000: 94). Mas é sobretudo a partir da segunda metade do século que
não faltam exemplos de tentação neobarroca na ópera, quer como
simples citação, quer como pastiche de mais amplas dimensões, que
induziram a crítica musical a falar de autores “barroqueux”, fenó-
meno de interpretação que, segundo Beaussant, «consiste moins […]
en une restauration archéologique de la musique baroque, que en sa
réinvention au 20 ème siècle» (Moser, 1996: 407).
Foi, contudo, Haroldo de Campos um dos primeiros a falar em
obra neobarroca, no já citado artigo, Obra de arte aberta de 1955,
onde antecipava a «afortunada» invenção de Eco e onde tentou for-
mular uma primeira e provisória definição (ou, como a interpreta o
próprio autor, uma “previsão programática”) de neobarroco ou de
barroco moderno. O crítico-poeta brasileiro instaurava uma relação
com o campo da música contemporânea e com um dos maiores expo-
entes da vanguarda francesa de então, Pierre Boulez, uma relação que,
como veremos, levará a muitos futuros desenvolvimentos:

Pierre Boulez em conversa com Décio Pignatari, manifestou o seu de-


sinteresse pela obra de arte “perfeita”, “clássica”, do “tipo diaman-
te”, e enunciou a sua concepção de obra de arte aberta como de bar-
roco moderno.
Talvez, esse neobarroco, que poderá corresponder intrinsecamente às
necessidades culturmorfológicas da expressão artística contemporâ-
nea, atemorize, por sua simples evocação, os espíritos remansosos,
que amam a fixidez, das soluções convencionais.
Mas esta não é uma razão cultural para que nos recusemos a ser a
tripulação de Argos. É antes um estímulo no sentido oposto (H. de
Campos, 1996: 5).

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O depoimento biográfico de Haroldo de Campos, sobre o encon-
tro de 1954, entre o músico e os poetas concretistas brasileiros, e so-
bre os acontecimentos posteriores, mais do que documento histórico-
coreográfico, funciona como ligação hermenêutica na compreensão
do clima cultural que está por detrás da primeira e liminar discussão
sobre o neobarroco literário: os interesses para a música pós-serial na
esteira de Webern, por um lado, e a admiração por aquilo que será
definido como o arquétipo moderno da poesia visual, o Coup de Dés
de Mallarmé, por outro, são as coordenadas de Haroldo de Campos
para determinar aquela «afinidade “caósmica» (não por acaso se cita
a expressão joyciana) entre a sua proposta (repare-se que ainda pro-
visória) de neobarroco e a bouleziana «concepção da obra aberta,
acessível a múltiplos percursos, “antidiamantina”» (H. de Campos,
1996: 5)54. Afinidades, trocas de problemáticas, correspondências (se-
não verdadeiras coincidências): tudo isto, na revisitação (a posteriori)
genealógica do conceito de neobarroco, teria vindo a revelar-se nos
trabalhos posteriores de Boulez. E, se o projecto de musicar o poema
de Mallarmé tinha ficado por cumprir, o crítico brasileiro lembra ain-
da como o maestro introduziu «estruturas sintáticas mallarmeanas
na sua técnica de compor (“forma aberta” e “acaso controlado”)»
numa ópera como Troisième Sonate ou Improvisations sur Mallarmé,
mas também no ciclo Pli Selon Pli, que retomava o verso do soneto
Remémorations d’Amis Belges de Mallarmé. Há, enfim, uma passa-
gem ulterior, quase obrigatória, que serve a Haroldo de Campos para
realinhar os fios do discurso: se a Mallarmé coube o papel de espectro
moderno de re-leitura e reapropriação da lírica barroca é, certamente,
através do operatório conceito deleuziano de pli (mutuado, aliás, do
poeta francês55), ou melhor, de dobra sobre dobra, de dobra dobran-
te, que o Barroco encontra a sua razão de existir, para além dos seus
limites históricos determinados:

54
Cfr. o «depoimento» de Décio Pignatari com o título «Poesia Concreta ou Ideo-
grámica», primeiro testemunho teórico do concretismo publicado em Portugal, Graal,
n.º 2, Junho-Julho de 1956.
55
Paul de Man, na esteira de Striele, explica que: «A palavra “pli” é um dos sím-
bolos-chaves do vocabulário tardio de Mallarmé, demasiado rica para tentar sequer
resumir a série de correlatos semânticos que implica. Striele sugere com razão que um
dos significados se refere ao livro, sendo o “pli” (dobra) a página por cortar que dis-
tingue o volume auto-reflexivo da mera informação contida no jornal não-dobrado e
não-reflexivo», (De Man, 1999: 200-201).

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Pour nous, en effet, le critère et le concept opératoire du Baroque est le
Pli, dans toute sa compréhension et son extension: pli selon pli. Si l’on
peut étendre le Baroque hors de limites historiques précises, il nous
semble que c’est toujours en vertu de ce critère, qui nous fait recon-
naître Michaux quand il écrit «Vivre dans les plies», ou Boulez quand
il invoque Mallarmé et compose “Pli selon pli”, ou Hantaï quand il
fait du pliage une méthode (Deleuze, 1988: 47).

É Gilles Deleuze quem aqui é evocado como síntese última da pas-


sagem conceptual de Barroco, enquanto «modo operatório históri-
co», a Neobarroco enquanto «prática semiótica contemporânea que
“cita” o passado, retraduzindo-o – transfigurando-o – no contexto do
presente, não por assimilação pura e simples de dois distintos contor-
nos históricos, mas por metonímia, pelo reconhecimento de traços, de
linhas de força contíguas e não-contíguas, por rastros dispersos, mas
afins que se deixam reger pela infinidade da dobra dobrante, pelo pli
infini» (H. de Campos, 1996: 5).
Haroldo de Campos, através de Mallarmé e Boulez, “flirta” com
Deleuze e, à proposta deleuziana de Barroco, que remete já não para
uma essência, mas para uma função, para um signo distintivo, repre-
sentado pela dobra que se dobra, que se reproduz ao infinito, é reco-
nhecida uma carga conceptual libertadora que, pela sua radicalidade,
chega a uma re-semantização do próprio Neobarroco como sendo
neo-leibnizianisimo. Sob a égide do filósofo da Teodicea, Deleuze ten-
ta, de facto, mostrar, através do conceito de pli, a existência de uma
«ligne baroque qui passerait exactament selon le pli, et qui pourrait
réunir architectes, peintres, musiciens, poètes, philosophes» (Deleu-
ze, 1988: 48). Tal como Leibniz nos ensinou a dobrar e a desdobrar
no século XVII e como o Barroco levou esta operação ao infinito,
também para nós, homens modernos, o problema é análogo: tendo
consciência das novas maneiras de dobrar «nous restons leibniziens
parce qu’il s’agit toujours de plier, déplier, replier» (Deleuze, 1988:
189). Como exemplo encontramos, então, por um lado, a construção
leibniziana de dois planos, de dois mundos, o da materialidade (em
baixo) e o da alma (em cima), separados pela dobra que recai sobre
as duas partes, seguindo um regime diferente, «chaque âme ou sujet
(monade) est entièrement fermé, sans portes ni fenêtres, et contient le
monde entier dans son fond très sombre, tout en éclairant une petite
portion de ce monde, portion variable pour chacun. Le monde est

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donc plié dans chaque âme, mais différemment, puisqu’il y a un petit
côté du pli qui est éclairé. […] J’essaie de montrer comment c’est le
cas dans l’architecture baroque, dans l’«intérieur» baroque, dans la
lumière baroque» (Deleuze, 1990: 214-215); por outro lado, encon-
tramos o seu pendant, a sua correspondência na arte barroca, em
que a dobra infinita «sépare, ou passe entre la matière et l’âme, la
façade et la pièce close, l’extérieur et l’intérieur» (Deleuze, 1988: 49),
mas atravessa também os dois planos de cima e de baixo, o dépli,
enquanto condição das dobras que se manifestam, sustenta-se, como,
de resto, se sustentava a relação entre os dois planos do mundus leib-
niziano, no acorde, na harmonia dos dois mundos. Deleuze acredita
no Barroco como sentido duma transição e, a partir do momento em
que a razão clássica se desmoronou, sob os golpes desferidos pelas di-
vergências, “incompossibilités”, desacordos, dissonâncias, este torna-
se – paradoxalmente – na última tentativa de reconstituir a razão,
«en répartissant les divergences en autant de mondes possibles, et en
faisant des incompossibilités autant de frontières entre les mondes»
(Deleuze, 1988: 111). O Barroco é, desde logo, a crise da razão tele-
ológica, a sua missão trágica consiste em reconstruir o que se está a
desfazer:

Les désaccords qui surgissent dans un même monde peuvent être vio-
lents, ils se résolvent en accords, parce que les seules dissonances ir-
réductibles sont entre mondes différents. Bref, l’univers baroque voit
s’estomper ses lignes mélodiques, mais, ce qu’il semble perdre, il le
regagne en harmonie, par l’harmonie. Confronté au pouvoir des dis-
sonances, il découvre une florescence d’accords extraordinaires, loin-
tains, qui se résolvent dans un monde choisi. Cette reconstitution ne
pouvait être que temporaire (Deleuze, 1988: 111-112).

A solução barroca, que passava pelos acordes, já não é praticável


nos nossos dias, no “caosmos” do nosso tempo; será o advento do
Neobarroco, de um verdadeiro Novo Barroco, que permitirá pensar,
já não em termos de uma harmonia pré-estabelecida, mas «si les har-
moniques perdent tout privilège de rang (ou les rapports, tout privilè-
ge d’ordre), non seulement les dissonances n’ont plus être “résolues”,
mais les divergences peuvent être affirmées, dans des séries qui écha-
ppent à l’échelle diatonique et où toute tonalité se dissout» (Deleuze,
1988: 188). Suspensa entre a epistemologia e a arte, a definição de

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Neobarroco é, ao mesmo tempo, um desafio (não só taxonómico) à
compreensão do carácter da nossa época e seus resíduos artísticos e,
sobretudo, uma forte reivindicação da possibilidade conceptual de o
barroco interromper toda a linearidade temporal entre passado-pre-
sente-futuro:

Viendra le Néo-baroque, avec son déferlement de séries divergentes


dans le même monde, son irruption d’incompossibilités sur la même
scène, là où Sextus viole et ne viole pas Lucrèce, où Cesar franchit et
ne franchit pas le Rubicon, où Fanf tue, est tué et ne tue pas ni n’est
tué. L’harmonie traverse une crise à son tour, au profit d’un chroma-
tisme élargi, d’émancipation de la dissonance ou d’accords non réso-
lus, non rapportés à une totalité. Le modèle musical est le plus apte
à faire comprendre la montée de l’harmonie dans le Baroque, puis la
dissipation de la tonalité dans le Néo-baroque : de la clôture harmo-
nique à l‘ouverture sur une polytonalité, ou, comme dit Boulez, une
«polyphonie de polyphonies» (Deleuze, 1988: 112).

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2.2 A inversão Ideológica do Barroco

Não sei, lá por Setembro, se este país ainda existirá,


se estará em estado de revolução e consequente repressão permanente,
se estaremos muitos em campo de concentração,
ou se algum milagre democrático terá acontecido...

Jorge de Sena56

Deleuze propôs-se “inventar o Barroco” nos finais da década de 80


e, não podendo prescindir de todo um pensamento de matriz francesa,
relativo às derivas modernas e pós-modernas do barroco desta década,
filiou-se nestas que, aliás, têm origem nas propostas críticas daquele que
poderá ser o intermediário entre a Europa e a América Latina, Severo
Sarduy. Este mesmo filósofo chegará a afirmar que hoje já não é a razão
teleológica que está em crise e em fragmentação, mas sim a razão huma-
na, aquela que saiu das Luzes e «dans nos tentatives pour en sauver que-
lque chose ou pour la reconstruire, nous assistons à un néo-Baroque, qui
nous rend peut-être plus proches de Leibniz que de Voltaire» (Deleuze,
1990: 221). Antes, porém, de encarar o problema das versões moder-
nas/pós-modernas do barroco, é preciso demorarmo-nos um pouco na
questão que a última frase do filósofo francês permitia já entrever: o
modo como a conceptualização do barroco, através da reactivação do
neobarroco, já não tem um carácter substancialista mas relacional, por
outras palavras, como se atribuem certos valores, condições, reposições
ao barroco, em conformidade com a circunstância em que é activado.
Mais uma vez se justifica a eficácia estratégica do conceito.
De facto, a afirmação de Deleuze não representa mais do que a
súmula de um processo crítico-historiográfico chamado “inversão
ideológica do barroco”, discussão começada algures, em Cuba, no

56
Fragmento de uma carta enviada a Ana Hatherly dos Estados Unidos e datada de
9/5/1970, in Espólio de Ana Hatherly, [Res. N57], Biblioteca Nacional de Lisboa.

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México (Paz, 1982), no Brasil, nascida originariamente de diferentes
pressupostos teóricos e históricos, graças ao papel mediador da “obra
central” de Sarduy e que teve o seu maior alcance e desenvolvimento
em França. De alguma maneira, gostaríamos de pensar, por assim
dizer, num mapa neobarroco, onde as várias vozes, até em planos e
em contextos muito longínquos, comuniquem entre elas, tal como, no
fim de contas, a reconstrução de Haroldo de Campos mostra, frisan-
do a relação entre os contributos sul-americanos e europeus sobre o
neobarroco. Talvez por isso não espante que seja o próprio Sarduy,
leitor do Lezama Lima de La expressión americana (1966), quem de-
fende, contra Weisbach, o Barroco como arte da contra-revolução e
que, enquanto leitor de Alejo Carpentier (1967: 37) – «Nuestro arte
sempre fue barroco»57 –, acabe o conhecido ensaio «Barroco y Neo-
barroco» de 1972 com as palavras seguintes:

Barroco que en su acción de bascular, en su caída, en su leguaje pintu-


rero, a veces estridente, abigarrado y caótico, metaforiza la impugnaci-
ón de la entidad logocéntrica que hasta entonces lo y nos estructuraba
desde su lejanía y su autoridad; barroco que recusa toda instauración,
que metaforiza al orden discutido, al dios juzgado, a la ley transgredi-
da. Barroco de la Revolución (Sarduy, 1999: 1404)58.

Sarduy torna a lançar o escandaloso desafio de se ser barroco:


actualidade do barroco por subversão, por escárnio, por dispêndio,
por paródia. O Barroco de 1974, no rasto de Lacan59 e Derrida (mas
57
Cfr. dentro da extensa bibliografia sobre a questão do barroco/neobarroco
na América do Sul, pelo menos o já citado ensaio de Irlemar Chiampi, mas também
(Schumm, 1998); (Rincón, 1996); (Thodoro, 1992).
58
Leiam-se as palavras de Sarduy acerca do papel fundador de Lezama Lima :
«Lezama es, en nuestro espacio, ese antecesor ; es su obra la que, desde el porvenir,
regresa o invita a que la convoquemos para que en su advenimiento ese porvenir se
haga presente. […] Una meditación sobre Lezama Lima, sobre la posible herencia de su
palabra, no puede evitar esas interrogaciones ni tampoco dejar de vincularlas con otra :
la de la posibilidad y pertinencia del barroco hoy, la de un probable surgimiento del
neobarroco a partir de su obra, en la luz caravaggesca de su escenografía, o en la elipse
incandescente de su teatralidad», (Sarduy, 1999: 1405).
59
É conhecido o seminário de Jacques Lacan com o título de (intencionalmente
retórico?) «Du Baroque», onde se declara explicitamente rangé ao lado do barroco:
«Le baroque c’est la régulation de l’âme par la scopie corporelle. Il faudrait une fois –
je ne sais pas si j’aurai jamais le temps – parler de la musique, dans le marges. Je parle

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também e, talvez, mais decisivamente do Bataille de La notion de
dépense), revela à Europa a outra face da sua moeda através da prá-
tica artística: contra toda a noção de «útil», seja ela a economia bur-
guesa, ou a sua linguagem da informação, o barroco contemporâneo
instala-se, para além do funcional, no espaço da superabundância, da
dissipação e do resíduo ou, parafraseando Bataille, para além do «li-
mite do útil». Com Sarduy, a prática barroca que parecia colocar-se
nos antípodas de todas as estéticas modernas, inclusive da marxista,
torna-se recuperável “por subversão”, não apenas ao nível simbólico,
como «causa justa», mas até na revolução cubana.

ser barroco hoy significa amenazar, juzgar y parodiar la economía


burguesa, basada en la administración tacaña de los bienes, en su cen-
tro y fundamento mismo: el espacio de los signos, el lenguaje, soporte
simbólico de la sociedad, garantía de su funcionamiento, de su comu-
nicación. Malgastar, dilapidar, derrochar lenguaje únicamente en fun-
ción de placer – y no, como en el uso doméstico, en función de infor-
mación es un atentado al buen sentido moralista y “natural” – como
el círculo de Galileo – en que se basa toda la ideología del consumo y
la acumulación. El barroco subvierte el orden supuestamente normal
de las cosas, como la elipse – ese suplemento de valor – subvierte e de-
forma el trazo, que la tradición idealista supone perfecto entre todos,
del círculo (Sarduy, 1999: 1250).

O barroco tinha sempre funcionado como conceito político, po-


rém, agora e pela primeira vez, o espelho inventado pelos contempo-
râneos já não reflecte os antigos juízos e preconceitos do Neoclassicis-
mo, do Iluminismo, do Romantismo e do Positivismo, mas inverte a
acusação feita ao Barroco por ter sido o veículo reaccionário, irracio-
nal e obscurantista da Razão (quando a mesma razão era subversiva)
de toda a cultura “dirijida” das monarquias centralistas e da Igreja
(Maravall, 1975). Benito Pelegrin define como “renversement de la
perspective” o processo que fez com que o barroco hoje, perante a
Razão que as Luzes, a Ciência e o Liberalismo tecnocrata institucio-
nalizaram, se apresente (graças e pelos seus caracteres de irracionali-

seulement pour l’heure de ce qui se voit dans tout les églises d’Europe, tout ce qui
s’accroche aux murs, tout ce qui croule, tout ce qui délice, tout ce qui délire. Ce que j’ai
appelé tout l’heure l’obscénité – mais exaltée», (Lacan, 1975 : 105).

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dade, de insensato, de dissidência) como subversivo de toda a Ordem,
antiga ou nova que seja (Pelegrin, 1983: 38). Desde os colóquios de
Cerisy (Benoist, 1983) em 1982, onde foram explicitamente evocados
Sarduy e Lacan, que se assiste, portanto, à metabolização desta inver-
são ideológica do barroco, por parte de muita da produção teórica
francesa (até se falou em sentimento de culpa perante a tradição recu-
sada), tendo até sido ela a afirmar, em diversas variações, a fórmula
segundo a qual é verdade que, para o racionalismo do século XVIII,
a arte (posteriormente apelidada de “barroca”) estava ao serviço do
Poder, nos finais do século XX; aos nossos olhos, essa mesma arte
mostra o seu vulto progressista, quando não propriamente subversi-
vo, em relação ao racionalismo institucionalizado.

Les philosophes de l’histoire et, plus, généralement, toutes les logiques


linéaires et univoques résistent mal au choc de la modernité. On as-
siste donc à une inversion des positions. Le baroque, au XVIIe siècle,
s’efforçait, en vain, de contrôler une raison qui avait alors partie liée
avec le progrès et la liberté de l’esprit. Le rationalisme moderne s’est lais-
sé contaminer par le productivisme ambiant : sous ses masques divers,
dialectisant, pragmatiste, technocratique, il prêche la soumission aux
impératifs de la rentabilité économique et de l’utilité politique. Les ba-
roques d’aujourd’hui partent moins en guerre contre en guerre contre ce
rationalisme sclérosé qu’ils ne contestent, non sans angoisse, sa crise, la
crise de ses catégories, de ses codes, de ses ordres (Guerin, 1983: 356).

Esta reflexão, ainda mais aprofundada por Guy Scarpetta, conota


implicações pós-modernas – que mais adiante veremos – no momento
em que trava uma luta pessoal iconoclasta contra todos os princípios
modernos de progresso da história, da arte, do homem, defendidos
pelas vanguardas novecentistas. A posição pelegriniana, que inverte a
equação Barroco=Reacção versus Razão=Revolução, como sendo de
impossível aplicação à nossa realidade de fim-de-século, será elogiada
por Scarpetta pelo facto de Pelegrin ter conseguido demonstrar como
a história pode inverter, por vezes, os seus valores e como, sobretudo,
nenhum estilo e nenhuma cultura em geral podem ser condenados
em nome de um sentido, de uma direcção unilinear e irrevogável da
história. Contudo, esta posição, ainda moderna, de Pelegrin pecaria
por uma sobreposição crítica (típica do marxismo) que confunde o
nível artístico com o político, isto é, quando a arte é sempre o veícu-

95

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lo de uma ideologia. A subversiva actualidade do barroco, segundo
Scarpetta, consiste (e isso é um pouco o leitmotiv quer de L’impureté,
quer de L’artifice) não tanto numa arqueologia, mas numa verdadeira
retroacção, em que, ao entrarmos num barroco historicamente defini-
do, somente nos será possível a sua reapropriação a partir do presente;
daí que «c’est précisément parce que je ressens le caractère actuelle-
ment «subversif» du recours au Baroque que je suis amené à percevoir
autrement (non en historien, mais en «contemporain») Gracián ou le
Bernin […] c’est parce que le mythe du progrès en art fonctionne de
moins en moins que je puis aimer Góngora ou les frères Asam, non en
tant que «précurseurs», mais comme des contemporains, – pour leurs
singularité»(Scarpetta, 1985: 360-361). Para Scarpetta, em suma, a
mudança ideológica do barroco é viável apenas com a condição de
sair, ou melhor, de tentar sair, uma vez por todas, daquilo a que ele
próprio chama de “dezanovismo”, isto é, do século XIX, das grandes
utopias e ideologias surgidas da idade das Luzes:

non c’è Barocco nella modernità (da Proust a Faulkner a Fuentes, da


Picasso a De Kooning, da Richard Strass a Luciano Berio) se non al
fine che questa modernità si emancipi dal XIX secolo, dai suoi miti
e dalle sue illusioni. Necessità, quindi, di rinnovamento su tutt’altra
lunghezza d’onda (Scarpetta, 1991: 21).

Entre muitas e diferentes hipóteses, esta resulta apenas numa das


modalidades de “retorno”, que o mesmo autor aceita apelidar como
pós-moderna. Nos antípodas desta “invention postmoderne du baro-
que”, pode colocar-se a produção (a vários níveis) poética, teórica e
crítica dos representantes do experimentalismo português e nomea-
damente de E.M. Melo e Castro e Ana Hatherly. Ambos, depois da
breve (embora intensa) estação da última vanguarda literária em Por-
tugal – não por acaso auto-definida barroco-experimental – seguiram,
respectivamente, por um lado, o caminho de uma revisitação crítica do
“já feito” poético, muitas vezes adaptando-a aos novos horizontes de
discussão, por outro, o caminho virado para o interesse historiográfico
da cultura do barroco, que eles próprios tinham pretendido resgatar via
revolutionis, desembocando em estudos eruditos sobre esse século.
De facto, a partir do momento em que a vanguarda experimental
portuguesa, retomando as sugestões sul-americanas e, nomeadamen-
te, brasileiras de Afonso Ávila (a famosa proposta de «rebelião pelo

96

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jogo») e do grupo concretista de São Paulo, reivindica, por si própria
e postumamente à sua própria efémera existência, a tradição barroca,
nunca deixará de manter separados o plano estético do plano ideológi-
co; como explicou E. M. Melo e Castro, se é lícito assumir a produção
barroca como herança, fazendo de si próprios, pelo menos em parte,
como representantes da vanguarda, «sucessores» do barroco, fica por
definir o problema da recolocação, ao nível ideológico, dos restos desta
herança. Herdeiros, sucessores, repare-se neste ponto, já não “contem-
porâneos” à maneira de Scarpetta, entre eles (experimentalistas) e o
barroco instala-se uma diferença. Portanto, o duplo gesto crítico de
Melo e Castro, já levado a cabo em 1976, que consistiu em:

a) uma descontextualização histórica em relação aos séculos XVI,


XVII, e XVIII.
b) Uma recontextualização em relação à segunda metade do século
XX nossa contemporânea (Melo e Castro, 1976).

talvez se torne no melhor contributo teórico da vanguarda relati-


vamente ao conceito ideológico de barroco. O barroco, longe de ser
entendido nos seus aspectos sociológicos de época ou de cultura da
Contra-Reforma, da Inquisição, do Jesuitismo, transforma-se, na resse-
mantização dos poetas da década de 60 e 70 em Portugal, numa arma
de resistência e de luta contra o regime salazarista, que pode apenas
reevocar o Seiscentismo na comum característica de serem ambos pe-
ríodos sem liberdade de expressão. Aos poetas experimentalistas, para
citar Melo e Castro, não interessava o período histórico em si, dos sé-
culos XVII e XVIII, mas sim a potencialidade dinâmica da ideia de bar-
roco, sobretudo à luz de uma perspectiva construtivista-combinatória,
centrada quase exclusivamente nas suas vertentes lúdico-formalistas e
concreto-visuais. No contexto nacional, nas últimas duas décadas de
uma ditadura que, à medida que se encaminhava para uma lenta ago-
nia, mais se conotava com o despotismo – «país sem olhos e sem boca»,
onde «a gente é previdente cala-se e mais nada», onde «a boca é para
comer e pra trazer fechada», aquele «país onde não acontece nada» de
Ruy Belo –, a inversão ideológica do barroco torna-se significativa. Por
detrás da prática estética barroca, está um inteiro projecto político mo-
derno que faz com que a poesia experimental, ao reivindicar o barroco,
o torne num instrumento de abertura e dissolução dos discursos repres-
sivos e coercivos do Poder. Mesmo quando a prática poética deu lugar

97

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à investigação erudita, como no caso de Ana Hatherly, que tentaria re-
constituir uma arqueologia da Poesia Experimental a partir do manei-
rismo e do barroco, o problema da legitimação ideológica do passado,
num contexto moderno, continuará a atormentar; ou melhor, o pró-
prio horizonte contemporâneo de expectativa reclamará a justificação
daquelas épocas. O melhor exemplo de inversão ideológica provém dos
documentos que testemunham o diálogo entre Ana Hatherly e Melo e
Castro. Foi este que, numa carta enviada à autora de A Experiência do
Prodígio («Bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos
séculos XVII e XVIII»), datada de 26/10/1983, indicou alguns «reparos
a fazer», relativamente à publicação do volume supracitado:

Não me parece que seja correcto dizer (como está na Introdução, pág.
13) que: «entre as obras dos maneiristas e dos barrocos e as dos poetas
de vanguarda da segunda metade do nosso século» se podem encon-
trar «perturbantes paralelos estéticos e ideológicos».
Parece-me que quanto aos paralelos estéticos não há dúvida. Mas
quanto aos ideológicos é que não. [...] De facto a ideologia da Contra-
reforma não é a nossa hoje nem foi a nossa no período da resistência
à censura do Fascismo – através da escrita e da desconstrução dos
discursos oficiais Impostos.
Parece-me exactamente OPOSTA! Mesmo que alguns frades tenham
recheado os seus panegíricos de subreptícias denúncias. [...]
Julgo que se poderá esquematizar a seguinte evolução:

SABER = conhecimento original



SAGRADO (oculto)< hermético
↓ < cabalístico judaico
Religioso (cristão)
MANEIRISMO-
BARROCO ↓
Panegírico e lúdico (apologético)

PROFANO TRANSGRESSIVO (EXPERIMENTAL, séc. XX)
(ou lúdico como arma de denúncia)60

60
Cfr. Espólio de Ana Hatherly, caixa 8 [Res. N57], Biblioteca Nacional de Lisboa.

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O barroco, como se pode constatar, só através da reescrita experi-
mental teria sido capaz de desencadear a carga subversiva necessária
às contingências do tempo: a invenção da tradição por parte da van-
guarda justifica a luta num determinado período histórico, mas não
só, adapta-se também às condições e aos novos desafios do presente.
E se, nos anos do regime, resistir significava recriar o que “nos é
intrínseco”, ou seja, segundo a proposta de Melo e Castro, aquilo que
é representado pelos modelos criativos do barroco e do experimental,
ao longo dos anos o valor político da redescoberta barroca virá a
definir-se até reconhecer que «é, isso sim, como função textualmente
pertinente que o barroco caracteriza a impertinência da prática poéti-
ca da 2ª metade do século XX, tanto quanto agente capaz de desmon-
tar os discursos dos poderes ditatorialmente instituídos (da década de
60) como dos novos poderes democráticos sustentados à sombra de
valores económicos dum neoliberalismo muitas vezes irresponsável e
selvagem» (Melo e Castro, 1990: 85). Melo e Castro parece subscre-
ver, portanto, as palavras de Benito Pelegrin, ao admitir, na sua his-
toricização pessoal (muitas vezes paradoxal “auto-historicização) da
vanguarda portuguesa (a única que, segundo ele, merece o nome de
neobarroca), que o Barroco «agora, na sua recontextualização con-
temporânea como neobarroco, ele assume as funções duma cultura
marginal, contestatária e renovadora procurando a utilização criativa
dos novos meios de comunicação massiva e fazendo sobre eles uma
reflexão construtiva» (Melo e Castro, 1990: 85). Se é verdade, porém,
que toda a produção literária de Melo e Castro é atravessada por um
desnível (mais ou menos profundo) entre a sua actividade de poeta e
de crítico militante, é preciso não esquecer que é a ele – ao historia-
dor, a esta espécie de Breton do experimentalismo português – que se
deve a tentativa de, ao longo dos anos, «desambiguiser le processus
de reprise du baroque»(Moser, 1996: 417), fixando-lhe o significado
político, mostrando o contributo estético desse processo para a sua
própria poesia e para a de outros experimentalistas. Contudo, vere-
mos mais adiante que esta tentativa, embora caracterizada pela actu-
alização permanente dos estudos, acabou muitas vezes por se trans-
formar numa reflexão da experiência vanguardista, relativamente ao
problema do barroco e do neobarroco, pro domo sua.

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2.3 O Neobarroco: Versões (Pós)modernas

La dissimulazione è un’industria di non


far vedere le cose come sono.
Si simula quello che non è,
si dissimula quello che è.

Torquato Accetto61

História, memória, esquecimento: é através desta tríade que se


atravessa a fronteira crítica entre as modalidades modernas ou pós-
modernas de retorno do barroco. Ao falar em inversão ideológica
do barroco, aceitou-se a hipótese de que a Modernidade era de tipo
“utópica”, na acepção scarpettiana: modernidade como produto (e
projecto na terminologia de Habermas) do Iluminismo, confiante no
progresso do homem, segundo uma visão optimista do mundo e da
sua história. Só se o barroco fosse entendido como pré-moderno, e em
oposição às Luzes da razão, o seu retorno (moderno) poderia ter sido
invertido e, por conseguinte, recebido como libertador de tudo o que
a modernidade utópica tinha acabado por reprimir para que pudes-
se triunfar. Todavia, seguindo Moser62, outro tipo de modernidade
61
Tommaso Accetto, Della dissimulazione onesta, a cura di S. S. Nigro, Torino,
Einaudi, 1997, p. 27.
62
Na verdade, entre estas duas diversas (senão opostas) atitudes modernas perante
o «barroco que volta», pode citar-se a posição conciliadora de Guido Guglielmi, para
quem – nos “rastos bolonheses” de Anceschi (inadequada a perspectiva de considerar
todo o mundo moderno como sendo originado do Illuminismo, já que o que definimos
“mundo moderno” «nei suoi fondamenti significanti porta in sé, caso mai, il violento,
vitale contrasto tra ciò che diciamo “barocco” e ciò che diciamo “illuminismo”») – «se
è vero che la nostra modernità è erede dell’illuminismo, è anche vero che essa è in so-
spetto verso le assolutizzazioni della ragione, o verso un illuminismo che non compren-
de la critica di sé stesso. E, d’altra parte, un illuminismo a sua volta rischiarato, ritrova
nel proprio fondamento un pensiero retorico, cioè un pensiero che vive delle proprie
incompiutezze e delle proprie antinomie. È un illuminismo che non teme la contraddi-

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pressupõe uma outra atitude perante o barroco. Uma modernidade,
desta vez, já não utópica, mas sim melancólica, como foi definida por
Walter Benjamin, onde a história, em oposição à natureza, (enquanto
permanência), é a própria natureza, mas à mercê da morte, tornada
«significante apenas nas estações da sua decadência». Se o luto pela
perda da totalidade transcendente é o traço típico do homem barro-
co, cujo futuro – já não utopia de um longínquo porvir – fica para
trás, num passado distante, do qual está irrevogavelmente separado, a
melancolia de ser inactual, “póstumo”, representa o espelho da escri-
ta, da alegoria barroca, que vai acumulando vestígios, restos, ruínas
do e no tempo, fragmentos espalhados: «l’arte barocca […] significa
l’inattualità di ciò che rappresenta» (Guglielmi, 1987: 97).
Se, por um lado, a imanência material de um mundo em ruína é
aniquilada pela alegoria que tem o poder de atribuir (até arbitraria-
mente) significados às coisas que residem para além desta precarieda-
de, por outro, o seu limite não faz senão que se confirme o sentimento
de perda, de esvaziamento de tudo.
Em conformidade com esta concepção de “moderno”, o retorno
do barroco não seria mais do que um retorno da consciência melan-
cólica depois do insucesso das grandes narrações utópicas da primeira
modernidade: o barroco, na perspectiva de Buci-Glucksmann – que
se tem dedicado ao estudo das suas implicações históricas e actuais
(1984; 1986) –, constituir-se-ia não apenas como uma razão – pro-
priamente barroca – outra dentro da modernidade («diferente da dos
pensamentos do progresso», ou melhor nascida das suas contradi-
ções, emergida sempre «do abismo de uma crise»), mas sobretudo
como uma Raison de l’Autre, «de son excès et de ses débordements»
(Buci-Glucksmann, 1984: 13). O barroco torna-se, então, moderno
quando «la mélancolie a désormais pour objet l’espoir perdu d’une
totalisation future, c’est à dire la modernité utopique en ruines» (Mo-
ser, 1996: 415): enfim, essa mesma melancolia, espécie trascenden-
tal de “maneira”, seria o efeito do pensamento, o fundo escuro, o
impensável, o furor «neo-barroco». Por isso, não é por acaso que é
a própria Buci-Glucksmann a extrair do Trauerspiel benjaminiano
a possibilidade de repensar o neobarroco como alegoria do carácter
de complexidade e instabilidade ontológica do mundo onde vivemos

zione, non si concede le facilitazioni della dialettica, e non ha più bisogno di censurare
il barocco», (Guglielmi, 1987: 110).

101

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depois da catástrofe «en que el fragmento, las ruinas y el carácter
óptico de todo lo real, serían los índices de una historia saturniana»
(Buci-Glucksmann, 1993: 15-16). Neste sentido, a maneira neobarro-
ca viria a constituir-se como anamnesis estética, já não em forma de
simples repetição do passado (como o «neo», como todo o “neo” que
o ecletismo do presente multiplica), mas como “memória”, «alegoria
do presente» capaz de reescrever o seu palimpsesto estilístico através
da utilização dos jogos da linguagem63.
Porém, a partir do momento em que, através da reutilização dos
materiais fragmentários, a reciclagem dos resíduos condena à morte
estes mesmos materiais, subtraindo-os ao próprio sentido histórico
com um gesto de esquecimento voluntário, acontece que, por um
lado, a reciclagem leva à despedida do projecto intrínseco à moderni-
dade utópica; por outro, o barroco é submetido a um processo pós-
moderno de reutilização.

Dans ce sens, le retour du baroque est à la fois moderne et postmo-


derne : en tant que rétablissement d’une conscience mélancolique, il
appartient à la modernité de tipe benjaminienne, tandis que, dans
son mode de fonctionnement qui relève d’une esthétique du recyclage
déhistoricisant, il est postmoderne (Moser, 1996: 415).

Para Walter Moser, ao pós-moderno – que tem menos a ver com


uma época específica, do que com uma relação com os materiais cultu-
rais do passado – é possível reconduzir uma dupla atitude, detectável
sobretudo nas propostas de Scarpetta e de Deleuze, mas, adiantamos
nós, (embora em planos diferentes), também nas de Omar Calabrese,
de Michel Maffesoli64 ou, mais recentemente, de Boaventura de Sou-

63
«Si el barroco “histórico” vio el mundo como una biblioteca en la que todos los
libros habrían sido leidos, como un teatro en la que cada qual interpreta su papel hasta
el punto de integrar una pragmática del espectador en el drama, el neo-barroco – que
ha perdido además el horizonte del creer – se sitúa de golpe en el terreno de los juegos
de lenguaje, en el sentido de Wittgenstein» (Buci-Glucksmann, 1993: 29).
64
A procura de uma definição da “caótica” socialidade pós-moderna, enquanto
barroquização da existência, baseada na análise da transformação da ética em estética,
leva Maffesoli (1990: 201) a utilizar a noção de “sensibilidade barroca” para explicar
como a existência, considerada integralmente, se pode tornar numa obra de arte: «Les
diverses réincarnations de la sensibilité baroque sont toujours intervenues en période
de turbulence. La nôtre n’y échappe pas. Le passage de la modernité à la postmodernité

102

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sa Santos65. É, portanto, possível reconhecer um gesto negativo, que
estaria desinteressado do conteúdo histórico do Barroco, que osten-
taria apenas indiferença para com as suas contingências temporais66
e que permitiria a reciclagem dos seus elementos, uma vez que estes
estariam totalmente des-historicizados. Mas podemos também reco-
nhecer um gesto positivo, capaz de inventar o seu próprio barroco,
à maneira deleuziana – «il s’agit de savoir si l’on peut inventer un
concept capable (ou non) de lui donner l’existence» (Deleuze, 1988:
47) –, capaz de pôr os materiais culturais do passado «au service
d’une cause ancrée de l’aujourd’hui» (Moser, 1996: 412). A recusa
do esquema linear da história, típico do evolucionismo modernista,
tal como a recusa de um modelo in absentia Historiae, produto de
eternos retornos, de ciclos e de repetições, desemboca numa nova vi-
são – pós-moderna – da história, concebível como um processo de

est l’occasion de nombreuses mises en question de ce qui était jusqu’alors des évidences.
On ne satisfait pas d’une Histoire souveraine et linéaire, le projet politique n’exerce
plus la même fascination, la nature n’est plus ressenti comme la raison ultime de toute
vie en société. Non pas que ces éléments n’existent plus, mais ils ne sont plus pris iso-
lément, ils s’inscrivent dans un ensemble qui dépasse et englobe chacun d’entre eux.
[…] A l’image de l’apparent désordre d’une église baroque toute en or flamboyant, en
frise végétale et en niches de saints, mais dont l’ensemble fait sens, il y a dans la baro-
quisation post-moderne une logique interne qui assure l’équilibre des masses, tribus et
énergies composites. Il s’agit d’un ordre mobile, mais qui tout en étant flexible n’en est
moins particulièrement résistant».
65
Para o sociólogo português, o Barroco, sendo uma metáfora cultural que define
uma forma de subjectividade e sociabilidade, é apenas um dos três tipos (juntamente
com a “fronteira” e o “Sul”) daquilo a que chama subjectividade da transição para-
digmática através da qual «o passado é uma metonímia de tudo o que fomos e não
fomos. E o passado que nunca foi exige uma reflexão especial sobre as condições que o
impediram alguma vez de ser. Quanto mais suprimido, mais presente. A subjectividade
emergente [em particular, aquela barroca, diga-se] é tão completamente contemporâ-
nea de si própria que, tratando o passado como se ele fosse presente, chega a parecer
anacrónica. Podemos falar de anacronismo virtual: o passado que é transformado em
presente é o passado que não foi autorizado a existir. Contudo, o passado é tornado
presente não como uma solução já pronta, conforme acontece na subjectividade reac-
cionária, mas como um problema criativo susceptível de abrir novas possibilidades. O
imperativo, é pois, de desfamiliarizar a tradição canónica sem ver nisso um fim em si
mesmo, como se essa desfamiliarização fosse a única familiaridade possível e legítima»,
(Santos, 2000: 321).
66
«On essaie donc de détacher les matériaux culturels baroques, le plaisir esthéti-
que qu’ils procurent, la fréquentation de textes, la visite des monuments, etc. de ce qui
les aurait conditionnés à l’époque baroque» (Moser, 1996: 411).

103

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«diversas histórias», de «estratos», de «heterogeneidades temporais»,
de «efeitos de retroacção», de «coisas feitas», de «um universo onde
se foge ao tempo». Como afirma o próprio Scarpetta, quando declara
a entrada no Barroco, para o qual não é possível voltarmo-nos, pois
que este está precisamente à nossa frente:

Comme si la linéarité historique avait été retournée, redistribuée.


C’est, peut-être, la seule acception possible, pour moi, de l’attitude
postmoderne: savoir que l’invention ne coïncide pas forcément avec
la négation du passé, et la production du nouveau à tout prix, sans
mémoire. […] il ne s’agit pas de revenir en arrière, mais, par exemple,
de réécrire l’histoire, autrement (Scarpetta, 1985 : 358)67.

O retorno do barroco no século XX, enquanto retorno do “repri-


mido”, consistiria, pois, num espaço de diálogo, relacional, caracte-
rístico de uma temporalidade paralela em que os artistas de hoje, Le-
zama Lima por exemplo, dialogam com Gôngora ou adoptam/adap-
tam Gracián68; mas se é legitimamente admissível atribuir ao século
XVII a origem do barroco, quanto mais a memória dele se distancia
e dele se esquece, tanto mais os materiais do passado barroco podem
ser reciclados num contexto contemporâneo. A memória histórico-

67
O uso da palavra pós-moderno (o título do sub capítulo é mesmo «Reflexão pós-
moderna») é abolido na terminologia scarpettiana por explícita admissão do próprio
crítico na fictícia «Conversa» de L’artificio (p. 17), em que é lembrada a renovada
necessidade (já exposta, de facto, em 1985) de não “aderir” a semelhante noção. A
contraditoriedade e provisoriedade dos conceitos que pós-moderno acarreta induzem
Scarpetta a escrever que: «il termine, inizialmente, poteva indicare un commiato all’ide-
ologia modernista; ha finito per diventare, per come è stato abusato, una vera macchina
da guerra, diretta non soltanto contro il modernismo, ma anche contro la modernità
in quanto tale». Mais adiante, Scarpetta tenta pelo menos estabelecer uma linha di-
ferencial entre o “seu” neobarroco e a estética de uma “cultura-armazém”, como a
pós-modernista, onde seja possível detectar, nas obras do primeiro tipo, para além
da prática eventual de uma arte “de segundo grau”, «un’esigenza di invenzione, di
stile (là dove il postmodernismo. Come d’altro canto il kitsch, potrebbe definirsi come
l’incapacità di creare uno stile, e la pura sostituzione della citazione all’invenzione)»
(Scarpetta, 1991).
68
«…Gracián fa del poeta latino Marziale un compatriota e un contemporaneo di
Góngora, anche noi possiamo allora considerare Gracián como nostro contemporaneo
o Picasso contemporaneo di Rubens e Velásquez. La storia non è percepita come uno
svolgersi lineare e continuo, ma come una circolarità, come un ritorno nella differenza,
e non nell’identità» (Pelegrin, 1987: 59).

104

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cultural, arrastada pelo esquecimento da tradição, pode apenas par-
ticipar de uma memória despedaçada, que usa exclusivamente o que
precisa, o que melhor se adapta à sua nova reelaboração artística. Re-
ciclar o barroco, na expressão de Calabrese, inscreve-se numa prática
mais ampla de reciclagem cultural que, por constituir uma metáfora
epistemológica, contribui para desvendar os sintomas da cultura con-
temporânea de carácter predominantemente citacionista ou mesmo
“canibal”. Assim, a reciclagem cultural, portanto, por um certo lado,
recorre directa e explicitamente aos materiais barrocos, através de
formas de citação, de releitura, de colagem, de transposição, de paró-
dia; por outro, ao contrário, experimenta uma des-historicização pós-
moderna dos mesmos materiais, cujo uso já não necessita de ser legi-
timado pelo seu conteúdo histórico (a pertença ao barroco, por exem-
plo), mas apenas regulamentado por estruturas imanentes ao próprio
contexto estético. Por outras palavras, esta versão pós-moderna do
retorno barroco prevê que o autor esqueça a proveniência do material
cultural, que “desdenhe” da sua proveniência histórica para o utilizar
apenas naquilo que ele é, naquilo que dele fica, no tempo presente.
A dialéctica pós-moderna de esquecimento/memória, inerente a esta
prática, compreende-se melhor quando comparada com o processo de
interferência cultural que o transplante da estética europeia em solo
americano69, no século XVII, subentende. O gesto historicamente de-
senvolto de um olhar actual, por assim dizer, “sem recordações”, diri-
gido para o barroco (cuja audácia crítica foi contrariada por alguns70)

69
Moser, ao retomar as análises sobre a «miscigenação» de Janice Theodoro, exa-
mina a prática pós-moderna de retorno do barroco através da fórmula «imitar sem
recordar», típica do artista indígena, que pode copiar – ou melhor, que pode aprender
a copiar – o modelo estético europeu (uma igreja, uma estátua, um soneto) conforme
uma fiel reprodução técnica e formal, embora não possa recordar (no momento da
«descodificação»), porque a sua memória cultural é outra relativamente à aquela do
artista europeu.
70
Cfr. sobretudo as posições “neo-retoricistas” de G. Morpurgo-Tagliabue, 1987;
e de J. Hansen, 1989; 1994. O crítico italiano, depois de ter discutido as diferenças
entre Barroco (falta de distinção opositiva entre campo estético e artístico; mentalidade
normativa, marcada por códigos e preceitos) e Pós-moderno (separação acabada en-
tre artístico/estético; mentalidade constativa moderna e pós-moderna, enquanto total-
mente individual e volúvel, acidental), reconhece que nós, os contemporâneos, somos
herdeiros «legítimos e abusivos» do Barroco: «”legittimi” in sede estetica, illegittimi in
sede “artistica”… legittimi in sede di pulchrum et aptum, abusivi in sede di poësis»,
(Morpurgo-Tagliabue, 1987: 133).

105

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e correspondente a uma fragmentação voluntária da memória, remete
não só para uma nova concepção da História, mas também para uma
nova lógica de produção artística:

Dans une logique du recyclage culturel, les matériaux devenus dis-


ponibles sont ainsi mis à un nouvel usage, insérés dans une nouvelle
construction culturelle, ancrés dans un nouveau lieu, investis d’une
nouvelle signification, ils entrent dans l’établissement d’une nouvelle
identité (Moser, 1998 : 79).

Também o «neo» do barroco de Calabrese, que poderia reevo-


car, tal como o «pós», a ideia de repetição, de retorno, recusa, desde
logo, a hipótese de uma qualquer retoma da tradição e dos cursos
e recursos históricos. Omar Calabrese, reformulando o conceito de
barroco como «categoria da forma», da expressão e do conteúdo (em
competição com a morfologia do “clássico”), tenta uma formalização
teórica de fenómenos actuais da cultura, de forma a defini-los como
«neobarrocos» (em substituição do abusado pós-moderno que, mui-
tas vezes, nem sequer coincide com os objectos que se pretenderam
etiquetar com este nome).
Para o semiólogo, é possível alcançar uma definição da estética
neobarroca, tanto em termos de universalidade do gosto quanto nos
de especificidade epocal, apenas no momento em que, afastadas todas
as soluções que previam uma sobreposição da forma sobre a história
concreta (Wölfflin, Focillon, D’ors), o «barroco» passe a ser entendi-
do como «non solo o non tanto un periodo determinato e specifico
nella storia della cultura, ma un atteggiamento generale e una qua-
lità formale dei messaggi che lo esprimono»(Calabrase, 1991: 16).
Mais uma vez o que está em jogo é a história: se, de facto, Calabrese
pode ainda aceitar uma solução (embora de compromisso), como a
de Anceschi – para quem apenas uma determinada descrição histó-
rica do sistema cultural barroco garantia a comparação com outros
fenómenos de cultura (nomeadamente modernos) –, a sua proposta
é «tornar “rigoroso” o formalismo, evitando-se tanto a contradição
com a historicidade como a debilidade de situações classificativas ca-
suais e empregadas dedutivamente» (Calabrese, 1988: 33-34). Como
a história já não é o lugar de manifestações de continuidades, mas de
diversidades, é nela que se pode entrever, apenas empiricamente, o
aparecimento de formas em competição – clássico versus barroco –

106

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e, especificamente, a detecção de figuras (essas, sim, historicamente
determinadas). «A [história] não se torna», adverte Calabrese, «de
modo algum na fonte de uma classificação exclusiva» e, por isso, «fe-
chamos a última porta aberta nos confrontos da história» (Calabrese,
1988: 39):

ci può essere del barocco in qualsiasi epoca della civiltà. Barocco è in-
somma quasi una categoria dello spirito, contrapposta a quella di clas-
sico. […] A me pare che la contrapposizione fra i due termini possa
essere riproposta nell’ambito del gusto contemporaneo, e addirittura
in quello dei giudizi di valore (Calabrese, 1991: 16).

Eis como em A Idade Neobarroca, Calabrese conota a polaridade


das duas categorias

Por «clássico» entenderemos substancialmente categorizações de juí-


zos fortemente orientadas para as homologações estavelmente orien-
tadas. Por «barroco», entenderemos, pelo contrário, categorizações
que «excitam» fortemente a ordenação do sistema e que o desestabi-
lizam em algumas partes, que o submetem a turbulências e flutuações
e que o suspendem quanto à resolubilidade dos valores (Calabrese,
1988: 39).

Uma vez estabelecidos os modelos morfológicos do clássico e do


barroco (que viriam a conviver na história conforme uma prevalência
quantitativa e qualitativa), a procura do «neobarocco» consiste no
levantamento de “figuras”, como manifestações históricas de fenó-
menos, e na tipificação de formas, enquanto mutação daqueles mes-
mos modelos. Neste sentido, a estética neobarroca, que – lembre-se
– participa da adequação (ou mesmo da adesão) da arte a um mais
geral «espírito da nossa época», caracteriza-se por fenómenos cultu-
rais que, por excitação, ressaltam em comparação com outros, num
determinado momento da vida da sociedade. O esforço hermenêutico
de Calabrese foi o de reconhecer, dentro de um elevado número de
artistas coevos e seus objectos, a urgência, ou melhor, a emergên-
cia de certas linhas de força formais, que viriam a ser explicitadas
numa sistemática teoria das formas, baseada (um bocado à maneira
de Wölfflin) em nove duplas de categoriais: ritmo e repetição, limite
e excesso, pormenor e fragmento, desordem e caos, instabilidade e

107

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metamorfoses, nó e labirinto, complexidade e dissipação, “quase” e o
“não-sei-quê”, distorção e perversão.
Segundo a perspectiva de Remo Ceserani, na esteira de Jameson,
(«Il postmoderno, come lo intendo io, non è un termine esclusiva-
mente estetico o stilistico» ou «la mia teoria del postmoderno è ba-
sata sulla premessa che il postmoderno non è uno stile») identificar
a arte ou a literatura pós-moderna com uma determinada poética,
com um estilo, com um sistema retórico coerente e restrito, tal como
a proposta «neobarroca» de Calabrese pretendeu fazer, significa cair
numa armadilha (Ceserani, 1997: 135). É também por isso que, aqui,
nos limitaremos a falar de atitude ou estratégia pós-moderna perante
o barroco e a sua constituição como neobarroco, evitando escorre-
gar, num terreno de si perigoso, para outras ambiguidades como a de
identificar, tout court, Pós-moderno e (Neo)barroco. Aqui retomamos
e aceitamos a acepção jamesoniana de Pós-moderno como condição
histórica em que podem, mesmo, coexistir vários estilos (cuja recusa
na descrição não foi, contudo, suficiente para que Jameson não caísse
em tentação)71 ou estratégias representativas: o fim da procura de um
estilo inimitável, substituindo-a pela voluntária e difusa imitação de
estilos mortos ou vivos, pela paródia e pela manipulação de géneros e
de formas, pelo gosto do pastiche, mas também por um decorativismo
sumptuoso, a intensa relação com outros meios expressivos. É por
isso que estamos dispostos a ver o Barroco – até nos seus elementos de
identidade (alegoria, culto da imagem, da aparência, do lúdico) com a
cultura contemporânea – e a sua prática actual como Neobarroco (in-

71
«È stata la concezione dello “stile” – a me molto familiare da un periodo precedente
– che mi ha impedito per tanto tempo di liberarmi da questa impressione di illimitato plura-
lismo, ma lo ho fatto negativamente, operando sulla base della convinzione che lo stile per-
sonale come tale non fosse più possibile dopo il periodo di regime del soggetto individuale e
accentrato, mentre la riduzione di un intero periodo a un qualche stile generalizzato, come
il barocco o il gotico, mi pareva non solo intollerabilmente idealistica ma anche totalmente
non dialettica; quella concezione in ogni caso non sembrava tenere conto del ruolo svolto
nella produzione contemporanea o postmoderna dal semplice fatto della persistenza stori-
cistica di tutti quei periodi precedenti e dagli stili del mondo fin dentro il nostro presente,
che li applica con un sovrappiù di intenzioni e in una maniera quasi medianica. Il postmo-
derno, in altre parole, veniva definito nella sua stessa costituzione proprio per l’inclusione
di tutti quegli stili possibili e quindi per la sua stessa incapacità di essere caratterizzato
globalmente, e dal di fuori, tramite un particolare stile specifico: la sua resistenza, in altre
parole a ogni definizione estetica e stilistica totalizzante» escreve Jameson, The Seeds of
Time, New York, Columbia University Press, 1994 (Ceserani, 1997: 136).

108

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tertextualidade, gosto pelo simulacro, pelo pastiche) incluídos na pós-
modernidade, de maneira a que ela, todavia, não se sintetize somente
nestes elementos72. Assimilável a esta proposta teórica é a reflexão de
Luigi Russo, que se opõe à pretensão de atribuir ao Barroco histórico
o valor de “pré-história” do Pós-moderno; se, de facto, não faltam
na cultura pós-moderna referências, escolhas pessoais de gosto, tais
como uma real adesão ao Barroco (não raramente superficial), forçar
as analogias resultaria de um duplo e grave erro: histórico e teórico.

D’une part, on situe le Baroque dans une ligne génétique et évolutive


qui n’appartient pas à notre ascendance directe, mais à peine à notre
pool chromosomique: de l’autre, le postmoderne se qualifie justement
par la rupture de tout le lien de continuité avec ce qui précédé, et le
choix de le libre affinité d’époque.
En conclusion, le Baroque n’est pas notre préhistoire, car il insiste dans
une histoire différente, qui est épuisée aux débuts de la modernité, et
qui est devenue pour nous une topique archaïque. Pourtant c’est pour
cela, au-delà de toute contiguïté fictive, que le Baroque peut consti-
tuer un répertoire inépuisable de matériaux hétérogènes précieux aussi
pour construire notre postmodernité (Russo, 1990 : 66-67).

Para evitar, portanto, uma sobreposição entre neobarroco e pós-


modernidade, que acabaria por trair o carácter desta última, marcado
por uma resistência a toda a definição estética e estilística totalizan-
te, poderíamos repetir a criteriosa proposta de Ezio Raimondi, para
quem, mais do que perguntar-nos se o barroco é moderno ou pós-mo-
derno, seria melhor «aceitar que esteja em suspenso tal como outras
situações humanas, relacionadas com os equilíbrios possíveis» porque
«no espelho da cultura o barroco pode também ser uma daquelas
faces, através das quais se pode ver melhor uma parte da nossa» (Rai-
mondi, 1995: 19).

72
Escreve Benito Pelegrin (1990: 37): «Quant à la notion encore très discutée et
contradictoire (ou abandonnée) de Post-moderne, si son abandon de la notion de pro-
grès et de linéarité de l’Histoire, si son refus de croire à l’Avant-Guarde et à la nouveau-
té, lui permettent, de se réclamer de catégories anciennes tirées vers le contemporanéité,
par la même, elle se différencie du baroque qui, lui, avait foi en sa nouveauté et dans
le progrès. De sorte que si le Baroque ou le Néo-baroque sont compris dans la Post-
modernité, celle-ci ne peut se résoudre à eux».

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SEGUNDA PARTE

A CONSTELAÇÃO BARROCA
NA POESIA CONTEMPORÂNEA PORTUGUESA
DOS ANOS 50 AOS ANOS 70

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Terceiro Capítulo: Crítica e Poesia.
A Obsessão Barroquista

A voir le baroque partout, on risque de le situer nulle part.

Benito Pelegrin73

73
Pelegrin, 1990b: 85.

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Nos capítulos anteriores propusemo-nos percorrer uma história, a
história do termo «barroco» ou, na sua acepção derivada da tradição
ibérica, iniciada por Menéndez y Pelayo – embora «se trate de um
início inteiramente negativo» (Macrì, 1960: 171)74-, o barroquismo75,
que principia a circular no léxico da crítica literária portuguesa já nos
finais da década de 40, alcançando, todavia, a sua maior difusão e
determinação apenas durante a década posterior. Se é verdade – como
de resto repetidamente sublinhámos – que «le baroque n’a existé qu’à
partir du moment où il a pu être pensé» (Dubois, 1973: 19), é, ao
mesmo tempo, significativo realçar que, a partir do momento em que
a crítica portuguesa se apropriou do termo, o utilizou, graças tam-
bém à ductilidade de que este se reveste, para o adaptar às experiên-
cias artísticas actuais; por outras palavras, se barroco é, realmente,
um anacronismo novecentista que ajuda a definir a arte do século
XVII, fornece ao mesmo tempo uma nova categoria crítica para a
classificação da moderna produção poética. Contudo, o barroco ou o
barroquismo, tal como acontecera com as manifestações artísticas de
Seiscentos, não eliminou integralmente as antigas etiquetas, mas con-
viveu ao lado do «neo-gongorismo», do cultismo, do culteranismo e
do mais compreensível “seiscentismo”.
Já no final dos anos 50, porém, a historiografia crítica regista mais
um avanço, quando o mais representativo crítico de então (e do sé-
culo?), João Gaspar Simões, propôs ler pela primeira vez o processo

74
O crítico italiano evidencia não só a precocidade da data (1884) no uso deste
termo por parte de Menéndez y Pelayo, mas também como se dá a sua transposição
das artes figurativas para a literatura e como a referência ao «barroquismo precioso»
italiano se torna em Espanha numa «monstruosidad pedestre».
75
Para Hatzfeld, o “barroquismo” coincidiria com um hipotético terceiro momen-
to posterior ao Maneirismo e ao Barroco e que se apresentaria como a degeneração
artística deste último, «donde el equilibrio antes existente se hace de nuevo inoperante
y hasta el pensamiento vuelve a ser travieso» (Hatzfeld, 1972: 541).

115

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de «recuperação barroca das fontes da arte em geral e da poesia em
particular» (Simões, 1999: 264) – «recuperação» ibérica e, nos últi-
mos tempos, sobretudo portuguesa – que definia como um dos sinto-
mas daquela época de «neobarroquismo» (Simões, 1999: 266). Mais
concretamente, o reconhecimento, por parte de Gaspar Simões, de
uma nova corrente barroca na poesia dos jovens poetas portugueses,
que se começava a afirmar depois de 1950 e, especialmente, depois
de 1954, pode, de facto, ser considerado como o terminus a quo de
uma nova prática poética, de cujos rastos – por vezes subterrâneos,
por vezes nitidamente florescentes e, sobretudo, persistentes ao lon-
go destes últimos quarenta a cinquenta anos de poesia – iremos à
procura. É mesmo na persistência deste traço barroco da literatura
portuguesa76, já defendida por Ana Hatherly, que reside o carácter
problemático da questão. De facto, para além do problema que recen-
temente a mesma poetisa e crítica admitiu numa entrevista, afirman-
do que «estamos, ao que parece, a fechar o círculo do maneirismo/
barroco e até do neo-barroco» (Hatherly, 2001) (fim-de-século como
terminus ad quem), contamos com a vastidão da matéria e do real
corpus poético, cuja análise forçosamente nos iria condenar a uma
inevitável dispersão, preferindo, por isso, concentrar a nossa atenção
sobretudo na fase de formação, na diversidade das interferências e
influências, nas possibilidades de desenvolvimento e nas derivas esté-
ticas deste barroquismo reconhecível por entre o início dos anos 50 e
a primeira metade dos anos 70. Se, por um lado, como é óbvio, não
vamos excluir algumas incursões também pela poesia «mais recente»
(segundo a fórmula adoptada pela crítica), por outro, a nossa não
será uma história da poesia daqueles anos (já ampla e perfeitamente
historicizados em visões de conjunto sobretudo relativas às décadas
de 50 e de 70). Será menor a nossa pretensão, que será apenas uma
tentativa de contribuição para a destrinça mais aprofundada das li-
nhas [mestras, portanto] poéticas daquilo que foi ou tem sido defini-
do como corrente ou tendência barroca ou barroquizante. Definições
dúcteis, mas pouco comprometedoras, as que fazem conviver debaixo
do mesmo tecto (crítico) uma imensa diversidade de experiências poé-
ticas, como as de Pedro Tamen ou de Fernando Echevarría, as provas
experimentais de E. M. Melo e Castro ou Salette Tavares: no fim de

76
Traço esse visível não só na poesia, e talvez constituísse um grande contributo o
estudo comparado entre prosa e poesia sobre a «barroquização literária» em Portugal.

116

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contas, a tendência barroca, pelo seu estatuto falhado de escola, de
grupo, de estética geracional em forma de revista ou de manifesto,
tal como acontece com a poesia anterior (a conhecida série: primei-
ro e segundo MODERNISMO, NEO-REALISMO, SURREALISMO,
CADERNOS DE POESIA, TÁVOLA REDONDA, ÁRVORE), é
dificilmente canonizável, atravessa obliquamente as gerações e as
produções poéticas, de modo que se constitui como uma verdadeira
constelação barroca, onde participam não só práticas estéticas, mas
também práticas críticas. Na origem da nossa investigação, de facto,
está a convicção de que a poética – seja ela implícita ou explícita – de
muitos autores se reconhece no barroco e de que a sua compreensão
desencadeou um outro processo – necessariamente posterior – de re-
visitação crítica de uma tradição que antes de se formar, tinha já sido
condenada. O nosso estudo, portanto, deter-se-á – todas as vezes que
for preciso – tanto nas fontes primárias, como na produção ensaís-
tica dos mesmos poetas (a literatura portuguesa de Novecentos está
fortemente conotada com a figura “sobreposta” do poeta-crítico) e
na recepção desta mesma poesia ao longo dos anos: destrinçar todo
o tipo de «barroquejar em versos», mas também desvendar o gosto
teórico de retomar uma tradição só para a reivindicar, ou renovar o
barroco exclusivamente como metáfora da própria escrita poética –
gesto reivindicador de herdeiros sem herança a partir do momento em
que «le baroque fournit une généalogie, mais laisse les libertés et les
alibis dont jouissent les orphelins» (Charpentrat, 1967: 124).
Temos, então, por um lado, o grande «censor» do neobarroquis-
mo poético da segunda metade do século que é João Gaspar Simões,
a que chamaremos “médico” daquilo que ele próprio designa como
mal do século («o virtuosismo barroco»); este, ao diagnosticar a pato-
logia completa (sintomas, causas e efeitos de recaída), não tem outro
remédio senão chegar a admitir desconsoladamente o triunfo do mal
entre «os novíssimos». Por outro lado, inversamente, na encruzilhada
crítica, estética e poética, está a obra de Jorge de Sena – como já se
viu –, o primeiro grande codificador do período maneirista e barroco
na historiografia literária portuguesa, teórico pioneiro das categorias
tipológicas de «clássico e barroco» em Portugal, crítico militante que
distingue na poesia contemporânea uma veia «barroca» e, enfim, ele
próprio artífice de uma poesia marcada pela «presença textual de
uma estética barroca» (Carlos, 1999: 337), onde convergem, quase
que in limine, as conquistas e as experiências do Surrealismo, do Neo-

117

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Realismo, do Experimentalismo. É o próprio Jorge de Sena, crítico-
poeta por excelência, que “exorciza” em verso todo o gesto crítico
que pretendeu catalogar a sua poesia, ao longo dos anos:

Quando há trinta anos comecei a publicar,


tentaram assassinar-me com o hermetismo.
Depois, quando se soube que eu sabia inglês,
com insinuações de que eu copiava o Eliot.
A seguir, como eu fazia crítica, tentaram
uma outra táctica: a de louvar-me
a crítica para me diminuir a poesia
ou vice-versa. Quando publiquei Pessoa,
passei a ser discípulo de Pessoa. Mas,
logo que foi público que eu estudava o Camões,
a crítica logo notou a camonidade dos meus versos.
Já fui mesmo dado como discípulo
do Padre José Agostinho de Macedo

E sou clássico, barroco, romântico,


discursivo, surrealista, anti-surrealista,
obnóxio, católico, comunista,
conforme as raivas de cada um77.

Todavia, é somente depois da primeira metade da década de 50,


depois (ou seria melhor dizer “durante”?) do Surrealismo endémico,
depois e graças à acção de Árvore e nomeadamente de Ramos Rosa,
que será possível individuar uma poesia – nas palavras de Gastão
Cruz – por um lado altamente anti-discursiva, representada por Jorge
de Amorim, Fernando Echevarría, Helder Macedo, que com Pedro
Tamen, Maria Alberta Menéres, Fernando Guimarães e João Rui de
Sousa (moderadamente discursivos), formam a assim chamada família
barroco-hermética ou metafísica78; por outro, uma poesia que retoma

77
«Quando há trinta anos…», Visão Perpétua, p. 152.
78
Baseado no testemunho de Pedro Tamen que fala de “família barroca” para a sua
poesia e a de alguns companheiros de geração, Fernando J. B. Martinho identifica no
mesmo Tamen, em Amorim, em Echevarría, em M.S. Lourenço, uma comum temática
religiosa (Martinho, 1996: 420). Cfr. para a definição de poesia incluída nesta «cepa
metafísica» Lopes, 1958: 380.

118

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«a linha da grande poesia discursiva portuguesa» (Cruz, 1999: 200),
abandonada por alguns nos anos 40, e que tem como expoente uma
produção lírica fortemente embebida, ao mesmo tempo, de retórica e
de barroco na pessoa de Herberto Helder e, em condições diferentes,
naquele «monumento barroco» (Cruz, 1999: 112), como chamaram
a Ruy Belo.
Em último lugar, e apenas porque nos encontramos restringidos à
sequencialidade da lógica de escrita, deter-nos-emos na produção da
vanguarda experimental e sobretudo na reflexão teórica – já parcial-
mente abordada – acerca do barroco, desenvolvida pelos seus expoen-
tes nas mais variadas formas ao longo das últimas décadas.
Parece-nos, contudo, importante antepor ao que se seguirá pelo
menos duas considerações: antes de mais nada, que a nossa análise,
longe de rotular (veja-se a epígrafe) com a “fácil” categoria de bar-
roco não apenas a produção individual de cada poeta – muitas vezes
extensíssima, como a de António Ramos Rosa ou a de Herberto Hel-
der –, mas também a de um grupo mais ou menos limitado de poetas,
aspirará a seleccionar – através de um levantamento completo – as
características textuais (formais e de conteúdo) susceptíveis, ainda
que veladamente, de uma estética barroca moderna. Por conseguinte,
explicaremos em que consiste o barroco de um texto, porque é que é
ainda possível utilizá-lo com conotações críticas – apesar de tudo – na
leitura de um poema e, afinal, porque é que todas as vezes que indicia
um traço específico o seu nome evoca a síntese da complexidade.
O século XX reconheceu o século XVII como “barroco”. A tenta-
ção da arte contemporânea e, no nosso caso, da poesia portuguesa, de
fundar uma poética na sua esteira, (o famoso «espelho» genettiano),
ainda que com a consciência do «após», isto é, do «chegar depois»
das conquistas do Romantismo, do Simbolismo, do Modernismo e do
Surrealismo é um dos desafios que permitirá a esta poesia «actuali-
zar» o barroco e nele se rever, igualmente, de uma forma ao mesmo
tempo análoga e diferente.
Assim, ao falar-se de barroco relativamente aos poetas portugue-
ses dos anos 50 e 70 – que podemos ainda considerar contemporâ-
neos, na falta de outros termos e sobretudo para que nos possamos
entender (Coelho, 1988) –, incluídos dentro daquele terceiro e últi-
mo “retorno” novecentista do barroco (conforme a análise de Walter
Moser), é preciso inexoravelmente insistir na sua natureza moderna,
na distância estética que dista entre o século XVII e a sua percepção e

119

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refracção actual. Por isso, a proposta de definir como neobarroca uma
certa poesia diz respeito não só à exigência de reforçar a diferença da
lírica tradicionalmente barroca, revelando, de resto, a ligação com a
sua projecção moderna, mas também à vontade terminológica de se
afastar da definição de neobarroco como estética da época presente
(em substituição de pós-moderno), defendida por Omar Calabrese. O
neobarroco das décadas por nós analisadas instala-se na lírica portu-
guesa completamente dentro da Modernidade literária, talvez como
um último recurso, como solução extrema no trabalhar da palavra
poética, já que, como escreve Fernando Guimarães, «a Modernidade
pôde encontrar na tradição barroca – como o encontrou, mais ou
menos conscientemente na estética romântica ou simbolista – um ca-
minho para a revalorização da presença textual» (Guimarães, 1994:
24).

120

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3.1 O Mal do Século

A la historia del barroco podríamos añadir,


como un reflejo puntual e inseparable,
la de su represión moral,
ley que, manifiesta o no,
lo señala como desviación o anomalía
de una forma precedente, equilibrada y pura
representada por lo clásico.
Sólo a partir de d’Ors el anatema se a atenuado,
más bien, se disimula:
«Si se habla de enfermedad con respecto al
barroco es en el sentido en que Michelet decía:
“La femme é une éternelle malade”».

Severo Sarduy79

O crítico enquanto médico, tendo observado o paciente, arrisca


o diagnóstico: a doença (isto se realmente ela existir) tem um nome;
quando esse mesmo nome não existe, supre-se a dificuldade, inven-
tando-o. Se repararmos nos relatórios médicos (as recensões do críti-
co), podemos detectar que o neobarroquismo se insinuou na poesia
portuguesa já a partir da segunda metade da década de 50. O médico,
que logo acode, começa por descrever causas, sintomatologia, quase
em simultâneo com o desenrolar da doença. Desde 1957 e, pelo me-
nos, durante mais de vinte anos, João Gaspar Simões esteve obcecado
por aquilo que considerava um verdadeiro «vírus», o rumo que a
nova poesia portuguesa tinha tomado e que para ele não seria mais do
que «os domínios do barroco» (Simões, 1999: 373).
O neobarroquismo de Gaspar Simões aparece hoje literalmente hi-
pertrofiado (de Natércia Freire a David Mourão-Ferreira, do Surrea-

79
Sarduy, 1999: 1200.

121

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lismo a Eugénio de Andrade e à poesia concreta), na fúria clarificado-
ra e simplificadora de conotar (e quase sempre também de condenar)
a maioria da produção poética contemporânea: se, por um lado, a ele
se deve o mérito de ter adoptado, pela primeira vez, o termo neobar-
roquismo (aplicado à realidade literária nacional) e de o ter, por assim
dizer, historicizado; por outro, a desenvoltura (quando não excessi-
va) no uso desta “grelha” interpretativa, as causas que aponta e as
conclusões a que chega, resultam, hoje, em grande parte inaceitáveis.
Por outras palavras, Gaspar Simões funda o cânone crítico do neo-
barroquismo, em relação ao qual muita crítica posterior – partindo,
todavia, de outros pressupostos teóricos e de uma maior disponibili-
dade hermenêutica perante a novidade no tratamento poético (inevi-
tavelmente alheio ao presencismo historiográfico) –, ajudará a melhor
definir ou, pelo menos, a identificar as suas atribuições. Ao analisar a
obra de militância crítica de Gaspar Simões, embate-se numa constan-
te que habitualmente incorre nos autores (do século XX) “hostis” ao
barroco: esta constante tem a ver com aquilo que se poderia definir,
sem grande margem de erro, de «condenação dupla» de seiscentismo
e de barroco moderno, isto é, dos «barroquistas de ontem e de hoje»,
para usar uma das suas expressões.

Não creio que a poesia portuguesa deva altos favores ao seiscentismo,


embora corram os ventos de feição para aqueles que se inspiram nos
tópicos que deram à musa barroca a sua rebuscada adiposidade. [...]
Quanto a nós, portanto o barroquismo é de qualquer maneira um
romantismo epidérmico, uma hipertrofia das formas apuradas como
clássicas. Foi no século XVII que apareceram na arte em geral, com as
suas ramificações evidentes na poesia esses apuramentos decorativos
que levaram os arquitectos a preferir o pormenor à traça geral e os
poetas a brincar com as rimas em vez de se deixarem morder por ela.
[...]
No acto funcional, digamos, de toda a poesia barroca está implícito
um exercício, não de ordem espiritual, que esse é legítimo, mas de
ordem literário, condenável por natureza. Quer dizer: tendo a poesia
seiscentista iludido a disciplina de Loyola pelo recurso ao conceptismo
e ao gongorismo, a poesia do nosso tempo parece querer eximir-se
à imensa tentação da problemática espiritual alheia à disciplina re-
ligiosa aceitando o primado do exercício literário sobre o exercício
poético, por excelência um acto gratuito, muito mais do domínio do

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mal que do domínio do bem, muito mais filho da indisciplina que da
obediência à lei, seja ela qual for (Simões, 1999: 415-417).

Entretanto, o juízo (de reprovação) nunca esteve totalmente se-


parado da procura das causas do «mal»: causas exógenas individu-
alizadas pelo crítico, na influência na nova poesia, estando Jorge de
Lima e principalmente a sua Invenção de Orpheu, de 1952 (cujo
prefácio foi assinado pelo próprio Gaspar Simões), na origem «deste
surto novo do barroquismo lírico português» (Simões, 1999: 413)80
e no impulso dado a uma nova recepção da poesia gongórica por
parte da Geração de 27. Daí, portanto, resultava que a Jorge de
Lima – «senão o primeiro, um dos primeiros poetas barrocos da
língua portuguesa do nosso tempo» – coubesse a primazia de uma
tendência poética destinada, porém, a não produzir «epígonos de
grande envergadura»:

Embora seja precisamente à volta de 1950 que entre nós aparecem os


primeiros líricos de signo barroco e nem todos tenham precisado do
facho de Jorge de Lima para se descobrirem da mesma espécie, não
há dúvida de que só actualmente se está a generalizar a olhos vistos o
gosto por um género de poesia capaz de causar mais perplexidade que
entusiasmo propriamente dito (Simões, 1999: 431).

Quanto aos poetas espanhóis (García Lorca, Salinas, Diego), parti-


cipantes na homenagem a Gôngora (“chefiada” por Dámaso Alonso,
bom crítico e medíocre poeta, segundo Gaspar Simões), foram con-
siderados “cúmplices” da valorização de uma obra já morta e sepul-
tada há três séculos. A geração de 27 contribuiria para a infiltração
da lição do “bad master”, do “príncipe das trevas” ou «Mafoma da
poesia», na denominação de Faria e Sousa (que, nacionalisticamente,
Simões não resiste a citar), não só em Espanha, mas também em Por-
tugal e no Brasil; curiosamente, nos dias de hoje, é exactamente em
Portugal que o barroco na poesia triunfa:

Assistimos, assim, à irradiação fulminante de uma espécie de barro-


quismo que não deixa de atribuir a Góngora honras de precursor. […]

80
De 1953 é também a publicação de um «Soneto» inédito de Jorge de Lima em
Árvore: Folhas de poesia, vol. II – Primeiro Fascículo, p. 36.

123

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E se é certo que se principia a reagir contra esse surto barroco da poe-
sia contemporânea, e que na própria Espanha já se assiste a uma como
que contracorrente gongórica, a verdade é que o centenário do nasci-
mento do cónego de Córdova, ainda pode contar com muitos adeptos.
Infelizmente, enquanto em Espanha já surgem focos de reacção contra
o cómodo barroquismo – forma larvada de uma mentalidade poética
que hoje, como em pleno século XVII, se esconde por detrás dos orna-
mentos, receosa de mostrar a sua verdadeira personalidade – dir-se-á
que nós, em Portugal, entramos no apogeu do Barroco. Só é de admi-
rar que os nossos jovens gongoristas não tenham dado mostras de se
prepararem para celebrar a perenidade do génio do seu deus tutelar
(Simões, 1964: 262).

O funcionamento do esquema da «condenação dupla» permane-


ce até na descrição das causas do novo «barroquismo»: decadência
artística seiscentista pendant da moderna. O que nos espanta mais
em Gaspar Simões é a utilização de critérios antiquados (diríamos de
crítica fin de siècle), como o de evocar, em nome da genuína naciona-
lidade literária, a oposição Camões versus Gôngora (primeiramente
notada por Faria e Sousa e na qual se subentende uma posição de con-
traste inteiramente política, numa sobreposição arbitrária), de forma
a justificar que nem o barroco e nem sequer a sua tradução moderna
pertencem ao génio poético português:

Diga-se o que se disser, o barroquismo não é português. E pouco por-


tuguês se me antolha, o neo-barroquismo em que se afunda a poesia
das novas gerações nacionais. Opondo Camões a Góngora, opunha
Faria e Sousa algo de muito substancialmente nacional a algo de muito
substancialmente espanhol. Só em épocas de decadência, como aquela
em que viveram os colaboradores da Fénix Renascida e do Postilhão
de Apolo – esse seiscentismo lusíada que está na moda resgatar em
nome de um nacionalismo que é afinal uma consagração das fontes
castelhanas da poesia portuguesa –, só em períodos tão manifestamen-
te decadentes como o que representa o domínio dos Filipes em Portu-
gal era possível ver florescer entre nós um género de literatura alheio
às linhas profundas do génio lírico que remontava aos cancioneiros
medievais (Simões, 1964: 263).

124

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Os sintomas desta nova barroquização81, segundo o crítico, mais
visíveis na medida em que a poesia se ia afastando do segundo moder-
nismo (o modernismo representaria ainda a plenitude clássica), são
graves e alarmantes; se hoje – diz Gaspar Simões – é possível reconhe-
cer com exactidão as teses de Ortega y Gasset sobre a desumanização
da arte, enquanto análise levada a cabo num clima de revalorização
do barroco e de formação de correntes estéticas de tendência barro-
ca, decorrentes do conceito de «a arte e a poesia desumanizaram-
se» (Simões, 1999: 372). Em Espanha, e somente aqui, «a pátria do
barroco por excelência» (onde já se pode entrever na arte do século
XVII a primeira etapa do afastamento do artista da sua própria hu-
manidade), poderia ter tido lugar uma reflexão deste tipo: «à força
de contar consigo, e só consigo, o homem, o artista tinha fatalmente
de se desumanizar» (Simões, 1999: 372). De Ortega y Gasset, Simões
extraiu também a convicção de que a poesia das últimas gerações em
Portugal se baseia no eufemismo («poeta era o que dizia uma coisa
por outra»), como real essência da arte barroca, a partir do momento
em que – até uma lírica como a de David Mourão-Ferreira, menos
“contaminada” – está prestes a encaminhar-se para «uma progressiva
desumanização dos seus valores» (Simões, 1999: 373). A desumani-
zação artística, porém, é apenas um dos sintomas do mal que nos
aflige: o «niilismo poético». Mais uma vez, João Gaspar Simões tem
de recorrer a uma expressão de desprezo, (a utilizada por Cascalez,
adversário de Góngora, ao etiquetar a poesia do cordovês) para desig-
nar o estado actual da arte poética «de não poucos dos representantes
das últimas gerações de líricos nacionais»:

Sem darem por isso, estes jovens poetas condenaram-se à morte ne-
gando de peito feito aquilo mesmo que julgam consagrar. Tudo esta-
ria certo, porém, se não fosse dado entrever nesse «niilismo poético»
algo de que constitui em toda a forma de niilismo como que uma su-
blimação das próprias fontes da vida. Na atitude dos grandes niilistas,

81
Para J. Gaspar Simões é possível reconhecer uma linha francesa surrealista
(Éluard, Breton, Apolinnaire) e uma “ibérica” no moderno “barroquejar” da poesia
nacional. Esta última, em certo sentido em contradição com a condenação da “não-
portuguesidade” poética (já antes vista), teria correspondência com um «outro jeito
do barroco – um barroco em que realmente me parece participar qualquer coisa de
realmente muito mais nosso, senão de muito mais português, pelo menos de muito mais
peninsular», como em Fernando Echevarría (Simões, 1999: 413).

125

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há uma grandeza capaz de derrotar a sua própria filosofia. Negando,
afirmam, pelo menos, uma coisa respeitabilíssima: a autonomia in-
dómita da sua própria personalidade humana. Eis os discípulos do
«Mafoma da poesia» (Simões, 1964: 263-264).

A lírica destes novos discípulos de Góngora – que Simões menos-


preza e chama de «hermética»82 – estaria logo à partida comprome-
tida por representar apenas um acto intelectual de evasão, o vazio
exercício estilístico de alguém incapaz de gerir poeticamente a matéria
do real:

No niilismo poético dos jovens que em Portugal se consagraram à


poesia hermética há menos negação que culto da evasão. Com receio
de não saberem nem poderem dominar a realidade que os cerca, ei-los
que evadem como outrora se evadiram os seus antepassados seiscen-
tistas, comparsas de uma decadência política não menos impressio-
nante do que aquela que sucedeu ao nascimento de Luís de Góngora y
Argote – pelo menos deste lado da fronteira (Simões, 1964: 264).

Todavia, o quadro completo do neobarroquismo é-nos oferecido


pela descrição das tendências actuais que a Perspectiva histórica da
poesia portuguesa proporciona, onde Gaspar Simões cumpre uma
verdadeira obra-prima de síntese. O barroquismo, mais ou menos
latente, situável nos inícios da década de 50, vai ligar-se, quase dia-
lecticamente, com o experimentalismo dos anos 60 (de que considera

82
Fernando Guimarães tem razão ao sublinhar que o uso simoniano da expressão
“niilismo poético” (mas também se poderá dizer que a categoria «poesia hermética»
foi transposta da tradição crítica italiana, sendo esta uma causa do niilismo) foi apreen-
dido das considerações de um livro de grande sucesso, o conhecido Estrutura da lírica
moderna, de Hugo Friedrich, de 1956. O crítico alemão, de facto, defende a negativi-
dade em alguns aspectos (mais formais do que de conteúdo) da poesia contemporânea
que, na esteira da crítica estilística de Dámaso Alonso, se caracteriza por uma certa
resistência (pelo menos no estado actual) à sua completa definição, a não ser através
da aplicação de categorias negativas. Cfr. Guimarães, 1999: 23-24; e Friedrich, 1978.
É significativo que também Curtius, no fim do capítulo sobre o maneirismo, insistindo
em que o intelectualismo do siglo de oro tem afinidades com a sensibilidade do século
XX, cite entre os exemplos de «maneira moderna» a poesia hermética: «Che cosa è
l’intera opera di James Joyce se non un gigantesco esperimento manieristico? Il gioco di
parole (pun) è uno dei suoi pilastri. E quanto manierismo in Mallarmé! E che affinità
con l’odierna poesia ermetica», (Curtius, 1992: 334).

126

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mestre Ruy Belo): «E o neobarroquismo triunfa, e com ele o expe-
rimentalismo (Simões, 1976: 405). O neobarroquismo hipertrófico
de Gaspar Simões passa, então, pela chamada geração da década de
40, isto é, por José Blanc de Portugal, por Jorge de Sena, por Eu-
génio de Andrade, «eixo de toda uma época lírica que se aproxima
cada vez mais de um neobarroquismo a que a sua obra não é alheia»
(Simões, 1999: 404), por alguns representantes da Távola Redonda
(nomeadamente, David Mourão-Ferreira), por Ramos Rosa, «o qual
iria ganhar as esporas de mais representativo cavaleiro do chamado
neobarroquismo» (Simões, 1976: 401)83, pelos expoentes do Norte:
o Porto como centro de irradiação barroca (caso de Echevarría e de
Amorim)84, que avança e se espalha, acolhendo nomes de origens tão
diversas como os de António Gedeão, Natália Correia e de outros po-
etas mais jovens como Salette Tavares, António Salvado e Ruy Belo.
O neobarroquismo de Gaspar Simões abrange tudo até estabelecer
pontes de ligação, através da Antologia de 1959, organizada por E.
M. Melo e Castro e Maria Alberta Menéres, entre as velhas gerações
e a última vanguarda do século português: «com efeito, o neobarro-
quismo e o experimentalismo, ou o neobarroquismo experimentalista
– as duas tendências associam-se –, juntamente com o concretismo»
(Simões, 1976: 405).

83
Em contrasto com esta posição, leia-se a recensão de 1961 a Voz Inicial de
António Ramos Rosa, onde o mesmo crítico exclui qualquer contaminação barroca
por “óbvias” razões biográficas: «Não é barroco António Ramos Rosa. E, se não é,
deve-o ao facto de ter nascido nas ribas do Atlântico, perto já das costas mediterrâneas,
enamorado de uma claridade solar que dissipa as trevas e se recusa a nebulosidades
comprometedoras» (Simões, 1976: 420).
84
Já em 1958, estes dois nomes, juntamente com os de João Maia e de António Ge-
deão, tinham sido incluídos naquela «tendência para o barroco na poesia portuguesa»,
em que se «dão mostras de um rebuscamento imagístico e de uma compenetração
em elementos dialécticos-formais que evocam épocas em que, à mingua de inspiração
criadora, a poesia preferiu complicar, alindar, gongorizar a sua forma, desdenhando os
caminhos novos e as novas aventuras de espírito» (Simões, 1958: 389).

127

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3.2 Do Maneirismo ao Barroco: Variações em torno de Jorge
de Sena

E não esqueçamos [...] que de peculiar e reduzido grupo de pintores extra-


vagantes do fim do Renascimento academicista, o maneirismo está em ris-
cos de tornar-se, não só o período de direito próprio que urge reconhecer
nele – vasto e variado, englobando todas as manifestações estéticas – mas
um novo dragão devorador como até há pouco estava sendo o Barroco.

J. de Sena85

«Do Maneirismo ao Barroco»: esta mesma expressão poderia, de


imediato, remeter-nos para um título genérico (senão mesmo banal)
de um qualquer ensaio académico, ou talvez de um manual escolar
(de história da arte, mais provavelmente). Se, pelo contrário, se torna
no título de um poema, o efeito causa até estranheza, como quase
sempre acontece quando este elemento paratextual joga de forma vo-
luntária, por evocação («Noções de Linguística» ou «Teoria da His-
tória») ou por transfiguração («Pequeno tratado de dermatologia»),
com conceitos teóricos mutuados da linguagem ensaístico-erudita ou,
genericamente, científica. Com um título, desde logo conotado nesta
direcção, como «Origem da poesia épica» (e quanto êxito terá, não
só em poesia, toda aquela série de «tratados, manuais, ensaios, exege-
ses, teorias, transcrições, diálogos, falas, cartografias, introduções»),
Jorge de Sena dá continuidade aos seus títulos poéticos, não hesitan-
do em requisitá-los à nova terminologia literária («Close reading») e
às ciências da linguagem («Bilinguismo» ou mesmo «Noções de Lin-
guística»), ou às estéticas contemporâneas («Ode ao Surrealismo por
conta alheia»). O facto de o título constituir uma informação sintética
e condensada de toda a mensagem para a qual remete, tal como o
facto de criar uma expectativa perante aquilo «que vem depois», faz

85
Sena, 1965: 33-34.

128

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com que o autor possa utilizar o título como uma verdadeira marca
interpretativa em relação dialéctica ou mesmo antifrástica. Jorge de
Sena, que não fica indiferente a um carregado jogo paródico e po-
lémico, muitas vezes inscreve, ou melhor reescreve, o título dentro
de uma série de referências intertextuais que, mais ou menos cripti-
camente, poderão ser reconduzíveis aos códigos culturais do autor:
«Nós, aqueles poetas exigentes…,/que procuramos, para os poemas,
títulos completos// – e criamos dois poemas sobrepostos./Nós, aque-
les poetas inteligentes…,/que damos títulos irónicos aos poemas/ – e
sofremos o sentido de um poema duplo»86.
Um poema como «Do Maneirismo ao Barroco», escrito no final
de 1972 e recolhido no livro Conheço o Sal… e outros poemas87,
não representa apenas a síntese de «alguns aspectos do curso sobre
Maneirismo e Barroco, professado pelo autor»88, mas sim a reactua-
lização (e ritualização) em verso de problemas de história da estética,
da cultura, de poética implícita do mesmo autor. A alusão cruzada
das duas grandes duplas arquetípicas da cultura na fronteira entre
os séculos XVI e XVII coloca o leitor in medias res ou, por outras
palavras, quase como se estivesse no meio das páginas de um livro (as
referências enciclopédicas ao Príncipe de Maquiavel, a Montaigne, a
La vida es sueño de Calderón de la Barca, à Fedra de Racine fazem
parte da prática transtextual de Sena). As duas duplas, dizíamos, são,
respectivamente, Don Juan89/Fausto e Hamlet/Dom Quixote, os pri-
meiros «des types, des caractères» sem uma psicologia acabada e por
isso verdadeiros “mitos”; os segundos, mais humanos, mais terrenos,
heróis por excelência barrocos, tal como os conota Pelegrin90.

86
«Contraponto», in Quarenta Anos de Servidão, Lisboa, Edições 70, 1989, p. 32.
87
[P III, p .222].
88
«Notas a alguns poemas», [P III, p. 261]. O poema deve também ser relacionado
intertextualmente com a comunicação de Sena com o título de «D. Juan, o Duplo, a
Dúvida, e os Arquétipos do Maneirismo», apresentada a “V Congresso da Associação
Internacional dos Hispanistas” em Setembro de 1974 (Sena, 1994).
89
A esta figura é dedicada o poema «Lamento de Don Juan» de Peregrinatio ad
Loca infecta, enquanto ao Hamlet se devem reconduzir o poema homónimo «Hamlet»
de Visão Perpétua, e outras variações sobre o tema: «To be or not to be» do mesmo
livro e «Helsingör» de Exorcismos.
90
Na diferença relativamente às duas duplas, Benito Pelegrin identifica a passagem
«Des mythes aux héros» nos seguintes termos: «Ainsi, Hamlet (1600) et Don Quichotte
ne sont plus des types mais semblent des êtres de chair, dotés d’une existence telle qu’on

129

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Faustus infaustus Don Quixote Pança
E o príncipe tão doce Horácio amigo
Don Juan Catilinón Tenório de Sevilha
E Mefistofilis Comendador o espectro
E o real do mundo só na morte aos loucos
– dois para o inferno com a nossa bênção,
dois não se sabe com a nossa angústia.

A mesma construção – por assim dizer – «espelhada» dos primei-


ros quatro versos reflecte o jogo estilístico no qual assentam os quatro
protagonistas e seus respectivos génios tutelares e “servidores” (D.
Quixote/Sancho Pança; Hamlet/Horácio; Don Juan/Catilinón; Faus-
tus/Mefistofilis). Textos, em todos os sentidos, liminares, as obras de
Shakespeare, de Cervantes, de Marlowe e de Tirso da Molina são
assumidas como testemunhos da problemática passagem estética do
maneirismo ao barroco, para além de todas as periodizações que a
convenção historiográfica propõe.
Os destinos dos protagonistas destas obras, embora diferentes
(respectivamente o inferno e o “não se sabe onde”), têm uma causa
comum, o seu fim está inscrito nos seus inícios: a procura que todos
eles fazem está, por assim dizer, “errada”; errar, sem dúvida, adquire
para eles (e sobretudo para D. Quixote) a dupla valência de errância
e de erro91. Pois:

ne peut ni les confondre ni les répéter sans affaiblissement ou caricature: eux ont mis
entre parenthèses le Ciel ou réglé le problème, et leurs soucis sont terrestres, politiques
ou moraux, non religieux comme pour Faust ou Don Juan. De ne pouvoir vivre sans
rêves, Hamlet se contenterait presque de rêver sa vie, quand le Chevalier à la Triste
Figure s’abandonne à eux et tente de les mettre en pratique sans l’ombre d’un doute.
L’hésitation, le flux de conscience même paralysent le prince dans la durée d’une parole
sans acte, tandis que c’est l’action qui installe l’hidalgo dans le temps de l’Histoire qu’il
veut retrouver de la chevalerie errante. Mais, ne se heurtant pas à la transcendance
comme Faust ou Don Juan, ils demeurant dans une humanité littéraire : cela les exclut
du mythe, qui tient toujours du sacrifice religieux», (Pelegrin, 2000: 417).
91
Como é sabido, a dupla etimologia do verbo errar (com a paronomásia errância/
erro), que antes do século XVI se fazia derivar exclusivamente do verbo latino itinerare
– será influenciada, a partir do século XVI, da interferência semântica do verbo errare:
desde então, “errar” passará a ter o duplo sentido, não só de errância, mas também de
erro (Zumthor, 1995: 200).

130

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Todos haviam lido o livro errado:
Faustus invocações Quixote folhetins
O príncipe Montaigne em vez do Príncipe
E Juan o livro do seu sexo incerto.

O livro está na origem das suas procuras e dos seus falhanços, das
suas dispersões. Se, como magistralmente escreveu Walter Benjamin
(1984: 116), «o Renascimento explora o Universo, o barroco as bi-
bliotecas», estas quatro personagens de Sena são o duplo livresco do
real. Bastou-lhes errar a leitura92 de um livro (ou de um monte de li-
vros, todos iguais, como os livros de cavalaria do hidalgo da Mancha)
para descarrilar da identidade para a alteridade, por intermédio de
um terceiro agente oculto (a sabedoria torna-se numa fáustica arro-
gância de adiar a morte, imposta pelo pacto com Lúcifer; a melanco-
lia de Hamlet transforma-se em encenada loucura depois da aparição
do fantasma do pai; a cavalaria, da página escrita, desdobra-se na
realidade da obsessão de Dom Quixote; Don Juan, o «burlador de
Sevilha» é burlado pela estátua do «comendador»):

Duplos são todos e um terceiro oculto


a morte nosso pai a estátua e quem
dirá como teatro o resto que é silêncio.

Contudo, é mesmo em Camões – que o próprio Jorge de Sena tinha


reinventado como o expoente máximo do “Maneirismo português”,
«quinhentista/ e maneirista como querem alguns e outros não aceitam
a palavra»93 – que está o marco histórico e estético, signo mais evi-

92
Sobre a passagem de um conceito de leitura enquanto pensum, enquanto obri-
gação, ao conceito de ócio e de agradável passatempo, com toda a carga erótica e
transgressiva que isso implica, leiam-se as considerações de Roland Barthes, que vê
como primeira etapa dessa passagem a aparição do romance de amor ou de cavalaria,
a cuja leitura «Don Chisciotte si consacra spregiando ogni altra attività, [lettura] che
è all’origine delle sue avventure. All’opposto della lettura misurata, disciplinata dei
monaci, quella di Don Chisciotte è una trasgressione, una follia: in quanto tale, è nel
libro di Cervantes condannata da un canonico, rappresentante dell’ordine religioso e
sociale», (Barthes, 1998: 277).
93
Na verdade, utilizámos e adaptámos a Camões os versos de Sena escritos acerca
do príncipe de Venosa, Don Carlo Gesualdo, no poema homónimo «O Príncipe de
Venosa, ou o Epigrama Barroco Alemão» in Visão Perpétua, p. 130.

131

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dente da mudança de perspectiva. O maneirismo quebra o equilíbrio,
de forma a que a atitude ordenada e normativa do Renascimento seja
substituída pela consciência dilacerada, moderna, do poeta cujas me-
táforas, cujos conceitos remetem apenas para «um saber peregrino,
esotérico, sepultado nos livros e no tempo» (Guglielmi, 1987: 97):

Junto de um seco, fero, estéril monte,


e outro lugar não tem a solidão do mundo,
o poeta foi sempre dois três ante o papel secreto:
o dois que sempre dois que em dois se funde,
e o três que é três no dois se transforma
cada uma com o seu contrário num sujeito.

O poeta é duplo, como num espelho torna-se no seu contrário: o


real é ficção, a vida é representação, o homem é só uma das tantas
personagens. Tal como acontece nos melhores trompe-l’oeil, nas me-
lhores anamorfoses barrocas, como nas «Meninas» de Velázquez, o
contorno, o suporte, a tela, a cortina, o palco, a página, já quase não
se reconhecem: entre quem representa e o representado, a fronteira
dissolve-se, muitas vezes em prejuízo do artista e em função da obra.
Se é mesmo preciso viver – parece dizer o Barroco –, é melhor que
tudo seja encenado, que se suba ao palco:

A vida, a morte, o amor, o fado, o sonho


que de impossível nos não perde ou salva
de sermos ou não sermos personagens
no grão-teatro do mundo aonde tudo acaba
em Segismundo ou Fedra antes que o pano caia
sobre a leitura dos errados livros:
os únicos abertos num lugar de acaso,
exactamente aquele que nos gera.

Todavia, a inteligibilidade destes versos é directamente propor-


cional ao seu lugar no seio da dinâmica de toda a obra seniana, quer
poética, quer teórica; isto, como já salientámos, pelo papel mediador
de Jorge de Sena e porque, na nossa perspectiva, o texto poético, mais
do que assentar no vazio ou no “fechado” da sua leitura, tem de
dar conta da intertextualidade que subjaz a toda a obra seniana. Em
suma, o poeta nunca se dispensa de ser crítico, tanto mais na imensa

132

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rede de uma produção poética que mantém fortes relações transtextu-
ais com a obra em geral:

relações intertextuais e metatextuais, relações implícitas ou explícitas


de transformação ou de comentário que transcendem os limites dos
géneros e que envolvem, no mesmo movimento da criação, prefácios e
posfácios, notas e epígrafes, críticas e ensaios, entrevistas e epístolas,
crónicas e ilustrações, além dos textos ficcionais e dramáticos (Carlos,
1999: 13).

É na “dobra” entre o discurso teórico e o discurso poético de Sena


que podemos entrever os primeiros sinais de uma prática artística
próxima do barroco:

fui-me a estudar um sábio livrinho sobre


os primeiros epigramas alemães, um estudo de poesia barroca, uma vez que,
maneirismos e barroquismos são gosto e obrigação minha, a doutorice não.
O livro não é mau, tem muita referência útil, e a criatura autora
navega nas águas do gigantesco Curtius que embirrava com o maneirismo de
maneira tal, que o pôs em todas as épocas da história só para chatear
a gente94.

Desde a proposta dos vinte e dois pares antitéticos de «atitudes


estéticas» (Sena, 1970), cuja aplicação proporcionaria a leitura da
obra literária e onde se colocava, ao nível da expressão, a oposição
entre a tipologia do clássico e do barroco, até ao reconhecimento do
moderno «barroquismo» na lírica de António Gedeão, passando pelo
estudo pioneiro que representa «Maneirismo e Barroquismo na Po-
esia Portuguesa dos Séculos XVI e XVII», toda a obra de Jorge de
Sena, enquanto «relação tensional», é sustentada por uma concepção
dialéctica em que o barroco é o segundo termo na estrutura elementar
da sua textualidade: Clássico-Barroco.

O «clássico» e o «barroco» opõem-se na medida que a formalidade é


vista como algo que exprime, ou como algo que é expresso. Por outras
palavras: o intelectualismo conceptista e o ornamentalismo estrutural
do barroco [...] significam que a formalidade das formas se orienta no

94
«O Príncipe de Venosa, ou o Epigrama Barroco Alemão» in Visão Perpétua, p. 130.

133

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sentido de fixar, nas convoluções das ideias ou das imagens, todas as
virtualidades harmónicas de uma célula expressional. O «clássico»,
por sua vez, orienta essa formalidade no sentido de reduzir as virtuali-
dades a uma célula, cujo desenvolvimento se faz então, não já em fun-
ção daquelas virtualidades, que foram postas de parte, mas segundo
as virtualidades próprias da célula expressiva. Indutivo é o «barroco»,
é dedutivo o «clássico» (Sena, 1970: 42).

Jorge de Sena, ao estabelecer esta antítese teorética de clássico-


barroco, não só entrava no processo histórico de formação de noções
tão discutidas e polémicas como a de maneirismo e barroco, na linha
de Wölfflin, de Eugénio D’Ors, de Focillon, de Curtius (gesto decisivo
para a revisão do cânone historiográfico português, acrescente-se),
mas, sobretudo, fazia coincidir o maneirismo tipológico e fenomeno-
lógico com o terceiro termo de uma dialéctica de formas, que «vive
num estado meditativo de tensão não resolvida» (Carlos, 1999: 376),
e é neste “estado mediano” que Jorge de Sena «objectiva a tensão
como essência estruturante da sua poesia». O «maneirismo estrutu-
ral» consiste, portanto, na relação entre expressão classicizante e bar-
roca, típica da morfogénese poética seniana, tal como acontece (e é
mesmo Sena quem escreve isso) com o maneirismo de Camões, que
«resulta de uma emoção clássica e de uma expressão barroca» (Sena,
1980: 45). Da mesma forma, toda a produção poética do autor de
Metamorfoses se move em volta de dois pólos antitéticos, através, po-
rém, da mediação do maneirismo como termo intermédio que decorre
da «intersecção variável dos planos da expressão e da emoção, com-
binando expressão barroca e emoção clássica ou expressão clássica e
emoção romântica» (Carlos, 1999: 368) – tipologicamente o manei-
rismo serve para registar a flutuação, o deslize, a perda de equilíbrio
teorizada por Focillon.
Jorge de Sena, como muita crítica constatou, representa um verda-
deiro carrefour de poéticas: «a minha poesia tem sido uma tentativa
para superar contradições da consciência actual, que se espalham pre-
cisamente nos diversos “caminhos” da poesia portuguesa moderna»
(Sena, 1979: 212). Se foi possível colocar a obra de Jorge de Sena
na origem da tendência barroquizante em Portugal, isto deveu-se ao
facto de conviverem diacronicamente na sua obra formas estéticas
do modernismo, do surrealismo, do neo-realismo, do classicismo, do
“barroquismo”, do experimentalismo, através de uma relação nunca

134

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resolvida, nunca desdobrada, como num «fluxo de tensões»: «não
há reconciliação nem coincidência dos opostos: há tensão, há fluxo
de tensões. A dinâmica da obra resolve-se no movimento tensional,
sem jamais se fixar numa posição determinada» (Carlos, 1999: 353).
Em Jorge de Sena a poética barroca, tal como a clássica, participa
naquela tensão estética, cuja natureza dialéctica, irredutível a uma
única categoria estilística, faz com que toda a sua poesia não exista
senão como relação.
Neste sentido, não é por acaso que a cada uma destas tensões esté-
ticas (do «Horizonte primordial» ao «Neobarroco e experimentalis-
mo», através da estética modernista, da dos Cadernos de Poesia e da
surrealista), Luís Adriano Carlos dedica um circunstanciado capítulo,
onde, por exemplo, no último, sobre o neo-barroco, depois de ter
considerado todas as designações (de «gongorismo» e do seu “neo”
, de «cultismo», de «conceptismo», de «barroquismo») usadas pela
crítica ao longo do tempo, tenta traçar, também comparativamente,
as figuras marcantes desta poética:

A sinceridade, a confidência solitária e o desnudamento do sujeito


eram destruídos pela teatralização da subjectividade, o fingimento e
a exuberância da linguagem. Simultaneamente, a orientação barroca
subvertia a economia clássica do signo e da representação.

Contudo, se é eminentemente ao nível estilístico-formal que é pos-


sível proceder a um levantamento de tropos na poesia de Jorge de
Sena, que leva o crítico a falar, na esteira de Buci-Glucksmann, de
razão barroca como razão retórica –

os postulados da clareza, lógica e do equilíbrio arquitectónico, da


sobriedade emocional e da serenidade meditativa davam lugar a um
paroxismo retórico pleno de alusões, elisões e ilusões, a uma deriva
fluídica, turbilhonante e combinatória do signo, a uma erotização do
significante, e a um furor da ambiguidade e do paradoxo, do contraste
e da antítese, da assimetria e do oxímoro, do hipérbato e da hipérbole,
da condensação evocatória e da hipotipose (Carlos, 1999: 338).

– é também verdade que são reconduzíveis ao barroco certos te-


mas, certas alusões, certos conteúdos susceptíveis de serem catalo-
gados como reescritas autorais de músicas, de paisagens, de lugares

135

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barrocos, de artistas de Seiscentos e de Setecentos, onde aquela predi-
lecção, aquela «simpatia» do século XX por esta época se torna numa
verdadeira «poética da homenagem» (a qual, de resto, será compar-
tilhada com outros poetas da constelação barroca portuguesa e não
só). De facto, dos temas e das figuras que o barroco tornou paradig-
máticos da sua própria tradição, podemos lembrar os da precariedade
e ambiguidade das coisas do mundo («O fim que não acaba», de Post-
Scriptum), da sua metamorfose (para além do livro homónimo, lem-
brem-se os poemas de Coroa da terra e de Fidelidade), mas também o
topos do desengano humano («Infância» de Perseguição ou «Desen-
gano» de Post-scriptum I), do homo homini lupus nos versos de «Em
des-louvor da velhice» («Para viver-se longamente ou se é de ferro,/
ou vendo um velho penso: quanta gente/ assassinou, envenenou, pi-
sou ou destruiu?/ quantas vidas desfeitas há nessa memória/ que já se
esquece calma pela paz da morte/ Bandidos os humanos, quem não
sobrevive à custa de outras vidas?», Exorcismos), do fantasmagórico,
do duplo, do jogo dos contrários («O hermafrodito do museu do Pra-
do»), da inconstância e da eterna mudança («Agora/ as coisas mais
redondas são cortantes/ e as evidentes confusas/e as mais singelas
complicadas», «Mudança» in Post-scriptum II), as imagens tiradas
da temática erótica e nomeadamente dos cinco sentidos, enquanto
verdadeiro “paradigma da concupiscência”95 («É falso que o amor
não veja./É falso que o amor não ouça./É falso que o amor não tenha
olfacto./O amor tem todos os sentidos/para quanto o rodeia e está
com ele/onde ele estiver» de «Os cinco sentidos» in Post-Scripitum I,),
o motivo da visão das ruínas antigas e da melancólica consciência de-
las derivada: «Não foram nunca as circunstâncias nem a história/nem
o destino nem a providência/ quem matou a grandeza em qualquer
coisa/império ou obra ou simples gesto vivo/de ser-se por instantes
mais feliz./Mas sempre o assassino que se esconde/na outra huma-
nidade.// Passamos entre o pó de assassinados/ e o de assassinos. E
seremos pó/como eles são. Impunes estes sempre,/inconsolados ainda
e sempre aqueles./Nenhuma paz nos paga da maldade», de «Passando
95
Esta expressão foi tirada do ensaio «Convicção e temática dos cinco sentidos»,
de Ana Hatherly (Hatherly, 1997, 222), cujo estudo comparado de dois textos eminen-
temente barrocos como A Preciosa de Sóror Maria do Céu e as anónimas Oytavas, que
aos cinco sentidos compõs hum filho professo na Terceira Ordem de N.S.P.S. Francisco
verte na dimensão persuasiva da palavra poética e do seu fim moral, segundo as moda-
lidades do docere et delectare (no primeiro caso) e do docere et movere (no segundo).

136

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onde haja túmulos» de Exorcismos, ou, como nos emblemáticos ver-
sos de «Restos mortais»: «O que de nós mais dura: só esqueleto/que
nos fez ósseos mais do que moluscos./O resto acaba tudo: quanto foi
sentidos, vontade, amor, inteligência, carne,/e sobretudo sexo, o sexo
acaba/e se desfaz na mesma pasta informe e fim de tudo que não é só
ossos,/apenas os detritos da armação mecânica/do que se pendurou
por algum tempo,/em sangue e carne, o porque somos vida».
Todavia, é na dialéctica dos tempos – de presente e passado, de ontem
e de hoje, tal como acontece na estrofe homónima («Pensarei no pas-
sado/embora já confunda/de tantos os haver tido/os corpos por acaso./
Eram como hoje iguais/sempre diversos. E estes/como fomos outrora»96)
– que Sena desenha não só uma ideal geografia barroca de lugares97,
da sua chamada “peregrinatio” («nada sentimental»?), mas sobretu-
do um estratificado mapa dialógico, um pormenorizado palimpsesto,
na mais ampla acepção (Lourenço, 1998) de citações, de evocações, de
descrições, de ekphraseis (Conrado, 1996) como «Encontro com Ver-
meer» de Peregrinatio, ou «A morta de Rembrandt» de Metamorfoses,
de tudo aquilo que, em suma, já chamámos «poética da homenagem».
Todas as artes estão convocadas. O poeta, apesar de estar ciente dos
limites da palavra poética, ao reduzir a verso a expressão artística de ou-
tras práticas (tanto mais em relação à música, que «não exprime nada

96
«Ronda europeia, nada sentimental» é composta de treze estrofes, cada uma com
um título; a citada é a estrofe doze «Ontem e hoje», in Peregrinatio, [P III, p. 167].
97
Leiam-se sobretudo os poemas «Roma», «Villa Adriana» de Peregrinatio, «Sen-
hora da Nazaré em Luanda» de Conheço o sal, «Piazza Navona e Bernini» de Exor-
cismos e «Roma no Verão» onde «a gente sua/ barrocamente em cúpulas de igreja»
de Quarenta Anos de Servidão, p. 111, ou ainda os versos (com ecos em Álvaro de
Campos) de «A uma calista de Milão» do mesmo livro: «Para quê obras de arte? Pra
quê a literatura?/ Há sempre em tudo, como nas ruas gloriosas/ da Roma do Império e
dos barrocos papas,/ um vago cheiro a estival merda que se escapa/ dos respiráculos sob
as galerias em que as lojas e bares/ são modern style como a catedral em Milão/ cheia
de agulhas ferroviárias e de confessionários/ para alívio dos borborigmas de alma/ desta
canalha humana esbarroigada ao sol/ de um Verão como que eterno», p.160. Pode fa-
lar-se de um certo “intertexto romano” ou mais geralmente italiano na poesia de Sena,
todavia comum ao de muitos poetas da segunda metade do século XX. A “passagem
em Italia” é um tema glosado por muitos: de Eugénio de Andrade a David Mourão-Fer-
reira, de Ruy Belo até os versos mais recentes de Ana Hatherly (a secção sobre Veneza
de A idade da escrita) mas também presente, por exemplo, em Tolentino Mendonça,
Luís Quintais, António Franco Alexandre, Jorge de Sousa Braga.

137

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senão ela mesma»98), persegue a transfiguração literária dos «racionais
delírios» das obras de Bach – «Prelúdios e fugas de J. S. Bach, Para Ór-
gão», «Concerto Brandenburguês n.º 1, em Fá Menor, de J.S. Bach» ou
«Bach: variações Goldberg», ou do “neobarroco” Schönberg («Noite
Transfigurada» e «Concerto de piano, Op.42, de Schönberg»), ou das
sonatas de Domenico Scarlatti, provavelmente apenas para as salvar de
um destino de morte, de tríplice morte, a da música, a do instrumento e
a do seu executor em virtude da ressurreição do presente, como escreve
o próprio poeta: «Tudo isso nada é perante/abstracção como esta/ de
morta música/num morto cravo/tocado pela morta/ nesta apoteose/ de
ressurreição/que eu posso, com um toque,/ demiurgo e mago,/ concla-
mar a que/ me submerja em vida/ percutindo/ a solidão triunfal».
Não é apenas para o caso da música (que, todavia, Sena salienta
como o mais evidente), mas para todas as outras artes, que esta con-
sideração é válida: «a nossa fruição estética da arte do passado […]
depende estritamente de uma experiência cultural dela». Perante toda a
arte, a situação do homem moderno é a de quem perdeu o sentido eter-
no da tradição, aquela mesma tradição em que se fundamentava toda a
antiguidade; agora, o seu olhar tornou-se difracto sobre a história:

Ainda que tendamos sempre a resistir ao novo […] estamos abertos


ao passado, a uma escala que os antigos paradoxalmente nunca co-
nheceram, mesmo quando a cultura deles parecia fixa, e decididamente
apoiada numa visão «eterna» da «tradição». Talvez esteja aliás no en-
tendimento disto a chave para entender-se muito mundo moderno: per-
dido o valor e o sentido da «tradição» como tal, na modalidade hori-
zontal e vertical das sociedades contemporâneas de massa, a historicida-
de do passado é chamada naturalmente a substituir a actualidade dele,
naquele mundo da consciência em que a cultura faz individualmente
as vezes da vivência colectiva que se perdeu. Cumpre-me acentuar que
essa perda me é totalmente indiferente: e acho preferível ser-se livres de
visitar o passado, à incomodidade de que ele se pretenda presente (Sena,
«Post-Fácio», Arte de Música, [P II, pp. 209-210]).

98
Explica Sena: «[a música] não é uma experiência análoga à das artes visuais ou à
da palavra, que vivem de representações significativas [...]. As formas de expressão po-
dem expressar e até fundir-se em algumas áreas de acção, mas não podem substituir-se
em si mesmas, umas às outras. O que, mais que para outro meio de expressão estética,
é verdade para a música que sempre leva consigo e sempre impõe, por sua mesma natu-
reza, os seus próprios limites», in «Post-Fácio», Arte de Música, [P II, p. 208].

138

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Esta liberdade de (re)visitar o passado passa, portanto, a caracte-
rizar a mesma «poética da homenagem», em que o homenageado se
define mais como material reutilizável, à luz da experiência cultural
contemporânea “aberta”, do que peça de colecção de uma pesquisa
museológica da história: a reivindicação de Sena – que mais não é do
que a possibilidade que o homem de hoje tem de usufruir da música
medieval, barroca ou contemporânea, e não apenas da do nosso «am-
biente» – reside no “risco moderno” de resistir à História, já que a
nossa própria condição é a de vivermos como órfãos da legitimidade
da tradição antiga, cabendo à modernidade artística criar a sua pró-
pria tradição. Neste sentido, homenagear o passado, um certo passa-
do, um certo século, não tem somente a ver com a “paixão” que se
sofre passivamente (na bela imagem de Jankélévitch), ou com o gosto
(como dizia Sena) por este ou por aquele objecto estético: homenagear
significa, antes de mais nada, reconstruir, a partir dos vestígios histori-
camente reconhecidos, o «novo», para reflectir (sobre) o presente. Por
outras palavras, como acontecera em «Do Maneirismo ao Barroco»,
também poemas como «Homenagem a Spinosa», «”Homenagem a
Sinistrari (1622-1701)”, autor de De Demonialitate», «Homenagem
a Francisco Sanches», «Homenagem a Baltazar Gracián» mostram a
prática poética de Jorge de Sena, de orientação para o barroco, tanto
no versejar, quanto nos apelos às suas figuras tutelares – por citação
explícita, por alusão, por paráfrase ou apenas como glosa (por sub-
versão), como é o caso de «O príncipe de Venosa ou O Epigrama
Barroco Alemão», do cúmplice decalque “benjaminiano”.

Segundo Gracián, aquele tremendo jesuíta


que como o seu contemporâneo Vieira,
pôs a Companhia no Inferno aonde
ela sempre gosta de ter um servidor
que a coloque para as ocasiões (claro
que Gracián, mestre de pensamento,
escritor excepcional, etc., não entra
na lista da lusitana ignorância ibérica
das suas fontes), disse sobre o seu discreto
(ele tratou também do herói) que
ao discreto (ou seja mais ou menos
o honnête homme da França de então)
cumpre dividir a vida em três partes:

139

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numa, pela leitura, conversamos com os mortos;
noutra, viajando, convivemos com os vivos;
e noutra ainda, com pensar, estamos com nós mesmos.
Estes barrocos (ou seria ele um maneirista?)
estimavam especialmente tais dialécticas trinitárias
que os põem tão perto do nosso materialismo
como da Santíssima Trindade de todas as religiões de Igreja ou de política.
Mas este Baltazar (que estimava profundamente,
imagine-se, Portugal e suas coisas, sua gente)
com aquele arranjo paralelístico e contrapontístico
parece querer que a gente não leia os vivos,
e não fique em casa (qualquer que seja) com
a família, os amigos ou a pátria,
além de, pelo pensamento, nos encontrarmos
ou perdermos, o que está certo.
O caso é que, na verdade, só está vivo
quem escreve como se tivesse morrido há séculos.
E só podemos conviver mesmo sem sairmos
de onde estivermos, se continuamente o nosso encontro
com os outros, for uma constante viagem,
cheia de novas amizades dentro das antigas,
e de despedidas para sempre renovadas.
Quanto a nós mesmos…pensemos que discreto,
em matemática é o contrário de concreto,
sem que «concreto» dê qualquer garantia de realidade.
O que vale é que, segundo Gracián,
o discreto humano deve possuir genio e ingenio,
de cuja dialéctica se ilumina e realiza a vida.
Claro que, e nisso ele é categórico,
tais coisas não são para todos. Tenham paciência
(e consolem-se pensando que ele detestava
tanto os asnos como as distinções de classe,
que homem dos diabos o tratadista
da agudeza y arte de ingenio, estudo e guia
de escrever os cursos grandes que só os pequenos
são incapazes de entender por lhes faltar
a ponta da agudeza mais os seus pertences,
e a arte do engenho, mais sua cabeça)99.

99
«Homenagem a Baltazar Gracián», Visão Perpétua, pp. 213-214.

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O Gracián de Sena não é somente aquele «tremendo jesuíta», mas
identifica-se quase por inteiro com as suas próprias obras: «herói»,
«discreto» e «ingegnoso». Mas há mais. Jorge de Sena também aqui
não deixa escapar a ocasião para lançar ao seu País cáusticas sen-
tenças, engendrando uma curiosa e habilidosa comparação (não des-
tituída de intenções paródicas) entre a “trialética” do pensador do
século XVII e a moderna lógica das filosofias materialistas e, logo,
com todo o tipo de “Santíssima Trindade”, seja ela eclesiástica ou
política (estará pensando na tríade Marx-Lenine-Estaline?). As pres-
crições de Gracián, relativas ao «homem discreto» do seu tempo,
como a de conviver com os mortos através da leitura, ou de conviver
com os vivos através das viagens, ou de pensar, ficando sozinho em
companhia de si próprio, foram totalmente invertidas pelo poeta. De
facto, se o homem barroco tem ainda necessidade de distinguir os
três momentos do seu dia, da sua vida, isso deve-se ao facto de todo
o universo se estruturar no princípio da contiguidade, «em que todas
as coisas do Mundo podiam aproximar-se ao acaso das experiências,
das tradições ou das credulidades» (Foucault, 1998: 106). O mundo
de Grácian mais não é que um imenso livro por ler, por interpretar e
por legitimar através da lição dos antigos: a própria vida, a convivên-
cia com o outro é apenas uma viagem no fim da qual, contudo, entre
os interstícios das linhas e das experiências, o enigma mais difícil fica
por desvendar (maior do que o enigma das estrelas e dos planetas que
a ciência nova procura resolver, maior do que o enigma intrínseco a
toda a escrita e à sua leitura): o do coração humano. Escreve Gracián:
«Todo anda en cifra y los humanos corazones están tan sellados y
inescrutables [...] que el mejor lector se pierde» (Pelegrin, 1987: 62).
Pelo contrário, ao escritor moderno que vive da diferença é concedido
o privilégio da passagem, da superação (mais do que a abolição) dos
limites. Em suma, como nos versos de Jorge de Sena, só se pode dizer
vivo quem resolveu escrever como se «tivesse morrido há séculos» –
sepultado na tradição; só o escritor moderno pode conhecer o outro
sem ter de sair do sítio onde está ou, vice-versa, pode viver onde não
está: sem casa, sem lugar, a sua condição é o trânsito, o próprio en-
contro é uma viagem cheia de novas amizades «dentro das antigas»:
despedidas renovadas, tempos e espaços diferidos, a identidade dada
apenas através do possível reflexo da lente da alteridade.

141

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3.3 Perversio Ordinis. A Poesia de António Gedeão ou o Caos
da Harmonia

Todo o tempo é de poesia


Desde a arrumação do caos
À confusão da harmonia

A. Gedeão100

Exemplo de poética explícita, directa, retrospectiva: o poeta reco-


nhece a sua voz, reflecte sobre a sua própria actividade, sobre o «já
feito», porque, afinal, “fazer” e “reflectir” são ambos elementos cons-
titutivos da arte. Uma reflexão como a seguinte, de António Gedeão,
assume a forma de declaração e de testemunho de uma experiência
poética, que não raramente resiste à teoria, ao juízo, ao cânone:

Hoje já não oiço falar em escolas literárias, mas talvez que no futu-
ro se fale delas quando se olhar para trás. Houve-as entretanto nas
décadas anteriores, e a mim já me têm arrumado numa delas, na dos
neo-realistas. Sinto-me apertado nessa arrumação. Pessoalmente vejo-
me entre aqueles para quem as preocupações do mundo a tudo so-
brelevam e que falam de si e das flores nos intervalos que respiram
(Amaral, 1988: 174).

O claustrofóbico incómodo de pertencer a uma escola literária, a


reivindicação – que tem algo do límpido tom de Alberto Caeiro – de
liberdade para a sua própria lírica e o desejo de escapar às omniscien-
tes «arrumações» críticas101: se é costume que todos os poetas tenham

100
«Tempo de Poesia», Movimento Perpetuo, [PC, p. 28]
101
Leia-se o «Poema do Amor», Linhas de força, [PC, p. 132], supremo exemplo
de poesia da poesia, que «o poeta propositadamente escreveu/só para falar de amor,/
de amor,/de amor…Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico/contar as pala-

142

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estas idiossincrasias, o caso de Gedeão, professor de química, divul-
gador e historiador da ciência, de nome anagráfico Rómulo de Car-
valho, é, no mínimo, significativo. Depois de ter publicado em 1956
(mais um ano crucial para a poesia portuguesa), aos cinquenta anos,
o seu primeiro livro, Movimento Perpétuo, logo deu à estampa, em
1964, a sua Poesia Completa, que só virá, de facto, a «completar-se»
alguns anos mais tarde, em 1968, na edição onde se inclui também,
para além dos três anteriores conjuntos de poemas (Movimento Per-
pétuo, Teatro do Mundo, 1958, Máquina de Fogo, 1961), Linhas de
Força de 1967. António Gedeão, ao longo dos anos, tem representado
sempre, aos olhos dos críticos, todas as marcas de unicidade poética,
com a qual tinham pretendido ler o anacronismo biográfico através
do anacronismo literário. Com efeito, numa ideal história das gera-
ções, o poeta, nascido no início de século, poderia ter sido incluído
no grupo dos representantes da Presença ou do Neo-Realismo, cuja
influência poética, de resto, não lhe é estranha. Porém, a publicação
da sua opera omnia (se exceptuarmos os dois livrinhos de Poemas
Póstumos e Novos Poemas Póstumos, respectivamente de 1983 e de
1990), situável entre a segunda metade da década de 50 e a segunda
metade da década posterior, conduziu a crítica – ainda que admitisse
a particularidade do caso Gedeão – a integrar este autor dentro de
um horizonte comum àquele período. Se, como já se disse, foi Jorge
Sena quem (naquele que é, até agora, o melhor e mais pormenorizado
estudo sobre esta poesia), nos deu uma nova leitura de Gedeão, ao
referir-se explicitamente a um «ornamentalismo» barroco102, foi João
Gaspar Simões (depois da publicação dos primeiros dois volumes)
quem entreviu, nesta nova expressão lírica, alguns traços de maneira
barroca que, desde os primeiros anos da década de 50, se ia revelan-
do na poesia portuguesa. Foi, de facto, em 1959 que este crítico não
hesitou em reunir sob esta mesma tendência poetas como Jorge de
Amorim, João Maia, Fernando Echevarría e o próprio Gedeão, defi-

vras que o poeta escreveu,/...conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu/
foi amor, amor, amor.//Este é o poema de amor». Gedeão, em sessenta e nove versos,
repete quarenta vezes a palavra “amor” (ao contar caímos no jogo do poeta), a fim de
parodiar um futurista crítico-Cérebro Electrónico que determine, através da contagem
numérica, a mais importante isotopia poética.
102
Nesta linha parece colocar-se também a leitura de Claro (1983) que fala de
preciosismo do século XVII para composições como «Saudades de Roseta», ou «Esta é
a cidade», onde ele sente ecoar a poesia de Rodrigues Lobo.

143

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nido, todavia como «o mais sóbrio e clássico, digamos, de todos eles»
(Simões, 1958: 389)103.
Mais recentemente, coube a Fernando J. B. Martinho, no rasto de
Sena, incluir António Gedeão, numa heterogénea tendência “barro-
quizante” dos finais dos anos 50, ao lado dos supracitados nomes e
de outros como Pedro Tamen, Helder Macedo, M.S. Lourenço, Antó-
nio Salvado, António Silva Pinto, Maria Alberta Menéres e da linha
que, mais ou menos genericamente, se pode chamar de experimental
(Liberto Cruz, E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherly, Salette Tava-
res). Se atentarmos nas duas interpretações, uma herdeira directa da
outra, é possível, desde logo, reparar que Fernando J. B. Martinho –
ao aceitar as propostas senianas – tenta aprofundar e re-actualizar os
seus termos. De facto, por um lado, o barroquismo de Gedeão é, para
Sena, o produto da aplicação da teoria das (já discutidas) «atitudes
estéticas», onde é ao nível da expressão que se coloca a dialéctica
clássico/barroco, dedutivo/indutivo e é por isso que a poesia de Ge-
deão, «expressionalmente, é uma poesia em que o dedutivismo das
estruturas “clássicas” se disfarça de ornamentalismo “barroco”, cuja
natureza é indutiva, em contradição com aquela geração dedutiva do
ornamento» (Sena, 1971: XXX); por outro, a Fernando Martinho in-
teressa sobretudo desvendar todos os procedimentos retóricos (métri-
cos, fonéticos e linguísticos) onde o artifício se atesta na lírica gedea-
na, não tanto pelo seu supérfluo carácter de ornamento, mas mais por
ser «significante essencial» (Martinho, 1996: 429-431). O facto de
ter inventariado, na poesia gedeana, muitas figuras estilísticas, muitos
daqueles artifícios poéticos, reconduzíveis à órbita do barroco, que
aproveitaremos para a análise dos poemas, não esgota, contudo, o
discurso: por exemplo, fala-se no “ornamentalismo barroco” desta
poesia também para descrever o traço típico do idiolecto de António
Gedeão104. O léxico poético, por ter ido buscar muita terminologia à
linguagem das ciências, tinha já levado Jorge de Sena a apontar como
outra característica do barroquismo «o uso de formas vocabulares e
conceptuais provenientes de domínios linguísticos alheios. Ou tidos

103
O mesmo juízo, mais tarde retomado, é pelo menos em parte reformulado in
Simões, 1976: 404.
104
Diga-se, de passagem, que a crítica já tinha reparado no facto de os títulos dos
livros mostrarem uma predilecção pelo imaginário barroco, ecoando o metaforismo
daquele universo em Movimento Perpétuo e em Teatro do Mundo.

144

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por alheios à expressão literária. Esse uso […] assume para as menta-
lidades que não têm daqueles outros domínios uma experiência direc-
ta, características de linguagem metafórica» (Sena, 1971: XXXIII).
A linguagem científica de Gedeão, na nossa opinião, não remete
apenas para uma mera escolha estilístico-formal, mas sim para uma
determinada vontade de reafirmar o poder subversivo de todo o seu
discurso. Por outras palavras, tanto as rimas “protoplasma”/ “fan-
tasma” ou “ódio”/ “colódio”, tal como os títulos «Vidro Côncavo»,
«Teatro óptico», «Vitríolo», «Teatro anatómico» ou «Suspensão
coloidal», mas também os demais termos pedidos de empréstimo à
física, química ou biologia que enchem estes versos: tudo isso não
aspira a declarar a beleza estética por si só (como num certo sentido,
a insistência fascinada pela linguagem técnica nos futuristas); Gedeão
carrega a linguagem das ciências de um sentido que vai para além do
puramente artístico, a sua poesia é “científica” na medida em que
todo o discurso científico é subversivo, tal como acontece na conclu-
são da experimentação em laboratório em «Lágrima de preta», cuja
análise ao microscópio (numa sarcástica crítica a toda a moderna re-
“t(e)órica” do racismo de tipo biologista) não revelará «nem sinais de
negro,/ nem vestígios de ódio./Água (quase tudo)/e cloreto de sódio».
Na perspectiva que fomos traçando acerca do papel “revolucionário”
da ciência, surge-nos iluminante o retrato laudatório que António Ge-
deão consagra ao arquétipo do cientista moderno, Galileu Galilei:

Estou olhando para o teu retrato, meu velho pisano,


aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, A Piazza della Signoria...
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
[...]
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.

145

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Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,


daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas – parece-me que estou a vê-las –,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e

146

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calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus os teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estòicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos105.

O Galileu de Gedeão ergue-se do fundo deste poema-diálogo (sem


destinatário, onde o interlocutor só está presente no retrato pintado
e, por isso, silencioso) como um verdadeiro herói estóico com traços
socráticos, um herói da história da inteligência, mas, sobretudo, como
alguém que resiste, como alguém que subverte a ordem (cosmológica
e portanto teológica), como quem, por isso mesmo, há-de resistir,
quase como que em nome de um porvir, cujo horizonte longínquo
daria “razão” às suas teorias. Se o objectivo teórico de Galileu era
«homogeneizar la materia, arquimedizar el espacio» (Sarduy, 1999:

105
«Poema para Galileo», Linhas de Força, [PC, pp. 123-125].

147

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1216) a visão de Severo Sarduy colocava o cientista pisano ainda
num espaço «pré-barroco» de fidelidade ao círculo, enquanto repre-
sentação cosmológica e “recaída” retórica é também verdade que é
a ele que se deve uma primeira e grande ruptura: a transposição das
suas investigações e das suas observações para a representação fac-
tual, a ultrapassagem da iconografia do lado do empirismo (Sarduy,
1999: 1215-1216). Sarduy cita o exemplo da Lua para explicar o
que entende por gesto revolucionário da ciência: «el poder subversivo
del discurso científico, en tanto que energía de corte, mina, bajo el
significante literalizado – la Luna observable – el significado que la
iconografía le imponía: la Luna deja de ser un círculo inmaculado
que epifaniza la pureza celeste para convertirse en una esfera carco-
mida que representa la corruptibilidad de la materia» (Sarduy, 1999:
1216). O discurso científico assume um carácter agitador também
neste Galileu poético, pelo seu potencial altamente desestabilizante
diante da Razão Teológica e a Harmonia Universal que «os sábios»
encarnam e defendem. Não é por acaso que à lógica da censura da Re-
ligião, eclesiástica (“O Santo Ofício”) – que é impossível não associar
a uma outra, a uma censura política perpetrada pelo Estado, como a
de então, levada a cabo pelo regime salazarista –, Gedeão opõe o seu
cientista e, paralelamente, a consciência grata do sujeito moderno por
toda aquela «inteligência das coisas que me deste». Toda a ordem
prescrita, todo o poder de exclusão, repressivo, despótico, sentindo-
se ameaçado pelas ideias até de um único homem, como «se estivesse
tornando num perigo/para a Humanidade/ e para a «Civilização»,
puderam dispor do seu aparato policial (da verdade, da justiça, do
conhecimento), puderam até pretender retratações, requerer versões
pré-estabelecidas do universo, puderam obrigar a abjurar «aquelas
abomináveis heresias», irrepetíveis mesmo na intimidade do pensa-
mento. Galileu Galilei experimentou tudo isso no seu próprio corpo,
mas, diversamente do mártir cristão que sofre à espera da recompen-
sa divina, António Gedeão retrata-o como um resistente, com uma
resistência calma, quase pagã, que mede o seu projecto teórico atra-
vés do relógio da História. Nos últimos nove versos, que funcionam
quase como contrappasso, Gedeão opera uma verdadeira nemese, no
momento em que os juízes da Santa Inquisição são arrastados pelo
abismo do esquecimento histórico, por uma queda regulada metafo-
ricamente por uma lei física, «e sempre,/ininterruptamente/ na razão
directa dos quadrados dos tempos».

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Assim, continuando a seguir o modelo hermenêutico sarduyano
da retombée, que pretendeu correlacionar tanto a cosmologia barro-
ca da elipse (Kepler), quanto as modernas teorias do Big Bang e do
Steady State, com as respectivas manifestações artísticas do barroco e
neobarroco em função de uma causalidade acrónica, podemos tentar
reler muita da poesia de Gedeão à luz desta aproximação. De facto, a
especificidade do barroco moderno ou do neobarroco, segundo o crí-
tico cubano, decorre de uma arte que «reflecte a discordância» típica
de um universo que, se já com Kepler perdera o seu centro, está hoje
em contínua expansão: cosmologicamente, privado de um centro, o
universo em expansão encaminha-se para um destino de fim, quanto
mais galáxias se forem afastando do momento inicial, mais crescerá
o vazio espacial, deixando apenas um rasto, um resto da explosão
primordial. O neobarroco torna-se, assim, testemunho desta “recaí-
da”, deste desequilíbrio, «reflejo estructural de un deseo que no puede
alcanzar su objeto, deseo para el cual el logos no ha organizado más
que una pantalla que esconde la carencia» (Sarduy, 1999: 1252). Ge-
deão, no primeiro poema de Movimento Perpétuo, demonstra toda a
impossibilidade ou inutilidade de aceder a uma definição constituída,
harmoniosa, logocêntrica do homem:

Inútil definir este animal aflito.


Nem palavras,
Nem cinzéis,
Nem acordes,
Nem pincéis
São gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito106.

A quebra da homogeneidade, a ausência de um logos absoluto,


a carência do fundamento enquanto épistème são características do
neobarroco artístico sarduyano, de um sujeito sem nenhuma certeza
(«Faz-me pena a tua certeza como se tivesse sofrido um acidente,/
Como se te visse estendido num leito, impossibilitado de te mexeres./
Em tua certeza, cadeira de rodas, fazes-te conduzir piedosamente/e os

106
«Homem», Movimento Perpétuo, [PC, p. 10].

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caminhos passam por ti sem tu passares por eles, e sem os veres.//Em-
brulhado na tua certeza, de rosto voltado para a parede,/adormeces
sorrindo enquanto a vida, aos borbotões, exulta./Foguete de lágrimas,
meandros sem rectas, catapulta,/veio de água que afoga e nunca mata
a sede»107), num universo que, como nestes versos de Gedeão, «é feito
essencialmente de coisa nenhuma./Intervalos, distâncias, buracos, po-
rosidade etérea./Espaço vazio, em suma./O resto, é matéria.//Daí que
este arrepio,/ este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e desfrontá-lo,/esta fresta
de nada aberta no vazio, deve ser um intervalo»108.
Se a cosmologia moderna (a que chamaremos pós-barroca) subjaz
às leis da relatividade de forma a que «el mundo no es aprehensible
más que desde mi punto de vista e inconcebible desde un punto de
vista totalizante que sería el de nadie» (Sarduy, 1999: 1244), o seu
correspondente literário não faz mais do que multiplicar os “pontos
de vista”, onde a relatividade de cada experiência e de todo o saber
chega a dizer já não o “inteiro”, o objecto integral, mas apenas o
fragmento, os restos da plenitude. A parcialidade do olhar do poeta
remete para aquele «reflejo necesariamente pulverizado de un saber
que se sabe que ya no está apaciblemente cerrado sobre sí mismo»
(Sarduy, 1999: 1252), tal como Sarduy conota o neobarroco:

Os meus olhos são uns olhos.


E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros, com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.


De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas


Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,

107
«Cabeçudos e gigantones», Movimento Perpétuo, [PC, p. 22].
108
«Máquina do mundo», Máquina de Fogo, [PC, p. 88].

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Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,


Querer ser depois ou antes.
Cada um é seu caminho.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.


Vê gigantes? São gigantes109.

Retrato neobarroco da relatividade de todas as coisas, onde a bar-


roca variedade do mundo se eleva ao expoente máximo, graças às
infinitas possibilidades de sentido que o homem moderno consegue
atribuir aos seres e às coisas: «de tudo o mesmo se diz» simboliza
o passo ulterior da perspectiva descentrada do barroco Cervantes,
que deixava ver ao cavaleiro gigantes, enquanto que Sancho só via
moinhos. Se os olhos de D. Quixote dão existência visível a tudo o
que a visão profana (do pobre Sancho) crê invisível – num universo
onde, todavia, é ainda distinguível a fronteira entre real e imaginário
–, no poema de António Gedeão, ao poeta moderno não é dado a
escolher entre o que se vê e o que é, quase como se “ver” corres-
pondesse a “ser”110 («uns vêem pedras pisadas,/Mas outros, gnomos
e fadas»). Esta subsequente passagem que indica o sentido da visão
como «o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do
Ser» (Merleau-Ponty, 1992: 68) confirma o olho como sendo o mais
potente órgão não só de registo, mas também de criação da infinita
variedade das coisas. Escreve Merleau-Ponty:

É necessário tomar à letra o que nos ensina a visão: que através dela
atingimos o Sol, as estrelas, estamos ao mesmo tempo em todo o lado,
tão próximos das distantes como das coisas próximas, e que mesmo
o nosso poder de nos imaginarmos noutro lugar […] de visar livre-

109
«Impressão digital», Movimento Perpétuo, [PC, p. 13].
110
«A visão não é um certo modo de pensamento, ou da presença de si: é o meio
que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro à fissão do Ser, no
fim da qual, somente, me fecho sobre mim» (Merleau-Ponty, 1992: 64).

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mente, estejam eles onde estiverem, seres reais, é de novo tomado por
empréstimo à visão, reemprega os meios que ela nos oferece (Merleau-
Ponty, 1992: 66).

O eu lírico perdeu todo o privilégio da distância e da superiorida-


de: o meu olhar «dos meus olhos» vale tanto quanto o olhar «de ou-
tros olhos». A relatividade da visão é fruto do próprio gesto de ver, já
que quem vê é um «si que se compreende no meio das coisas, que tem
um verso e um reverso, um passado e um futuro» (Merleau-Ponty,
1992: 21), múltiplas se tornam as possibilidades de dizer sobre tudo,
o mesmo. O sentimento do contrário («Onde uns vêem luto e dores/
Uns outros descobrem cores/Do mais formoso matiz»), que participa-
va em certas poéticas modernas, como a pessoana ou a pirandelliana
(do «così è, se vi pare»), pode ser levado às consequências extremas
nos versos de Gedeão: «Vê moinhos? São moinhos./ Vê gigantes? São
gigantes».
É mesmo neste sentido que a poética de Gedeão se situa no inte-
rior de uma procura, uma ânsia, dir-se-ia, que de gnoseológica se vai
transformando em ontológica: uma procura daquilo que, citando o
título de um poema, é a «Pedra Filosofal», capaz de conciliar o incon-
ciliável, capaz de reunir o caos, de compreender o incompreensível, de
experimentar dizer poeticamente o indizível, desde o menos infinito
ao mais infinito. É por isso que esta mesma ânsia totalizante de cir-
cunscrever «todo o tempo de poesia./ Desde a névoa da manhã/ à né-
voa do outro dia.//Desde a quentura do ventre/ à frigidez da agonia//
[...] desde a arrumação do caos/à confusão da harmonia»111 tem de,
forçosamente, fazer parte de uma poética do oxímoro ou, como bem
notou Fernando Martinho, da coincidentia oppositorum, eminente
figura barroca, segundo Dámaso Alonso (Martinho, 1996: 429). Por
outras palavras, toda a poesia gedeana oscila entre a «defesa dos con-
trários», «nessa dúvida de tudo/tão certa como a certeza», em que a
facilidade do verso (a primazia do famoso septenário, assinalado por
Jorge de Sena) destoa da montagem oximórica de dizer, num tom
ritmicamente cerrado, a barroquização do universo:

Momento, tempo esgotado,


fluidez sem transparência.

111
«Tempo de poesia», Movimento Perpétuo, [PC, pp. 31-32].

152

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Presença, espectro da ausência,
Cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria


Corpo que a arder arrefece.
Incandescência sombria.
Tudo é foi. Nada acontece112.

A esta composição, de que resulta todo um oxímoro, poderíamos


fazer seguir mais exemplos de conseguida condensação de opostos
(«Flor de silêncio estridente/ continente de infinito», «Todo claro é
escuro em mim», mas também em títulos como «Poema do alegre
desespero»), de aproximações que chegam a ser antitéticas:

(Aliás
o engano, a ilusão,
a mentira, a falsidade,
o perjúrio, a invenção,
tudo, em Amor, é verdade.)113

Em toda a poesia de António Gedeão é, então, possível reconhecer


um sinal daquela contrastada atitude, característica de uma Moder-
nidade crítica – e não só poética, mas literária em geral –, perante o
valor do homem e da História, que se debate entre a esperança (con-
victa) do progresso político, económico, social114 e o desengano mais
profundo diante da humanidade (sobretudo depois de Auschwitz, de-
pois de Hiroshima115, em tempo de salazarismo), atitude auto-crítica

112
«Tudo é foi», Movimento Perpétuo, [PC, p. 31].
113
«Memória sobre os teus olhos», Linhas de força, [PC, p. 136].
114
Ver, por exemplo, sobre a confiança na humanidade, no progresso das suas
conquistas, um poema como «Poema do homem-rã»: «Eu sou homem. O Homem/ Desço
ao mar e subo ao céu./ Não há temores que me domem./ É tudo meu, tudo meu.», Teatro
do Mundo, [PC, p. 69] mas também «Arma secreta», Máquina de Fogo, [PC, p. 96].
115
Cfr. os poemas «Natureza morta», «Flor de Baunilha», mas sobretudo «Hora
H», onde a referência, embora não explícita, é relativa à tragédia nuclear: «A prima-
vera cheira a laranjas.// (Há umas granadas de mão, redondas e pequenas, a que cha-
mam laranjas.)/ O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios./ (Dizem que
as noites de luar são as melhores para bombardeamentos aéreos).», Linhas de Força,
[PC, p. 146].

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que questiona a própria função da escrita, da poesia, segundo a altís-
sima e ao mesmo tempo trágica lição destes versos:

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio


e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as trevas das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que não se diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA116.

116
«Enquanto», Linhas de Força, [PC, p. 115].

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Quarto Capítulo: Teoria da Palavra

No se contenta el Ingenio con la sola verdad,


como el juizio, sino que aspira a la hermosura.

Baltasar Gracián117

117
Baltasar Gracián, Arte de ingenio, Tratado de la agudeza, Edición Emilio Blan-
co, Madrid, Ediciones Cátedra, 1998, p. 140.

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Quem quer que tenha falado de tendência barroca na poesia por-
tuguesa da segunda metade do século XX fez coincidir as suas primei-
ras manifestações com a década de 50. De facto, depois de Gaspar
Simões, a crítica começou por entrever a possibilidade, dentro de um
heterogéneo panorama de poéticas – organizadas se não em verdadei-
ros grupos, pelo menos em volta da publicação de certas revistas –,
de delinear alguns filões que, por sensibilidade formal e estilística e
até por temática, quase exclusivamente religiosa ou metafísica, seriam
passíveis de ser reenviadas para a expressão barroca. Óscar Lopes ti-
nha já reconhecido uma «cepa metafísica» no fundo da qual pairavam
as filosofias da existência, a apologia da imaginação, uma depuração
da linguagem baseada na lição de Mallarmé que incluía, por um lado,
a produção poética de Vítor Matos e Sá, Fernando Guimarães, Antó-
nio José Maldonado e, por outro, «dois novos ramos interessantes e
de inserção gémea», ambos produzidos por aquilo que o crítico define
como «ortodoxia católica»: Jorge de Amorim e Fernando Echevarría.
Se estes dois poetas «preferem o poemeto breve sincopado pelo ritmo
“staccato” da pontuação, uma poesia que só nomeia ou indigita um
Tu transcendente à razão e as suas coisas-símbolos» (Lopes, 1958:
380) é sobretudo na poesia de Echevarría que é possível falar de «de-
sequilíbrios maneiristas», motivados por uma ânsia de dizer o divino
e pela desproporção à qual se tem de render o próprio ofício de poeta
perante o objecto da sua expressão.
Estes dois nomes que, como vimos, tinham já sido associados,
quase desde o início (em 1958, depois da publicação dos seus primei-
ros dois livros), por Gaspar Simões ao “barroquismo”, juntamente
com os nomes do jesuíta João Maia e de António Gedeão, vieram a
constituir (mais tarde com o acréscimo de António Salvado) aquela
linha a que poderíamos chamar de «neobarroquista-cristã», activa
mesmo quando «os poetas que cultivam essa espécie de decorati-
vismo lírico se afundam numa problemática de ordem religiosa tão

157

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transcendente como aquela que se manifesta em Ruy Belo» (Simões,
1964b: 385).
Nesses mesmos anos, mas de um ponto de vista diametralmen-
te oposto, houve mesmo quem evidenciasse, como Melo e Castro (e
muito graças ao input conceptual da redescoberta barroca, tanto a ní-
vel histórico como puramente estético e à evocação – actualíssima, en-
tão – das considerações tecidas por Eco acerca da arte barroca como
precedente “inconsciente” da opera aperta), que

A mais recente poesia feminina portuguesa, tem precisamente carac-


terísticas de um barroco conceptista evoluído, aberto e plenamente
imaginativo e livre (Melo e Castro, 1981: 60)118.

Dentro desta recente poesia feminina portuguesa (que o próprio


Melo e Castro, não hesitava em definir “pós-surrealista”), traçaram-
se os perfis de quatro poetisas (Leonor de Almeida, Salette Tavares,
Maria Teresa Horta e Maria Alberta Menéres) e pelo menos duas des-
tas, a segunda e a terceira, na opinião do mesmo crítico, pertenceriam
a um restrito círculo de poetas (Pedro Tamen, João Rui de Sousa,
Jorge de Amorim, mas também Ramos Rosa), todos eles «diferentes»
dos seus contemporâneos. Estes poetas, embora tivessem publicado
isoladamente (isto é, não formando um grupo, nem tendo os mesmos
órgãos de difusão editorial), tinham algo em comum:

um tratamento específico da linguagem; uma maneira sui generis de


produzir metáforas; uma articulação não imediatamente descritiva;
uma enunciação que denotava distanciamento do sujeito lírico; um
dar ao texto autonomia que ele, como texto, exigia; uma opacidade
imagística que criava uma atmosfera encantatória na leitura, mas que
pouco tinha a ver com o automatismo onírico dos surrealistas: uma
sensibilidade mais visual que conceptual; uma relação mais sensual
que ideológica com a escrita; um gosto pela invenção e pelo além do
comum e também um novo rigor, talvez contraditório, sempre presen-
te na concepção da estrutura do poema (Melo e Castro, 1990: p. 75).

118
Como é óbvio, de Eco não era citado o livro que viria a ser publicado só no ano
seguinte, mas o artigo «L’œuvre ouverte et la poétique de l’indétermination», saído no
número de Julho-Agosto de 1960 da Nouvelle Revue Française, corresponde grosso
modo ao primeiro capítulo da Opera Aperta, representando o seu impulso originário.

158

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Na segunda metade da década de 50 ou, se quisermos seguir o
rigor (estruturalista?) dos esquemas periodológicos de Melo e Cas-
tro (Melo e Castro, 1984), em 1955, o crítico coloca esta produção
poética sob a denominação de «Barroco Intuitivo», enquanto verda-
deiro preparador/antecipador do «Barroco Construtivo» da Po.Ex.
dos anos 60 e daquele «MetaBarroco ou Barroco Crítico/Teórico»
das derivas epígonais da vanguarda. Esta visão que, apesar de tudo,
não partilhamos, pelo seu elevado grau de comprometimento com o
propósito de centrar exclusivamente na Vanguarda Experimental as
práticas estéticas e teóricas do Barroco, testemunha bem a tentativa
e o esforço de recolher diacronicamente as disseminações barrocas
da poesia desta última metade do século. Se, de facto, a intenção de
Melo e Castro era recuperar, à rebours, os primeiros «sinais» de bar-
roquização poética em Portugal, para melhor historicizar toda a expe-
riência vanguardista, em termos de ruptura (Poesia 61 e Po.Ex.), tal
reconhecimento ocorre apenas por contraste relativamente às outras
“escolas” de poesia de então: «Tudo se passava entre Presencistas,
Neo-Realistas, Surrealistas e Cadernos de Poesia. Falava-se então em
hermetismo a propósito de tal poesia, certamente à falta de melhor
conceito...» (Melo e Castro, 1990: 75). Na realidade, ainda que o
seu discurso expanda o comum denominador barroco a uma série
de poetas cuja aparição se deu entre 1956/57, como Natália Correia,
Herberto Helder, Ruy Belo, João Rui de Sousa, M.S. Lourenço, jun-
tamente com os nomes do costume (Ana Hatherly, Jorge de Amorim,
Salette Tavares), atribuindo não só à Poesia 61 o carácter exclusivo
daquela «inquietação linguística» comum a toda a poesia geralmente
situada por alturas de metade do século, o resgate crítico e estético do
barroco dá-se, segundo ele, quase unicamente através da reconversão
estruturalista (sustentada nos estudos desenvolvidos por Abraham
Moles, Umberto Eco, Max Bense e William Empson) que a poética
experimental foi “desdobrando”. Mesmo pelo facto da renovação da
poesia portuguesa, enquanto texto, enquanto objecto textual, ter de
passar também por um novo tipo de barroco:

Mas um barroco caracterizado pela liberdade de imagens e da sua


associação, pela polivalência semântica, pelo sincopado do discurso,
pelo recurso a elementos imagísticos heterogéneos (ciências, magia,
mitologia clássica e inventada, linguística, antropologia, política, so-
ciologia, História Contemporânea, erotismo, filosofia pré-socrática,

159

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etc.) pela utilização de todos os tipos de medida, pela revalorização
da metáfora e da metonímia, pelas aliterações dominantes por vezes, e
por toda uma pujança inventiva verdadeiramente luxuriante (Menéres
e Melo e Castro, 1971: XLIX).

a tentativa, por parte de Melo e Castro, de o conotar modernamente,


induz o crítico a subtrair in toto o barroco à tradição, aos seus defei-
tos e aos seus abusos de leitura, levando-o ainda a redefinir as suas
características, a partir da poesia contemporânea, em termos estrutu-
rais, de recepção, de ambiguidade semântica e consequente grau de
entropia informática.

Barroco este que está longe do conceptismo, pois agora não se trata de
elementos decorativos actuando recìprocamente no espaço fechado do
poema, mas sim muito pelo contrário, os seus valores analógicos têm
uma função estrutural edificando-o como um texto em aberto, que age
num clima fenomenológico e polivalente sobre o leitor, envolvendo-o
portanto no processo da leitura e fazendo dele também o criador da
sua própria leitura do texto. Trata pois de um ressurgimento barroco
que nada tem a ver com as implicações históricas e religiosas do barro-
co do século XVII, mas que dele se pode aproximar crìticamente pela
valorização do elemento lúdico da Poesia, agora e desta vez sob a for-
ma da liberdade imagística, da busca fonética, da pesquisa linguística,
da investigação da estrutura do poético, da reformulação da sintaxe e
do alargamento do âmbito semântico, ou do aumento da temperatura
informacional dos textos (Menéres e Melo e Castro, 1971: XLIX ).

Outros críticos119, numa ideal linha teórica (no rasto de Gaspar


Simões, Jorge de Sena, E. M. de Melo e Castro), mais ou menos direc-
tamente, mais ou menos especificamente, acabaram mesmo por uti-

119
Lembrem-se as referências a uma corrente neobarroca feita por Carlo Vittorio
Cattaneo (1975) ou mais recentemente por Fernando Pinto do Amaral: «De qualquer
modo, é ainda nos anos 50 que uma atitude mais esteticizante vai ganhando terreno.
Mantendo-se fiéis aos sentimentos, poetas como Pedro Tamen, Fernando Guimarães,
Victor Matos e Sá, Fernando Echevarría e outros acolhem uma imaginação neobarroca
da linguagem poética, a par de uma lição de despojamento e de atenção à palavra que
vinha já de autores como Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner Andresen. Tais
obras reflectirão – de forma quase sempre discreta – esse esforço de depuração verbal de
efeitos pouco espectaculares e nem sempre acessíveis ao comum leitor» (Amaral, 1991).

160

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lizar os termos “barroquismo”, “barroquizante”, “barroco” e “neo-
barroco” para identificar a tendência que, a partir de metade dos anos
50, principiaria a manifestar-se e que iria percorrer transversalmente
a produção poética de muitos autores de então, chegando a ligá-la
com as últimas Vanguardas, sem todavia proceder às delimitações dos
contornos históricos e à determinação das diferenças.
Um exemplo significativo é o de Ángel Crespo que, seguindo as
leituras de Melo e Castro, detectou logo na primeira produção eche-
varriana um particular «barroquismo de ascendencia española»120:
carácter barroco esse que viria a aparecer mais evidentemente nas
obras de poetas experimentais e que lhes teria chegado não só através
da mediação de Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão e Luiza Neto
Jorge, mas também da geração dos finais dos anos 50, como Herber-
to Helder, Pedro Tamen, Ana Hatherly, Ruy Belo e o próprio Melo
e Castro e (acrescenta Crespo) a segunda fase da obra de Fernando
Assis Pacheco.

Este neobarroco, antes que por su conceptismo, enlaza con el barroco


clásico debido a su carácter refinadamente lúdico y a la revalorización
de la metáfora y la metonimia, y se caracteriza por la polivalencia del
mundo alumbrado por el poema y, en consecuencia, por su forma
abierta, que es una invitación a la reelaboración de los materiales por
parte del lector, siempre dentro de los límites que, estimulando su in-
tuición, le impone la propria obra de arte (Crespo, 1982: 28).

Na nossa opinião, se é possível falar de uma tendência barroca na


poesia portuguesa, sobretudo na já muitas vezes sublinhada encruzi-
lhada de praxis e teoria (Jorge de Sena), a sua origem (coincidente, de
acordo com a maioria da crítica, grosso modo, com a passagem da
primeira à segunda metade da década) não pode senão delinear-se por
dentro das propostas poéticas vigentes, não pode senão alimentar-
se das conquistas (ou talvez apenas dos restos) do Surrealismo, tal
como do Modernismo de matriz simbolista – há quem fale de um
120
«Es algo – ya lo veremos – esto del neobarroquismo, a lo que no seran ajenos
los más representativos poetas experimentales: pero se trata de un neobarroquismo
que, lejos de despojar a las formas de contenido, las carga de una pasión existencial
que apunta hacia una ambigua transcendencia. El de Echevarría se muestra, por otra
parte, consciente de la elisión mallarmeana y, em general, de las mas depuradas técnicas
simbolistas y postsimbolistas» (Crespo, 1982: 20).

161

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filão que ligaria Camilo Pessanha a Echevarría passando por Eugénio
de Andrade (Cruz, 1999: 100-102) – e mallarmeana, quer através
de uma directriz nacional, quer pelo contacto e recuperação de ou-
tras tradições, como a geração de 27 espanhola. Para nos limitarmos,
por exemplo, à eficácia do substrato surrealista, activo em muita da
poesia posterior ao seu fim “institucional” (1953), seria errado não
testemunhar o contributo do seu dispositivo poemático para uma bar-
roquização do verso visível na função de libertação lúdico-paródica
e verbo-visual e na função de parcelamento do discurso em fragmen-
tos. Não é por acaso, então, a referência, na primeira acepção, ao
barroco de Alexandre O’Neill (Rocha, 1990: 26-28; Melo e Castro,
1984: 73-74)121 e, na segunda, ao de António José Forte e ao do «gru-
po Gelo», como Helder Macedo e Herberto Hélder; foi mesmo este
último que, retomando a proposta benjaminiana de escritor barro-
co como coleccionador de ruínas, traçou um excelente perfil do seu
companheiro122. De facto, os versos e as linhas das prosas poéticas
de «Poema», «Ainda não», «Reservado ao veneno» («Hoje é um dia
reservado ao veneno/ e às pequeninas coisas/teias de aranha filigrana
de cólera/ restos de pulmão onde corre o marfim/ é um dia perfeita-
mente para cães…/ Hoje não é uma dia para fazer barba/ não é um

121
De Alexandre O’Neill pode lembrar-se, de passagem, um divertido «Elogio Bar-
roco da bicicleta» (no livro A saca de orelhas, 1979): «Redescubro, contigo, o pedalar
eufórico/ pelo caminho que a seu tempo se desdobra,/ reolhando os beirais – eu que era
um teórico/ do ar livre – e revendo o passarame à obra.// Avivento, contigo o coração, já
lânguido/ das quatro soníferas redondas almofadas/ sobre as quais me entangui e boce-
jei, num trânsito/ de corpos em corrida, mas de almas paradas.// Ó ágil e frágil bicicleta
andarilha,/ ó tubular engonço, ó vaca e andorinha, ó menina travessa da escola fugida,/
ó possuída brincadeira, ó querida filha,// dá-me as asas – trimm! trimm! – pra que eu
possa traçar/ no quotidiano asfalto um oito exemplar», in Obra Poética, cit., p. 370.
122
«Note-se que pelos processos e concreções – quer dizer: pelo método de criação
de formas – a poesia de António José Forte é barroca, fragmentária. E objectiva. Cito
Walter Benjamin: “O homem barroco acumula fragmentos”. Porque é precária a sua
noção do tempo. A noção do espaço, essa, é nele dolorosamente aguda. A continuidade
do eu faz-se por inquilinato espacial, por socorro objectivo. Como muita poesia sur-
realista, ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos soldados por pontos
magnéticos de analogia imaginística ou verbal, ou por enlaces rítmicos. É uma colagem
– orgânica – de fragmentos. O continuum, sempre perfeito, denota a ágil intuição dos
recursos de escrita e uma oficina atenta. Poesia com certeza barroca. Quando compare-
ce, o tempo é condição, ou só tradução, tradução obliterada, do espaço. E por regra das
figurações espaciais, directas ou desviadas, desenvolve-se visualmente. Os materiais, e a
norma do seu uso dispõem de textura e espessura objectiva», (Helder, 2003: 13-14)

162

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dia para homens/ não é para palavras»), mas mesmo de «Dente por
dente», não só fazem com que António José Forte seja considera-
do um dos melhores intérpretes daquilo a que se costuma chamar
surrealismo-abjeccionismo (daí a certa marginalidade da sua poesia
dentro do cânone novecentista), mas chamam ainda a atenção para
a condição existencial-social-política do próprio poeta que, como o
homem barroco, «colmatador de vazios» por excelência, «se mobiliza
no pensamento da morte» (Helder, 1983: 6): a este, que tem apenas
«a noite» como «sua única certeza», que «defende-se à dentada/ da
vida proletária, aristocrática, burguesa», que participa da «grande
festa […] na gare esperando o comboio para a morte horrível», não
resta mais do que acumular vestígios de tudo quanto a destruição que
«docemente prossegue» vai deixando.

Restam apenas aqui e além algumas cidades com os seus milhões de


almas e nada mais. Pequenas marcas de sangue cada vez mais vivas
assinalam a nossa passagem entre as agulhas de carvão do tempo123.

Poeta de expiação social, como pretende Herberto Helder, Antó-


nio José Forte experimentou até ao extremo, antes das coisas últimas,
o drama da irrespirabilidade social e política («ainda não se respira
como devia ser») na sociedade portuguesa sob o jugo da ditadura
(«ainda não é a pátria que é uma maçada»), ecoando no seu drama
pessoal, de homem e de poeta, um outro inteiramente colectivo:

MAS NÃO IMPORTA, PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU SO-


ZINHO no meu desespero e na minha revolta. Sei pela luz que passa
de homem em homem quando alguém faz o gesto de matar, pela que
se extingue em cada homem à vista dos massacres, sei pelas palavras
que uivam, pelas que sangram, pelas que arrancam os lábios, sei pelos
jogos selvagens da infância, por um estandarte negro sobre o coração
[...]
Por isso, que não me confundam nem agora nem nunca, declaro a
minha revolta, o meu desespero, a minha liberdade, declaro tudo isto
de faca nos dentes e de chicote em punho e que ninguém se aproxime
para aquém dos mil passos124

123
«Quase 3 discursos quase veementes», [FD, p. 22].
124
[FD, p. 49].

163

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A referência, portanto, a uma corrente barroca ou neobarroca (que
o cânone, moderno Leviathan das letras, todavia, ainda resiste a reco-
nhecer) na poesia portuguesa entre a primeira e a segunda metade da
década de 50, faz sentido só no momento em que esta esteja integrada
no debate não só estético, mas também, num sentido mais amplo, fi-
losófico, ideológico e cultural, sobre o papel da literatura e da poesia.
Como foi anteriormente repetido, numa sociedade oprimida, como a
do Portugal salazarista-caetanista, entre os anos 50 e 70, até ao mo-
mento do dia 25 de Abril de 1974, aquele “grande dia da minha vida”,
nas palavras de Fernando Assis Pacheco125, toda a poesia é “poesia pos-
sível do impossível”; na contingência histórica de um País privado de
toda a liberdade, realmente «Um canto é impossível sobre o que não
temos»126; escrever versos, em qualquer lado, de qualquer maneira (daí
a importância de um suporte “fluido” como as revistas) é a única pos-
sibilidade (apesar da censura) para dizer o «impossível».

Ah ninguém sabe
como ainda és possível poesia
neste país onde nunca ninguém viu
aquele grande dia diferente127

Como se tentou demonstrar nos capítulos anteriores, a literatura


dos anos 50 e 60 “barroquiza-se” e não só em Portugal; todavia, a
procura das suas causas, das suas razões, das suas influências, não pode
não ter em conta a especificidade “nacional” onde ela se realiza. Por
isso, antes de se proceder ao rastreio individual dos traços barrocos
nas poéticas dos autores, será necessário (ainda que sumariamente)
descrever o cenário de fundo das problemáticas com que se debatia a
poesia da altura. Se, de facto, aceitarmos seguir o discurso crítico de
Gastão Cruz, separando quem, entre a Árvore (1953) e a Poesia 61
(1961), inicia o processo – que culminará na década de 60 – de uma
«poética diferenciada», de aprofundamento da tarefa estilística, a ex-

125
«O grande dia da minha vida: 25 de Abril de 1974, a queda do regime para-
fascista. Chorei como um cordeirinho. E creio que me embebedei» (Fernando Assis
Pacheco, 1995).
126
Pedro Tamen, «Deixámos as paredes…», O Sangue, a Água e o Vinho, [RM,
p. 110].
127
Ruy Belo, «Desencanto dos dias», Aquele Grande Rio Eufrates, [TP, p. 66].

164

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pressão barroca detectável nas mais diversas experiências poéticas pode
representar uma das muitas vias de renovação que a lírica portuguesa
elabora em nome de uma pesquisa focalizada, quase obsessivamente,
nos problemas da palavra e da linguagem. Foi, pois, unanimemente
aceite (seja por quem fala em ruptura, seja por quem defende a conti-
nuidade geracional da década de 50 para a de 60), a tese de que, no fim
do Surrealismo de escola ou mesmo de grupo(s) organizado(s) (ainda
que a sua presença persista “endemicamente” em muita da poesia que
se lhe seguiu), depois do Neo-Realismo (mais ou menos reflorescente) e
depois da absorção (tardia) da melhor lição poética da primeira metade
do século (Pessoa), se desenvolveram propostas alternativas para a lin-
guagem da poesia. Propostas essas que, por exemplo, a partir daquela
que é considerada a síntese mais conseguida entre a prática surrealista
e a neo-realista, como a poesia do primeiro António Ramos Rosa, se
preocupavam com algo mais que a mera mensagem (política, ideoló-
gica, moral) no conteúdo, ou que a procura de uma suposta tradução
gráfica dos abismos da psique (certas formas de escrita automática);
a atenção desloca-se agora para a arquitectura do texto enquanto tal,
para uma renovada indagação de maior alcance sobre a palavra e so-
bre suas virtualidades fonéticas, prosódicas e métricas, para uma nova
teoria da construção do verso que decorria de uma depuração e con-
tracção da língua (tendência para a música, para o hermetismo, já de
resto defendido no editorial de Ramos Rosa na revista Árvore128), ou
ainda para uma intensificação retórica e de uma exploração, para além
do funcional, das próprias possibilidades da linguagem. Sobre esta re-
novação poética sub specie linguae muita da crítica se debruçou, des-
de Eduardo Lourenço (1987) a Arnaldo Saraiva (2001), a Fernando
Guimarães (1989) e a Maria de Fátima Marinho (1989), muitos deles
concordando com o papel fundador de Ramos Rosa.
Deste mais vasto contexto estético, definível como «teoria da pa-
lavra poética», diz Gastão Cruz:

128
«A primeira coisa por que devemos lutar é pela confiança nos destinos da poe-
sia, que nós confundimos com o próprio destino do homem. Um dos maiores perigos
que ela hoje enfrenta (perigo, aliás, necessário, pois sem perigo não há aventura poé-
tica) é o que podemos chamar a aventura da pureza poética, a tentativa de criar uma
linguagem onde a poesia cintile em cada palavra, em cada imagem, em cada verso. O
seu hermetismo, que se combate superficialmente, é muitas vezes o nome que se dá à
densidade, à riqueza, à liberdade, à imaginação ou à fantasia; numa palavra ao especi-
ficamente poético» (Ramos Rosa, 1953).

165

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Tratava-se de devolver ao poema a sua densidade de artefacto de pa-
lavras, a sua materialidade, a sua natureza de texto, de objecto cons-
truído com uma finalidade, em si, e não como simples veículo de men-
sagens ideológicas ou confessionais (Cruz, 1999: 221).

A tendência para um formalismo barroquizante abrange transver-


salmente e, segundo diferentes modalidades, a linha antidiscursiva de
Echevarría, de Amorim, do primeiro Melo e Castro (ante concretis-
mo), de Helder Macedo, tal como a linha moderadamente discursiva
de Pedro Tamen, Maria Alberta Menéres, António Salvado e, enfim,
também a mais geralmente e diversamente discursiva de Herberto
Helder e Ruy Belo. Com a excepção destes dois últimos, todos os ou-
tros nomes integram a corrente «neobarroca», tal como é reconhecida
por Fernando Martinho, cronologicamente situável entre as últimas
tendências da «geração de 50». Na sua pormenorizada análise desta
produção poética de final da década (cujas margens periodológicas
talvez representem o único limite) é possível determinar, entre os ca-
sos isolados (António Gedeão e, num certo sentido, António Silva
Pinto), pelo menos dois grupos: a) a «família barroca», na expressão
de Pedro Tamen (já algures citada), caracterizada por uma temática
religiosa, ou mesmo metafísica, típica de um cristianismo questionado
a nível poético e crítico (Pedro Tamen, M.S. Lourenço, mas também
o próprio Ruy Belo pertencerão ao principal foco catolicista e opo-
sicionista de esquerda que foi O Tempo e o Modo) e onde seriam
incluídos, para além de Echevarría, Tamen, Amorim, também Hélder
Macedo e M.S. Lourenço, ambos protagonistas de uma breve (em-
bora visível) passagem pelo Surrealismo; b) aquele que poderíamos
considerar o «proto-grupo» experimental, cujos primeiros sinais, no-
meadamente de Salette Tavares, de Ana Hatherly, de Melo e Castro
e de Liberto Cruz, (esse, de resto, não muito longe de uma poesia de
timbre cristão), remontam àqueles anos. Se uma leitura de conjunto
de toda esta poesia publicada entre 1956 (com alguns casos de retro-
cesso) e 1960-61 é totalmente lícita, pelo papel indissociável que têm
a teorização e a prática do Barroco na Vanguarda Experimental (cuja
acção pública remonta a alguns anos antes, 1964-66), preferimos tra-
tar dos seus expoentes num capítulo à parte, de modo a que seja mais
fácil “desdobrar” a sua distinta relação tanto com a tradição, como
com o resto da produção literária contemporânea.

166

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4.1 Hermetismo Barroco: A obscuridade da Lírica Anti-discursiva

Reunidos à mesa da paciência


estudamos os vidros da melancolia.

F. Echevarría129

Quase sempre agrupados pela crítica (à maneira de novos Rosen-


crantz e Guildenstern) pelo seu barroquismo130, pelo hermetismo,
pelo canto a lo divino, atribuído esse muitas vezes às respectivas e co-
muns experiências biográficas (passagem por Espanha e consequentes
influências literárias, estudos de teologia), Jorge de Amorim e Fer-
nando Echevarría representam, embora uma certa discrição e uma
forma de pudor envolva as suas obras – sobretudo depois do precoce
afastamento-exílio de Portugal –, duas das vozes mais profundas na
renovação poética ocorrida no final dos anos 50. Não espantam, en-
tão, os termos em que Gastão Cruz se lhes refere ao atribuir-lhes o
papel de eixos fundadores daquela linha antidiscursiva inaugurada
em 1956, ano em que saíram Entre dois Anjos e Anjos Tristes – acerca
da semelhança do título e sobre a temática “angélica” decalcada de
Rilke, a crítica já reflectiu (Lourenço, 1987; Martinho, 1996) – e ano
crucial para o desenvolvimento da futura poesia nacional. Eles são,
neste cenário liminar de «entrega à palavra», na expressão de Ramos
Rosa, «a primeira alternativa para esta poesia»:

129
«Reunidos à mesa da paciência», in A base e o timbre, [P I, p. 136].
130
Cfr. Martinho, 1996; mas também (Martinho, 1984: 18) onde, recenseando a
antologia italiana de C. V. Cattaneo, La Nuova Poesia Portoghese, (1975), escreve que
«a nova poesia portuguesa é representada [...] pelo neobarroquismo da geração que se
afirma sobretudo na segunda metade dos anos 50 e que na antologia de Ramos Rosa,
era substanciado por uma Maria Alberta Menéres e um Pedro Tamen, poetas a que, se
fizéssemos um ligeiro recuo temporal, poderíamos juntar Jorge de Amorim (n. 1928),
Fernando Echevarría (n. 1929) e ainda Helder Macedo (n. 1935)».

167

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É toda uma teoria, uma arte poética, que se elabora, para atribuir a este
elemento do discurso o lugar de maior relevo. Mas não teria sido neces-
sário explicitá-lo. Esse novo tratamento da palavra, que se integra numa
minuciosa vigilância exercida sobre as unidades do discurso estava bem
à vista em Echevarría e em Jorge de Amorim (Cruz, 1999, 214).

Vão, portanto, nesta direcção, composições como «Ah, Palavras»


(«não digas palavras/ vastas...Porque é triste!...Palavras: alma, um vá-
cuo.../Ah, Palavras») e «Palavras são coisas amadas» de Jorge de Amo-
rim ou como «Romances das palavras de amor» de Echevarría («Caem
palavras ao rio,/ palavras que se procuram/ – porque o amor já não
espera/ pelas palavras maduras –/ e se deixam, levemente,/ como passos
pela rua./ Não chegam a ter o vento/ preciso pra ser espuma./ Entre as
sílabas não há/ nem um silêncio de música»), mas também no ênfase
constante da virtualidade da palavra, do termo certo para a definição
de uma «Arte Poética», como na homónima poesia de António Salvado
(«Não há visível ou invisível…/É tudo um sonho para dizer./ O que
se inventa já existiu, é pois a morte que o faz nascer.//Só as palavras,
as formas são. O resto…sangue no pensamento. Depois é isso: redes-
cobrir/ com as palavras cada momento…», A flor e a noite, p. 8), ou
como em «Termo», ou ainda «Do autor aos seus versos»131, onde a
isotopia das palavras se anuncia fundadora, mesmo numa lírica que,
ignorando toda a pretensão de realismo de uma inteira geração, de for-
ma a elidir qualquer marca narrativa ou discursiva, aproveita a lição
de Eugénio de Andrade (menos a de Sofia de Mello Breyner Andresen)
para voltar a colher inspiração no simbolismo e, mais difusamente, na
“poesia pura”. De facto, ao apontar as características “barrocas” em
Echevarría, Jorge de Amorim e António Salvado, cuja descrição da pró-
pria poesia participa de um certo “amaneiramento” oximórico:

Intimidade exterior,
Pureza de impuras formas,
conhecimento e amor,
água límpida, estertor,
sem regras feita de normas132.

131
O primeiro poema é de Recôndito, [O, p. 41], o segundo de Difícil Passagem,
[O, p. 74].
132
A. Salvado, Difícil Passagem, [O, p. 68].

168

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é preciso, desde já, referenciar a função de filtro representada por
Mallarmé e pela geração de 27 espanhola (juntamente com o herme-
tismo italiano, nomeadamente de Ungaretti) na leitura de Gôngora e
da poesia seiscentista. Por outras palavras, na esteira das próprias de-
clarações poéticas de Jorge de Amorim (explicitadas nas «Notas» de
Anjos Tristes), que levam a filiar a sua lírica naquela grande linha mo-
derna da “poesia pura”, ou com base nas afirmações echevarrianas,
evocadoras do simbolismo e de raízes ibéricas133, podemos avançar
que o “barroco” destes poetas é recuperável por intermediação, isto
é, o traço barroco que lhes pertence resulta da projecção através da
qual as estéticas da modernidade tentaram activar os seus princípios.
Não é, então, de estranhar que a “poesia pura” que Amorim reivindi-
cava para a sua lírica134, na concepção teorizada pela primeira vez por
Henry Bremond (La poesie pure é de 1926), pretendesse recuar, numa
linha de continuidade, através de Valéry, Mallarmé e do Simbolismo,
até ao primeiro Seiscentos. Em suma, a concepção bremondiana de
“poesia pura” integra, por direito, a «construção novecentista» do
Barroco, pois que:

ad un certo punto, assumeva il valore di una tradizione della quale


occorreva accertare le origini. Così che egli [Bremond], stabilito che il
linguaggio poetico era frutto di una tecnica sottile che riusciva a cap-
tare le risorse musicali della parola, giungeva a trovarne i precedenti
secenteschi, tra l’altro nell’«incantation poétique» di Racine (Mac-
chioni Jodi, 1973: 110-111).

Daí encontrarmos, em Jorge de Amorim, a poética da poesia pura


impregnada de um misticismo intenso, que prefere, para alcançar o
seu fim – «vazio esplendor completo» (Guimarães, 1999: 76-77) –,

133
«É sempre delicado situar-se. A tarefa incumbe aos críticos. Mas podem, creio,
destacar-se nela dois factos essenciais: a inserção no subsolo longínquo da corrente
simbolista e a abertura à experiência do mundo a partir duma raiz cultural ibérica»
(Amaral, 1988: 178).
134
«A poesia pura (que é de todos os tempos, mas particularmente dos nossos – e
mais será dos futuros...) é imanente e transcendente a todas as coisas. Há certo género
de poesia (melhor: certo género de expressão poética) que tem mesmo as propriedades
ou dotes que a Teologia atribui ao corpo glorioso, ou ressuscitado: 1. Claridade...2.
Subtilidade...3. Agilidade…4. Impassibilidade…são estes os quatro dotes da poesia
pura ou gloriosa», (Amorim, 1956: 114-116).

169

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uma dicção formal de carácter barroco, expressa exemplarmente na
figura da hipérbole («Que transparências provocas!/ Que tesoiros
desentranhas!/ Maravilha pura e íntima,/ –janela inversa da alma»,
in «Speculum»), na intensidade da restituição metafórica («Pedra.
Chama? Opaca flor do sentido»135), na extrema redução – quase bra-
quilógica – do discurso, que circunscreve ao mínimo o registo ver-
bal («Margens derivam. Lisura/ das mãos, não rígidas. Rectas. Nem
açude: a que submetas,/ torrencial, a ternura. / Murmulho. Espuma.
Fervente caudal!»136). Estes versos quase que levam a crer que as pa-
lavras surgem já distantes entre si, como que rarefactas, procurando
(quase neoplatonicamente) exprimir o inefável, dizer a própria ideia
das coisas, sendo, por isso, submetidas a elípticas contorções cultistas,
sinal, talvez, da impotência de atingir com a inspiração137 o Outro
absoluto que é Deus:

tesouro, maravilha,
amor
– jóias incertas..
Sinto-vos já tão puras, tão amadas,
(Beleza minha eterna!) que parece
que sois como sereis,
que nunca sereis mais – já do que sois!138

Como todos os poetas barrocos, Jorge de Amorim que aliás, neste


sentido, o admite, torna-se apenas num glosador do verbo divino:
o mote recebe-se por graça, por vontade de Deus; o exíguo resto, à
guisa de glosa, cabe ao poeta terreno: «Diz um poeta francês que,
numa poesia, o primeiro verso dá-o Deus: e o resto é exíguo acrésci-
mo do poeta. As pequenas poesias são, portanto, aquelas, em que o
poeta pouco quis acrescentar a essa parcelazinha divina» (Amorim,
1956: 113). Residual, “avanço” de uma concessão, tensa ao absolu-

135
«Pedra», A beleza e as lágrimas, p. 22.
136
«As Mãos», Ibidem.
137
Amorim fala, nestes termos, de inspiração: «A inspiração não é mais que uma
auto-possessão, ou possessão do próprio espírito alheio. O poeta – in actu – é sim-
plesmente um auto-possesso, ocupado luminosa e exaustivamente, pelo seu mesmo
espírito» (Amorim, 1956: 113).
138
«Beleza minha eterna», Anjos Tristes, p. 112.

170

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to, a poesia torna-se indizível, ou melhor, toda a poesia, para Jorge
de Amorim, é luto da poesia, porque irrepetível e única, apenas uma
das versões reduzidas da verdade. O «ex», «o que já foi» é a própria
condição do poema já que a sua epifania não tem origem no mundo
nem na história, mas somente na ideia, «no interior»:

Todas as nossas poesias, ainda as mais perfeitas, são sempre ex-poe-


sias apenas. A verdadeira, a autêntica poesia, dá-se unicamente no in-
terior, e não mais se repete, pelo menos no grau em que foi verdadeira
(Amorim, 1956: 113).

Contraponto da poesia de Amorim, eminentemente antidiscursiva,


também a poesia de Fernando Echevarría se destaca pela sua «recusa
total da eloquência» e por «uma extrema concentração das metáfo-
ras» (Cruz, 1999: 201): antidiscursividade que, se em Amorim se jus-
tifica pela subtracção, por todo o concentrado sistema de reticências,
exclamações, interrogações (e consequentes sinais diacríticos), em
Echevarría tem sobretudo a ver com a construção elíptica da com-
posição. Nesta predisposição construtivista reside o habitual «gosto
pelo artifício» echevarriano, onde brilha ex abrupto o uso do enjam-
bement139; de facto, é possível atribuir a esta figura métrico-sintáctica
o grau de “artifício-mor” na morfologia lírica de Fernando Echevar-
ría, devido à sua carga inovadora e transgressiva que força, até ao
extremo, a relação entre o verso e a frase. Os enjambements mais pra-
ticados não são somente os “clássicos” entre adjectivo e substantivo
(«Não chegam a ter o vento/preciso pra ser espuma…Mas as mãos
querem a tarde/ firme de carne segura» in «Romance das Palavras de
Amor», [P I, p. 47]; «Rosa de fogo que arranca/raízes, sexos, à bran-
ca/corporação da medida» in «Bomba, 2», [P I, p. 77), ou aqueles
entre o substantivo e o seu genitivo, esta, talvez, a constelação mais
ampla (as últimas duas quadras de «Tempo de Amor»: Tempo o mar.
Agarrador/ da tua fuga sem fim./ Tempo só o mar e só em mim./
Contigo, tempo de amor.// Que mais não és. Coração/ do tempo, se
estás aqui./ E se ausente, duração/ do tempo que estou sem ti», [P I, p.

139
«com um emprego abundante do enjambement [...] e uma técnica fulgurante do
corte do verso que faz do autor de Entre Dois Anjos o poeta que, em Portugal, mais
ousadamente enfrentou, dentro de uma versificação regular, a oposição verso-frase e
sistematicamente pôs em causa o conceito de pausa métrica» (Cruz, 1999: 201-202).

171

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11]), mas também os mais sofisticados como os predilectos genitivos
verbais com o infinito impessoal e pessoal, cuja insistente utilização
constitui uma verdadeira obsessão na escrita de Echevarría:

Se ao fim que houvesse um trem nos arrancasse


deixando um corredor de luz humedecida,
a mesa do café seria a base
de haver um cais sem mesmo haver partida.

O pêndulo daria aquela face


de esperar o minuto. E a pupila
saberia da sombra, se chegasse
a haver cidade...140

Dentro da nossa sombra


Cairemos.
E ficará um vazio
terror. Um tempo
de nada haver senão
a sombra de outro vivendo141.

Se, como foi já assinalado, os seus recursos estilísticos são dignos


de um grande «engenho barroco» – a metáfora do verbo («geometria
de ver»), do genitivo («a muitos mares de mim/ estás tu»), as suspen-
sões repentinas dos nexos lógicos que levaram Jorge de Sena a falar
de “agramaticalismo” nos primeiros livros (detectável, em nossa opi-
nião, também em livros posteriores como Media Vita), devido a uma
manifesta influência da língua espanhola – tudo isso resulta ainda
mais evidente ao considerarmos, integralmente, a mesma concepção
da construção semântica e prosódica da poesia echevarriana. Uma
vez que está quase totalmente abolida qualquer pretensão (ou me-
lhor, qualquer compromisso) de discursividade, Echevarría obriga o
seu verso às mais ousadas contorções, que se poderiam definir como
«dobras» que, barrocamente, sustentam o fluxo do poema142:

140
«Se ao fim que houvesse…», Sobre as horas, [P I, p. 114].
141
«Dentro da nossa sombra», ibidem, [P I, p. 111].
142
Cfr. (Villas-Boas, 1999) para uma leitura neobarroca, baseada na terminologia
conceptual deleuziana, da poesia de Echevarría e nomeadamente de Media Vita (1979).

172

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Procuramo-nos onde mover-se nos resume
Ver uma casa descendo na saliva
Até ao sítio em que tocar se cruze
Com o fundo de ouvi-la.

Procuramo-nos. Desde o vulto às luzes


Com que o vulto ilumina
O terno túnel de vermos
A memória de ver à tona da pupila143.

Por vezes, como se fosse uma espécie de espiral, este mesmo ver-
so neutraliza-se na tensão dos opostos («Descalça de viver, andava
sempre./ Enchia a rua quando não passava/ Mas se passava, desfazia
o tempo/e apagava a rua, os homens e as lágrimas»144). Leia-se um
verso como «A sala está vazia só de entrarmos», onde nesta mestria
de fulminar em palavras o oximórico, de dizer o antitético, é possível
entrever toda uma arte poética que privilegia o «fazer», o construir, a
estrutura poemática e os seus instrumentos, conforme o próprio Eche-
varría escreveu nas suas reflexões sobre o poeta-faber (Echevarría,
1961), ou apenas, evidenciando a isotopia «laboratorial» dos títulos
dos seus livros, que remetem para a ideia de trabalho e de formali-
zação líricas como acontece em Ritmo Real, A base e o timbre ou no
mais recente (e ficticiamente “didáctico”) Introdução à Poesia (2001).
Desde os seus primeiros livros, a contínua pesquisa de Echeverría so-
bre a linguagem, metonímia da mais extensa investigação sobre a pa-
lavra, subverte qualquer tipo de linearidade discursiva, sem que por
isso essa resulta na sua única finalidade, mas apenas consequência da
sua poesia. Em suma, para além de qualquer agrado estético que, a
existir, não pode senão ajudar estes versos, a retoma barroca de toda
aquela série de artifícios estilísticos, formais, retóricos, é sobretudo
uma declaração da dificuldade do poeta em dominar a matéria, em
ultrapassar as aporias intrínsecas aos próprios nós temáticos eche-
varrianos, como a contiguidade de amor profano e de amor divino
(«Fizeste o coração de estar aqui,/ uma língua de amor, pétala vas-
ta/ de queimado deserto, que se arrasta/ pela ardência da areia para

143
«Procuramo-nos onde mover-se...», Sobre as horas, [P I, p. 113].
144
«Descalça de viver», ibidem, [P I, p. 89].

173

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Ti»145), o misticismo intenso quase carnal («Eira que vergastas, meu
Senhor/ com pancada de cruz no gelo vivo.//…Espancas e vergastas o
desejo/ de a Ti me dar como te dou um beijo./ Malhas, Senhor, e sa-
bes que estou vivo// porque ofereço as minhas costas brancas/ – beijo
que espalmas e eira que Tu espancas-/ somente por amor, sem mais
motivo»146), a dialéctica ausência/presença («Tu –aqui– pedra e sau-
dade. Tu, com toda tu ausente.// E tu aqui. Tão pesada/ no coração,
tão presente/ como montanha de nada,/ retrato frio e doente»147), a
morte in media vita, o limite último enquanto limiar insondável de
todo o fim e início que por, exemplo, representa o leitmotiv de todo o
ciclo do livro homónimo

A morte na morte se termina.


E amamos na esperança que a alimenta
não a transparente ferramenta
mas a alma que passa e se ilumina148.

Não porque a morte na morte se termine


irmos difíceis e lúcidos por ela
avança até o ponto que define não sermos
mais além do termo dela149,

o estudo da melancolia no espelho de sombra da História, a rai-


va gnoseológica in bilico entre «inteligência» e «coração», entre a
fenomenologia dos sentidos (da vista, nomeadamente) e a análise do
pensamento:

Benzo-me em nome da melancolia,


ciência teológica que funda
sermos a história reflectida
de não haver nenhuma,
senão a de um espelho que ilumina

145
«Noite Escura», Tréguas para o amor, [P I, p. 63].
146
«Correspondência», Entre dois anjos, [P I, p. 17].
147
«Abraço», ibidem, [P I, p.15].
148
«A morte na morte...», Media Vita, [P I, p. 178].
149
«Não porque a morte na morte», ibidem, [P I, p. 179].

174

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os pensamentos da sua face pura
e onde sermos pensados nos inclina
a ver história onde só há leitura
do esquecimento e da melancolia,
ciências da lógica absoluta150.

O seu antidiscursivismo, a pedregosidade métrica, a atmosfera me-


tafísica que paira ao ler esta poesia («Hoje para morrer, era preciso/
que a música viesse. E nos beijasse/ as pálpebras por dentro. E um
sorriso/ desceria até da água à nossa face...// Tudo seria tudo. Sem
mesmo ser preciso um relógio qualquer que nos guardasse // o grande
amor que então percorreria/ o corpo. Chamar-lhe-iam gravidade,/ ou
peso, ou nada, ou simplesmente, fria //inércia, fim», [P I, p. 103]), o
poder de concentração imaginífica («Pura ardência. Capital/ lírica da
primavera…/ O incêndio/ embriagado do orbe/ encontra nela com-
pêndio», «Rosa», Tréguas para o amor, [P I, p. 52]): tudo conduz
para aquilo a que a crítica costuma reconhecer como a proverbial
obscuridade echevarriana, onde um certo gosto pela complicação
formal de matriz barroca tem principalmente a ver com um gongo-
rismo filtrado, através das experiências da poesia pura espanhola –
sobretudo Guillén – e não só – (Reynaud, 2001)151 e da generación de
27 (aliás, Gerardo Diego é citado na epígrafe do poema «Romance
das palavras de amor»), mas também da poesia hermética italiana.
A aproximação ao barroco da poesia hermética italiana e nomeada-
mente de Montale, como lembra Fernando Martinho, deve-se a um

150
«Benzo-me em nome...», A Base e o timbre, [P I, p. 143].
151
Na base dos indícios disseminados pelo poeta, este ensaio tenta circunscrever
toda aquela constelação de influências reconhecíveis na formação poética echevarriana,
salientando em particular a função desempenhada pela genealogia “ibérica”: «A matriz
da poesia de Echevarría é essencialmente hispânica […] Um estudo aprofundado dos
seus primeiros livros permitiria ver o que neles resulta de uma confluência da vertente
ascética e mística da poesia espanhola (San Juan de la Cruz e Santa Teresa de Jesus)
com a vertente conceptista e cultista dessa mesma poesia (de Luís de Gôngora aos
poetas da “Geração de 1927” que o revalorizaram). Mas não podemos deixar de evo-
car os nomes de outros grandes poetas de língua castelhana, mais sintonizados com
uma poética romântica ou metafísico-existencial, que poderão ter marcado Fernando
Echevarría: Gustavo Adolfo Béquer e o “seu inefável sonhado”, António Machado e
seu lirismo essencialista, Juán Ramón Jiménez e o seu metaforismo concentrado, Pedro
Salinas e o seu conceito de “poesia total”, Jorge Guillén e a sua “poesia pura”, Dámaso
Alonso e a “claridade fervorosa da poesia» (Reynaud, 2001: 20).

175

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artigo de Aniel Jannini na revista Folhas de Poesia (organizada por
Helder Macedo e António Salvado) que, desde 1957, integrou a cola-
boração do próprio Echevarría, de Herberto Helder e Jorge de Lima,
iniciador brasileiro de uma poesia igualmente barroca e metafísica,
que, em Portugal, influenciou significativamente alguns jovens escri-
tores católicos como Pedro Tamen, Helder Macedo e M. S. Lourenço
(Martinho, 1996: 416)152.
Se, por um lado, a leitura do barroco por parte da escola hermé-
tica italiana, (sobretudo de Ungaretti apaixonado leitor de Gôngora
e dos seiscentistas), funcionava criticamente como o reconhecimen-
to – de ambos os lados – de certos traços de afinidade, por outro, a
recuperação de uma expressão barroca realizada por alguns poetas
portugueses passou também por uma espécie de hermetismo formal,
um desejado impulso para a complexidade, uma restituição elíptica
(até à obscuridade) do discurso poético. Nesta direcção vão também
as considerações de Fernando Martinho sobre António Salvado, por
exemplo, e sobre um tipo de poesia obscura, não só pela sua «for-
mulação discursiva», mas sobretudo pela temática do «segredo», do
«mistério», do «inefável», da «ausência» e do «silêncio»:

Falo de mim sinceramente ausente…


Esqueço palavras, formas e a certeza
da compreensão…153

Quem me dirá
quem guardará meu silêncio
no fundo do poço inaudível
sem bordas ou caldeiro que traga
à superfície
o branco disco da lua
que se repete e ondula?154

152
É preciso não esquecer que o último número da revista Folhas de poesia presta
homenagem a Ângelo de Lima, o poeta de inspiração decadentista-simbolista de Or-
pheu, com a publicação de alguns dos seus textos mais significativos: para a redesco-
berta deste poeta, contribuirá, passados alguns anos, também o grupo de Po.Ex., ao
incluir Ângelo de Lima numa alegada arqueologia experimental.
153
«Conclusão», A flor e a noite, [O, p. 9].
154
«Fábula», Recôndito, [O, p. 29].

176

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4.2 Uma “Família barroca”

(sobre um sonho de Ana Hatherly)

O último não entra no reino dos céus


Nem o primeiro nem o penúltimo.
Quanto ao vigésimo quarto veremos se se atrasa
Para além do que é permitido pela lógica
Até exceder o contrário do primeiro.

O reino dos céus não é lógico ao contrário.


Ao reino dos céus chega depois do último
Quem não sabe ter partido.

P. Tamen155

Numa entrevista concedida a um jornal no ano de 2002, Pedro Ta-


men lembrou como, logo após a publicação do seu primeiro livro (Po-
emas para todos os dias, 1956), Gaspar Simões advertiu para o duplo
perigo que espreitava a sua poesia: por um lado, uma deriva barroca
e, por outro, o misticismo; elementos estes, que – sobretudo a partir
de O Sangue, a Água e o Vinho de 1958 – a censura simõesiana não
poderia tolerar, de tal forma que «a partir daí, ele deixou de me ligar.
Menosprezava-me claramente» (Tamen, 2002a: 17). O que teria sido,
para todos os efeitos, uma condenação «contra o seu barroquejar»156,
no final dos anos 50, foi-se transformando, ao longo do tempo, num
verdadeiro reconhecimento crítico, não só por parte dos críticos da po-

155
«O último não entra...», Esparsos, [RM, p. 677].
156
«Desde cedo grande parte dos críticos acentuavam esse lado do jogo ou me
chamavam barroco usando a palavra em sentido pejorativo ou acentuavam o lado
hermético daquilo que eu escrevia» (Tamen, 2002b: 25).

177

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esia de Pedro Tamen, cuja intenção seria inscrevê-lo numa particular
tendência estética, mas também do próprio poeta que (num sintético
auto-retrato na terceira pessoa) aceitava participar numa mais vasta e
variada família barroca cronologicamente bem delimitada:

Outro rótulo, que apressadamente lhe colaram à pele, é o de poeta


barroco e inacessível. Pessoalmente, acredita que faz parte de uma
família que em termos hábeis pode ser apelidada de barroca, mas re-
jeita a acusação de inacessibilidade e de jogador de palavras (Tamen,
1990: 96)157.

Para a crítica não foi difícil demarcar os representantes e atribuir


laços de parentesco a esta ideal família barroca, dado que, tanto do
ponto de vista cronológico, quanto exclusivamente temático, essa
família reconhecia-se numa poesia de inspiração – mais ou menos
declarada – religiosa (cfr. a ascendência de Jorge de Lima)158 e que in-
tegrava, para além de Amorim e Echevarría, também M.S. Lourenço
e o próprio Pedro Tamen.
Este último, porém, dentro de uma linha com características me-
nos antidiscursivas, que faz com que possa ser aproximado à lírica de
Fernando Guimarães, Cristovam Pavia e Maria Alberta Menéres, pela
fina veia lúdica, pelos golpes irónicos que atravessam toda a sua escrita,
afasta-se bastante do purismo ascético e da complexa pedregosidade
formal dos dois primeiros poetas supra nomeados, para reclamar, jun-
tamente com M.S. Lourenço, um visível fundo de sugestões surrealistas.
Na verdade, a libertação métrica e sobretudo sintáctica do surrealismo
funciona na poesia de Tamen como importante dispositivo de escrita,
que contribui para desactivar qualquer pretensão de conexão lógica,
fornecendo um suporte formal com o qual é possível retratar a barro-

157
O próprio Pedro Tamen refere-se ao barroco na sua poesia, falando da afinidade
que ligaria Proust (cuja Recherche foi traduzida pelo poeta) com uma «visão barroca»:
«isto é, o gosto por ver as coisas de vários lados e de vários lados ao mesmo tempo, e de
olhar para uma realidade que no fundo não se esgota nunca e que tem sempre facetas
que não acabamos de indicar ou de descrever», (Tamen, 2002a: 12).
158
É significativo que o primeiro livro de Tamen tenha como epígrafe os versos
a lo divino do poeta brasileiro da Invenção de Orfeu: «Nem sei dizer se esse mudado
verbo,/ nem sei dizer se essa gaguez furiosa,/ essa rosa de vento que é meu berro/ se
tornou uma asfixia de Teu perro/ –canto com que louvar-Te, canto-chão,/ nessa Tua
divina ventania».

178

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ca variedade do real159. De facto, poder-se-á falar de barroco também
nesta poesia, somente se esta for entendida como uma espécie de hybris
técnica, inclinada a aproveitar, através de todos os recursos estilísticos,
retóricos e métricos, todas as potencialidades intrínsecas à singularida-
de da palavra no poema e ao encadeamento dos versos. Poderíamos, de
passagem, lembrar a tese de Alessandro Cioranescu, para quem a época
barroca assinala a descoberta da originalidade no moderno sentido for-
mal, enquanto consequência daquilo que é definido como «complexo
dos epígonos», isto é, o temor de que tudo tenha já sido dito, «invertido
na presunção de que tudo se pode voltar a dizer de forma inaudita e
surpreendente» (Cioranescu, 1957: 370). Contudo, se a este complexo
subjaz um outro, de tipo edípico, característico dos poetas barrocos
enquanto filhos deserdados e cúpidos que experimentaram a «inversão
da sua pobreza de materiais para a soberba riqueza de formas» (Orlan-
do, 1997: 76-77), podemos distinguir também na moderna profusão
formal e barroca de Pedro Tamen (detectável em certa «poesia que vem
depois» de Pessoa e toda a recepção/«digestão» posterior), um gesto de
inquietação e de superação: o neobarroco investe na arrogância (inso-
lência) formal já não ou já não só como expediente de fuga, mas como
verdadeira experiência seminal do “novo”, até na radicalidade das suas
transformações, até no risco que toda a hybris comporta.
A carga transgressora desta lírica, a qual, no final de contas, gira
em volta de apenas dois grandes macro-pólos – a tensão religiosa e
amorosa, com todas as suas derivações –, reside, portanto, na procura
contínua, no esforço (até descarado) de alcançar uma via mais difícil,
mais original, mais intricada, disseminada de grumos fono-sintácticos
(«porque se amanhã,/ se amanhã de manhã de manhãzinha/uma pe-
quena brisa para as orelhas pequenas/ nascer intensamente e lá fizer/
o canto cantochão onde te escondas,/ se nisso te perderes, te encon-
trarei,/ e, verdes as amoras, outra vez/ seu braço me embaraça, mas

159
O barroco da lírica de Pedro Tamen tinha já sido oportunamente apontado por
Joaquim Manuel Magalhães, ao evidenciar os traços de renovação estilístico-formal
e estrutural em geral: «Os suportes principais dessa renovação discursiva em Pedro
Tamen são o regresso a uma atenção ao verso enquanto unidade principal do discurso
do poema, o recurso a processos retóricos ampliadores do sentido e distorsores da
linearidade frásica ou rítmica [...], a recuperação da prática conceptual que traz para
o centro da preocupação poética uma certa tradição barroca sem vocação excessiva-
mente maneirista» (Magalhães, 1981: 186).

179

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ainda/ as folhas me dirão o teu lugar»160; ou «digo boa noite às aves,
caves, naves/ e cavo a nove// se possível»161), de um complicado sis-
tema de assonâncias, de aliterações (sobretudo com a predilecta raiz
amar, como em «Amor, amar-te qual, amar-te tanto» ou «que morte
amar-te/ que marte e espaço», mas também os magníficos «saudades
saudadas» e «Tanto e tonto te amo»), de anadiploses e de anáforas
(sobretudo nos primeiros livros), de termos cuja resolução não passa
de uma nova montagem ao gosto de calembours: cfr. os versos de
«Sem rede»: «tempo delicioso onde as compotas/ são sulfatiazol/ (ao
sul/uma fatia/ de sol»162); de anacolutos, de toda a série de artifícios
fonéticos como homofonias («…E o atraso/ está na boca sem saliva/
ou no dirado inaudito/ ou num relógio à deriva.// Donde deriva o
mosquito/ que pica e activa») mas também («Eis o remo que remo, em
que me estafo»), homógrafos, homoteleutos (rimas, rimas internas):

Se me escolho me encolho,
e passo ao limbo
fácil e solerte onde me tolho,
onde me nimbo163

Esta noite, cada noite,


Pra toda a parte caminha,
Pra cada homem, pra ti,
Minha coelha na vinha
Onde esperas a chegada,
Tão sossegada e ali.
Na fresca sombra da planta
Nem há tempo de esquecer:
Será na urze molhada
Que encontrarás o lugar
Onde havemos de aparecer,
Concha de mar destinada
Ou sítio para eu te buscar164;

160
«Porque, se amanhã…» in Primeiro Livro de Lapinova, [RM, p. 155].
161
«E agora que não tenho mais nada…» in Daniel na cova dos leões, [RM, p. 273].
162
Poemas a Isto, [RM, p. 198].
163
«Internato», Poemas a Isto, [RM, p. 177].
164
«Perto de Lapinova» in Primeiro Livro de Lapinova, [RM, p. 131].

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de elipse, de repentinas, estridentes mudanças verbais, de ruptura
da homogeneidade e do horizonte de expectativa “sócio-linguística”
(espera-se um verbo, mas é um substantivo que aparece165), de versos
de fascinações labirínticas

Assim moído, gasto e moço,


Chegas e tornas dizendo mar
E árvore. Palavras que não ouço
Mas de que ouvi-las ser falar.

Dizes brinco e nisso eu digo


Beco. Voltares ainda é já partir
E eu partido. E logo sigo
Até que enfim não queira mais fugir
Porque não é preciso. Agora
passar sem ti será pedir de mais.
Dizer-te vai é só pedir demora:
Só não dizendo, então, calado, vais166;

de reais desafios à língua, travados com os meios do jogo e da


ironia. Mas falar-se-á apenas de técnica, de comprazimento formalis-
ta, de esteticismo de pontas ininteligíveis neste alegado «jogador de
palavras»? Julgamos que não e se, de facto, foi dito que a perspectiva
ilusionística do artista barroco é o espaço mais apto «a revelar qual-
quer coisa para obter outra, a divulgar verdades absolutas através
da reabilitação do contingente, a celebrar o supérfluo de modo a re-
adquirir o necessário (ou viceversa)» (Runcini, 1987: 87), o barroco
novo e moderno de Tamen força até às últimas consequências o poder
da escrita, dobra o verso nas mais incríveis deformações e perversões,
acumula fragmentos de supérfluo, recorre a infinitas tortuosidades,
para descobrir o “necessário”, para redescobrir um ponto sempre

165
Um dos exemplos mais paradigmáticos encontra-se no último verso desta «dé-
cima» de quinários – diga-se desde já, muito revelador do gosto ibérico-seiscentista –,
onde à negação («não») se segue um inesperado substantivo («estrada»), produzindo
um invulgar efeito de estranheza: «Futuro lenço,/ coelha arada, quando te penso/ não
penso nada/ – enxugo a sombra/ de um girassol,/ atiro um braço,/ pressinto o trigo;/
não penso, faço,/ não estrada, sigo», «Versos para o primeiro poema» in Primeiro
Livro de Lapinova, [RM, p. 132].
166
«Assim moído, gasto…» in Daniel na cova dos leões, [RM, p. 222].

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novo, «um ângulo ao mesmo tempo original e desconcertante», de
onde se possa reconhecer a impossibilidade de dizer o “necessário”,
tanto na procura de Deus, quanto na experiência do amor, tanto nas
flutuações do tempo, quanto na aproximação da morte167. Para além
do ornamentalismo, do esteticismo devaneante, a poesia de Pedro Ta-
men, segundo nos parece, sobressai pelo lado de excesso, de dissipação
(Habermas, 2000), de desperdício significante, contra toda a norma,
toda a proibição, todo o vínculo semântico: como bem viu Fernando
Guimarães, ao conotar a «sintaxe figurada» na lírica tameniana:

a obra de Pedro Tamen […] se fixou numa linguagem fortemente mar-


cada [...] pela atenção dirigida para a função poética ou significante
do texto. [...] A tensão que aqui se alcança tende a libertar-se do pla-
no do significado das palavras e passa a assentar em processos que
concorrem para a produção de uma outra espécie de significação que
faculte a leitura do poema (Guimarães, 1989: 78-79).

Assim, do excesso técnico desta grande arquitectura barroca, fun-


dada na relação entre a música, as sonoridades do signo e do seu
significado, não pode senão decorrer uma outra, – por vezes, dema-
siado inusitada – cripta de sentido («E de repente aparece/ um silêncio
entretecido/ em que já nada apetece./ Em que tudo tem sentido»168),
até então escondida e inalcançável para o olhar e para o ouvido, para
a racionalidade comum.

Se dia, porque dia, como dia,


Se agora, mais ainda, com que foi,
Palavras, cumprimento, anoitecia,
Mas nada, porque nada, porque dói.

167
E, acerca da tortuosidade enquanto mecanismo mental característico do autor,
diz Tamen: «E a palavra tortuosidade é bem utilizada. É um expediente de desespero. É
um desejo desesperado de encontrar a expressão, a forma, aquilo que diz efectivamente
o que eu gostaria de dizer. [...] Essa procura incessante da palavra exacta – sempre
impossível e sempre fugidia – é uma característica minha. Por isso eu às vezes me refiro
aos barrocos como meus parentes, porque de certo modo, o que é o trompe-l’oeil senão
a procura de algo que não está lá mas que se procura mostrar se lá estar?» (Tamen,
2002b: 20).
168
«(Redond/Ilha)» in Escrito de Memória, [RM, p. 283].

182

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Sentado, levantado, acorrentado,
Telefones e jantar, não sei se vou,
um tiro, ou não sei se isso, ou perfumado,
mas tanto, por tão pouco, e acabou169.

«Poemas exigentes», estes de Tamen, como ele próprio os conside-


rou, porque no aparente caos, nada é, todavia, deixado ao acaso; eles
exigem antes de mais uma plena e profunda colaboração por parte do
leitor: um leitor que saiba colher todas as nuances, todas as possibilida-
des de um surplus de sentido, todos os eventuais e explícitos non-sense,
de maneira a reabilitar a existência plausível deste universo poético.

Aos que nasceram hoje de manhã


mas de cansaço, caem levantando
as horas miriápodes do sarro,
aos que perfazem anjos pela carne,
aos que agradecem chuva pela carne e amamentam
os filhos do mau tempo,
aos outros sós que vergam,
aos que deram a pele,
aos negros,
aos leprosos,
aos longe do açúcar,
aos últimos,
aos meninos de choro,
aos pulhas,
aos presos,
aos palhaços,
aos limpa-chaminés de onde não as há,
aos amantes sem causa,
aos que lambem o peso,
à menina Zulmira,

aos que têm anémonas nos olhos


a voz abrindo atalhos alarga na clareira
a mesa do banquete170.

169
«Se dia, porque dia, como dia» in Primeiro Livro de Lapinova, [RM, p. 134].
170
«Aos que nasceram hoje...» in O Sangue, a Água e o Vinho, [RM, p. 117].

183

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A enumeração caótica, recurso figural cuja retoma em Tamen mos-
tra seguros reflexos surrealistas, torna-se numa técnica para tentar dizer
a caoticidade e fragmentariedade do mundo: a acumulação dos signos,
por isso, para além de ser o moderno correspondente da irremediavel-
mente perdida unidade do significado, configura-se como sintoma de
um barroco horror vacui, em que a Modernidade preferiu ver a forma
de uma inquietação, de um desengano mais do que a ritualização de um
expediente. Então, se é verdade que o próprio Pedro Tamen se referiu à
sua «visão barroca do mundo», enquanto «desejo de ver as coisas de di-
versas perspectivas, de diversos prismas. Daí a abundância de palavras
que utilizo, muitas vezes para tentar significar a mesma coisa» (Tamen,
2002b: 26), podemos conotar muita da sua lírica com uma epifania
da diferença, uma infinidade “do mesmo”: para atrás de cada verso
entrevê-se um desperdício, uma fissura, uma complicação, um desvio,
o montaliano “anello che non tiene”, um “des-olhar” sempre original
das coisas e dos homens. Também o tratamento dos dois grandes temas
participa da irresolução: o sopro divino, tal como a relação amorosa,
nunca se resolve em si próprio. A este Deus invocado, procurado, trata-
do por “Tu”, pelo menos até ao Primeiro Livro de Lapinova, tal como
o “tu” com que se trata a mulher amada (ambos tomam consistência só
na palavra poética), nunca se podem aceder verdadeiramente: existem
apenas enquanto relação ou, talvez, enquanto tensão, porque, como
escreve o poeta a essa mulher, só a deslocação permite a posse:

No fundo, não procuro nem procuras;


É na viagem mesma que nos temos171.

Todas as estações da viagem, todos os tempos do caminho172 são


percorridos nesta lírica de amor «através dos pronomes»173, porque,
afinal, «seja qual for a estrada/ avanço para ti», [RM, p. 317]: a es-

171
«Por me dizeres o nome…» in Escrito de Memória, [RM, p. 282].
172
Como acontece na esplêndida «Vou a Praga à boleia, meu amor», onde o tempo
do amor não é apenas o futuro e o presente, quanto também o intervalo entre os dois:
«Vamos a Praga os dois a pé-coxinho./ Eu brinco no teu peito, tu nos dedos/ de mim
calhados com que te encandeio. Temos nozes e pão, agudo vinho,/ bocas de carne,
matas sem enredos,/ o tempo todo à frente, e o do meio», [RM, p. 382].
173
Uma das três secções do livro Agora, Estar (1975) intitula-se significativamente,
«Os pronomes pessoais e outros poemas».

184

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pera, o dom, a distância, têm sempre o contraponto no seu contrário.
O encontro é sempre constelado pela perda, a presença pela ausência,
a vontade de posse pela sua negação («Querer-te: não querer e não
querer./ Não fugir: ouvir o vento/ Amar-te é não me esquecer / da mi-
nha casa e assento», [RM, p. 291]; como se pode facilmente constatar
também pelas claras ressonâncias camonianas «Quase não querer-te é
querer-te ainda mais: se tudo baixa e funde sobre mim,/ não saibamos
de donde ou quando sais/ nem porque chegas ao chegar ao fim»), a
proximidade pela longitude.

Regressa regressa gota de mel e pão


Não há louco sítio que por ti não espere
Onde te não saiba onde não te caiba [RM, p. 254]

«Poesia do tu» como foi chamada, a obra tameniana, talvez se


distinga melhor como constante diálogo entre o «eu» e o «tu», entre
o sujeito de escrita e o seu destinatário: há, em suma, sempre um ou-
tro na segunda pessoa por convocar, por pôr em causa. Daí decorre
– do ponto de vista estilístico – o insistente uso de verbos conjugados
indistintamente na primeira e segunda pessoas, de vocativos, a utiliza-
ção do discurso directo em simultâneo com o discurso indirecto e de
expressões coloquiais e interrogações:

Agora me esperas, de novo me esperas,


teu peito, teu rosto, e os braços que dizem
o segredo das folhas e o tempo da vida
[...]
Agora eu também, calado e refeito,
De novo te espero e escrevo nas horas
Dos dias diurnos, das noites nocturnas,

A boca e nome; espero e aceito,


Mas tremo tremente. Ó porto onde ancoras,
ó praias cobertas, ó docas, ó furnas!

Eu espero, tu esperas, e assim é que estamos;


Agora sabemos que é a nós que esperamos174.

174
«Agora me esperas…» in Primeiro Livro de Lapinova, [RM, p.163].

185

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Alguns pontos de contacto, como o comum substrato surrealista,
o atormentado sentimento de tensão religiosa, a militância intelectual
nas filas dos promotores de uma renovação da Igreja portuguesa (cfr.
O Tempo e o Modo), fizeram com que a figura de Pedro Tamen fosse
aproximada à de M. S. Lourenço, que se estreia na sua actividade de
polígrafo (poeta, tradutor, estudioso de filosofia e lógica) nos come-
ços da década de 60. Esta afinidade, a nível estético, tem a ver não
só com uma convergência temática, de fundo quase exclusivamente
religiosa, mas também com o tratamento de irreverência e de sarcas-
mo que atravessa a inspiração lírica de M. S. Lourenço. Foi, aliás,
a “paradoxal coexistência” desses dois planos que um crítico como
António Ramos Rosa (1969: 107) detectou desde logo. Nesta linha,
e acentuando o carácter de «ludismo», de «gosto dos contrastes»,
de «paradoxo» e de «excessivo», que subjaz a toda a obra de M.S.
Lourenço, a Fernando Martinho não pareceu muito anómalo incluí-la
naquela «família» de expressão barroca e cristã, de um “barroquis-
mo”, contudo, e na nossa opinião, atingido pela grande lição do Sur-
realismo (Martinho, 1996: 420).
Entre os poetas que se estrearam entre Árvore e Poesia 61, Gastão
Cruz inclui Maria Alberta Menéres no grupo caracterizado por um
moderado antidiscursivismo, em companhia de Cristovam Pavia, Fer-
nando Guimarães, João Rui de Sousa e, como vimos, de Pedro Tamen.
Atravessada, no início, por evidentes alusões cristãs («Crença» em
Intervalo), a produção de Maria Alberta Menéres, que se concentra
na década 1952-1962, apresenta-se formalmente seguindo um padrão
de regularidade sintáctica e métrica que só depois resvala para uma
certa fragmentação da frase, envolvendo-se numa atmosfera elegíaca
e imóvel («Hoje voltámos sobre o nevoeiro/violentos ou exaustos, só
olhando./Nada esquecemos, nada construímos,/ e alguém sobreviveu
à nossa solidão.// Alguém vive dos homens destruídos», [PE, p. 56],
ou «A força da tristeza/é um fruto despido», [PE, p. 130]).
A atenção para os problemas relativos à linguagem e a consequen-
te tentativa de a renovar, típica do aperfeiçoamento estilístico da po-
esia de então, proporciona aos poemas de Maria Alberta Menéres
explícitas referências tanto à função da palavra, quanto à sua relação
com a subjectividade humana. Se, portanto, já no «Prólogo» de In-
tervalo se podia ler: «Ninguém pode saber o que sofremos/ quando
apenas calamos./ Somos o livro que nós próprios lemos,/e desfolha-
mos...», onde a dicibilidade da dor é paradoxalmente garantida pelo

186

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silêncio, a palavra torna-se «imperceptível» (como o homónimo livro
de 1955), a única a possuir um indício de vida:

Quase não há palavras necessárias


Quase nem a palavra imperceptível.
Quando o cego morreu não houve gritos
Nem mesmo o grande grito imperceptível
Que no silêncio enorme se perdeu.
Só silêncios escondidos nas gargantas
Só as ruas fechando as grandes mãos
Pesadas de homens vivos e calados!
Só as ruas negando as soluções
Para os graves remorsos colectivos175.

Palavra que veio com a incerteza («Veio a palavra, o incerto veio»),


palavra que fica aquém de toda a comunicação e comunicabilidade,
aquém de toda a conveniência («Porque falar, se compreendem?/De-
serto é um rio que não tem margem», [PE, p. 60]); palavra, rumor de
fundo, destilada até ao silêncio:

Tenho medo de ti que tens relâmpagos


No caule dos cabelos,
Ó pura tempestade de silêncios!176

Todavia, esta renovação do discurso poético – que iria passar so-


bretudo por um «espessamento metafórico» (Cruz, 1999: 203) – aca-
ba por se identificar com uma específica reactualização barroca, na
expressão de E. M. de Melo e Castro, ligada ao «barroco interior»
ou ao «barroco voltado por dentro». Sem por isso ser preciso redis-
cutir a divisão em três fases propostas pelo crítico em 1961, podemos
partilhar da sua reflexão, quando diz que, desde 1954, isto é, desde
a publicação de Cântico de barro, «o processo imaginístico que fora
linear e imediato, ao nível epidérmico, interioriza-se, eriçando-se e
intricando-se. Cria-se então uma sobrecarga metafórica completa,
que não se manifesta nem perturba a densidade melódica externa do
poema, mas a substancia e sustenta numa ornamentação por dentro,

175
«Quase não há palavras necessárias» in A Palavra imperceptível, [PE, p. 57].
176
«A palavra» in O Robot sensível, [PE, p. 145].

187

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tal como se tratasse de um barroco interior»(Melo e Castro, 1962:
14). Mutuando os termos dessa proposta, admite-se, então, a possibi-
lidade de colocar debaixo da órbita barroca a lírica de Maria Alberta
Menéres, mais pela sua «complexificação substancial», que por uma
«complexificação formal» (Martinho, 1996: 421), de resto, nunca in-
tegralmente negada. De facto, se for possível notar, de uma forma
indiscutivelmente mais acentuada em Água-memória, a exploração
fono-prosódica da rima (cfr. a rima com eco de «O delírio do lírio»),
das assonâncias, da anáfora, da paronomásia:

Morre imprevista morte.


Que minhas mãos cruéis
Te impelem para o norte?

Que ondina mergulhando


nas saliências do mar
descobre o mar chorando? [PE, p. 12]

Tapete mágico
rápido
Este mindo sobre o mundo,
não rolando não parado
tapete mágico
rápido
sobre o desespero e o mundo

onde as árvores
são aves
onde as raízes são nuvens
onde os homens são vorazes
e insaciáveis de lumes
e de rapinas
sem aves. [PE, p. 13]

mas mesmo a construção em espiral de uma composição como


a seguinte: «Ó lúcida inconsciência,/ abelha verde rodando/ minha
cabeça no vento,/ eu espero por ti esperando/ que o sangue em que te
desvendo/ seja o sangue que eu bebi!// Ó lúcida inconsciência/ flor de
deserto e jardins/ flor dos impulsos da terra!/Verde abelha luminosa/

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eu espero por ti esperando teus claros olhos ociosos,/ teus olhos da
cor do mundo/teus olhos súbitos olhos/para a maior solidão!» é, em
grande parte, ao nível de complexidade interior que a sensibilidade
barroca se evidencia na tentativa de traduzir a ambiguidade intrínse-
ca a toda a identidade, a contraditória relação com a própria poesia
e, também, a desproporção do mundo neste pessoano apelo à noite
(«Mãe noite, noite infinita,/no teu mistério me sinto/ criança inco-
mensurável./Mãe noite, noite infinita,/ no teu ventre de silêncio acre-
dita./Sem palavras os meus lábios/ sem gestos as minhas mãos/ sem
falsos sentidos dúbios/meus dedos despedaçados,/ sem lágrimas para
o vento,/ sem rodas rodando em sombra/ no teu círculo violento»,
[PE, p. 15]), ou dizer a coexistência das oposições, quer existenciais
quer semânticas:

Que palavras existem tão serenas


que digam meu declínio luminoso
ou minha opacidade transparente?

Cada instante me prendo me desprendo,


luto comigo e durmo sem a luta,
domino-me e domino sem domínio
meu corpo revoltado indiferente.[PE, p. 66]

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4.3 O Nome das Coisas Antes do Mundo: O Alfabeto Poético
de António Ramos Rosa

alguém vive, alguém escreve


Esse é o ponto de partida, o ponto de chegada.
[...]
A vida.
E, nela, alguém, que escreve.
E o que escreve, o Livro, é a ponte, entre a vida-
lá e o vivendo a vida aqui, em mim: alguém, que
escreve.

O Livro é a vida? Não, o Livro não é a vida. É a


outra vida.

Vicente Franz Cecim177

Sobre o papel fundador desempenhado pela actividade poética (mas


deveríamos dizer cultural, no sentido mais amplo do termo) de António
Ramos Rosa, desde a sua estreia literária (no ano de 1951), em revistas
como Árvore, Cassiopeia, Cadernos do Meia-dia e, depois, em livros
(O Grito Claro é de 1958 e foi depois incluído em Viagem através de
uma Nebulosa de 1960), a crítica concorda unanimemente: depois da
primeira geração neo-realista, depois do surrealismo, a renovação da
poesia portuguesa é desencadeada, ao longo de toda a década, pela pro-
dução simultaneamente poética e crítica de Ramos Rosa, que se destaca
como uma das figuras centrais da passagem entre os anos 50 e anos 60.
Se, em conformidade com a tradição crítica, aceitarmos a definição de
iniciador da auto-reflexão poética, centrada na reavaliação da lingua-
gem e da palavra «o poema, como realidade autónoma, como realidade
que a si mesma se dá a ser» (Rosa, 1962: 42), podemos tentar reposi-

177
Ó Serdespanto, Almada, Íman Edições, [2001], p. 9.

190

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cionar toda a poética (implícita e explícita) rosiana do ponto de vista
de uma moderna alegoria da escrita. Uma grande máquina poetante,
ou mesmo meta-poetante, pela qual não só orficamente todas as coisas
existem para ser escritas, mas também onde a própria escrita aspira a
traçar os seus signos num Livro que já não é apenas o da Natureza de
ascendência barroca, mas sim o espaço onde a página é contígua à vida,
em que utopicamente não existe separação entre palavras e coisas:

A imagem poética cria o seu espaço, anulando a distância da significação


representativa, impondo uma presença original. Palavra e objecto identi-
ficam-se. Nesse espaço todos os encontros são possíveis e todo o possível
se torna real. O universo deixa de ser um conjunto de objectos inertes
reduzidos à sua significação abstracta para se transformar num corpo
vivo, onde a razão perde o pé com as suas categorias (Rosa, 1962: 15).

Todavia, António Ramos Rosa, consciente até ao fundo da im-


possível superação do hiato entre as coisas e as palavras (não é por
acaso que foi ele o tradutor do célebre ensaio foucaultiano), ou antes,
mesmo pelo facto que «o real continua na sua totalidade não identi-
ficado à palavra», elege esta “impossibilidade” de anular a distância
essencial da palavra, como sendo uma verdadeira «condição da pos-
sibilidade da poesia» (Rosa, 1979: 22):

A palavra é a ausência da coisa [...], e esta distância, este vazio da


palavra que abrem a comunicação, estabelecem a relação com o todo,
não o conjunto positivo das coisas, mas o movimento total que nega
cada coisa em particular e assim promove a contínua translação dos
significados que nunca se detêm, se repercutem uns nos outros e mu-
tuamente se anulam para logo se reconstituírem no movimento do
poema (Rosa, 1979: 35).

Neste sentido, o esforço da prática lírica rosiana funda-se, parado-


xal e emblematicamente, na anunciação desta utopia literária e na ten-
tativa de a alcançar. Escrever as coisas é decretar a sua existência, viver
as coisas é dizê-las, pronunciá-las: «A palavra poética, que nos revela
um pouco desse texto em que estamos inseridos, é a palavra que funda
a comunicação da nossa existência, a palavra que nos põe em face do
impossível (a utopia) e pela qual se pode talvez dar um passo no desco-
nhecido» (Rosa, 1979: 53). O livro da escrita moderna que, depois de

191

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Mallarmé, teve de abandonar o grande sonho de ser o reflexo do livro
do mundo, alcança, com Ramos Rosa, uma inquietante sabedoria: a de
já não haver reflexo, ou melhor, a haver, ele é indecifrável: «a fulgu-
rância do Real é inata na pupila, na imaginação, na palavra de Ramos
Rosa. É o seu excesso que o fascina e o destrói» (Lourenço, 1999: 8).
A partir do momento em que a poesia abandonou a certeza e o con-
forto mimético de constituir o espelho da exterioridade e das suas nu-
ances, a única possibilidade que lhe resta não é a da representação, mas
a possibilidade “mais humilde”, a de escrever, a de continuar a escrever
todas as palavras, de procurar a Palavra, «a que mais se prolonga/ ter-
mina e continua/ A que abre um espaço e dança/ a que quebra e é uma/
e só lisa espada// ó palavra que duras/no teu ar e nas pedras/ brilhas só
quando passas/ respiras continuas/ó palavras sem mais».
O ofício de escrever rosiano, no preciso momento em que nomeia
as coisas, atinge a página escrita e não pretende apenas resgatá-las
à existência («Penso numa linguagem desconcertantemente simples,
falsamente transparente, um pouco tosca. Térrea e pétrea. E aí brilha
uma lâmpada, uma pedra, o ar. Uma linguagem de restituição»178),
mas visa, sobretudo, instalar-se naquela «dobra» entre o interior e o
exterior, entre a folha e o universo, entre o verso e o objecto, entre
a mão e o conceito, entre a natureza e o livro179. Como acontece em
muitos poemas, Ramos Rosa atravessa o seu campo de batalha, o seu
texto-universo, a que chama o seu «caminho de palavras»:
Sem dizer fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as
piso – duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que
é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o
que eu sei, já lá está, mas não estão os meus passos e os meus braços.
Por isso caminho, caminho porque há um intervalo entre tudo e eu, e
nesse intervalo, caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então
invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras

178
«Penso numa linguagem...» in Nos seus olhos de silêncio, [RSV, p. 179].
179
Cfr. o exemplo de «Da grande página aberta do teu corpo»: «Da grande página
aberta do teu corpo/ sai um sol verde/ um olhar nu no silêncio de metal/ uma nódoa
no teu peito de água clara// Da grande página aberta/ sai a água de um chão vermelho
e doce/ saem os lábios de laranja beijo a beijo/ o grande sismo do silêncio/ em que
soberba cais vencida flor», ou em «Entre o papel e as árvores»: «Entre o papel e as
árvores, no apoio frontal do ar visível, vazio, vento, vocábulos, breves incoerências, ar
no ar», in Clareiras, [AP, p. 242].

192

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de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho um cami-
nho de palavras.

Caminho um caminho de palavras


(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim

E porque a noite não tem limites


alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe

Mas a noite existe


e a palavra sabe-o180.

Repare-se neste ponto: tal como a palavra tem o poder de inventar


a coisa («E com as palavras de vento e de pedra, invento o vento e
as pedras»), também a enunciação do nome pode não constituir ne-
cessariamente a realidade (pelo menos empírica): «Sem enunciar as
pedras, sei que as piso». E, portanto, é nesta dualidade que consiste a
condição da escrita.
Nesta margem, neste limiar «à flor de papel, à flor da terra»181, a
linguagem poética vive sempre em suspenso entre a possibilidade de
restituir a presença às coisas e de as converter na sua própria ausên-
cia. Pela natureza fluida, permeável desta «zona de passagem», cujos
limites, mais do que fronteira e obstáculo, são a condição da travessia
entre os instrumentos, entre o suporte do escrever e o mundo ou a sua
percepção:

O papel, a mesa, o sol, a pena…


Ao lado, a janela. E nada tenho
E nada sou que escrevo. E nada espero
De quanto espero.

Enquanto escrevo não sou nem mesmo quero


Não escuto nem palavras nem silêncio.

180
«Um caminho de palavras» in Sobre o rosto da terra, [NPAC, p. 185].
181
«Fronte ou limiar» in A Pedra nua, [RSV, p. 229].

193

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Alinho palavras mas ainda não caminho.
Estou a uma mesa pobre sem movimento.

O papel, a mesa, o sol, a pena...


Nada começa, nem à sombra respiro.
Tudo é distinto e claro.

Tudo é certo ou obscuro. Em vão caminho.

Não quero esperar,


não quero navegar num mar fácil de palavras.
Quero caminhar somente com o corpo que sou,
quero, sem querer, ser o próprio sangue,
músculos, língua, braços, pernas, sexo,
a mesma certeza oculta e única, tantas vezes clara,
a mesma força que nos pulsos aflora, tensa,
a mesma noite aberta que a todo o dia estendo,
a mesma alta, elástica dança de um corpo vivo!

Mas agora estou no intervalo em que


toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.
Escrevo para não viver sem espaço,
para que o corpo não morra na sombra fria.

Sou a pobreza ilimitada de uma página.


Sou um campo abandonado. A margem
sem respiração.

Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe


a ciência certa da navegação no espaço,
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,
o corpo pode vencer a fria sombra do dia.

Todas as palavras se iluminam


ao lume certo do teu corpo que se despe,
todas as palavras ficam nuas
na tua sombra ardente182.

182
«O papel, a mesa, o sol, a pena…» in A construção do corpo, [RSV, p. 31].

194

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a lírica de Ramos Rosa aceita, desde o início, uma espécie de per-
verso dualismo, congénito à própria palavra, entre a aspiração de
coincidir com as coisas do mundo e a sua reiterada impossibilidade:

Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam


no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste


a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida183.

A coincidência perfeita do eu lírico alcança-se no «acto de escrever


e sol», no momento único em que o poeta, sem mediação alguma, seja
ela conceptual ou sensorial, conduz a identificação de estar vivo e de
escrever «sol»: aqui, como disse o próprio Ramos Rosa, «o poeta “é”
a sua poesia» (Rosa, 1979: 49). Apenas neste universo (poeticamente
“reduzido” a texto do texto) é “possível” esta impossível coincidência
entre a página e o objecto, entre o verso e o mundo, entre «escrever»
e «sol».
Da mesma maneira, mas no sentido oposto, a poesia pode ficar
aquém do “caminho”, pode não ser capaz de realizar textualmente a
contiguidade escrita/real, mundo/livro: é, então, significativo um po-
ema de Ocupação do Espaço (1963), com o emblemático título «De
Coincidência em Incoincidência», onde a epifania do texto não se
torna numa metonímia da epifania da realidade:

É um quadrado quase perfeito


Em que a luz incide duramente

183
«Estou vivo e escrevo sol» in Estou vivo e escrevo sol, [AO, p. 123].

195

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– uma sombra aguçada e lisa acompanha
o gesto de escrever. Ausência.

Mais exacta, mais viva


a sombra da mão e do lápis
forma um conjunto menos suspeito,
de uma harmonia subjacente.

A coincidência da ponta do lápis


Com a ponta da sombra do lápis
convida a uma coincidência de todos os pontos
da incoincidência vasta em que escrevo.

Ilusão de uma perfeita justiça,


ilusão dum amor recto como o mármore,
tentação dum espelho claro, inflexível.

Não como um espelho,


Mas com a lisura e a tranquilidade do espelho.
Alto ou largo ou baixo, imóvel,
Não para passear ao longo duma estrada,
Mas fragmento de uma turbilhão contido.

Se, em resumo, entre palavra e coisa existe uma distância intrans-


ponível que a utopia da escrita poética rosiana tenta consumir nas
entrelinhas do texto, é preciso reconhecermos como toda a sua lírica
assenta naquele dualismo da palavra:
A palavra sobre o mundo, a palavra sobre a palavra onde o mun-
do se diz e se perde, foram sempre a sua obsessão, fascínio e martírio
indissociáveis. Poesia da reiteração infinita, alguns a encontrarão
monótona ou imóvel, mas esse e o preço da fidelidade à essência
mesma de uma visão poética que tem como horizonte uma Palavra
que, por definição, é, sem fim, o som e o eco de si mesma (Lourenço,
1999: 8).

Um dualismo que, no fim de contas, se espelha no movimento


formal da linguagem que, em Ramos Rosa, já a partir dos finais dos
anos 50, oscila entre posições de uma procura de «despojamento» da
língua, de uma «nudez de certas palavras» e de uma «luxúria e exube-

196

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rância próprios a uma estética barroca» (Costa, 1999a: 77)184. Toda
a série, pois, que poderemos definir como variações em volta da «lin-
guagem necessária» (como na composição homónima: «Minhas pala-
vras, meus saltos/ bruscos, pontiagudos/ para dizer o espaço/ que sub-
jaz sempre novo.// Para dizer o que resta/ ou o que falta de súbito,/o
que nos faz continuar,/água livre»), construída por «palavras áridas,/
fronte deserta,/pulso do sol»:

Ó palavras crestadas, secas como pedras


Palavras ásperas que desenham ossos, pedras, urtigas.
Palavras com nervuras, com veios, palavras que são lascas
de pedra, palavras que não refrescam,
quentes, obscuras como o pêlo dos animais,
deslocadas e nuas, separadas como pedras,
entre espaços, desertas palavras no deserto185.

contrasta com um excesso versificatório, uma redundância lexical


circunscrita a um pequeno grupo de vocábulos elementares (pedra,
sol, silêncio, corpo, água, ar), vocábulos esses que, juntamente com o
jogo paralelístico dos versos, com o gosto pela justaposição oximóri-
ca, com a ponderada construção fono-prosódica, induzem-nos a falar
também, nesta poesia, de barroco, tal como foi modernamente cono-
tado por Severo Sarduy: uma verdadeira «traversía de la repetición»
(Sarduy, 1999: 1227). De resto, ao evidenciar o carácter paradoxal
desta obra: «a de uma poesia que ora se movimenta no sentido de se
abrir a uma expansão vital da palavra poética, ora caminha na busca
de uma contenção ou silenciamento da mesma» (Costa, 1999a: 76), já
alguém tinha distinguido, respectivamente, este duplo movimento de
extensão e concentração, como sendo «órfico» e «hermético». Uma
arte poética que, na construção da sua alegoria artesanal, por um
lado aspira às «palavras mais nuas/ as mais tristes. As palavras mais
pobres/as que vejo/sangrando na sombra e nos meus olhos [...] as pa-
184
A mesma crítica, aborda o «neo-barroco» de Ramos Rosa através de um es-
quema de influências mais ou menos explícitas (desde a geração de 27 aos latino-ame-
ricanos Lezama Lima, Sarduy). As influências destes últimos poderia advertir-se na
poesia do português, sobretudo nos caracteres barrocos de uma análoga nostalgia pelo
paraíso perdido, pela carnavalização da escrita, com base citacional, pela abertura e
pela intertextualidade (Costa, 1999b: 312-322).
185
«Esplendor calcinado» in A Construção do corpo, [RSV, p. 15].

197

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lavras nuas que o silêncio veste», a um grau zero de «palavras duras,
rasas», até ao silêncio do seu significante e do seu significado, às pala-
vras absolutas, fora do discurso e da história; por outro, desfiando a
mesma tautologia, trava uma luta do excesso para dominar, nos não-
limites da página, tudo quanto ficou por escrever, tudo o que sobrou,
porque – como durante o tempo das ditaduras – mesmo quando o
poeta é obrigado a calar-se e o canto fica irreconhecível, «continuam
também a existir/outras coisas que dão matéria para poemas»186. Fi-
guras da concentração versus figuras da extensão ou de «êxtase ver-
bal de cariz neo-barroco» a que a procura de uma impossível síntese
poética obriga, já não por via metaforae, mas por uma inteira série de
recursos formais de clara matiz barroca:

repetições, paralelismos (mais ou menos evidentes) e séries de sínteses


de contrários, formulados em imagens sensoriais imediatas que pro-
vêm de, ou provocam, emoções visuais de luz e sombra, gosto, tacto,
olfacto, som e silêncio, todas convergindo para percepções complexas,
por vezes até sinestéticas, do corpo, da terra, do espaço, do cosmos.
São sucessivas e intermináveis sínteses que se acumulam sem se destru-
írem, antes potencializando-se reciprocamente, e nos vão oferecendo
sempre novas perspectivas para sentir e recriar o espaço que elas pró-
prias criam e definem: o espaço de um homem que produz a sua fala
escrevendo-a: entre a luz e a sombra; entre o silêncio e o grito; entre o
corpo e a ausência; entre o eu e os objectos; entre o rigor e o excesso
(Melo e Castro, 1990: 82).

A reivindicação constante do poeta de ser «um trabalhador pobre/


que escreve palavras pobres quase nulas», todavia, não pode senão
traduzir-se numa escolha forçada de ambiguidade: o beco sem saída
da redução das palavras à pobreza tem de passar pelo paradoxo de
uma «aridez fecunda», que estimule a obsessiva reiteração da escrita,
da «poiesis» («Com sílabas se fazem versos»), convocando muitos
procedimentos estilísticos privilegiados pelo surrealismo, como a enu-
meração caótica, o imaginário onírico, certos tiques de automatismos
no verso, mas, sobretudo, uma carga expressiva de tipo barroco, com
que se evita o desgaste da matéria poética. Daí decorre que a lírica ro-

186
«Telegrama sem classificação especial», Viagem através duma nebulosa, [NPAC,
p. 49].

198

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siana, nesta direcção, prefira o gosto pelo antitético na construção de
imagens por contraste, já visível no poema inicial de Viagem através
duma Nebulosa, «O Grito Claro»:

De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e controlada
nasce o grito claro [NPAC, p.57];

ou sustente o ritmo através de repetições anafóricas e evocativas,


através de uma carregada adjectivação:

Sabor, sabor oculto,


submerso,
sabor adormecido, ó rosas, ó antes primaveras,
sabor só abruptamente surto
na queda do sono, no fulgor dum relâmpago,
surto, submerso,
ó sabor, antes da consciência, antes de tudo
ó sabor só nascido sobre a paz última de tudo para além de tudo
sabor da terra ainda antes dos olhos,
sabor a nascer, sabor-desejo, antes do beijo, sabor do beijo,
sabor mais lento, mais fundo, mais de dentro,
sabor a marulhar, cálido, denso, como a cor,
sabor de estar, sabor de ser 187;

ou ainda se deixe seduzir por contrapontos e por circunvalações


da frase, à maneira de Pessoa ortónimo “conceptista”, onde apenas a
«Passagem» (como o título do poema seguinte, em Voz Inicial) garan-
te um indício de identidade:

187
«O Único Sabor» in Voz Inicial, [NPAC, p. 53].

199

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É onde escuto agora a própria casa.
Sou eu que escrevo este poema.
Já onde estou agora nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
Isto que sou agora mesmo esperando.

É onde eu pouso a mão na terra calma


Ouvindo quantos anos já vivi,
Mas não aqui nem além, agora só
Num tempo em que não sou mais que este estar
Passando sem passar neste deserto.

É onde agora ninguém me vem chamar


E uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
Ou algo em mim passou quando o final chegar
Deste sem fim que escuto e sou no seu passar. [NPAC, p. 147]

De qualquer modo, dentro da vertente “excessiva” da sua escrita,


por tudo o que foi até agora dito, à particular recuperação barroca é
passível de se atribuir a vontade de meta-textualizar a sua lírica, de
a encenar através de uma verdadeira “teórica do fazer”, através de
uma maneira antiga de revelar o processo material da própria arte
e da própria técnica como uma espécie de «microfísica da mão»188.
Dizer e re-dizer os mecanismos da própria escrita, ceder à tentação
da acumulação semântica sempre inacabada, reescrever o processo
no acto mesmo de o acabar, sempre igual e sempre diferente, entre a
inefabilidade do «não sei que» e a possibilidade do “novo” («já disse
tantas vezes o que disse/ sem dizer o que agora não sei se vou dizer»),
desapertar e complicar os nós do texto, metamorfosear o corpo com o
texto (e viceversa), recorrer à sinestesia dos sentidos para os traduzir
no fluxo prosódico dos versos:

188
A pesquisa acerca dos mecanismos da criação e da comunicação, subjacentes
em todo o acto poético, com o relativo estudo sobre a materialidade da escrita, da
caligrafia, da leitura, da iconografia, torna-se, como veremos, uma das vertentes fun-
damentais da reflexão da Vanguarda Experimental e nomeadamente de Ana Hatherly.
É sabido que o próprio Ramos Rosa participou no primeiro (1964) dos dois números
dos Cadernos da Poesia Experimental.

200

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Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escravo cavo e escavo na cave deserta página


atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
uma pedra
busco no branco um nome de um grito
o grito de um nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo a corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com os furos dos punhos nas pedras
[...]
Que tenho eu para dizer mais do que isto
Sempre isto desta maneira ou doutra
Que procuro senão falar
Desta busca vã
De uma espaço em que respira
A boca de mil bocas
Do corpo único no abismo branco

Sou um trabalhador pobre


Nesta mina branca
Onde todas as palavras estão ressequidas

201

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Pelo ardor do deserto
Pelo frio do abismo total189

Antes talvez de Herberto Helder e Ruy Belo (e depois de Pessoa)


a poesia de António Ramos Rosa marca o grande resgate da palavra
através de uma alegoria da escrita que toda a obra do autor de Poema
dum funcionário cansado representa. Este Ramos Rosa barroco, na
nossa perspectiva, foi quem, durante anos, foi como que tiranizado
por uma vontade enciclopédica do avesso: investigador incansável da
palavra, deslumbrado pelo seu poder e pelo seu irredutível sentido.
Ramos Rosa e as palavras, coleccionador em verso de todas as pa-
lavras, aspiração ao necessário através da multiplicidade da escrita:
poesia da Palavra, da nostalgia da possibilidade de inocência que esta
deveria ainda encerrar («soletro velhas palavras generosas/ Flor rapa-
riga amigo menino/ irmão beijo namorada/ mãe estrela música»); de
poucas palavras se poderia servir, das mesmas, das de sempre, ainda
que pronunciadas sempre de maneira diversa (onde o horror repeti-
tionis aparece apenas como espectro formal), procurando até ao fim
definições fugidias, cujo segredo o fascina e o humilha. Dizer e redi-
zer, coleccionar o multíplice para inspeccionar o «uno», aspirar ao
centro da palavra sabendo que este (como no livro homónimo) reside
na distância. A arte da palavra, a arte improvável de dizer em verso
o mundo, mesmo o mais ínfimo, o mais simples, poesia a-temporal e
a-espacial e, por isso, utópica, precário abrigo perante o grande mar
do ser; a lírica de Ramos Rosa alegoriza a escrita do presente contra
tudo aquilo que a esse presente gostaria de roubar: impetuosa e deli-
cada, prolixa e plana, musical e militante, imaginativa sem ter de se
abandonar à imaginação, realista sem se deixar dominar pelo real,
etérea e inefável e, contudo, seca e rasteira, poesia intelectual sem des-
cair na cerebralidade, poesia do corpo, sem se reduzir à representação
sensorial, poesia do irreduzível e poesia poetante, poesia para além
da chegada, do olhar provisório de que se compõem todas as rotas
(mesmo poéticas) antes de se tornarem nisso mesmo.

189
«Daqui deste deserto em que persisto», in A Nuvem sobre a página, [AP,
pp.160-162].

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Quinto Capítulo: Uma Vanguarda Barroca

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5.1 Poesia Experimental como Vanguarda Neobarroca: Praxis
e Teoria Estética da Po.Ex.

Eu sou portuguesa e o meu estilo é barroco.

Ana Hatherly190

O que se seguirá não será uma história da vanguarda experimen-


tal em Portugal que, aliás, já foi realizada quer em termos de auto-
historicização (Hatherly e Melo e Castro, 1981), quer em termos de
sistematização crítica e de contextualização nacional de uma prática
transnacional (Reis, 1998). O que nos propomos aqui é investigar o
funcionamento da ideia de Barroco enquanto conceito simultanea-
mente histórico e estilístico, na poética da Vanguarda Experimental e
das suas – diga-se desde já – implicações teóricas, na maioria dos ca-
sos ligeiramente diferidas no tempo. Tentaremos, enfim, ao examinar
diversos aspectos, traçar a incidência conceptual que a aceitação da
(mais recente) definição terminológica de «neobarroco» tem tido na
releitura e no repensar da experiência vanguardista.
Antes, porém, de nos encaminharmos para este estudo, sempre
suspenso entre auto-reflexão e processo poético, será conveniente es-
clarecer, ainda que de passagem, um ponto fundamental, lembrando
o que foi dito no capítulo anterior: se é verdade que a produção de
alguns poetas, que viriam a ser protagonistas da poesia experimental,
pertence a um período anterior à sua aparição, como no evidente caso
de E. M. de Melo e Castro (que se estreou em 1952), mas também de
Ana Hatherly, Liberto Cruz e Salette Tavares, é igualmente verdade
que, também nessa produção, a crítica – talvez por uma espécie de
projecção retrospectiva – acabou por ver características «barroqui-
zantes». Assim, e na linha de Fernando Martinho, é possível atribuir

190
«Texto para a génese do eros frenético» in Anagramático, [CI,
p. 176]

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tanto a Melo e Castro como a Liberto Cruz uma certa recuperação
barroca através do filtro «espanhol», não só de poetas da generación,
como acontece, por exemplo, em Ignorância da alma, onde se glosam
versos de García Lorca («Bajo el agua/ siguen las palabras. E as pala-
vras seguirão até que água e palavras/ sejam a mesma substância/ago-
nia da terra/distância/ desamor»), como também de poetas contem-
porâneos de língua castelhana, mais orientados para um metaforismo
da expressão (Juana de Ibarbourou, Manuel Pacheco, Ángel Crespo,
Gabriel Celaya e outros). Poder-se-ia igualmente referir que o próprio
termo “barroco”, com valor adjectival, já se encontrava citado numa
composição de Melo e Castro datada de 1956: «Perante mim próprio
tem que ser justificado: a retórica, a estática, o anarquismo, o barroco
da expressão, o ornamento indispensável, a loucura sequer do movi-
mento. Depois de tudo calculado, montado, verificado e posto a tra-
balhar, só falta a destruição. E a destruição vem certíssima, poderosa
para além de mim. Mas foi preciso prever tudo, absolutamente tudo,
para que o imprevisto chegasse a quebrar o barroco dos gestos, os or-
namentos científicos dos gestos, os significados escritos dos gestos, os
gestos, os gestos, os gestos». Mas este mesmo termo poderá funcionar
como atributo da própria poesia nas primeiras obras de Liberto Cruz,
o da explícita inspiração religiosa191: «Poema Barroco» é de 1959, que
testemunha também o facto de a exorcização da palavra, já nos finais
da década, se ir atenuando: «Do fundo mais fundo das raízes/ Que
a memória esmagou nos séculos / E o silêncio esqueceu nos mares,
/ Procuramos ainda / A primeira taça, o essencial fluído, /Certos do
que os nossos braços, / – longos braços, ciosos de experiência – / hão-
de arrancar a isenta seiva, / o diáfano e inefável húmus, /a insegura e
invisível semente, / e fazer de todos os arco-íris / caminho de um só
caminho, / eterno canto de canto eterno, / inesgotável fonte de todos
os corpos» (Névoa ou sintaxe, p. 46).
Quanto a Ana Hatherly e a Salette Tavares, acerca dos três livros
da primeira e do único da segunda, publicados ainda nos anos 50, a
análise de Fernando Martinho visa evidenciar na poetisa de Um Ritmo
191
Em Momento (1956), tal como em Névoa ou Sintaxe (1959), uma das vias
privilegiadas da sua poesia passa pela invocação divina, quase mística, de maneira a
que se possa falar, pedindo de empréstimo o título, de «Canto Vertical». Não é por
acaso, então, que encontramos no livro uma citação em epígrafe dos versos de Jorge
de Lima em «Poema Maldito»: «Senhor, por que me ensinastes/ a perguntar?», Névoa
ou Sintaxe, p.14.

206

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Perdido o seu carácter engenhoso, o cultismo e a temática da ilusão e
da aparência (sobretudo em As Aparências (1959), uma espécie de re-
escrita carolliana da figura da «passagem» do outro lado do espelho),
enquanto na autora de Espelho Cego (1957) – e repare-se, pelo menos,
no tema em comum do espelho (Baltrušaitis, 1978) –, a veia barroqui-
zante é mais visível na «profusão imagística e metafórica»(Martinho,
1996: 449). Se certos exercícios de engenho eram já detectáveis no pri-
meiro livro de Ana Hatherly (1958), ainda que com algumas ingénuas
contorções do verso («Isso é que é voar?/Não.// Voar é libertar-se/[…]
É ter a alma separada de toda a existência,/ É não viver senão em não-
vivência.// Voar é humano,/ É transitório, momentâneo...Aquele que
voa tem de poisar em algum lugar: /Isso é partir/ e não voltar»192), a
duplicidade, a indeterminação das Aparências, em que o sujeito circula
sem distinguir os espaços e os tempos de ida e vinda, remetem para
uma espessura cultista da própria poesia («O círculo é a forma elei-
ta:/ É ovo, é zero,/É ciclo, é ciência./ Nele se inclui todo o mistério/ E
toda a sapiência.// É o que está feito, Perfeito e determinado,/É o que
principia/ No que está acabado»193). O reflexo, o espelho, a refracção,
a imagem, o seu “duplo”, a passagem biunívoca do onírico para o
real (e vice versa), do sensitivo para o conceptual, entre o «além» e o
«aquém» da superfície especular, são figuras desta Alice, a um tempo,
moderna e barroca, suspensa no labirinto e também numa dicção onde
ecoa a influência de Pessoa ipse:

A viagem que o meu ser empreende


Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende. [P, p. 27]

Contínua é a minha partida


Para o regresso.
O espelho que eu cruzo
Tendo dupla face
Nunca me indica
Qual lado ultrapasse.
Se só uma miragem

192
«Que é voar», in Um Ritmo Perdido, [P, p.24].
193
«A Corrida em Círculos», in As Aparências, [P, p. 27].

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Nele se encontra
Não sei se a ele
Ou só a minha imagem
Que o meu ser defronta...[P, p. 28]

Em A dama e o cavaleiro, a estrutura antitética em que assenta


uma composição como a seguinte, onde a série oximórica só nos últi-
mos versos se resolve em forma de quiasmo, assinala em Ana Hather-
ly aquele gosto precoce pelo jogo formal dos paralelismos, da conden-
sação rítmica, pelo cuidado “construtivista” do texto poético:

A senda que eu sigo


É a meta que atinjo
Partindo, regresso
E regresso, avançando.
Temendo é que eu venço.

Chorando, me alegro
E sofrendo, embeleço
Entendendo a ordem
Oculta e evidente:
Ou amo e morro
Ou vivo e não amo.194

A aproximação da poesia de Salette Tavares ao barroco, defendido


logo nos anos 60 (Melo e Castro, 1981)195, deve ser feita, sobretudo
«pela profusão imagística e metafórica, para além do comprazimen-
to que revela nos jogos versificatórios e de significantes» (Martinho,
1996: 449); e tudo isso decorre da extrema atenção para com a pa-
lavra, enquanto signo e som, que parece prevalecer sobre o sentido
nestes versos de Espelho Cego. Leia-se, por exemplo, este texto onde
a composição gráfica adquire já importância na correspondência rít-
mica e onde o aspecto irónico (presente in limine no «Soneto Pateta

194
«O Regresso, II» in A dama e o cavaleiro, [P, p. 38].
195
Como simples informação, e por uma daquelas correspondências “casuais” no
intertexto neobarroco, podemos recordar que Gillo Dorfles organizou o volume de
versos de Salette Tavares publicado em Italia, Lex icon, 1977, a cura di Gillo Dorfles,
Trad. it A. Aletti.

208

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I»: «Quem coroou a palavra de corneta/ quem pôs a tormenta na
caneta/ quem disse poeta?// Lágrima pineta/ faz da jumenta cinzenta//
esta violeta», [OP, p. 23]) revela, desde logo, a sua função de demisti-
ficador de todas as convenções intrínsecas à linguagem:

Entorna
deita
verte
na minha orelha uma centelha vermelha.

Palavra
vinho
brasa
procissão,
livre, serena invasão
sob as nossas mãos em asa. [OP, p. 26]

Contudo, o jogo aliterativo, a procura da surpresa fonética, a con-


cessão ao oxímoro – como acontece nesta quadra «Em cada cada o
cada de uma queda/ cintila fada brilho luminoso/ presença ausente luz
que embebeda/ partida ente do meu corpo gozo» ou em «Frio aquecido
no regaço de uma estrada/ onde as flores esperam um sentido/ do meu
sangue exuberante e perfumado» – misturam-se numa criativa rede de
imagens originais (não deixando de revelar uma influência surrealista) e
de metáforas ousadas ou muito ostensivas nas suas reiterações:

Dias, semanas, meses, anos sem demoras


Matemática máquina abraçada às horas
Sem minutos nem segundos, só o que falta
Para chegar e marcar o ponto sem falta.
[...]
E na sombra as nossas mãos se vão unindo
No cântico surdo duma certeza sonhada
no encontro brutal das solidões mergulhadas
neste universo de gente multidão
turbilhão
dos todos sem nenhuns
roda
em sede de Unidade.

209

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Cada pequeno sinal é o assomo da Realidade
nossa, connosco, para nós196.

Aqui me encontrarás
dormindo-me silêncio
no fumo que os telhados
perfumam de pinheiro,
aqui me encontrarás
e a lua no meu ombro
vermelha do ardor
meu sangue companheiro.
Eco que eu sou
na morte de uma era
aninham os meus braços
outonos de fulgores
e os pássaro da noite
em seus olhos de espera
escutam o arfar
do perfume das cores. [OP, pp. 58-59]

Sabe-se que, juntamente à actividade destes quatro poetas já ci-


tados, outros nomes passaram pelo experimentalismo: houve quem
tenha tido uma fugaz e, contudo, significativa presença (como Her-
berto Helder), quem tenha embarcado em tal demanda apenas como
experimentador de vias alternativas da poesia e depois, uma vez con-
sumidas e rapidamente esgotadas essas vias, retomado diferentes ca-
minhos (António Ramos Rosa), quem tenha desempenhado o papel
de activista e divulgador (António Aragão e José Alberto Marques),
quem, enfim, tenha sido “recrutado para a causa” mais tarde, como
Alberto Pimenta, Abílio José dos Santos e Silvestre Pestana, represen-
tando da poesia experimental a assim chamada “segunda geração”,
que a prolongou pelos anos 70 e 80. Todavia, para continuar a nos-
sa “história”, cabe aos «pioneiros» E.M. de Melo e Castro e Ana
Hatherly – que, em conformidade com a retórica vanguardista, nun-
ca deixaram de avultar o seu papel de antecessores ou, de qualquer
forma, de introdutores das primeiras manifestações experimentais (e

196
«Manada dos espaços que circundais o mundo», in Espelho Cego, [OP, pp.
47-49].

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mais concretamente concretistas197) em Portugal – a mais circunstan-
ciada reflexão teórica em volta da possibilidade de espelhar a sua
prática poética numa tradição que, no preciso momento em que a
reivindicavam para si próprios, contribuía também para a sua rein-
venção moderna. Por outras palavras, o Barroco serviu, nas palavras
de Charpentrat, de «álibi», um álibi permanentemente por inventar,
em relação às próprias posições estéticas, quando não um álibi por
construir, na ausência (até então) de documentos e provas históricas.
A pesquisa erudita, momento posterior à prática poética, nascida do
interesse pelo «vazio de testemunhos» e na sua paradoxal recusa, por
um lado, legitimou a poesia experimental e, por outro, ao tentar des-
trinçar aspectos (visuais, ideogramáticos, “concretos”) de uma cul-
tura renegada, pôde tomar a cargo uma reabilitação não só estética,
mas também política do Barroco.
Ao longo do nosso estudo, foi possível referir o valor que a ideia
de Barroco teve para a Po.Ex., sobretudo quando se discutiram as
variações ideológicas que o conceito (com o qual se pretendia abran-
ger toda a cultura do século XVII) foi conhecendo durante o século
XX. Nesta ocasião falou-se mesmo em «inversão ideológica» do bar-
roco (na acepção de Benito Pelegrin), relativamente à interpretação
proporcionada por Melo e Castro acerca do duplo processo a que
se submete o barroco, isto é, de descontextualização histórica versus
recontextualização na segunda metade do século XX. Mas, a proble-
mática conceptualização ideológica e política constitui apenas uma
das facetas da questão teórica do barroco e, com certeza, ulterior à
re-apropriação estética. O Barroco – enquanto prática transgressiva –
acabou por se tornar, nas intenções de Melo e Castro, numa tentativa
de libertação de uma modernidade “outra”, subterrânea, opositora,

197
«É sempre difícil dizer concretamente, em poucas palavras, “foi por esta razão
ou foi por este caminho”; as coisas nunca são tão simples como isso. A verdade é que já
nos anos 50 me interessava bastante pelos problemas da Poesia Experimental e escrevi
mesmo um artigo publicado em Lisboa em 1959, sobre a Poesia Concreta», escreve
Ana Hatherly, referenciando o seu artigo saído no Diário de Notícias com o título «O
idêntico inverso ou o lirismo ultra-romântico e a poesia concreta», onde tinha apare-
cido, da mesma autora, o primeiro texto de poesia declaradamente concreto; cfr. com a
primeira citação e o artigo, (Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro, 1981: 19 e 91-94).
Cfr. também, acerca dos antecessores “concretos” na literatura portuguesa, (Martinho,
1996: 446), onde é lembrada a proposta antecipadora de um texto com características
concreto-visuais de Jaime Salazar Sampaio, incluído em Poemas Propostos (1954).

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quanto mais no Portugal salazarista: um verdadeiro dispositivo capaz
de explorar toda a carga explosiva que se poderá definir «retorno do
reprimido» (Orlando, 1997). Como se pode constatar, à aceitação
de uma afinidade estética entre experimentalistas e barrocos, Melo
e Castro opôs a sua mais radical recusa ao declarar, também, uma
afinidade ideológica (ver capítulo 2): Barroco, portanto, como cul-
tura “dirigida” da Contra-reforma versus “barroco experimental”,
como resistência ao regime fascista. A sua moderna aplicação estética
tornou-se na única condição capaz de justificar uma inversa projecção
política na realidade social e cultural do Portugal oprimido.
Limitando-nos, por enquanto, ao âmbito estético, tentemos deli-
near, em forma de cronologia crítica, as disseminações de discursos
teóricos que os vários representantes da Po.Ex. foram propondo acer-
ca da possibilidade de recuperação do Barroco, ao longo dos anos.
Estes discursos, que – é bom dizê-lo – se caracterizam por uma ver-
dadeira estratégia programática de acção, em relação a outras inter-
venções do «Retorno do Barroco» literário dos anos 60, ficam, con-
tudo, inevitavelmente condicionados por contradições, redundâncias,
re-pensamentos.
Os próprios experimentalistas, ao referirem-se aos seus interesses
pela cultura barroca, costumam fazer coincidir as primeiras manifes-
tações desse mesmo interesse com o início da actividade editorial de
grupo198, isto é, com a presença de textos de artistas experimentais e
de textos de autores como Camões ou Quirinus Kuhlmann, represen-
tantes, respectivamente, do Maneirismo Português e do Barroco ale-
mão, no primeiro número da revista Cadernos de Poesia Experimen-

198
«A verificação da coincidência de vários processos criativos entre algumas cria-
ções poéticas barrocas e as actuais, foi o que levou os Experimentalistas mais conscien-
tes a defender os vilipendiados poetas barrocos (autores de textos-visuais e não) e a
adoptarem, como singular signo da sua ruptura, a defesa da tradição maneirista e bar-
roca. No número I da Revista Poesia Experimental, de 1964, ao lado de alguns poetas
ilustrativos do mais radical vanguardismo, estão Felix Krull [na verdade, trata-se de
Quirinus Kuhlmann] e Luiz Vaz de Camões, que haveria de ser um dos mestres mais
amados e glosados por Melo e Castro e por mim própria», mas também «Desde o
início, até, do Concretismo e da Arte Experimental, os Experimentalistas portugueses
estavam interessados na tradição maneirista e barroca. No primeiro número da Poesia
Experimental, sua Revista-Manifesto, ao lado dos vanguardistas de várias proveniên-
cias, havia obras do poeta barroco alemão Quirinus Kuhlman e Luís de Camões, que
viria a ser uma espécie de santo padroeiro de Melo e Castro e meu, e não só» (Hatherly,
1995: 13 e 198).

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tal (1964). Porém, como vimos no segundo capítulo, toda a discussão
em volta do Barroco e das suas implicações modernas como Neo-
barroco (retrospectivamente situável na primeira metade da década
de 50), pela sua natureza fluida (a “dobra” que atravessa os discursos
teóricos na América Latina e na Europa), pode restituir, de maneira
mais extensa, a dimensão e o contexto cultural em que, também em
Portugal, surgiu uma reflexão mais aprofundada sobre a relação entre
tradição e modernidade barroca. Por um lado, a acção de filtragem
realizada pelo grupo concretista de São Paulo, relativamente aos poe-
tas experimentais portugueses, nomeadamente através das contribui-
ções de Haroldo de Campos e Affonso Ávila; e, por outro, o impulso
conceptual dado nos inícios dos anos 60 pela Obra Aberta (e pelos
seus antecedentes) – que muita influência terá tido sobre os críticos
portugueses (em primeiro lugar, Melo e Castro) –, e da concepção de
abertura e dinamismo barroco como «precedente inconsciente» da
poética da obra aberta contemporânea.
Não é por acaso que remonta a 1962 (ano de publicação do livro,
embora Melo e Castro tivesse tido a possibilidade de citar os artigos
franceses de Eco) um depoimento do próprio crítico-poeta, feito por
ocasião do lançamento do seu primeiro livro “concretista” Ideogra-
mas, onde estabelecia a aproximação entre a poesia portuguesa con-
temporânea e a poesia barroca, em nome dos valores de abertura e de
realização de uma renovável pluralidade de significados:

poderemos sugerir algumas aproximações entre o século dezassete e a


actual poesia portuguesa [...]. Basta para isso considerarmos o valor
da imagem poética no barroco e na poesia actual. Ora vejamos: no
barroco, as imagens não são só ornamentais e não têm um apoio so-
bre um esqueleto formal (tomando esta palavra no sentido de forma,
de molde, vasilha), mas pelo contrário, das suas intersecções resulta
um jogo de sentidos e subsentidos, cintilações e reflexos, que são por
assim dizer o próprio corpo do poema. Na poesia actual a imagem é
autónoma, é demiúrgica, basta-se a si própria, propõe-se num espaço
aberto de plurissignificações válidas. A imagem é autónoma, e desco-
bre, revela, uma realidade sempre nova, porque se gera sem objecto,
como por exemplo o «espelho cego» de Salette Tavares. Na Poesia
Barroca as imagens sobrecarregam-se a si próprias, criando um dina-
mismo em espiral. Na poesia actual as imagens criam-se num círculo
aberto, de possibilidades significativas infinitas. É que os poetas ac-

213

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tuais, depois das experiências surrealistas, sabem que não basta só
copiar ou exprimir a realidade, e entendem que a função poética é
antes revelar mais realidade, onde aparentemente a não há, é revelar
relações subtis e inesperadas entre coisas, seres, situações, etc (Hather-
ly e Melo e Castro, 1981: 98).

Ao contrário do que acontecia aqui, num outro texto de António


Aragão (com mais alguns anos), evocava-se explicitamente a presença
tutelar não só de Umberto Eco, mas também do «primeiro» estrutura-
lismo, de Abraham Moles e do princípio de reciprocidade entre artista
e fruidor, característico de toda a arte contemporânea:

À ordem lógica contrapõe-se a desordem da imaginação. A euritmia


opõe-se à simetria. A «forma aberta» barroca substitui o centralismo
clássico. O finito da comunicação é abafado pelo infinito plurivalente
das formas (Hatherly e Melo e Castro, 1981: 52).

Numa primeira fase, portanto, a teorização à volta da recupera-


ção do barroco passa, geralmente, pela mediação dos conceitos e das
propostas da semiótica, da teoria da informação, do estruturalismo:
tirados dos estudos de Umberto Eco, de Abraham Moles, de William
Empson, de Pierce, os caracteres de ambiguidade, de abertura, de di-
namismo das formas, o princípio de entropia informacional, reconhe-
cíveis na obra contemporânea, permitiam não só uma nova leitura
reabilitante da tradição barroca, mas também a possibilidade dos
experimentalistas descobrirem na poesia do século XVII interesses
surpreendentes e “ilustres e todavia ignorados” predecessores. Melo e
Castro em 1968, para além das referências a uma espécie de barroco
eterno, apontou para esta direcção a tentativa de definir “barroco”
como ideia tipológica, por oposição àquela “clássica”.

A recusa de modelos estáticos é uma dimensão da arte da vanguarda


e por aqui se pode fazer uma aproximação com a dinâmica barroca.
É que o barroco tem um significado de abertura e dinamização e des-
prende-se de um período histórico definido. Se procurarmos, cuidado-
samente, encontraremos características de actividade de tipo barroco
em todos os períodos da História em que o equilíbrio das formas e
das fórmulas perfeitas e o estaticismo das certezas dão lugar ao dina-
mismo das dúvidas e das perguntas, ao plurissignificado das formas, à

214

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crescente quantidade de informação contida nos sinais, à ambiguidade
viva dos símbolos, ao espaço sensível das hipóteses, às formas dinami-
zadas na sua própria ascensão e queda, ao ornamento estruturalmente
funcional, à luz que potencializa os volumes, à sombra que define ou
dilui gestalticamente o fundo e a figura, às palavras em movimento
que inventam as ideias, às metáforas e aos objectos em diálogo de
informação mútua, à redução e rigor matemático do aleatório, contra
os cânones rígidos da beleza.
É por tudo isto que é preciso estudar e compreender o Barroco, não como
mero período histórico mas sim como ideia mestra oposta à ideia de
“clássico”, definindo um dos dois modos de o homem estar no Mundo,
viver, criar e comunicar (Hatherly e Melo e Castro, 1981: 163-164).

A partir do momento em que, a estas influências, se juntaram as


contribuições brasileiras de Haroldo de Campos, das suas propostas
pioneiras sobre a «obra neobarroca», segundo o princípio da plagio-
tropia199, as análises sobre o «lúdico» e a expressão barroca e moder-
na em Affonso Ávila200, as intuições iniciais de Melo e Castro e de Ana
Hatherly enriqueceram-se com toda uma gama de instrumentos que
possibilitavam alargar o horizonte de pesquisa sobre o barroco.
Por tudo isto, então, pela tomada de consciência dos limites de
todo o esquematismo, é que talvez possamos atribuir ao resgate es-
tético do barroco, na prática experimental, a acção crítica de, pelo
menos, três grandes linhas de força: a) a conceptualização da “aber-
tura” de Eco e da ambiguidade de Empson, associadas às experiências
de textualidade combinatória; b) a investigação sobre o «lúdico» e a
festa barroca em Ávila; c) e, sobretudo, a redescoberta da visualidade
e da materialidade do texto através da “invenção” de uma «grande

199
Cfr. Gomes, 1993 para uma aplicação deste princípio à Po.Ex., relacionada res-
pectivamente com os Cancioneiros medievais e a produção portuguesa do Maneirismo
(Camões) e Barroco (textos visuais).
200
«Há, todavia, que se assinalar, para se entender melhor uma tal novação de
gôsto estético, que a atração exercida pelo barroco sôbre a inteligência e a sensibilidade
modernas decorre, sem dúvida, das similitudes e afinidades que aproximam duas épo-
cas cronològicamente distanciadas entre si, dois instantes porém da civilização ociden-
tal que colocam em crise os mesmos valores, dois homens que experimentam com isso
uma análoga perplexidade existencial, duas artes que repercutem em sua linguagem
uma bem parecida pressão de historicidade e uma idêntica instabilidade das formas»,
in «Atualidade e Permanência do Barroco» (Ávila, 1971: 11).

215

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família concretista», reconhecida na tradição (não só ocidental) pelos
irmãos Augusto e Haroldo de Campos e por Décio Pignatari.
Passemos, agora, à análise de como estas três grandes linhas “reca-
em” na poesia experimental e de como estas interagem nos exemplos
(extraídos sobretudo da produção de Melo e Castro e Ana Hatherly)
que escolhemos estudar, à luz da seguinte perspectiva: iluminar o dispo-
sitivo operatório do barroco. Relativamente ao primeiro ponto, tanto a
presença das formas e da indeterminação das poéticas abertas (tal como
foram descritas por Eco), quanto as infinitas potencialidades semânti-
cas intrínsecas ao texto em si e à sua fruição/leitura201 são detectáveis
na própria prática de muitos experimentalistas. Se, de facto, por um
lado, a estética contemporânea pode entender a “abertura” como um
sinal característico, quer das poéticas de há quatrocentos anos (as poé-
ticas do engenho, da maravilha, do witz), quer das que nos estão mais
próximas (o Simbolismo, por exemplo), apesar de todas elas terem em
comum a falta de consciência crítica da função de “abertura”; por ou-
tro lado, essas mesmas poéticas contemporâneas (como no caso de Ana
Hatherly ou de Melo e Castro) insistem em tornar o próprio «fazer» um
“fazer aberto”. O que distingue o artista de hoje é o facto de, mais do
que aceitar a “abertura”, ter consciência dela enquanto verdadeiro pro-
grama operativo, explorando até ao fim as suas possibilidades constru-
tivas e combinatórias. Na poética de Ana Hatherly (de quem se citará
um poema que se poderia definir, muito significativamente, como o seu
poema-manifesto) o “poeta-máquina” adquire a «consciência dos me-
canismos de criação e da comunicação, que se procura atingir através
do acto poético», no momento em que «está submetida às regras que o
poeta a si próprio impõe e que são as normas do jogo que ele executa e
persegue com ideias, palavras e actos»202. Este é, ao mesmo tempo, um
momento privilegiado para flirtar com o leitor e com a possibilidade
(única) de colaboração interpretativa, para que, apesar de tudo, a inter-

201
A própria natureza de indeterminação e de ambiguidade apela para um fruidor,
o qual, diga-se de passagem, é sempre diferente, para que ajude o autor a “fazer” a
obra. A obra, como nos ensinou Eco, procura o seu fruidor e os seus colaboradores:
o significado da “obra aberta” remete portanto para aquela «possibilidade de uma
multiplicidade de intervenções pessoais», mas que «não é convite amorfo à intervenção
indiscriminada: é o convite não necessário nem unívoco à intervenção orientada, para
nos inserirmos livremente num mundo, que contudo, é sempre o desejado pelo autor»
(Eco, 1989: 89-90).
202
Ana Hatherly, «Prefácio», in CI, p. 8.

216

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venção não produza relativismo e indefinição, mas apenas «uma intro-
dução orientada». Mas se «o poema como objecto-acto» se apresenta
como «resultado de um conjunto de regras aplicadas a uma situação
específica», o convite dirigido pela obra aberta ao fruidor resulta sem-
pre num convite através da qual o autor, no fim do processo de diálogo,
reconhecerá sempre a obra como sua e nunca como outra.

O poeta é
um calculador de improbabilidades limita
a informação quantitativa fornecendo
reforçada informação estésica.
É uma máquina eta-erótica em que as discrepâncias
são a fulgurância da máquina.
A crueldade elegante da máquina resulta da
competição pirotécnica da circulação íntima
e fulgurante do seu maquinismo erótico.
[...]
Digo com precisão fenomenológica: o maquinal
circula em sua hiperesfera da maneira mais
excêntrica.

Digo
e garanto:
o maquinal absolutamente absorve suas águas
variáveis e isso é o seu amplexo.
[...]
A história agrega a dificuldade essencial
das variáveis e o ensejo das coisas
prática difícil
está para o maquinal como uma indústria apócrifa203

O poeta experimental é «um calculador de improbabilidades». O


funcionamento de cada texto funda-se num saber que o experimen-
talista mostra possuir no momento em que define as regras do seu
jogo, que Ana Hatherly, por exemplo, explicita sempre previamente e
que, todavia, nunca chegam a abolir a casualidade das sempre novas
articulações textuais. Se é verdade que «o processo não se distingue

203
«Um calculador de improbabilidades», in Sigma [CI, pp. 61-2].

217

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da obra»204, já que o próprio acto «de fazer» pretende coincidir com
a sua tradução artística, a vantagem lúdica das experimentações ha-
therlyanas de “literatura combinatória” (como Estruturas Poéticas,
Anagramático) reside no carácter «maquinal» do procedimento esco-
lhido e, portanto, «dans le caractère imprévisible du résultat obtenu»
(Genette, 1982: 54). A imprevisibilidade do resultado é garantida pelo
próprio «carácter maquinal» do jogo. A sua gratuitidade consiste na
consciência de que o texto experimental não é apenas fruto do aca-
so (os dados de mallarmeana memória); esse texto vive na abertura
para a superabundância semântica e para a ambiguidade de toda a
leitura: «O acaso é uma noção científica./ O uso do acaso é um acaso
como a utilização humana dos seres/ humanos. /A utilização dos seres
humanos é um acaso usual como os seres humanos são acaso. / O
acaso é cientificamente ocasional e como tal usado. / E tudo o que é
usado é ocasional / como o não usado / enquanto tudo é acaso, noção
científica do instante em série. /O acaso é uma progressão serialmente
ordenada e harmonicamente / conjugada e como tal ocasional e uso. /
Cientificamente o acaso é o que é constantemente recolocado no / seu
ser não estando / E constantemente se deslocando finalmente se colo-
ca fora do / seu ser em tudo estando e não / serialmente acontecendo
e não sendo / pela sua descolocação constante no espaço e no tempo
ou no / acontecimento./ A utilização humana do acaso é uma conse-
quência do acontecimento / do acaso humano /que utiliza / e por ele é
utilizado. / O acontecimento humano é um acaso que a todo o instan-
te necessita colocação no espaço e no tempo ou no próprio aconteci-
mento do acaso em sua fronteira./ [...] O acaso está sempre em estado
de ser colocado e a todo o instante / procurando se recoloca no acon-
tecimento instante do seu ser entre / tanto / acaso único e usual utente.
/ E no desfasamento entre o que é acaso e o que ocasionalmente é /
ocasionado está o acaso permanentemente descolocado»205.
É possível retomar aqui as considerações de Peter Bürger, ao fazer
a distinção entre produção imediata e mediata do “acaso” nas obras
vanguardistas. De forma exemplar, o poema de Ana Hatherly meta-
textualiza a produção mediata do “acaso”, como subjacente a toda a
poética experimental. Produção mediata, pois que

204
«Prefácio», in CI, p. 11.
205
«Tipo A – A descolocação no espaço e no tempo» in Estruturas Poéticas – Ope-
ração 2 [CI, p.75].

218

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já não resulta de uma espontaneidade cega no manejo do material,
mas, pelo contrário, é fruto de um cálculo muito preciso. O cálculo,
porém, recere-se ao meio; o producto é bastante imprevisível (Bürger,
1993: 115)206.

Toda a experimentação decorre, então, da explicitação de um progra-


ma que consiga evidenciar (não apenas para o fruidor mas também para
o próprio autor), os elementos utilizados para o seu trabalho e a maneira
como estes devem ser tratados: exemplos de programa, declarados antes
que o jogo textual comece – quase como se se tratasse de uma jogada de
roulette –, onde todas as combinações são possíveis e onde possam ser
consideradas “instruções” preliminares de «Tema e Variações»:

Nestes poemas a experimentação consiste em partir de um mote, ge-


ralmente oferecido no título ou no início do poema, cuja glosa ou va-
riação vai realizar-se na ordenação das palavras-chaves do poema em
diferentes combinações, de modo a criar um clima de inebriante incer-
teza, um estado de perturbação próprio de uma emoção intensa207,

de «Noite Canto-te noite», de Leonorana, ou de Estruturas Po-


éticas onde o princípio de transformação semântica assenta em oito
tipos (mais duas variantes) de aplicação criativa. O princípio de trans-
formação obedece sempre a um diferente critério de restituição tex-
tual. Por outras palavras, Ana Hatherly opera sempre segundo uma
concepção de «deslize [desvio] linguístico»: seja ele de (TIPO A) «des-
locação semântica de uma palavra privilegiada num contexto», de
(TIPO B) «evolução semântica acelerada de uma palavra privilegiada
num contexto», de (TIPO C) contraste entre a historicidade lexical e
reaquisição experimental da comunicabilidade fonêtica e formal, ou
de (TIPO E) «descolocação por metáfora e metonímia»208.
A atenção ao programa, como a própria Ana Hatherly adverte, cons-
tituía já o denominador comum de textos-visuais do Barroco português,
cuja importância, pela prática experimental, é desde logo ressaltada:

206
Parece importante salientar o facto deste crítico individuar na poesia concreta a
origem da produção do «acaso» no campo literário, sendo posterior – como sublinha –
ao seu aparecimento na música.
207
«Programa», in Eros Frenético [CI, p.122].
208
Estruturas Poéticas – Operação 2 [CI, p. 71].

219

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programa [que], além de valor estético, tinha um valor de experiência,
tanto para o autor do texto como para seu destinatário.
[...] um dos princípios basilares de todo o experimentalismo é a con-
cepção e aplicação de um programa que valida e fundamenta todo o
processo criativo, desde a concepção à execução. Mas também pode ser
ao contrário – da execução à conceptualização – porque a obra experi-
mental é uma forma particular de descoberta que ensina o seu autor.
O programa pode existir, portanto, à partida, mas a sua prática pode
levar a modificações que, por sua vez, podem gerar programas. O
valor das experiências é determinante, mas esse valor só verdadeira-
mente se valida através da tomada de consciência dos efeitos da di-
nâmica própria da obra bem conseguida, que confirma a validade do
programa (Hatherly, 1995: 10).

Voltar-se-á a falar da função programática, ao focarmos o aspecto


da visualidade, em particular num livro como Leonorana, onde, em
conformidade com as regras do programa, se combinam variações
tipo-gráficas, cali-gráficas, ideo-gráficas.
Retomando o discurso sobre a acção combinatória de todo o ex-
perimentalismo, o caso de Melo e Castro fornece inúmeros exemplos
em Poligonia do Soneto, Versus-in-Versus, e mais claramente em Álea
e vazio, onde o autor, tal como se lê em epígrafe, explica o funciona-
mento da faceta combinatória da sua poética: «álea: a lei do acaso/ o
total das probabilidades/ vazio: talvez o nada sobre o que se funda a
linguagem/ álea e vazio: as probabilidades do dizer».
Este esquema exemplifica bem a função do barroco em Melo e
Castro, enquanto dispositivo conceptual da dinâmica e da abertura: a
prática experimental deve saber constituir-se através do modelo «di-
namizador» do barroco209:

Como estéticas do significante, a poesia barroca e a poesia experi-


mental têm profundas ligações intertextuais e transtemporais [...]

209
Escreve E. M. de Melo e Castro numa nota ao livro: «1) O Silêncio é barroco. 2)
Assim passei a uma fase de experimentação ainda mais aberta no campo da linguagem,
interessando-me não já a uma projecção do poema em duas ou três dimensões mas
sim a poligonia total da experimentação poética [...]. A recusa de modelos estáticos é
uma dimensão da arte de vanguarda e por aqui se pode fazer uma aproximação com
a dinâmica barroca. É que o barroco tem um significado de dinamização e abertura e
desprende-se do período histórico definido» [T, pp. 495-496].

220

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Considera-se a escrita como lugar mesmo da estruturação do sentido,
através dos seus valores polissígnicos e sintéticos. A sintaxe e síntese
são assim as operações dos possíveis sentidos, que determinam a ên-
fase na materialidade sinestésica da escrita. [...] A escrita da poesia é
a escrita do poético. Poético que só nessa escrita existe. O poético é o
concreto (Melo e Castro, 1984: 51).

No livro de 1963, Poligonia do Soneto, o construtivismo combi-


natório baseia-se na exploração de todas as possíveis variantes, quer
a nível de verso, quer a nível de simples morfema. Há textos em que a
máxima amplitude de variações é proporcionada pelo jogo combina-
tório que envolve o verso e o contorce ad libitum, e onde, apesar de
qualquer pretensão de discursivismo, ainda se reconhecem vestígios
de significação como em

Correr o risco
o risco que se corre
Escorrer o visco
O visco não escorre

risco no risco
visco nu visto
risco corrido
visco fundido

risco avistado
o visco de viver
como se vive

o risco que se corre


morrer
como se morre [T, p. 167]

ou também em:
mudar mas que mudança
é ficar ou não ficar ou
mesmo começar ou mudando
ou até mesmo nada acon-

221

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tecer ou não tecer um me-
tro de tecido ou de tem-

po ou de léguas em re-
dor da dor do tempo

dizer ou não dizer o que é


o mesmo mudar ou não mu-
dar o que é só dar o tempo
ao tempo é também rece-
ber ficar diferente indi-
ferente à pedra frente a frente [T, pp.171-172].

Mas há também um certo número de textos que procuram desin-


tegrar a unidade da palavra (declarando, num certo sentido, a morte
poética), reduzindo-a a destroços silábicos e a meros signos fonéticos,
para depois acabar por recompor tudo, segundo as leis da arbitrarie-
dade semântica, tal como acontece em:

so ne to
só neto
som eto
só teto

te so no
se re no
co se no
ti ra no [T, p. 178]

em «Mausoléu»:

MAU SOL EU
AU SO LEUM
U SOL EUMA
MARSUPIAL [T, p. 171]

Há textos, enfim, que, na linha variantística (e musical), adoptam, jun-


tamente com a reiteração (cantável?), uma espécie de justaposição entre
um lexema escolhido e as suas diversas versões de contiguidade fonética:

222

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SONETO HUMORIS CAUSA
(para ser muito recitado)

água água nágua água


broca bronca broca broca andante
gorda gorda guarda grada
miga mega maga magra

lebre lebre lebre lebre


tigre tigre tigre tigre presto
droga droga droga droga
livre livre livre livre
fibra febre fere alfobre
faca face face fica ma non tropo [sic]
leve lava live love

tigre tagre tegre traga


libre livro lebre libra
livra livra livra livra [T, p. 183]

Na caracterização barroca dos experimentalistas, porém, a poética


do combinatório – que nos livros posteriores se tornará evidente na
exploração, até à exautoração, de uma fenomenologia serial de versos
como «Redundância Aberta», «Acelerador de Partículas», «3 Versões
Aleatórias», «1 Texto e 6 Postextos», «Semissérie» de Versus-in ver-
sus ou na estrutura210 de Álea e vazio (e o poema «Tudo pode ser dito
num poema» é o verdadeiro paradigma) – não pode (veja-se o último
exemplo) desligar-se de uma concepção lúdica, que deve ser entendida
como ante-facto de todo o acto criativo. A linha lúdica pendant da
combinatória torna-se, na poesia experimental, uma total e manifes-
ta admissão – concepção esta que provém do Barroco (sobretudo,
segundo certas interpretações)211 – de que a literatura não passa de
um jogo, com toda a seriedade que isso comporta. É a ideia de uma

210
O livro está dividido em 8 partes: «Vectores», «Tetraktys», «Séries», «Combi-
natórios», «Cânones», «Discursos», «Silêncios», «Mutatis Mutandis».
211
Situam-se aproximadamente nestes anos (início da década de 60) as primeiras
provas de «literatura combinatória» do OULIPO e seu conseguinte interesse, até à
admiração, pela produção poética barroca.

223

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literatura e, nomeadamente, de uma poesia per gioco, que funda a
sua própria legitimidade na teatralização ou carnavalização – para
utilizar o termo bakhtiniano retomado por Affonso Ávila – da sua
instalação retórica (tanto visual quanto literal).
O barroco lúdico-combinatório da Vanguarda aceita participar,
quase à maneira de um «epígono» – em circunstâncias histórico-
sociais muito diversas (não obstante a alegada semelhança entre a
oprimida sociedade portuguesa do século XVII e do século XX) –, no
projecto de versejar enquanto jogo que é, ao mesmo tempo, regulado
pela própria ostentação das regras (entre processo e acto não há dis-
tinção, porque o experimentalista revela as suas cartas logo no início
do jogo) e que se apresenta “aberto” às múltiplas possibilidades de
leitura, facultadas pelo pacto lúdico com o leitor:

A poesia é um gozo
Um uso sabido
Do erro errado

A poesia é um gozo
e se não o é
a culpa é do vizinho do lado

A poesia é um gozo
de palavras paralelas
daquelas
que não há

A poesia é um gozo
como um osso
encravado

A poesia é um gozo
o leitor
deve sentir-se gozado212

Da figura do leitor e da função da leitura, voltaremos a falar quan-


do abordarmos a poesia experimental do ponto de vista da produção

212
«Poética Pícara», in Os Erros de Eros [T, pp. 322-323].

224

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concretista e consequente mudança de paradigma que o acto em si terá
sofrido (o leitor terá de reinventar o seu gesto: «o olho tipográfico» já
não é suficiente); por enquanto, a nossa análise limitar-se-á às implica-
ções e reflexos que uma concepção lúdica (senão mesmo satírica) do
poético podem ter na escrita. O jogo experimental, através do sistema
combinatório, de facto, não pretende apenas questionar toda a retórica
lírica, mas propõe-se cumprir igualmente a destruição alfabética da lin-
guagem, também daquela relativa a todos os discursos oficiais e coerci-
vos do Poder, seja ele político, cultural ou mediático. Pense-se sobretudo
em alguns poemas de António Aragão, de Melo e Castro e, sobretudo os
de Alberto Pimenta, talvez mais aptos para exemplificar, através de um
processo de desmistificação sistemática das linguagens da informação

numa sondagem da opinião pública


apurou-se que
a opinião pública
coincide com a opinião pública
e considera
que
a única opinião pública
autorizada pela opinião pública
é
a verdadeira opinião pública
isto
ao contrário
do que
pretende fazer crer
certa opinião pública
a qual
porém
não coincide
com a verdadeira opinião pública213

da burocracia, da pedagogia, da retórica militar e colonialista


(«retrato do soldado desconhecido»; «palavra de ordem», de Alberto
Pimenta), todo o potencial subversivo do experimentalismo. Seguin-
do a proposta terminológica de Genette, poderá incluir-se no género

213
«aruspicismo», in Os entes e os contraentes [OQI, p. 87].

225

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da “caricatura” um poema como «problema com vista a orientar os
interesses infantis para as realidades cotidianas»214, no momento em
que este desempenha a função satírica (de derisão de «alguém» ou de
«alguma coisa»: a moral puritana, a escola etc.) e que se põe numa
relação de imitação com o seu hipotexto (o enunciado do problema
“técnico”– escolar de matemática):

À modalidade de «paródia séria» poderá, contrariamente, pertencer


um poema como «Democracicia» [OQI, p. 95], onde apenas a trans-
formação irónica do título e a disposição tipográfica parecem operar,
por contraste, com a “citação directa” dos mandamentos relativos

214
Os entes e os contraentes [OQI, p. 87].

226

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à segurança do Estado. A língua do direito, que o regime salazarista,
como todos os regimes, adapta e uniformiza de acordo com as suas
próprias incontestáveis exigências, em nome da sua salvaguarda, apa-
rece aqui com todo o seu carácter mistificador da realidade: o riso que
desperta no leitor de hoje a farsa de ontem do poeta seria, contudo,
impossível e improporcionável sem a verdadeira consciência histórica
do tempo do opressor.
Depois de ter visto como a recuperação barroca funciona tanto
no aspecto lúdico-combinatório e como no de abertura e indetermi-
nação, não resta senão aproximarmo-nos de uma das vertentes ori-
ginariamente mais marcantes da Po.Ex.: o concretismo. É óbvio que
a redução esquemática destas três grandes linhas de força não deve
induzir à conclusão de que elas operam separadamente; pelo contrá-
rio, a dificuldade de destrinçar as margens nítidas de acção de uma
e de outra, deve levar-nos a pensar numa espécie de sincretismo com
que, diacronicamente, o experimentalismo pretende compreender o
Barroco a nível teórico e prático.
Quanto ao concretismo, como já se assomou, as primeiras mani-
festações, influenciadas pelas experiências brasileiras de Noigandres,
podem situar-se entre o fim da década de 50 e o início da década de
60. De 1959 é um texto concretista de Ana Hatherly que serve de epí-
logo e demonstração de um artigo de divulgação da poesia concreta;
lembre-se ainda o livro Ideogramas de Melo e Castro (1962) ou a
«Aranha» de Salette Tavares no primeiro número dos «cadernos» de
Poesia Experimental:

227

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Todavia, o que nos interessa aqui não é repercorrer as várias eta-
pas da sua história, mas examinar como e porquê, num dado momen-
to, se principia a entrever, segundo a reivindicação de Ana Hatherly,
um ponto de coincidência entre o Experimentalismo do século XX e
a prática do texto-visual barroco. Esta tomada de consciência é, de
alguma forma, «póstuma» em relação à produção da década de 60;
pode afirmar-se que a Poesia Visual, enquanto vertente do experi-
mentalismo português, tinha acabado por sentir a urgência (como de
resto os brasileiros tinham pretendido fazer, recuando até ao «ovo»
de Símias de Rodes para encontrar o primeiro texto “concreto”) de
reencontrar, para além dos antecessores modernos que o movimento
concretista internacional ia reconhecendo (nomeadamente Mallarmé,
mas também Apollinaire, os futuristas, os dadaístas, os surrealistas,
os letristas), uma «genealogia» nacional que funcionasse como “tradi-
ção resgatada”. O maneirismo e o barroco portugueses, que tinham já
sido apontados como épocas «suspeitas» – por Verney, nomeadamen-
te – por ter realizado «poemas figurados» ou «pintados», tornavam-
se no melhor âmbito de investigação e de verificação, originado por
«um desejo de comprovar a existência duma importante produção
portuguesa nessa área que, apesar de ser praticamente desconhecida
hoje em dia, não podia deixar de existir» (Hatherly, 1983: 13).
A redescoberta da visualidade por parte dos concretistas conduziu
Ana Hatherly, dentro do mais alargado retorno barroco da vanguar-
da, a cartografar os predecessores do século XVI e XVII, de forma
a que ela e todos os outros experimentalistas pudessem, mesmo que
paradoxalmente, reclamar-se sucessores, pelo menos parcialmente, da
específica tradição de uma época. “Inventar uma tradição” significou,
assim, redescobrir paralelismos com a própria actividade poética.
Se se atender à comparação entre o valor do texto-visual no barro-
co – baseando-se nos exemplos fornecidos pela própria Ana Hatherly
– e o valor dos textos-visuais da poetisa, como o conhecido Leonora-
na («Trinta e uma variações temáticas sobre o mote de um vilancete
de Luís de Camões»), é possível verificar como a diferença entre “bar-
roco histórico” e “neobarroco experimental” se insinua:

a) no funcionamento formal (por exemplo, do anagrama) e na po-


ética (mesmo na ideologia) que o inspira;
b) na composição gráfica;
c) na concepção combinatória do texto.

228

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Se é verdade que o fim do barroco «est de exprimer tout ses
moyens plutôt que de mettre ses moyens au service d’une fin» (Klé-
baner, 1979: 82) podemos, contudo, admitir – levando às extremas
consequências esta última afirmação – que o poeta barroco recorre a
todos os meios para justificar um fim que parece sempre exclusivo,
único, privilegiado e que, pelo contrário, nunca o é. O anagrama para
Maria Sofia Isabel e respectivo soneto à guisa de glosa de Luís Nunes
Tinoco, trazidos à luz por Ana Hatherly, será uma boa prova:

O que parece é não poder haver nenhuma outra composição possí-


vel aqui, isto é, que não é provável haver uma outra maneira e que, no
fim de contas, há-de haver uma espécie de determinismo entre o ikon,
o logos e a “res” (a pessoa da rainha), como se o nome, Maria Sofia
Isabel (e só ele), tivesse a capacidade de concretizar “divinamente” a
sua representação, isto é, de dar vida ao acróstico. Todavia, no pró-
prio procedimento, o poeta barroco adverte que a sua realização di-
rigida para o privilégio do unicum, pode ser, em qualquer momento,
substituída pelo infinito das possibilidades. O poeta barroco, também
pela natureza panegírica da sua literatura, quase sempre «ao serviço
de alguém», deve saber iludir tanto a leitura dos olhos quanto a do
coração ou da mente. Palavra escrita ou pintada, imagem ou carácter
tipográfico: tudo isto como meio de preencher a página do livro, ou

229

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apenas para fingir que não há nenhuma outra transposição artística
possível, já que o unicum não passa de um engano da multiplicidade.
O poeta experimental toma do barroco a concepção combinató-
ria, a visualidade, a função programática do poema, mas se toda a
palavra, toda a caligrafia, todo o ideograma forem necessários para
alcançar o seu fim, o que diferencia o poeta experimental do poeta do
Barroco é que este seu fim pode tornar-se num fim qualquer, um fim
sempre imprevisível sem, por isso, ter a urgência de mostrar que o tem
ou fingir que o tem. Daí decorre que não é a gratuitidade do fim que
caracteriza o neobarroco experimental, mas a possibilidade (sempre
renovável) de inventar um fim sempre novo, com toda a carga de pra-
zer e divertimento do acto criativo.
Para, enfim, voltar ao nosso exemplo, estas trinta e uma variações
do «mote» camoniano, não precisam de fingir algum determinismo:

Descalça vai para a fonte


Leonor pela verdura
Vai formosa e não segura,

isto é, não têm de fazer crer ao leitor que aquelas são as únicas
combinações possíveis. O processo de construção combinatória dos
trinta e um tipos legitima-se apenas no momento em que ele é entendi-
do como «aberto», ou seja, o amplo espectro de variações que vai do
menor grau de transformação («Variação I –1.º desenvolvimento do
tema. Discurso sem interferência»215) para o maior: «Variação XXXI
– Variação sobre o 8.º desenvolvimento do tema. Obscurecimento por
logização e submissão formal»

215
«a manhã acontece quando no movimento aparente da sucessão/ dos dias e das
noites a terra de súbito ilumina o sol não/ tão de súbito porém que o dia acontece len-
tamente acontece/ tudo lentamente porém que o dia só de súbito se torna real e súbito/
é tudo o que foi lentamente acontecendo até ao momento de/ explodir em realidade
súbita de súbito é manhã como de súbito...», in Anagramático [CI, p. 197].

230

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passando pela “deslocação” visual, até à transposição ininteligível
«Variação XIX – Ininteligibilidade por semantização visual absoluta»:

ou até à «Variação XX – Ininteligibilidade parcial. Semantização


visual concreta»:

É apenas um das infinitas possibilidades que o experimentalista


pode propor. O cálculo das probabilidades e das improbabilidades
que o poeta aceita realizar não tem (aparentemente) limites impostos:
as suas combinações podem multiplicar-se até ao infinito ou, deveria
dizer-se, a um «infinito duplo», dado que à contribuição da textuali-
dade se juntou a visualidade. O programa das 31 variações explicita
os mecanismos do processo mas, ao mesmo tempo, instala no leitor
a dúvida, e até a consciência, de que uma combinação vale outra, de
que cada tipo de variante faz e tem sentido ou um surplus de sentido
que lhe cabe experimentar, pois que «saber ler é saber criar» (Hather-
ly, 1975: 10). Na economia poética do experimentalismo, de facto,
o leitor adquire uma nova funcionalidade operativa, já que a poesia
concreta não só alargou o campo da leitura, para além dos seus limi-
tes literários tradicionais, mas reelaborou os termos de colaboração
requeridos ao leitor. O acto da leitura não decorre apenas de uma
mera aprendizagem do carácter tipográfico correspondente à letra e à
palavra, mas da educação e do saber colher a pluralidade da imagem
veiculada na página216.

216
«O movimento da poesia concreta é fundamental para a evolução da leitura na
medida em que contribui para que o texto deixe de ser apenas uma expressão lírico-lite-

231

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Depois de ter traçado as linhas de força de recuperação do barroco
por parte dos experimentalistas, ao cruzar discurso teórico e práxis
poética, no próximo subcapítulo analisar-se-ão as várias articulações
produzidas ao longo dos anos desta mesma recuperação. Como é sa-
bido, o facto de uma sistemática reivindicação da tradição barroca
ser posterior às vicissitudes públicas da primeira geração da Po.Ex,
publicações, exposições, concertos, (segundo a cronologia “oficial”
é o período entre 1962/1969) conduzir-nos-á, mais demoradamente,
para toda a produção teórica de Melo e Castro e Ana Hatherly, quer
nas suas afinidades de pontos de vista, quer na diferença dos seus
resultados.

rária para se tornar por fim uma pura combinação de sinais, estabelecendo desse modo
uma nova trajectória da palavra para o signo» (Hatherly, 1975: 21).

232

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5.2 Repensar-se no Tempo: Reabilitação do Barroco, Arqueo-
logia Experimental, Neobarroco Português

Como acontecera já nos finais do século XIX e ao longo dos anos


vinte, também no contexto literário português da década de 60/70,
o problema do barroco é de grande actualidade. Os expoentes da
Poesia Experimental ao instaurarem, mesmo se confusamente, uma
primeira ligação entre as representações estéticas do Barroco histórico
e as representações da poesia portuguesa actual (pós-1960) e, sobre-
tudo, ao reivindicarem exclusivamente a legitimidade do testamento,
admitiam, antes de mais, a necessidade de um conhecimento prévio,
mais aprofundado e liberto dos antigos preconceitos sobre o Barro-
co histórico. O processo de reabilitação devia necessariamente passar
pelo resgate filológico das fontes documentais da tradição:

Quanto à significação dessa Poesia [Barroca] para a nova Poesia Por-


tuguesa de pendor experimental, é trabalho que já compete aos críticos
e poetas mais novos e diretamente interessados. Mas este trabalho de
pesquisa de fontes não pode ser feito sem um acesso fácil aos textos.
Torna-se urgente uma reedição completa dos 5 volumes da Fénix Re-
nascida, e dos volumes do Postilhão de Apolo, bem como a pesquisa
dos textos barrocos que jazem na Biblioteca da Universidade de Coim-
bra, e a publicação dos livros de autores individuais, só parcial ou
anônimamente incluídos na Fénix e no Postilhão.
É pois necessário fazer o levantamento rigoroso, crítico-analítico e de
processamento dos elementos linguísticos e estruturais da Poesia Bar-
roca Portuguesa com intuito de melhor se determinarem as constantes
da produção poética em Português, contrapondo-as às de importação
castelhana e à influência de Gôngora (Melo e Castro, 1973: 91).

Se continuarmos a interrogar, cuidadosamente, os textos teóricos


de Melo e Castro, pode detectar-se uma passagem fundamental onde
a revindicação de um comum denominador barroco, relativo à poesia

233

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portuguesa actual pós-60, é posta, quase exclusivamente, ad usum da
vanguarda experimental. Este projecto de centralização, que obriga
o crítico a recolocar a poesia anterior num papel auxiliar ou mesmo
preparatório da Po.Ex, desembocará na auto-denominação de «Van-
guarda barroco-experimental»:

O surto Barroco-Experimental de 60 deve ser agora entendido pelo


que é o Barroco: a manifestação criativa dinâmica deste mundo (neste
caso País) em transformação, em que os valores fixos vacilam e caem,
as formas se multiplicam nas suas particularidades materiais, os mate-
riais se valorizam como definidores de volume, do espaço, do tempo,
em relações probabilísticas e abertas.
[...] a Poesia Portuguesa da Resistência das décadas de 60 e 70 é, e
continua a ser, barroca e experimental. Porque o Barroco e o Experi-
mental, como nós os entendemos, são os modelos criativos da nossa
específica criação poética (Melo e Castro, 1975/76: 50-51).

Interagem problematicamente aqui dois termos: Barroco e Expe-


rimental (com um terceiro: vanguarda). O gesto deste grupo expli-
citamente de vanguarda, ao pretender retomar o Barroco enquanto
tradição «recusada», revelava uma dupla atitude. Por um lado, exis-
tia uma vontade, típica da vanguarda novecentista, de integração no
que se pode definir como «retórica da luta»217, isto é, reivindicando
uma poesia “renegada”, o experimentalista instala-se, polemicamente
a priori, numa posição de confronto, o que é ainda mais acentuado
pelo facto de a cultura oficial do tempo, seguindo o esquema da «du-
pla condenação», o relegar, a ele e ao barroco, para a categoria de
outsider218. Por outro lado, a política de reabilitação do Barroco ques-

217
Lembre-se que, pelo menos a nível etimológico, as duas condições básicas para
a existência e actividade de qualquer vanguarda são, segundo Matei Calinescu: «(1) a
possibilidade de os seus representantes serem concebidos ou conceberem-se a si pró-
prios como estando em avanço em relação ao seu tempo (obviamente isto não pode
processar-se sem uma filosofia da história progressiva ou pelo menos orientada para
um objectivo); e (2) a ideia de que existe uma luta feroz que deve ser prosseguida contra
um inimigo que simboliza as forças de estagnação, a tirania do passado, as velhas for-
mas e modos de pensamento, que a tradição nos impõe como grilhões que nos impedem
de avançar», in As cinco faces da Modernidade, cit., p. 112.
218
As palavras de Ana Hatherly, todavia, não estão isentas de uma espécie de repre-
sentação de si (dos expoentes da vanguarda), onde ecoa um certo tom de autocomise-

234

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tionava a própria actividade da Vanguarda e uma certa concepção
que pretendia ver nela apenas uma recusa do passado e do culto pelo
absolutamente «novo». Pedindo de empréstimo um título de Hans
Magnus Enzensberger, podemos repetir que se está perante uma das
grandes «Aporias of the Avant-garde», cuja relação, fruto da retórica
da reabilitação barroca, se debate na oscilação entre a ruptura com o
establishment e a continuidade com a tradição. Ruptura e oposição
versus continuidade e aceitação do passado: no primeiro caso, por-
tanto, a releitura estética do Barroco, que integra também a «inversão
ideológica», é dirigida contra um inimigo declarado que podia ser ou
a crítica, ou a ditadura, ou as outras correntes poéticas; no segundo,
essa mesma releitura caracteriza-se pela aceitação do passado como
fundo histórico capaz de construir uma tradição apta a incorporar a
própria prática experimental, isto é, uma tradição centrada no Ma-
neirismo e Barroco portugueses (e não só).

Melo e Castro – temos estado, digamos, a procurar as nossas raízes e


temos falado nas raízes exteriores a Portugal, mas evidentemente que
existem raízes extremamente portuguesas para a Poesia Experimental,
para o que nós tentámos fazer. Nós falamos sempre em ruptura, mas
essa ruptura diz respeito a um convencionalismo que nos era imposto,
nunca ruptura com uma tradição que era preciso reconstruir, que era
preciso refazer, e fomos por exemplo, desenterrar a Poesia Barroca
Portuguesa, fomos recuperar, fazer uma revisão crítica das fontes cul-
turais que eram sistematicamente, por uma razão ou por outra – e
este «uma e outra» é tanto política como cultural e estética – eram
sistematicamente ocultadas.

ração: «E os vitupérios com que, sobretudo em Portugal, tem sido acolhida e analisada
a poesia barroca, assim como a poesia de vanguarda, são um digno exemplo de incom-
preensão desse fenómeno, um exemplo gritante da incapacidade de a crítica oficial se
libertar do academismo basicamente burguês, moralista, que exige uma inflexibilidade,
no fundo uma estreiteza de vistas, que exclui a noção de abertura, como foi definida,
por exemplo, por Umberto Eco. A transgressão da moral vigente é característica da arte
de vanguarda, é mesmo seu aspecto fundamental. Quando os poetas de vanguarda se
insurgem contra “a literatura”, insurgem-se também “contra a burguesia”, na medida
em que essa classe, detentora do Poder, cultural, político, religioso, exerce a sua pre-
potência repressiva, escudada na exigência moral, autoritária, paternalista. A poesia
barroca, como a poesia de vanguarda, tem precisamente este aspecto de ruptura com a
moral dominante, que era, esteticamente falando, e na mais rigorosa acepção do termo,
o culto do academismo, da arte moralista e didáctica» (Hatherly, 1979: 103-104).

235

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Ana Hatherly – Este aspecto de ruptura na poesia é muito particular
porque essa ruptura é uma recusa do ambiente que nos rodeia, e nun-
ca é uma ruptura com as nossas raízes. [...]
Pois porque na verdade muitos dos meus trabalhos, dos meus pessoais
e doutros poetas experimentais, têm base numa espécie de quase ree-
laboração de maneiras de trabalhar antigas. Este processo não é exclu-
sivo dos poetas experimentais da actualidade. Outros poetas noutras
épocas fizeram isso. Mas não se trata de revivalismo, isso é muito
importante...(Hatherly e Melo e Castro, 1981: 20-21).

A acenada recusa de qualquer revivalismo, condenado in toto


noutros textos programáticos, revela o carácter moderno, e até con-
traditoriamente moderno, deste «retorno barroco». O manifesto de
uma qualquer vanguarda tida em consideração não podia privilegiar
nenhum movimento retrospectivo, nem sequer quando fingidamente
nostálgico. O tempo da sua acção é o presente, o da sua aspiração, o
futuro; o passado é apenas aquilo que, aos nossos olhos, permanece
residual, ele não passa de uma separação constante cuja progressiva
redução ao silêncio não pode ser impedida nem por uma pretensa
imitação, nem por tentativas de epigonismo tardio, em nome da revi-
vificação de um certo gosto ou de um certo estilo.

Para os Portugueses, a (re)descoberta do Barroco na nossa poesia e


sobretudo a (re)descoberta do Barroco na nossa idiossincrasia, que se
manifesta, por exemplo, por duplas contraditórias – como exuberân-
cia e restrição, luxo e indigência, lirismo e pornografia, verbosidade
torrencial e escolha cuidadosa até ao preciosismo, muita sátira e pou-
ca ironia, etc. – a (re)descoberta do Barroco como característica essen-
cialmente nossa, para os poetas experimentais foi um suporte NÃO
PARA UM REVIVALISMO CADUCO MAS SIM PARA UMA VIA
DE PROLONGAMENTO DE DESCOBERTA, pois a investigação, se
quisermos, «cultista» da linguagem poética, purificada ou, se quiser-
mos, complicada pelos conhecimentos técnicos da nossa contempora-
neidade, permitiu aos nossos poetas experimentais portugueses NÃO
O IR BUSCAR AO PASSADO OS ELEMENTOS PARA SE JUSTIFI-
CAREM NO PRESENTE, como já tem sido apontado, MAS PARA
PROSSEGUIREM NO PRESENTE UM TRABALHO QUE FORA
INICIADO NO PASSADO E QUE DEVERÁ SER CONTINUADO
NO FUTURO (Hatherly, 1979: 128).

236

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Todavia, a modernidade do experimentalismo português faz de
contraponto ao “escândalo” de se definir, ainda hoje, sucessor do
“barroco”: entre afirmações de ruptura e apelos de continuidade, en-
tre descontextualização do século XVII e recontextualização na segun-
da metade do século XX, todo o projecto teórico vive num lacerante
conflito que, se os próprios protagonistas não chegaram a evidenciar,
tentaram, contudo, resolver através dos seus diferentes caminhos. Por
um lado, a saída escolhida foi a do «inverso», tal como foi realizado
por Ana Hatherly, cuja prática poética experimental a foi aproximan-
do, por osmose, do estudo do Barroco histórico: ela é artífice de uma
verdadeira foucaultiana «arqueologia da poesia experimental» que,
embora retrodatável até à antiguidade, por sua vontade, se limitou
aos séculos XVI e XVII da literatura portuguesa.
Se, como já vimos, a Po.Ex., através do grupo Noigandres, resgata-
va o Barroco sobretudo em função da sua visualidade e “concreteza”
estética (anagramas, ideogramas, caligramas, labirintos, etc.) e da sua
expressão lúdica e combinatória219 (enigmas, acrósticos), Ana Hather-
ly, desde a segunda metade da década de 70, que se vem dedicando
à inventariação e a trazer à luz o património documentarístico e ar-
quivístico do período maneirista e barroco, enterrado nas bibliotecas
portuguesas, com especial preferência pela produção dos assim cha-
mados «textos-visuais». Para esta poetisa de vanguarda que, a partir
de então, transitaria («sem traumas») para os campos da investigação
historiográfica, defender o barroco significou antes do mais, preservá-
lo e redescobri-lo nas suas vertentes menos conhecidas pela exclusão a
que foi votado pelo cânone histórico do século XVII. Os instrumentos
– como o estruturalismo (e nomeadamente o estudo de Starobinski
sobre os anagramas de Saussure), a semiótica, a linguística moderna,
o renovado interesse pela materialidade e pelo suporte da escrita, a
caligrafia, os hai-ku, a visualidade gráfica da escrita oriental (Pound/
Fenollosa) – abriram novos cenários à produção maneirista e barroca
portuguesa dos séculos XVII e XVIII: entre ikon e logos, a barreira

219
Cfr. para estes aspectos, A. Hatherly (1983: 13), onde, por exemplo, se fala do
«interesse pelas áreas menos conhecidas da literatura antiga tem sido apanágio de al-
guns poetas experimentais de todo o mundo, inclusive os portugueses e os brasileiros»
que revelaria paralelos estéticos como «a importância do papel desempenhado, então
como agora, pelo conceito de criação artística como acto lúdico, de que deriva o gosto
pela experimentação, e transformação do jogo sagrado em jogo profano, sem que se
perca de vista a sua origem mística ou mágica».

237

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caiu; se a poesia concreta necessitara de uma nova concepção de texto
poético, em que, parafraseado Max Bense, a teoria geral do texto po-
ético teria inevitavelmente de passar por uma teoria geral da imagem
(Bense, 1974: 246), toda a produção visual do Maneirismo/Barroco
recolhida por Ana Hatherly acaba por representar, do ponto de vista
vanguardista, uma verdadeira «genealogia do experimental»:

A importância que a imagem tinha para os poetas maneiristas e bar-


rocos, associada a um manuseio prodigioso da linguagem poética, e
acima de tudo o seu culto pelo texto-visual, desempenharam um papel
decisivo na revalorização do estilo barroco por parte dos Experimen-
talistas, que também souberam reconhecer que, no seu próprio tempo,
esse fora um estilo de vanguarda e, por essa razão, fortemente contes-
tado (Hatherly, 1995: 200).

A delineação da «própria genealogia», para além de ser uma to-


mada de consciência de um passado (que, embora sendo o seu próprio
passado, ainda lhe é desconhecido) viria a funcionar para os experi-
mentalistas como um espelho: “construir” uma tradição significava
reconhecerem-se nela e ver nela os seus próprios reflexos modernos,
mais como invenção e tradução do «novo» do que como repetição do
passado. Uma vez que é reconhecida, explorada, fragmentada pelo
espectro moderno dos experimentalistas, a lição do Barroco histórico
acaba por se recompor na estratégia «neobarroca» de uma criação
poética ousada e original. Escreve Ana Hatherly sobre o valor moder-
no do retomar barroco, por parte da poesia experimental:

A incorporação do passado no presente é uma acção subversiva por-


que um dos efeitos mais surpreendentes da acção da passagem do
tempo sobre os objectos culturais é transformar o usual em estranho,
o comum em incomum, o corrente em exótico. Assim, qualquer in-
corporação de elementos antigos num contexto moderno quebra a
continuidade, dispersa a sequência em que se baseia o hábito, criando
portanto um conflito, ou, se quisermos, um contraste, que não pode
deixar de chamar a atenção, ou seja, despertar a consciência (Hather-
ly, 1995: 175-176).

Outro dos caminhos – que, desta vez, designaremos de «neológi-


co» em oposição ao «arqueológico» de Ana Hatherly – empreendido

238

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no escape ao impasse entre vanguarda/tradição, entre novo/antigo, foi
o de E. M. Melo e Castro, cujo projecto teórico decorre do esforço
de reivindicação da herança barroca, por si só e pela do grupo expe-
rimental. Toda a sua reflexão constituiu uma incessante procura da
contraprova que lhe garantisse o acesso e, de qualquer forma, a posse
do Barroco. Este é um processo longo, não isento de contradições,
que se foi desenvolvendo durante muitos anos e que não se furta à
assimilação dos novos contributos da teoria estética que foram sur-
gindo, de forma a alcançar o seu fim.
É possível, assim, constatar que o Barroco, num certo momento,
na primeira grande sistematização crítica de E. M. Melo e Castro,
uma vez desembaraçado das suas referências históricas e das suas «re-
caídas» modernas, se torna num conceito operatório, numa obsessão
conceptual através da qual era possível reler toda a história da poesia
portuguesa:

Entendido assim o Barroco, em termos genéricos projectados para os


nossos dias, poder-se-á procurar realizar uma operação semelhante
para o passado. Isto é, procurar características textuais ditas barrocas
na Poesia dos séculos anteriores ao século XVI (Melo e Castro, 1984:
169-170).

A ideia de Barroco atinge, por isso, uma conotação a-histórica e


sobretudo uma potencialidade dinâmica; os conceitos e as funções
textuais do poema (pela importância desempenhada na restituição
formal, relativamente à lírica actual) devem ser catalogados numa
espécie de enciclopédia do «espaço poli-linguístico da Península Ibé-
rica». Na esteira de Curtius, os parâmetros inerentes à poesia barroca
podem detectar-se tanto nos séculos XI e XII, quanto em todos os
períodos da História, em que «o equilíbrio das formas, das fórmu-
las perfeitas, e o esteticismo das certezas dão lugar ao dinamismo
das dúvidas e perguntas ao pluri-significado das formas, à crescente
quantidade de informação contida nos sinais, à ambiguidade viva dos
símbolos, ao espaço sensível das hipóteses, às formas dinamizadas na
sua própria ascensão e queda, ao ornamento estruturalmente funcio-
nal» (Melo e Castro, 1984: 171).
É pois necessário que os parâmetros que permitiram a Melo e Cas-
tro desenhar um espaço diacrónico à rebours (século XX – século
XII), fossem extraídos do Barroco, parâmetros esses que viriam a le-

239

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gitimar, enfim, as várias comparações com a lírica antiga e com a lí-
rica moderna: paralelismo, signo, símbolo e cabala, códice, metáfora,
oxímoro, ambiguidade, numerologia, poesia programática, palavra
erótica, lúcido, lúdico.
A aplicação destas categorias justificaria a defesa de uma tradição
esquecida (a do Barroco-Maneirismo) e, ao mesmo tempo, a reuti-
lização praticada pela Vanguarda das funções textuais do barroco,
enquanto gesto transgressivo e moderno.
Em suma, o processo de recuperação do Barroco em Melo e Cas-
tro passa, ao longo dos anos, por diferentes etapas: em primeiro lugar,
pela aproximação do barroco à poesia portuguesa em geral, depois
por uma reivindicação mais exclusiva aplicada apenas à vanguarda
experimental, através da tentativa de redefinir o Barroco até em ter-
mos ideológico-políticos. De alguns anos mais tarde, data o projecto
(de certa forma, não muito longe da plagiotropia de Haroldo de Cam-
pos que pretendia reconhecer as “constantes” funções textuais na po-
esia portuguesa de invenção) de releitura da poesia nacional à luz do
conceito operatório de “Barroco” enquanto modelo formal oposto
ao clássico; mas esse mesmo esforço crítico chega até aos nossos dias,
ao pretender recolocar toda a experiência vanguardista-experimental,
desde a década de 60 até à de 80, na linha das novas propostas her-
menêuticas de «neobarroco» na acepção de Calabrese, causando uma
sobreposição que nos parece um tanto arbitrária, se se tiver em conta
o significado específico de “neobarroco” na terminologia do semió-
logo bolonhês. De facto, a «idade neobarroca» de Calabrese é apenas
uma tentativa de esboçar as fronteiras (mesmo que instáveis) de uma
estética da pós-modernidade; por outras palavras, a análise de mui-
tos signos artísticos da contemporaneidade (romance, cinema, banda
desenhada) induziu Calabrese a falar de certos fenómenos formais
(barrocos) «em excitação» relativamente a outros (clássicos). A orde-
nação das nove duplas (ritmo e repetição, limite e excesso, pormenor
e fragmento, desordem e caos, etc…) mostrando os caracteres for-
mais do neobarroco pós-moderno, contribuiria para fundar um mapa
estético aplicável aos objectos do nosso tempo. O «neobarroco» de
Calabrese, como se viu no segundo capítulo, pode apenas ser conside-
rado como uma das versões pós-modernas da recuperação do barroco
(lembre-se que a redução estética da Pós-modernidade a neobarroco
é criticada por Jameson) e, por isso, a utilização da terminologia de
Calabrese na designação da prática «neobarroca» da Vanguarda é, na

240

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nossa perspectiva, inadequada220, sobretudo depois de se ter insistido
no carácter, ainda dominantemente moderno, da poesia aqui estuda-
da (Po.Ex. e outros). A vertente «neobarroca» que se pode encontrar
nos textos de certos autores situáveis entre as décadas de 50 e 70 (com
alguns recuos e avanços) participa numa certa ideia de Modernidade,
cuja problematização se espelha no Barroco. Tudo isto, todavia, não
impede que se veja, também na «novíssima» (ou quase novíssima)
poesia portuguesa – Ana Luísa Amaral (Morna, 2002), a «freira po-
etisa barroca» Adília Lopes –, perceptíveis indícios pós-modernos de
re-apropriação barroca, através de uma dupla modalidade de retorno:
de um lado, a releitura, a citação, a colagem, a paródia, a transpo-
sição, recursos estes, de resto, comuns à Modernidade e, do outro, a
prática da «reciclagem cultural», em conformidade com a proporção
directa, segundo a qual a eficácia histórica de um material cultural
reciclado é proporcional à intensidade da sua des-historicização (Mo-
ser, 1996: 412).
Assim, esta ulterior passagem de E.M. Melo e Castro, que preten-
dia adaptar toda a experiência experimental ao «paradigma neobar-
roco», auto-historicizando, à luz de novos conceitos teóricos, o pró-
prio passado poético, talvez não passe de um extremo recurso para
reactualizar a vanguarda e as suas derivas, num tempo que há muito
decretou o seu fim:

Movimentos artísticos e culturais que se inscrevem numa outra prá-


tica-teórica, mais ampla e universal, que é o Barroco – que o italiano
Omar Calabrese tão rigorosamente caracterizou como Neobarroco;
conceito englobante da situação cultural no fim deste nosso século XX
(Melo e Castro, 1995: 257).

220
De facto, já num texto de Ana Hatherly (1995: 13), podemos encontrar uma
referência à arbitrariedade na sobreposição de uma versão pós-moderna de neobarroco
com aquela moderna própria da vanguarda. Ana Hatherly resume desta forma as três
razões que a levaram (juntamente com Melo e Castro) a defender a poesia barroca: «1)
porque ela era condenada pela crítica oficial, e assim, defendê-la era pôr em prática um
programa de subversão; 2) porque se encontravam nos processos de criação barroca –
visual ou não – valores processuais, retóricos e lúdicos que, tendo caído em desuso, à
luz duma nova consideração surgiam como extraordinariamente dinâmicos e belos; 3)
porque encontraram nessas obras paralelos idiossincráticos que ajudam a compreender
algo da nossa estrutura mental e da nossa sensibilidade artística ainda hoje, uma visão
diferente da ideia pós-moderna de neobarroco, que surgiu muito depois» (o itálico é
nosso).

241

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De tudo isto se depreende que, se for possível definir Neobarroca
a Vanguarda experimental, isso deve-se ao facto da nossa perspectiva
ter privilegiado uma leitura mais ampla de «neobarroco», para que
este se pudesse estender não só à produção da Po.Ex., mas também
à produção dos «seguidores de outras tendências». O «neobarroco»,
portanto, deve ser reescrito no interior das poéticas da Modernidade
portuguesa, de uma Modernidade tardia que, como alguém pretendia,
se estava despedindo de si própria, que se informava e vivia da relação
“intelectual” (até à metáfora) que mantinha entre Barroco histórico e
Barroco moderno. Como foi já várias vezes dito, o Barroco, no mo-
mento da sua constituição, revelava, no olhar actual desta operação,
todo o seu carácter de «novidade», de «novo», isto é, de Neo-barroco
– «Dans cette reconstruction rétrospective de l’objet “baroque”, il y a
déjà, implicite, la construction d’un “néobaroque”» (Pelegrin, 1990:
33). A literatura portuguesa, em geral, participa desta ligação ao lon-
go de boa parte do século XX, quer através da construção historio-
gráfica do Barroco histórico e através da suma de discursos teóricos
(dos críticos e dos próprios autores), quer, sobretudo, através da prá-
tica textual que, na poesia, diversamente do que aconteceu em outros
lugares da “geografia neobarroca”, encontrou uma maior disponibili-
dade para a recepção, quando não um verdadeiro fascínio.

242

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Sexto Capítulo: Rastos Barrocos na Modernidade Tardia

LOUVOR DE RUY BELO


HERBERTO HELDER
E DE

Eu jogo
eu juro

Eu rezo
eu rio

Adília Lopes221

221
Adília Lopes, César a César, Lisboa, & etc, 2003.

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6.1 A suspeita do Avesso: Discursivismo e Retórica Barroca
em Herberto Helder

E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.

Herberto Helder222

Esta poesia é vital,


não posso compreendê-la por meros actos de dissecação;
gostaria de encontrar a ordem total dos resíduos,
para estrito entendimento do meu confronto com ela.

Joaquim Manuel Magalhães223

Já em 1962, um ano depois da publicação do primeiro livro de


Herberto Helder, A Colher na boca, que, todavia, integrava O Amor
em visita de 1958, António Ramos Rosa se referia a esta poesia fa-
lando em «barroquismo» e «preciosismo» como possíveis defeitos a
evitar224. Ambos os aspectos seriam defeitos caso pecassem «por estar
a mais», mas em Herberto «há excesso mas nada está a mais» – ci-
tando o exemplo dos versos de «Ciclo»: «o barroquismo e preciosis-
mo fazem parte intrínseca da matéria lírica, não sendo por isso mero
ornato dispensável, porquanto o poeta fala da abundância e excesso
do tempo das colheitas, em suma, da Primavera e do Verão» (Gue-
des, 1973: 33). Na verdade, a própria crítica, não escondendo a sua

222
«As musas cegas, V», in A Colher na Boca [PTII, p. 77].
223
Magalhães, 1989.
224
«Não consegue ele, para além de um certo barroquismo ou preciosismo, que é o
perigo que o espreita e o grave defeito que num ou noutro passo lhe podemos assinalar,
não consegue, dizíamos, ser ele um dos raros a atingir, momentos de exemplar depura-
ção formal e interior» (Rosa, 1962: 152).

245

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predilecção por aqueles textos em que o barroco e o preciosismo de
Herberto Helder resultam ainda mais evidentes, procurava justificar
a «multiplicação barroca dos sinais», como sendo uma verdadeira
«barreira verbal que o poeta opõe à esterilidade e à morte». A tumul-
tuosa anunciação metafórica das coisas, o imaginário transbordante
dos versos, a vertigem de uma nova língua desconhecida correspon-
diam, em suma, ao desafio entre excesso vital e aridez de morte e luto
dominantes e por tudo isto alcançou o estatuto, já canónico, sobretu-
do depois da releitura dos anos setenta, de poeta obscuro, enigmático,
o poeta “órfico”, cuja sabedoria se instala para além da racionalidade
e funcionalidade ocidental (pelo menos pós-iluminista), para se ligar
a um tipo de sabedoria mais antiga, ancestral na sua relação mágico-
alquímica, ou mesmo xamânica, com as coisas da Natureza.
Mas, retomando este nosso excursus crítico, é de Gastão Cruz a
indicação de que, no panorama da «poesia de 60», a lírica herbertia-
na, juntamente com a de Ruy Belo, se voltava a colocar numa linha
discursivista, abandonada na década de 40 e reactivada só através
da experiência surrealista. Como foi possível constatar nos capítulos
anteriores, tanto o discursivismo do primeiro como o do segundo225,
com todas as suas diferenças, admitiam uma particular expressão bar-
roca mais evidente no tratamento estilístico e formal da linguagem
poética. Se, então, por um lado, Ruy Belo podia ser definido «um dos
mais grandiosos e complexos monumentos da poesia portuguesa, um
monumento barroco, em que alguns dos mais relevantes caminhos e
experiências da poesia portuguesa moderna confluem numa síntese
poderosa» (Cruz, 1999: 112), por outro, o próprio Gastão Cruz ca-
racterizava a produção de Herberto Helder como:

Discursiva e barroca, [...] poderoso e fascinante edifício metafórico,


talvez sem paralelo na poesia portuguesa como criação de uma rea-
lidade separada, autónoma, de um lugar, [que] utiliza os recursos da
retórica tradicional, nomeadamente a elaboração de vários tipos de
estruturas paralelas ou repetitivas, de crescendos expressivos, como

225
Gastão Cruz (1999: 106) pretende que do comum substrato da poesia discur-
siva surrealista, seminalmente protagonista da destruição linguística, se irradiem, por
um lado, as brilhantes e vastas arquitecturas frásicas de Herberto Helder e, por outro,
o desmantelamento sistemático dos esquemas lógicos e sintácticos das últimas duas
vanguardas (concretismo e Poesia 61), reservando a Ruy Belo uma terceira solução de
compromisso e síntese entre estes dois tipos de organização da linguagem.

246

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travejamento e suporte de uma complexa organização da linguagem
(Cruz, 1999: 204).

Opulência, multiplicação, estrutura, arquitectura barroca: estas são


as conotações que não fazem senão repetir, ao mesmo tempo, o refrão
crítico acerca do papel da linguagem helderiana e da dificuldade de lhe
alcançar uma adequada compreensão. De facto, a grande resistência
desta poesia perante qualquer gesto crítico deriva não só da impossibi-
lidade de reconhecer as grandes isotopias temáticas que a ela subjazem,
com toda a carga de simbolismo que todavia elas acarretam (Dal Farra,
1986) – o princípio feminino (a «mãe», a «mulher», as «irmãs»), as
crianças, o «amor», «Deus», «loucura», a reflexão em volta do poeta
e do seu «fazer» – mas também, em grande parte, do “estranhamento”
que se experimenta perante esta «língua nova». Incapazes de a ler, preci-
saríamos de uma re-alfabetização que pudesse, utopicamente, prescindir
dos já adquiridos e normativos hábitos de leitura e de uma consequente
reconstrução lógico-semântica do mundo. Mas o choque provocado por
esta poesia tem origens muito mais profundas que as meras razões lin-
guísticas: este choque, este espanto decorre não apenas da complicada
estrutura fonética, prosódica e sintáctica, mas igualmente da sensação
de que todo o sentido literário foi, cada uma das vezes, transcendido,
como se a consequencialidade dos versos veiculasse um saber que dei-
xa de ser conhecível, para proporcionar uma nova percepção do real e
das coisas. Toda a poesia de Herberto Helder funda(-se) (n)uma nova
sintaxe, mas, para além disso, afirma-se como afirmação gnoseológica
(«Quero dizer: eu tudo sei»; «E eu agora sei tudo, e esqueço/ muito
devagar»; «Agora sei que devo saber, só/[...] Só agora escrevendo eu
sei» mas também «E eu faço uma canção arguta/ para entender. [...] Es-
crevo/uma canção para ser inteligente dos frutos/ na língua, por canais
subtis, até/ uma emoção escura»226): poesia de um «outro» conhecimen-
to, portanto, «cuja epistemologia permanece obscura por se fundar em
dados irracionais e ultrapassar os meios que a comum inteligência põe à
nossa disposição» (Amaral, 1988: 135). Porém, o conhecer, em Herber-
to Helder remete para a evocação de um tipo de experiência “diferente”
que abdica de qualquer princípio positivo de racionalização do real, já
que a sua poesia visa aproximar-se, pelo contrário, de um outro tipo de
racionalidade, mais marginal, descentrado, catártico:

226
«Teoria sentada, II», in Lugar [PTII, p.149].

247

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Hoje descubro as grandes razões da loucura,
os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas227.

O meu horrível pensamento só a custo


continha o tumulto dos mortos
[...]
– Eu sou a árvore e o céu,
faço parte do espanto, vivo e morro228.

Uma constante aprendizagem da incerteza, do desejo, da dúvida,


da carne e do corpo, da morte e do silêncio; poesia-aprendizagem que
acaba por forçar todos os limites, que prefere instalar-se no breve
limiar entre alucinação

A manhã começa a bater no meu poema.


As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores
líricas.
Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.
[...]
Talvez eu enlouqueça à beira desta treva
Rapidamente transfigurada229

e lucidez (Amaral, 1988: 135):

Poema não saindo do poder da loucura.


Poema com base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.230

“uma loucura inteligente”, uma distância a percorrer como fazem


«as crianças», as mesmas crianças «que enlouquecem em coisas de
poesia»231:

227
«As musas cegas, II», in A Colher na boca [PT II, p. 71].
228
Húmus [PT II, p. 286].
229
«O Poema, VII», in A Colher na boca [PT II, p. 39].
230
Poemacto [PT II, p. 101]
231
«Elegia múltipla VI», in A Colher na boca, [PT II, p. 64].

248

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As crianças invasoras percorrem
os nomes – enchem de uma fria
loucura inteligente
[…]
– E nada mais somos do que o Poema onde as crianças
se distanciam loucamente.
Loucamente. [PT II, p. 65]

Em cada acto de conhecimento, vai-se insinuando uma «desloca-


ção» decisiva, uma infiltração nas teias da razão, um grito, um sonho,
um significado, uma ausência: e tudo isso relembra a instabilidade
do conhecimento através da poesia, como reflexo da metamorfose
a que o reino das coisas está sujeito: «Durante a primavera inteira
aprendo/os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto / correr do
espaço – / e penso que vou dizer algo cheio de razão, / mas quando a
sombra cai da curva sôfrega / dos meus lábios, sinto que me faltam /
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer / coisa extraordinária.
/ Porque não sei como dizer-te sem milagres / que dentro de mim é o
sol, o fruto, / a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, / o amor, // que
te procuram»232.
Se o poema for considerado como um vestígio de um outro co-
nhecimento, alheio apenas às leis desse nosso universo, então, toda a
lírica de Herberto Helder pode converter-se numa imensa e perpétua
«ars poetica» onde se esboçam os caminhos nocturnos, ctónios, tor-
tuosos, primordiais, através dos quais – entre o abismo do silêncio
como extenuante tentação do homem («Cantaria como um louco este
grande silêncio do mundo» ou «Eu escrevia,/aplainando na tábua/
todo o meu silêncio») e o perigoso e exaltante abismo da destruição
na vastidão das forças da Natureza («Sou uma devastação inteligen-
te») – é possível aprender o segredo que, constituído pela própria
possibilidade da literatura, não é senão a constituição da própria po-
esia. A construção do poema e o seu poder destrutivo, a insistência
na forma e na estrutura da composição, no uso dos instrumentos, na
animosa identificação da palavra e do seu nome, na descida telúrica à
oficina do poeta, nas vísceras pulsantes dos versos: escrever significa
para Herberto Helder, contemplar a diferença, insinuar – nas teias, no
“tecido” do texto – a suspeita do avesso:

232
«Tríptico», in A Colher na boca [PT II, pp. 14-15].

249

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Minha cabeça estremece com todo o esquecimento
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.233

Obsessão latente já nos seus primeiros livros, e especialmente evi-


dente n’A Colher na Boca, Poemacto, A Máquina Lírica, é o proble-
ma da representação artística, da irresolúvel questão mimética entre
«representante» e «representado». Toda a obra helderiana assinala-se
pelas inúmeras tentativas de redefinir, segundo novas regras, a antiga
relação mimética, não deixando contudo de registar como todas as
soluções nesta matéria acabam por ser fragmentárias, sobretudo em
tempos de crise, como o da nossa Modernidade.
Talvez o paradoxo da arte poética helderiana resida na falta de
um centro, na sua vistosa recusa – provavelmente suscitada pela im-
possibilidade da própria poesia – de mostrar o processo de criação, de
mostrar-se in progress na sua inteireza. A sua obra poética conota-se
com um inventário – catalogado por um deus, igualmente, lúcido e
louco (impõe-se aqui a imagem de um Vulcão madeirense, afastado
e, todavia, sempre necessário, que constrói as suas armas em verso
para batalhas imaginárias travadas num «algures» possível como a
Europa)-, de declarações de canto, de escrita, mas também de insolen-
te procura da palavra ou do nome definitivo enquanto recriação do
mundo e das coisas:

Um poema cresce inseguramente


na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
[...]
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,

233 «O Poema II», in Poemacto [PT II, p. 98]

250

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e a miséria dos minutos,
e a força sustida das coisas,
e a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo, o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

III
[...]
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez


de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

Somente sei que a minha vida estremeceria, que


os braços sonâmbulos
iriam para o alto e queimariam a ligeira
noite de junho, ou que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo

251

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arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês de primavera e a terra
baixa e magnífica.234

Neste inventário poético, assente nos seus próprios fundamentos,


infiltram-se, porém, desde o início, indícios inquietantes que se desviam
de qualquer ordem lógica e racional do ser, que deixam à vista do poeta
apenas uma paisagem de destroços. A poesia de Herberto apela para
um poder de renomeação e reinvenção dos objectos, enaltece as suas
conquistas de palavras, continuando, contudo, sob a ameaça do esque-
cimento e do silêncio, do fim que se insinua em todo o princípio:

Eu penso mudar estes campos deitados, criar


um nome para as coisas.
[...]
Posso mudar a arquitectura de uma palavra.
Fazer explodir o descido coração das coisas.
Posso meter um nome na intimidade de uma coisa
e recomeçar o talento de existir.
Meto na palavra o coração carregado de uma coisa.
Eu posso modificar-me.
Ser mais alto do que a corrupção.
[...]
Criar é delicado.
Criar é uma grande brutalidade.
Porque eu sou feliz. Durmo
na obra.
Só eu sei que a loucura minou este ser
inexplicável
que me estende nas coisas.
A loucura entrou em cada osso,
e os campos são o meu espelho.
Esta imagem perfeita arromba os espelhos.
Os nomes são loucos,
são verdadeiros.235

234
«O Poema, I» e «O Poema, III», in A Colher na boca [PTI, pp. 40-41 e pp.
46-47].
235
«IV», in Poemacto [PII, pp. 105-107].

252

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Escrevo sobre um tema alucinante e antigo.
Esquecimento
que me lembrasse agora para sempre
como
uma roseira. Como
que escrevo assim com um grito maravilhoso
dentro da carne podre, terrivel-
mente.
Nas pancadas da boca.
– Sei cantar devagar, de pé, a enlouquecer muito.
Respirando, sangrando tanto.
Sei cantar com estrelas iradas.236

De todas as inúmeras referências à arte poética de Herberto Hel-


der, a que aqui mais nos interessa é a possibilidade de analisar – quase
transversalmente – a zona in limine (que não deve ser entendida me-
ramente em termos de uma historicidade linear e progressiva) onde,
ao lado da estética surrealista malgré lui, um certo barroquismo da
expressão aproxima o poeta das experiências poéticas da Vanguarda
Experimental e que passará também a informar o resto da dicção
poética. De facto, se «a sua obra, que de início poderíamos dizer pós-
surrealista, abre-se depois a um certo barroquismo, onde o lúdico as-
sume um papel de especial relevo» (Marinho, 1982: 89), recordando
assim a fase tipicamente experimental do poeta, é preciso reconhecer
que a poesia helderiana participa da estética barroca não só através
da operatividade experimentalista do lúdico e do combinatório, ba-
seada numa concepção de texto como jogo, mas também através de
um impulso catalizador estilístico e formal relativo a uma poesia que,
como vimos, é – pela sua natureza – altamente discursiva e retórica.
Neste sentido, um texto como o apólogo, com o título «Manei-
ras, II» em Retrato em Movimento, que foi publicado no primeiro
número dos cadernos de Poesia Experimental, como nota introdutiva
da revista, resulta muito significativo. Aqui, Herberto não só explici-
tava os seus princípios poéticos, mas sobretudo alargava o discurso
para a questão da mimesis em arte, cujos termos o experimentalismo
português, conforme o ditado de todas as vanguardas, se propôs rein-
ventar. Leiam-se as seguintes linhas como um verdadeiro manifesto

236
«Lugar último», in Lugar [PT, p. 140].

253

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que, vanguardistamente, pretendiam pôr em causa todas as regras da
mimesis clássica, para assim reivindicar a autonomia do artista novo
e da luta que ele trava entre aquilo que se pode definir como o com-
plexo de fidelidade de Cézanne (ao copiar a cada hora do dia a mon-
tanha Sainte-Victoire na Provença) e a insídia do real:

Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário,


um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela
sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro
a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por detrás da cor
vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e
tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia
surpreendido à chegada do novo peixe.
O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que
pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia
agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os
elementos do problema constituíam-se na própria observação dos fac-
tos e punham-se por uma ordem, a saber: 1.º – peixe, cor vermelha,
pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe
e o quadro, através do pintor; 2.º – peixe, cor preta, pintor, em que
a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva
fidelidade do pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisa-
mente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou
que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de pres-
tigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange
tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a meta-
morfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou
na sua tela um peixe amarelo (Hatehrly e Melo e Castro, 1981: 33).

O poeta experimental – acidental? (Diogo, 1997) – Herberto Hel-


der tencionava, ainda na esteira de um certo “combate” típico da
modernidade literária, adequar o princípio de imitação às exigências
de um novo tempo artístico, em que o pacto de antiga fidelidade entre
real e «representado» (fundada na univocidade realizada, graças à
física do olho e à recepção racional da imagem e pelas regras perspec-
tivais do desenho), fosse substituído por um novo tipo de fidelidade,
assente numa lei estruturante do mundo das coisas e da imaginação:
a metamorfose.

254

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A glosa deste texto legitima o gesto vanguardista de conceber toda
a obra de arte segundo diferentes modalidades, que, pelo facto de
escapar aos padrões tradicionais, exigem instalar-se para além dos
limites convencionais, aspirando à liberdade, à plena abertura, à am-
biguidade. Se a lei da metamorfose funda a ordem das coisas, já na es-
sência ambíguas, indefiníveis e polivalentes, o artista não pode senão
assumir-se como experimental, no sentido em que a sua procura se
caracterizará como aproximação estática, sempre ulterior, da aleato-
riedade do real, tentando ser a sua melhor testemunha.

Estes cadernos de poesia experimental pretendem assumir a respon-


sabilidade de afirmar que, perante a consciência do homem (testemu-
nha), coisas e acontecimentos – carregados da ambígua energia – sus-
citam, para a revelação, uma liberdade experimentadora que executa,
evidentemente, em sentido poligonal.
O peixe vermelho continha em si a cor preta, isto é, qualquer cor, to-
das as cores. A fidelidade do pintor encontrou para se garantir, a cor
amarela, cor que naturalmente, o pintor poderia vir a substituir pelo
azul, sempre para se garantir a conivência com o real.
Esta ambiguidade, indefinibilidade e polivalência do real são testemunha-
das, no plano da representação estética, pela experimentação e o encon-
tro sucessivo, determinados por desajustamentos e ajustamentos entre a
imaginação e a realidade...(Hatherly e Melo e Castro, 1981: 33-34).

Assim, perante o impasse mimético do pintor que já não tem mais


nenhuma certeza em termos de tradução artística, a proposta poéti-
ca helderiana encaminha-se para a experimentação de novas técnicas
verbais e visuais (lembrem-se os seis poemas visuais publicados no se-
gundo número de Poesia Experimental) que podemos identificar, na
mais ampla acepção, com uma ideia de texto como jogo, onde operam
os esquemas do lúdico e do combinatório. Textos como Electronico-
lírica (desde 1967, com o título de A Máquina lírica), A Máquina de
emaranhar paisagens, Comunicação Académica são paradigmáticos
desta escolha estilística, já de resto amplamente discutida por Herber-
to, na nota final do primeiro destes livros: «O princípio combinatório
é, na verdade, a base linguística da criação poética»237. O princípio

237
«Em 1961 Nanni Balestrini realizou em Milão uma curiosíssima experiência.
Escolhendo alguns fragmentos de textos antigos e modernos, forneceu-os a uma cal-

255

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combinatório em Comunicação Académica torna-se numa espécie
de interseccionismo elevado à potência, onde a primeira proposição
«Gato dormindo debaixo de um pimenteiro» é dilatada ao infinito:
noite do gato na noite da cal com a noite das folhas dentro da
noite do verdíssimo debaixo da noite do sonho diante da noite do
pimenteiro após a noite da água conforme a noite debaixo com a
noite enrolada contra a noite do amarelo desde a noite das sombras
consoante a noite redonda para a noite de dentro durante a noite do
vermelho detrás da noite dos tempos debaixo da noite sem à frente do
com da noite conforme a noite conforme: a noite dos tempos: um gato
dentro desaparecendo num pimenteiro: pimenteiro desaparecendo: a
cal morrendo no sonho das folhas pequenas: o silêncio de tudo no
mundo inteiro:

et caeteramente vosso inteiro:


herberto helder:
em janeiro:
mil novecentos e sessenta e três238

Já nos poemas de A Máquina lírica, o jogo da combinação lin-


guística, se bem que parcialmente mais controlado, aspira, todavia, à
expressão de uma vertigem hipnótica imposta ao leitor pela obsessão
das repetições, pelo encanto magnético, pela fúria dionisíaca enquan-
to metáfora de toda a poética helderiana.

culadora electrónica que, com eles, organizou, segundo certas regras combinatórias
previamente estabelecidas, 3002 combinações, depois seleccionadas. O autor destes
poemas aproveitou da referida experiência o princípio combinatório geral nele implí-
cito. Assim, utilizando um limitado número de expressões e palavras mestras, promo-
veu a sua transferência ao longo de cada poema, sem no entanto se cingir a qualquer
regra. Sempre que lhe apeteceu, recusou os núcleos vocabulares iniciais e introduziu
outros novos que passavam a combinar-se com os primeiros ou simplesmente entre si.
Devido ao uso de restrito número de palavras, as composições vinham a assemelhar-se,
nesse aspecto certos textos mágicos primitivos, a certa poesia popular, a certo lirismo
medieval. A aplicação obsessiva dos mesmos vocábulos gerava uma linguagem encan-
tatória, espécie de fórmula mágica, de que o refrão popular é um vestígio e de que é
vestígio também o paralelismo medieval, exemplificável com as cantigas dos cancionei-
ros» (Helder, 1964: 49-50).
238
Comunicação Académica [PTII, pp. 245-246].

256

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Mulheres correndo, correndo pela noite.
O som de mulheres correndo, lembradas, correndo
como éguas abertas, como sonoras
corredoras magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.
Lenços vivos com suas patas abertas
como magnólias
correndo, lembradas, patas pela noite
viva. Levando, lembrando, correndo239.

Poesia combinatória que se configura como uma barroca e multí-


plice variação do «mesmo». O faustoso e complicado discursivismo
de Colher na boca, sustentado num sólido suporte retórico e expres-
sivo, dá lugar à radicalidade experimental do poeta que, fazendo-se
ele próprio “máquina lírica”, compete, de certa forma, com a produ-
ção do calculador electrónico de Balestrini, acabando por declarar ter
sido ultrapassado pela parte do homem.
Se, enfim, for possível aproximar algumas das práticas poéticas
helderianas à estética barroca moderna não se deverá esquecer que
estes reflexos de barroquismo reflorescem, aqui e ali, mais ou menos
visíveis, em certos momentos formais e estilísticos no processo de uma
poesia que, desde o seu aparecimento, tem metabolizado todas as es-
colas, todos os influxos, todas as estéticas. Em Herberto Helder certas
formas e certos traços barrocos são o fruto da sua muito pessoal ree-
laboração poética, quer onde a estrutura discursiva se deixa intricar
numa espécie de desafio à profusão semântica e figural, quer onde o
jogo poético, em contacto com os experimentalismos de vanguarda,
insiste no princípio combinatório enquanto explorador de um «mul-
típlice» sentido, eco secreto do concitado e sincrónico ritmo com que
batem estes versos.

239 «Mulheres correndo, correndo pela noite.», in A Máquina Lírica [PTII, p.


260].

257

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6.2 Ruy Belo: Da Poesia como Destruição dos dias.

Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me.


Suicido-me nas palavras. Violento-me.
Altero uma ordem, uma harmonia, uma paz que,
mais do que a paz invocada como instrumento de opressão,
mais do que a paz dos cemitérios,
é a paz, a harmonia das repartições públicas,
dos desfiles militares, da concórdia doméstica,
das instituições de benemerência.
Ao escrever, mato-me e mato.
A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis,
desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação,
até o nível de conformismo, da conivência com a ordem,
qualquer ordem estabelecida.

Ruy Belo240

Procurar o verdadeiro rosto do poeta no momento em que ele se


mostra, no momento em que se expõe, percorrer os itinerários indica-
dos pelos seus próprios rastos. Confiemos na contribuição, proporcio-
nada por Ruy Belo, para a sua própria crítica, sobretudo quando a sua
imagem nos é oferecida como amaneirada construção metafórica:

A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa.
Alguém que me procure tem de começar – e de se ficar – pelas pala-
vras. Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabeleci-
das no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada,
como eu não sei.

240
Extraído de «Ao correr dos dias» (Belo, 1984: 290) e agora com o título de
«Breve programa para uma iniciação ao canto» [TP, p. 267].

258

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Ou leia-se, paralelamente a esta última, a declaração segundo a
qual, para compreender quem é o poeta, por curiosidade ou por uma
certa forma de enganar o tempo, é necessário desviar o nosso olhar
para a banalidade dos gestos quotidianos, isto é, entrar na sua casa de
banho enquanto ele lava os dentes, não sendo isso mais do que uma
maneira diferente de escrever versos:

Não queiram saber quem sou


ou se porventura alguém por curiosidade ou forma de passar o tempo
quiser alguma vez saber quem sou que veja como lavo os dentes
e que estou tanto nessa lavagem dos dentes como toda a pessoa
que lava os dentes
sozinha em casa a uma certa hora da tarde na casa em sombra.

E, de facto, como nos versos anteriores do poema, no final da cadeia


de comparações metafóricas:

com a maior parte da vida já trás das costas


com um certo número de palavras como a vida deitadas para trás
das costas
e deitar palavras para trás das costas fosse alguma coisa como
semear
meter em andamento através do campo lavrado a mão na
serapilheira
dependurada do ombro esquerdo tirar ritmadamente um punhado
de semente
e espalhar a semente ao vento nos sulcos antes abertos pela
charrua
como se deitar palavras para trás das costas que é afinal o gesto de
quem escreve
fosse pelo menos lavar os dentes241.

Em suma, quem ao longo desta obra, definível como um único


grande “poema”, se arriscar a traçar uma definição (ou uma sua apa-
rência) do poeta, aceita, desde logo, ficar no interior das coordenadas
disseminadas pelo próprio Ruy Belo por convenção ou, talvez, apenas
por desafio a si e ao leitor.

241
«Ao lavar dos dentes», in Toda a Terra [TP, pp. 484-486].

259

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Eu que seja dogmático, pronto: poesia é complicação, é doença da
linguagem, é desvio da sua principal função, que será comunicar. Só o
poeta se fica na linguagem. Os outros passam por ela, servem-se dela,
embora possam ser sensíveis a ela (Belo, 1984: 96).

Ruy Belo alinha pelo lado das palavras («Quando o silêncio um


dia nos unir/ então seremos todos nós palavras»), do significante e do
significado e da diferença entre eles242,

Árvore-cântaro-âmago-estrela
hera-mênfis-ocre-ontem
e hoje um álamo de uivos
Fui-vos fiel, vogais? Conforme consoante...
Venho da vida e trago uma gramática243

pelo lado da linguagem (a poesia como «aventura da linguagem»


é citação demasiado conhecida), pelo lado de quem sempre reclamou
o labor limae como princípio operativo («vou polindo o poema sen-
sação de segurança»), pelo lado da palavra poética, da sua respon-
sabilidade («A poesia pode muito para mim/ pois vem iluminar os
meus fantasmas/ Quando uma sociedade se corrompe/ corrompe-se
primeiro a linguagem»244) e da sua primazia sobre a palavra prática,
de consumo, de comunicação (Belo, 1984: 79-86). Ele escolhe o lado
de quem constrói fatigantemente versos contra (ou apenas para além
de) qualquer economicismo que pretenda equiparar trabalho e reali-
zação da obra245; a sua ideia de poesia vai ao encontro de uma lírica

242
Cfr. por exemplo, «Sobre um simples significante», in Transporte no Tempo,
significativa narração em verso do «desconcerto» do poeta perante a diferença entre
signo e significado: o extenuante jogo rímico (todos os versos acabam em “-al”), mais
do que simples suporte formal, remete para o tratamento lúdico, típico da sua poética,
daquela irreduzibilidade semântica das palavras (neste caso, de uma palavra fortemente
conotada como “natal”): «Ainda que me considerem um filólogo profissional/ e tenha
escrito páginas e páginas sobre qualquer fenómeno fonético banal/ não conheço a pa-
lavra».
243
«Certas formas de nojo», in Boca Bilingue, [TP, p. 117].
244
«Enganos e desencontros», in Despeço-me da Terra da Alegria [TP, p.642].
245
«...escrever não constitui nem pode constituir uma profissão. Poeta de profissão
pode sê-lo o paladino dos movimentos literários, não o criador, que às vezes, apesar
disso, é. Não há horário nem remuneração, nem em geral protecção sindical que contem-

260

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que explora tanto a sua esteticidade quanto a sua eticidade, represen-
tando em Portugal o último expoente moderno a aspirar à conciliação
entre as duas posições246.

Poema de palavras não de paz mas de pavor


construção linguística difícil aparentemente
eu que em troca da vida e do triunfo me tornei teu íntimo cultor
sob essa superfície de impassível frialdade
sei que se oculta a voz não da humanidade
palavra do mais dúbio dos significados
mas dos homens que dostoievski viu ofendidos e humilhados
Quente e humana embora na aparência fria
que a todos se destine a poesia247.

e vã é a palavra do poeta
se não atenuar a dor da vida e preparar
a serenidade visual visível na iminência do futuro248

Para voltar, então, à primeira expressão de poética implícita, o


dicionário (do latim dictio «exposição») remete para a metáfora do
próprio poeta, através da qual Ruy Belo se expõe mostrando, depois
do definitivo abandono da vida como critério de compreensão crítica,
que o caminho privilegiado, para quem procura descobrir o acesso à
sua poesia, está assinalado, com num dicionário, pelas mesmas pala-
vras, isto é, pela relação estabelecida entre elas no texto. E, todavia, a
palavra poética está condicionada, inevitavelmente, por uma parciali-
dade do saber, uma parcialidade cada vez mais residual, marginal, de
forma a aproximar-se com a “total ignorância” do «não sei nada»:

ple, esgotando-a, a criação literária. O acto poético não se insere no tempo contínuo,
sucessivo. A duração de um breve mas intenso pensamento talvez equivalha às sete ou
oito horas de trabalho diário previstas pela legislação corporativa», (Belo, 1984: 44).
246
Neste sentido julgamos que devem ser lidas as considerações de Ruy Belo ao
destacar, na poesia contemporânea portuguesa, três correntes: «a do realismo, a da
vanguarda e a daqueles que estão atentos aos problemas levantados por uma e pela
outra mas se empenham sobretudo em solucionar as questões que a sua própria obra
lhe vai pondo», filiando a sua própria obra naquele terceiro grupo que define «dos não
alinhados» (Belo, 1984: 24-25). A este propósito veja-se ainda (Belo, 1984: 248-251).
247
«Primeiro poema de madrid», in Transporte no Tempo [TP, p. 292].
248
A margem da Alegria [TP, p. 421].

261

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Ó palavra impossível cuja vizinhança
a outra, útil ou portátil, não consente,
abre o poema, símil da lábil criança249.

Iniciar e ficar, iniciar para ficar, para residir nas palavras do po-
ema: é este o convite de Ruy Belo. O dicionário aberto, ilimitado,
representado por esta poesia, regista ou aspira a registar, todas as
palavras que formam a língua (as línguas, melhor dizendo) do poeta.
A aspiração de resolver toda a experiência e todo o conhecimento na
língua, a circunscrever-se a si próprio dentro da construção textual
é evidente na recusa da vida, de cada acção, de cada gesto, de cada
atitude, de cada papel ou exigência que ela comporta («Curriculum
atestado testemunho opinião…/ [...] A mínima palavra não será como
prestar/ em certo tipo de papel qualquer declaração»): viver das pa-
lavras, pelas palavras, incidir a priori o seu próprio epitáfio para ser,
embora inutilmente, lembrado como artesão de versos («Trinta dias
tem o mês/ e muitas horas o dia/ todo tempo se lhe ia/ em polir o seu
poema/ a melhor coisa que fez/ ele próprio coisa feita/ ruy belo portu-
galês/ Não seria mau rapaz/ quem tão ao comprido jaz/ ruy belo, era
uma vez»250).
Se a vida e a biografia do poeta não garantem algum conheci-
mento, algum saber prévio, isso acontece porque toda a arte poética
de Ruy Belo é uma forma de resistência à vida pessoal, às intromis-
sões da realidade e da existência: «perguntam-me quem fui e fico
mudo/ …A minha vida é hoje um sítio de silêncio»: a vida, por se ter
tornado ininterrogável, impede uma qualquer compreensão definiti-
va («não peço nada à vida que a vida era ela/ e que sei eu da vida sei
menos que nada»), ela subtrai-se a uma sua unívoca representação.
Há uma certa calculada predilecção, digamos assim, pela relutância
em Ruy Belo, um prazer de nunca se expor por inteiro, um gos-
to no desfrutar do fluxo barroco dos seus versos, o discursivismo
torrencial, para dizer-se sem realmente se dizer inteiramente, para
mostrar-se ocultando-se, redesenhar-se a cada momento na instabi-
lidade das palavras («Não perguntem quem sou/ neste momento em
que recordo e escrevo»); tal como o homem da “tarde” de «Relató-
rio e Contas» o poeta é, ao mesmo tempo, quem «no maior número

249
«Ce funeste langage», in Boca Bilingue [TP, p. 131].
250
«Cólofon ou epitáfio», in Homem de Palavra(s) [TP, p. 264].

262

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de palavras nada disse» ou quem tem a «incorrigível mania de trocar
coisa por coisa/ que faz com que eu repita a mesma palavra/ para
falar de realidades diferentes». Esta poética toca o vislumbre de uma
margem de conhecimento, sempre diferente e por isso sempre precá-
ria, em que a imagem do eu que escreve se traduz em engenhosas e
iluminantes volutas, na ostentação do excesso sígnico como tentati-
va de preencher o vazio da poesia

(Falo muito de mim e de muitas maneiras


algumas delas transpostas fantásticas fingidas
mas quem há-de morrer e quem é que nasceu
mais presente a mim próprio do que eu?)251.

Conhecer-se através da escrita não é mais do que um risco, um


caminho para uma síntese sempre frustrada: apenas restos se podem
recolher do passado para tentar reconstruir o inacabado “puzzle”
do presente. Voltar a dizer a própria vivência constitui somente uma
mera ilusão de totalidade; conseguir saber alguma coisa sobre si pró-
prio significa, hoje, acumular palavras destinadas de qualquer forma
à provisoriedade («e a palavra é mais que nunca provisória»).
A construção da poesia em Ruy Belo requer sempre uma forma
de sacrifício, de abdicação de qualquer posição de conveniência: po-
demos, então, retomar, neste contexto, a reflexão de Bataille sobre
a escolha “sacrificial” a que o poeta, fazedor de coisas sagradas, se
dedica sempre que a escrita se conota como acto voluntário de recusa,
mais do que nos termos de uma ascese, nos de uma ocupação integral
da existência, sem mais tempo a seu dispor.

Le terme de poésie, qui s’applique aux formes les moins dégradées,


les moins intellectualisées, de l’expression d’un état de perte, peut être
considéré comme synonyme de dépense : il signifie, en effet, de la fa-
çon la plus précise, création au moyen de la perte. Son sens est donc
voisin de celui de sacrifice. Il est vrai que le nom de la poésie ne peut
être appliqué d’une façon appropriée qu’à un résidu extrêmement rare
de ce qu’il sert à désigner vulgairement et que, faut de réduction préa-
lable, le pires confusions peuvent s’introduire; or il est impossible dans
un premier exposé rapide de parler des limites infiniment variables

251
«Corpo de Deus», in Homem de Palavra(s) [TP, p. 253].

263

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entre formations subsidiaires et l’élément résiduel de la poésie. Il est
plus facile d’indiquer que pour les rares êtres humains qui disposent
de cet élément, la dépense poétique cesse d’être symbolique dans ses
conséquences: ainsi, dans une certaine mesure, la fonction de repré-
sentation engage la vie même de celui que l’assume. Elle le voue aux
formes d’activité les plus décevantes, à la misère, au désespoir, à la
poursuite d’ombres inconstantes qui ne peuvent rien donner que le
vertige ou la rage. Il est fréquent de ne pouvoir disposer des mots que
pour sa propre perte, d’être contraint à choisir entre un sort qui fait
d’un homme un réprouvé, aussi profondément séparé de la société que
les déjections le sont de la vie apparente, et une renonciation dont le
prix est une activité médiocre, subordonnée à des besoins vulgaires et
superficiels (Bataille, 1967: 36-37).

Verdadeira arte poética, a de Ruy Belo, que é preciso inscrever


mais sob o signo do dom e da oferta, do que sob aquele de procura de
uma utilidade, de um proveito. Esta é uma arte poética que extrai da
sua dispendiosa e excessiva natureza a melancólica consciência de ter
percorrido sempre o caminho mais escarpado, a beirinha mais perigo-
sa junto do precipício do fim: «Sim. Considero-me falhado. Joguei a
minha vida na poesia e a poesia acabou. Pelo menos para mim. Creio
mesmo que a própria poesia morreu» (Belo, 1984: 32-33):

Pedra a pedra construo o meu poema


e é nele que dos dias me defendo
Nada sei de emoções manipulo morfemas
e nas cidades sinto a solidão dos campos
Humano mesmo se demasiado humano
não peço ou posso privilégios de poetas
e desconheço a carne cerebral de que careço nos
sonhos que me semeiam as semanas
cingidas de cidades sossegadas
onde só o silêncio é soberano
À arte dou o que devia à vida
[...]
A minha melhor vida é possível que resida
na mais gramatical ou linguística palavra
e uma voz ouvida e perdida
se veja no presente repetida

264

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Se não sei bem o que devo fazer
sei que devo fazer o que não sei252.

Contra o funcionalismo da cidade, contra o racionalismo do po-


der, contra a alegada supremacia do burocratismo urbano, enquanto
metáfora de todo o controlo exercitado pela sociedade, ergue-se a
figura do poeta da inutilidade dos seus frutos e do desconforto que
provocam: amarga e subtil acaba por ser a ironia de Ruy Belo ao aler-
tar os responsáveis pela paisagem:

Senhores dos planos de urbanização


responsáveis pela paisagem
cuidado com o poeta na cidade
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra do poeta253.

Em muitas variações, regressa à sua poética a imagem, igualmente


melancólica254 e potente, de quem sacrificou ao ofício de poeta («esse
ser dos espantos medonhos») todos os esforços e todas as horas do
seu tempo, como se escrever fosse um acto de prostração perante um
deus ausente: «O poeta sensível e até mais sensível porventura que os
252
«Pequena História Trágico-Terrestre», in País Possível [TP, pp. 392-393].
253
«Aquele Grande Rio Eufrates», in Aquele Grande Rio Eufrates [TP, p.85].
254
A temática da melancolia – ligada também à ideia de poesia como sacrifício –
induziu alguns críticos a falar de um visível legado maneirista na obra de Ruy Belo,
contraponto, aliás, do carácter formal da sua escrita. Joaquim Manuel Magalhães, por
exemplo, estudou os aspectos do maneirismo nas duas vertentes: «Mas se não podemos
chamar-lhe, por um critério idealista, maneirista, não podemos deixar de encontrar
nestas distantes homologias uma justificação para a sua evidente sedução por discursos
que ecoam Camões, Bernardes, Agostinho da Cruz, Rodrigues Lobo. A melancolia que
atravessa a obra destes nossos poetas é bem evidente na obra de Ruy Belo», (Magal-
hães, 1989: 167); «a sua poesia encontra-se ligada à crença na capacidade lógica de
organização discursiva e na possibilidade de distribuição retoricamente racional dos
ímpetos criativos que unem a interioridade anímica à exterioridade das coisas, ligando-
as numa indissociável intensidade vocabular. Daí que possamos evocar como antepas-
sados dos seus modos bem actuais de escrever, os grandes maneiristas (como Camões,
os românticos empenhados na racionalização do mundo interior como Wordsworth ou
Herculano, os modernistas anglo-saxónicos (como Eliot, o qual sobremaneira o levaria
até Dante)» (Magalhães, 1999: 148). Sobre os ecos barrocos e maneiristas na poesia
de Ruy Belo vejam-se ainda:(Langerdorff, 1991: 109-127); (Gusmão, 2000: 115-133);
(Silva, 2002: 252-256) e (Serra, 2003).

265

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outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia,
tentou evitar a todo o custo a vida privada»255.

Sou homem da palavra aquilo que mais passa


e ao mar e ao vento imolo o que na areia escrevo
[...]
à vida devo uma gramática da dor
sacrifiquei a paz a duas quando muito três palavras
nada é menos poético do que a poesia256

Como testemunho do obsessivo «dizer-se» no poema, de contar «a


génese e o desenvolvimento do poema» (veja-se o poema homónimo)
não apenas enquanto reflexão sobre a poiesis, mas contribuição para
apontar in progress o instante certo da escrita (estão mentalmente
fixados os contornos fluidos desta imagem física), Ruy Belo dissemi-
na em toda a sua obra indícios de poética implícita e explícita, que
mutuamente se fundam e se sustentam, pois que, como ele próprio
escreve, «no poeta o senso crítico é ainda uma manifestação – talvez a
mais importante – da virtude criadora» (Belo, 1984: 56). É por causa
da poesia que o homem sacrifica a própria vida257, já que o poeta,
abandonando-se a si próprio, rejeita o conforto da biografia. A entre-
ga de Ruy Belo ao «exercício» de escrever é total, como nos trágicos e
irónicos versos de «Emprego e desemprego do poeta»:

Bem mais do que a harmonia entre os irmãos


o poeta em exercício é como azeite precioso derramado
na cabeça e na barba de aarão

255
«Breve programa para uma iniciação ao canto», in Transporte no Tempo [TP,
p.268].
256
«Pequena História Trágico-Terrestre», in País Possível, [TP, p. 392]
257
«Há muito que considero isto de escrever versos em Portugal como uma fatali-
dade, muito menos grave aliás do que outras que afectam um país que as pessoas, não
contentes de verem já de si pequeno, procuram empequenecer, se possível, ainda mais.
No meu caso pessoal, confesso que, se faço versos, é porque, a bem dizer, não sei fazer
outra coisa, tanto assim que um dos não menores bens que desejo para os meus filhos é
que não se lembrem um dia de cultivar essa doença da linguagem que segundo alguns,
a poesia é», in «Poesia e luta pelo poder» (Belo, 1984: 274).

266

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Chorai profissionais da caridade
pelo pobre poeta aposentado
que já nem sabe onde ir buscar os versos
Abandonado pela poesia
oh como são compridos para ele os dias
nem mesmo sabe aonde pôr as mãos258.

Esta ideia sacrificial de entender o poema produz, como se viu,


uma representação do autor não apenas através de imagens do que
definimos relutância no mostrar-se integralmente, mas também atra-
vés de uma certa poética do “fingimento” , de ascendência pessoana,
que carrega os versos de um prazer de construção textual em termos
estilísticos, retóricos e semânticos. Assim, desde que «a poesia, como
tudo o que é humano, custa», nota-se em Ruy Belo um contínuo apelo
à lição da modernidade (no caso português, nomeadamente pessoa-
na), pela qual a conquista da autonomia do texto poético é, de facto,
irreversível. Ao poeta das novas gerações «não lhe interessa a biogra-
fia, mas sim a obra, o artefacto, a poesia – coisa feita» para alcançar
aquilo que, sem hesitações não hesita em dizer que «vale tudo: arti-
fício, fingimento (oh Fernando Pessoa), tempo, montagem, colagens,
colaboração colectiva, gralhas tipográficas» (Belo, 1984: 95). Depois
de Pessoa, o «fingimento», enquanto dispositivo literário e metafísico,
torna-se com Ruy Belo intrínseco na própria natureza da palavra po-
ética que, se por um lado, pressupõe uma palavra lógica pré-existente
como primeiro “fingimento” em relação às coisas e ao mundo, por
outro, representa um “fingimento” em segundo grau259. Em Homem
de palavra(s), a prosa poética intitulada «Os fingimentos da poesia»
exemplifica bem a sua posição estética, já discutida, por exemplo, em
«Os dois fingimentos». O poeta age conforme o Leonardo da «Última
ceia», a quem falta somente a cabeça de Judas para acabar a pintura.
O artista procura, então, um modelo adequado nos bairros populares

258
«Emprego e desemprego do poeta», in Aquele Grande Rio Eufrates [TP, p.28].
259
«Temos então que a palavra poética supõe a palavra prática [...] A palavra
que na origem, quando nova, foi poética corrompeu-se pela sua ligação à realidade
quotidiana ou às coisas contidas no conceito e pode, num terceiro tempo, voltar a ser
poética mediante a acção artística [...] O que fica debaixo é a palavra lógica e não a
palavra poética, quando esta, como vimos, é a primeira. E, se naquela extensão residia
o primeiro fingimento, reside nesta inversão o segundo fingimento do poeta» (Belo,
1984: 64-65).

267

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de Milão e, julgando tê-lo encontrado, leva-o com ele para represen-
tar as linhas do rosto, no espaço em branco do quadro.

Semelhante descrição parece-me ilustrar um dos caminhos do poeta.


Arranca esse senhor à linguagem aquelas palavras que lhe faltavam
para fechar um poema. Como é que lá chega? Pegando naquilo que
vê, pense ou sente e sacrificando-o ao fio da sua meditação. Despreza
aquele conjunto de circunstâncias que rodeavam a palavra e dá nova
arrumação à palavra liberta.
Tanto faz que se fale de desumanização, como de falsidade, como de
fingimento. [TP, p. 262]

A «ficção» opera no texto, porque o texto existe; é possível reno-


var o seu jogo até que ela fique nos limites da arte versificatória de
Ruy Belo. A palavra é a condição necessária para que a aparência se
insinue na realidade e o eu lírico tente preencher a fronteira entre o
que não foi e o que podia ter sido, entre o que é e o que nunca podia
ter sido. O poeta possui, ou melhor, torna-se desta forma boca bilin-
gue: o poeta de Pessoa finge a dor que deveras sente no fundo de uma
busca metafísica de gnoseologia humana, o de Ruy Belo, ao advertir
um sentimento, só linguisticamente pode sentir as suas manifestações:
aquilo que sinto ou finjo sentir é apenas o produto do uso da minha
linguagem, parece querer dizer:

Esta rua é alegre. Não é alegre uma rua anónima


mas a rua de são bento em vila do conde
vista por mim certa manhã após a chuva
e o nevoeiro a dissipar-se já junto de santa clara
E no entanto não é a rua de são bento que é alegre
Alegre sou eu. E nem mesmo é que eu seja alegre
Acontece simplesmente que me sirvo destas palavras
numa manhã de chuva para falar falar por falar
e não falar de mim ou de certa rua
Não costumo por norma dizer o que sinto
mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa
Isto, porém, são coisas que há já algum tempo se sabem
e talvez venham aqui para salvar este momento
para salvar romanticamente este momento
ou então para ilustrar um pouco desta vida que se perde

268

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e não só ao viver-se mas ao pensar-se sobre ela
ao atraiçoá-la tantas vezes como condição indispensável do poema
Mas que dizia eu? Dizia apenas «esta rua é alegre»
O mais é só comigo e com a subjectiva forma como passo a minha
vida260.

A língua da poesia é dos poucos idiomas que ainda permitem ex-


perimentar a provocação do duplo, do deslizamento de um princípio
de realidade para um de ficção ou, como acontece nos poemas de Ruy
Belo, esses dois planos sobrepõem-se, provocando uma espécie de in-
formação por refracção. Ambivalência de toda a definição («Dar o
dito por não dito»), jogos estilísticos de efeito, processos de expressão
especular do sujeito, cálculo da ambiguidade e procura da indetermi-
nação: tudo isso, e não só, caracteriza a poesia de Ruy Belo, que po-
demos realmente definir como um infinito diálogo com as vozes (deus
e o seu livro, a mulher ou as mulheres, a literatura, ou melhor, os
entes vivos que a instituição deste termo acabou por canonizar – Pes-
soa261, Camões, Sá de Miranda, Dante, Eliot –, o homem quotidiano,
conhecido ou não262) que dramatizam a cena, vozes tensas que repre-
sentam a metáfora de um eu lírico que se procura, que só se encontra
parcialmente e, se se encontra, a si próprio se nega. No famoso verso
«Nada na minha poesia é meu/ juro por Deus dizer toda a verdade»,
a relutância é levada às últimas consequências: aqui o “fingimento”
desemboca no ocultamento. Se o olhar do «outro», na tentativa de
compreensão do poeta, na pretensão de atingir a sua certa percepção
de unicidade («o nome») se caracteriza como um discurso privilegia-
do («Tem graça haver quem fale a meu respeito»), ao mesmo tempo,
a convicção e a boa fé «da gente» acabam por ser sempre frustrados

Muita gente me tem falado a meu respeito


como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse

260
«Esta rua é alegre», in Homem de Palavra(s) [TP, p.224].
261
Leia-se pelo menos este passo retirado de uma entrevista: «Odeio os génios,
as obras-primas. Em Fernando Pessoa está tudo. Meu santo Fernando Pessoa. É tão
perigoso, não é? Só conheço um livro mais perigoso. – Qual é? Adivinhe... – A Bíblia»
(Belo, 1984: 36).
262
Cfr. «Necrologia», in Homem de Palavra(s), «Portugal tem nove milhões de ha-
bitantes/ Lisboa talvez tenha um milhão/ Nada disto me pode consolar bem sei/ Morreu
antónio gião/ Eu não o conhecia nunca o conhecerei» [TP, p. 205].

269

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e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse

Muita gente me tem falado a meu respeito


mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece
e já nem sei ao certo quantos dias meço
[...]
Nada na minha poesia é meu
juro por Deus dizer toda a verdade
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro
Espero pela manhã como quem nasce
Ninguém sabe o meu nome porque
eu já perdi ao longe alguns dos olhos
e fui feliz em cafés de província onde eu me vi sentar

Digam que foi mentira, que não sou ninguém,


que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum263

Como pudemos notar nestes versos, significativos também pelo


seu jogo rímico-rítmico que funda muita construção textual de Ruy
Belo (é conhecido o verso «Do jogo ninguém me livra»; mas lembre-se
ainda a ideia do versejar por «desporto»), a alteridade do ponto de
vista não chega a expressar senão a instabilidade e a dúvida do poeta
(«Duvido de mim próprio: quem serei?»). Retrair-se da homogenei-
zação da opinião alheia264, tal como da fácil auto-representação de si
próprio, saber fingir, consiste, para Ruy Belo, num desafio, por exces-
so, à língua num jogo que comporta sempre certos custos («falo do

263
«Em cima de meus dias», in Boca Bilingue [TP, p.145].
264
«Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. Alguém se en-
carregará de institucionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os com-
panheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu.
Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa
tradição. Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conse-
guirão calar, amordaçar, reduzir», in «Breve programa para uma iniciação ao canto»
[TP, p.267].

270

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homem que nunca repousou sobre o que escreveu»), na carga barroca
de uma escrita que desperdiça informação e delapida palavras:

Muita gente me tem falado a meu respeito


mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece
tudo me aquece e tudo me arrefece
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem
Sou a doença e sou onde me dói
sou sítio onde se nega que se morre
Tem graça haver quem fale a meu respeito (TP, p.146).

Por este mesmo carácter de entropia semântica, de acumulação re-


tórica, de viçoso discursivismo enriquecido por grandes e pequenos nós
metafóricos, por achados assonânticos, aliterativos («as aliterações são
do meu prato favorito»), realizado com versos surplus que pendem e
deliciam, nós acreditamos, na esteira de uma antecessora linha crítica,
poder reconhecer manifestações de uma moderna estética barroca tam-
bém na lírica de Ruy Belo. De resto, acerca de um certo afloramento de
neobarroquismo, falou o mesmo poeta na «explicação preliminar» à
segunda edição de Homem de Palavra(s), não hesitando, relativamente
à estrutura formal de alguns versos como os de «Os cemitérios tributá-
rios», em recolocar a sua lírica num contexto moderno

Trata-se de um pequeno afloramento de neobarroquismo na poesia mo-


derna, o que não exclui a sua sedução afim pela poesia clássica. De olhos
postos no futuro, o poeta moderno escreve com toda a poesia anterior,
com toda a poesia e a arte anteriores e contemporâneas para trás265.

Tal como na maior parte da produção poética definida “neobarro-


ca”, também na de Ruy Belo é substancialmente ao nível de aplicação
formal que a estética barroca se torna operatória, tanto mais se se

265
«De como um poeta acha não se haver desencontrado com a publicação deste
livro», [TP, p.186]. Esta confissão escrita em 1978, dez anos depois da primeira edição
do livro, talvez pelo seu tom conciliador parece querer justificar as críticas de Gaspar
Simões feitas à sua poesia irrevogavelmente comprometida no amplo processo de «bar-
roquização» da moderna poesia portuguesa.

271

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pensar na explosão discursivista que toda a sua obra representa. De
facto, já nos primeiros dois livros Aquele Grande Rio Eufrates (1961)
e O Problema da Habitação – Alguns Aspectos (1962) tinha sido pos-
sível entrever uma paixão barroca pela adjectivação abundante, pelas
cuidadas inversões ou pelas construções «a contraste» («Esta manhã
gostaria de ter dado ontem/ um grande passeio àquela praia/ onde
ontem por sinal passei o dia»266), pelo preciosismo dos paralelos, pela
insistência na primazia fónica da cadeia silábica já que, como ele pró-
prio salienta, a rima é apoio mais do que constrição.

Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida


secreta cheia de pensamentos isenta de cuidados
Vem sentada na nova primavera
cercada de sorrisos no regaço lírios
olhos feitos de sombra de vento e de momento
alheia a estes dias que eu nunca consigo
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso
começa para além dela a ser longe
A amada é bem a infância que vem ter comigo267

Não caibo nesta tarde que me desfolhas


sobre o coração. Renovam-se-me sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida
[...]
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte
em nenhum outro lugar me edifiquei268

Que importa que morramos se o passado está certo


se voltas para nós a mágoa que te molha a face
de virmos de tão longe tendo-te perto?269

266
«Saudades de melquisedeque», in Aquele Grande Rio Eufrates [TP, p.46].
267
«Elogio da amada», in Aquele Grande Rio Eufrates [TP, p. 33].
268
«Composição de lugar», in Aquele Grande Rio Eufrates [TP, p. 39].
269
«Jerusalém, jerusalém...ou o alto da serafina», in Aquele Grande Rio Eufrates
[TP, p.76].

272

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Na composição longa, como as que se encontram em O Problema
da Habitação (retomado, depois de uma pausa, em Transporte no
Tempo e sobretudo em Toda a Terra), podemos ver que todos os ca-
racteres de escrita supracitados, de certa maneira, rebentam no fluxo
do discursivismo poético. Daí decorre que nos poemas mais extensos,
o influxo da construção barroca chega a impor todas as suas capaci-
dades miméticas como entretecer e revolver o discurso, desapertar e
ligar as suas unidades, combinar desfazendo: este é um fluxo versifica-
tório por agregação que prefere cobrir a página de linhas compactas,
apenas para o olho dir-se-á, dado que, ao nível sintáctico e estilístico,
dominam as interrupções (sem a ajuda técnica da pontuação, elimi-
nada juntamente com muitas das letras maiúsculas), as repetições,
as circunlocuções, as aproximações fonéticas mais estranhas e mais
óbvias, a procura de um ritmo vorticoso através de todo o tipo de
anáfora, de assonância, de aliteração:

Era uma vez talvez algum país de sinos


de sons entreouvidos no passado
constantemente renovado de quem morre cada dia
e forra de manhãs o interior dos olhos
pastor de escolhos vários entre os limos e os nimbos270

Deixa-me cultivar o dia apenas o meu dia


doméstico modesto ameaçado ajardinado
e só depois então depois morrer
com toda a atenção que o gesto principal requer271

Há vários aviões que vários vão


que várias vezes vão
Há aviões às vezes que levantam voo
inconcebíveis aviões emersos da imaginação
inconcebíveis e por isso concebíveis
concebíveis na estrita medida em que inconcebíveis
aviões impossíveis mais reais do que reais

270
«Imaginatio Locorum», in O Problema da Habitação – Alguns aspectos [TP,
p.105].
271
«Tempora Nubila», in O Problema da Habitação – Alguns aspectos [TP,
p.116].

273

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perfeitos pássaros provindos da cessante condição
ó aviões antecessores das aves
palavras vindas de étimos das quais os étimos dimanam
movimento de mãos produtoras das próprias produções
umas mãos que ao mover-se movimentam
criaturas que incríveis criam coisas suas criadoras
aves imitação dos imitados aviões
natureza nascida onde visivelmente nasce a vida
aviões aos quais a ave deve o voo
aviões naturais e aves artificiais
o em princípio mais pelo em princípio menos produzido
o mais o menos
o menos máximo o muito mais272.

Se reflectirmos em termos simbólicos, a mesma ideia de impenetra-


bilidade do poeta pode remeter para uma certa articulação da escrita,
para o tratamento poético que privilegia a desmesura discursiva, as
grandes voltas de palavras, que exibe em massa tudo o que está supér-
fluo. Há algumas composições que, melhor do que outras, reflectem a
estética neobarroca de Ruy Belo, fundada não só na concepção lúdica
e de «fingimento» da poesia, mas também no resgate da energia formal
como eminente produtor de sentido. Estamos a pensar na voracidade
torrencial dos poemas longos de Toda a Terra, onde a contorção dos
versos, a dobra métrico-semântica, o novelo fono-prosódico susten-
tam o vórtice “discursivista” e narrativo durante todo o poema273:

272
«Meditação montana», in Transporte no Tempo [TP, p.324].
273
Cfr. sobre a experimentação formal de tipo barroco no poema longo, leiam-se
estas considerações: «Ao mesmo tempo intervêm, sobretudo em Boca Bilingue, ten-
tativas que se inscrevem na problemática, contemporânea de então, da necessidade
experimental da poesia. A experimentação aí proposta, porém, está sobretudo ligada
ao Barroco peninsular que é uma das grandes influências na sua obra. O jogo concep-
tual e cultista começa a afirmar-se ainda que só em ocasionalidades de versos, e não
extensamente presente ao longo de todo um poema, como será em obras posteriores
(por exemplo, “Agora o verão passado”). As aliterações e as assonâncias acompanham
ritmicamente um encadeado de variações, sobre temas próprios e alheios, onde a pre-
sença de Pessoa se faz sentir, quer no afirmado quer na própria sintaxe» (Magalhães,
1981: 152).

274

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O duche de água fria lava em mim a poesia
e sabe-me a sabão se sabe a alguma coisa
coisa tão suja como o é a poesia
Sinto-me velho sei que nada valho
e amei mais o orvalho do que o ouro velho
Eu peço pouco espaço peço uma manhã
e um dia alguma terra apenas isso
[...]
A minha profissão foi esta fui pretexto para a vida
ser de algum modo em mim a vida o que é
sensação movimento consciência
contradição da morte horizontal tendência
Não fui nem a gravata nem o passaporte
não fui o diplomado ou o anel
não fui sequer um nome uma coisa talvez
uma coisa oxalá a terra que se encerra
em desafio lançado neste azul
à noite que impossível certamente agora
mais logo inexorável sobre nós se cerra
e mais que sobre nós sobre esta vida
insólita insolente e indomável274

No passado verão agora tantamente tão passado


verão coisa que na verdade vocês verão
leitores meus autores que verdade verdadinha não existe
no passado verão se o estive estive aqui
[…]
O tempo passa e poisa em cada face
e tu sombra suave que mais passas do que pisas
tens cabelos que entre ser e nada
nada mais são do que fronteiras indecisas
Somente o sumamente mundo inexistente é que
no fundo para mim existe verdadeiramente
[…]
A distância aproxima incontestavelmente
se vou de portugal falo melhor o castelhano e se
sinto sentir por ti quanto sentir consente quem mais sente

274
«Meditação anciã», in Toda a Terra [TP, p.533].

275

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difícil é ao vir que um sentimento assim aumente
como difícil é acrescentar dias ao ano que
são certos e determinados dias rigorosamente
O sol aqui esquece quem o sol aquece
ou esqueceria mal o sol pudesse275

Mas pense-se também em «To Helena» – em nossa opinião, o ver-


dadeiro manifesto barroquista de toda a poética de Ruy Belo –, em
que todos os meios expressivos são evocados pelo poeta para conter
no verso a síntese oximórica de cantar a sua mulher e a si próprio. O
jogo contrapontístico dos contrastes carrega-se de uma ritmicidade
ditada pelos quarenta e oito versos com rima em “-ente” (à excepção
de uma em “-ante”) onde, apesar da repetição, a monotonia não tem
lugar: o brilho do advérbio inicial («To helena» aparece quase como
canto adverbial), «helenamente» acaba por manter sempre inalterada
a tensão métrica.

Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente


A maneira mais triste de ser contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de se ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente

275
«Agora o verão passado», in Toda a Terra [TP, pp. 540-544].

276

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e mais contraditório quanto mais coerente
A via enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lentamente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de se ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdoar e todos justiçar dente por dente
de tanto desistir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente276.

No preciosismo construtivista deste poema reside toda a mestria


barroca de Ruy Belo, que tenta renovar os faustos desta mesma es-
tética, na sua vertente conceptista e cultista, tanto em termos for-
mais, quanto de concepção lúdica. Não maravilhará, portanto, que
ele preste, a um dos maiores cultores da poesia seiscentista de língua
portuguesa, Jerónimo Baía, a sua «Comovida Homenagem». O fas-
cínio dos modernos (a que chamámos de neobarroco) pela tradição
artística, e nomeadamente literária, do Barroco histórico, para além
de ser um impulso operatório formal – metáfora conceptual aplicável
à própria transposição poética –, é detectável na “releitura” dos poe-
tas e dos escritores dos séculos XVII e XVIII. Como vimos, pertence
à prática neobarroca de alguns poetas aquela poética que foi definida
como «de homenagem», onde a citação do homenageado remete di-
rectamente para um gesto, igualmente, de filiação e re-apropriação
estética:

À míngua de água numa língua de mágoa


a dívidas a dúvidas devidas

276
«To helena», in Transporte no Tempo [TP, pp. 312-313].

277

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nos levam secreções secretas e sacrílegas
de dádivas de vidas divididas

Em vão devasso os meus devassos dentes


remisso os arremesso a um insosso almoço
num círculo de ouvintes dos de antes distantes
que abraço no abraço que hoje posso

Embora aos centos sejam os assuntos


indiferentes passam transeuntes
e saem sons distintos dos extintos cantos
desses antigos entes designados mastodontes

Línguas de areia onde mingua a mágoa


e se divide a dúvida somente ouvida
olhar onde se agua a própria água
quem te saúda encontra enfim saída277.

Homenagem, então, como indício do gosto pessoal do poeta e,


sobretudo, como reconhecimento, em nada neutro, da vitalidade ope-
racional da lição retórico-formal de um certo passado, seleccionado
em detrimento de outras tradições: a imobilidade do antigo, no nosso
caso de um poeta do melhor barroco literário, é apenas uma quimera
que a prática artística tende a desmentir todos os dias.
É na moderna voz de Ruy Belo, tal como na voz de outros poetas
que estudámos ao longo destas páginas, que é possível sentir o eco do
Barroco histórico, pelo facto de ser uma construção novecentista. Em
Ruy Belo, chegámos a reconhecer não tanto uma cesura no retorno do
barroco, mas um novo e possível repertório que compile a moderni-

277
«Comovida Homenagem a Jerónimo Baía», in Transporte no Tempo [TP, p.
310]. Em toda a obra (poética e ensaística) de Ruy Belo existem referências à arte e à
poesia barroca, nomeadamente em «O beneficiado Faustino das Neves» ou «O tempo
sim o tempo porventura» de Toda Terra. Sobre a sua inicial desconfiança para com o
termo barroco aplicado a toda a arte em geral do século XVII, veja-se o artigo (1957)
«Roma volta a ser seiscentista. Exposição de pintura e escultura em via nazionale»: «A
designação de barroco, aposta a este período, é pelos menos perigosa e suspeita. Peri-
gosa por reunir tendências tão diversas como as que o século XVII contempla; suspeita
porque proveniente do século seguinte», publicado em Rumo, n.º 2, Abril, 1957, pp.
243-250 e agora em Belo, 1984: 308.

278

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dade poética em Portugal (se o século é pessoano, também o é graças
a Ruy Belo), um dos muitos pontos, em suma, de onde se possa partir
para a compreensão da actual poesia portuguesa.
E, desde que a presença da estética barroca – por vezes mais evi-
dente, outras mais sub-reptícia – atravessou as diferentes produções
poéticas conotando fortemente algumas, deixando rastos em outras,
não é possível negar que a sua ideia e as suas formas foram conta-
minando os vários domínios da literatura portuguesa (crítica, narra-
tiva, ensaísmo), pertencendo, todavia, à poesia o carácter fundador
e persistente. O neobarroco, dos anos 50 em adiante, não deixa de
produzir as suas metáforas na poesia portuguesa: o seu problema é
agora ver não tanto o “até quando”, mas sim “como” e “porque” é
que foi mudando.

279

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Paradoxo e intempestividade da conclusão

Qualquer conclusão contém necessariamente em si os melancólicos


sinais do fim e do fecho. Qualquer conclusão retira do tempo a sua de-
finição para, paradoxalmente, se instalar para além da temporalidade.
Concluir um trabalho, um ensaio, significa assim, no momento
imediato ao ponto final, torná-lo intempestivo, tal como os extempo-
râneos convidados de Nietzsche que, por se terem atrasado, chegaram
por último e com os últimos lugares se tiveram de contentar. O fim
conhece concomitantemente a saudade e o alívio do objecto de estudo,
entregando-o, todavia, à pacífica deriva da intempestividade. A con-
temporaneidade é o único tempo da escrita e todo o gesto que pretenda
anular o seu processo in fieri condena o seu conteúdo a uma posteriori-
dade crítica que, pela sua própria natureza, jamais se poderá actualizar
ou reescrever. Talvez por isso todas as tentativas de concluir, de acabar,
de levar a um termo fiquem, inevitavelmente, sempre frustradas, isto
é, irreversivelmente fora da dialéctica de matriz hegeliana que previa a
síntese final, enquanto resultado da acção de tese e de antítese e, assim,
a nossa investigação, tal como a procurámos circunscrever, corria o
risco de, paradoxalmente, nunca acabar. O fim, portanto, como para-
doxo e utopia. O fim como limite, senão injusto, pelo menos ilegítimo,
para quem aspira à abertura e à continuação, ao hibridismo do «ainda
não» e à contaminação do presente, ao risco sempre procrastinável da
crítica, ao prazer da aventura, descobrindo, cada uma das vezes, nova-
mente, objectos de arte que se desconheciam.
«L’analisi di un testo è interminabile. L’arresto, sempre relativo,
problematico e provvisorio, sarà dato soltanto da un certo grado di ri-
chiesta, socialmente determinato, di desambiguamento dell’ambiguato,
e corrispondente soddisfazione, ovvero da una conseguita, sempre in
un certo grado, normalizzazione» (Sanguineti, 1987: 209).
Analisar um texto, ou um corpus de textos, como tentámos fa-
zer aqui, significa assumir previamente a parcialidade de uma não
conclusão ou, talvez, a possibilidade de adiar os limites da pesquisa.

280

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Este ensaio, que tem a forma de uma dissertação – contrariamente
ao carácter de sistematização e imposição semântica278 que Roland
Barthes via neste género ensaístico –, aspira a dizer o fluxo infindável,
incessante do escrever (Blanchot, 1955: 16-20), neste caso, de escre-
ver poesia em Portugal, na segunda metade do século XX.
O processo poético – sobretudo se ligado a uma particular estética
fluida que tem atravessado as poéticas pessoais, geracionais e de gru-
po, de que é exemplo a estética neobarroca – acarreta sempre uma es-
pécie de resistência, onde o balanço é sempre provisório. Cientes, em
primeiro lugar, de que o “fresco” histórico (dos destroços de passado
estilhaçado que se reuniram) nada garante sobre o futuro dos “des-
tinos da poesia portuguesa”, dele se pode apenas extrair a intuição e
entrever caminhos que, mais cedo ou mais tarde, poderão ser abando-
nados. Ao falarmos de Neobarroco na poesia portuguesa preferiu-se,
desde logo, estabelecer que, se é lícito usar esta categoria para definir
a estética de certos textos entre as mais diversas produções poéticas,
isso só é possível se se tiver em conta a Modernidade subjacente na
qual repetidamente vimos, na esteira de Walter Moser, o terceiro re-
torno “novecentista” do barroco. O barroco português, como moder-
na prática da poesia (não esquecendo, contudo, a encruzilhada estéti-
ca e crítica sobre a qual se funda), pela sua intrínseca Modernidade,
não se esgota apenas dentro dela. O potencial criativo do neobarroco
nunca deixou de funcionar – de um «neobarroquismo nunca extinto
entre nós» (Lourenço, 2004: 17) –, uma vez chegados à beira do dis-
curso artístico moderno, a sua carga operatória, que funciona como
arquivo cultural da Modernidade, passa – com ou sem fracturas, com
ou sem continuidades – a informar as estéticas da Pós-modernidade
com sinais que, hoje em dia, são já, de alguma forma, visíveis, mas, ao
mesmo tempo, só parcialmente decifráveis. O fim do século (ou mais
enfaticamente do milénio?) não sabemos se indica, como disse Ana
Hatherly, a conclusão do ciclo barroco-maneirista iniciado nos anos
50: os limites pertencem à história, aquilo que acontece, aquilo que
acontecerá será sempre e apenas um sintoma, um indício do presente
por interrogar e não por historicizar.

278
«La dissertazione tende sempre a imporre un significato finale: si costruisce un
senso, un ragionamento per concludere, per dare significato a ciò che si dice. Ma il
problema per me è quello di esentare il senso, di colpirlo con una sorta di turbamento»,
(Barthes, 1998: 451).

281

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Se, como julgamos, existem objectos poéticos (ainda que não
apenas na poesia) que se podem rotular de estética neobarroca, na
literatura do Portugal pós-moderno, reivindicamos, através da nos-
sa investigação, uma «abertura» que leva à redefinição de possíveis
paisagens estéticas, à necessidade de evitar musealizações do cânone,
à felicidade de arrumar, mais do que uma vez por todas, os esparsos
mapas da cartografia barroca no mar da poesia portuguesa e inter-
nacional (neste sentido tentar-se-ia renovar a grande tradição ibérica
da oceanografia). Pois talvez tenha sido no próprio gesto de carto-
grafar os espaços culturais do Barroco do século XX que reparámos,
seguindo à letra as considerações de Boaventura de Sousa Santos, no
elemento barroco da cultura portuguesa279 e é este mesmo elemento
barroco que contribui para a definição daquele seu carácter peculiar
de cultura de fronteira, ou seja, entendida mais do que uma repre-
sentação de uma imóvel finisterrae, como uma verdadeira metáfora
da passagem e da disponibilidade à hibridação das formas: «A leveza
da zona fronteiriça torna-a muito sensível aos ventos. É uma porta
de vai-vem, e como tal nem nunca está escancarada, nem nunca está
fechada» (Santos, 1999: 147).
Será, então, a própria especificidade do nosso objecto de estudo
– a estética neobarroca na poesia contemporânea portuguesa –, por
tudo quanto foi dito sobre a sua natureza fluida, transversal e, de
certo modo, inacabada, que nos obriga a esta espécie de não con-
clusão. Por outras palavras, foi a própria investigação que produziu,
como sua consequência mais vistosa, a paradoxal impossibilidade de
nunca a acabar ou, por enquanto, de não a entregar ao seu definitivo
encerramento.

279
«Para além do acentrismo e do cosmopolitismo a forma cultural da fronteira
apresenta ainda outra característica: a dramatização e a carnavalização das formas.
Dado o carácter babélico, assíncrone e superficial das incorporações e das apropriações
forâneas, a forma fronteiriça tende a identificar-se, nessas incorporações e apropria-
ções, com as formas mais do que com os conteúdos dos produtos culturais incorpora-
dos. O substantivismo é residual e consiste no modo como tais formas são vernaculiza-
das. O desequilíbrio entre forma e conteúdo que assim se dá tem como efeito uma certa
dramatização das formas que é também uma certa carnavalização das formas, isto é,
um atitude de distanciação mais lúdica que profiláctica, mais feita da consciência da in-
consequência do que da consciência da superioridade. Nisto reside também o carácter
barroco da forma cultural portuguesa» (Santos, 1999: 146).

282

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Concluir, sem verdadeiramente concluir: com todo o paradoxo e
intempestividade que isso comporta.

(o resto vem no pessoa


Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais)

Ruy Belo280

280
«Da poesia que posso», in Homem de Palavra[s], [TP, p.249].

283

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Exorcismos,Lisboa, Moraes, 1972.
Conheço o Sal... e Outros Poemas, Lisboa, Moraes, 1974.
Quarenta Anos de Servidão, Lisboa, Edições 70, 1979; 3ª ed., Lisboa, Edições
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40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola implacável e outros


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Entre o som e o sul, Faro, Ed. do Autor, 1960.
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Poemacto, Sintra, Contraponto, 1961.
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7 Prefácio: Os fantasmas do Bar Daniela (por Roberto Vecchi)
13 Introdução

PRIMEIRA PARTE: REGOGNIÇÃO TEÓRICA SOBRE BARROCO E NEOBARROCO

25 Para uma Cartografia e uma Cronologia do (Neo)barroco

35 Primeiro Capítulo: The Resistance to Baroque


37 1.1 O Barroco como Construção Novecentista
59 1.2 Le Mot et le Concept
64 1.3 Do Seiscentismo ao Barroco: Breve História Crítica da
Interpretação de um Século

79 Segundo Capítulo: Epifanias Barrocas


81 2.1 O “Neo” do Barroco
92 2.2 A inversão Ideológica do Barroco
100 2.3 O Neobarroco: Versões (Pós)modernas

SEGUNDA PARTE: A CONSTELAÇÃO BARROCA NA POESIA


CONTEMPORÂNEA PORTUGUESA DOS ANOS 50 AOS ANOS 70

113 Terceiro Capítulo: Crítica e Poesia. A Obsessão Barroquista


121 3.1 O Mal do Século
128 3.2 Do Maneirismo ao Barroco: Variações em torno de Jorge de Sena
142 3.3 Perversio Ordinis. A Poesia de António Gedeão ou o Caos da
Harmonia

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155 Quarto Capítulo: Teoria da Palavra
167 4.1 Hermetismo Barroco: A obscuridade da Lírica Anti-discursiva
177 4.2 Uma “Família barroca”
190 4.3 O Nome das Coisas Antes do Mundo: O Alfabeto Poético de
António Ramos Rosa

203 Quinto Capítulo: Uma Vanguarda Barroca


205 5.1 Poesia Experimental como Vanguarda Neobarroca: Praxis e
Teoria Estética da Po.Ex.
233 5.2 Repensar-se no Tempo: Reabilitação do Barroco, Arqueologia
Experimental, Neobarroco Português
243 Sexto Capítulo: Rastos Barrocos na Modernidade Tardia
245 6.1 A suspeita do Avesso: Discursivismo e Retórica Barroca em
Herberto Helder
258 6.2 Ruy Belo: Da Poesia como Destruição dos dias.
280 Paradoxo e intempestividade da conclusão

285 Bibliografia activa: a poesia contemporânea portuguesa


291 Bibliografia Crítica sobre a Poesia Portuguesa Contemporânea
297 Bibliografia Crítica Geral

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ESPAÇO DO INVISÍVEL

VAGABUNDAGEM NA POESIA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA SEGUIDO DE UMA ANTOLOGIA


Casimiro de Brito

MEDIAÇÃO CRÍTICA E CRIAÇÃO LITERÁRIA EM ANTÓNIO RAMOS ROSA


Ana Paula Coutinho Mendes

A POESIA CONTEMPORÂNEA PORTUGUESA Fernando Guimarães


A RAZÃO DO AZUL Eduardo Prado Coelho
METAL FUNDENTE Eduardo Pitta
A MELODIA DO SILÊNCIO – SUBSÍDIOS PARA O ESTUDO DA POESIA DE ALBANO MARTINS
Álvaro Cardoso Gomes

A LETRA E AS TINTAS Albano Martins


A OBRA DE ARTE E O SEU MUNDO Fernando Guimarães
ANTÓNIO RAMOS ROSA, UM POETA IN FABULA Paula Cristina Costa
FINALIDADES SEM FIM Antonio Cicero
FRAGMENTOS DE BABEL SEGUIDO DE ARTE POÉTICA Casimiro de Brito
A LENTA VOLÚPIA DE CAIR Pedro Eiras
O PARADIGMA DO PUDOR Maria Bochicchio
INTRIGA EM FAMÍLIA Eduardo Pitta
SUSPEITA DO AVESSO – BARROCO E NEOBARROCO NA POESIA CONTEMPORÂNEA PORTUGUESA
Vicenzo Russo

SÉRIE QUASAR
EXISTE UMA LINGUAGEM POÉTICA? SEGUIDO DE OBRA E INTERTEXTUALIDADE
Karlheinz Stierle
Tradução de Rui Mesquita

O «HÁ» DA RELAÇÃO SEXUAL Jean-Luc Nancy


Tradução e notas de Pedro Eira

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SUSPEITA DO AVESSO
BARROCO E NEOBARROCO NA POESIA CONTEMPORÂNEA PORTUGUESA

VINCENZO RUSSO

PREFÁCIO POR ROBERTO VECCHI

BIBLIOTECA ESPAÇO DO INVISÍVEL

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1.ª EDIÇÃO, ABRIL 2008


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