Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Roberto Pontual
(publicado originalmente na Revista de Cultura Vozes, vol. 65, n. 3, abr. 1971, p.25-38)
8. Por volta de 1960, atuavam entre nós, além dos grupos concreto e neoconcreto,
outros grupos e pessoas mais ou menos ligados ao trabalho de romper com os
sistemas tradicionalmente seculares do livro e da leitura. Deles, os poegoespacialistas
sempre me pareceram os mais inventivos e radicais na criação de novas zonas de
pesquisa, apesar de hoje estarem encerrados em completo esquecimento. Tratava-se
de um grupo estranho, a ponto de eu acreditar, atualmente que muitos de seus
participantes (a quase totalidade dos que constavam como nomes nos catálogos), não
passavam de heterônimos de António Miranda (que, por sua vez, se assinava da,
nirham: eRos) e Carlos Alberto. Mas pelo menos eRos não era fantasma; ao contrário,
conheci-o bem como capaz da mais ininterrupta, exigente e múltipla criatividade.
Disponho de toda uma série de seus textos teóricos e projetos verbovisuais, entre os
últimos inclusive o Vate-mago (1961): conjunto de interessantíssimas pesquisas de
ludismo com a palavra ou a letra no espaço, acionadas pelo caráter simbolicamente
alusivo do movimento proposto em cada uma delas, com suas respectivas
conseqüências de linguagem. Há muita coisa ali oriunda do Livro Infinito de Reynaldo
Jardim, do Livro da Criação, de Lygia Pape, ou dos não-objetos verbais de Ferreira
Gullar e Osmar Dillon; no entanto, eRos levava o ludismo de seus processos em projeto
— acrescido do uso de variados materiais: papéis brancos, em cores, transparentes,
enrugados; papelões, metais, filmes velados ou cortiças — a um ponto de
inventividade tal que sua fala terminava bastante personalizada. Era, sobretudo, um
mágico (o não muito agradável título Vatemago revela sua consciência disto), tirando
de suas caixas da imaginação as surpresas quase infantis dó prazer de recriar as
palavras no mecanismo de novos espaços expressivos. Partindo da palavra inicialmente
percebida no seu todo — paginação, sobre a placa branca e ainda muda — a ação do
operador fazia nascer, de um lado a página, ao centro o objeto paginado (como um
foguete na sua plataforma de lançamento, pronto para o voo) e do outro lado à fonte
e resíduo de tudo: ação. Calendário abria-se subitamente em lendário palácio oriental
de papel de seda vermelho. Coberta passava a descoberta no momento em que se
puxava a área quadrada de filme velado cobrindo esta última. E tantos outros
ludopoemas visuais: campo intenso de ler diferente.
Daí meu assombro quando pude conhecer o Index, de Andy Warhol (que,
significativamente, coloca entre parêntesis o rótulo book, no frontispício dessa obra
publicada em 1967, nos EUA). Ali, algumas das soluções desenvolvidas por Warhol,
como exemplo excepcional de arte gráfica, aproximavam-se dos projetos esboçados
por eRos seis ou sete anos antes, no mesmo sentido de uma página-superfície que de
repente, por um passe de prestidigitação, se transforma em tridimensionalidade. Das
sucessivas páginas ou unidades do Index brotam (não mais de modo apenas figurado,
porém como surgimento real e concreto) pequenos aviões, castelos e cavaleiros
medievais, incômodos saltos de sólidos, latas (em papel) de suco de tomate, balões
infláveis de plástico, sanfonas vermelhas de som. O paralelismo de processos não
significa, evidentemente, que Warhol tenha conhecido e se apropriado das invenções
precedentes de eRos; significa, isto sim, que eRos, em um país subsidiário como o
nosso, inventou antes que o mesmo ocorresse, alguns anos mais tarde, no país de
cultura dominante. Assim, era como se em determinado momento tivéssemos deixado
de importar fórmulas fora fabricadas.
11. Cinco milênios de livro não bastam para que dele, enquanto suporte da leitura
e entidade física específica, quantitativamente nos afastássemos, de modo claro e
substancial. Salvo alguns exemplos de ruptura, mais ou menos drásticas, que a
contemporaneidade vai se encarregando de diversificar, o livro permanece hoje
fundamentalmente o mesmo; e é possível constatar que inclusive essas rupturas não
foram até aqui a permanente conseqüência extrema de negá-lo por completo,
instaurando um novo rumo de ver, anotar e transmitir o mundo. Tem-se a impressão
que o livro, preso a si próprio, está ficando para trás em relação à realidade que é a
nossa, de agora. Livrá-lo pode ser também tarefa.
Bibliografia
APOLLINAIRE, Guillaume. L'Esprit Nouveau et les Poetes, 1918. In L'Art Poétique, de
Jacques Charpier e Pierre Seghers. Editions Seghers, Paris 1956.
BLANCHOT, Maurice. "O Livro e O Livro de Mallarmé". Suplemento Dominical do
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13, 20 e 27 ago. 1960. Tradução de Roberto
Pontual.
BUTOR, Michel. Les Mots dans Ia Peinture. Albert Skira Editeur, Genebra, 1969.
CAMPOS, Augusto de. Poetamenos. In revista Noigandres, São Paulo, n. 2, fev. 1955.
— e CAMPOS, Haroldo. Panorama do Finnegans Wake. Conselho Estadual de
Cultura de São Paulo 1962.
— e CAMPOS, Haroldo e PIGNATARI, Décio.Teoria da Poesia Concreta.Edições
Invenção,São Paulo 1965.
CORTAZAR, Júlio. O Jogo da Amarelinha (Rayuela). Editora Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro 1970. Tradução de Fernando de Castro Ferro.
CUMMINGS, E. E. 10 Poemas. Serviço de Documentação do Ministério da Educação e
Cultura, Rio de Janeiro 1960. Tradução e introdução de Augusto de Campos.
DIAS-PINO, Wlademir. Processo: Linguagem e Comunicação. Editora Vozes, Petrópolis
1971.
GULLAR, Ferreira. "Não-Objeto: Poesia". Suplemento .Dominical do Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 27 fev. 1960.
— “Palavra, Humor, Invenção".Idem, 10 dez. 1960.
— Teoria do Não-Objeto. Rio de Janeiro 1960.
HOUAISS, Antônio. Elementos de Bibliologia. Instituto Nacional do Livro, Rio de
Janeiro 1967.
Invenção (Revista de Arte de Vanguarda). São Paulo, ano 6, n. 5, dez. 1966/jan, 1967.
MALLARMÉ, Stépliane.Un Coup de Dés, 1897. In Mallarmé — Oeuvres Complètes.
Librairie Gallimard,Paris1956.
MCSHINE, Kynaston. Information. Museum of Modern Art, NewYork 1970.
MERQUIOR, José Guilherme. "A Criação do Livro da Criação". Suplemento Dominical
do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 dez. 1960.
-— "O Humor Formal de Reynaldo Jardim". Idem, 17 dez. 1960.
MUCCI, Renato. "A Poesia Figurada". Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 5 nov. 1960. Tradução e nota de Osmar Dillon.
Noigandres. Poemas concretos de Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e
Ronaldo Azeredo. São Paulo, n. 3, dez. 1956.
— "Antologia do Verso à Poesia Concreta". Poemas de Augusto e Haroldo de
Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e Ronaldo Azeredo. São
Paulo, n. 5, 1962.
PAPE, Lygia. "Poemas — Invenção". Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 26 nov. 1960.
PONTUAL, Roberto. "Poesia: uma Nova Experiência". Suplemento Dominical do Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 26 nov. 1980.
— "O Não-Objeto Verbal como Síntese". Idem, 17 dez. 1960.
— "Não-Objetos Verbais: Diversidade de Experiências" Idem, 22 abril 1961.
SÁ, Álvaro de. "Poema/Processo: Contribuição à Vanguarda". Revista de Cultura
Vozes, Petrópolis, n. l, jan.-fev. 1970.
Studio International.Londres,n 924, jul.-ago. 1970.
WARHOL, Andy.Andy Warhol's Index(Book).Random House, New York 1967.