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Encyclopédie

O Dicionário da Razão

Em julho de 1751, há duzentos e cinqüenta anos, foi publicado o primeiro


volume de uma série que fez história: a Encyclopédie, cuja edição
estendeu-se por vinte e um anos, até 1772. Confirmou-se com o tempo
como o mais prestigioso monumento intelectual que o movimento
iluminista legou aos tempos modernos, concentrando em 28 volumes (17
de textos e 11 de ilustrações) a síntese de toda a sabedoria alcançada
pelo homem até então. Tornou-se, simultaneamente, um documento de
uma época e obra seminal de onde a maior parte da ciência
Diderot, "pai" da
contemporânea inspirou-se para avançar para patamares até então Encyclopédie
inimaginados pela humanidade: foi a Suma da Razão.

Uma Carta Suplicante

No verão de 1749, o conde d´Argenson, chanceler de Luís XV, recebeu


uma curiosa carta de súplicas. Tratava-se de um grupo de livreiros que
implorava a intervenção daquela eminência para que M. Diderot, um
notável homem de letras que havia sido preso e conduzido ao cárcere de
Vincennes na manhã de 24 de junho daquele ano, fosse solto. A alegação
dos negociantes era no mínimo curiosa. Haviam empatado um bom
sonante num empreendimento editorial, um dicionário universal de
ciências, de artes e ofícios, que só poderia ser tocado adiante por Diderot
e ninguém mais. Ele é quem tinha a chave do sucesso, alegavam. Não
revelavam os missivistas nenhuma indignação pelo fato de um escritor ser
encarcerado por delito de opinião (Diderot publicara um tempo antes um
ensaio intitulado Lettre sur les aveugles à l'usage de ceux qui voient, Carta
sobre os cegos para o uso dos que enxergam, que as autoridades
O globo visto pela ciência consideraram uma provocação), por tanto pediam humildemente a Votre
Grandeur, como repetidamente dirigiam-se a d´Argenson, que o libertasse
sob pena de levá-los à falência. Concluíram-na colocando-se sob a
proteção do conde, na expectativa de sensibilizá-lo com os rogos que faziam. Assinavam-na Le
Breton, David, L´aîne, Durand e Briasson, livreiros e impressores do rei. Desta forma, entre
mais três outros pedidos de clemência que se seguiram e junto às alegações financeiras, eles
afinal obtiveram a libertação de Diderot três meses e dez dias depois de ter sido preso, podendo
encaminhar os procedimentos para que, exatamente dois anos depois deste desagradável
episódio, o primeiro volume da Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et
des métiers, par une Société de Gens de lettres saísse do prelo no mês de julho do ano de 1751.

Ordens de Supressão e Queima

Mas nada garantia a livre circulação do novo


dicionário. Mal os dois primeiros volumes foram
distribuídos aos seus assinantes (conseguiram com o
tempo quatro mil inscrições ao preço de 372 livres
cada, um número espantosos para a época), o
mesmo conde d´Argenson entrou em ação em nome
do rei. A obra, dizia o despacho real, era um perigo.
Além de destruir a autoridade do monarca, visava
estabelecer o espírito independente, a revolta, a
elevar os fundamentos do erro, à corrupção dos
costumes, à irreligiosidade e à incredulidade. A Laboratório de química
Encyclopédie, concluía o Arret du Conseil d'État du
Roi, de sete de fevereiro de 1752, era uma ameaça à
ordem pública e à honra da religião, cabendo ao rei determinar a imediata apreensão e
destruição dos dois primeiros volumes. Sua Majestade tinha razão, o grande dicionário era tudo
aquilo mesmo. Ela iria implodir o Antigo Regime e inspirar a revolução de 1789. Por isso mesmo,
sete anos depois, em nove de fevereiro de 1759, quando atingia o seu sétimo volume, o
Parlamento de Paris aprovou e determinou que eles fossem laceres et brûlés, destruídos e
queimados, pelo carrasco. Ato que felizmente foi suspenso. Não revogaram, entretanto, a
determinação de 1757 que condenava à pena de morte ou às gales os autores ou editores de
"obras tendenciosas" que fossem distribuídas clandestinamente.

Denis Diderot

D'Alembert, co-editor da Encyclopédie

Os livreiros estavam certos, só Diderot era capaz de pôr aquela catedral da razão em pé. Não só
em função das suas múltiplas habilidades e ciências, mas também por seu temperamento. Ele
era um dos raros homens de letras de Paris com quem todos se davam bem, inclusive o
mercurial Jean-Jacques Rousseau, que, conforme a idade avançava, mais paranóico ficava.
Afável, sincero, confiável, Diderot circulava com desenvoltura nos salões onde se criticava
abertamente o despotismo ao tempo em que mantinha uma assídua correspondência com
Catarina II da Rússia. Ingênuo, chegou a supor ganhar a musa do despotismo para a causa dos
filósofos. Quando em 1758 seu parceiro D'Alembert, um talentoso matemático e homem de
ciências, desistiu de continuar como co-responsável editorial, ele seguiu adiante sozinho até o
final. Não houve trovoada que o assustasse, nem ofensa que não respondesse, não existiu
ameaça que o encolhesse. A sua pena não tremia em dar o troco aos intermináveis inimigos da
publicação.

A Tempestade
Reunião dos colaboradores da Encyclopédie

Desde a aparição do primeiro volume (tiragem de 2050 exemplares), a Encyclopédie atraiu a


artilharia pesada da oposição. Jesuítas, padres seculares, bispos e simples padres de aldeia, o
partido dos devotos enfim, trataram de inflamar os espíritos contra os volumes que creditavam
ser demoníacos. Oracle des nouveaux philosophes, oráculo dos novos filósofos, batizou-a o
indignado abade Guyon num polêmico escrito de 1759. Durante um decênio e meio uma
tempestade de artigos e uma enxurrada de vitupérios varreu o reino de Luís XV, provocando
uma daquelas formidáveis querelas intelectuais de que só a França é capaz. Clamores pela
fogueira de um lado, reforçados pela condenação da obra pelo papa Clemente XIII (3/9/1759)
eram respondidos com apelos ao bom senso e à tolerância pelo outro.

Laboratório e mesa de experiências

Um Apoio Inesperado
Madame Pompadour, protetora dos filósofos

O partido dos filósofos, dos enciclopedistas, como eles passaram a ser chamados, contou com
um apoio inesperado. Madame Pompadour, a amante do rei, talvez por identificar-se com a
situação dos perseguidos, teceu os fios da sua apreciada proteção nos bastidores da câmara real
tolhendo as iniciativas dos fanáticos. Foi, dentro dos seus limites, a fada madrinha deles. O fato
do Parlamento de Paris ter aprovado a pena de morte, em certas circunstâncias, para os
escritores e livreiros era revelador da tensão a que o país e os seus homens de letras estavam
submetidos. Os tempos porém eram outros, os mecanismos da opressão não eram mais
eficazes. Além disso, Diderot juntara a nata da inteligência francesa para colaborar na
Encyclopédie. Era como se o melhor do espírito nacional em peso se sentasse à escrivaninha,
pegasse pena, tinta e papel, e começasse a completar os verbetes do dicionário. Portanto, não
era nada fácil reprimir os colaboradores ou hostilizá-los além da conta.

O Partido dos Filósofos

Os filósofos no salão de madame Geoffrin, 1755

Não era apenas o partido dos devotos quem a injuriava. Na Academia Francesa, discursos
candentes jogaram a Encyclopédie às feras. Até o teatro, de resto tão liberal, se manifestou
contra. Na Commédie-Française, o comediógrafo Palissot, numa peça intitulada Philosophes, faz
Jean-Jacques Rousseau aparecer andando de quatro no chão. Voltaire, aquela altura quase um
sexagenário auto-exilado em Genebra, não deixava nada sem resposta. A cada asneira que os
devotos e os fanáticos publicavam, ele forrava a França com panfletos devastadores, mordazes,
na defesa de Diderot e dos militantes da razão. Na verdade, os livre pensadores, que formavam
o partido dos filósofos daquela época, viram no dicionário uma tribuna excepcional, pois graças
às subscrições numerosas eles atingiriam a elite pensante e governante do reino e também a
crescente classe burguesa ávida por informação técnica e científica.
Popularizar o conhecimento

O mundo transformado num laboratório

Queriam contemplar a todos, o fidalgo esclarecido e o artesão, o ministro da corte e o


engenheiro. Retirar o conhecimento de dentro das universidades e abrir os laboratórios
experimentais, expondo-os ao público curioso. Apesar de muitos poucos deles simpatizarem com
a causa da democracia, ou mesmo se inclinarem pela burguesia, eles desejam popularizar ao
máximo as descobertas e os ofícios, ilustrar as gentes. Uma influência, como logo eles
perceberam, que não se acanharia nas fronteiras da França, expandindo-se para todos os lados,
mesmo para inculta e bárbara Rússia ou para a obscura e devota Espanha. Voltaire e Rousseau,
inimigos ideológicos, impuseram-se uma trégua, por assim dizer, para juntos colaborarem com a
Encyclopédie. Ela virou um best-seller, com cinco outras edições em francês feitas nas cidades
suíças até o final do século XVIII.

Os Colaboradores

Barão de Montesquieu

Já se disse que o verdadeiro gênio de Diderot não foi conseguir publicar todos os 28 volumes da
Encyclopédie, mas congregar os estranhíssimos seres bizarros e esquisitos que são os homens
de letras e de ciências. Suportar-lhes durante mais de vinte anos as esquisitices, os atrasos, as
inconstâncias, as indecisões, as vaidades feridas e os melindres sem perder as estribeiras ou
enlouquecer. Feito digno de ensombrecer os trabalhos de Hércules. Além dos já citados Voltaire
e Rousseau, enriqueceram os verbetes os barões de Montesquieu e D'Holbach, o grande Buffon,
o cientista Helvetius, o gravador Papillon,
O naturalista Buffon

o horologista Ferdinand Berthold, os gramáticos Beauzée e du Marsais, o arquiteto Blondel, o


escultor Falconet, o cirurgião Antoine Louis, os economistas Fortbonnais e Turgot, os naturalistas
Daubenton e Desmarest, perfazendo ao todo 140 autores, todos eles especialistas. Não houve
espírito inquietante e inquiridor da França que não se fizesse presente entre os seus 72 mil
artigos e 16.500 páginas. Até teólogos católicos liberais, que padeceram o diabo quando
descobertos, enviaram suas contribuições.

Dados Finais
Responsável-geral Denis Diderot e D'Alembert (até 1758)
Editor Le Breton
Anos de edição De 1751 até 1772
Número de volumes, artigos, páginas e palavras 17 de textos e 11 de ilustrações: 28 no
total/ 72 mil artigos/ 16.500 páginas/ 17 milhões de palavras
Total de colaboradores 140
Oposição Colocada no índex e proibida (1759)
Discurso Preliminar

Apesar da sua apreciável influência nas coisas do saber no Brasil e em Portugal, nunca houve
uma tradução da Encyclopédie para o português. Em parte isso se explica não só pela carência
de recursos e pela ativa censura dos padres e dos funcionários, mas também pelo fato da elite
intelectual luso-brasileira dominar o francês, em geral, com fluência. Só recentemente, isto é em
1989, a Editora Unesp (Universidade do Estado de São Paulo) providenciou a publicação bilingüe
do Discurso Preliminar e mais alguns outros textos encerrados numa obra de um só volume, no
qual Diderot e seu colega D'Alembert expõem nas cem páginas iniciais as diretrizes gerais da
magnífica obra.

Voltaire e os Perigos da Leitura


Era comum entre os homens de letras da França do século XVIII,
para esquivarem da censura e do olho inquisidor do clero, fazerem-
se passar por viajantes orientais, ou situarem suas histórias em
meio a sultões, cádis, odaliscas e dervixes em algum cantão
qualquer da Ásia Menor para assim melhor criticarem as opressões
a que estavam submetidos. Montesquieu atingiu a celebridade
imediata com suas Lettres persanes (Cartas persas, 1721), uma
corrosiva exposição dos costumes franceses. Voltaire seguiu-o mais
tarde, entre outros, com um pequeno artigo intitulado De l´horrible
danger de la lecture (Do horrível perigo da leitura) para satirizar os
que perseguiam a Encyclopédie e o partido dos filósofos. Para
tanto, explorou os arraigados preconceitos que os europeus tinham O sultão turco, símbolo do atraso
em relação ao Império Turco-Otomano, velho inimigo dos cristãos e
símbolo, segundo eles, da aliança do despotismo com o
obscurantismo.

O Parecer do Mufti Cherébi

Tudo começa, na historieta de Voltaire, quando Joussouf


Cherébi, mufti do santo Império Otomano, dá a resposta, numa
data imprecisa, a uma solicitação interrogante feita por um ex-
embaixador da Sublime Porta na França. O dignatário viera do
Ocidente, maravilhado pela presença da imprensa, e queria
saber dos grandes sábios do reino turco a opinião deles sobre
aquele invento. Consultaram-se então os irmãos cádis e os imãs
da cidade imperial de Istambul, sobretudo os faquires
("conhecidos por seu zelo contra o espírito", disse Voltaire), que
não demoraram em propor a condenação, proscrição e
anatematização do infernal engenho.

Os Argumentos dos Sábios Otomanos

1. Ela, a imprensa, é perigosa porque facilita a comunicação dos


pensamentos, tendendo evidentemente a dissipar a ignorância
que, afinal, é a guardiã e a salvaguarda dos Estados bem
A ignorância era a base da hierarquia policiados.

2. É especialmente temível que cheguem, entre os livros que


aportam vindos do Ocidente, alguns que tratem da agricultura e sobre os meios de aperfeiçoar-
se as artes mecânicas, obras que podem, a longo prazo (o que não agradaria a Deus), revelar o
gênio dos nossos cultivadores e dos nossos manufatureiros, exercitando-lhes a indústria,
aumentando-lhes a riqueza, inspirando-lhes assim a elevação das suas almas e um certo amor
ao bem público, sentimentos que são opostos à sã doutrina.

3. Chegará por fim o tempo em que teremos livros de história descomprometidos com o
maravilhoso, o que sempre entreteve a nação numa feliz estupidez: haverá nesses livros a
imprudência de fazer justiça às boas e às más ações e de recomendar a equidade e o amor à
pátria, o que é visivelmente contrário aos nosso direitos locais.

4. Logo chegará a vez dos miseráveis filósofos que, sob pretextos especiosos, mas puníveis, irão
querer esclarecer o homem comum e tentar fazê-los melhores, ensinando-lhes virtudes
perigosas as quais o povo jamais deve tomar conhecimento.

5. Argumentando que têm enorme respeito por Deus, eles,


os pensadores, terminarão imprimindo escandalosamente,
fazendo por diminuir os peregrinos a Meca, provocando um
grande detrimento da saúde das suas almas.

6. Sem dúvida chegará o momento em que, à força de ler os


autores ocidentais que tratam das doenças contagiosas e da
maneira de preveni-las, ficaremos infelizes por nos garantirem A máquina de Gutemberg era demoníaca
contra as pestes, o que seria um grave atentado contra a
Providência.

Recomendações do Mufti Cherébi

Em vista do exposto, o mufti então propõe que, para edificar as


fidelidades e pelo bem geral das almas, jamais alguém leia um livro,
sob pena da danação eterna. Que evite-se por todos os meios a
tentação diabólica dos pais desejarem ensinar seus filhos a ler e a
escrever, pois nós os defendemos deles tentarem pensar. Além
disso, sugere que os crentes sejam mobilizados a denunciar à
oficialidade qualquer vizinho que consiga falar quatro frases seguidas
que tenham algum sentido, que sejam claras e inteligíveis.
Ordenemos, encerra o mufti, que toda a conversação deve servir-se
de expressões e termos que nada signifiquem, tal como é o antigo
uso na Sublime Porta.

A imprensa era perigosa para o


reino do sultão

Bibliografia sobre Iluminismo


 Darton, Robert - O Iluminismo como negócio: história da publicação da Enciclopédia (Cia. das
Letras, SP., 1996)
 Diderot e D'Alembert - Discurso preliminar - Enciclopédia ou dicionário raciocinado das
ciências, das artes e dos ofícios (Unesp, SP., 1989)
 Gay, Peter - The Enlightenment, an interpretation (Norton, NY., 1966, 2 vols.)
 Goulemont-Launay - El siglo de las luces (Guadarrama, Madri, 1969)
 Groethuysen, Bernhard - La formación de la conciencia burguesa en Francia durante el siglo
XVIII (FCE. México, 1981)
 Groethuysen, Bernhard - Filosofia de la revolución francesa (FCE, México, 1989) Mornet,
Daniel - Los origines intelectuales de la revolución francesa, 1715-1787 (Paidos. B.Aires, 1969)
 Hamson, Norman - O Iluminismo (Ulisseia, Lisboa, 1973) Roche, Daniel - France in the
Enlightenment (Harvard, Massachusetts, 1998)
 Voltaire - Dictionnaire philosophique (Garnier-Flammarion, Paris, 1964)
 Yolton, John W. (org.) The blackwell companion to the Enlightenment (Blackwell, Londres,

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