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Artigos de Revisão

INFORMAÇÃO E MEMÓRIA: NA TRILHA DO ARQUIVO PESSOAL

Taíze Marques Fernandes


Arquivista
josemar.elias90@gmail.com

Ana Cláudia Cruz Córdula


Doutoranda do PPGCI – UFPB
Professora do Departamento de Ciência da Informação – UFPB
anacordula@gmail.com

Josemar Elias da Silva Junior


Mestrando em Ciência da Informação – PPGCI – UFPB
jr.elias01@hotmail.com

Resumo

Aborda a relação entre arquivo e memória, voltando-se para importância da


informação enquanto produtora e disseminadora do conhecimento, o foco centra-se
nos arquivos pessoais e na gama de documentos que o formam. Nesse contexto, o
Arquivo é percebido não como um sistema unidimensional, mas bidimensional, capaz
de produzir e/ou receber informação. Os arquivos pessoais são compreendidos não
apenas como um lugares de guarda e preservação da memória, mas sobretudo, um
lugar onde a informação passa a ser componente fundamental na produção do
conhecimento e nesse processo, devem ser vistos como fonte de pesquisa, seja pela
especificidade dos tipos documentais que os caracterizam, seja pela possibilidade de
oferecer informações. Com isso, o presente artigo tem por objetivo, refletir sobre o
papel dos arquivos pessoais, evidenciando a relação da informação e da memória,
especialmente no contexto social, compreendendo que o acervo pessoal, perpassa a
dimensão material, evidenciando o potencial informacional principalmente no viés da
memória. A presente pesquisa é do tipo bibliográfica e quanto ao método,
consideramos recorrer à pesquisa documental, procedimento relevante para se reunir
os conhecimentos produzidos anteriormente e que serve para identificar as fontes
primárias como base para a busca de informações sobre o objeto estudado. Após a
análise feita entre a relação arquivo e memória, tendo como principal objeto de estudo
o arquivo pessoal e suas diversas formas documentais percebeu-se que o arquivo além
de ser um lugar de guarda e preservação da memória, trata-se também de um lugar
onde a informação passa a ser fundamental na produção do conhecimento.

Palavras-Chave: Memória. Informação. Documento. Arquivo Pessoal.

1 INTRODUÇÃO forma ao voltarmos os olhos para os arquivos


A disseminação da informação vinculada à pessoais, percebemos certa preocupação com a
perpetuação da memória na sociedade preservação da memória, o que nos possibilita
contemporânea tem um forte elo com os a recuperação da informação implícita nos
registros físicos deixados pelas pessoas em um documentos pertencentes a aquele espaço, bem
determinado período da vida. Desde os tempos como a construção de um conhecimento no
mais remotos a humanidade já praticava a viés histórico.
representação e organização da informação O crescimento das pesquisas nas áreas de
com vistas à construção de uma memória, haja história da vida privada e história do cotidiano,
vista as pinturas rupestres como exemplo de bem como o interesse crescente pelas análises
construção de memória e identidade. Dessa de tipo biográfico e pelas edições de

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correspondência escolhida, têm aumentado a difundindo sentimentos rememorativos


procura por este tipo de fonte, chamando correspondentes à identidade de um indivíduo,
atenção para a importância de sua preservação, no caso dos arquivos privados pessoais ou de
organização e abertura à consulta pública. uma sociedade. Tanto os arquivos, como as
Dessa forma o presente artigo foi bibliotecas e também os centros de
construído, no intuito de relacionar a documentação compreendem espaços que
importância dos arquivos pessoais, como fonte remetem às memórias individuais ou coletivas.
de memória e informação. Reconhecendo a Le Goff (1998), ao discorrer sobre a
potencialidade informacional dos arquivos memória enfatiza-a como elemento essencial
pessoais, bem como enquanto valiosas fontes do que se costuma chamar identidade,
de pesquisa, seja pela especificidade dos tipos individual ou coletiva, cuja busca é uma das
documentais que os caracterizam, seja pela atividades fundamentais dos indivíduos e das
possibilidade que oferecem de complementar sociedades contemporâneas.
informações constantes em arquivos de No âmbito de uma construção
natureza pública. Tendo em vista que memorialística, Aleida Assmann (2011, p.23-
atualmente o Brasil já dispõe de um corpo de 24) nos diz que:
leis regulamentando várias questões na área de
arquivos, entre elas, o acesso a informações de Indivíduos e culturas constroem suas
natureza privada. Além da lei 8.159, de 1991, memórias interativamente através da
conhecida como Lei de Arquivos, que possui comunicação por meio da língua, de imagens
e de repetições ritualísticas, e organizam suas
um capítulo dedicado aos arquivos privados.
memórias com o aujxílio de meios de
Com vistas a atingir os objetivos propostos aramazenamento externos e práticas
pela presente pesquisa, a mesma foi realizada culturais.
através de um levantamento bibliográfico,
pautado na busca de contribuições teóricas Apesar da temática Memória, durante um
para compreender os conceitos de memória, bom tempo não ser contemplada por um leque
informação, arquivos privados pessoais, entre muito extenso no universo científico, Jardim
outros. Gil (2002, p.48), afirma que: “a (1998) relata que atualmente tem se recorrido
pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir com bastante frequência à temática memória,
de material já elaborado, constituído temática esta, que é abarcada por um sistema
principalmente de livros e artigos científicos”. multidisciplinar sendo fruto de paixões de
Sendo assim, é importante embasar a pesquisa diversas áreas do estudo.
através de uma revisão da literatura, Monteiro et al (2006) referencia Lopes
observando a relação entre informação e (1998), relatando que o sentido original de
memória, com o foco no arquivo privado Memória é a capacidade humana de reter no
pessoal. A pesquisa bibliográfica possibilita cérebro as impressões das experiências
que o pesquisador tenha contato com materiais vividas. Porém, a memória associada ao
escritos, ditos ou filmados sobre determinado arquivo, ao museu e à biblioteca corresponde
assunto, incluindo conferências transcritas por ao conjunto de informações registradas que
publicações ou até mesmo por gravações. tem como papel principal a manutenção da
Nesse tipo de pesquisa poderão ser utilizadas memória social, exercendo como função, o
as fontes secundárias, representadas por toda armazenamento e a preservação dos saberes.
bibliografia publicada sobre a temática Jacques Le Goff (1998) apresenta a
estudada, tendo como fontes os jornais, livros, memória coletiva como um instrumento de
teses, revistas, entre outras; possibilitando a manipulação que deve ser ora lembrada, ora
coleta de informações importantes no processo esquecida, possibilitando recriar, reforçar ou
inicial, tornando-se, no desenvolver da até mesmo destruir identidades sociais,
pesquisa, um facilitador para se chegar a um dependendo unicamente do interesse de quem
“produto” final. detém o poder.
Nesta perspectiva de destruição ou
2 ARQUIVO E MEMÓRIA: UMA desconstrução das identidades, Krzysztof
RELAÇÃO INDISSOLÚVEL Pomian (1990, p. 62 apud ASSMANN, 2011,
Sabemos que há uma íntima relação entre p.58) é bastante feliz ao apontar como as
Arquivo e Memória, revestindo-se de oscilações no meio social afetam a construção
importância sob o viés arquivístico, memorialística e sua estrutura:

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A história da construção da herança cultural é Assmann (2011, p.25) afirma que “O


definida por uma sequência de rupturas: arquivo não é somente um repositório para
mudanças de crenças coletivas, modos de documentos do passado, mas também um lugar
vida, reviravoltas tecnológicas, propagação onde o passado é construído e produzido”.
de novos estilos de vida que substituíram
Reforça-se assim a íntima relação que o
estilos antigos. Cada ruptura remove certas
classes de artefatos de suas funções e as mesmo possui com a memória, ao passo que é
direcionam para o lixo, para o abandono e ao mesmo tempo guardião e referenciador do
para o esquecimento. Assim aconteceu depois passado.
da cristianização do império romano, assim Na seara dos arquivos pessoais, estes se
depois da invasão dos bárbaros, assim depois constituem em territórios de narrativas
de toda revolução industrial e de quase toda a memorialísticas, capazes de expressar a
revolução política. trajetória de vida de um indivíduo ou de uma
organização, percebe-se que, através da
Na atual sociedade da informação, a disponibilização e acesso para conhecimento
memória apresenta-se como uma questão da sociedade à gama de informações que
necessária, pois a mesma representa compõe um arquivo privado pessoal,
“fragmentos” que estão relacionados possibilita-se não à disseminação da memória,
diretamente com identidade social. mas, a disseminação do conteúdo
Nora (1993) designa a memória como um informacional, presente em todos os artefatos
processo de reconstrução permanente, sendo que compõe o acervo do arquivo.
algo “vivo”, que dissemina no presente fatos Belloto (1998) afirma que, na
do passado, podendo influenciar no futuro, ou contemporaneidade, os arquivos privados
seja, a memória é uma reconstrução do pessoais vêm inspirando e documentando
presente para o passado que necessita de um trabalhos acadêmicos e de ficção (literatura e
contexto para sua ativação. cinema), dando origem a exposições e
Os considerados lugares de Memória são de motivando a publicação de instrumentos de
uma dimensão imensurável, pois não se pesquisa, assim como a realização de
limitam apenas à materialização, mas sim aos seminários, inclusive de âmbito internacional,
significados, muitas vezes abstratos, demonstrando a dinamização e o crescimento
proporcionando a busca e o encontro de dos recolhimentos, da organização e da
vestígios capazes de promover transformações disponibilização dos documentos de origem
sociais. (BARROS; NEVES, 2009). privada em entidades especializadas, públicas
Barros (2009, p.37) demonstra, em seu ou particulares.
texto, a consolidação e a quebra de paradigma A realidade vivenciada, no Brasil, pelos
quando afirma que: arquivos pessoais, corresponde a um
crescimento na conscientização de segmentos
A memória, portanto, já não pode mais nos representativos da sociedade, refletindo em
dias de hoje ser associada metaforicamente a uma mudança de comportamento voltada não
um “espaço inerte”, no qual se depositam apenas à guarda e à preservação, como também
lembranças, devendo ser antes compreendida para a utilização da preciosidade revelada nos
como “território”, como espaço vivo, político
documentos presentes, nos fundos de arquivos
e simbólico no qual se lida de maneira
dinâmica e criativa com as lembranças e com pessoais.
os esquecimentos que reinstituem o Ser social Ainda na perspectiva brasileira, o
a cada instante. reconhecimento da importância dos arquivos
pessoais, iniciou-se entre as décadas de 60 e
Enquanto cristalização do passado, os 70, com a criação de várias instituições
lugares de memória podem ser objetos, dotadas de interesse em reunir arquivos
instrumentos ou instituições, não dependendo privados, a maior parte delas ainda
a sua definição da natureza concreta, mas da concentradas nos dois maiores centros
realidade que os habita, retratada por serem culturais do país: os estados do Rio de Janeiro
depositários de conteúdos informacionais. e São Paulo. Essa realidade vem
(ABREU, 2005). gradativamente se modificando, expandindo
essa preocupação para outros estados
3 ARQUIVO PESSOAL: FONTE DE brasileiros.
INFORMAÇÃO

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No caso da Paraíba, há certa tendência na Azevedo Netto (2007) afirma que a


valorização dos arquivos pessoais de homens Informação só tem existência quando é
que, de alguma maneira, ocuparam funções percebida como tal, e só é estabelecida esta
públicas como os arquivos dos governadores, percepção quando, de algum modo, em alguma
sob a custódia da Fundação Casa de José circunstância, é criada uma relação de
Américo. Entretanto, acervos de pessoas significação. Neste contexto, o autor considera
importantes nos ramos da cultura, educação, informação aquela que diz respeito a uma
arte, sofrem a ausência de uma política pública produção de significados socialmente aceitos.
voltada ao tratamento desses acervos, que É o fenômeno em que há não só a produção de
viabilizaria a disseminação das informações um bem simbólico, mas também sua
contidas nos documentos, capazes de disseminação, implicando na sua própria
ressignificarem as memórias que os permeiam. reprodução.
Destacamos na cidade de João Pessoa (PB), Pacheco (1995) complementa,
o Arquivo pessoal Afonso Pereira, fundado no corroborando que a informação é sujeita a
ano de 1998 e idealizado pela sua esposa Sra. recontextualização, uma vez que a mesma foi
Clemilde Torres Pereira da Silva. O arquivo estabelecida em um espaço, período e forma
que está localizado no bairro de Jaguaribe específicos, o que caminha para um dos
possui em seu espaço um vasto acervo repleto âmbitos pelo qual deve ser interpretada, a
de vários gêneros documentais com valor mesma corre o risco de não ser interpretada de
inestimável para a família da personalidade e acordo com o contexto de sua geração.
para o Estado da Paraíba. Podendo ser utilizada em um contexto distinto
A trajetória do professor Afonso Pereira foi daquele para o qual foi produzida.
marcada por contribuições na área da Segundo Le Coadic (2004, p. 4), “A
educação, política e cultura. O professor informação é um conhecimento inscrito
trilhou uma carreira promissora e uma de suas (gravado) sob a forma escrita (impressa ou
grandes conquistas foi está presente não como numérica), oral ou audiovisual”. Ela comporta
coadjuvante, mas como peça fundamental na um elemento de sentido. É um significante
implantação do curso de Biblioteconomia na transmitido a um ser consciente, por meio de
Universidade Federal da Paraíba, quando na uma mensagem inscrita em um suporte
época ocupava o cargo de Chefe de Gabinete espacial-temporal: impresso, sinal elétrico,
auxiliando o Reitor nas tomadas de decisões. onda sonora etc.
O arquivo Afonso Pereira possui uma Segundo Silva et al (2002), a informação
variedade de coleções e um acervo documental (humana e social) é o conjunto estruturado de
extenso, possibilitando aos estudantes e representações (símbolos, significantes)
pesquisadores um leque de linhas de pesquisa socialmente contextualizadas e possíveis de
diferentes a serem, ainda, exploradas. serem registradas em qualquer suporte
De acordo com Oliveira, Silva e Silva material (papel, filme, disco magnético,
(2016), o arquivo é formado por 10.654 óptico, etc.) e/ou comunicados em tempos e
Documentos Bibliográficos, 7.608 espaços diferentes. Sendo valorosa a
Fotografias; 110 unidades de Painéis; 296 manutenção e disseminação da informação,
Objetos Variados; 567 Discos de Vinil; 31 considerando que a mesma compõe na
CDs; 13 Fitas Cassetes; 68 DVDs e 34 VHSs. sociedade contemporânea, uma importante
A potencialidade informacional de um base para o desenvolvimento social, tornando-
arquivo pessoal varia de acordo com os usos e se um elemento necessário e fundamental para
sentidos que podem surgir a partir desse o homem na sociedade globalizada.
universo documental, podendo mesmo No atual enfoque da informação, o
alcançar um campo infinitamente mais vasto importante não é apenas disseminá-la, a
que a vida e a obra do produtor ou detentor do preocupação deve se voltar também para como
arquivo. ela é disseminada, sendo imprescindível que
Na ambiência da sociedade não se perca o foco no conteúdo
contemporânea, marcada pela globalização, a informacional, para que não existam lacunas
informação é um fenômeno mundial, que fujam da sua real interpretação.
assumindo um papel importante, de cunho Quanto à relação entre informação e
transformador em torno dos campos memória, ela pode ser considerada na medida
econômicos, culturais, políticos e sociais. em que um determinado elenco de

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informações que se referem ao passado de um transformações em um paralelo passado e


grupo são reunidas e relacionadas entre si, presente, possibilitando um elo de
como forma de dar um sentido de informações, necessárias ao conhecimento e
compartilhamento de passados, crescimento intelectual de uma sociedade. A
constantemente construídos e reinterpretados. função básica do arquivo é tornar disponíveis
Assim, pode-se exemplificar a relação entre a as informações que estão sob a sua guarda no
informação e a memória na multiplicidade de acervo documental, e conforme afirmação de
suportes que a informação pode assumir no seu Silva et al (2002), o Arquivo não se caracteriza
processo de representação através da cultura como um sistema unidimensional, mas sim um
material expressa como documentos e sistema bidimensional, capaz de produzir e/ou
monumentos (LE GOFF, 2003). receber informação.
No que concerne aos Arquivos, Barros e Os arquivos privados pessoais podem,
Neves (2009) afirmam que são parte integrante como quaisquer outros, ser considerados
da sociedade da informação, por ser detentor evidências das transações da vida humana,
de vastos conteúdos informacionais, porém é importante destacar que cada arquivo
fomentando uma sincronia entre tendências possui características específicas, tornando-se
científicas e tecnológicas da sociedade da singular como fonte para estudos históricos,
informação. É justamente nessa perspectiva de sendo consequentemente fonte de informação
atualização e acompanhamento do ritmo e conhecimento.
acelerado das tecnologias da informação que o Venâncio (2003) afirma que, em geral, o
arquivo assume um papel mais consolidador arquivo privado pessoal é sempre organizado
na coleta, salvaguarda, preservação, para enunciar e criar um pensamento, uma
armazenamento e, sobretudo, na disseminação reflexão, uma história. Dessa forma, permite
da informação, objetivando o encontro da vislumbrar uma “vontade de guardar” e de
sociedade com a informação. tornar público o privado. Assim, a organização
Jardim (1998) afirma que os arquivos, de um arquivo pessoal acentua a
enquanto lugares de informação, às vezes até individualidade do titular, redefinindo o seu
em espaços virtuais, caracterizam-se pelo lugar particular na pluralidade dos
fluxo informacional, pelo qual, o foco não é acontecimentos históricos. Percebe-se, então,
apenas o documento e a sua organização, mas que os arquivos privados pessoais refletem-se
também, o conteúdo informacional e sua em locus privilegiado de análise histórica, pois
disponibilização para a sociedade. A idéia é registram uma forma de acumulação privada
que não se perceba o arquivo como um lugar que possui como marca específica o nome
de guardar e preservar a memória apenas, mas próprio do titular, permitindo assim um
sim um lugar onde a informação passa a ser contato próximo com a trajetória de seu
componente fundamental na produção do produtor.
conhecimento.
Cook complementa o conceito de Arquivo 4 DIVERSIDADE DOCUMENTAL:
designando-o como templo de memória: REALIDADE DO ARQUIVO PESSOAL
Ao longo da vida, as pessoas guardam
Os arquivos são templos modernos - templos documentos que testemunham momentos
de memória. Como instituições, tanto como
importantes, as suas relações pessoais ou
coleções merecedoras de serem lembradas.
Igualmente as que são rejeitadas por serem profissionais, seus interesses. São cartas,
julgadas não merecedoras, têm seu acesso fotografias, documentos de trabalho, registros
negado a esses templos da memória e estão de viagens, diários, diplomas, comprovantes e
fadadas, assim, ao esquecimento de nossas recibos, ou simplesmente "papéis velhos". Os
histórias e de nossa consciência social documentos produzidos e reunidos por
(COOK, 1998, p. 143). indivíduos ao longo da vida tornam-se pontes
que se ligam ao cenário da trajetória da vida de
Sendo assim, podemos considerar que o um indivíduo, possibilitando um contato com
arquivo é produto de uma linguagem própria, a representação de seu desempenho e função
que emana de uma só pessoa ou de um social, sua vida no âmbito familiar,
coletivo, e que depende sempre da necessidade profissional, afetos, desafetos, amores,
de um indivíduo ou grupo social, para que o
mesmo seja constituído e passe a externar as

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amigos, enfim, a representação do seu instituições arquivísticas, ou seja: os


cotidiano em períodos diferentes da vida. intelectuais, políticos, artistas, etc. Essa
No que diz respeito à arquivo pessoal, realidade deve-se ao fato que tradicionalmente
Belloto afirma: “Pode-se definir arquivo o ingresso dos arquivos pessoais em
pessoal como o conjunto de papéis e material instituições arquivísticas e de memória
audiovisual ou iconográfico resultante da vida acontece após o reconhecimento da
e da obra/atividade de estadistas, políticos, importância de seu titular para a sociedade ou
administradores, líderes de categorias, para um de seus segmentos.
profissionais, cientistas, escritores, artistas, As características dos documentos em seu
etc.” (BELLOTO, 2007, p. 266). A autora suporte e sua estrutura reproduzem uma época,
explicita alguns documentos que podem sua etiqueta e as regras de convivência social.
integrar um arquivo pessoal, fazendo valer a Roquette (1997) apud Oliveira (2009) afirma
menção de que foram produzidos em razão de que, no final do século XVIII, pouco antes da
funções distintas, e que atingindo certo grau de revolução que convulsionou todo o mundo
relevância social, já às tendo cumprido ou ocidental, a elite francesa adotou algumas
mesmo estando em andamento, despertam regras e padrões à mesa, assim como regulou
interesse do titular, para a posteridade. condutas e posturas para os locais públicos e,
Os gêneros documentais de arquivos sobretudo, de grande convivência social.
pessoais podem ser de diversos tipos, Segundo a Lei nº 8.159/91, os documentos
documentos que refletem a trajetória do seu de arquivos pessoais são aqueles produzidos e
produtor, e que independente do gênero recebidos por pessoa física em decorrência do
documental em que se materializam tornam-se exercício de atividades específicas qualquer
documentos do arquivo. Quanto ao gênero que seja o suporte da informação ou a natureza
documental, o Dicionário Brasileiro de dos documentos. Em outras palavras, aquilo
Terminologia Arquivística, considera: que a pessoa recebe e/ou produz quando exerce
seus direitos e cumpre com suas obrigações.
Reunião de espécies documentais que se Esses documentos, quando tomados em
assemelham por seus caracteres essenciais, conjunto, podem revelar não apenas a
particularmente o suporte e o formato, que trajetória de vida, mas também gostos, hábitos
exigem processamento técnico específico e, e valores do individuo, constituindo o seu
por vezes, mediação técnica para acesso, arquivo pessoal. Podemos afirmar então que,
como documentos audiovisuais, documentos
bibliográficos, documentos cartográficos,
os Arquivos Pessoais, portanto, são conjuntos
documentos eletrônicos, documentos documentais, de origem privada, acumulados
filmográficos, documentos iconográficos, por pessoas físicas e que se relacionam de
documentos micrográficos e documentos alguma forma às atividades desenvolvidas e
textuais. (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. aos interesses cultivados por essas pessoas, ao
99). longo de suas de vidas.
Essa acumulação resulta da seleção dos
Nesse contexto, o titular do acervo pessoal, documentos a serem guardados, entre todos os
vai selecionar ao longo da vida, no papéis manuseados cotidianamente, e vai
desempenho de suas atividades, documentos sendo feita ao longo do tempo. Muitas vezes,
que representam a sua vida, pessoas, lugares, principalmente no caso de arquivos privados
fatos, enfim, que tem importância e associação de pessoas públicas, essa seleção também é
a sua trajetória de vida. feita por auxiliares e, após a morte do titular do
Oliveira (2009) afirma que o processo de arquivo, por familiares e amigos.
produção dos arquivos pessoais não é inserido Os arquivos pessoais constituem valiosas
em um contexto de normas ou padrões. fontes de pesquisa, seja pela especificidade dos
Entretanto, os documentos traduzem códigos tipos documentais que os caracterizam, seja
ou referências do momento histórico em que pela possibilidade de oferecer informações
estão inseridos. Esses códigos ou sinais são (DUCROT, 1998).
relevantes para a compreensão do arquivo e De acordo com Santos (2008), a forma
dos personagens que redigem, recebem ou são física e de registro das informações pessoais
mencionados nos documentos. Esses “códigos são bastante diversas, sendo as mais comuns,
sociais” são seguidos principalmente por essa alguns gêneros tais como: textual,
camada que tem seus arquivos recolhidos às representado pelas correspondências,

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relatórios, certificados, livros, cartões, entre complementares, que escapam do domínio da


outros; cartográficas e iconográfica, refletidos arquivística, fazendo sentido em conjunto com
nas fotografia, mapas, cartazes, entre outros, outros registros.
filmográficas e sonora, vislumbrados através
das fitas de videocassete e fitas cassete de CONSIDERAÇÕES FINAIS
áudio; e o gênero digital, em todas as suas Com a análise feita entre a relação arquivo
possibilidades, incluindo e-mails, downloads, e memória, versando sobre arquivo pessoal e
extratos bancários, bases de dados, gravações suas diversas formas documentais percebemos
pessoais em DVD, entre outros. que o arquivo além de ser um lugar de guarda
Nos arquivos pessoais, é comum e preservação da memória, trata-se também de
encontrarmos registros que representam o um lugar onde a informação passa a ser
nascimento, as bodas, as grandes viagens e a fundamental na produção do conhecimento e
morte, eventos marcantes na existência de um construção identitária. Nesta perspectiva,
indivíduo. Os registros podem ser explícitos ou percebe-se, seja pelas diversas tipologias
simbólicos. documentais ou pela possibilidade de oferecer
Ao se entrar em contato com um arquivo informações, uma preciosa fonte de pesquisas.
pessoal, na maioria das vezes, procura-se O crescente interesse de pesquisa nessa área de
descobrir quais são ou foram as realizações história de vida privada e do cotidiano tem
profissionais e pessoais, e o que elas chamado a atenção para a preservação,
representam em termos de relevância social, organização e disseminação desse tipo de
sendo isso possível quando se conhece mais a informação.
fundo a documentação, que de alguma Os arquivos pessoais podem, como
maneira, revela o indivíduo que está sendo quaisquer outros, ser considerados evidências
representado por tais documentos. das transações da vida humana, porém é
A documentação reflete assim múltiplas importante destacar que cada arquivo possui
interferências, confirmando a tese de que o características específicas, tornando-se
arquivo pessoal é, muitas vezes, um projeto singular como fonte para estudos históricos,
coletivo, no qual se sobrepõem várias sendo consequentemente fonte de informação
subjetividades, afastando-se da sedutora e conhecimento. Um dos tópicos
imagem de expressão fiel e autêntica da desenvolvidos neste artigo foi a diversidade
subjetividade de seu titular. Além disso, os documental criada ao longo do tempo pelos
próprios critérios pessoais variam ao longo do indivíduos, que quando tomados em conjunto,
tempo, o que remete a temporalidades distintas revelam não apenas a trajetória de vida, mas
que presidem ao processo de acumulação de também seus hábitos e valores, constituindo o
documentos, tanto do ponto de vista do titular, seu arquivo pessoal.
quanto de seus colaboradores. Fica compreendido que os arquivos
A informação contida nos Centros de pessoais são, portanto, conjuntos documentais
Memória vai além das registradas apenas de origem privada acumulados por pessoas
como documentos. Segundo Bellotto: físicas que se relacionam de alguma forma as
atividades desenvolvidas e aos interesses
Se considerarmos com maior abrangência, cultivados por essas pessoas ao longo de suas
analisando-a como transmissão cultural, vidas. Assman (2011) aponta que “A
lançada para o futuro através de diferentes consciência se desenvolve no signo do
documentos grafados em diferentes suportes, acabado”. Sendo assim, trabalhar com essa
ela pode significar muito mais, quando aliada
documentação é possibilitar compreender os
a outros dados/informações oriundos de
campos não-arquivísticos. (BELLOTO, arquivos pessoais enquanto espaços de
2007, p. 183). memória, de silêncios e esquecimento,
perspectiva já apontada por Bourdieu (1996),
Neste contexto, observa-se que Arquivos, revelando as duas faces da memória, o lembrar
bibliotecas, centros de documentação e e o esquecer.
museus têm a corresponsabilidade no processo Concluimos que os arquivos pessoais nesse
de recuperação da informação, em benefício da contexto funcionam como uma extensão da
divulgação científica, tecnológica, cultural e memória, as lembranças da vida cotidiana,
social, bem como do testemunho jurídico e costumes, datas comemorativas, reuniões
histórico. Isso se dá pelas informações familiares e as memórias das conquistas no

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decorrer da caminhada profissional dessa conhecimento em larga escala sem fronteiras


personalidade se materializam através do para a pesquisa e um importante dispositivo de
arquivo fazendo deste um gerador de ressignificação de uma trajetória de vida.

INFORMATION AND MEMORY: TRACKING THE PERSONAL ARCHIVE

Abstract

It addresses the relationship between file and memory, turning to the importance of
information, while the company continues to be informed, and the central focus is our
service and the range of documents they form. In this context, the Archive is perceived
not as a one-dimensional but two-dimensional system capable of producing and / or
receiving information. Electronic systems are understood not only as places of
memory preservation and preservation, but above all, a place where information
passes a fundamental component in the production of knowledge and in that process,
are provided as a source of research, for the specificity of documentary documents
and characteristics , for the possibility of offering information. The purpose of this
article is to reflect on the role of products, to highlight a relationship of information
and memory, especially in the social context, to understand the quality of service, to
pass through material of dimension, to highlight informational potential mainly in
bias from memory. The present research and the type of bibliography and method, we
consider documentary research, a relevant procedure to gather the knowledge
produced and serve to identify as primary sources as the basis for the search of
information about the object studied. After an analysis, between the relation of file
and memory, having as main object of study or personal archive and its diverse
documentary forms, it was realized that the file besides being a place of guard and
preservation of memory, it is also about a place Where information passes a
fundamental being in the production of knowledge.

Keywords: Memory. Information. Document. Personal archive.

REFERÊNCIAS http://www.arquivonacional.gov.br/images/pd
f/Dicion_Term_Arquiv.pdf >. Acesso em: 20
ABREU, José Guilherme. Arte Pública e de Jul. de 2017.
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AZEVEDO NETTO, Carlos de. Informações Campinas, v. 21, n. 1, p. 55-61, jan./abr.
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