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A Cama Familiar

O lugar da criança moderna e as consequências sociais

Ana Caroline Brecher Vega

RESUMO

Desde que o homem se constituiu como ser pensante e assim criou formas de registrar a sí como
sujeito no mundo é possível verificar que a família e a sociedade, sejam elas como a entendemos
atualmente ou a forma rustica e improvisada de seus primórdios é o que torna o ser humano um
sujeito capaz de existir e ver a si mesmo como semelhante ao outro e ao mesmo tempo único em
sua individualidade.Se a sociedade é o que diz ao homem o que ele é qual o seu valor, é na família
que a criança inicia esse processo de conhecimento de sí mesmo.A constituição de cada sujeito
passa desde a família até o meio em que este será inserido e sendo a família a primeira sociedade a
que o sujeito é apresentado, cabe a essa estrutura delimitar e inserir o sujeito dentro de seu espaço.
Este trabalho tem como objetivo salientar a importância da demarcação dos lugares de cada um
dentro da dinâmica familiar e como a falta desses lugares cria sintomas para não somente a criança,
mas toda a estrutura familiar. Dentro de uma contextualização histórica serão analisadas todas as
configurações a que a família já passou, desde seus primórdios paternalistas até as novas
configurações que surgem constantemente e as quais a sociedade vem se adaptando tão
rapidamente.

OS PRIMÓRDIOS DA FAMILIA

Se atualmente a criança é como dizFreud (1914) “sua majestade o bebê”, nem sempre essa frase
teve valia. A criança foi por muito tempo tida como um estorvo, algo sem valor e que nada traz a
quem os tem a não ser má sorte e investimento (de tempo e gastos) desnecessários. Sendo o que
tem valor para a sociedade somente o dinheiro e a capacidade laboral de cada um, e sendo a criança
como alguém sem bens materiais e nenhuma capacidade para o trabalho é normal que estes
tenham sido vistos como apenas um empecilho para o bem andar da carruagem. Até o século XVIII a
febre de amor e cuidados excessivos para com as crianças nem se mostrava capaz de acontecer, foi
somente com a ideia da possibilidade de falta de mão de obra visto que devido a falta de cuidado,
higiene e investimento a taxa de mortalidade e deficiências devido aos maus tratos era tão alta que
poucos se tornavam homens com possibilidade de trazer benefícios para a sociedade.

Com dados que nos parecem hoje como uma chacina era perfeitamente comum na França do século
XVII segundo F. Lebrum ( 1976 ) que 25 % das crianças nascidas viessem a padecer antes mesmo de
um ano completos.Rousseau ( 1712/1778 ) foi quem deu o pontapé inicial nessa revolução do lugar
infantil, foi seu livro Emílio ( 1762) que dá as novas bases para a educação e tratamento da criança,
a partir de seu livro e de muitas investidas para que essas mudanças aconteçam a família começa
tomar novos rumos e os lugares tomam novos valores dentro dessa estrutura.

Desde que a igreja tomou os rédeas da sociedade e é ela que determina os valores que devem ser
tomados como verdadeiros, que a família é entendida como um pequeno reinado em que o pai é o
ser supremo, a quem todos os desejos devem ser atendidos tão logo sua vontade se instale e onde
os outros não passam de súditos que ali estão como meros coadjuvantes apenas para suprir cada
necessidade do rei.

Quando a mãe e a criança a partir do século XVII passam a tomar lugar de destaque dentro da
família, essa ordem suprema em que o pai tem um lugar de Deus passa a perder valor. Com a
entrada da mulher no mercado de trabalho, a possibilidade de divórcio e a criança como um bem
inestimável ( sendo este de propriedade materna ) a mulher passa a não se ver mais como
coadjuvante e dependente única e exclusivamente do homem, a partir daí ela percebe que mesmo
sem o homem ao seu lado é capaz de cuidar ela da família , trazendo sustento e cuidado aos seus,
surgem então novas configurações de família diferentes daquela nuclear imposta pela religião, a
mulher pode criar seus filhos só, ou casar-se novamente com outro homem, pode trazer outros
filhos juntos aos seus, pode casar-se com outra mulher e assim formar nova estrutura para a família,
ou pode simplesmente não ter filhos ou não formar uma família, possibilidade essa que só nasce
com o rompimento da ordem da igreja.

A NOVA ORDEM FAMILIAR

A partir do momento que a criança vai ganhando lugar de destaque dentro da sociedade moderna
surgem inúmeros códigos de conduta do adulto em relação a ela, a criança ganha um estatuto só seu
que garante a ela direito á proteção, educação, respeito e cuidado permanente.

Juntamente com essas diretrizes surgem os especialistas, estes são "capacitados" a darem total
assistência na criação e cuidado dos filhos, é terminantemente proibido dentro dessa nova ordem
que os pais criem seus filhos como acreditam ser o melhor, pois o melhor já está medido e
mensurado e não há lugar para novas técnicas a menos que estas novas técnicas sejam regidas por
esses especialistas que sabem exatamente o que fazer. Além dos pais terem sido privados do seu
direito (e dever) de cuidar de seus filhos, essa nova ordem cria inúmeras bizarrices e essas se
tomadas como verdades irrefutáveis criam na criança e nos pais sintomas que somente com
tratamento psicológico intenso são possíveis de reversão.

É sabido já a bastante tempo que é importante para o bebê que este seja amamentado pelo leite
materno, visto que este contém nutrientes que fórmulas químicas não são capazes de suprir, no
entanto criou-se a ideia de que quanto mais tempo o bebê for amamentado pela mãe, melhor será
seu desenvolvimento, o que nos apresenta à mães que amamentam dois filhos ao mesmo tempo e
estes possuem vários anos de diferença. A presença total e completa da mãe para com a criança
também faz parte dos novos costumes, é de extrema necessidade que a mãe esteja sempre ao
dispor e para isso deve ela deixar carreira, estudo e vida social para estar com sua cria e a mãe que
não corresponde a esse ideal passa a ser vista como um mau exemplo "Quaisquer que sejam os seus
motivos, o trabalho feminino é condenado pelos moralistas, que mal admitem que ele possa ser
uma necessidade vital" ( Badinter, 1980).
O desejo ou as vontades da criança também tornaram-se o caminho a ser seguido, não somente os
pais não sabem como organizar a vida e cuidar de seus filhos, como o que estes desejam se tornou
algo supremo. É comum vermos crianças de 5 ou 6 anos com seus tablets, celulares de ultima
geração bem como a roupa da moda, a criança tornou-se como proferia Wordsworth ( 1770/1850)
literalmente o " Pai do Homem", é ela quem determina os horários da casa, quando irá tomar banho
ou ir a escola, quais as roupas irá vestir e o colégio que frequentará. A onda do amor familiar
incondicional tomou proporções assustadoras.

Como se todos esses fatores já não fossem suficientes os pais abdicam hoje de seus lugares, a
família como a conhecemos deixou de ser de filhos e pais, aparentemente tudo está em seu devido
lugar, no entanto com um pouco mais de atenção é possível perceber abominações dentro dessa
estrutura. Entende-se que os pais tem seu lugar de dever em proteger e educar, ensinando aos filhos
o certo e o errado, mas como será possível isso se os filhos dormem na cama dos pais, enquanto
estes ocupam um colchão ao lado?. É perfeitamente comum, para não dizer bonito, que os filhos
durmam com as mãe até idade bastante avançada enquanto os pais abdicam de seu lugar na cama
conjugal por "amor aos filhos". O que se pode tomar dessa situação é que não existe mais uma
ordem familiar, uma hierarquia por assim dizer, todos estão em um mesmo nível e espaço, o pai
privador deixou de existir, há somente a relação mãe-bebê que estende-se por vezes até a idade
adulta e cria o que conhecemos como psicose.

RECORTES DE UM CASO

Trata-se de recortes do caso de Nicolas, um garoto de 16 anos, que chegou na clínica por indicação
médica, ele sofria de um caso de dermatite atópica, o que lhe causava feridas e coceira por todo o
corpo e após inúmeras tentativas de tratamento o médico constatou que tratava-se de algo de
ordem emocional.A mãe e a irmã mais nova também vem as sessões. Como o atendimento acontece
separado por idade cada um dos quais faz parte de um dos grupos.

Ficou bastante evidente já nas primeiras sessões que principalmente mãe e filho mantinham uma
relação simbiótica, mas que a irmã não escapava a essa junção. Nicolas relatava durante as sessões
que dormia por muitas vezes, quando o padrasto viajava, na cama da mãe, dizia que ele e a mãe
eram um só e que um não existia fora do outro. O garoto por inúmeras vezes disse não interessar-se
por garotas e não relatava manter relações de amizade, com exceção de uma garota que como a
mão dizia como portar-se. A irmã pouco fala durante as sessões e em grande parte do tempo passar
sorrindo de toda e qualquer situação que ocorresse, aparenta ser mentalmente atrasada com
relação as outras crianças de sua idade.

A mãe alega durante as sessões que tenta "cortar o cordão umbilical" ( frase utilizada por mãe e
filho) no entanto seu próprio relato a contradiz, esta é bastante controladora, diz aos filhos como
portar-se e o que fazer em cada situação, privando os filhos de fazer escolhas. Relata que quando o
marido ( pai das crianças) a deixou, ela sentiu-se muito só, e buscava a companhia dos filhos como
forma de alento.Trabalha em um supermercado, passa algumas horas fora mas não mantém outras
atividades

Após algumas sessões e intervenção mãe e filho começam a demonstrar que a relação da sinais de
estar sofrendo cortes, Nicolas começa a interessar-se por saber como as garotas pensam e alega que
são "loucas" , demonstra também interesse pelos outros adolescente que frequentam o grupo,
pergunta como é a relação de cada um com os pais, namorados e amigos, o que fazem nos fins de
semana e que roupas deve usar para uma festa ou outras situações. A mãe conta que proibiu o filho
de dormir em sua cama, mas em contrapartida permite todavia a filha no leito, mas com mais algum
tempo acaba por proibir esta também.

Os filhos passaram a ser proibidos de circular pelo quarto da mãe, coisa comum no início do
tratamento, á principio somente os três vinham a sessão e se um não pudesse ou estivesse
indisposto todos os três eram privados, hoje cada qual vem na medida de sua vontade e o
desligamento é nítido na relação. As crises de dermatite sessaram em Nicolas, no entanto a irmã
sofreu com algumas, visto que a relação simbiótica passou no início do tratamento de um filho para
o outro.

Hoje mãe e filhos transparecem uma relação um tanto quanto mais saudável, no entanto continuam
em tratamento por haverem várias questões todavia a serem resolvidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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