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Perfil

José Outeiral é médico, psiquiatra, psicotera- cia (CEAPIA), e ex-professor da Faculdade


peuta de grupo e especialista em psiquiatria de Medicina da Pontifícia Universidade Cató-
de adultos, crianças e adolescentes. É mem- lica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É autor
bro titular e didata da Sociedade Psicanalítica de mais de 20 livros, entre eles: Adolescer,
de Pelotas, e membro convidado da Socieda- O Adolescente Borderline, Conhece-te a Ti
de Brasileira de Psicanálise do Rio de Janei- Mesmo, Breve Ensaio Sobre a Mentira, O
ro. Full Member da Associação Psicanalítica Mal-Estar na Escola, e Donald Winnicott na
Internacional (IPA), é fundador do Centro de América Latina, junto com Sônia Abadi. Tem
Estudos e Pesquisa da Infância e Adolescên- trabalhos publicados no Brasil e no exterior.

José Outeiral
6 de agosto de 2009, no Fórum Internacional de Educação, em Osório
A
escola hoje tem um papel muito especial. na diversidade: famílias. São muito distintas as confi-
Além da transmissão do conhecimento, é um gurações. O professor que entrava na sala de aula nos
lugar de promoção da saúde e prevenção da anos 1960 podia imaginar o tipo de família dos seus
doença. Além disso, talvez seja o local onde muitas alunos. Hoje, ele entra na sala de aula e vai ter que
crianças e adolescentes, frente à situação pela qual imaginar que cada um deles traz uma cultura familiar
passa a família hoje, podem contar para favorecer o específica e que, via de regra, não coincide com a sua
seu desenvolvimento. A família enfrenta várias dificul- própria experiência familiar. Lidar com a diferença é
dades e, se a escola, este segundo espaço, não der um problema. Nós temos a tendência de agir, de pen-
conta do desenvolvimento satisfatório e adequado de sar, em função de nossa própria expe­riência e somos
suas crianças e adolescentes, elas passarão a fazer demandados a tratar com experiências muito dife-
parte de uma estatística estarrecedora. Indicadores rentes da nossa. Há pouco tempo, eu fui numa pré-
sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Es- escola, de classe média alta em Porto Alegre, cuja
tatística), do último censo, dizem que a primeira cau- dificuldade era a seguinte: havia duas crianças cujos
sa da morte de jovens no nosso país é o homicídio, grupos familiares eram constituídos, um por duas mu-
a segunda, acidentes, particularmente de trânsito, lheres; outro por duas mulheres e um homem. Eles
envolvendo uso de substâncias psicoativas, principal- foram a uma reunião de pais e não se passaram cin-
mente o álcool. A terceira causa de morte – e isso é co ou seis dias até que outros pais começassem a
um absurdo – é o suicídio. Só depois doenças orgâni- retirar as crianças da escola, como se ela não fosse
cas. Nós, adultos, temos que nos perguntar: Por que digna para seus filhos. Quando a cantora Cássia Eller
nossa sociedade recebe de tal forma as crianças e os morreu, quem ficou com a guarda da criança foi sua
adolescentes? Evidentemente, um médico ou um psi- companheira e não o avô materno, como era até en-
canalista não tem uma resposta para isso. Mas posso tão. Foi criada uma jurisprudência reconhecendo que
compartilhar a minha experiência – comecei a aten- quem fica com a guarda da criança não tem neces-
der como psiquiatra, em 1971, são quase quatro dé- sariamente laços de consanguinidade, mas afetivos.
cadas. Na verdade, são os professores que trabalham E nós temos dificuldade de lidar com este tipo de
cotidianamente com as crianças e adolescentes. Não mudança de estrutura familiar, mesmo que no Brasil,
tenho dúvida que a escola é o local que pode produzir por exemplo, pelo menos em um terço das famílias o
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conhecimento. Na medida em que encontros como pai não está mais em casa. A família tenta dar conta,
este, que é uma reunião anual, de reflexão, além das como pode, das novas estruturas que se apresentam
reuniões frequentes que as escolas fazem, geram co- e isso não é fácil.
nhecimento e esse conhecimento, sim, pode produzir Terceirização da educação
o local adequado ao trabalho e ao desenvolvimento Há uma tendência, hoje, seguindo como é numa em-
das crianças e dos adolescentes. Não penso que o presa, onde se terceiriza portaria, transporte, limpeza,
conhecimento vem, necessariamente, da universida- cozinha e segurança, de se terceirizar para a escola
de, da Academia, porque até que uma tese seja pen- cuidados da família. São questões interessantes. Isso
sada, elaborada, transformada em livro e chegue até é uma experiência que se está fazendo inadequada-
a escola, se passaram cinco ou seis anos. Na série de mente, porque a escola não pode usurpar ou exercer
dificuldades com as quais os professores se defron- o papel familiar. As famílias terceirizam para a escola
tam, as respostas são para amanhã. Não vejo outro questões que são suas: limites, valores, educação se-
espaço, senão o da escola, para discussão destas xual. Mas, por outro lado, vejo que é uma tendência
questões. que cada vez mais se apresenta. Desde o final dos
Transformações na família anos 1960, crianças e adolescentes passaram a cha-
A família passa por transformações muito grandes. mar, indistintamente, o vizinho, os professores ou o
Hoje em dia nem se fala em família, se fala no plural, motorista do transporte escolar de tios. Houve, e ain-

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da há, um esgarçamento, uma ruptura do tecido so- ocidental os adultos querem parecer adolescentes.
cial e familiar. Eles têm a esperança, ao chamar vários Autoridade é o oposto de autoritarismo. Autoridade
adultos de tios, de cerzir o tecido social esfarrapado. se dá no reconhecimento pelo outro de que aquele
De todos os mamíferos, é o bebê humano o que nasce – seja o pai, a mãe, o professor – tem elementos e
em maior estado de desamparo físico e psíquico. Ou- aspectos que valem a pena ser considerados. Quem
tros mamíferos, os de quatro patas, com algumas ho- nos dá autoridade é o outro, ao reconhecer a nossa
ras já se locomovem e vão na teta da mãe. Nós não. experiência como válida, a ser seguida. Por isso é im-
Se não formos atendidos adequadamente, morremos. portante que o professor seja o autor da sua aula. O
E a tragédia humana é que nós só nos constituímos professor captura e sustenta a atenção do aluno no
como sujeitos, só desenvolvemos o sentido do huma- olhar. Como se organiza a atenção de um bebê? No
no, na presença de um outro: os pais ou os professo- olhar da mãe. Se a mãe não sustenta o olhar do bebê,
res. Se não houver isso, nós teremos situações muito ele olha para uma lâmpada, olha para a televisão ou
difíceis. Se é verdade que a história humana passa para a luz que vem de uma janela da rua. Na medi-
por períodos de civilização e barbárie, eu não tenho o da em que o professor captura o olhar de sua classe
menor pudor em dizer, baseado nas estatísticas, que com o olhar e com a escuta, e através da experiência
nós vivemos um período de barbárie. Espero que a que ele transmite, constrói a autoria e a autoria vai
civilização não demore muito a retornar. lhe dar a autoridade. Se ele não faz isto, o oposto é
Autoridade na sala de aula o autoritarismo que vai se exercer ou pela violência,
Para que cada um se torne humano e incorpore pre- ou pelo que é muito frequente, pela negligência, pelo
ceitos éticos e morais, é fundamental a presença de descaso, pela falta de atenção. Há uma diferença en-
outras pessoas, com as quais as crianças e adolescen- tre ver e olhar, entre ouvir e escutar. Ver e ouvir são
tes possam se identificar. Não tenho a menor dúvida fenômenos físicos, sensoriais. Olhar e escutar são a
de que os professores hoje são modelos importantes elaboração afetiva destes fenômenos físicos do ver e
e fundamentais para essa identificação positiva, atra- ouvir. Nós vemos e ouvimos nossas crianças e adoles-
vés do compromisso, do exercício da autoridade. Têm centes. Mas olhamos e escutamos muito pouco.
muitas salas de aula, e muitas famílias, onde faltam Vocação
adultos e nós temos muitos adolescentes ou quase só É muito difícil ser professor, é uma vocação, não é pra
adolescentes. Tanto que existe a palavra “adultescen- todo mundo. Assim como não é para todo mundo ser
te”, uma contração de adulto com adolescente, dan- médico, ver um abdômen aberto, um braço decepado,
do conta de que na civilização contemporânea urbana a morte. Tem que ter um desejo. Eu fui professor vinte

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anos na Faculdade de Medicina, até que me dei conta
que, na verdade, eu sou um clínico e não docente. E aí
pedi licença da faculdade. Ser professor hoje significa
enfrentar uma série de dificuldades. Por outro lado, uma
série de oportunidades de ser criativo e ir mais além do
conteúdo. No momento atual, eu acho um privilégio ser
professor, porque a oportunidade que a gente tem de
interferir positivamente na vida, favorecendo o desen-
volvimento, oferecendo uma escuta, é fantástica.
Geração fast
Hoje, as crianças são muitíssimo mais rápidas no pen-
samento do que eram antes. Porque elas lidam com
um conceito de tempo que é muito rápido, possibilita-
do a elas por estas máquinas incríveis que elas têm,
o computador. É lógico que existe um tempo fixo do
nosso relógio, o chronos. Mas desde a antiguidade
clássica grega tem um outro tipo de tempo que é o no filme Tempos modernos, no qual o operário passa
subjetivo de cada um de nós, o kairós, que dá caroço, o dia todo numa tarefa entediante de torcer o para-
tempo de dentro. Nas crianças e adolescentes, isto fuso sempre para o mesmo lado. O professor vai ter
é um tempo muito rápido. Tentem acompanhar elas que ser criativo, vai ter que saber brincar, reintroduzir
no mouse, abrindo e fechando o Windows. Nenhum dentro da sala de aula o prazer e a alegria. Para pro-
de nós vai ter a velocidade de alguém que tenha dez vocar, acho que a escola está morta. Urge reinventar
anos de idade. Até fazendo uma crítica a palavras de e dar novamente vida a ela. Acho que é possível. São
outro idioma para substituir, eles são uma geração inúmeros os exemplos que já podemos observar hoje.
fast, delivery, tudo pronto na hora, como quem pede Eu não hesitaria em dizer que vejo na escola e escuto
uma pizza. É difícil concorrer com a mídia e com a dos professores de que é neste espaço que a grande
quantidade de informações que eles recebem fora transformação pode se dar. Não tenho a menor dúvida
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da escola. Acho que se o professor tiver a pretensão de que não é, certamente, nem na política nem nos
de ser o centro de irradiação do saber para os seus outros espaços essenciais, mas neste espaço onde
alunos, se dará mal. Ele facilita o acesso à informa- as crianças e adolescentes passam mais tempo do
ção, não é mais o magister [mestre], que passava a que com os seus próprios pais.
informação ao aluno. Não, ele vai ajudar a pesquisar, Violência
a selecionar a pesquisa. O problema não é ensiná-los A questão da violência se deve a inúmeros fatores. Eu
a operar a máquina, eles chegam sabendo. O nosso vou comentar apenas alguns. Primeiro: se o professor
problema é ajudá-los a ter uma atitude ética frente a não exercer autoridade na sala de aula, é possível que
ela. Como selecionar a informação? Como respeitar a a violência bata na porta e tente se instalar. A autorida-
relação que esta máquina demanda? de é, como eu expliquei antes, o reconhecimento pelos
Reinvenção da escola alunos de que aquele adulto que ali está é um autor,
Nós desaprendemos a brincar. Brincar vem do latim têm elementos nele que vale a pena o adolescente se
vincolo. Quando alguém brinca cria vínculo. A nossa identificar e aprender. Num segundo ponto, eu acho
escola, seguindo o modelo da Revolução Industrial, que há uma certa covardia dos adultos na sala de aula.
transformou a sala de aula quase num pátio de fábri- Eu estava numa reunião do Sindicato dos Estabeleci-
ca. Expulsou da sala o prazer e a alegria de aprender. mentos do Ensino Privado no Estado do Rio Grande do
Muitas crianças são como o Charles Chaplin descreve Sul (Sinepe/RS), no Colégio Rosário, e disse que tinha

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essa impressão, de que havia uma certa covardia dos Hoje, o tédio passa a fazer parte do nosso cotidiano,
professores em sala de aula. Alguém levantou a mão da nossa vida. A falta de um projeto, a repetição mo-
e falou do Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca): nótona dos espaços de vivência, a escola chata. O
“Se nós tomarmos uma posição firme, nós vamos ter tédio como evitação das relações, porque o sujeito
problema com a promotoria e tal”. E eu perguntei: “Al- que entedia os outros, o chato, que fica tagarelando,
gum professor aqui teve algum problema grave ao to- aparentemente ele está conversando, mas, na verda-
mar uma atitude firme, definida e de limite com os seus de, está mantendo distância – tagarelar é conversar
alunos?” Nenhum tinha tido uma situação grave. Aliás, com ninguém. O tédio é uma patologia contemporâ-
a única que havia era a de um rapaz que ameaçou um nea que eu acho que tem uma relação com esta inci-
colega com uma arma. A mãe foi à Promotoria, a uma dência muito alta de suicídios. A falta de um projeto
juíza da Infância e da Adolescência, e a mãe e o pai de vida, a invisibilidade social, por exemplo. Fernando
do menino ouviram coisas que nunca tinham ouvido na Braga da Costa, um doutorando da Universidade de
vida e que estavam precisando escutar há muito tem- São Paulo, de Psicologia, fez uma pesquisa na qual
po. A falta de autoridade, a covardia no enfrentamen- ele se vestia de gari e varria a frente da Faculdade.
to dos problemas, o fato de não ser criativo dentro da Nenhum colega o cumprimentava. Quando ele tirava
sala de aula, funcionam como elementos que não dão a roupa de gari e ia para a aula, todos o reconheciam.
acolhimento adequado ao gesto agressivo dos alunos. Ele escreveu um livro, Homens Invisíveis. É provável
Agressão é sinônimo de saúde, faz parte do desenvolvi- que um menino da periferia, que sofre de invisibilidade
mento saudável. Agressão vem de grede, do latim, que social, se tiver uma arma, adquira visibilidade social.
dá as palavras congresso, congregar, agregar. Grede As meninas ali da vila vão vê-lo de uma forma dife-
significa ir na direção do outro. Quando eles fazem este rente. Os adultos da cidade vão tomar cuidado e vão
movimento de encontrar, na busca de um adulto, e o notar quando ele se aproximar. Se ele se aproximava
adulto não está ali exercendo a sua autoridade, este sem a delinquência, ninguém o notava. Uma das cau-
gesto se torna cada vez mais amplo, cada vez mais sas da violência pode ser a invisibilidade, também.
desesperado e, aí sim, destrutivo e violento. Uma das Autoestima
causas importantes da violência dentro da sala de aula Para que o professor possa ajudar o seu aluno a me-
é quando um aluno com um gesto agressivo não en- lhorar a autoestima, ele tem que trabalhar a sua pró-
contra um adulto que lhe ponha limites. Eu acho que é pria. E inúmeras circunstâncias, muito variadas, fazem
o tema de um seminário de vários dias, meses, quem com que nem sempre o professor se sinta com a au-
sabe um seminário que nunca termine. toestima suficientemente adequada para o trabalho,
O tédio e a invisibilidade para a sua prática, no dia a dia da sala de aula. A
Existem patologias contemporâneas que atingem di- não-percepção da importância do seu papel na cul-
retamente os jovens. Por exemplo, o tédio. Ele tem tura contemporânea como o criador deste espaço de
a sua resolução, em parte pela criatividade. A outra favorecimento ao desenvolvimento da capacidade de
saída do tédio é a violência. Aqueles jovens que quei- brincar dificulta a melhoria da autoestima do profes-
maram o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, em sor.
Brasília [em 1997], estavam profundamente ente- Provocar o pensamento
diados. Hoje, vou dar um exemplo, o prazer está na A escola é feita dentro de um modelo da sociedade in-
compra de um brinquedo. Comprado o brinquedo, há dustrial. Não tem a ver, por exemplo, com os filósofos
um profundo tédio, do qual se escapa comprando um da antiguidade clássica grega, que em cima de uma
novo brinquedo. Esse tédio sempre existiu de certa colina, embaixo de um plátano descobriram a existên-
forma, mas era restrito ou ao nobre ou ao monge que cia do átomo sem a física experimental, pensando.
meditava. E quando o monge se entediava de medi- No chão da fábrica não precisa pensar, tem que deco-
tar, diziam que ele estava ficando possuído pelo diabo. rar, repetir. Nietzsche diz, em um dos seus aforismas,

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uma coisa importante e útil para o professor hoje: “O mico, meninos entre cinco e 15 anos morrem por ho-
que enlouquece é a certeza, não a dúvida”. Nietzsche micídio, se no Pará [em 2007], uma moça é detida em
tem toda a razão. A função do professor não é dar a uma cela com 20 homens adultos por quase um mês
resposta. Uma delas é produzir a dúvida, a inquieta- e ninguém foi punido, e muitíssimos outros eteceteras,
ção, o desejo de saber. Se eu chego ao hospital e o isto não é modernidade. É tarefa para a escola discutir.
meu paciente diz: “Outeiral, te porta na minha frente O professor deve trazer estas questões para conversar
com o respeito para o Napoleão Bonaparte que sou com os seus alunos. Isso é muito interessante. Fórmula
eu”. Eu ponho lá no prontuário: paciente gravemente de Baskara? Present continuous? Afluentes do Amazo-
enfermo, acredita de forma delirante que é Napoleão. nas? Vai aprender, e depois esquecer. Agora, aprender
Ele tem certeza. No dia seguinte, eu chego ao hospi- cidadania é fantástico. E alguém não se apodera da
tal e a enfermeira diz: “Outeiral, vai ligeiro que o teu cidadania com o voto, se apodera brincando. Quando
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paciente tem uma ansiedade brutal”. Eu chego e ele alguém brinca, aí é a assunção da cidadania. Vai ser
diz: “Doutor, eu tenho um metro e noventa e soube um cidadão diferente, que vai pensar. Vou contar uma
que Napoleão tinha um metro e cinquenta e dois. história relacionada ao pensamento, para vocês en-
Será que eu não sou Napoleão?” Eu ponho: paciente tenderem como é difícil. Esta história eu pensava que
evolui satisfatoriamente. Se vocês têm muita certe- era do Monteiro Lobato, até que um dia a Léa Masina,
za, cuidem-se. Nós temos que produzir é a dúvida, professora de Literatura da Universidade Federal do Rio
a pergunta, a inquietação, e auxiliar onde buscar as Grande do Sul (UFRGS), me disse que não era dele. En-
respostas. tão deve ser minha, eu devo ter sonhado e para passar
Aprendizado da cidadania a história com maior peso de autoria, eu dizia que era
Nietzsche é um dos pensadores fundamentais da filo- do Monteiro Lobato. Numa pequena cidade do interior
sofia para quem quer compreender a condição contem- tinha um padre velho – nunca estudei em seminário – e
porânea, isso que alguns filósofos afetados chamam as pessoas rezavam, numa ladainha [dita de maneira
de pós-modernidade, e que eu prefiro chamar de alta extremamente rápida]: “Ave Maria, cheia de graça...”.
modernidade. Concordo com o Sergio Rouanet1, de que Morreu o padre velho, mandaram um padre novo para
este país nem bem moderno é. Se, em São Paulo, na a cidade. E o padre novo começou: vamos rezar. E eles
cidade com maior índice de desenvolvimento econô- começaram a ladainha: “Ave Maria, cheia de graça...”.

1 Sergio Paulo Rouanet – nascido no Rio de Janeiro em 1934, é diplomata, filósofo, antropólogo e ensaísta. Desde 1992, é membro da
Academia Brasileira de Letras.
2 Iván Izquierdo – a síntese da entrevista com o cientista integra os volumes I e V da série Encontros com o Professor – Cultura Brasileira
em Entrevista.

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E o padre disse: “Assim não. Vamos pensar em cada carregue dentro de si. Através da arte, nós vamos res-
frase da oração. Vamos pensar nas frases”. À noite, a gatar a espontaneidade e a criatividade. Eu tive uma
beata se deitou e pensou “antes de dormir vou rezar experiência que acho muito interessante com o pro-
como o padre novo mandou”. E ela começou: “Ave” – fessor Iván Izquierdo2, que é um grande neurocientista
ela levou um susto ao imaginar uma galinha. “Mas se o argentino, naturalizado brasileiro. Ele e eu começamos
padre mandou, eu vou adiante: “cheia de graça” e viu a conversar sobre levar um tema para um congresso
um galo daqueles Leghorn vermelhos, grandes, cheio em Paris. “Mas não vamos escrever”, me disse o
de galinhas à volta. Ela já estava em pânico e pensou: Iván, “vamos fazer um filme, porque vou ser cineasta
“Deus me livre de ter desejado que este padre velho e na próxima encarnação, não tem a menor dúvida...”.
chato morresse para vir um padre novo e bonito da Ca- Fizemos um documentário, de 45 minutos, patroci-
pital”. Pensar produz angústia, pensar é extremamente nado pela Companhia Estadual de Energia Elétrica
transgressor. É função do professor reintroduzir a ale- (CEEE), com a produtora Documenta Filmes, do Rio
gria e o prazer de estudar e ajudar o aluno a pensar. de Janeiro, numa fazenda, fogo de chão, churrasco de
O papel da arte ovelha, arroz de carreteiro, os cachorros passando, os
Shakespeare, para dizer “você é” nunca escreveu you cavalos, nós vestidos de gaúchos conversando sobre
are. Ele escrevia thou e art (arte). No inglês clássico neurociência e desenvolvimento da linguagem nos
se diz “você é” da seguinte forma: thouart. Alguém só humanos. O Iván disse: “Outeiral, os cachorros têm
pode ser alguém através da arte. A arte pode ser a de linguagem. Eu tenho uma cadela que quando quer pe-
conversar com o outro, por exemplo. Estes tempos dir alguma coisa para a minha mulher uiva assim...”. E
eu participei de uma reunião das escolas Sinodal, lu- ele uivou: auúúúúúúú e disse: “É igualzinho a Whitney
teranos, todos os professores discutindo. Quando nós Houston”. Eu falei que íamos editar, tirar ele uivando,
saímos, as senhoras luteranas tinham feito uma mesa como que iríamos levar isso para Paris? Ele disse que
de cucas, produtos de origem alemã, e eu não tive a não era para tirar. E eu perguntei sobre os comentá-
menor dúvida de dizer: “A grande cultura não estava rios. “Eu não sei o que eles vão achar, mas nós dois
na nossa discussão acadêmica, mas a cultura está vamos nos divertir muito com esses sujeitos em Pa-
aqui nesta comida”. Através da arte, alguém pode ris”, respondeu. Foi divertidíssimo. Isto é criatividade.
estender um fenômeno curativo de certas dores que Reintroduzir o prazer.

O encontro

O Encontros com o Professor foi uma das atrações


do 13º Fórum Internacional de Educação, rea­lizado
entre os dias 5 e 7 de agosto, em Osório. Em meio
a conferências e palestras, José Outeiral deu sua
contribuição para temas como educação, escola
e adolescência. O evento, direcionado para pro-
fissionais da Educação e estudantes, teve mais
de mil inscritos na edição. “Urge reinventar e dar
novamente vida à escola”, provocou o psiquiatra
frente à plateia.

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