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DA LAMA À FLOR DE LÓTUS:


A experiência de pais de crianças autistas

Lessandra Pinto Michel


Prof. Dr. Jaime Doxsey
Faculdade AVANTIS
Especialização em Psicologia Clínica na Abordagem Centrada na Pessoa
08/08/14

RESUMO

O autismo vem sendo descoberto pela sociedade geral e científica. Hoje temos um mapa bem
delimitado sobre o que é essa desordem do desenvolvimento, quais suas características,
implicações na família e na sociedade. Grande parte dos estudos volta-se para a experiência da
criança e poucos tratam de conhecer o que significa para os pais a experiência de terem um filho
autista. O presente trabalho apresenta a experiência dos pais de crianças autistas no convívio com
seus filhos. Para tanto, estabeleci como objetivo geral “conhecer a experiência dos pais de
crianças autistas em relação ao convívio com o filho”, e para alcançá-lo, estabeleci como objetivos
específicos “identificar a percepção e sentimentos dos pais acerca das dificuldades dos filhos, os
sentimentos dos pais no momento do diagnóstico de autismo dos filhos e identificar a forma dos
pais de lidar com as dificuldades dos filhos”. Encontrei como resultados aspectos relacionados a
vida e dinâmica familiar característica do autismo e diferente das famílias típicas, sentimentos que
envolvem, desde o impacto quanto ao diagnóstico até o receio quanto ao futuro do filho, as
diferentes formas de buscar por recursos de enfrentamento e como estão definidas as funções e
papéis entre os pais, expectativas frente ao filho e ao futuro e a aprendizagem dos membros da
família quanto ao desenvolvimento da criança e do conjunto familiar. Este trabalho poderá
embasar pesquisas futuras como um estudo explicativo que busque compreender melhor como se
desenvolve essa dinâmica; também pode fundamentar pesquisas quanto a questão social e o quanto
nossa rede de apoio está preparada para receber essa demanda; e identifiquei a necessidade de
pensar em programas de auxílio à esses pais tanto no desenvolvimento de suas crianças, quanto na
compreensão de suas angústias e inseguranças.

Palavras-chave: Autismo, Pais, Experiência.


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INTRODUÇÃO: ABRINDO PARA FECHAR

Nas últimas décadas, em torno do mundo inteiro, o autismo vem sendo descoberto. Aos
poucos, a sua natureza foi sendo revelada, aos olhos da sociedade em geral. Desde os primeiros
estudos de Kanner e Asperger, o caminho para compreender o autismo não foi tão simples e linear
quanto temos descritas as características hoje. Para chegar à sistematização atual, muitos
pesquisadores tiveram de enfrentar resistência de vários lados, psicanalistas da época, pesquisadores
com posicionamentos contrários, profissionais da saúde e educação e até mesmo de alguns pais de
crianças as quais apresentavam características específicas da desordem. Diagnósticos eram
realizados de forma equivocada, a sociedade reagia (e reage até hoje) à inserção de crianças autistas
em seu sistema educacional, e por vezes até nas ruas, famílias se desestruturaram por não saber
como lidar com uma criança com necessidades especiais. Os livros pesquisados para o presente
trabalho demonstram histórias de famílias em busca por diagnóstico, tratamento, educação
adequada, auxílio no desenvolvimento de suas crianças e consequentemente o sofrimento e a
resistência enfrentados. Foi um caminho árduo e ainda é até os dias de hoje, embora o
conhecimento construído tenha tornado essa realidade um pouco mais acessível aos familiares.
Atualmente o autismo é um distúrbio do desenvolvimento abrangido pelos Transtornos do
Espectro Autista (TEA) e normalmente surge nos primeiros anos de vida de uma criança
(aproximadamente até os 3 anos de idade). Para uma leitura mais dinâmica, utilizarei nesse estudo o
termo autismo como referência ao TEA. O autismo indica o comprometimento do
neurodesenvolvimento devido a uma disfunção cerebral orgânica (Marques e Dixe, 2011). O autista
apresenta dificuldades na comunicação, interação social, imaginação e comportamento (Williams e
Wright, 2008). Bem como a escolha pelo termo “autismo”, utilizarei essa palavra com a letra
inicial minúscula por uma questão de posicionamento pessoal. Normalmente são encontrados
trabalhos que trazem o distúrbio como letra maiúscula chamando a atenção para o adoecimento
como uma condição e dando ênfase na doença e não no sujeito que a vive. Desta forma, utilizando a
palavra “autismo” em minúsculo, pretendo chamar a atenção do leitor para o sujeito que vivencia
essa característica, e não para o distúrbio determinante. Busco uma forma de não tornar essa
realidade mais estigmatizada e rígida do que já é, pois acredito que flexibilizando a forma de se
relacionar com ela, mais recursos de enfrentamento poderão ser construídos auxiliando no
desenvolvimento tanto da criança, quanto de seus familiares.
A sociedade, por sua vez, veio se transformando na medida em que o autismo foi tomando
forma. Antigamente não existia conhecimento sobre essa desordem, portanto como considerá-la?
Com o passar do tempo, com informações corretas sobre o assunto, a sociedade veio se preparando
para interagir com essa realidade. Contudo esse processo não está sendo fácil. Em alguns lugares o
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conhecimento sobre a temática está repleto de informações distorcidas e fantasiosas, provocando o


preconceito e discriminação. Entretanto, acredito que a mídia vem desempenhando o importante
papel de levar conhecimento àqueles que não possuíam ou que o tinham de forma equivocada e
assim, pessoas vêm se interessando pelo assunto e buscando aperfeiçoar seus conhecimentos. Hoje
em dia dificilmente existe alguém que não tenha alguma informação sobre essa temática.
Ao longo dessas décadas, pesquisadores vieram delimitando as características e hoje temos
um mapa bem desenhado do que é autismo, em seus diferentes níveis. Entretanto, ter esse
conhecimento estabelecido, atualmente, não significa que os profissionais estejam preparados para
diagnosticar e fazer os encaminhamentos e tratamentos necessários. Em minha experiência percebo
que alguns pais buscam auxílio para seus filhos que apresentam dificuldades características do
autismo e muitos deles já tendo passado por profissionais da saúde, sem receber qualquer
diagnóstico sugestivo. Compreendo que existem características sutis que muitas vezes confundem a
percepção desses profissionais, mas apresento aqui a importância de apurar cada vez mais o olhar
para captar essas dificuldades, desde as mais sutis até as mais evidentes, elaborando um quadro
diagnóstico para possíveis encaminhamentos.
Mais do que diagnosticar, precisamos ter uma rede social bem estruturada para poder
auxiliar no desenvolvimento das habilidades dessa criança que foi diagnosticada com autismo. E
partindo para o âmbito familiar, os profissionais estão preparados para acolher esses pais em suas
angústias e necessidades?
A família é o primeiro grupo social através da qual uma criança se relaciona, tornando-se
elemento importante para o desenvolvimento e crescimento físico e emocional da mesma e para o
processo de socialização. Tem como função a inserção e integração da criança na sociedade em que
vive (Fernandes, 2010). A importância não está somente no desenvolvimento da criança, mas
também no conjunto de pessoas que possuem laços afetivos entre si e que através da sua
convivência constroem uma forma de funcionar na vida a qual chamarei de dinâmica familiar.
Normalmente, essa dinâmica familiar se transforma quando um dos membros do grupo
adoece, quer seja na atualização da imagem que os familiares construíram desse membro e sobre as
limitações naturais do adoecimento, ou em relação a readequação da rotina dos demais membros
para poder cuidar do mesmo. Da mesma forma acontece quando esse adoecimento está relacionado
a um transtorno do desenvolvimento, como o autismo, por exemplo.
Quando uma família descobre que um de seus membros possui características de autismo,
o grupo como um todo é afetado por essa nova realidade. Os pais podem viver a experiência de luto
pela frustração da expectativa de ter um filho saudável e assim, apresentar a necessidade de
desconstruir a imagem da criança que nunca terão. Os irmãos podem viver a sobrecarga de
responsabilidade perante o membro autista, muitas vezes apresentando atitudes de superproteção
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(Fernandes, 2010). Corroborando com o autor, Sprovieri e Assumpção Jr. (2001, p. 231), afirmam
que “o autismo leva o contexto familiar a viver rupturas por interromper suas atividades sociais
normais, transformando o clima emocional no qual vive. A família se une à disfunção de sua
criança, sendo tal fator determinante no início de sua adaptação. Paralelamente, torna-se inviável
reproduzir normas e valores sociais e, consequentemente, manter o contexto social”. A partir dessa
citação, reconheço a importância de cuidar desses pais para que consigam desempenhar essa função
da forma mais adaptada possível e não deixarem de se realizar enquanto indivíduos.
Contudo, muito antes dos pais receberem o diagnóstico de autismo de seus filhos, existe
uma construção de imagens e expectativas quanto ao futuro. Esse movimento é natural entre muitas
pessoas. Se desejamos ser pais, fantasiamos como será nosso filho, o que ele conquistará, se nos
dará netos, se será bem sucedido, autônomo e feliz. Quando se tem a notícia de que o filho é um
autista, para onde vão todas as imagens e expectativas construídas? E como interagir com essa
criança que é tão diferente da que foi esperada? É possível imaginar a angústia que paira nessas
situações? Com essas perguntas, entre outras, pretendo me aproximar um pouco mais da
compreensão da experiência desses pais no convívio com seu filho autista.
Tanto a pesquisa de Smeha e Cezar (2011), Tunali e Power (1992 apud Fávero e Santos,
2005), Moes e cols. (1992 apud Fávero e Santos, 2005) quanto a de Sifuentes e Bosa (2010)
demonstraram a dificuldade de ser pais e mães de crianças autistas e o quanto pode desestruturar
uma família no momento de inserção e adaptação da criança na dinâmica familiar. Diante desses
estudos, mais uma vez reconheço a importância de cuidar daqueles que cuidam: os pais!
Esses pais precisam de apoio e ajuda para compreender o que é autismo, como lidar com
suas crianças, como estimular para que elas desenvolvam seu potencial máximo, como desconstruir
as expectativas e interagir com a realidade no aqui-agora. Poderia passar horas discursando sobre
todas as inquietações, angústias, dúvidas que assolam os pais, contudo me interesso em falar sobre
suas experiências como um todo. Essa pesquisa pode trazer mais do que o autismo e os autistas para
o foco da discussão, o intuito é trazer os pais dessas crianças, que muitas vezes tornam-se
coadjuvantes nessas histórias, deixam suas vidas de lado na missão de ajudar no desenvolvimento
de seus filhos e que precisam lutar para ter apoio. Poderá proporcionar, através da visibilidade
desses pais, um maior conhecimento de suas necessidades, percepções e sentimentos, para que, a
partir desse conhecimento, os mesmos possam ser compreendidos e cuidados. Esse estudo poderá
oferecer subsídios para os profissionais, tanto da educação quanto da saúde, construírem um novo
jeito de cuidar dessas famílias, beneficiando essas famílias e a sociedade como um todo, e também
no aperfeiçoamento desses próprios profissionais.
Para construir esse trabalho um caminho metodológico foi seguido. A partir do momento
da escolha da temática, foi realizada uma revisão bibliográfica em relação ao autismo e dinâmicas
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familiares. Decidido que seria um trabalho que apresentasse a experiência dos pais na maternidade e
paternidade de crianças com autismo, busquei através do recurso da internet, informações sobre
biografias de pais sobre a experiência com o filho autista. A escolha dos livros foi aleatória, sem
priorizar sexo, idade ou qualquer outra característica dos pais e da família. Desta forma, foram
escolhidos 4 livros, sendo que um deles possuía diversas histórias acerca de pais que possuem
crianças com necessidades especiais em geral. Dentre essas, coletei as informações de todas as
famílias com crianças autistas, totalizando 3 histórias nesse livro diverso. Os títulos dos livros e os
autores são: “Sinto-me só”, de Karl Taro Greenfeld; “Mãe, me ensina a conversar, de Dalva
Tabachi; “Autismo, um mundo obscuro e conturbado”, de Roy Richard Grinker; “Pais de crianças
especiais, relacionamento e criação de filhos com necessidades especiais”, de Donald J. Meyer. As
falas representativas da experiência dos pais com a criança autista foram selecionadas e
categorizadas em grupos de semelhanças. Posteriormente entrelacei as histórias entre si, para
responder ao meu objetivo geral que é de compreender a experiência dos pais de crianças autistas
em relação à convivência com elas. Para alcançar esse objetivo, pretendi identificar a percepção e
sentimentos dos pais acerca da experiência com seus filhos, identificar os sentimentos dos pais no
momento do diagnóstico de autismo dos filhos e identificar a forma dos pais de lidar com a
realidade do autismo.

DISCUSSÃO

1 CONTEXTO FAMILIAR

Ao longo da nossa vida construímos sonhos que desejamos viver. Grande parte da
população, dentre todos os desejos, sonha em casar e constituir uma família. A partir do momento
que esses sonhos se concretizam, uma nova realidade se configura para aqueles indivíduos. Nesse
capítulo apresentarei aspectos sobre o contexto familiar para que seja possível compreender a forma
como esses pais experienciam a realidade de serem responsáveis por uma criança autista.
Cada família apresenta uma dinâmica de funcionamento específica, e essa característica
influenciará diretamente na forma como vivem a realidade do autismo. Ao longo do trabalho essas
dinâmicas serão esclarecidas e será possível compreender, a partir disso, a forma que se relacionam
com a criança e com essa realidade.

1.1 O CASAL, O CASAMENTO


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Um dos desejos de parte da população é encontrar alguém para constituir uma vida em
conjunto. A forma como o casal é constituído varia muito de família para família. Das histórias
pesquisadas, poucos autores explanaram sobre o início da vida familiar e a forma como o casal se
relaciona. Geralmente quando eles se reportam ao casal, falam sobre o quanto pai e mãe se
sincronizam, ou não, para poder lidar com a realidade de um filho autista. Talvez tenham escrito
dessa forma pelo fato dos livros se destinarem a contar a história da vivência do autismo, e não
sobre a história do casal.
Os autores deixam subentendido como é a relação do casal através dos relatos sobre a
forma de lidarem com o autismo do filho. Desta forma, não utilizarei falas dos pais para apresentar
esse item do trabalho. Utilizarei das minhas sensações e percepções, sintetizando a história
apresentada no livro.
Ao longo dos livros percebi uma diversidade em relação às constituições familiares e a
forma de se relacionarem enquanto membros, e realizarem-se enquanto unidades familiares. Essa
diversidade acompanhará todos os itens do trabalho, e indica uma variedade de formas de interagir
com a realidade do autismo, algumas delas um pouco mais facilitadoras, enquanto outras,
dificultadoras.
Ao mesmo tempo em que identifiquei famílias que se estruturaram de forma sólida e com o
surgimento do autismo no seu contexto, conseguiram se reorganizar para buscar recursos para lidar
com isso, também identifiquei famílias que, a partir do diagnóstico do filho, desintegraram-se a
ponto de pensar em separação. A intenção desse trabalho não é explicar nenhum dos elementos que
foram encontrados, portanto, nesse capítulo não buscarei justificativas sobre qual o motivo pelo
qual algumas famílias conseguem se reorganizar enquanto outras realizam o movimento contrário.
É possível identificar que as famílias que mais tiveram dificuldades de se adaptar a
realidade do autismo, demonstraram isso desde o início do processo em relação à vários elementos,
ou seja, desde o momento em que identificam que algo de errado pudesse estar acontecendo com
seu filho.

1.2 VIDA FAMILIAR

A partir do momento em que duas pessoas começam a se relacionar enquanto um conjunto


familiar, uma dinâmica de funcionamento começa também a ser desenvolvida e ao longo dos anos,
transformada e lapidada. A cada nova fase da vida familiar, uma nova organização para acomodar
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as mudanças é necessária. A inclusão de um novo membro na família é um desses momentos de


transformação.
Nesse item do trabalho apresentarei os aspectos referentes às questões da vida familiar,
constituição, gravidez, primeiros momentos do bebê, diagnóstico, recursos de enfrentamento e
sobre rotina familiar voltada para as necessidades do autista.

1.2.1 O começo de tudo: Gravidez, descoberta do autismo e busca por recursos.

A seguir apresentarei aspectos sobre como estão constituídas as famílias das histórias que
pesquisei. Inicialmente apresentarei os aspectos sobre a gravidez e as expectativas quanto ao filho, a
identificação de que algo de errado possa estar acontecendo no desenvolvimento da criança e o
impacto da descoberta da desordem, e a busca dos pais por uma forma de lidar com essa nova
configuração da realidade.

a) Gravidez

Um dos elementos mais importantes desse trabalho são as expectativas que os pais criam
ao longo da vida em relação à vários aspectos. Ao longo do texto deste trabalho, em vários
capítulos, apresentarei diversas facetas dessas expectativas. Esse processo também ocorre em
relação à constituição familiar. Dentro dessas expectativas está o desejo dos pais pela formação de
seu filho, ou seja, sobre quem ele se tornará. Neste sentido, o momento da gravidez é um catalisador
dessas expectativas que já vinham sendo construídas mesmo antes da confirmação da chegada de
um novo bebe.
Como já apresentado anteriormente, nesse estudo foi identificado uma diversidade de
constituições familiares. Em algumas das histórias, a criança autista é o primeiro filho da família,
enquanto em outras, é o segundo. Por um lado esses dados são importantes, pois indicam que esses
pais já possuíam alguma experiência quanto ao processo de gravidez, nascimento, primeiros
momentos do desenvolvimento de uma criança e assim por diante. Em relação à temática do
autismo, essas experiências não influenciam tanto, pois todos os pais afirmaram não terem
conhecimento seguro acerca dessa realidade. Entretanto, os pais que já possuíam outro filho tiveram
uma maior facilidade de identificar as características diferentes, por comparação entre o
desenvolvimento das duas crianças. Os pais que ainda não haviam vivido essa experiência tiveram
um pouco mais de dificuldade em identificar a necessidade de buscar por ajuda médica.
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b) Expectativas quanto ao filho saudável

Desde que nascemos aprendemos a construir expectativas sobre tudo o que poderemos
viver ao longo da vida. Expectativas quanto ao casamento, profissão, casa, família, e assim por
diante. As expectativas sobre o filho começam a ser construídas antes mesmo da gravidez, contudo
esse momento é um marco para a intensificação desses desejos. Os pais planejam qual será o nome,
expectativa quanto ao sexo da criança, onde estudará, se continuarão morando na mesma casa, entre
outros pensamentos. Mas também pensam sobre como será a criança, como será seu rosto,
características físicas e pode surgir o receio sobre a saúde da criança. Alguns pais discursaram sobre
o medo de que o filho nascesse com algum problema ou que viesse a desenvolver ao longo da vida.
Abaixo segue um trecho da fala de um dos pais referente a esse momento
Normal é a palavra que todos os pais querem ouvir (Grinker, 2010, p. 37).
Embora seja uma fala curta e pontual, demonstra o quanto os pais receiam que os médicos
apresentem algum problema de seu filho. A possibilidade de ter um filho que não corresponda a
normalidade, perante aos padrões, provoca angústia e insegurança nos pais e que geralmente é
cessada no momento em que é confirmado que a saúde do filho está dentro do esperado. Caso
contrário, os pais vivem todo o processo de descoberta do adoecimento que será apresentado no
próximo capítulo do trabalho.
Acho que o que tememos, o que realmente nos apavora, é que Noah não seja uma criança
normal, que seja maluco, e que sua condição esteja piorando (Greenfeld, 2009, p.16).
Na fala acima o pai fala abertamente sobre seu medo quanto ao desenvolvimento do filho.
Existe uma quebra da expectativa do filho saudável a partir do momento em que é confirmada a
desordem, e se os pais não começarem o processo de desconstrução da imagem desse filho, a cada
dificuldade que emergir, os mesmos se sentirão frustrados por não terem o filho que planejaram.
Hoje de manhã saí para caminhar com Noah ao sol e foi como sentir na pele um sol da
eterna juventude, caminhando de mãos dadas com ele, uma coisa muito típica de pai e
filho, até eu perceber mais uma vez que uma das coisas tristes em Noah é que nunca se
pode sentir aquecido pela sensação de se estar ajudando a criar um estoque de memórias
agradáveis em uma criança (Greenfeld, 2009, p. 98).
A fala acima demonstra o quanto o pai se sente frustrado por reconhecer que o filho não é
capaz de desenvolver habilidades tão fundamentais para um convívio social e talvez nunca
conseguirá. Na experiência com um autista, muitos pais se frustram quando reconhecem que
habilidades sociais tão simples para a maioria das pessoas são limitações sérias de seus filhos.
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É possível que exista uma comparação entre o filho e outras crianças que estão na mesma
etapa do desenvolvimento. Quando isso ocorre, o produto disso é a frustração das expectativas
construídas até então. Mais a frente apresentarei a necessidade dos pais tomarem como partida o
próprio desenvolvimento do filho, e não de padrões externos. A fala abaixo demonstra essa
característica de comparação.
Tento não pensar em como são as outras adolescentes. Se a comparo com o resto do
mundo, ela parece muito deficiente (Grinker, 2010, p.33).
Nesse exemplo o pai demonstra a consciência da diferença de desenvolvimento da filha
com as outras crianças, e reconhece a necessidade de não se fundamentar nisso. No entanto, quando
os pais conseguem abstrair os padrões externos e se concentrar somente nas potencialidades do filho
autista, dificilmente haverá o sentimento de frustração, pois as expectativas estarão voltadas para as
habilidades que o filho poderá alcançar. Nisso também está envolvido um processo de aceitação do
filho e de suas potencialidades, que mais a frente explanarei com mais detalhes. É esse movimento
que precisamos auxiliar os pais a construir, para ajudarem a si e ao filho.

c) Descoberta do autismo de seu filho

Os primeiros sinais de autismo são vivenciados de diferentes formas. Alguns pais


percebem que algo está diferente do esperado porque compararam com o desenvolvimento de
outras crianças, ou porque alguém os alertou. Os mesmos podem identificar essas características
apresentadas pelo filho e seguir o caminho da negação, acreditando que poderia ser uma questão da
personalidade da criança ou até mesmo reconhecendo o atraso do desenvolvimento do filho, mas
pensando que seria uma questão de tempo, já que cada criança se desenvolve no seu ritmo. Nesse
sentido, alguns pais podem se tranquilizar ou se apegar à esperança de que logo o filho venha a
desenvolver. Abaixo segue a fala de uma mãe que reconhece as características do filho, mas por
falta de experiência acreditava ser comum a diferença de desenvolvimento entre as crianças.
Era meu primeiro filho, porém, e eu imaginava que algumas crianças eram assim mesmo,
tranquilas, não falavam cedo e não tinham reações de desagrado. Ricardo aceitava muito
bem as ordens, do jeitinho dele, sem grandes demonstrações de alegria ou raiva (Tabachi,
2006, p. 24).
Percebe-se na fala anterior que a falta de experiência em relação a maternidade também
dificulta esse processo de reconhecimento do desenvolvimento do filho, o que pode tardar a busca
pelo profissional da saúde e assim o diagnóstico e posterior tratamento.
Outros caminhos também são possíveis. Os pais podem identificar que algo no
desenvolvimento do filho não esteja ocorrendo como o esperado e dar um passo a mais, procurando
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por auxílio profissional. Nesse momento inicia-se uma longa busca por profissionais, diagnósticos e
tratamentos. Em todas as histórias apresentadas nesse trabalho foi possível identificar a dificuldade
de encontrar profissionais que conseguissem dar o diagnóstico correto e indicassem o tratamento
adequado já de início. Ressalto que essa fase de diagnóstico e busca de recursos para tratamento é
de extrema importância já que os estudos sobre autismo indicam que, quanto mais cedo se descobre
a desordem e iniciam-se os tratamentos, mais chances a criança tem de desenvolver suas
habilidades a fim de diminuir suas limitações. Portanto, está clara a necessidade de um diagnóstico
quanto mais cedo for possível e para isso são necessários profissionais preparados para identificar
as características da desordem desde o princípio. A seguir, apresento algumas das falas dos pais
sobre a experiência de busca por profissionais.
Karl ri alto, abertamente, audível. Noah sorri silenciosamente, misteriosamente. Porém,
não posso negar, Noah parece regredir mais e mais. Ele se recusa a ouvir ou entender o que
dizemos, e parou de falar. É hora de levá-lo aos médicos novamente (Greenfeld, 2009, p.
13).
No trecho anterior é possível perceber que o pai começou a identificar que algo no
desenvolvimento do filho não estava acontecendo da forma que naturalmente deveria acontecer por
comparação com o desenvolvimento do filho mais velho, e reconheceu por fim a necessidade de
levá-lo ao médico. A palavra “novamente” nos dá a ideia de que o pai já havia buscado por auxílio
profissional pelo menos outra vez, o que caracteriza também essa fase de busca por um diagnóstico
correto e seguro, uma jornada de especialidade em especialidade, e até mesmo diversos médicos de
uma mesma especialidade. Essa busca pelos médicos torna-se exaustiva, e em alguns momentos o
próprio médico pode contrariar a percepção dos pais, conforme relato abaixo.
Quando falei sobre minhas preocupações com o médico, lá também recebi pouco apoio.
“Não se preocupe”, ele disse. “Crianças diferentes se desenvolvem em graus diferentes”.
Ainda assim, eu sentia que algo estava seriamente errado. Não parecia natural uma criança
saudável ser indiferente a um carinho. Parecia inadequado uma criança de 1 ano de idade
acordar todos os dias, às 2 horas da manhã, gritando inconsoladamente. Eu estava
convencido de que algo devia estar errado, pois um menino com pais amorosos e uma irmã
carinhosa passava o dia aparentemente cego para as pessoas à sua volta. Mesmo assim, me
disseram que o problema era comigo, e não com ele (Karp, 2004, p. 96).
No relato acima é possível identificar que, mesmo depois que os pais conseguem romper a
primeira barreira que é o receio da descoberta e decidem levar o filho ao médico, em alguns casos
podem não obter as informações necessárias para compreender o que está acontecendo com ele e
assim dificultando a construção de estratégias para auxiliar no desenvolvimento da criança. Através
dos relatos e articulando com a experiência clínica é possível reconhecer o sentimento de
desamparo vivido pelos pais em relação aos cuidados dos filhos, principalmente quando não
encontram segurança nos profissionais da saúde. Conforme o relato anterior, o pai reconheceu que
algo estava fora do esperado e ao buscar pelo profissional, foi tranquilizado quanto à sua
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preocupação já que cada criança se desenvolve num ritmo próprio. Essa informação não deixa de
ser verdadeira, contudo essa minimização do problema pode dificultar o processo da família, pois
com o adiamento do diagnóstico, adiado também estará o início dos tratamentos necessários para
desenvolver a criança.
A partir das experiências apresentadas nos livros pude reconhecer a desgastante jornada em
busca de apoio profissional; muitos pais precisaram levar seus filhos várias vezes em diferentes
pediatras, psiquiatras ou neurologistas, dentre outros profissionais da saúde, para receberem o
diagnóstico de autismo. Eles podem encontrar diversos posicionamentos, desde a indicação da
ausência de problema até diagnósticos confusos e contraditórios. A experiência clínica corrobora
com essa percepção. O trecho abaixo de um dos livros descreve esse momento de busca.
Na mesma semana, embarcamos na cansativa e assustadora odisseia que nos levaria à dura
realidade do diagnóstico de Joshua: autismo. Comecei a jornada com seu pediatra, que nos
mandou para um programa que avalia crianças pequenas quanto à perda de audição. Ao
ficar determinado que sua audição era boa, essas pessoas nos mandaram para a assistência
social local que administra programas educacionais para crianças com necessidades
especiais. Após fazerem uma visita domiciliar, o observador determinou que os problemas
de Joshua na época eram comportamentais, de comunicação e de estresse em casa. Estresse
em casa! Imagine como nos sentimos! É claro que havia estresse em nossa casa. Tínhamos
acabado de nos mudar, e mudar é estressante. De fato, viemos a Iowa para fugir do estresse
da nossa vida na Califórnia. Além disso, tínhamos um filho de 2 anos cujos
comportamentos pareciam mais bizarros a cada dia. Agora nos diziam que o estresse na
nossa casa era um fator contribuinte para o comportamento obviamente disfuncional do
nosso filho. CULPA! Tem de ser um dos fatores estressantes mais potentes! (Karp, 2004,
p. 97)
Outro elemento importante que pode ser identificado no trecho acima é o posicionamento
de alguns médicos que ainda culpabilizam os pais pela desordem do desenvolvimento do filho. É
comum pais de crianças com necessidades especiais experienciarem o sentimento de culpa pelas
limitações de seus filhos. Normalmente eles sentem que, de alguma forma, são responsáveis pela
deficiência do mesmo, às vezes por uma questão genética, outras por eventos ocorridos durante a
gravidez. O motivo não importa tanto quanto o sentimento de responsabilidade pelo sofrimento dos
filhos. Desta forma pude perceber que o mesmo processo ocorre no momento de diagnóstico de
autismo do filho. Na fala a seguir é possível identificar o sentimento de culpa vivenciado pelos pais.
Reconheço esse sentimento de culpa desses pais. Quando Isabel foi diagnosticada como
autista, me senti culpado sem saber exatamente por quê. Passei a me questionar e à minha
mulher: o que fizemos de errado? Ela não se cuidou durante a gravidez? Será que Joyce e
eu estávamos tão preocupados com nosso trabalho que falhamos em não ajudar Isabel a se
relacionar conosco da forma apropriada? (Grinker, 2010, p. 78).
Da mesma forma acontece com a fala abaixo, onde a mãe inicialmente sente-se culpada
pelo autismo do filho. Através do discurso da mãe é possível também reconhecer que a mesma
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sente que suas atitudes foram responsáveis, de alguma forma, por tal situação e demonstra o desejo
de fazer diferente, o que intensifica o sentimento de culpa.
Hoje, penso que seria muito bom se pudesse voltar no tempo: faria tudo diferente. Muitas
vezes me culpei pela situação de Ricardo, mas agora sei que o problema que ele
apresentaria mais tarde não foi causado por nós nem por ninguém (Tabachi, 2006, p. 18).
Se já é natural o sentimento de culpa pela condição vivida, penso sobre a intensidade que
isso toma quando é endossado por um profissional da saúde que estudou para ter esse
conhecimento. Em algumas situações, a culpa vivida pelos pais pode se confirmar e consolidar ou
até mesmo aumentar no momento em que um médico expõe tal afirmação. Em outras situações, o
posicionamento do médico pode provocar o sentimento de raiva pelos pais não admitirem tal
relação, conforme o trecho descrito abaixo.
O primeiro psiquiatra que consultamos foi um desastre: culpou Joyce por Isabel ser autista.
Joyce saiu furiosa do consultório e eu me senti um péssimo pai (Grinker, 2010, p. 40).
Há muitos anos pensava-se que o autismo poderia ser provocado pela interação dos pais
com a criança, criando o termo “mãe geladeira” que caracterizava a pouca afetividade dos
responsáveis. Hoje em dia, após vários estudos sobre as possíveis causas do autismo, reconhece-se
que essa culpa que os pais carregavam no início da história não faz mais sentido. Entretanto, ainda
temos na nossa sociedade muitos profissionais que ainda pensam desta forma, o que foi claramente
percebido nos livros. Embora os livros pesquisados relatem histórias de crianças que nasceram nas
décadas de 80 e 90 e foram escritos há poucos anos, podemos observar que mesmo depois de
muitos pesquisadores desmistificarem a culpabilização dos pais, ainda existem alguns médicos que
os reconhecem como responsáveis. Isso me faz acreditar que ainda temos uma longa estrada para
desmistificar e acolher esses pais nas suas necessidades. Esse processo de responsabilização dos
pais pode dificultar a aderência dos mesmos aos programas de desenvolvimento do filho.

d) Autismo? O impacto no momento do diagnóstico

O momento do diagnóstico é uma importante etapa desse processo e devido ao seu


significado, decidi utilizar uma sessão desse trabalho somente para descrever essa vivência dos pais.
Já de início posso afirmar que todos os pais expressam grande impacto no momento do
diagnóstico, pois em todos os livros pesquisados, eles deram muita ênfase a esse momento. Abaixo
seguem algumas falas que demonstram a intensidade que é vivido esse momento.
Emocionalmente, eu calculo a idade de Walter a partir do dia do seu diagnóstico: 16 de
janeiro de 1987 (Anderson, 2004, p. 65).
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Levamos Joshua a Iowa City para sua avaliação “oficial” no dia 7 de fevereiro de 1986. É
uma data que sempre vamos lembrar, como um aniversário ou bodas de casamento, mas é
claro que sem a alegria. Joshua fez testes. Nós fizemos testes (Karp, 2004, p. 99).
Jamais esquecerei aquela conversa com a psicóloga do jardim-de-infância. Não posso
definir o que senti quando soube que meu filho poderia ser um autista. Pressenti algo muito
grave. O que aquilo significava para mim! Autista é uma pessoa que vive em um mundo
próprio, explicaram-me. Apesar da definição simplista para essa terminologia, custei a
entender em sua totalidade uma realidade tão inimaginável quanto dolorosa (Tabachi,
2006, p. 29).
Nas três falas acima é possível identificar o momento do diagnóstico do filho como um
marco histórico na vida da família, o que demonstra a intensidade que aquele momento foi vivido
pelos pais. Esses momentos podem ser vividos como uma ruptura ou um momento de transição da
vida familiar, dividindo a história em dois momentos: um momento anterior ao nascimento do
autista e um momento posterior, já que a inserção de um membro autista na família irá alterar toda a
dinâmica familiar. É importante destacar que alguns pais gravaram a data em que seus filhos foram
diagnosticados, o que também caracteriza um momento de transformação, como uma data
relevante.
A seguir apresento as falas de dois pais onde é possível identificar o choque que o
momento do diagnóstico provocou neles. Cada um vivencia esse momento de uma forma que está
diretamente interligado ao jeito de ser de cada um.
Quem falou conosco pela primeira vez sobre essa coisa chamada “autismo” foi esse
psiquiatra. Eu nunca tinha ouvido falar disso antes, nem minha esposa. Quando ele
afirmou, entrei em choque. Meu filho era doente! Ele havia contraído de alguma forma
essa enfermidade horrível! Como coisas assim podem acontecer? (Karp, 2004, p. 98).
Diante de uma crise, geralmente fico paralisado. Quando Isabel recebeu o diagnóstico de
autista, eu teria ficado paralisado não fosse por Joyce. Ela gosta de examinar os problemas
meticulosamente, traçar planos e então agir. Joyce salvou-nos a todos. Ela me mostrou que,
não importa o quanto difícil seja criar uma criança com uma doença grave incurável, é
sempre melhor tentar fazer alguma coisa (Grinker, 2010, p. 188).
Alguns pais paralisam frente a essa nova realidade, outros questionam e reclamam pelo
fato de isso ter acontecido com eles. Ainda existem aqueles que buscam por informações e formas
de lidar com a situação da maneira mais adaptada possível. Em suma, a forma de encarar essa
realidade dependerá da forma que cada um tem de encarar os desafios da vida. Mais adiante,
apresentarei as formas que cada pai tem de enfrentar a realidade de ter um filho autista.
Cada um à sua maneira, todas as reações apresentadas anteriormente são naturais diante de
uma revelação impactante e que transformará tudo que foi construído, desconstruindo muitas das
expectativas criadas até então. Esse momento do diagnóstico é vivenciado com muita dificuldade
pela grande maioria dos pais. São muitas as questões que passam pela cabeça deles ao reconhecer
que o filho não será como eles haviam sonhado e planejado. Após o diagnóstico, muitos dos
14

comportamentos dos filhos são compreendidos pelos pais que, a partir daí, tem a possibilidade de
criar outras formas de interação, transformando até a imagem que haviam feito de suas crianças.

e) E agora? Busca por recursos de enfrentamento

Com o diagnóstico concretizado, os pais buscam por tratamentos dos mais diversos para
auxiliar no desenvolvimento de seus filhos e na minimização de suas limitações. Abaixo seguem
algumas falas dos pais e de um irmão sobre as tentativas de tratamentos.
Na era pré-internet, meus pais tinham apenas uma visão rápida e superficial de terapias
alternativas: padronização, multivitaminas, quiropráticos. Tinham de analisá-las, como
quase todos os pais de crianças autistas (Greenfeld, 2009, p. 63).
Embora seja a fala do irmão de um autista, ela retrata um pouco da realidade vivida pelos
pais na busca por recursos para o desenvolvimento do filho. Desde que o autismo foi descrito,
vários foram os tratamentos propostos pelos profissionais, alguns trazendo resultados positivos
enquanto outros não. Muitos pais precisaram experimentar cada método para poder identificar qual
seria o efeito nos filhos já que ainda não se tinha comprovada a eficácia dos mesmos, por serem
tratamentos novos como muitos dos conhecimentos acerca do autismo na época.
Nós não desistiríamos. Enquanto tivéssemos forças, recursos e oportunidades, iríamos atrás
de todas as opções possíveis. Embora pudéssemos viver com o fracasso de nossas
tentativas, nunca poderíamos viver com nossa omissão em tentar. Daquele dia em diante,
temos continuamente explorado muitas vias que oferecem a promessa de uma vida melhor
para Josh. Experimentamos medicamentos e fizemos testes para alergias cerebrais.
Colocamos Josh em uma “dieta de eliminação”. Nós nos dedicamos a procurar uma
comunicação facilitada. Fizemos com que ele passasse por um treinamento auditivo. E a
lista continua. Muitas dessas coisas foram mais ou menos becos sem saída, mas algumas se
mostraram notoriamente eficientes. Nenhuma delas nos deu uma cura milagrosa, mas não
estávamos esperando por isso. Se essas experiências nos ensinaram alguma coisa, foi o
valor de se tentar. Com cada tentativa, Joshua cresceu um pouco, seu universo se expandiu
(Karp, 2004, p. 103).
Em todas as histórias são visíveis as tentativas dos pais que se apegavam aos métodos
propostos. Contudo, essa jornada também não foi fácil, pois muitas vezes os tratamentos custavam
caros e também provocavam um desgaste físico e emocional nos pais por serem métodos intensivos,
conforme o relato descrito a seguir.
Joyce e eu logo percebemos que não suportaríamos as longas horas de interação social que
muitos especialistas recomendavam. Isabel corria de nós chorando ou simplesmente nos
deixava exaustos. Embora respeitemos o método ABA, ambos sabemos que não
conseguiríamos suportar a intensidade sozinhos, nem pagar um terapeuta especializado no
método. Esses terapeutas chegam a trabalhar 40 horas por semana (Grinker, 2010, p. 191).
Em algumas das histórias das famílias estudadas para esse trabalho a descoberta do
diagnóstico do filho ocorreu num momento histórico quando o conhecimento sobre métodos
15

eficazes ainda não era tão difundido como temos atualmente. Hoje em dia, além do conhecimento
acerca do autismo estar mais difundido (graças as tecnologias da informação), também temos mais
recursos para auxiliar no desenvolvimento das habilidades dos autistas.

1.2.2 Rotina intensa

Acredito que esse item seja um dos mais importantes e essenciais desse trabalho, pois aqui
estão apresentadas as características da rotina vivenciada pelos pais de crianças autistas com toda
intensidade experienciada pelos mesmos.
Para começar escolhi a fala de um dos pais que acredito representar bem essa temática. É
possível sentir o cuidado e carinho do pai, ao mesmo tempo em que ele demonstra o quanto é difícil
e desgastante ter uma rotina de convívio com um autista.
Todavia, para a maioria das pessoas comuns – pais e parentes de crianças autistas –, o
heroísmo encontra-se nos detalhes que poucos vêem. Ele está na poesia de nossa vida
diária, nos alimentos especiais que preparamos para nossos exigentes degustadores, nos
desafios que temos de superar para levar nosso filho ao dentista ou a um médico, nos
abraços que damos neles mesmo eles não os retribuindo. Joyce e eu passamos semanas
procurando um vaso sanitário cuja descarga não produzisse o som que fazia Isabel
contorcer-se em agonia (Grinker, 2010, p. 211).
A partir da fala acima, conhecemos uma parte da vida familiar de um autista, onde os
detalhes mais imperceptíveis para a grande maioria das pessoas são elementos importantes para a
dinâmica desta família. Os pais precisam proporcionar um ambiente familiar confortável para o
autista, demandando muitas vezes tempo para construí-lo, gastos financeiros e disposição para a
busca que normalmente é complexa. Muitas vezes, devido às dificuldades específicas da criança, os
pais precisam ir atrás de elementos difíceis de serem encontrados, visando uma melhor qualidade de
vida para o filho ou então precisam interagir com os rituais característicos do autista, conforme o
relato abaixo.
As bonecas vinham com pijamas, pantufas e gorros de dormir, bem como com elaboradas
roupas para o dia-a-dia – e Isabel insistia para que as vestíssemos com o pijama na hora de
dormir e voltássemos a trocar as roupas delas pela manhã. Isso acrescentou 15 minutos à
rotina de colocá-la na cama e outros 15 ao ritual matutino. Em poucas semanas, todas as
bonecas passaram a ter que ser levadas sempre que íamos a qualquer lugar, sentadas em
linha reta e presas pelo cinto de segurança no banco de trás (Grinker, 2010, p. 197).
Muitas vezes os pais se veem na obrigação de interagir com os rituais da criança autista,
como forma de se relacionar com ela e também de não desestabilizar o filho, provocando uma crise.
É perceptível a irritação pelo tempo dispendido, cansaço e incômodo que isso gera, pois muitos dos
16

pais não compreendem a função do ritual e acabam desconsiderando-o, o que implica num estresse
grande na família que precisa lidar com a instabilidade do autista.
A dinâmica de funcionamento de um autista é muito diferente de uma criança típica, ou
seja, uma criança que não possui características de autismo. Além dos rituais e a relação com a
alimentação já citados, eles possuem uma energia e ritmo próprios, conforme o relato abaixo.
Logo não tenho escolha se não dormir aproximadamente tanto quanto Noah, não mais do
que cinco ou seis horas por noite, um sono leve, superficial, fácil de interromper, e isso me deixa
fatigado (Greenfeld, 2009, p. 90).
A fala anterior é do irmão de um autista, mas pode ser utilizada nesse contexto para
apresentar a realidade vivida pela família, principalmente pelos pais, responsáveis diretos pela
criança autista. Percebe-se que a relação com o sono que o filho autista constrói é totalmente
própria, dormindo pouco e deixando a família fatigada por ter uma noite de sono interrupta e assim
sem descansar. Portanto, a rotina tanto diurna quanto noturna é bastante desgastante para os pais,
em algumas situações.
A intensidade pela qual essa rotina é vivida acaba trazendo uma série de sentimentos que
perpassam o esgotamento físico, emocional e financeiro. Abaixo segue a fala de um pai sobre sua
rotina com a filha autista.
É realmente uma luta fazê-la comunicar-se, aprender, responder a perguntas simples, ir
para a mesa à hora do jantar e sentar-se com a irmã mais nova, Olívia, alimentar-se não só
de cachorros quentes e pizza, parar de colocar as mãos nas orelhas em reação a sons ou
frequências que ninguém mais é capaz de captar (Grinker, 2010, p. 34).
Talvez pais de crianças típicas não reconheçam as dificuldades apresentadas nesse item do
trabalho por serem atividades muito comuns e que normalmente são ensinadas e realizadas
naturalmente. Contudo, quando estamos falando de crianças autistas, muitas vezes o que parece ser
simples e óbvio se transforma, para essas famílias, um exercício árduo de ensinamento de suas
crianças. Os autistas apresentam dificuldades nas atividades diárias e normalmente necessitam da
mediação de um adulto para a realização, desde o simples ato de escolher uma roupa e se vestir, até
uma apresentação na escola, por exemplo. Desta forma, é possível identificar o quanto que os pais
precisam dispender de seu dia para exercer esse papel. O nível de necessidade dessa mediação vai
depender muito do nível de comprometimento da criança, ou melhor dizendo, nível de autismo.
Com Noah por perto nunca há descanso. Temos de estar à disposição dele o tempo todo.
Temos de assegurar que ele vá ao banheiro e limpá-lo quando ele vai. Temos de impedir
que ele ponha objetos estranhos na boca (Greenfeld, 2009, p. 246).
Ser pais de crianças autistas é estar em alerta a todo minuto. Precisam estar atentos aos
comportamentos do filho que, devido as dificuldades motoras, sensoriais e perceptivas, pode não
identificar uma situação de perigo e desta forma se expor, trazendo riscos à sua integridade física e
até para os demais. Desta forma, os pais precisam adaptar a casa às necessidades do autista, afastar
17

objetos que possam causar qualquer tipo de ferimento, estar hipervigilante às tomadas de decisões e
iniciativas do filho, cuidar para que suas necessidades básicas sejam garantidas (uso do banheiro,
alimentação, limpeza, etc.). É possível imaginar o cansaço e esgotamento que essa tensão provoca.
E isso acontece o tempo inteiro, desde a hora que acordam até a hora de dormir.
Em casa precisamos limitar seus dribles [com bolas], ou ele fica fazendo isso por horas
(Anderson, 2004, p. 66).
Na fala acima é possível identificar que os pais precisam mediar, desde o início de uma
atividade até a imposição de seu término, já que o autista tem dificuldade de fazê-lo sozinho. Muitas
vezes é necessário que os pais ajudem a criança a criar um roteiro de comportamentos diários para
ser seguido e constantemente repetido pelos filhos, como relata o depoimento a seguir.
Elaboramos um roteiro para Isabel memorizar e ela conseguiu repeti-lo (Grinker, 2010,
P.205).
A aprendizagem de todos os comportamentos de um autista precisa o tempo todo ser
mediada, e quando as crianças estão em casa, os pais são os responsáveis por essa função, conforme
a fala abaixo.
Embora eu tivesse que ficar sentado ao seu lado o tempo todo para fazê-la se concentrar na
atividade, ela absorveu o novo vocabulário e a pronúncia rapidamente, tornando-se uma
das melhores alunas da classe (Grinker, 2010, p. 209).
Toda essa mediação exige muita paciência e tempo dispendido dos pais que muitas vezes
precisam abrir mão de suas próprias atividades para auxiliar no exercício de desenvolvimento de
seus filhos. Grande parte dos pais sente cansaço, desânimo, desgaste físico e emocional nesse
processo. Mais a frente apresentarei um item sobre os sentimentos vivenciados pelos pais na
realidade familiar, num modo geral.
No dia a dia simplesmente não conseguimos agir como terapeutas. Isso exige muito de nós.
Assim, acabávamos cedendo (Grinker, 2010, p. 197).
Na fala acima é possível reconhecer o quanto os pais se esforçam para realizar as
atividades da melhor forma para o desenvolvimento de seu filho. Os programas de desenvolvimento
das habilidades de uma criança autista são exaustivos, necessitando de muitas horas de exercício,
atividades complexas, atenção em tempo integral. Além da dificuldade em cumprir os programas,
os pais enfrentavam a resistência dos filhos e desanimavam com a lentidão dos resultados. Contudo,
por ser uma rotina árdua, como tenho reconhecido nesse trabalho, essa situação exige muito dos
pais, que por vezes acabam cedendo e realizando da forma mais simples e menos exaustiva.
Alguns pais falaram abertamente sobre o peso que sentem nos cuidados de um filho
autista, conforme relato abaixo:
[...] um fardo, regredindo passo a passo; os momentos de conexão, de presença no mundo
exterior, tornam-se cada vez menos frequentes... nós dois vasculhamos nossas lembranças
tentando determinar quando, exatamente, ele parou de falar (Greenfeld, 2009, p. 42).
18

Nesse trabalho me deparei com autistas de todos os níveis de desenvolvimento, desde o


grau inicial até os mais severos. Quanto maior o comprometimento das habilidades do filho, mais
difícil e árdua será a rotina familiar, pois dispenderá de mais cuidados e o estresse vivido pelos
membros tende a ser mais elevado, conforme descrito no depoimento abaixo.
Ontem à noite, quando íamos dormir, Foumi [mãe] começou a chorar. E ela me fez
enxergar alguns fatos. Está mortalmente cansada. Não podemos continuar com Noah em
casa por muito mais tempo. Temos que procurar realmente um lugar para ele. O lugar
precisa estar a uma distância que torne possível a visitação, perto o bastante para que
possamos monitorar a situação... Noah está agindo de maneira mais agressiva. Ele é agora
uma das espécies mais assustadoras para se tratar: um adolescente. Normal ou especial,
acho que simplesmente não existe uma maneira de lidar com eles (Greenfeld, 2009, p.
186).
De acordo com a fala do pai descrita acima é possível identificar o desgaste intenso que os
responsáveis sentem nos cuidados com os filhos, e na medida em que eles crescem, algumas
dificuldades se tornam cada vez mais complexas. No exemplo é possível reconhecer que, com o
crescimento e aquisição da força do filho, os pais sentem mais dificuldades de cuidá-lo e contê-lo
quando necessário. Tomam como possibilidade a internação em uma Instituição, já que não
possuem mais recursos para mantê-lo em casa. Em outros trechos do livro esses pais expuseram o
sofrimento em admitir que em algum momento da história eles não conseguiriam mais cuidar do
filho, comum em outras histórias.
Existem momentos em que os pais se sentem tão cansados que usufruem das situações em
que as crianças estão dormindo ou em isolamento social para eles descansarem, já que as mesmas
não demandam tanta atenção, geralmente entretidas em seus movimentos repetitivos ou fixadas em
uma atividade qualquer, conforme podemos visualizar nos relatos abaixo.
Sua capacidade para se distrair por horas, com discos, vídeos ou com seus monólogos
internos e incompreensíveis, era geralmente um alívio para nós, uma pausa na intensa
atenção de que ele, de outro modo, precisava (Palmer, 2004, p. 117).
Agora ela adormeceu com o urso panda de veludo debaixo do braço direito. Quando
acordar, a luta diária começará novamente. É maravilhoso estar no mesmo quarto que ela
sem ter tanto trabalho (Grinker, 2010, p. 34).
É nesses momentos que os pais conseguem cuidar um pouco de si e também das atividades
diárias da casa. Alguns pais, no entanto, sentem-se desconfortáveis em assumir que usufruem das
características de autismo dos filhos, conforme discurso abaixo.
Sinto-me um pouco culpado ao admitir que o amor de Walter pela arrumação é uma grande
ajuda para a minha esposa e eu (Anderson, 2004, p. 66).
O desgaste do dia a dia é tanto que qualquer elemento que venha a favor de facilitar o
trabalho dos pais é bem vindo, mesmo que seja por uma característica do autismo do filho, como na
fala do pai acima. Diante de todo esse desgaste vivido pelos pais, alguns deles buscam por
momentos de descanso dessa rotina, conforme o relato da mãe a seguir.
19

Eu costumava viajar a trabalho, três vezes ao ano. Também fazia viagens de lazer,
deixando os meninos aos cuidados de alguém de confiança. E, mesmo com a grande luta
que travava, gostava de me divertir. Saía para jantar fora e tomar umas cervejinhas nos fins
de semana, com meu marido ou com amigos. Eram momentos de desligamento temporário
do cotidiano (Tabachi, 2006, p. 49).
Por fim, compreendi que a dinâmica familiar, quando um dos membros é autista, é mais
complexa do que a de outras famílias. Nessa seção do trabalho identifiquei que essas famílias vivem
situações bastante atípicas e que o estresse do dia a dia com um autista muitas vezes traz o
esgotamento dos membros. Contudo, alguns pais reconhecem a necessidade de relevar algumas
situações que vivem, pelo fato de seu filho ser uma criança autista, conforme o relato a seguir.
Há momentos de emoção intensa em qualquer família e a maioria das pessoas depois se
arrepende do que faz nalguns desses momentos. Mas quando nos deparamos com algo
como autismo, seja seu filho severamente afetado ou não, é necessário se dar um
desconto... (Grinker, 2010, p. 34).
Embora os pais reconheçam que existem momentos de tensão na família e isso tudo
implica em sentimentos por vezes ambivalentes, existe um esforço dos mesmos em relevar, pois
reconhecem que o fato de ter um filho autista transforma toda a dinâmica familiar, fazendo-os viver
situações atípicas. Na próxima seção apresentarei como a dinâmica familiar fica voltada para o
autista.

1.2.3 Dinâmica familiar voltada para o autista

O nascimento e inserção de uma criança sempre é um momento de crise na dinâmica


familiar, onde as relações e papéis se transformam para acomodar esse novo membro. O mesmo
fenômeno ocorre quando esta criança tem uma deficiência ou alguma desordem em seu
desenvolvimento como é o caso do Autismo. Existe, portanto, a necessidade de adaptação da rotina
familiar.
Para descrever esse item foi necessário buscar mais do que estava sendo dito pelos pais. De
princípio, encontrei muitas falas de uma única história e quase nada das demais. Acredito que essa
disparidade se deve aos diferentes níveis de percepção que cada família tem sobre sua dinâmica.
Até nesse momento do trabalho as reflexões eram feitas em cima das percepções e falas diretas dos
pais. Quando se trata da percepção sobre a dinâmica familiar, pressuponho que essa família
precisaria ter clareza sobre seu movimento. Não possuo dados sobre o quanto essas famílias
conseguem analisar sua própria dinâmica de maneira imparcial, portanto utilizarei poucas falas para
representar uma categoria que, ao meu ver, faz parte de todas as histórias apresentadas nesse
trabalho, já que os pais demonstram essa questão nas entrelinhas de suas falas.
20

Algumas frases ditas pelos pais, mesmo que nas entrelinhas, provocaram-me a sensação de
que toda a dinâmica familiar está voltada para o autista. E como ser diferente disso? As
características do autismo da criança estarão diretamente interligadas com dinâmica familiar. Por
exemplo: Quando penso em uma criança que dorme pouco, acredito que os seus pais dormirão igual
ou até menos que o filho. Quando penso que essa criança pode ter uma hipersensibilidade auditiva,
imagino que essa família precisará se policiar quanto aos sons produzidos no seu dia-a-dia. Já se ela
é uma criança agressiva, alguns cuidados especiais precisarão ser tomados para que não provoque
riscos à si e aos outros. E assim por diante. Toda a família se adapta às necessidades dos filhos e
tudo o que farão passará por esse filtro.
Nos livros escolhidos a grande maioria dos pais demonstra o quanto suas vidas estão
voltadas para o autista, as horas que dispendem auxiliando no desenvolvimento do filho, ou a
escolha de abrir mão de suas profissões ou adaptá-las para poder cuidá-lo. Entretanto, esses pais
dificilmente assumem o quanto a dinâmica familiar está voltada para o autista, embora reconheçam
que o fazem por necessidade.
As falas abaixo são as declarações mais claras sobre a questão descrita acima.
Somos forçados a nos adaptar e abraçamos a mudança, mesmo sem perceber o que estamos
realizando. A vida de alguns pais sofre modificações tão extraordinárias que cada um mal é
capaz de lembrar o tipo de pessoa que era antes de ter um filho autista (Grinker, 2010, p.
211).
Na fala é possível, além de reconhecer o quanto a vida familiar se volta para as
necessidades do autista, o quanto os pais muitas vezes se distanciam da vida que levavam ou que
sonhavam levar devido à essa nova realidade. Essa adaptação muitas vezes é vista pelos os pais
como imposta pela realidade que vivem, ou seja, sem escolha dos mesmos, que, muitas vezes
passam por cima de suas próprias necessidades a fim de suprir as muitas necessidades do filho. Isso
também acontece em relação aos outros filhos, que por terem menos necessidades ou mais fáceis de
serem supridas, são tratados com menor atenção ou prioridade em detrimento ao irmão autista,
conforme é possível identificar nos dois relatos abaixo.
A mudança não vai ser boa para Karl, mas será positiva para Noah [filho autista]... Sinto
que devo fazer uma escolha diferente sobre o que é melhor para cada filho. É uma escolha
que não quero fazer, porque, seja ela qual for, um dos dois, Karl ou Noah, sairá perdendo
(Greenfeld, 2009, p. 74).
Sinto muito não ter dado a ela [irmã] a atenção que ela queria, especialmente à noite,
quando Joyce e eu nos ocupamos cuidando de Isabel (Grinker, 2010, p. 308).
Em muitas situações os pais tomam decisões buscando o maior conforto para a família e
normalmente isso ocorre quando a criança autista está estabilizada, mesmo que por vezes essas
decisões possam prejudicar outros membros do grupo. Essa dinâmica pode trazer consequências
para o desenvolvimento dos irmãos e outros parentes, contudo o foco deste trabalho não está nesses
21

outros familiares, mas sim no que vivenciam os pais. Portando, a fala abaixo ilustra bem as
consequências vividas pelos pais, mesmo sendo através do prisma do irmão de um autista.
E há custos ocultos: meu pai não pode viajar para fazer suas matérias, porque é muito
difícil para minha mãe cuidar sozinha de Noah por períodos mais extensos; a esperança
que ela tinha de retomar a carreira se perdeu no fluxo ininterrupto de tarefas relacionadas
aos cuidados com Noah (Greenfeld, 2009, p. 83).
Toda essa dinâmica é alterada devido o nascimento de um filho autista; serão afetados pais,
irmãos, parentes e amigos próximos. Da mesma forma acontece com o relato abaixo, do irmão que
demonstra o quanto tudo gira em torno das necessidades do filho autista.
Mais e mais, nós nos tornamos uma unidade dedicada aos cuidados e tratamentos para ele.
Essa mudança de missão é sutil, em vez de repentina. Primeiro Noah suga toda atenção de
meus pais, depois sua preocupação, depois sua mente e finalmente sua energia, à medida
que suas necessidades sobrepujam desejos e vontades de todos nós. Tornamo-nos
progressivamente mais sintonizados como um grupo de apoio a Noah, e nossa família se
contorce ainda mais para acomodá-lo. Agora me pergunto frequentemente se tive
consciência dessa mudança, se sabia que nossa ida para a Califórnia era quase inteiramente
baseada em uma crença de que isso seria melhor para Noah, de que nossa escolha de casa,
mobília, roupas, tudo se baseava em Noah. Eu não podia ter brinquedos pequenos, minha
mãe explicou, porque Noah podia comê-los (Greenfeld, 2009, p. 83).
No relato acima percebi que os pais muitas vezes precisam abrir mão de seus desejos,
sonhos e profissões, buscando formas de se adaptar a essa nova realidade. Existe uma realidade
difícil de ser combinada: a necessidade de uma estabilidade financeira, pois existem altos custos
para suprir as necessidades de um autista e também a necessidade dos pais estarem mais presentes
do que na relação com uma criança típica. Portanto, os pais precisam encontrar uma fórmula de
conseguir garantir o sustento familiar ao mesmo tempo em que precisam subsidiar os cuidados com
a criança autista, e normalmente surgem dificuldades como a listada a seguir.
Se você tem um filho como Noah, precisa de dinheiro. Para ganhar dinheiro suficiente, é
preciso ter tempo e energia para trabalhar. Mas uma criança como Noah esgota a energia
das pessoas que convivem com ele, toma muito tempo. Não há saída, simplesmente
(Greenfeld, 2009, p. 81).
Alguns pais conseguem encontrar o equilíbrio entre o sustento familiar e o cuidado com o
filho autista e com outros filhos. Outros sentem uma maior dificuldade em adaptar-se a essa nova
realidade, entrando num movimento circular que dificilmente será quebrado, a não ser que
consigam encontrar outros recursos para lidar com essa realidade. O próximo item desse trabalho
refletirá sobre os sentimentos e as formas de lidar com a realidade vivida pelos pais de crianças com
autismo.

1.3 MATURIDADE EMOCIONAL


22

Um dos elementos importantes para compreender a experiência dos pais de crianças


autistas é a maturidade emocional. Acredito que, quanto maior a estabilidade emocional dos pais,
maior será a capacidade de se adaptar a essa realidade e maior a possibilidade de criar recursos para
lidar com as situações mais complexas.
Desta forma, inicialmente apresentarei a gama de sentimentos vivida pelos pais em todo o
processo da experiência e posteriormente apresentarei quais os recursos que os pais encontraram
para lidar com essa realidade, ou então a dificuldade de encontrar saídas para auxiliar no
desenvolvimento da criança.

1.3.1 Sentimentos

Nesse subitem decidi apresentar de forma breve os sentimentos dos pais na experiência de
possuírem filhos com autismo para posteriormente mostrar como eles lidam com essa realidade.
Portanto, a seguir apresentarei relatos desses pais (e de um irmão que fala sobre os pais) que
demonstram os sentimentos vividos por eles em diversas situações.
Para iniciar utilizarei a fala do irmão de um autista que apresenta os possíveis sentimentos
provocados pelo impacto inicial no momento em que os pais percebem que algo está errado no
desenvolvimento de seu filho e buscam por um diagnóstico.
Esperam que o médico diga que não há motivo para preocupação, que cada bebê se
desenvolve em um ritmo próprio. Em vez disso, ele faz perguntas. Noah está falando?
Passa objetos de uma mão para a outra? Estende os braços tentando alcançar alguma coisa?
Imaginem o pânico que começa a se instalar quando meus pais dão a mesma resposta para
cada pergunta: não (Greenfeld, 2009, p. 28).
A fala acima do irmão de um autista apresenta o quanto é difícil para os pais viverem esse
momento inicial e o desespero que vai se instaurando na medida em que vão reconhecendo que seu
filho não está correspondendo de forma positiva aos questionamentos do médico, o que
possivelmente indicaria algum problema em seu desenvolvimento. Nesses momentos, os pais vão se
conscientizando de algumas características dos filhos que até então não compreendiam e muitas
vezes o desespero vai aumentando.
Ao voltar para casa, fiz o que o psicanalista sugeriu. Bati com duas tampas de panela e
Ricardo nem sequer levantou a cabeça. Eu insisti – naquele dia e em muitos outros.
Continuei por um bom tempo a bater com as tampas, para observar se meu filho teria
alguma reação. Minha tristeza ao vê-lo assim inerte, sem qualquer reação, era enorme. Eu
queria que ele fosse capaz, um dia, de ouvir um ruído das tampas de panelas... (Tabachi,
2006, p. 28)
Ainda discursando sobre momentos iniciais da descoberta, na fala acima podemos
identificar a tristeza intensa ao reconhecer que o filho não corresponde aos estímulos, como por
23

exemplo, não reagir ao bater de panelas. A insistência da mãe também demonstra a esperança que
em algum momento o menino fosse reagir, e a cada tentativa frustrada, cada vez mais sua tristeza
intensificava. Normalmente é um momento vivido com muita frustração, quando há a necessidade
de desconstruir a imagem que haviam construído do filho para se aproximar mais da realidade e das
possibilidades do filho que agora apresenta características de autismo.
Enquanto isso, o comportamento de Joshua era cada vez mais frustrante para nós. Ele foi
expulso de uma pré-escola local porque insistiu em subir nas estantes. Por que essa criança
era tão desobediente? Por que não nos dava ouvidos? Por que era tão diferente da irmã? O
que estávamos fazendo de errado com ele? Essas e outras perguntas nos aborreciam
impiedosamente. Oscilávamos entre sentimentos de raiva, desespero, frustração e confusão
(Karp, 2004, p. 98).
No relato acima é possível perceber a gama de sentimentos que os pais podem vivenciar na
experiência com seus filhos autistas. Algumas situações provocam raiva pela condição vivida,
outras desespero quanto à forma de reagir nas situações, ainda existem aquelas que causam
frustração por identificar que o filho não corresponde às expectativas mais banais e por fim posso
afirmar que o produto de todas essas vivências é uma confusão imensa devido a oscilação dos
sentimentos, atitudes, expectativas, etc.
Nunca deixei de me angustiar com a ideia de que se o convívio meu e do Pedro com
Ricardo tivesse sido maior, os problemas seriam menores, porque teríamos percebido mais
cedo seu comportamento diferente. Acreditava até que a preferência dele pela enfermeira
era uma demonstração inconsciente de que se sentira rejeitado por mim no início. Pura
imaginação minha. Dramatizava uma possível culpa devido à descoberta de um problema
sério com meu filho... (Tabachi, 2006, p. 29).
É possível reconhecer o sentimento de angústia que os pais vivem ao se identificarem
como responsáveis e até causadores da desordem do filho. Em alguns momentos podem se culpar
por terem feito algo ou deixado de fazer e que isso possa ter provocado as dificuldades do filho.
Alguns pais podem permanecer presos a esses sentimentos e não conseguirem se desprender para
buscar recursos para auxiliar seus filhos no desenvolvimento das habilidades, enquanto outros
buscam todos os tipos de recursos para conseguir ampliar as possibilidades e habilidades do filho,
como apresentarei no próximo item deste trabalho.
E custa tanto chegar [desenvolvimento] que às vezes eu achava que a situação estagnara.
“Demora mesmo. Tenha paciência, ele vai melhorar”. Dizia Pedro [esposo]. Benditas
palavras! O pessimismo ia embora e eu recobrava a fé. Afinal, esse era o meu objetivo e
havia de alcançá-lo (Tabachi, 2006, p. 39).
Em algumas dinâmicas familiares percebe-se que os pais buscam desenvolver as
habilidades do filho, contudo esse processo é longo e por vezes demorado, o que causa desânimo e
cansaço e normalmente se mostram desencorajados. Contudo parece que existe um momento de
recarregar a energia para retomar ao trabalho de desenvolvimento das habilidades do filho, pois
após esse momento desestimulado, os pais tornam-se esperançosos novamente. Esse momento de
24

avanço e recuo traz ainda mais cansaço aos pais, já que esse desenvolvimento será para a vida toda
do filho, mesmo que ele conquiste habilidades, outras necessidades surgirão e precisarão ser
estimuladas e desenvolvidas.
Quando Ricardo fez cinco anos organizei uma grande festa no playground do prédio. O
que era para ser alegria foi motivo de muita tristeza para mim. Todos se divertiam, menos
ele. A música tocava, o animador fazia brincadeiras, as crianças participavam e Ricardo, lá
no fundo do play, mantinha-se totalmente isolado. Sem dizer o que sentia, sem chorar.
Dentro de um mundo só dele. A cena me cortava o coração (Tabachi, 2006, p. 38).
Na fala acima também podemos identificar além do sentimento de tristeza, uma grande
frustração por reconhecer que o filho não interage com as outras crianças e não demonstra qualquer
tipo de emoção. Normalmente esses momentos são vividos com muita dor pelos pais que, ao se
depararem com as dificuldades de interação social do filho, entristecem-se. Por um lado, existe uma
frustração pelo fato dos filhos não corresponderem às suas expectativas. Espera-se que as crianças
se divirtam em suas festinhas de aniversário, que brinquem com as outras crianças, entre outros
comportamentos. Mas isso dificilmente ocorre com crianças autistas. Por outro, a dor dos pais por
não conseguirem auxiliar seus filhos no desenvolvimento dessas habilidades.
Contudo, quando as crianças estão em ambientes sociais (diferente de seus lares), os pais
podem vivenciar os sentimentos de ansiedade e tornarem mais preocupados, conforme o relato
abaixo.
Depois que Isabel foi aceita em um ambiente com crianças saudáveis, às vezes ainda me
sinto como se estivesse na defensiva, ou ao menos ansioso. Todas as vezes que coloco
Isabel num ambiente social de crianças normais, começo a esperar: esperar pelo
telefonema de algum adulto – um professor ou administrador – para me dizer que Isabel
teve uma crise nervosa, jogou alguma coisa, ou que não fica onde deveria. Quando o
telefone toca, sinto meu coração ficar menor (Grinker, 2010, p. 287).
A instabilidade vivida pelos autistas em ambientes sociais deixam sempre os pais aflitos
com receio de que algo venha a desestabilizar seu filho e assim provocando uma crise. Eles
reconhecem as dificuldades dos filhos e por esse motivo sempre ficam na expectativa de que algo
aconteça que eles precisem administrar gerando um clima de tensão.
Existem dificuldades dos dois lados da história. Por um lado percebo que existe uma
dificuldade do autista e sua família em vivenciar situações sociais, entretanto, por outro lado, existe
a dificuldade da sociedade em interagir com uma criança autista. A partir da dificuldade da
sociedade em interagir com os autistas são provocadas situações como a descrita abaixo.
A rejeição me deixava muito triste. “Ih, lá vem aquela mulher com aquele maluco”, foi
uma das frases que ouvi ao me aproximar da piscina com Ricardo. Pesava sobre mim, ao
refletir sobre a reação das pessoas à maneira de ser de Ricardo, um profundo sentimento de
dor. Muitas vezes, emocionada com situações assim, eu me deprimia. Chorava quando
conversava sobre o problema de Ricardo. Cada pessoa dava uma opinião diferente. Os
palpites também vinham sem que pedíssemos, nos deixando confusos e inseguros
(Tabachi, 2006, p. 43).
25

Normalmente os pais vivem momentos constrangedores, como comentários inconvenientes


e discriminação e rejeição das pessoas. Essas experiências podem promover muitas emoções como
no exemplo acima. É comum que os pais sintam a dor ao identificar qual é a percepção das pessoas
em relação aos seus filhos e também ao presenciarem a reação que elas têm perante eles. Alguns
podem entrar num movimento de tristeza, enquanto outros podem viver momentos de profunda
irritação e raiva, como no relato abaixo.
De vez em quando, Ned entra em seu mundo particular em público, quando estamos
esperando um filme começar ou andando de balsa. Vejo que as pessoas à nossa volta ficam
olhando para ele, depois desviam o olhar rapidamente e ficam com expressão de dó.
„Pobrezinho‟, dizem a si mesmas, „sem consciência, apenas falando confusamente. Que
dó.‟ Elas estão cometendo o mesmo erro que cometi, então eu não devia culpá-las; mesmo
assim, suprimir o desejo de passar entre essas pessoas com um taco de beisebol é uma das
coisas em que precisei trabalhar por ser o pai de Ned (Palmer, 2004, p. 118).
Em alguns momentos essa irritação está voltada para a própria criança autista, pois como
já foi descrito anteriormente, a rotina de uma família que possui um membro autista é muito
desgastante e por vezes pode provocar irritabilidade nos pais quanto às inabilidades da criança,
conforme o exemplo abaixo.
No início, principalmente, eu costumava perder o controle e ficar frustrado com a
inabilidade de Isabel para se comunicar (Grinker, 2010, p. 34).
Alguns pais podem se sentir culpados pelos sentimentos que vivenciam, pois talvez não se
sintam permitidos a sentir emoções negativas quanto seus filhos. Ao longo do trabalho identifiquei
que foram poucos os momentos pelos quais os pais assumiram sentir dessa forma. Corroborando
com essa pressuposição, a história que mais demonstrou os sentimentos negativos perante o autista
e as consequências que a família vive por conta dessa realidade foi através do livro escrito pelo
irmão. Talvez a questão do irmão não ser responsável direto pela criança possa permitir que ele
expresse seus sentimentos de uma forma mais livre. Também pode estar relacionado ao fato de
Noah (criança autista) possuir um grau elevado de autismo e, portanto, ser uma realidade familiar
mais complexa. Contudo, não possuo subsídios para tal afirmação, a não ser essas hipóteses.
Diante de todos esses sentimentos, ainda existe a dúvida quanto a forma de interagir com a
criança. Existe um limiar muito tênue entre superproteção e proteção. Alguns pais sentem
dificuldades em reconhecer qual é exatamente o tamanho da capacidade do filho, ficando em dúvida
sobre como gerenciar a autonomia do mesmo, conforme relato abaixo.
Mesmo com tantos cuidados, fico insegura ao deixá-lo andar sozinho, em meio a
desconhecidos. Mas reconheço que o medo é meu, não é dele. Pode ser que se eu deixasse
Ricardo sair desacompanhado mais cedo, ele tivesse se tornado mais independente. É
importante entender os temores, conviver com eles, para conseguir talvez superá-los algum
dia (Tabachi, 2006, p. 62).
No relato acima é possível reconhecer a insegurança que a mãe sente sobre como
gerenciar as atividades que o filho pode realizar sozinho e quais atividades que ele necessita de uma
26

mediação ou então de alguém que faça por ele. Essa insegurança amplia quando essas atividades
podem trazer algum risco para a integridade física da criança. Desta forma, é muito importante que
os pais percebam quais são os limites do filho, não somente para desenvolvê-los, mas também para
protegê-lo quando necessário. Quando a criança está sendo acompanhada por uma equipe de
profissionais que estão auxiliando no desenvolvimento de suas habilidades é possível que os pais
encontrem nessas pessoas esclarecimento sobre até onde vão as limitações do filho.
Entretanto, cada família tem uma forma de perceber de gerenciar sua vida familiar.
Existem aqueles pais que, mesmo com todas as dificuldades naturais da questão de ter um filho
autista, conseguem perceber de uma forma mais positiva, conforme os relatos abaixo.
Em certas ocasiões, sua frustração com as lições que ele claramente quer entender me parte
o coração. Sinto dor, sou solidário à sua frustração, mas ainda assim tenho um orgulho
incrível de seu esforço (Anderson, 2004, p. 69).
Na situação descrita acima pude perceber que, além do sofrimento devido às dificuldades
do filho, o pai sente orgulho pelo esforço que o mesmo exerce para tentar se desenvolver. Esse
sentimento pode gerar uma maior aceitação da desordem do filho e assim mais segurança e
tranquilidade para auxiliar no que for preciso.
O amor que sinto por Walter é tão exclusivo que é impossível imaginar o mesmo
sentimento por um Walter „normal‟. Não consigo imaginar ser tão tocado pelas realizações
de uma criança em desenvolvimento normal como sou diante de cada pequeno passo que
ele dá em seu desenvolvimento. O caminho não é plano para Walter – cada pequeno passo
que ele dá é uma escalada (Anderson, 2004, p. 73).
Na fala descrita acima é possível identificarmos o amor que o pai tem pelo filho, da forma
que ele se apresenta, e o respeito pelo processo de conquistas que o filho vive intensamente. Essa
forma de perceber a realidade familiar provoca uma maior leveza no dia a dia que já é tão
desgastante e assim, possibilita maior busca por recursos de desenvolvimento das habilidades do
filho.

1.3.2 Forma de enfrentar a realidade

Nesse item apresentarei as formas que cada família pesquisada tem de enfrentar a realidade
vivida, que semelhante a todo o processo de reconhecimento do problema e busca de soluções, vai
estar diretamente ligada a forma que cada um lida com as questões da sua vida. Desta forma,
existirão diversas formas de se relacionar com essa realidade.
Um dos momentos iniciais de todo esse processo de enfrentamento da realidade de serem
pais de uma criança autista acontece assim que recebem o diagnóstico. A grande maioria dos pais
não tem conhecimento acerca da temática e aqueles que têm são insuficientes para saber o que fazer
27

dentro dessa realidade. Muitos não sabem por onde começar e, de forma instintiva, buscam em
literaturas aprender sobre o universo do autismo, conceitos, causas, programas de desenvolvimento,
medicações, etc, conforme podemos observar no relato abaixo de um irmão.
Meu pai tem passado tarde na biblioteca pública, pesquisando “autismo”. Ele lê Leo
Kanner e Clara Park. Está procurando por um procedimento, uma metodologia sobre como
lidar com Noah, e nenhum desses livros ou artigos dizem a ele o que fazer (Greenfeld,
2009, p. 60).
O pouco conhecimento ou a completa ausência dele é um grande promotor de fantasias,
dificultando a compreensão da realidade vivida e do futuro que irão viver, provocando sentimentos
de insegurança, dúvida, medo, entre outros.
E então, com maior clareza do que significa toda essa realidade, a percepção dos pais
começa a se transformar. O que antes poderia ser considerado como manha ou birra de uma criança
chamada de mimada, agora se transforma em uma dificuldade de lidar com padrões externos,
limites ou até mesmo uma dificuldade de interação social. No relato abaixo é possível perceber a
mudança de percepção de um pai.
Ainda assim, mesmo na escuridão do nosso desespero, uma nova luz começou a aparecer.
De repente, Joshua tido sido transformado. Ele não era mais aquele diabinho incorrigível,
não era mais a fonte da minha frustração. Não. Havia algo heroico nele. Ele se tornou um
pequeno guerreiro, travando uma batalha incansável contra um adversário implacável. Sua
luta era para viver a vida da melhor maneira possível. Foi naquele momento que nos
unimos; o vínculo atrasado por tanto tempo, mas que valeu tanto a pena esperar (Karp,
2004, p. 100).
A partir do momento em que os pais percebem seu filho de uma maneira mais clara e real é
possível construir uma relação mais coerente com ele. Desta forma, é possível que os pais possam
reconhecer exatamente quais são as limitações do filho, desconstruir expectativas, pensar em
maneiras para auxiliar no desenvolvimento da criança, tudo isso centrado na percepção mais fiel
que conseguem alcançar de seu filho.
Passado o momento inicial de compreensão dessa nova realidade, cada família, à sua
maneira, continua buscando formas de enfrentar essa situação, conforme apresentarei nos próximos
relatos.
O autismo abala muitas vidas e muda a todos. Contudo, muitos transformam as
dificuldades de criar uma criança deficiente em algo positivo, mesmo que isso signifique
que seu futuro venha a ser diferente do que esperavam, das expectativas de sua família e
cultura (Grinker, 2010, p. 211).
Diante da realidade de uma criança autista como filho, inevitavelmente a vida dos pais
sofrerá alterações. Entretanto, a forma de perceber toda essa vivência dará o tom de como será o
convívio familiar. Para que isso tudo tenha um tom construtivo, os pais precisarão estar abertos para
interagir com a realidade que se apresenta, exatamente da forma que é, flexibilizando as
28

expectativas sobre o futuro familiar. Alguns pais reconhecem possibilidades de crescimento em


meio à toda essa realidade complexa e difícil, conforme o relato abaixo.
Praticamente a partir do momento do diagnóstico, Gail [mãe] e eu escolhemos o caminho
da resistência – resistência à condição em que ele se encontrava. Embora tenhamos
aceitado o diagnóstico de Joshua, nos recusamos a aceitar a inevitabilidade de sua sentença
a uma institucionalização. Se 97% de todas as pessoas com autismo eram eventualmente
institucionalizadas, então faríamos tudo que pudéssemos, iríamos além de nossas forças,
para colocar Joshua nos outros 3% (Karp, 2004, p. 101).
De acordo com a história acima, mesmo cientes da pequena possibilidade de um bom
desenvolvimento de seu filho, os pais buscam qualquer alternativa que pudesse auxiliá-lo e
aproximá-lo de uma realidade mais autônoma no futuro. Além disso, a porcentagem
consideravelmente alta de institucionalizações, nesse caso, atua como um motivador para os pais
buscarem por outras possibilidades para seu filho. De outra forma, outros pais poderiam reagir
diferentemente, exemplo que será apresentado mais a frente. Por enquanto, apresento outros
exemplos de formas construtivas de lidar com a realidade vivida. Utilizo o conceito de construtivo
pelo fato de reconhecer que essas famílias conseguem encontrar recursos de desenvolvimento para
seus filhos.
Acostumei-me aos poucos com o problema e me conscientizei da necessidade de lutar pela
melhora de Ricardo. Conscientizei-me também de que a luta seria longa e muitas vezes
penosa – e aprendi a não desanimar diante dos obstáculos (Tabachi, 2006, p. 13).
Acredito que a grande maioria das famílias enfrenta um processo inicial difícil de
adaptação a essa realidade. Aos poucos, se os pais estiverem conectados com quem o filho
realmente demonstra ser e não com a imagem construída pelas expectativas de quem ele poderia
ser, eles irão, aos poucos, familiarizando-se com a realidade. A partir da familiaridade com a
realidade familiar, o convívio vai se tornando mais confortável por todas as experiências adquiridas
na relação com a criança. Os pais já conhecem as características do filho e encontram recursos para
lidar com elas, muitas vezes através do que percebem das experiências obtidas com ele. Envolvido
nisso também está o reconhecimento dos pais sobre a necessidade de fazerem algo pelo
desenvolvimento dos filhos, o que a mãe acima denomina de “luta”. O reconhecimento dos pais da
existência de um processo longo de desenvolvimento de habilidades do filho é um elemento
importante no processo de aceitação da realidade. Desta forma, na medida em que os obstáculos
naturais do convívio com um autista forem surgindo, os pais estarão mais preparados para interagir
com eles, encontrando formas criativas de resolução, dando espaço para o crescimento de todas as
pessoas envolvidas. E então os pais estarão abertos para qualquer tipo de conquista alcançada pelo
filho, desde as mais simples até as mais complexas, conforme o relato abaixo.
Quando, aos cinco anos e meio, Ricardo começou a articular palavras, que traduziam
pensamentos (nem sempre muito claros), eu e meu marido saudamos esse “avanço” como
uma vitória. Uma vitória, sim! Para quem durante muito tempo só emitira um interminável
29

som sem nexo, as meias palavras ou frases pareciam um discurso completo (Tabachi, 2006,
p. 14).
As pessoas que estão muito próximas nesse processo conseguem compreender a dimensão
e importância dessas “pequenas conquistas”. Muitos pais se fundamentam, não em padrões de
comportamento externos esperados por crianças da mesma faixa etária de seu filho, mas sim no que
o mesmo consegue realizar e naquilo que ainda não consegue. O desenvolvimento do filho é
tomado com base e a partir disso, os pais reconhecem quais habilidades o filho ainda não tem
desenvolvidas para que possam ser estimuladas. Percebendo dessa forma, qualquer avanço é sempre
uma grande conquista, conforme o relato a seguir.
Tento não pensar em como são as outras adolescentes. Se a comparo com o resto do
mundo, ela parece muito deficiente. Contudo quando a comparo a ela mesma e considero
todo o progresso realizado – progresso maior que o previsto pelos médicos – sinto enorme
respeito por ela (Grinker, 2010, p. 33).
Se os pais conseguem se desprender dos padrões externos e das expectativas de quem o
filho deveria ser em comparação aos demais, então conseguem interagir com o que há de mais
essencial em seu filho. Podem dar espaço a sentimentos sublimes como respeito e orgulho pela
trajetória e as lutas que o filho trava todos os dias, em sua vida, e amor por quem o filho se
transformou.
Entretanto, não são todas as famílias que conseguem interagir de uma forma construtiva e
de crescimento para todos. As vivências para algumas famílias podem ser tão difíceis a ponto dos
pais não encontrarem recursos de enfrentamento para lidar com as adversidades naturais do
convívio com um autista. Tudo isso transformará a percepção dos mesmos sobre sua realidade,
conforme o relato abaixo.
Então, sinto uma mudança. Uma queda. A leveza desaparece, e a família, de repente parece
se mover com mais cautela, com passos pesados, como se estivéssemos sob um grande
peso. Esse é o sentimento: antes caminhávamos a favor da correnteza, impelidos por ela.
Agora demos meia-volta e vamos contra o fluxo (Greenfeld, 2009, p. 38).
No relato do irmão é possível reconhecer o quanto a vivência familiar é sentida com uma
sobrecarga grande, um peso emocional. Essa percepção permeará todas as tomadas de decisões e
atitudes de cada membro dessa família; a dinâmica familiar que poderia ter um movimento mais
fluído, estará permeada por sentimentos de raiva, indignação e ressentimento.
Tentamos criar uma vida normal em torno desse centro anormal. Nunca fomos uma família
típica, se você considerar minha mãe japonesa e meu pai judeu. Mas agora resvalamos para
as extremidades, com nossa vida girando em torno de um instável, imutável Noah, cuja
aflição não compreendemos e para quem não conseguimos encontrar tratamento. Os
médicos, pediatras, neurologistas, psiquiatras, nada têm a oferecer exceto culpa (Greenfeld,
2009, p. 53).
Além das dificuldades de lidar com a aceitação dessa realidade, algumas famílias se
sentem desamparadas na tarefa de como cuidar da criança autista. Muitos pais podem agir como se
30

vivessem uma dinâmica familiar típica, desconsiderando que vivem características muito
específicas em relação ao autismo. Acredito que, interagindo com a realidade de forma imparcial e
distorcida, essas famílias terão dificuldades em encontrar recursos para lidar com as adversidades
naturais do convívio com um autista, pois não entrarão em contato com aquilo que é necessário
enfrentar. Tudo parece ficar mais difícil e não nego que a realidade desse convívio seja difícil.
Independente do grau de severidade do autismo da criança, existe uma grande parcela de
responsabilidade relacionada a forma que cada família escolhe para encarar essa realidade.
Por vezes a forma que é vivida essa realidade é tão dura e difícil que os pais desejam que
toda essa dificuldade acabe, conforme relato a seguir.
Às vezes espero que Noah adoeça e morra sem sofrer (Greenfeld, 2009, p. 81).
O relato acima demonstra, além do esgotamento dos pais, a dificuldade de permanecer no
convívio com um autista, vivendo uma realidade tão desgastante. Existem momentos em que os pais
desejam que algo aconteça e que os tire da condição de viver essa realidade. Acredito que existem
pessoas que tem maior dificuldade em se manter em situações difíceis e assim se sobrecarregam
mais facilmente. Penso que, quanto maior a capacidade das pessoas de se responsabilizarem pelos
seus processos na vida, maior resiliência elas terão para enfrentar as adversidades, maior a
capacidade de encontrar recursos para lidar com as dificuldades naturais de ter um filho autista e
mais confortável se tornará o convívio com ele. Quanto mais as pessoas se penalizam pela realidade
vivida, reclamam do que precisam fazer, questionam o motivo pelo qual estão vivendo essa
condição, mais elas terão dificuldades de encontrar alternativas. A forma como você percebe a
situação interfere diretamente na forma que você escolherá para vivê-la. Portanto, em resumo,
penso que quanto maior for a flexibilidade dos pais de permanecer no fluxo da realidade vivida,
identificando o que é necessário em cada momento, menor será a dificuldade de encontrar recursos
para desenvolver o filho autista no que ele precisar.

1.4 FUNÇÕES E PAPÉIS

Geralmente cada membro da família apresenta uma função e um papel na dinâmica


familiar. Isso varia muito de família para família atualmente. Ao longo da história da humanidade
foi possível identificar que o cuidado com a casa e filhos normalmente ficava ao encargo das mães
enquanto o sustento familiar, dos pais. Com a modernidade e a transformação das relações e da
forma de se viver, isso também vem se transformando. Hoje em dia é possível identificar famílias
em que os pais são responsáveis pela casa e tudo que isso envolve enquanto as mães estão
trabalhando fora.
31

Quando se trata de uma dinâmica familiar onde um dos membros é autista, essa divisão de
papéis também ocorre. Percebe-se que cada família se organiza de uma forma específica, de acordo
com sua realidade, conforme a apresentação do irmão a seguir.
Minha mãe dá tudo que tem a Noah, todos os dias, mantendo, com sua persistente maneira
japonesa, um fluxo constante e paciente de bondade, compaixão e treinamento como o que
Lovaas prescreveu, mas frequentemente, à tarde ou à noite, não resta nada para ela, para
meu pai ou para mim. Meu pai, pelo menos, tem a carreira, sua fuga no trabalho, minha
mãe só tem a nós (Greenfeld, 2009, p. 108).
No relato acima é possível identificar uma diferença entre os papéis da mãe e do pai.
Percebe-se que a mãe fica responsável pelo cuidado com o filho autista, enquanto o pai fica
responsável pelo sustento familiar. A fala do filho sugere que o papel da mãe, nesse caso, é mais
exaustivo do que o papel do pai, já que ele caracteriza o fato do pai ter uma carreira como uma
“fuga” dessa realidade. Existem algumas pesquisas que apresentam a questão da divisão dos papéis
e a sobrecarga sentida por aquele que fica mais responsável pelo cuidado do filho e da casa, em
detrimento ao companheiro.
Embora os autores das biografias que pesquisei não falem tão abertamente sobre como é a
divisão dos papéis, é possível reconhecer, através dos relatos, quem é responsável por cada função
na dinâmica familiar. Geralmente os cuidados mais próximos com a criança autista e da casa é
realizado pelas figuras femininas da família, em todas as histórias foram as mães, mas não
necessariamente somente elas, nesses papéis incluem-se as avós, filhas mais velhas, parentes
próximas, alguém que faça o papel de cuidado materno. Enquanto isso, reconheço que as figuras
masculinas priorizam o trabalho fora de casa já que geralmente são os provedores da família.
A fala abaixo caracteriza ainda mais o papel do cuidador do filho, que no exemplo em
questão ficou a encargo da mãe.
Minha mãe é incansável em sua dedicação a esses projetos para Noah, costurando suas
roupas, trabalhando com ele em seus exercícios de modificação de comportamento,
seguindo-o pela casa para ter certeza de que ele não cuspiu suas vitaminas (Greenfeld,
2009, p. 190).
No item sobre a rotina familiar, apresentei o quanto o cotidiano é intenso e desgastante.
Desta forma, é possível compreender um pouco o que vivem os cuidadores mais próximos da
criança autista e essa afirmação somente corrobora com os relatos apresentados nesse item do
trabalho.
Mais tarde, vou descobrir que a razão pela qual escrevia tantas críticas literárias e ensaios –
para Time, New York Times, Playboy, Life, Village Voice – era que, por causa de Noah,
não podia viajar para fazer matérias. Tudo que eu sabia era que meu pai estava sempre por
perto (Greenfeld, 2009, p. 22).
Da mesma forma que a mãe, o pai também possui um papel bem definido, e no exemplo da
história apresentada acima, o mesmo trabalha e é responsável pelo sustento financeiro familiar,
32

mesmo que tenha adaptado sua profissão às necessidades familiares de permanecer mais presente
em casa.
Mesmo que seja visível essa divisão de papéis, é importante destacar que existem variações
nessa classificação. Percebi que em algumas histórias, mesmo o pai sendo provedor e responsável
pelo sustento financeiro, o mesmo pode estar tão próximo da criança autista que é possível ele dar
detalhes sobre o dia a dia com ela, seu desenvolvimento, características, etc, de acordo com o relato
a seguir.
Tentávamos nos juntar a Isabel quando ela brincava com as bonecas, mas ela se afastava
sempre que entrávamos no seu campo de visão. Quando nos deixava ficar próximos
durante a brincadeira, insistia para que sentássemos ao seu lado, nunca em frente a ela
(Grinker, 2010, p. 197).
No relato anterior é possível identificar o quanto a forma de apresentar a realidade do pai
demonstra intimidade com as vivências da filha, o que pode indicar que, mesmo trabalhando fora
para garantir o sustento familiar, o mesmo se mostra presente na vida da filha e tudo que a envolve.
Também é possível existirem pais que, por uma questão de dinâmica familiar, fica somente
responsável pela garantia do sustento e assim se tornam mais afastados dos cuidados com a criança.
Nos livros pesquisados não localizei de forma clara essas dinâmicas, contudo em pesquisas
realizadas em artigos na internet, identifiquei algumas histórias que apresentavam esse formato
familiar.
Em resumo, a forma que a família se organizará nas questões relativas às funções e papéis
é muito pessoal. Cada família tem uma dinâmica específica, portanto não existem padrões ou
predominância, mas sim uma variabilidade de formas de existirem como conjunto.

1.4.1 Desenvolvimento das habilidades do grupo familiar

Ao longo desse trabalho apresentei algumas questões sobre dinâmicas familiares e a


importância deles no desenvolvimento das habilidades da criança autista. Contudo, também
reconheci que nesse processo de desenvolvimento não é somente o autista quem desenvolve e
cresce; a sua família também entra nesse mesmo movimento.
Lendo os livros e realizando os fichamentos compreendi que, quanto mais a família estiver
em integração entre os membros, maior facilidade terá de auxiliar no desenvolvimento da criança
autista, mais distribuídas estarão as atividades, e a vida flui de maneira mais contínua e leve,
embora saiba que é uma realidade difícil e que dispende muita energia. O relato abaixo demonstra
que algumas famílias buscam se unir e empenhar-se nessa missão.
33

Juntos, batalhamos para progredir, enfrentando dificuldades e colhendo os frutos. Nasceu e


fortaleceu-se uma confiança mútua indestrutível que se mantém até hoje. Penso que esse
sentimento, gerado e solidificado no início do nosso relacionamento, deu-me as forças
necessárias para chegar até aqui, vencendo todas as fases da minha história com Ricardo
(Tabachi, 2006, p. 17).
Em alguns relatos reconheci o quanto a união entre os membros da família constrói uma
base sólida para as vivências com a criança autista. Toda essa dinâmica pode, tanto fortalecer os
laços familiares, quanto destruí-los. Os dois relatos a seguir demonstram o quanto uma família, que
tem dificuldades de criar recursos de enfrentamento, pode se desconstruir na convivência cansativa
com um filho autista.
Uma noite, quando meus pais estão discutindo sobre Noah, minha mãe culpa meu pai por
não ter ligado o aquecedor enquanto Noah estava no banho, e daí passa a acusá-lo por não
monitorar minha lição de casa, por sua indiferença aos meus fracassos acadêmicos, e pelo
fato de não ter se certificado de que Noah, estava agasalhado quando o levou para
caminhar naquela tarde (Greenfeld, 2009, p. 190).
Então, sentimos que não estamos indo a lugar algum e somos, coletivamente, de forma
consciente ou inconsciente, um fracasso como unidade, como equipe. Não somos uma
máquina eficiente. E essa é uma conclusão terrível para família tirar sobre si (Greenfeld,
2009, p. 203).
Embora sejam relatos de um irmão de um autista, ele demonstra sua percepção sobre como
as relações familiares podem se romper quando não existe uma integração e consonância entre os
membros. A realidade da convivência com um autista é complexa demais para se viver
desintegrados. O relato abaixo nos demonstra o quanto o filho reconhece a desconexão dessa
família e o quanto isso lhes dá a sensação de não existir progresso.
Estamos tropeçando como família, perdendo o passo, fazendo progressos insignificantes.
Os membros da família devem sentir que estão andando para frente como uma unidade,
que se dirigem juntos a um futuro brilhante (Greenfeld, 2009, p. 194).
No entanto, enquanto algumas têm dificuldade de alcançar o crescimento enquanto
conjunto familiar, outras conseguem construir um ambiente facilitador para o desenvolvimento das
potencialidades da criança autista, mesmo que muitas vezes a perspectiva da conquista esteja
distante. A construção desse ambiente facilitador dependerá de quanto os pais conseguirão
apresentar atitudes consideradoras do processo de desenvolvimento do filho. Percebi que parte dos
pais focam suas expectativas no desenvolvimento da criança e não no produto dos comportamentos
padronizados de acordo com a idade. Em muitas situações, os pais não sabem o que a atitude
facilitadora deles provocará nos filhos, contudo não deixam de tentar, conforme abaixo.
Meu trabalho é preparar a terra para o que quer que venha a brotar – mesmo que às vezes
nenhuma outra pessoa acredite que isso acontecerá, mesmo que o broto seja deformado
como as aveleiras na frente do Smithsonian (Grinker, 2010, p. 46).
Permeando a categoria de desenvolvimento das habilidades do grupo familiar, existe um
processo de aceitação da realidade vivida, possível de identificar no relato anterior. Muitos pais no
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início do processo, quando descobrem o diagnóstico de autismo e começam sua caminhada, passam
por várias fases semelhantes ao processo de luto. Os pais vivem momentos de negação, raiva,
barganha, tristeza profunda e aceitação, como qualquer outra perda, afinal, é necessário que exista
uma desconstrução da imagem de filho que haviam construído ao longo dos tempos, mesmo antes
da gravidez e a construção de uma nova imagem do filho. É esperado que, ao final desse processo,
os pais estejam conseguindo considerar o filho da forma que ele se apresenta, com suas habilidades
e limitações. Esse processo de aceitação faz com que os pais consigam permanecer mais
confortáveis com as dificuldades dos filhos, auxiliando-os na criação de recursos de enfrentamento
das suas limitações e desenvolvimento das habilidades. Desta forma, é possível criar um ambiente
facilitador do crescimento, não só da criança autista, como de todos os familiares, conforme
discurso abaixo.
Isabel fez Joyce e eu nos tornarmos pais melhores, e fez da irmã, Olívia, um ser humano
mais compassivo. O Autismo já não nos parece algo tão ruim, especialmente se comparado
a diversas outras tragédias que vemos nos jornais todos os dias (Grinker, 2010, p. 44).
No discurso acima é possível reconhecer o quanto o convívio com um autista pode ser
transformador das pessoas e da forma delas se relacionarem. Existe possibilidade de crescimento
para os membros da família que estejam dispostos a interagir com as diferenças naturais entre as
pessoas, e principalmente com o mundo tão singular do autista. As pessoas crescem na relação
umas com as outras, sejam elas semelhantes ou não, principalmente quando as realidades são tão
diferentes umas das outras. Os pais se empenham em compreender o filho autista, tornando-se cada
vez mais familiar com sua existência, da forma que ela foi construída. O relato abaixo demonstra o
quanto esse processo de compreensão e aceitação do filho provoca um maior conforto para viver
essa realidade.
Com o passar do tempo, fico cada vez mais a vontade com o distúrbio de Isabel, mais grato
por ela ser quem é e menos triste pela pessoa que poderia ter sido se não fosse autista. E a
diferença entre Isabel adormecida e Isabel acordada me parece cada vez menor. Agora me
sinto pronto para escrever sobre ela e sobre o autismo, algo que nunca julguei ser capaz de
fazer (Grinker, 2010, p. 45).
Nesse relato também é possível reconhecer a necessidade da desconstrução da imagem do
filho que os pais sonhavam em ter, como já foi apresentado anteriormente. Esse processo provoca
uma maior abertura para viver a realidade familiar e também uma maior aceitação de todo esse
processo. Desta forma, a aceitação é um elemento importante para a criação dos recursos de
enfrentamento, já que muitas famílias passam boa parte do tempo buscando explicações, queixando-
se, culpando-se pelo fato de ter um filho autista, e o tempo em que passam nesse processo, deixam
de buscar por recursos criativos para se adaptar a essa nova realidade.
35

Portanto, os pais geralmente buscam auxiliar seu filho a partir das próprias potencialidades,
e não comparando a um padrão social pré-estabelecido de acordo com a idade ou nível sócio-
econômico.
Quando Isabel estava na primeira série, Joyce e eu, juntamente com nossos médicos,
estávamos seguros de que ela precisava frequentar uma escola para crianças normais, com
todas as crianças do bairro, mas não achávamos que ela pudesse participar sem uma
assistência particular especial. O sistema escolar tinha que contratar alguém para ficar com
Isabel durante a maior parte do tempo – algo bastante caro (Grinker, 2010, p. 277).
No relato acima é possível identificar que os pais avaliam a situação específica bem como
as potencialidades da filha, para identificar quais são as possibilidades da mesma corresponder a
esse nível de desenvolvimento. Reconhecendo quais são as limitações dela, os responsáveis podem
criar estratégias para que a mesma se adapte e consiga alcançar algum grau de desenvolvimento.
Percebe-se que os pais não estão buscando que a menina se iguale às outras crianças, mas sim que
ela consiga se desenvolver a partir da sua própria base. O relato abaixo apresenta um discurso e
posicionamento semelhante ao anterior.
Como ele já evoluíra bastante, achei que tinha chegado a hora de mudar isso. Resolvi
exercitar bastante sua noção de presente, passado e futuro, treinando a diferença entre os
tempos verbais. Começamos a formar frases nos três tempos e a treinar cada vez mais,
trabalhando assuntos do presente (Tabachi, 2006, p. 76).
No relato acima é possível identificar que a mãe busca nas limitações do próprio filho qual
será a próxima etapa a ser desenvolvida. Para isso, é necessário que os pais tenham desenvolvido a
atitude de consideração do outro e de seu processo de crescimento. É necessária uma abertura deles
para compreender o filho a partir da própria criança, abrindo mão das expectativas e também do
desejo de direcionar o desenvolvimento do filho para transformá-lo de forma a corresponder aos
seus desejos. Acontece um interesse genuíno por construir uma relação com o filho.

1.4.2 Futuro

Em todos os livros pesquisados identifiquei uma grande preocupação, por parte dos pais,
em relação ao futuro de seus filhos autistas. Perguntas como “O que será dele, quem cuidará, ele
desenvolverá?” são comuns entre pais de autistas de todos os graus de comprometimento. E ainda
por muito tempo esses pais se questionaram tentando encontrar uma resposta concreta sobre qual
será o destino de seu filho.
Distantes estão os momentos em que eu tinha dúvidas permanentes sobre o futuro dele, em
que uma questão me martelava a cabeça dia e noite: “Como será que tudo isso vai
acabar?”, me perguntava, nem sempre atinando com uma possível resposta (Tabachi, 2006,
p. 13).
36

No relato acima é possível identificar que aos poucos, na medida em que os pais vão
vivendo experiências com seu filho e o futuro vai se desenhando, a dúvida e incerteza tendem a
diminuir, mesmo que ainda reste alguma insegurança sobre a capacidade do filho de gerenciar sua
vida.
Todos esses sentimentos em relação ao futuro da criança autista são legítimos e
compreensíveis. Um dia os pais não poderão mais cuidar do filho da forma necessária, então outras
pessoas precisarão se responsabilizar pelo autista. Essa é uma das grandes angústias vividas pelos
responsáveis, conforme é possível identificar no relato abaixo.
A questão de encontrar um lugar para Noah tem sido parte constante de conversação
familiar. Ela é sempre discutida em um contexto muito específico: sua inevitabilidade. O
tempo está passando. Noah está crescendo. O que vai acontecer com Noah? Preocupação e
consternação são partes tão integrantes da nossa matriz psíquica familiar que parece pairar
sobre todas as nossas reuniões (Greenfeld, 2009, p. 142).
Percebe-se a preocupação sentida pelos membros da família sobre como será o futuro da
criança autista, já que ele crescerá e os pais envelhecerão. Geralmente o crescimento de um filho e a
transição para a vida adulta é um momento vivido pelos pais com muita ansiedade, incertezas,
inseguranças e medos, sejam os filhos típicos ou com alguma deficiência. Em alguns casos, existe a
possibilidade de institucionalizar a criança ou adulto, ou seja, os pais podem optar por internar o
autista em uma instituição apropriada para cuidados de pessoas que apresentam diversas
dificuldades e adoecimentos. Em todas as histórias os pais relataram em algum momento a
possibilidade de institucionalização e o receio de que isso seja necessário no futuro. Tudo isso
dependerá do grau de autismo do filho, pois os autistas que apresentam grau inicial de autismo
(antigamente chamado de Síndrome de Asperger) terão maiores possibilidades de desenvolver suas
potencialidades do que um autista que apresenta um grau mais severo de comprometimento. A
possibilidade de institucionalização também dependerá dos recursos que a família possui,
financeiros e humanos.
Mas o problema de Noah sempre permanece, e agora parece maior do que nunca. A
questão é que um dia não terei mais chances de controlá-lo fisicamente... Todo pai, seja o
filho normal ou anormal, só pode dedicar um determinado número de anos a sua prole. Um
dia, Noah terá de seguir sozinho. Logo virá o dia em que terei de entregá-lo aos cuidados
de outras pessoas (Greenfeld, 2009, p. 166).
O relato acima apresenta a preocupação do pai em relação a possibilidade deles não
conseguirem cuidar do filho da maneira necessária no futuro, como por exemplo a necessidade de
contenção em algumas situações. Vale ressaltar que nesse livro o autor (irmão) apresenta as severas
dificuldades do autista, demonstrando a grande possibilidade do mesmo possuir um alto grau de
autismo. Em casos de maior comprometimento das habilidades é possível que essa criança não
consiga se desenvolver a ponto de garantir o auto-cuidado e a autonomia, necessitando, portanto de
37

um tutor ou cuidador. A questão é: quem cuidará quando os pais não puderem mais? Os irmãos ou
parentes próximos? Uma instituição?
A maioria dos pais, sejam de crianças típicas ou autistas, desejam que seus filhos cresçam
e se tornem independentes e autônomos. Contudo, quando estamos falando de uma criança autista
que apresenta limitações, essas dificuldades podem acarretar em um prejuízo no desenvolvimento e
garantia de sua autonomia. Desta forma, esse assunto se torna bastante complexo, pois como se
mensura o quanto que uma pessoa com limitações tem possibilidade de cuidar de si? Esse é um
momento vivido pelos pais com muita insegurança.
Percebi, na medida em que lia os livros, que existem diversas formas de interagir com a
expectativa sobre o futuro do filho autista. Abaixo segue um relato que apresenta duas formas
diferentes de interação.
Para a maioria dos pais que entrevistei, o sucesso na vida adulta significa o filho ser capaz
de viver com independência, sem precisar ser supervisionado de perto. Contudo, não me
concentro particularmente na ideia de independência. Quero, por outro lado, que Isabel
passe pelo mínimo possível de transtorno emocional, que ela seja capaz de continuar
aprendendo quando adulta, que possa lutar para satisfazer suas necessidades e fazer amigos
(Grinker, 2010, p. 307).
No início do discurso é possível perceber que o pai cita outras famílias que apresentam
dinâmicas de funcionamento diferentes e que buscam por desenvolver a independência e autonomia
dos filhos para que quando cheguem à vida adulta, possam gerenciar suas próprias vidas. De outra
forma, quando o pai apresenta a maneira que sua família interage com o tema do futuro da filha, o
mesmo discursa sobre a importância de auxiliar para que a mesma tenha o mínimo possível de
sofrimento e que tenha possibilidades de continuar em desenvolvimento e possa se adaptar cada vez
mais à sua realidade, cuidando de si e estando em relação com as pessoas.
Tenho reconhecido nesse trabalho a individualidade de cada membro da família (pais e
mães), bem como a especificidade de cada dinâmica familiar. Em vários momentos discursei sobre
o quanto a resposta que os pais darão para cada situação dependerá da dinâmica de funcionamento
de cada um, ou seja, dependerá do jeito de estar na vida. Desta vez não é diferente. A forma como
cada família enfrentará os sentimentos perante o futuro da criança autista dependerá na forma como
cada um gerencia sua vida. Alguns pais percebem a instabilidade e incerteza do futuro como uma
libertação da expectativa do filho se transformar em uma pessoa bem sucedida. Desta forma, a
família se sente livre e permitida a viver plenamente interagindo com quem a criança realmente é,
alcançando seu desenvolvimento máximo, individual e como unidade familiar. O trecho abaixo
apresenta o sentimento dos pais em relação às cobranças e expectativas sobre a filha.
Sentimento de libertação. Joyce e eu estamos livres da estressante ambição de que Isabel
curse uma escola... (Grinker, 2010, p. 34).
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No relato anterior os pais reconhecem que existe uma cobrança social sobre quem os filhos
se tornarão no futuro e se serão bem sucedidos. Esses pais demonstram uma maior aceitação da
filha e da sua realidade e possibilidades. Assim é possível reconhecer as limitações e não construir
expectativas fundamentadas em outras crianças, mas sim interagindo com o potencial da própria
filha.
Quando Ricardo chegou aos oito anos, tinha conseguido algum desenvolvimento, fazia
descobertas. Não vou negar, porém, que às vezes, eu continuava em dúvida sobre o futuro
dele: “Como será que tudo isso vai acabar?” Logo, porém, me reanimava, pois havia
novidades. Estabelecíamos comunicação com Ricardo. Precária, é verdade, mas suficiente
para nos entendermos, seja por expressões fisionômicas, por gestos ou até mesmo pela fala
meio desconexa que ele já produzia (Tabachi, 2006, p. 52).
Mesmo passado tempos e a criança autista tendo alcançado algumas conquistas, avançando
em seu desenvolvimento, existem momentos que os pais se sentem inseguros sobre como o autista
irá reagir ao futuro. Acredito que o fato da imprevisibilidade natural do convívio com o autista
provoca nos pais a sensação de insegurança e desconfiança sobre os potenciais do filho. Contudo,
como foi citado anteriormente, aos poucos os pais vão compreendendo quais são as potencialidades
do filho, o que garante um pouco mais de confiança de que ele possa adquirir alguma autonomia no
futuro.
Em resumo, percebi que existem dois grandes grupos. Num deles estão os pais que têm a
expectativa e o desejo que os filhos se desenvolvam a ponto de conquistar uma certa autonomia no
futuro. Em algumas histórias essa realidade é possível de ser concretizada, pois as crianças autistas,
se estiverem sendo estimuladas em seu desenvolvimento, podem ampliar suas habilidades. Contudo
dependerá do grau de comprometimento e do quanto ela e os pais estarão implicados nas atividades
para desenvolvimento. Mesmo que todos estejam implicados nesse processo, ainda sim não há
garantias de desenvolvimento.
Existe também outro grupo de pais que focam não na autonomia e independência do filho,
mas sim numa maior qualidade de vida para ele no futuro. Desejam que o filho possa desenvolver
seu potencial máximo para minimizar qualquer sofrimento que venha a ter no futuro.
Tanto o primeiro posicionamento quanto o segundo refletirão na forma como cada um dos
pais auxiliará no desenvolvimento de suas crianças.

1.5 Lições

Finalizando esse trabalho reconheci o quanto que, se os pais estiverem dispostos, aprendem
com a realidade de serem responsáveis por uma criança autista. Refleti que isso também é um dos
39

elementos importantes da vivência dessas pessoas. Então decidi escrever mais um capítulo, agora
sobre as lições que os pais aprenderam no dia a dia com suas crianças. Acredito que são lições
importantes não somente para pais de crianças autistas, mas também para a sociedade em geral,
sejam pais ou não. São lições sobre a vida e relações humanas e pensei que eu poderia dar um
espaço especial para essas falas tão significativas.
Essas lições são em relação à vários dos elementos que já discuti ao longo do trabalho.
Inicialmente apresento a fala de um pai sobre o quanto ele aprendeu com a realidade de sua família.
Ela [Isabel] me ensinou a não esperar que a vida siga em linha reta, que a estrada tem
muitas curvas. E, através da sua personalidade única, desafiou minhas suposições em
relação aos aspectos mais elementares da vida social – como a crença de que nossos
amigos têm de ter a mesma idade que nós, ou de que as crianças devem todas se tornar
independentes à medida que crescem. Quando temos um filho autista, começamos a pensar
com mais criatividade sobre os tipos significativos de relacionamentos possíveis e
benéficos (Grinker, 2010, p. 299).
No relato acima é possível identificar que, através da experiência cotidiana com a filha, o
pai aprendeu a flexibilizar seus conceitos e convicções e até a forma de se relacionar. Nossa
tendência a buscar por estabilidade muitas vezes nos faz estagnar nas situações e agir na realidade
para que ela continue da mesma forma. Contudo a vida não segue um padrão, e são nesses
momentos de “curva” que temos dificuldade de nos realizarmos. A vivência com um autista talvez
seja um dos maiores exercícios de flexibilidade devido a grande instabilidade que a maioria deles
vive. A flexibilidade precisa partir dos pais para poder auxiliá-lo a lidar com sua realidade; e todo
esse processo é realizado com muita criatividade. É uma grande oportunidade dos pais aprenderem
a se relacionar com a vida de uma forma mais ativa, a compreender os processos da vida e buscar
recursos de enfrentamento de uma maneira mais criativa.
A necessidade de compreender o autista por ele próprio provoca nos pais a habilidade de
compreender as pessoas que estão ao seu redor, da forma pela qual elas se apresentam. Os pais
relatam que, após viver a experiência de maternidade e paternidade de crianças autistas,
encontraram novas formas de perceber a vida e também transformaram seu jeito de ser.
...ser pai de uma criança autista que me levou a considerar princípios sublimes ou abstratos
da vida, como a verdade, a beleza e a bondade (Grinker, 2010, p. 34).
O relato acima demonstra a transformação dos conceitos dos pais e a valorização de
princípios que até então tinham outro sentido para os pais. Ao ler os livros que fundamentaram esse
trabalho identifiquei que todas as famílias, de uma forma ou de outra, aprenderam algo com a
realidade vivida, mesmo aquelas que tiveram experiências complicadas e que provocaram muito
sofrimento e desintegração entre os membros. No fim, percebo que todos tem a mesma
possibilidade de crescer, tudo vai depender da forma como cada um decide se realizar na
vida.
40

Encerro meu trabalho com uma frase que, pessoalmente, provocou-me uma grande emoção
e a esperança de que cada vez mais os pais possam aprender a lidar com essa realidade, que
consigam encontrar recursos criativos para poderem se realizar na vida e crescer junto de seus
filhos.
Isabel me ensinou que o inesperado e até o belo pode surgir mesmo do indesejável, como o
lótus que floresce da lama, belo e puro apesar de sua origem (Grinker, 2010, p. 46).
Talvez não exista metáfora mais linda do que o florescimento da flor de lótus em seu
ambiente natural, a lama. Algumas pessoas podem olhar para a lama e pensar que nada de bom e
belo poderá surgir dali. Contudo surge a flor de lótus para nos ensinar que não importa o quão
difícil é a realidade, mas sim a força e o desejo de desenvolvimento e crescimento.

2.1 APROXIMAÇÃO COM A ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA

Ao longo deste trabalho, na medida em que refletia sobre a experiência dos pais, o
conhecimento sobre a Abordagem Centrada na Pessoa foi se fazendo presente. A seguir traçarei
alguns pontos essenciais dessa abordagem psicológica para maior compreensão da experiência dos
pais de crianças autistas.
A Abordagem Centrada na Pessoa, que tem como seu precursor Carl Rogers, é uma das
vertentes da Psicologia Humanista que essencialmente acredita que as pessoas têm dentro de si o
potencial para desenvolvimento e gerenciamento suas vidas. Quando relaciono esse conceito com a
realidade de uma família com uma criança autista, penso que, por mais diferente e difícil que seja
essa dinâmica, os pais possuem subsídios para encontrar a melhor e mais criativa forma para
buscarem pelo desenvolvimento.
Nesse movimento de acreditar no potencial de auto-gerenciamento das pessoas é que
apresento o conceito de Tendência Atualizante. Rogers (1977) afirmou que existe uma tendência em
todo organismo a buscar pelo desenvolvimento das suas potencialidades, buscando assim o
aperfeiçoamento e complexidade. Isso não significa que não existam limitações do sujeito e
condições do meio em que ele vive. Contudo, essa tendência que direciona o sujeito ao crescimento
existe, independente do mesmo viver condições facilitadoras ou dificultadoras.
Percebi nas histórias deste trabalho que todos os pais realizaram escolhas e direcionaram
suas vidas sempre buscando pelo crescimento. Está claro que alguns viveram condições mais
facilitadoras que outros, e isso acaba promovendo características muito específicas na dinâmica
familiar. Abaixo segue uma citação que apresenta essa questão.
41

Quando a tendência atualizante pode se exercer sob condições favoráveis, isto é, sem
entraves psicológicos graves, o indivíduo se desenvolverá no sentido da maturidade. Sua
percepção de si mesmo e de seu ambiente – e o comportamento que se articula de acordo
com estas percepções – se modificarão constantemente num sentido de uma diferenciação
e de uma autonomia crescentes, típicas do progresso em direção à idade adulta. A
personalidade representará, portanto, a atualização máxima das potencialidades do
“organismo” (Rogers, 1977, p. 53).
Contudo, vale explanar o que são as condições facilitadoras propostas por Rogers. Em sua
teoria Rogers refletiu sobre três posturas, chamadas de atitudes terapêuticas, já que inicialmente elas
foram construídas através desse tipo de relação. Posteriormente Rogers identificou que essas
atitudes não aconteciam somente através da relação terapêutica, mas também em qualquer tipo de
relação interpessoal, o que transcendia para outras áreas. Assim, é possível reconhecer essas
posturas também no cerne da relação dos pais com seus filhos autistas. São elas: Consideração
Positiva Incondicional, Compreensão Empática e Autenticidade.
O primeiro conceito que apresento é a Consideração Positiva Incondicional, ou seja, todas
expressões de uma pessoa sobre si mesma são reconhecidas pelo terapeuta como dignas de
consideração, independente do valor que ela possa ter pessoalmente para ele (Rogers, 1977). Essa
atitude provoca permissividade para a pessoa se expressar da forma que sente ser mais fiel a si
mesma, sem o risco de ser julgada ou desconsiderada.
Seguindo nesse fluxo, a Compreensão Empática é a capacidade do terapeuta de
compreender o mundo subjetivo do outro, exatamente da forma como ele próprio o sente e
representa, deixando de lado valores e conceitos próprios (Rogers, 1977).
Rogers em sua caminhada reconheceu que não bastava o terapeuta estar aberto à
experiência do outro, considerando-o e compreendendo-o em sua singularidade. Para que exista
uma atmosfera de crescimento é importante que essa pessoa seja autêntica, ou seja, que possa ouvir
a si mesmo e assim aceitar-se, relacionando-se com outras pessoas da forma mais verdadeira e
sincera possível (Rogers, 1977). Assim, não existem máscaras, fachadas ou atuações. O terapeuta
age de forma congruente a partir da maior compreensão que alcançou de si.
Nas três definições usei o termo terapeuta para ser fiel a definição dada por Rogers, mas
compreendo que possa ser substituído por qualquer outra pessoa, visto que essa postura não se
restringe às relações terapêuticas. Nesse trabalho podemos substituir por pais em relação com seus
filhos.
Essas três atitudes, em qualquer tipo de relação entre pessoas, promove uma atmosfera
facilitadora do crescimento. Quando penso sobre a experiência dos pais de crianças autistas
identifico a tentativa desses de construírem relações facilitadoras com suas crianças, independente
das limitações delas. Esse movimento pode ser justificado em todo o trabalho, como por exemplo
42

quando apresentei o quanto que a postura dos pais em relação à realidade vivida pode facilitar ou
dificultar o desenvolvimento da criança autista e também da família enquanto grupo.
Acredito que a Abordagem Centrada na Pessoa é o caminho para compreensão da
realidade vivida e transformação do meio para condições mais facilitadoras do crescimento, através
de uma postura mais autêntica, compreensiva e consideradora do outro.

CONSIDERAÇÕES: FECHANDO PARA ABRIR

Encerrar um trabalho como este é uma grande responsabilidade quando se pensa em


pontuar tudo o que foi aprendido. Quando decidi escrever sobre autismo, tomei como base minha
enorme curiosidade sobre como era essa realidade; e minha curiosidade tinha uma direção mais
definida: conhecer a experiência de pais de autistas sobre a convivência com seus filhos. Acredito
que alguns elementos que julguei importantes precisem ser pontuados nesse momento.
Ao longo do trabalho identifiquei a relação das expectativas dos pais frente à vários
elementos. Inicialmente reconheci o quanto os pais constroem expectativas frente ao seu futuro,
casamento, constituição familiar, como serão os filhos, futuro deles, etc. Todo esse movimento de
construção de expectativas pode promover frustrações caso os pais reconheçam que algo esteja fora
do esperado. Existe a necessidade dos pais aprenderem a desconstruir as expectativas construídas
desde o início de suas vidas, flexibilizando seus desejos quanto ao futuro.
Seguindo no mesmo sentido, se o pais conseguem flexibilizar seus desejos quanto ao
futuro, poderá se relacionar com o filho exatamente da forma que o mesmo se apresenta, e não em
relação à imagem construída dele. A partir disso é possível pensar em alternativas para auxiliar no
desenvolvimento dessa criança, de suas limitações, ampliando seu campo de possibilidades e
habilidades.
A princípio reconheci o quanto a realidade de famílias típicas são diferentes da realidade
das famílias que possuem um membro autista. Percebi que a complexidade vivida pelas famílias de
autistas é muito maior que as demais, o que provoca um alto nível de estresse, dentre outros
sentimentos como insegurança, desespero, tristeza intensa, raiva, frustração, angústia, desesperança,
ansiedade, preocupação, aflição, tensão, irritação, rejeição, superproteção e confusão. Diante de
todos esses elementos, reconheci o quanto é rica a gama de sentimentos e sensações que os pais
vivenciam na realidade com sua criança autista. Contudo, existem outros sentimentos que também
fazem parte dessa gama como por exemplo, esperança, respeito, orgulho e amor. Reconhecendo
toda essa complexidade, percebi que em muitos momentos os pais podem vivenciar sentimentos
ambivalentes em relação ao seu filho autista e por vezes sentirem-se culpados por senti-los.
43

Percebi o quanto é intensa e desgastante a rotina da vida familiar com um autista, por conta
de toda a gama de sentimentos explícita anteriormente, e também por conta das tarefas diárias
necessárias com a criança, a instabilidade emocional vivida por ele, a luta pela inserção social, ou
seja, a complexidade dessa dinâmica. Além disso, os pais precisam estar atentos aos mínimos
detalhes para que não desestabilize a criança autista, e também para auxiliar em seu
desenvolvimento. Esses detalhes muitas vezes passam despercebidos pelos pais de outras famílias,
por serem tão simples e cotidianos. Toda essa atenção gera um cansaço muito grande nos pais, que
possuem poucos momentos de descanso e cuidado para si.
Identifiquei ao longo das pesquisas realizadas para esse trabalho o quanto que a grande
maioria delas está voltada para a criança autista, e deixo aqui o apelo para a necessidade de
voltarmos o olhar também para os pais, visto toda realidade complexa que vivenciam. É muito clara
a necessidade de ajuda que esses pais demonstram. Aponto a necessidade de mais programas de
auxílios desses pais, tanto no que se refere na interação com o desenvolvimento da criança, quanto
na compreensão de seus sentimentos e angústias.
Por fim, em todas as seções desse trabalho reconheci a relação entre a forma que os pais
interagem com sua vida e a forma de encarar a realidade do autismo. Não possuo dados seguros
para garantir que, quanto maior for a dificuldade da pessoa em encontrar recursos de enfrentamento
para lidar com as questões da vida, maior será a dificuldade de enfrentar a realidade do autismo,
com toda sua complexidade. Desta forma, quanto mais fluida for a dinâmica familiar, mais recursos
criativos conseguirão construir para lidar com as adversidades naturais da realidade do autismo.
Acredito que todos os objetivos propostos por esse trabalho foram alcançados. Meu
interesse era de conhecer, e não explicar como os fenômenos acontecem. Desta forma, esse trabalho
também pode fundamentar pesquisas posteriores que visem um estudo explicativo sobre as questões
que foram encontradas sobre a experiência dos pais. Existem algumas questões que deixo em aberto
para refletir posteriormente. Seguindo o fluxo do trabalho, inicialmente questiono o preparo da
nossa rede de apoio, sejam eles médicos (pediatras e psiquiatras), professores e pedagogos,
psicólogos e sociedade em geral, para receber os autistas e suas famílias. Ao longo do trabalho,
lendo os livros, reconheci a dificuldade dos pais de encontrarem apoio na comunidade, médicos
preparados para diagnosticar prontamente, escolas preparadas para a inserção de uma criança autista
na classe, entre outros âmbitos. Talvez esse questionamento possa trazer base para pesquisas
futuras.
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