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'I {argumento}

Hans Ulrich Gumbrecht

A Filologia
e o Presente

Tradução
Maria Ana Carneiro

UNIVERSIDADE CATÓLICA EDITORA


Índice

A Filologia e o Presente g

Correspondência entre
Hans Ulrich Gumbrecht e Isabel Capeloa Gil 30
A Filologia e o Presente

No rescaldo de uma crise em que as Artes e


Humanidades bateram no fundo do prestígio in-
telectual, a Filologia- enquanto conjunto de prá-
ticas eruditas com uma meta que se tinha por
autocompreendida - tem-se vindo a tornar, ao
longo de já várias décadas, num espaço de de-
bates intensos, programas renovados e de uma
euforia que contraria o clima generalizado de es-
tagnação e depressão que parecia definir o lugar
específico que ocupava no mundo académico.
Contudo, olhando, de facto, para este desassos-
sego produtivo e para episódios específicos, não
parece resultar a impressão de que tenha ocorri-
do uma verdadeira "viragem". Isto é, as recentes
discussões mais animadas no campo da Filologia
não parecem encaixar na mesma impressão de
transformação consolidada e reorientação que se
tornou típica do mundo intelectual desde o final
do século xx. Talvez seja possível compreender a
Hans Ulrich Gumbrecht A Filol ogia e o Presente

razão para esta abertura que começa a ser per- ou no outro (e provocando a adaptação subse-
meada por um sentimento de preocupação e de- quente do lado oposto). Este ângulo, porventura
sorientação, se voltarmos ao conceito elementar básico, permite-nos compreender a razão princi-
e simples de Filologia como uma forma de cura- pal pela qual o momento presente desta história

doria. é tão produtivo quão confuso e aparentemente


interminável. O ofício facilmente acessível em que
Quando assumiu os primeiros contornos ins- a Filologia se transformou (e de alguma forma
titucionais, durante o final do século 1v e início do deteriorou) por altura do terceiro trimestre do sé-
século v a. C., presumivelmente devido ao sur- culo xx, foi produtivamente subvertido não ape-
gimento da Biblioteca de Alexandria, a Filologia nas por uma, mas por duas inovações profundas
combinou uma técnica de preservação de conhe- que correspondem a cada uma das dimensões
cimento com uma forma específica e fundamen- da curadoria. A mais visível destas inovações é
tal de utilização do conhecimento 1 • A técnica era a tecnologia eletrónica como complexificação e
escrita linear a um nível de complexidade a que alternativa (alguns autores preveem-na mesmo
nos referimos como "texto", conceito que há mui- como futuro substituto) da escrita e impressão.
to se tornou inseparável de qualquer pensamento
sobre "conhecimento" na cultura ocidental 2 , e as O estímulo menos óbvio, mas igualmente po-
funções em questão eram acumulação, sistemati- deroso, da mudança tem sido a alteração pro-
zação taxonómica e acessibilidade. É a interação funda da nossa relação com o passado (e com
entre estes dois polos e dimensões que faz a his- as duas outras camadas temporais) e a que me
tória da Filologia, sendo a maioria das transforma- referirei como a diferença entre o "cronótopo his-
ções desencadeada por uma alteração num lado toricista" e o "cronótopo do presente amplo" 3 ,

10)
Hans Ulrich Gumbrecht A Filologia e o Presente

mudança esta que alterou necessariamente as a sua autocompreensão, desde os tempos da


funções que se pretendem cobrir por via da pre- Biblioteca de Alexandria. Todos sabemos que a
servação do conhecimento. A meu ver, as trans- cultura medieval tinha todas as razões objetivas
formações são independentes uma da outra, para ser mais obcecada do que qualquer outra
o que aumenta a complexidade que conjunta- época anterior ou posterior, com a batalha contra
mente causam bem como a plausibilidade da im- o esquecimento e a perda material de conheci-
pressão de que ao atual estado da Filologia não mento herdado (neste caso, "herdado" da anti-
se seguirá facilmente uma fase de consolidação guidade romana e grega). Subsequentemente, a
intelectual (e, muito menos, institucional). Ainda invenção da impressão, como nova tecnologia de
que não surpreenda e que seja raramente refe- preservação do conhecimento através de textos,
rida e desenvolvida, esta observação sobre dois permitiu uma difusão muito mais ampla do co-
motores de inovação e mudança muito diferentes nhecimento e uma maior estabilidade na preser-
que convergem na situação presente da Filologia vação do texto ao longo do tempo. Não obstante,
parece oferecer um ponto de partida para uma o conceito específico e determinante no papel de
reflexão breve a abstrata sobre a "Filologia" de Filologia no âmbito das emergentes disciplinas
hoje e o seu futuro possível, da perspetiva do académicas das Artes e Humanidades, desde o
nosso presente complexo. início do século x1x, tem sido a perspetiva histo-
* ricista ("cronótopo"), cuja forma e forte articula-
Estas reflexões breves não pretendem re- ção institucional se haviam manifestado apenas
construir todos os pontos de vista sobre o pas- algumas décadas mais cedo, no final do século
sado que, ao longo da história, têm desafiado e XVIII. E foi esta perspetiva que tornou possível a
mudado a Filologia como curadoria de texto e filosofia (hegeliana) da história e o evolucionismo
Hans Ulrich Gumbrecht A Filologia e o Presente

(darwiniano), o Socialismo e o Capitalismo, ba- acredito que um entendimento do Historicismo


seados na convicção de que os seres humanos como um cronótopo (ou como uma construção
foram sempre deixando o passado para trás, social da temporalidade) nos ajuda a entender
visto como um "outro" de forma cada vez mais o surgimento, juntamente com a obsessão por
dramática; o futuro apresentava um horizonte genealogias, de um desejo pela "edição crítica"
aberto de possibilidades; e entre esse passado (no sentido de Karl Lachmann), isto é, um dese-
e este futuro, o presente era sentido como "um jo de reconstruir - hoje em dia, somos tentados
momento de transição impercetivelmente breve" a dizer simplesmente: de construir - os textos
(como Baudelaire escreveu em 1858), onde a que marcaram o início de cada genealogia de
mente humana, a partir da experiência do passa- transmissão de acordo com critérios filológi cos
do adaptada ao presente, podia moldar o futuro, e abertamente estéticos (ou seja, como textos
ao escolher entre as suas possibilidades. Neste esteticamente superiores). Dentro da visão histo-
cronótopo, nenhum fenômeno resistia ao tempo ricista, tal como desenvolvida no final do século
como um agente inevitável de mudança. xv111 e início do século x1x, e dada a sua influên-
cia na alteridade necessariamente crescente en-
Já bastante cedo, Bernhard Cerquiglini veio tre presente e passado, a possibilidade de uma
demonstrar como o ponto de vista historicista relação de imediati smo com qualquer texto de
não podia deixar de gerar uma obsessão, ain- um passado remoto surge como a exceção pra-
da novidade em 1830, pela reconstrução de ge- ticamente impossível, como a exceção apenas
nealogias, teleologias e stemmata como formas ocasionalmente encontrada nos textos "eminen-
e marcas da transmissão contínua de textos e tes" ou "clássicos", tal como famosamente ape-
conhecimento ao longo do tempo. Além disso, lidados por Hans-Georg Gadamer. Apenas estes
Hans Ulricl1 Gumbrecht
A Fi lologia e o Presente

textos se supunham ter um poder específico e à cultura específica de curadoria de texto que se

um apelo que lhes permitiam transcender os tem- desenvolveu sob as premissas da visão histori-

pos e "falar" imediatamente aos leitores em cada cista - este trabalho tem sido feito com grande

novo presente. Mas ainda que considerados ex- precisão e até mesmo com um certo grau de ex-

ceção, foram estes "textos clássicos" que fizeram cesso documental durante as últimas décadas.

com que o interesse pelo passado valesse a pena Acima de tudo, importa entender que as práti-

na visão historicista. Daí que, durante o grande cas filológicas inovadoras centradas em torno de

século da Filologia como profissão académica e nomes mais ou menos promissores tais como

matriz depois de 1800, a "edição crítica" se tenha "Nova Filologia" (na América) e "Crítica Genéti-

tornado um paradigma tão central, um paradig- ca" (em França) que começaram a surgir desde

ma e até mesmo um objeto de desejo movido 1970, são o resultado de uma construção inova-

pela vontade de aplicar competências filológicas dora de temporalidade que designo de "cronóto-

na reconstrução do texto quase ideal e estetica- po do presente amplo". Ao contrário do presente

mente mais valioso de uma tradição . Escusado cada vez mais encolhido e, portanto, "imperceti-

será dizer que a versão esteticamente mais va- velmente curto" do cronótopo historicista, o novo

liosa tem muitas vezes sido confundida com o presente (que continua a ser o nosso presente no

arquétipo , isto é, com o texto mais antigo e, por- início do século xx1) é aquele em que todos os pa-

tanto, "original" dentro de uma linha genealógica radigmas e fenómenos do passado são justapos-

da tradição. tos como estando disponíveis e acessíveis. Em


* vez de deixar o passado para trás, este presente
Conforme já referi, não pretendo, neste con- é inundado com o que se diz passado (pastness)

texto, estar a identificar os problemas inerentes e, ao mesmo tempo, enfrenta um futuro que,
Hans Ulrich Gumbrecllt A Filologia e o Presente

ao invés de um horizonte aberto de possibilida- Recentemente, numa "defesa de projeto" na Uni-


des, se vê ocupado por ameaças que se movem versidade de Stanford, em que uma estudante de
inevitavelmente na nossa direção (por exemplo, doutoramento apresentava um projeto que pre-
o "aquecimento global"). tendia produzir, neste sentido neofilológico, uma
documentação diferenciada dos três manuscritos
Neste contexto cronotópico, tendemos a ver mais importantes que trouxeram o Libra de buen
e a relacionar-nos com o passado, da perspeti- amor castelhano do final do século xv até aos
va do nosso presente. Em vez de tentar alcan- nossos dias, os meus colegas e eu ficámos cho-
çar a versão de um texto tida como "clássica", cados ao perceber que, no âmbito desta tradi-
suficientemente poderosa para merecer percorrer ção textual, a referência continua a ser a "edição
grandes distâncias cronológicas, os filólogos dos crítica" de 1967 por Joan Corominas , que funde
nossos tempos vivem fascinados pelo desenrolar elementos dos três manuscritos do Libra de buen
da "vida" real de textos específicos no passado, amor num "arquétipo" supostamente mais antigo
num movimento constante de performances no- e esteticamente superior.
vas e variantes (esta é a perspetiva para a qual
Paul Zumthor inventou a palavra francesa "mou- Quando os "computadores pessoais" come-
vance"); o seu objetivo é perceber como os textos çaram a tomar conta dos nossos gabinetes uni-
transitavam dessa "vida" para se tornarem casos versitários na década de 1980, aqueles que são
excecionais de preservação em páginas de per- agora velhos padrões e práticas filológicas, enrai-
gaminho de um códice, e como essas páginas e zados no cronótopo historicista, já haviam sido
códices comportam traços materiais e sintomas sujeitos a uma onda de críticas , desafios e revi-
das situações sociais em que eram utilizados . sões. E o paradigma da Nova Filologia viu-se, de
Hans Ulricll Gum b recht A Fíl ol ogia e o Presente

facto, estabelecido quando, dez ou quinze anos cada vez mais depressa, a evolução da espécie
mais tarde, o termo "Humanidades Digitais" apa- humana tem tido lugar numa dimensão nãobio-
receu pela primeira vez na agenda de programas lógica4.
muito ambiciosos mas não muito bem conce-
bidos (pelo menos nas suas etapas iniciais) de Em vez de assumirmos que toda e qualquer
transformação tecnológica de todo o território da tecnologia recém-descoberta e recém-desenvol-
instituição académica. Quero agora reiterar que a vida deve ser usada para resolver os nossos pro-
convergência da tecnologia eletrónica com o "pa- blemas práticos e intelectuais mais prementes,
radigma neofilológico" (que eu interpreto como devemos esperar - e dar-lhes tempo para - que
decorrente do cronótopo do presente amplo) no encontrem as formas de aplicação mais produ-
centro da curadoria de texto contemporâneo, tivas. Neste sentido, ainda que certamente lou-
de modo algum reflete uma "necessidade" siste- vável numa primeira fase inevitável, a vontade e
mática ou histórica, nem uma "lógica" mútua de entusiasmo atuais de garantir a "disponibilidade
dependência intelectual. Indo ainda mais longe, eletrónica" (em geral e para fins educacionais e
discordo mesmo da premissa genericamente de investigação mais específicos) de todo o lega-
aceite de que as invenções tecnológicas indivi- do de dois mil e quinhentos anos de trabalho filo-
duais ocorrem na história da humanidade "sem- lógico (e de todas as outras formas de produção
pre que são muito precisas". Ao invés, concordo cultural) é certamente sobrevalorizada em termos
com André Leroi-Gourhan que compreende a de mérito intelectual. Sem dúvida, tais atividades
história da tecnologia como um contexto que é dependem de e merecem apoio financeiro, mas
externo às intenções e planeamento humano, dado que, salvo raras exceções, cumprem pura-
sendo que, nos últimos cinco ou dez mil anos e mente funções de serviço, não vejo como devam
Hans Ufrich Gumbrecht A Filologia e o Presente

contar como elementos de qualificação dentro da e questões novas com a ajuda da computação
carreira académica. eletrónica - ainda que, neste caso específico,
pareça que a chegada da tecnologia eletrónica
É urgente mais discernimento do que aque- coincidiu, por mero acaso, com uma perda visí-
le que temos tido na última década para saber vel de entusiasmo pela Begriffsgeschichte 5 . Ainda
distinguir entre, por um lado, os chamados "pro- mais distante que a Begriffsgeschichte das tare-
jetos de investigação", cujo único objetivo pa- fas canónicas da Filologia, outro exemplo em que
rece ser a utilização de dispositivos eletrónicos o uso da tecnologia eletrónica permitiu inovação
(por qualquer forma e segundo o lema "quanto intelectual que, de outra forma, se afigurava difí-
mais caro melhor") e a celebração da competên- cil, é o caso daquilo a que Franco Moretti refere
cia para fazê-lo e, por outro, os casos em que a como "leitura distante" 6 : o uso do computador
possibilidade de agora processarmos quantida- para a análise de dados em grande escala, po-
des incomparáveis de materiais filológicos (e ou- tencialmente relevantes para a História Literária
tros) graças aos computadores, abre, de facto, (por exemplo, as estruturas retóricas de títulos
a dimensões de trabalho intelectual e de inspi- dados a romances durante o século xv111), com o
ração que se afiguram qualitativamente novas. objetivo de produzir contributos que possam ser-
Por exemplo, o caso da "História Conceptual" vir de base e ponto de partida para perguntas e
(Begriffsgeschichte), surgida na Alemanha no ter- desafios novos.
ceiro trimestre do século xx, como uma versão *
mais sofisticada e intelectualmente ambiciosa da A coincidência entre o surgimento de alguns
tradicional "semãntica histórica", poderia ser tido interesses específicos de investigação, ineren-
como uma dessas áreas capaz de abrir a níveis tes e desencadeados pela Nova Filologia, e o
I I

I.
Hans Ulricl1 Gumbrecht A Filologia e o Presente

advento, apenas alguns anos mais tarde, da de ideias novas sobre as diferentes maneiras de
tecnologia eletrônica nos departamentos das usar o conhecimento (por exemplo , a vontade
Humanidades, pode ser entendida, pelo menos historicista de reconstruir as genealogias de tex-
à primeira vista, como um desses casos positi- tos específicos). Em contraste, a atual conjuga-
vos em que a utilização de ferramentas digitais ção entre, por um lado, a inovação tecnológica
abre novas perspetivas intelectuais. Não só se vê cujo potencial ainda não compreendemos intei-
a Nova Filologia confrontada com a necessidade ramente e, por outro, a nossa ligação diferente
de ter em conta uma quantidade muito maior de ao passado, tornou-se uma relação de inspiração
manuscritos e variantes do que estamos habitua- mútua, mas que corre o risco, de facto, de se
dos - sendo que os computadores tornam esse tornar demasiadamente produtiva - assim expli-
trabalho muito mais fácil (e menos caro) do que cando que a Nova Filologia não tenha ainda dado
o livro impresso -como podemos mesmo afirmar lugar a um paradigma de trabalho verdadeira-
existir uma afinidade eletiva entre a dimensão re- mente institucionalizado (o que poderíamos iden-
descoberta da "mouvance" na vida dos textos e a tificar como mais uma "mudança" de paradigma).
flexibilidade dos arquivos eletrônicos. A versão mais canhestra deste problema é aquela
em que, para uma quantidade crescente de tex-
No entanto, parece também haver um perigo tos, dispomos de uma quase infinidade de mate-
de dispersão extrema. Se recordarmos a histó- riais filológicos em diferentes sítios eletrônicos e
ria de Filologia, as mudanças mais importantes sem qualquer formatação homogeneizada. Mas
foram provocadas ou por inovações nas tec- também me apresso a admitir que esta impres-
nologias de preservação do conhecimento (por são e preocupação poderão ser simplesmente
exemplo, a invenção da impressão) ou pelo surgir a de um autor que, pela data de nascimento e
Hans Ulrict1 Gurnbrecilt A Filologia e o Presente

predisposição, está muito longe de ser um "nati- Mediática" 7 : não obstante a mudança significativa
vo eletrónico". que os novos media provocaram nas formas e
* funções do acoplamento entre textos e conheci-
Esta distância não me impede de reconhe- mento, ainda não o superaram e abandonaram
cer que o desafio intelectual derradeiro do nosso como princípio. Sendo as "aplicações" o capítulo
tempo se torna visível a partir de uma posição mais recente na emergência da tecnologia ele-
filológica de observação (e auto-observação) trónica (pelo menos do meu ponto de vista mío-
que, de facto, incide sobre o impacto cultural da pe), parece-me impensável a possibilidade de um
tecnologia eletrónica. Tem-se dito que, desde a tipo de conhecimento que possamos usar sem
cultura helenística, o conceito ocidental e o uso ser por meio do uso de textos como inevitáveis
diário da ideia de conhecimento é inseparável da palcos mediáticos. Alguns autores contemporâ-
dimensão da textualidade. Tanto a origem como neos parecem acreditar que estamos à beira de
a história de Filologia como curadoria do texto um novo mundo de saberes predominantemente
têm vivido na dependência dessa relação, isto é: incorporados (embodíed i<nowledge), que contor-
acima de tudo, os textos têm valido como reci- nariam a mente- e que só consigo, naturalmen-
pientes que facilitam a preservação e a circula- te, imaginar como um "admirável mundo novo"
ção do conhecimento. A tecnologia eletrónica no pior sentido possível.
tem mudado drasticamente este acoplamento
entre texto e conhecimento, sem realmente dis- Obviamente, o estatuto, o papel e a relevân-
solvê-lo - e isto, entre outras dimensões, expli- cia de Filologia como curadoria de texto ver-se-
ca o interesse atual e imediato por aquilo a que -iam dramaticamente reduzidos nesse mundo de
alguns colegas alemães designam de "Filologia saberes - diferentemente - incorporados. Não
1-lans Ulri ch Gurnbrecht A Fi lologia e o Presente

podemos deixar de imaginar este conhecimento Os maiores desafios e problemas que se co-
a ser utilizado através de aplicações como um locam - aparentemente relevantes para a sobre-
conhecimento que ultrapassa as mentes. Tal ce- vivência profissional e intelectual dos filólogos,
nário - para o conhecimento e para a Filologia - especialistas em literatura e humanistas em ge-
nada tem a ver com a descrição que dei, sob o ral - parecem depender do desenrolar das rela-
título Os Poderes da Filo/ogia 8 , de algumas práti- ções entre texto e conhecimento nas décadas
cas filológicas tradicionais e a sua aproximação vindouras.
inofensiva a uma autoimagem humana capaz de
enfatizar o lado corpóreo da nossa existência.
Esta conceção das práticas filológicas encontra
algum paralelo na nossa reação ao mundo quo-
tidiano, isto é, ao quotidiano contemporâneo em
que, largamente devido aos media eletrónicos,
nos tornámos insuperavelmente cartesianos, ex-
clusivamente orientados para a mente na forma
como pensamos sobre nós mesmos. Mas este
problema e a sensação de uma perda cultural do
corpo humano que estimularam, entre outras coi-
sas, uma ideia e prática de Filologia diferentes,
talvez já tenham começado a ser uma coisa do
passado.
Hans Ulrich Gumbrecht A Filolog ia e o Presente

Correspondência entre Hans Ulrich No contexto atual, a universidade de exce-


Gumbrecht e Isabel Capeloa Gil lência, que se tornou uma idée recue das uni-
versidades europeias, parece verter-se somente
De: Isabel Gil em processos e conhecimento instrumental.
Data: 22 de março de 2015 às 23:06:31 WST Discute-se, e mede-se, se um departamento
Para: Hans Ulrich Gumbrecht está bem organizado, que fundos consegue an-
gariar, a taxa de empregabilidade dos gradua-
dos, o grau de internacionalização do grupo de
estudantes, etc.
Caro Sepp, Estrutura e resultados - que acredito serem
Como acontece com regularidade a quem cor- muito relevantes - acabaram por colocar os con-
re desesperadamente em busca do tempo perdi- teúdos em segundo plano. O currículo parece
do, não consigo evitar esta imensa culpa de não transformar-se de forma crescente no modelo
ter já agradecido a extraordinária conferência que mais adequado a um burocrático processo de
proferiste para os alunos do Lisbon Consortium 9 . acreditação e ninguém tem tempo, ou vontade,
Foi extraordinariamente importante para pen- para discutir o papel e o espaço que determina-
sarmos onde estamos e o que fazer. Os cinco pon- das matérias ocupam na estrutura curricular. Esta
tos que estruturaram o travejamento intelectual da "tecnicização" do currículo revela a crescente
palestra guiaram-nos numa viagem consistente, disjunção entre ensino- cada vez mais instrumen-
mas sem dúvida arriscada, interpelando de forma tal- e investigação, quando devia ser justamente
muito distinta os presentes e dando alimento ao o contrário e, diria mesmo, apesar de todas as
controverso tema da "educação doutoral". promessas e garantias em sentido oposto.
Hans Ulrich Gumbrecht A Fi lolo gia ~~ o Presente

Sei que este foi um dos pontos da discussão.


dissonante até, é absolutamente definidor de uma
Na verdade, é um erro considerar que a research
forma de estar na ecologia do conhecimento. Ora
uníversíty (universidade de investigação) nasceu
este não é, de todo, um problema português .
com Humboldt, porque o que define a essência
É certo que a Reforma de Bolonha aproximou a
da universidade, desde sempre, o que define
0 Europa, mas também induziu uma crise, e não
ensino universitário, é que este não é um "pro-
despicienda, nas Humanidades . Digamos que
duto", mas um ato performativo de estudo e in-
não foi Bolonha a responsável pela crise, mas
vestigação. As palestras de S. Tomás de Aquino
que a aprofundou.
foram atos de conhecimento, não uma transmis-
o que Habermas definiu como a razão ins-
são instrumental. Este ponto da palestra foi par-
trumental invoca e utiliza processos, mas tendo
ticularmente interessante para os meus colegas
como contrapartida impactos culturalmente di-
docentes, que, é certo, estão já convertidos a
ferenciados no sistema. Os escandinavos apren-
este ideal, mas apesar de tudo parece-me impor-
deram a dominar o sistema, mas a manter a
tante salientar a necessidade de resistir à lógica
complexidade. Mais especificamente, os finlan-
burocrática. A tentação de subsumir a discus-
deses adoram estruturas e aplicam-nas à gestão
são informada sobre o currículo a um exercício
do conhecimento com paixão. De forma mais
de contabilização de créditos, ou a tentação de
pragmática, os holandeses converteram-se ao
substituir a exigência pela eficácia, sempre com
sistema devido aos ganhos em eficiência. Nou-
prejuízo para a originalidade e a complexidade,
tros países, a reforma criou um problema. É o
entronca num debate em curso. As coisas não
caso da Alemanha, por exemplo, onde provo-
são simples e num curso de doutoramento em
cou, como sabes melhor do que ninguém, uma
Humanidades, o pensamento complexo, crítico,
profunda alteração nas Humanidades e ciências
Hans Uli'ich Gumbrecht A Filologia e o PresentH

sociais, que se alargou do currículo à gestão das que também discordo da tua visão de um passa-
carreiras dos professores. do que ultrapassa as circunstâncias do presente.
É por isso que acredito que o ponto acerca Na verdade, a universidade europeia é muito
da necessidade de introduzir mais complexidade 0
resultado de um ponto de ancoragem (Ansat-
na universidade e não maior simplificação, me zpunl<t) muito particular, como escreveu Auerba-
parece essencial, sobretudo quando falamos de ch num dos seus textos sobre Filologia. É certo
conhecimento, de conteúdo, de entender o senti- que a voragem global não nos pode fazer esque-
do das coisas. Claro que ter memória e conhecer cer o nosso Ansatzpunl<t, mas ele não deixa, nas
as tradições de reflexão intelectual é essencial. condições do presente de ser atravessado jus-
Parece uma evidência dizer que temos de olhar tamente pelas condições do sistema global. Foi
para trás antes de avançar, de conhecer Sófocles este o sentido da pergunta que te fiz. A nossa
e Shakespeare, a tradição escolástica e o Ilumi- sala de aula global é ainda muito centrada no
nismo, acompanhar a teoria crítica e a descons- Ansatzpunl<t ocidental ou europeu. Mesmo que
trução, para perceber de onde vimos, antes de os alunos cheguem da Índia ou Brasil as refe-
pensar na teoria dos afetos e outras tendências rências continuam a ser, em grande parte, as da
dos últimos anos. Na verdade, trata-se de ao ler grande tradição ocidental, mas tudo isto está a
Knausgaard e Auster saber que há Dostoievsky mudar. E apesar de interessante, não estou certa
e Balzac. Mas aqui, também temos, caro amigo, de que concorde inteiramente com a ideia de que
um ponto de discordância. Se discordo com a as Humanidades são apenas a patine intelectual
visão expansionista da instrumental "universida- da universidade - como disse o Presidente de
de empresarial de excelência" para mares nunca Stanford. Têm, podem e devem ser muito mais
dantes navegados em África, na Ásia, o certo é do que isso. Devem, na minha humilde opinião,
Hans Ulrich Gurnbrecht

informar a ação, constituindo uma base para pen- dirigir aos alunos. Disse naturalmente que sim.
sar qualquer área do nosso complexo presente. o comentário foi uma lição em transculturalida-
Para o mês que vem, vou lecionar a Macau, de. Disse-me que, sem o saber, tinha colocado
num ato que me faz sempre repensar de forma os estudantes numa situação embaraçosa ao di-
estratégica o meu Ansatzpunkt. Conto-te uma zer-lhes para não hesitarem em levantar o braço
história engraçada que se passou há dois anos. para pedir uma explicação adicional. O mestre
Tinha sido informada pela universidade local nunca se questiona, e um ato desse tipo da par-
(USJ) que alguns alunos tinham um inglês de ní- te de qualquer estudante seria desrespeitar-me.
vel básico e que era necessário ter esse facto em Do mesmo modo, perguntas gerais só funciona-
atenção nos seminários, mas que tinha também vam com o grupo internacional, o aluno chinês
falantes nativos no mesmo seminário. Numa aula respondia apenas quando diretamente interpela-
sobre A Obra de Arte na Era da Sua Reprodu- do. E assim foi que aprendi a relativizar o meu
tibilidade Técnica, de Walter Benjamin, preparei Ansatzpunkt. Uma lição importante em como
um PowerPoint simples para resumir os pontos é necessário pensar a partir do local e no local
principais, mas pedi-lhes logo que não hesitas- onde se está (to think where one is), como escre-
sem em levantar o braço para pedir explicações veu o Walter Mignolo.
adicionais, Ao longo da aula, fiz algumas pergun- Para estes alunos, Sófocles não funcionaria
tas gerais, a que responderam apenas os alunos nunca como o guardião de uma tradição intelec-
internacionais, perante o silêncio dos estudantes tual marcante, seria uma nota de rodapé numa
chineses. No final da sessão, o meu assisten- estrutura culturalmente incompreensível. Na Chi-
te perguntou delicadamente se podia fazer um na, o ensino secundário não comporta qualquer
comentário à aula e à forma como me estava a base filosófica ou pensamento abstrato, não
Hans Ulrich Gumbrecht A Filolog ia e o Present e

foram expostos à ideia de "crítica" e muito menos neste mundo conflitual de culturas, de modelos
à singularidade do juízo estético ou de criação ar- contraditórios de conhecer? Uma resposta pro-
tística na tradição do pensamento ocidental. Na visória pode obrigar-nos a pensar com Hannah
base dos ensinamentos de Confúcio está justa- Arendt - de novo no paradigma ocidental - que a
mente o ideal de que será grande o que bem imi- tarefa daqueles que se ocupam do estudo huma-
tar, não o que criar. nístico das culturas é entender justamente esta
O meu ponto é que o nosso modelo europeu/ diversidade, para termos a humildade de pensar
/ocidental de desenvolvimento assenta em gran- que o Outro também pode ter razão.
de parte numa educação que promove a capaci- O email vai longo e deixou de ser uma respos-
dade de analisar, de julgar, de decidir, de criticar. ta estruturada, para se configurar como reação a
Até agora, as sociedades ocidentais têm demons- um estímulo. Com alguma ousadia, gostaria que
trado a necessidade de articular o "pensamento fosse o primeiro estádio de uma conversa a fazer-
de risco" que nos faz avançar com as bases con- -se a partir da tua luminosa palestra.
ceptuais que atravessam o pensamento huma- Agradeço a generosidade imensa do diálogo e
nístico. Mas na verdade, não podemos falar de envio de uma Lisboa soalheira um grande abraço
modelo global ou universal, de um modelo único e votos de uma excelente semana.
de conhecimento. A realidade do saber feito em Isabel
rede não pode ignorar a diversidade cultural dos
fluxos globais. A universidade não pode ser pen-
sada fora desta realidade. E muito menos as Hu-
manidades, ou a prática da Filologia. O desafio é
então como organizar a defesa das Humanidades
Han s Ulrich Gumbrecht A Filologia e o Presente

De: Hans Ulrich Gumbrecht No que diz respeito à Universidade, nós basi-
Data: 28 de abril de 2015 às 23:52:07 WEST camente concordamos na maioria dos pontos - e
Para: Isabel Gil isso não me surpreende. Mas como acredito que
em termos intelectuais, o desacordo é muito mais
produtivo do que o consenso, vou tentar salientar
e explicar alguns dos pontos de não convergência.
Se calhar até concordamos relativamente ao
Finalmente, após a intensa e bela décima meu primeiro ponto - mas creio que as univer-
(e também final) sessão do meu seminário so- sidades europeias em geral estão a seguir um
bre Balzac, consigo finalmente "escrever" (ditar) caminho completamente errado. Claro que se
aquilo em que tenho andado a pensar toda a se- pode dizer que elas (ao contrário das melhores
mana e que é, de certa forma, uma resposta à universidades americanas) são mais sensíveis às
tua mensagem sobre a "Universidade", que por exigências do nosso presente, que estão a reagir
sua vez foi também uma resposta à minha lição de forma mais eficaz à transformação da universi-
na Universidade Católica. Mas antes de falar de dade numa instituição que dá formação profissio-
instituições, deixa-me dizer outra vez que aque- nal a cerca de 40% da sociedade. Mas se isto é
la quinta-feira contigo e com os teus colegas foi uma meta válida, então o preço é, estou em crer,
simplesmente bela; e de novo interessante, e a profunda e irreversível destruição daquilo que
divertida, um prazer a cada minuto. Embora eu era o cerne da tradição universitária. Ora quando
normalmente não tenha problemas com palavras, me refiro à "Universidade" e ao seu "cerne", faço-
sei que não tenho forma de dizer como estou feliz -o com um enquadramento de referência muito
com a nossa amizade. mais reduzido do que o teu. Claro que eu sei que
Hans Ulrich Gumbrecht A Filolo gia e o Presente

desde os séculos x11 e x111 há instituições a que como Marburgo ou Tübingen tinham menos de
chamamos "universidades", mas creio que ten- 2000 estudantes, que correspondiam a um seg-
demos sempre a subestimar quão basicamente mento da sociedade manifestamente menor do
diferentes eram daquilo a que hoje damos o mes- que aquele que hoje as universidades cobrem.
mo nome. Na minha opinião, as universidades E neste sentido, reconheço que instituições
começam com aquilo que associamos ao termo muito maiores necessitam de estruturas burocrá-
depois de 1800 e tiveram o momento mais alto ticas e administrativas que não eram necessárias
do seu desenvolvimento cerca de I 00 anos mais em 1900. Em Stanford, por exemplo, muito pou-
tarde, mais precisamente nas três primeiras dé- cas posições administrativas (alguns Diretores de
cadas do século xx. Faculdade, o Vice-Reitor Académico - Provost
A grande época das "ciências clássicas", a era - e o Reitor) são ocupadas por (antigos) Profes-
de Einstein, Planck, Schródinger foi também sores, ou seja, por antigos intelectuais. No meu
o momento em que algumas das mentes mais departamento de Literaturas, Culturas e Línguas,
brilhantes da nossa profissão - isto é da crítica a pessoa com mais responsabilidades adminis-
literária - começaram a surgir. Estou a pensar é trativas é um administrador profissional excelente
claro em Vossler, Auerbach, Spitzer e outros. Este que, como se especializou em gestão universi-
não é de todo o lugar para traçar o rascunho de tária, conhece bem as necessidades administra-
uma nova história institucional da universidade tivas da instituição, mas nunca teria a ambição
ocidental (!), mas queria que soubesses naquilo de representar qualquer disciplina académica ou
em que estou a pensar quando falo da era de materializar uma atividade intelectual.
florescimento da universidade. Não me esqueço, O que me pergunto seriamente é se a univer-
certamente, de que naquele tempo universidades sidade, tal como a conhecemos, não se tornou
Hans Ulric h Gumbrecht A f ilologia e o Presente

uma forma estranhamente ineficaz e grotesca- ascender ao nível de excelência internacional é


mente expansiva de "transmitir" conhecimento a possibilidade e liberdade para desenvolver tais
pré-profissional. Como imaginas, sou tudo me- perfis específicos a nível local. Esta é uma pre-
nos um fã de educação à distância, mas não missa de que nunca se fala em contexto europeu.
consigo entender a razão pela qual alguns tipos Não percebo, por exemplo, porque é que o siste-
de conhecimentos básicos (o meu exemplo fa- ma alemão não insiste, pelo menos, na premissa
vorito é "anatomia") não são exclusivamente me- constitucional de que a gestão e o modelo das
diados por via eletrônica. Se assim fosse, talvez universidades, e da educação em geral, é prerro-
se conseguisse manter a universidade com uma gativa dos 16 estados federais e não do governo
dimensão muito menor, talvez com a dimensão (central) de Berlim . E mesmo num país muito mais
que teve nas décadas após 1900. pequeno, como Portugal, acredito que as univer-
sidades, especialmente universidades privadas,
O outro problema das universidades euro- como a Católica, deveriam enfatizar a sua indivi-
peias, que considero muito mais surpreendente, dualidade em vez de tentar adaptar-se a padrões
é, na minha opinião, a vontade absoluta de en- europeus ou "globais".
contrar "soluções generalistas", tornar as coisas
compatíveis a nível europeu, em vez de admitir, e Esta é uma divergência que temos. Criar um
mais, cultivar, desenvolvimentos locais particula- currículo ou uma atmosfera em seminário que
res. No estudo sobre as melhores universidades consiga conciliar estudantes de todo o lado, pa-
internacionais (que referi brevemente na minha rece-me uma intenção basicamente falhada -
palestra), descobri que a uma condição essen- algo que é inatingível. Não seria muito melhor ser
cial (talvez até a condição mais importante) para específico, português, católico, orientado para os
Hans Ulrich Gurn brecht A Filologia e o Presente

estudos de media e os estudos de cultura, como (o investigador potencial) aproveita a presença


é o vosso caso, em vez de tentar ser, por exem- de estudantes para nutrir a sua complexidade
plo, igual a Stanford, ao MIT ou Harvard? intelectual, como os estudantes usufruem da
Outro problema que mal abordei é a tendência sua presença no mesmo sentido . E é isto que,
europeia de distinguir entre ensino e investiga- como estrutura básica, paradoxalmente se pare-

ção (e não quero entrar em detalhes acerca do ce manter apenas nas universidades mais pobres

meu ceticismo no que diz respeito à utilização da Europa, ou seja, as universidades que não se

do termo "investigação" pelas Humanidades). podem dar ao luxo de dar bolsas de investigação

Acredito que, no nosso melhor, aquilo que esta- aos seus melhores intelectuais (e professores).

mos a tentar realmente fazer tem mais a ver com Na tua carta, criticas a tendência cega da Euro-

"contemplação" do que "investigação", que é um pa copiar "o sistema americano" e tens razão, até

conceito sobretudo marcado pelas ciências na- porque é justamente esta tendência que a impede
turais. De qualquer forma , o problema europeu de desenvolver perfis locais específicos. Contudo,

parece ser o de que quando alguém demonstra a importância do ensino e o prestígio intelectual e

um talento especial (o mesmo é dizer quando institucional a ele associado (e como imaginas, so-
tem sucesso) em "investigação", o que pode es- bretudo ao ensino a nível graduado, isto é, de licen-

perar é ser atraído para um "centro de estudos" , ciatura) é incomparavelmente maior nas melhores
ou é-lhe oferecida uma sabática , que o que faz é universidades americanas do que na Europa. Se
afastá-lo(a) dos estudantes. Dizer que Humboldt eu fosse o Ministro da Educação de qualquer es-

era a favor da "unidade de investigação e ensi- tado federal alemão, recusaria investir em qualquer
no" é relativamente banal - o que interessa é a instituto de investigação que não estivesse asso-

convicção de Humboldt de que tanto o professor ciado a ensino pelo menos há uma década.
Hans UlriGh Gumbrecht A Filologia e o Presente

Finalmente , uma palavra sobre as Humani- Stanford, o que parece ser um daqueles movi-
dades. Estava a falar a sério quando insisti, na mentos que injeta nova energia tanto nas Huma-
palestra, que a discussão acerca do desapareci- nidades como nas Artes.
mento das Humanidades no futuro próximo tem
de se fazer, sem ser de um modo que já pressu- E basta por hoje, minha querida Isabel. Deixa-
põe uma resposta positiva, mesmo antes de se -me terminar esta "carta" , apesar de ser apenas
pensar a situação atual. Francamente, para mim, um email, dizendo o quanto admiro a tua dupla
não se trata de pensar que as Humanidades es- valência como Vice-Reitora (e pelo que sei, com
tão "ameaçadas" por políticos e gestores que não sucesso) com uma vida intelectual ativa. É mui-
entendem o seu valor. O problema mais profundo to bonito e algo para o qual simplesmente nunca
é que em muitas universidades os representan- tive talento.
tes das Humanidades parecem ter perdido o seu E basta por hoje, um grande abraço e uma
próprio (ou mais íntimo) fascínio intelectual. Às enorme gratidão pelo dia passado na universida-
vezes penso que investimos demasiada energia de.
para manter as Humanidades "sem condições", O teu amigo,
ao passo que encarar o seu possível fim de forma Sepp
aberta parece produzir perspetivas e iniciativas
interessantes justamente para as Humanidades e
as Artes 10 .
Poderia discutir também que parece existir um
movimento pendular das Humanidades - na fór-
mula Artes e Humanidades - para as Artes em
Notas 8 Urbana e Chicago (University of lllinois Press), 2003.
9 Referência à The Lisbon Consortium Lecture, proferida por
Hans Ulrich Gumbrecht, no dia 19 de março de 2015 na UCP,

Para uma análise recente, concisa e bem documentada desta intitulada "Ensino Doutoral em Humanidades: Há Luz ao Fundo

evolução (levan do a um presente predominantemente anglo- do Túnel?", e que retoma as questões invocadas no ensaio

-americano), ver James Turner: Philology The Forgotten Origins A Filologia e a complexidade do presente.

of the Modem Humanities. Princeton and Oxford (Princeton 1O Gumbrecht refere -se a "Humanities and Arts", que se traduziria
Univers ity Press), 20 14. literalmente por Humanidades e Letras. Opta-se por Humani-

2 Na cultura ocidental, é Michel Serres quem tem analisado e en- dades e Artes, já que em português Letras e Humanidades

fatizado mais claramente essa inseparabilidade entre conheci- são termos absolutamente sinônimos e não configuram o lastro
mento e textualidade: Petite Poucette. Paris (Gallimard), 2013. estético que o termo "Arts", em inglês, também envolve. (Nota
de Isabel Capeloa Gil.)
3 Ver o meu livro: Our Broad Present. New York (Columbia Uni-
versity Press), 2014.

4 Ver acima de tudo André Leroi-Gourhan: Le geste et la paro/e


(2 vo ls.). Paris (Aibin Michel), 196411965.

5 Ver a introdução do meu livro: Dimensionen und Grenzen der


Begriffsgeschichte. Muenchen (Wilhelm Fink Verlag), 2006.

6 Fran co Moretti: Oistant Read1ng. The Formation of an Unortho -


dox Literary Critic. New York (Verso), 2013.

7 Para um introdução sólida e provocadora aos debates alemães


em curso sobre teoria e história dos med1a , escrita por três dos
seus protagonistas mais importantes, ver Bernhard Siegert 1
I Friedrich Balke I Joseph Vogl: Mediengeschichte nach Friedri-
ch Kittler. Muenchen (Wilhelm Fink Verlag), 20 13.
Títulos publicados
O que é Portugal? O que somos e porque o somos Direito de asilo e refugiados na ordem jurídica
MANUEL CLEMENTE JORGE MIRANDA

Outra vez sonâmbulos. A Europa e o fim da Pax Morte a pedido. O que pensar da eutanásia
Americana WALTER OSSWALD

JOSEPH H. H. WEILER
Fátima. Mensagem de misericórdia e de esperança para
Esperar contra toda a esperança o mundo
JOS E TOLENTINO MENDONÇA ANTÓNIO MARTO

Lampedusa. Não podemos ignorar Como defender hoje a Dignidade Humana


PAPA FRANCISCO, PIETRO GRASSO MARIA DA GLÓRIA GARCIA

Verdade e Erro em História A Identidade Europeia


JOS ~ MIGUEL SARDICA CARDEAL PIETRO PAROLIN

Página Sagrada Os Paradoxos da Europa


ÁLVARO SIZA MATEJ ACCETIO

Um mapa para pensar a religi ão A Missão do Papa Francisco


ALFREDO TEIXEIRA Chaves para entend er. Razões para apoiar
CARDEAL SEÁN O ' MALLEY, OFM CAP
O segredo da justiça
PEDRO GARCIA MARQUES Criatividade: a função cerebral improvável
ALEXANDRE CASTRO CALDAS
Cadernos de guerra. Na frente
LOU IS LAVELLE Edmund Burke. A virtude da consi stência
JOÃO PEREIRA COUTINHO
Humanidade(s). Considerações radicalmente
contemporâneas
ISABEL CAPELOA GIL
Título A Filologia e o Presen te
Autor Hans Ulrich Gumbrecht
Coleção Argumento

© Universidade Católica Editora

Revisão Editorial António Brás


Design da Coleção Ana Luísa Bolsa I 4 ELEMENTOS
Paginação acentográfico
Impressão e Acabamento IDG - Imagem Digital Gráfica, Lda
Tiragem 600 exemplares
Depósito Legal 424719/17
Data abril 2017

ISBN 9789725405505

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