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O NACIONALISMO SINTÉTICO EM CONTEXTO

IBÉRICO SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO

Jerónimo Pizarro
Rui Sousa

Recentemente, numa colecção particular, reencontrou-se o seguinte texto,


que passamos a transcrever:

Todo <o>1 nacionalismo superior é um universalismo especial. O atheniense não


dizia, imitando por anticipação o pobre Barrès, «Ha verdades athenienses indepen-
dentes das verdades de outras partes do mundo». Dizia, porque era de uma grande
raça, «Ha só uma verdade, e é em Athenas que ella se vê».
Ha trez especies de nacionalismo — o nacionalismo tradicionalista, que faz consistir a subs-
tancia da nação nas formulas mortas das tradições visiveis; o nacionalismo espiritual, que faz
consistir essa sunstancia num typo vivo de mentalidade; <ha> o nacionalismo synthetico,
que de synthetizar a universalidade das experiencias e das culturas. São exemplos d’esses trez
typos de nacionalismo: do primeiro, os integralistas e os pseudo-catholicos <->/(\pois outros
não ha em Portugal);2 do segundo, Pascoaes, que tem a alma portugueza por uma fusão do
espirito christão e do espirito pagão; do terceiro, os homens do Renascimento, como Ca-
mões, que via o mundo de Portugal, porém de Portugal viam todo o mundo.
Expor é escolher. Não ha que hesitar entre estes trez nacionalismos. O maior é o
melhor. É certo que o nacionalismo universalista dissolve com facilidade a naciona-
lidade. Mas vale mais uma vida curta e grande que uma vida longa e baixa. Uma
pedra dura muito mais que um homem, porem não fazemos do tradicionalismo
organico das pedras o exemplo do valor das coisas.3
1
O símbolo <> refere-se a um segmento autógrafo riscado pelo autor.
2
Novamente, passagem eliminada pelo autor, substituída por outra lição posterior, assinalada pelo símbolo \.
3
Este documento, que pertenceu a Manuela Nogueira e actualmente integra uma colecção particular, foi dado
a conhecer num artigo recente, «A colecção pessoana de Santo Tirso: adenda» (Pizarro, 2019; em linha: https://doi.
org/10.26300/4dkr-hd11).

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Neste texto, Pessoa critica Maurice Barrès, que desenvolveu um nacionalis-
mo semelhante ao de Teixeira de Pascoaes, ligado às tradições locais de algumas
províncias do país, e que se manteve próximo de Charles Maurras, «pseudo-ca-
tholico» e teórico de um nacionalismo integral, alvo de alguns ataques de Ricardo
Reis4. Reis teria nascido quando Pessoa ergueu «uma theoria neo-classica», de tipo
«scientifico», deixando-se «ir na onda» de um «reacção momentanea» contra duas
correntes, «tanto contra o romantismo moderno, como contra o neo-classicismo
á Maurras» (Pessoa, 2016: 351-352).
Importa começar por reter que, para Pessoa, existiam três nacionalismos: um
de tipo tradicionalista, próprio do Integralismo Lusitano; outro de tipo espiritual,
representado por Pascoaes; e um último, de índole sintética, de que os «homens
do Renascimento», Camões e ele próprio, em continuidade com esse momento
crucial da cultura portuguesa, seriam os mais representativos exemplos.
O texto transcrito lembra outro anterior, publicado em Pessoa Inédito (1993)
e reeditado em Sensacionismo e Outros Ismos (2009). Citemos a segunda metade:

Dos trez nacionalismos, o primeiro e o inferior é aquelle que se prende ás tradições


nacionaes e é incapaz de se adaptar ás condições civilizacionaes geraes. É, na literatura,
o nacionalismo de Bocage e dos arcades em geral, até Castilho. Caracterisa-o nas suas
relações com a civ[ilização] geral o estar sempre em atrazo e preso a tradições.
O segundo nacionalismo é aquelle que se prende, não ás tradições, mas á alma di-
recta da nação, aprofundando-a mais ou menos. É o de um Bernardim Ribeiro, no
seu grau inferior, e de um Teixeira de Pascoaes no seu alto grau.
O terceiro nacionalismo é o que n’um nacionalismo real integra todos os elementos
cosmopolitas. É, no seu grau inferior, o de Camões; no seu alto grau ainda o não
tivemos entre nós, mas ha-o em Shakespeare, em Goethe, em □5 – em todos os
representantes supremos das culminancias literarias das nações que ahi chegaram
(Pessoa, 2009: 67).
4
Apenas como exemplo, veja-se a seguinte passagem, de cerca de 1914: «Maurras e os seus são os romanticos
da Disciplina. Interpretam a disciplina romanticamente. Aproveitam o catholicismo e o monarchismo como discipli-
nas — processo de puro romantismo; ao passo que um classicista aproveitaria da religião catholica e da instituição
monarchica apenas aquillo que conviesse á disciplina como disciplina, reparando sempre que essa disciplina tem de
ser applicada ao nosso tempo. (Mas eles arranjam um conceito abstracto de Disciplina)» (Pessoa, 2016: 298-299).
5
O símbolo □ indica espaço deixado em branco pelo autor. Quanto a nós, é provável que Pessoa pensasse no
seu próprio caso como exemplo a integrar esse panteão.

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A classifica dos nacionalismos em três tipos, «tradicionalista», «integral» e
«cosmopolita», ocorre novamente num esquema inédito, contemporâneo do tex-
to anterior:

Exemplos literarios

Nacionalismo tradicionalista:
1º grau: <C>
2º grau: Castilho.
3º grau: □

Nacionalismo integral:
B[ernardim] Ribeiro 1. Cantigas populares6. 3rd poets of B
2nd poets of <A>/C\
2. Bernardim Ribeiro. 2nd poets of B
1st poets of C
Pascoaes 3. Teixeira de Pascoaes. 2nd poets of A
1st [poets] of B

Nacionalismo cosmopolita:
1. Camões 1st poets of period C.
2nd poets of B
3rd [poets] of A
2. <Spec> Guerra Junqueiro 2nd poets of A
1st poets of B.
□ 1st poets of A.7

Do nacionalismo tradicionalista, os «exemplos literários» seriam pelo menos


Bocage (1765-1805), Castilho (1800-1875) e os escritores que integraram a Ar-

6
Pessoa parece ter corrigido a primeira disposição, introduzindo um elemento novo na sequência que inicial-
mente começaria por Bernardim Ribeiro.
7
Documento inédito, com a cota 55-33r-v. Novamente, pode ver-se o espaço deixado em branco pelo autor
como indicação possível de uma certa relutância em explicitar o seu estatuto na grelha histórico-literária apresentada.

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cádia Lusitana e a Nova Arcádia, representando uma literatura circunscrita entre
o período áureo do Renascimento e a emergência de uma nova etapa regenerado-
ra, já no século XIX.
Do nacionalismo integral, que Pessoa também chegou a denominar «espiri-
tual», fariam parte casos na linha de «um Bernardim Ribeiro [1482-1552], no seu
grau inferior, e de um Teixeira de Pascoaes [1877-1952] no seu alto grau».
Finalmente o nacionalismo cosmopolita ou sintético congrega os dois mo-
mentos cimeiros da literatura portuguesa, conforme idealizada por Pessoa: o pe-
ríodo renascentista, culminando em Camões (1524-1580), e o período que
conduziria à demarcação do próprio lugar de Pessoa, surgindo com Guerra Jun-
queiro (1850-1923).
No rascunho de um texto endereçado a «V. Exas», publicado em Da Repú-
blica (1978), e também reeditado em Sensacionismo e Outros Ismos (2009), Pessoa
volta a expor a sua teoria das três espécies de nacionalismo:

(1) Ha o nacionalismo tradicionalista, que é o que faz consistir a substancia da


nacionalidade em qualquer poncto do seu passado, e a vitalidade nacional na
continuidade historica com esse poncto do passado. Diversos são os criterios
com que se pode buscar esse poncto do passado, mas, seja qual fôr o criterio que
se emprega, a essencia do processus é a mesma.
2) Ha o nacionalismo integral, que consiste em attribuir a uma nação determina-
dos attributos psychicos, na permanencia dos quaes e fidelidade social aos
quaes, reside a vitalidade e a consistencia da nacionalidade. O nacionalista in-
tegral – por exemplo, Teixeira de Pascoaes – não se apoia na tradição, mas em
um psychismo collectivo concebido como determinado, em que essa tradição
ou, tida como valendo, se apoia, ou, dada como sem valor permanente, se
apoiou para existir.
(3) Ha finalmente o nacionalismo synthetico, que consiste em attribuir a uma na-
cionalidade, como principio de individuação, não uma tradição determinada,
nem um psychismo determinadamente tal, mas um modo especial de syntheti-
sar as influencias do jogo civilizacional.

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O Integralismo Lusitano é um nacionalismo tradicionalista.
O saudosismo de Teixeira de Pascoaes é um nacionalismo integral. Busca no passa-
do a manifestação nella da alma nacional (suposta existente)
Outro, e differente do de qualquer dos outros, é o processo adoptado pelo naciona-
lista7 synthetico. Para elle não ha propriamente uma alma nacional; ha apenas uma
direcção nacional. Uma nação não tem, como um individuo, uma personalidade
psychica que, embora sujeita a alterações e a desvios, permanece, na sua essencia,
auto-identica. Uma nação tem apenas, dados os factores inalienaveis de situação
geographica, um determinado papel no conjuncto das nações, de que é formada
uma civilização.
O nacionalista tradicionalista repelle o presente e o estrangeiro. O nacionalista inte-
gral repelle o estrangeiro. O nacionalista synthetico acceita um e outro, buscando
imprimir o cunho nacional não na materia, mas na forma, da obra.
Qual tem razão? Cada um a tem em seu campo, mas o nacionalista integral8 é que
a tem supremamente, porque só elle está em todos os campos ao mesmo tempo
(Pessoa, 2009: 67-69).

Designando-o como sintético, cosmopolita ou integral, o certo é que parece


claro que Pessoa queria ficar associado a um entendimento do nacionalismo dis-
tinto, e mesmo oposto, quer ao representado pelo Integralismo Lusitano, quer ao
que encontra no Saudosismo de Pascoaes o seu eixo fundamental. E, bem ao seu
modo, esse tipo de nacionalismo, na sua essência, define-se através do que parece
ser um inequívoco paradoxo ou oxímoro, notado pelo próprio, ao contrapor o
nacionalismo e o cosmopolitismo: «A este systema [o nacionalismo] oppõe-se o
cosmopolitismo, que pretende que a vitalidade de uma nação depende da sua
adopção de principios civilizacionaes que não são peculiares a nação nenhuma,
mas adaptaveis a todas»9. Assim como Pessoa declarou mais tarde ser um «sebas-
tianista racional» (Pessoa, 1998: 251), nos anos de Orpheu (1915-1917) sugeriu
8
Variante: synthetico.
9
Documento inédito, com cota 55-32r. Num outro documento, com cota 48H-54, pode também ler-se, de-
pois de um esquema que constitui «A theoria dos periodos nacionaes»: «1. – Nacionalismo synthetico, ruptura com o
passado. | 2. Nacionalismo analytico, critico com respeito ao passado, mas apenas critico. 3. – Nacionalismo tradicio-
nalista».

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ser um «nacionalista cosmopolita», o que, para os integralistas e os saudosistas,
não fazia muito sentido.
Com efeito, como importa ainda evidenciar em toda a sua extensão, Pessoa
destaca-se no contexto da literatura portuguesa, também, pelo facto de ter sido o
primeiro a delinear um projecto amplo e ambicioso de integração da cultura por-
tuguesa num quadro abrangente, europeu e ocidental desde logo, mas também
extra-europeu, em contestação parcial relativamente às poderosas e influentes
imagens de Portugal de origem oitocentista.
Ora, como é conhecido, Eduardo Lourenço reflectiu profundamente sobre o
problema da identidade portuguesa e os seus reflexos em termos de vivências de
um nacionalismo condicionado pelas inscrições ibérica, europeia, colonial e oci-
dental. Embora não recorrendo ao mesmo tipo de termos utilizados por Fernan-
do Pessoa, parece-nos evidente que as concepções de Eduardo Lourenço se
encontram na mesma linha pelo menos em dois aspectos.
Por um lado, é constante a intenção de expor diferentes imagens da nacio-
nalidade produzidas pelas elites políticas e intelectuais ao longo dos tempos, si-
tuadas entre a obsessão pelo isolamento autossuficiente, a experiência da
marginalização face aos grandes centros europeus e o exercício raro de um equilí-
brio entre dois vectores diversos da cultura europeia, o apelo racionalista além-
-Pirenéus e o pendor barroco e supra-continental das nações peninsulares.
Por outro lado, derivando dessa dualidade, a convicção de que Portugal e
Espanha, e sobretudo Portugal, se destacam pela capacidade de conjugar os ecos
vividos com diferentes graus de aproximação e distanciamento face ao influxo
europeu, culminando no engenho de criarem prolongamentos europeus um pou-
co por todo o mundo, cuja novidade é depois reconduzida ao denso e dinâmico
processo de elaboração da ideia de Europa como cultura.
Num aspecto como no outro, Eduardo Lourenço aproxima-se do tipo de
nacionalismo baseado na consciência profunda das grandes preocupações do seu
tempo e na necessidade de delimitar a identidade nacional – ou ibérica – a partir
de uma capacidade gradual de síntese dos grandes processos empreendidos pelas
nações europeias. É uma visão do nacionalismo que visa, em sintonia com a de
Pessoa, a definição adulta e salutar de uma forma de os povos ibéricos consegui-

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rem finalmente estar à altura de conquistar uma voz activa e dinâmica no inces-
sante movimento de transformação e metamorfose da Europa entendida como
cultura.
Ao longo das últimas décadas, quase todos os hermeneutas da obra de Lou-
renço procuraram aprofundar o problema da centralidade conferida ao diálogo
entre as identidades portuguesa, ibérica e europeia. Os críticos tendem a estar de
acordo quanto às grandes linhas operativas do pensamento de Eduardo Lourenço,
acentuando o peso particular conferido ao confronto com a identidade portugue-
sa, nos seus mitos consagrados e nos seus episódios mais impensados, normal-
mente em diálogo com o contexto mais vasto da Europa. Importa-nos reter dois
eixos relevantes.  
Em primeiro lugar, sublinhe-se que, se as várias abordagens concordam em
assinalar a constância produtiva da abordagem de Lourenço à configuração de
imagens estruturantes da identidade portuguesa e ao impacto do confronto com
a Europa no modo como se desenvolveu a ciclotímica vivência da consciência
identitária nacional. Nota-se em algumas leituras a identificação de etapas no
percurso reflexivo do autor, expresso numa certa evolução no modo como com-
preende a Europa. Miguel Real, por exemplo, descreve a obra de Lourenço através
de três etapas, que determinam primeiro uma transformação no ângulo de pers-
pectiva e depois uma expansão da análise. Assim, se na primeira fase do pensa-
mento do autor existe um enfoque na criação de interpretações do percurso
colectivo português por parte de gerações sucessivas de escritores com grande
influência, sobretudo desde Alexandre Herculano e Almeida Garrett, surgindo a
Europa como grande horizonte de cultura do qual de algum modo o pensamento
português se havia desvinculado, num segundo momento o olhar do ensaísta ter-
-se-ia deslocado para a própria constituição da Europa. Finalmente, num terceiro
momento, coincidente com as últimas três décadas de vida de Lourenço, seria a
integração da Europa no mais vasto panorama da geopolítica mundial a estar em
causa, sobretudo nas suas relações com os Estados Unidos da América e com os
vários Outros culturais (Real, 2008: 21-128).
Este ponto de vista é relevante para a abordagem que desenvolvemos, sobre-
tudo atendendo ao que Miguel Real vê como transformação na valorização da

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Europa por parte de Eduardo Lourenço, evoluindo de uma oposição quase com-
pletamente uniforme entre o atraso ibérico e o esplendor da Europa da Moderni-
dade para uma mais complexa compreensão do contraponto que culmina na
identificação de duas formas de entender a cultura e, com ela, na descrição de
duas Europas diversas e complementares. A nosso ver, esta evolução poderia ser
comentada à luz de algumas observações desenvolvidas por Eduardo Lourenço,
por exemplo no incisivo texto Pequena Meditação Europeia (2011). Ao situar a
identidade portuguesa no quadro de uma identidade europeia plural, correspon-
dente a várias etapas de desenvolvimento cultural ou mais precisamente a diferen-
tes formas de valorização de um passado comum, Lourenço observa que a própria
Geração de 70 transitou de um certo elitismo cultural completamente voltado
para o paradigma da cultura científica além-Pirenéus para um momento posterior
em que conseguiram parcialmente rectificar a sua incompreensão relativamente à
pertença portuguesa a uma outra noção de Europa, mais antiga e fundadora
(Lourenço, 2011).
O conteúdo da reflexão de Eduardo Lourenço, e de Fernando Pessoa de um
modo ainda mais contextualmente evidente, encontra-se inscrito na densa discus-
são a respeito do destino da Europa entendida enquanto espaço cultural cujos
rumos e privilégios se viram feridos de morte nas primeiras décadas do século XX.
Como observa Maria Manuel Baptista, a proposta do ensaísta aproxima-se em
muitos aspectos das teses defendidas por Edmund Husserl numa conferência
datada de 1935, «La Crise de l’Humanité Européenne et la Philosophie», ecoan-
do nomeadamente o peso conferido a uma certa noção de cultura teórica de
matriz grega. A ênfase colocada no pendor universalizante da cultura filosófica e
científica desenvolvida a partir desse bastião fundador grego é, obviamente, um
elemento essencial para a leitura que Eduardo Lourenço faz da Europa e do grau
de afastamento que, numa primeira fase, a Península Ibérica manteria em relação
ao espaço geográfico e simbólico da verdadeira cultura. No entanto, como Maria
Manuel Baptista também salienta, existe no autor um espaço crescente para a
denúncia dos excessos totalitários de uma certa obsessão da cultura europeia pelo
pensamento abstracto e pela consequente tentação de domínio sobre todas as
outras manifestações de cultura (Baptista, 2003: 222-253).

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Trata-se, como defendemos neste texto, de um sintoma de evolução do pen-
samento de Eduardo Lourenço, evolução essa que se deve ao embate dinâmico
entre duas grandes pulsões que tendem a vir ao de cima sempre que ocorrem
rupturas repentinas no percurso cultural português: por um lado, Lourenço
afasta-me quase por instinto dos excessos da reacção defensiva, de forte cunho
nacionalista, às consequências de um súbito confronto com os grandes centros de
cultura, o qual, a partir de meados do século XIX, proporcionou à Geração de 70
os elementos necessários para percepcionarem a real dimensão do suposto abismo
existente entre a nação portuguesa e o exterior europeu; por outro lado, a crítica
aos dogmas e às limitações do que emana desses centros conduz também à neces-
sidade de um afastamento progressivo relativamente ao posicionamento acrítico
dos que caem no culto da internacionalização a todo o custo e do elogio fácil a
tudo quanto é estrangeiro. Na linha, portanto, do diagnóstico pessoano ao pro-
vincianismo português, que não é mais do que uma transversal exigência de uma
terceira via capaz de ombrear, quer com o nacionalismo estreito, alienante e de-
fensivo representado pela Renascença Portuguesa e pelo Integralismo Lusitano,
quer com os movimentos internacionalistas cujo programa passa pela neutraliza-
ção de todas as especificidades identitárias. É desse mesmo teor a apologia de um
entendimento do nacionalismo que valoriza a singularidade de cada cultura na-
cional na exacta medida em que esta dialoga, sem se submeter, ao património
comum de que também deriva e em que inevitavelmente participa.
O pensamento de Eduardo Lourenço sofre, quanto a nós, uma evolução se-
melhante, passando de uma certa univocidade na atribuição da grande cultura
europeia a uma das suas componentes para uma mais equilibrada e complexa
perspectiva que é, também, em parte, uma forma de deslocar os grandes conceitos
analíticos a que recorre para a problemática da própria identidade europeia em
permanente (des) construção crítica, sobretudo por contraste com os novos gran-
des centros de cultura mundiais. Dessa metamorfose do pensamento de Lourenço
deriva um elemento essencial à proposta que fazemos: a defesa de uma singulari-
dade cultural ibérica, que é simultaneamente uma forma específica de viver a
nacionalidade e uma manifestação peculiar da experiência do património comum
europeu e da capacidade de transfigurar os seus valores conjugando-os com outros

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elementos ou expandindo-os para outros horizontes. É essa operação crítica que
permitirá a Lourenço defender que, em grande medida, a Península Ibérica soube
ser mais europeia do que a restante Europa, contribuindo para o prolongamento
de uma vitalidade cultural em grande medida ausente nos outros centros euro-
peus confrontados com o esgotamento da sua pujança e excepcionalidade em
termos globais.
Outro elemento de grande relevo na abordagem a Eduardo Lourenço é a
proposta de Helena Carvalhão Buescu, que integra o pensamento do autor e o
modo como compreende a cultura no contexto de um certo ideal de República das
Letras (Buescu, 2013: 185-195). À luz de um panorama cultural que se encontra
para além das fronteiras convencionais entre as nações, no qual se cruzam as di-
ferentes manifestações de cultura para darem origem a formas mais profundas de
reflexão, a singularidade cultural atribuída por Lourenço ao caso ibérico ganha
outra dimensão, resultando desse gesto uma mais adequada valorização do papel
pioneiro de Portugal na emergência de uma outra forma de ser-se europeu, para
além da realidade geopolítica convencional. Importa também lembrar que Fer-
nando Pessoa será, porventura, um dos primeiros autores de língua portuguesa a
equacionar uma revalorização do modo pelo qual se tendia a apreciar criticamen-
te o papel de Portugal no contexto da cultura ocidental, já não exclusivamente em
função da negatividade resultante das categorias privilegiadas pela tradição histo-
riográfica oitocentista ou de um contraponto messiânico e milenarista a que
Pessoa também aderiu, mas também em função de uma análise profunda aos
diversos momentos da cultura europeia e às diferentes formas de entender esse
percurso e a sua projecção global. É nesse âmbito que importa enquadrar as pers-
pectivas de Pessoa e depois de Lourenço quanto à marcante autonomia peninsular
e ao seu contributo pioneiro para o desenvolvimento da identidade europeia.
Começando por ser em parte uma compensação de menorizações várias, o pro-
jecto expansionista trouxe a Portugal uma dupla natureza geográfica e cultural e
com ela a hipótese de expandir as raízes europeias a novos contextos, aos quais
ficou mais ligado do que Espanha.
Embora, curiosamente, seja pouco o que Lourenço afirma quanto ao papel
de Pessoa na reflexão sobre essa faculdade sintetizadora de Portugal, talvez por

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não ter acedido a parte dos textos pessoanos ainda inéditos aquando dos seus
grandes empreendimentos reflexivos, uma análise profunda ao pensamento de
Pessoa conduz em muitos aspectos às mesmas conclusões. Bem mais do que Her-
culano, no qual alguma tentativa de recuperação identitária sem o peso das má-
culas da geração seguinte se inicia, é nas páginas de Pessoa que mais se desenha
um projecto amplo e ambicioso de integração da cultura portuguesa num espaço
internacionalista que é já europeu e extra-europeu e que, sendo-o, corresponde a
uma superação parcial das grandes imagens da nacionalidade produzidas ao longo
do século XIX. Em Pessoa, nota-se o primeiro e original salto de um Portugal em
busca de si à escala nacional ou ibérica, e sentindo-se menorizado face a todos os
grandes contextos europeus, para um outro Portugal supra-continental que é lido
como prolongamento recriador das grandes heranças da cultura europeia.
Num outro tempo, e com um vocabulário mais marcado pelo ambiente de
controvérsias identitárias e nacionalistas que define o percurso português entre o
Ultimatum de 1890 e o golpe militar de 28 de Maio de 1926, mas também por
alguns excessos eurocêntricos e imperialistas, os textos de Pessoa apontam para os
mesmos núcleos fulcrais em Lourenço: a necessidade de um contacto com a alta
cultura europeia, sobretudo em termos da recuperação de uma ideia de liberdade
assente no livre-pensamento especulativo e na autonomia do indivíduo para o ques-
tionamento, aspecto com que antecipa o núcleo duro da noção de heterodoxia
conforme proposta em 1949; a ambiguidade da relação com os grandes centros
culturais europeus, entre o reconhecimento dos diferentes contributos das nações
europeias para a civilização e a convicção de que a Ibéria pertence a um outro eixo
cultural, à margem inclusive da noção de latinidade; a exigência de um reconheci-
mento da relação complementar entre Portugal e Espanha, órgãos com funções
distintas na afirmação de uma cultura própria, mesmo quando integrável no con-
junto europeu; finalmente, a valorização dos aspectos criadores da expansão, essen-
ciais na leitura de um aprofundamento original da base europeia comum.
A valorização pessoana da síntese, verdadeira obsessão que percorre todos os
seus principais projectos e teorias, é também entendida como núcleo das várias
relações de cada nacionalidade com o conjunto continental. Em Eduardo Lou-
renço essa noção também surge, apesar da reiterada insistência na existência de

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dois sentidos culturais europeus, demarcados pelos Pirenéus. Pessoa opta por
propor como solução a experiência de duas formas diferentes de heterodoxia re-
lacional: por um lado, um corte persistente com o excessivo tradicionalismo
português, assente numa religiosidade patológica e intolerante e na submissão das
verdadeiras riquezas peninsulares a sistemas e valores vindos de outros contextos
europeus; por outro lado, a resposta da cultura ibérica a construir, na esteira da
valorização do passado e das conquistas paralelas de portugueses e castelhanos,
por contraste com o que numa entrevista de 1923 designa como «ignobil sagesse,
catholica, protestante ou racionalista dos seculos dezeseis, dezesete, dezoito e de-
zenove» (Pessoa, 2011a: 282).
Embora Pessoa seja bastante mais radical na ruptura deliberadamente polémi-
ca e excessiva que propõe como distanciamento face à Europa do racionalismo que
contribuíra para converter as elites portuguesas em meros receptáculos extemporâ-
neos dos seus conceitos e propostas, também em Eduardo Lourenço se encontram
sinais de valorização da singularidade ibérica e de um outro entendimento da racio-
nalidade dela derivado. No texto «O Novo Destino da Península», fica clara a ne-
cessidade de uma pertença que não deve passar por submissão ou osmose:

Há muito que Espanha tem, em sentido lato, não só uma política mediterrânica
como trans-mediterrânica. Mais atlânticos, é natural que a nossa preocupação seja
um pouco diversa ou tenha essa outra componente. Mas como Península o nosso
destino é um só e não há razão para o deixarmos definir apenas, nem essencialmen-
te, por aquelas nações que até agora hegemonizaram a política europeia. O nosso
lugar não pode ser ocupado por mais ninguém (Lourenço, 2005: 74).

É verdade que neste texto, como noutros de O Outro Lado da Lua, Eduardo
Lourenço se ocupa sobretudo dos problemas contemporâneos relacionados com
a dificuldade portuguesa de se adaptar ao novo estatuto de ex-potência africana e
com a necessidade de redispor os países peninsulares no contexto de uma nova
noção geoestratégica de Europa, com a entrada para a UE. No entanto, a sua
análise histórica do percurso de relações entre os blocos aquém e além-Pirenéus,
entre a pertença e o afastamento, faz dessa conquista de uma forma outra de ser-

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-se Europa, não dependente dos padrões predominantes, a base de uma proposta
que é marcada pelo desejo de equilíbrio ou de síntese.
Não é por acaso que, apesar do grande destaque que Lourenço dá à Geração
de 70 e ao seu pioneiro gesto de visar colectivamente a transfiguração dos grandes
problemas culturais portugueses conforme espelhados pelo contraste menorizador
com a Europa, é em Almeida Garrett e em Alexandre Herculano, e sobretudo no
segundo, que se reconhece a atitude mais saudável:

Através de Garrett e de Herculano tivemos então o privilégio, nunca mais renovado


até aos dias de hoje, de encontrar o justo termo – no horizonte que era o deles, de
poetas, historiadores e filósofos da cultura – entre o fascínio e a emulação com essas
duas Europas que nos disputam a alma, sem perder o mais essencial diálogo connosco
mesmos. Ao fascínio, sempre abstracto, por uma cultura de intenção universal, mas na
realidade enraizada numa tradição nacional precisa, o romantismo opôs ou contrapôs
como antídoto o enraizamento na própria cultura nacional, inventando a noção dela
e descobrindo-a como um continente sepulto. (…) Na época perturbada que foi a sua,
a relação de Portugal com a Europa, enquanto obra e olhar de Herculano, tem qual-
quer coisa de milagroso. No mesmo espírito, o mais original e autêntico do passado
nacional, o seu cristianismo popular e orgânico, a sua capacidade de organizar em
termos de liberdade municipal o nosso viver colectivo, equilibravam-se com o impe-
rativo moderno de uma liberdade de pensamento e de crítica, conquista da outra
Europa. Não foi fácil para os defensores de uma outra versão do passado nacional
admitir esta equilibrada síntese entre a tradição e a inovação, como se achou definida
em seguida neste liberalismo que nenhuma ideologia futura substituiu até hoje com
vantagem convincente (Lourenço, 1988: 29).

Essa «equilibrada síntese» é a mesma que afasta Pessoa, quer dos excessos
tradicionalistas reconhecidos no programa da Renascença Portuguesa, quer das
várias elites políticas que, segundo a sua versão da história portuguesa, abdicaram
do grande momento de penetração portuguesa no quadro das grandes nações ci-
vilizadoras para sucessivamente o tornarem dependente de valores estrangeiros.
Não renunciando a nenhum desses vectores, a Península Ibérica, segundo Pessoa

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e Lourenço, deveria convergir na definição de um novo papel na civilização uni-
versal inspirado no orgulho dos aspectos bem-sucedidos do passado e capaz de
colmatar os malefícios culturais de um isolamento ao exterior que, é bom não
esquecer, funciona nos dois sentidos.
De facto, o que ambos concluem é que, tendo Portugal ficado demasiado
tempo isolado dos processos culturais característicos dos outros contextos euro-
peus, são dois os resultados fundamentais: por um lado, as ferramentas concep-
tuais através das quais se poderia lidar produtivamente com os termos da
discussão filosófica patente nos grandes centros europeus eram pouco mais do
que incipientes e focadas em alguns indivíduos excepcionais, mas incapazes de
representar o colectivo nacional e ibérico; por outro lado, compensando esse diá-
logo entrecortado com uma cultura científica em intenso desenvolvimento ao
longo de séculos, tinha-se desenvolvido na Península uma outra panóplia de ex-
pressões de cultura transmitidas à Europa e responsáveis por adensar o sentido
conceptual da cultura europeia. No caso de Espanha, esse reforço dera-se sobre-
tudo através da vitalidade dos grandes criadores barrocos, determinantes numa
polémica sempre aberta com o racionalismo francês; no caso português, fora so-
bretudo o gradual mergulho na diversidade de mundos extra-europeus e a trans-
plantação para outros panoramas de uma matriz comum a determinar a expansão
da «Europa-cultura». Em 1987, na intervenção «L’Europe et Nous», Lourenço
resumia deste modo a questão:

Ce fut un grand malheur pour nos deux peuples, mais surtout pour nous, car
l’Espagne, dans sa détresse d’ex-grande puissance, toujours en première ligne sur le
front européen était, malgré tout, contrainte de se forger un corps culturel efficace,
concret, une réponse, en quelque sorte, au défi européen. Elle le fait soit sur le mode
de l’émulation à la manière de Feijóo, avec son Théâtre Critique, soit sur le mode
apologétique, comme celui qui de Saavedra et de Gracián arrive jusqu’à Juan Pablo
Forner, et aboutit au grand dialogue de l’Espagne de Charles III avec l’Europe des
Lumières, en particulier la France. Mise en cause, ou mise en question, l’Espagne se
doit de répondre, non seulement dans la sphère de la polémique, mais aussi dans
celle, plus noble, des changements et des réformes.

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La tonalité de notre dialogue avec l’Europe, jamais tout à fait aboli, est plus abstrai-
te, plus irréelle. Notre discours européen est surtout le fait de Portugais vivant à
l’étranger, exilés ou diplomates, comme Le Chevalier d’Oliveira, Luis Antonio
Verney, Jacob de Castro, le Comte d’Ericeira, Alexandre Gusmán. Malgré cela, la
majorité des hommes plus ou moins illustres qui nous visitent – on commence à
voyager beaucoup – retirent de leur passage au Portugal, tout au long du XVIIIème
siècle, le sentiment général d’un retard de notre vie, de notre société, de notre «civi-
lisation» comme on dira un peu plus tard, comparées avec le genre d’existence dont
l’Europe plus «illustre» est l’exemple (Lourenço, 1988: 46).

Emerge nesta passagem uma conclusão afim daquela a que Pessoa, à semelhança
de alguns seus contemporâneos, como Castro Osório, recorreu no contexto das polémi-
cas relacionadas com o Conde Hermann de Keyserling, um dos grandes nomes dessa
Europa que se via como exclusiva proprietária da definição do que deveria entender-se
por cultura europeia, remetendo no processo a Península para as margens. Tendo estado
em Portugal em 1930, Keyserling escreve um capítulo sobre o país no livro Das
Spektrum Europas, cuja primeira edição de 1928 (traduzida para espanhol com o título
Europa. Análisis espectral de un continente, em 1929) se dedicava a vários países europeus,
incluindo Espanha, mas ignorava por completo Portugal. O texto, traduzido no segun-
do número da revista Descobrimento, no Verão de 1931, transmite praticamente todos
os lugares-comuns do modo como a Europa compreendia o relativo exotismo cultural
da Península Ibérica, desde logo a convicção de que os portugueses pouco ou nada po-
deriam trazer de relevante ao futuro cultural europeu, sobretudo se persistissem presos a
uma verdadeira ferida originária, a ruptura com o ibérico.
Keyserling está de acordo com Pessoa e com Lourenço num aspecto – Portugal e
Castela representam os dois eixos fundamentais de um organismo peninsular, contendo
em si forças de sentido oposto em torno das quais a Península deverá promover as razões
da sua integração no contexto europeu –, mas os seus argumentos acabaram por suscitar
da parte de Pessoa e dos directores da Descobrimento uma curiosa reacção10. Na sua lei-
tura, o problema não era tanto o pouco rigor das posições assumidas pelo conde alemão,

10
Quanto a este assunto, cf. Sousa, 2021.

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mas o facto de este perspectivar o conjunto ibérico, em geral, e o quadro português, em
particular, de um ângulo europeu, quando o destino nacional não se encontrava pro-
priamente na Europa. É o que Castor Osório esclarece no texto «Portugal visto da Eu-
ropa. Comentário ao ensaio ‘Portugal’ do conde Hermann de Keyserling», publicado
no número 3 de Descobrimento, e que Pessoa recupera num fragmento elucidativo, que
tem como pano de fundo as suas várias interpretações sobre qual poderá vir a ser um
futuro Quinto Império com a cultura como valor fundamental:

Em primeiro logar, e como já o notou João de Castro Osorio, Portugal não é pro-
priamente um paiz europeu: mais rigorosamente, se lhe poderá chamar um paiz
atlantico – o paiz atlantico por excellencia. […] Acresce que, tanto quanto hoje o
podemos ver, ha /de origem europeia/, só duas nações fóra da Europa com alma para
poder ter Imperio – os Estados Unidos e o Brasil. Os Estados Unidos, porém, e
como já foi dito, estão já no seu imperio, que é material, e que é o Quinto lmperio
de Inglaterra. (Hypothese Oriental – Russia, Japão, China) (Pessoa, 2011a: 251)

Estas observações ganham em serem lidas em aproximação aos apontamentos


de Pessoa sobre a Ibéria, desenvolvidos sobretudo em meados da década de 10, e
que tendem a associar a Península Ibérica a esse sentido alternativo de manifestação,
poderá dizer-se, pós-europeia ou pelo menos supra-europeia. Embora tendo em
conta perspectivas muito próprias do valor e significado de cada nação europeia,
valorativas de Inglaterra e de Itália, plenas de azedume em relação a França e Ale-
manha e pouco abonatórias para outras nações europeias como a Suiça, a Holanda
e a Bélgica, as considerações de Pessoa sintetizam uma forma específica de pertença
ibérica ao conjunto das nações europeias. Na verdade, dado que considera próprio
das nações superiores o esforço no sentido do desenvolvimento de «uma consciência
civilizacional de si-propria» a partir de «uma synthese especial de elementos disper-
sos da civilização a que pertence», nacionalizando-os e dando-lhes um determinado
sentido relevante, Pessoa não pode recusar o facto de a Ibéria ter elementos gerais
comuns a todo o continente. No entanto, potenciando o alcance do efeito de sín-
tese, o caso ibérico destaca-se pela dimensão com que acrescenta aos elementos que
estão na génese das identidades alheias outros condimentos:

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Dissemos que a synthese cultural iberica devia nascer da conjugação de trez elemen-
tos, ou attitudes. Baseia-se no nosso commum character iberico, e esse é o fundo
ibero-romano-arabe da nossa personalidade psychica commum. No que synthese
cultural positiva ella é isso, entendendo-se, porém, que o é atravez da absorpção
assimiladora dos elementos contemporaneos de civilização. É a iberização das cor-
rentes civilizacionaes europeias que fórma a synthese iberica, que é a transcendencia
special de taes correntes sommadas na nossa personalidade propria.
(…) Nós não somos latinos, somos ibericos. Temos – hespanhoes e portuguezes –
uma mentalidade aparte do resto da Europa. Por mais differenças que nos separam (e
ellas deveras existem) estamos mais proximos psychicamente uns dos outros, do que
qualquer de nós de outro qualquer povo extra-iberico (Pessoa, 2011b: 82-83).

Além desses traços profundos que determinam uma direcção cultural dife-
rente, por exemplo o impacto da presença árabe na Península Ibérica, Pessoa sa-
lienta o peso da aventura expansionista no modo como os povos ibéricos devem
preparar-se para se contraporem novamente ao modelo impositivo de cultura
europeia representado pelas outras nações:

Seja como fôr, esse periodo das descobertas marcou o que somos. Fomol-o incomple-
tamente, porque agimos inibericamente! Todos nós de aqui – portuguezes, castelha-
nos, catalães – só attingiremos a nossa maioridade civilizacional quando, confederados
na lberia, pudemos, lidos na desgraça e na experiencia triste de tanto passado, affrontar
a Europa outra vez, reconstruir o nosso predominio dos tempos em que o mundo era
nosso, de outra maneira, para outros fins, □ (Pessoa, 2011b: 78).

Num contexto muito diverso, e com propósitos também díspares, é certo,


esta percepção também se exprime em Eduardo Lourenço. Em pleno momento
de redefinição no final do século XX, paira ainda a convicção de que «a Penínsu-
la como um todo, […] não pode esquecer o seu papel na civilização universal,
deve – e oxalá o possa – assumir um novo destino, bem seu, à beira de um milé-
nio imprevisível e no meio de uma configuração mundial interiormente descen-
trada ou perigosamente fragmentada» (Lourenço, 2005: 74). É também em torno

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de uma forma singular de ver a dinâmica entre ressentimento e fascínio na relação
da Península com a Europa que se enuncia, em Eduardo Lourenço, a persistência
de um destino inconfundível, que acaba por se salientar positivamente no mo-
mento em que a Europa perde o fulgor de outrora e parece de algum modo tender
para a homogeneização:

Como já tínhamos tido os Cartagineses, os Fenícios, os Gregos e depois os Romanos


em nossa casa, nós fazemos parte dessa história. Não é a história da Europa como
modernidade, da sua invenção com a modernidade. É uma outra história que está
firme lá atrás, no horizonte, no passado dessa mesma história. Mas mesmo esse
contencioso ficcional, com alguns motivos sérios subjacentes, já não tem agora razão
de ser, não porque a Península se tenha diluído na Europa, mas com mais verdade
porque a Europa, essa tal da modernidade, nos entrou em casa e se diluiu ela mesma
na Península como Europa, Europa que se propôs homogeneizar o resto da outra
Europa. […] Nós fugimos para outro sítio, ou por outra, nós derivámos, passámos
a inventar uma outra Europa, uma outra maneira de ser Europa e essa outra manei-
ra de ser Europa está viva. É a América, a América no seu conjunto, desde o norte
até ao sul da Patagónia. A América não é o nosso passado. É, julgo eu, neste mo-
mento, de uma maneira muito forte, o nosso futuro, no sentido mais empírico do
termo. Agora estamos já de algum modo normalizados e felizes, em termos europeus
daqui. Mas a Europa não está normalizada nem feliz em termos de Europa, aquela
que não tem mais horizonte do que essa própria Europa. Mas nós inventámos,
construímos – ou através de nós constituiu-se e inventou-se – uma outra Europa, e
em última análise, uma Europa outra, a de um novo mundo, que não está só no
passado […] (Lourenço, 2005: 87).

Curiosa forma de dispor em modo de síntese possível os elementos funda-


mentais dos dois horizontes que, em Portugal como Destino, Eduardo Lourenço
associara aos casos de Teixeira de Pascoaes e de Fernando Pessoa, os dois poetas
que começaram por servir-nos de mote. Pascoaes surge como aquele que opta por
construir para si um contexto intemporal, totalmente deslocado do mundo: «O
Portugal de Pascoais, como a saudade com que se identifica e recobre, não só

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estão fora do mundo, como são, de algum modo, e radicalmente, antimundo»
(Lourenço, 1999: 76). É em grande medida uma versão do problema que não
tivesse procurado uma forma de relacionar os dois vectores europeus, mas alimen-
tar-se de uma versão perenemente idealizada das tradições portuguesas. Pessoa,
por seu lado, é um grande emblema da urgência de conjugação de todos os em-
blemas portugueses com uma permanente busca por novos horizontes, afins dos
dessa Europa outra, a de um novo mundo, que não está só no passado». As palavras
de Lourenço não poderiam ser mais reveladoras de como um nacionalismo basea-
do na síntese constrói a sua própria percepção da temporalidade sem que seja
necessária qualquer forma de isolamento estreito e unívoco:

O Portugal de Pessoa, como história, política e cultura, também deixou de estar


num tempo digno desse nome mas, como o Holandês Voador, continua a percorrer
os mares e os tempos que foram seus para atingir uma outra margem de que a da
história foi apenas antevisão «esgar e assombro». É a mitologia portuguesa no seu
conjunto – desde Ulisses a Viriato, de Nun’Álvares a D. Sebastião, de Bandarra a
Vieira – que deve despertar da sua «falsa morte», abandonar a sua pequena casa lu-
sitana e fundir-se, como outrora o fizera em nome de um Cristo conquistador, tra-
vestido pelo fanatismo e pela ignorância, num império que não possa morrer, o da
«guerra sem guerra», onde conheceremos por fim, o nosso verdadeiro nome (Lou-
renço, 1999: 76).

Assim, em conclusão, parece-nos que um dos ângulos de leitura mais férteis


da descrição do problema complexo das relações entre Portugal e Espanha por
parte de Eduardo Lourenço, que é em grande parte uma especificação do proble-
ma mais vasto da Península no contexto de constituição moderna da Europa e do
Ocidente, passa pelos seguintes pilares: 1) por motivos vários, Portugal e Espanha
comungam de uma mesma situação peculiar face a uma certa compreensão do
que é a Europa da cultura; 2) esse distanciamento cultural, desenvolvendo-se com
mais densidade no momento em que o racionalismo cartesiano se converte no
paradigma europeu, conduz as nações peninsulares a uma resistência persistente,
expressa no desenvolvimento de uma outra versão da cultura, também passível de

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compreender-se como europeia; 3) no caso de Espanha, essa outra versão da cultu-
ra manteve um diálogo constante com as outras nações, em especial com a França,
deixando Portugal ainda mais isolado; 4) a resolução desse problema e dos seus
impactos na imagem que a partir do século XIX as elites culturais foram fazendo do
atraso português consegue-se com o reconhecimento daquele que terá sido o con-
tributo maior de Portugal para a Península e a Europa, o acesso a outros contextos
nos quais a premissa cultural europeia se expandiu em variantes originais.

Referências

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