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História: a tentação da epistemologia?

François Hartog

“A epistemologia é uma tentação de que se deve saber afastar resolutamente”, advertiu, há pouco,
Pierre Chaunu, reservando-a a um ou dois mestres. Teriam os historiadores cedido, ou cedido ainda mais,
a essa “tentação” ao longo dos últimos dez ou vinte anos? Provavelmente sim, se acreditarmos em um
bom observador como Gérard Noiriel, que pensou ser necessário se colocar em guarda contra os
“historiadores-epistemólogos” e “as fugas teoricistas”.1 Mas lembremos que ele mesmo, bem longe de
defender um empirismo excessivo ou um positivismo (mítico) de outrora, defende uma definição
“pragmática” de história. Teríamos passado do historiador como “artesão” ao historiador como
“epistemólogo”? Do contrário, se encontrariam sem dificuldade inúmeras declarações deplorando a falta
de cuidado epistemológico dos historiadores até há pouco, ou saudando uma história que enfim havia
entrado em “sua era epistemológica”. Muito ou muito pouco? Seria melhor começar definindo o
significado da palavra quando os historiadores a utilizam, seja para recusá-la ou para reivindicá-la. Na
grande maioria dos casos, não se trata de um emprego rigoroso do termo. Resumindo, nem todos os
historiadores se tornaram leitores assíduos da revista History and Theory.
Então do que se trata? Em primeiro lugar e sobretudo, de uma postura reflexiva: não somente a
elaboração do questionário, mas o como do questionário, sua confecção e os pressupostos que o
organizam. As categorias de análise não são dadas predelimitando o real. A objetividade não é separável
das formas de objetivação. Essa é uma primeira caracterização, imediatamente visível, da abordagem atual
dos historiadores. Dessa postura crítica (mais ou menos reivindicada, argumentada, explicitada), cada
historiador, em sua especialidade, poderia facilmente listar exemplos.
Mesmo a obra muito recente de François Dosse, L’Histoire, que se pretende um convite aos
filósofos para que leiam os historiadores e aos historiadores para que levem em consideração a filosofia
da história. O livro aparece em uma coleção universitária (apostando, então, em um público de estudantes
e especialistas), apenas como detalhe, sob a etiqueta de “filosofia”, e não de “história”.2 Da mesma forma,
em sua coletânea intitulada Sur l’histoire, Krzysztof Pomian não cessa de tomar e retomar, ao longo de
seus textos, a questão da história como conhecimento do passado, inscrevendo-a na perspectiva mais
ampla de uma história do conhecimento e de seus diferentes usos.3 Mudando de registro e de terreno,
poderíamos citar ainda, vindo de especialistas no contemporâneo (que não se passam pelos mais
epistemólogos dos historiadores), dois livros que, defendendo-se de serem manifestos, o são pelo menos
um pouco: Pour une histoire culturelle, sob a direção de Jean-Pierre Rioux e Jean-François Sirinelli, que

1 Gérard Noiriel, Sur la “crise” de l’histoire, Paris, Belin, 1996, pp. 176, 207.
2 François Dosse, L’Histoire, Paris, A. Colin, 2000; ver também, em uma coleção de história para estudantes, Antoine Prost,
Douze leçons sur l’histoire, Paris, Ed. du Seuil, 1996. [N.T.: ambos os livros já foram traduzidos. O de Dosse, A História, pela
editora Unesp; o de Prost, Doze Lições Sobre a História, pela Autêntica]
3 Krzysztof Pomian, Sur l’histoire, Paris, Gallimard, 1999.
querem justamente “dar conta de uma reflexão plural, de ordem historiográfica e metodológica” sobre o
cultural.4 Ele foi precedido, quase dez anos antes, de Pour une histoire politique, dirigido por René Rémond.
Ele tratou, certamente, de manifestar o retorno da história política, de uma outra história política, na
verdade, mas também de tratar tal fenômeno em si mesmo “como um objeto de história”: historiar esse
“retorno” e considerá-lo como uma etapa “na ascensão da reflexão que a história faz sobre si mesma”.5
Até a biografia não escapou desse movimento: Jacques Le Goff começa por se perguntar como uma
biografia de São Luís é possível.6

Um segundo traço característico tem sido o crescimento da historiografia. A publicação em 1983


de Problèmes d’historiographie, de Momigliano, fornece um marco conveniente de sua emergência.7 Ainda
que as coisas tenham começado mais cedo: Faire de l’histoire anunciou, já em 1974, uma história “dando
um lugar cada vez maior e mais privilegiado à história da história”8 (mas sem fazê-la nos volumes em si
mesmos). Em 1987, a criação na EHESS de um ensino dedicado à historiografia antiga e moderna se
inscrevia nesse movimento. Mas o ponto mais interessante e mais novo é a aproximação, frequente nos
textos dos historiadores, dos dois termos: epistemologia e historiografia. Como se um chamasse o outro,
completando-o, corrigindo-o ou dando-lhe nuance, como se aquilo que quisessem designar de fato fosse
um tipo de mistura, não uma epistemologia “dura” (muito distante), não uma história da história “rasa”
(muito internalista), mas uma abordagem atenta aos conceitos e aos contextos, às noções e aos entornos,
e cada vez mais cuidadosa de suas articulações, preocupada com a cognição e a historicização, mas
vigilante frente às sereias dos reducionismos. Em suma, algo como uma epistemologia histórica ou uma
historiografia epistemológica, que está, insistimos sobre esse ponto, nos antípodas de uma disciplina ou
de uma subdisciplina, constituída ou em constituição, e assunto de alguns especialistas mais ou menos
autoproclamados. De fato, esse movimento e esse momento, que podemos chamar, por comodidade, de
“reflexivos” (conferindo-lhe esse duplo escopo epistemológico e historiográfico), concernem, além da
história, ao conjunto das ciências sociais. É claro que, para a história, as problemáticas e formulações são
moduladas em função do estado das questões em cada grande domínio de especialidades e segundo os
diferentes períodos.

4 Pour une histoire culturelle, sob a direção de Jean-Pierre Rioux, Jean-François Sirinelli, Paris, Éd. du Seuil, 1997. [N.T.: Para
uma História Cultural, já traduzido para o português pelo Editorial Estampa, de Portugal]
5 Pour une histoire politique, sob a direção de René Rémond, Paris, Éd. du Seuil, 1988, pp. 12, 19. [N.T.: Por uma História

Política, já traduzido para o português em parceria das editoras da UFRJ e da FGV]


6 Jacques Le Goff, Saint Louis, Paris, Gallimard, 1996. [N.T.: já traduzido para o português pela editora Record]
7 Arnaldo Momigliano, Problèmes d’historiographie ancienne et moderne, Paris, Gallimard, 1983.
8 Faire de l’histoire, sob a direção de Jacques Le Goff e Pierre Nora, Paris, Gallimard, 1974, p. XIII. [N.T.: traduzido no Brasil

como a coleção História: Novos Problemas, Novos Objetos, Novas Abordagens] Krzysztof Pomian defendia uma nova
história da história em um artigo publicado em 1975 nos Annales, “L’histoire de la science et l’histoire de l’histoire”; Charles-
Olivier Carbonell, Histoire et historiens, une mutation idéologique des historians français, 1865-1885, Toulouse, Privat, 1976.
Esses exemplos, voluntariamente disparatados, mas tudo, menos isolados, são suficientes para
apontar os deslocamentos e para indicar as recomposições no e do campo histórico nesses vinte anos.
Este não é o lugar de retraçá-los, bastando os breves lembretes. Uma tomada de consciência de que a
paisagem já mudou e muda ainda mais rapidamente opera-se nos anos de 1980. Fala-se correntemente
de tempos de incerteza, de dúvidas e de crise de identidade da história.9 Dois indicadores: o convite à
reflexão e o diagnóstico, acompanhados de pistas e proposições, lançados pelos Annales, em 1988 e 1989,
sob o nome de “virada crítica”: uma epistemologia justamente para os tempos de incerteza, ainda que a
história esteja engajada “em um trabalho de redefinição de seus projetos e de suas práticas”;10 o texto
curto, em 1988, de Marcel Gauchet, “Mudança de paradigmas em ciências sociais?”, em que, tomando
nota da “reabilitação da parte explícita da ação”, ele lhes desenvolve as consequências para uma história
política, em que ele vê já uma “chave teórica e prática de uma história global”.11 Claro, os questionamentos
começaram antes. Assim, “a operação historiográfica” de Michel de Certeau, que se tornou uma
referência importante para muitos no fim dos anos de 1970, chamou bastante a atenção para a dimensão
da escrita da história.12
Nesses mesmos anos, a recepção de três obras, exteriores em graus variados ao campo histórico,
sublinhou e reforçou o movimento. Por conta do questionamento já presente sobre a escrita da história,
passou-se facilmente à reflexão conduzida por um filósofo que era leitor atento e crítico dos historiadores
contemporâneos. Trata-se evidentemente de Temps et Récit, de Paul Ricoeur, cuja recepção (ao menos
parcial) foi rápida entre os historiadores.13 Estamos então nas querelas do “retorno da narrativa”, nos
rodopios americanos da virada linguística, enquanto em breve surgirão as questões acerca da retórica,
ficção e história. Incontestavelmente, Ricoeur ajuda a colocar essas questões difíceis com suas
complexidades e com rigor. Vindo, certamente, do interior da disciplina, mas da Alemanha, a semântica
histórica tal qual é conhecida por Reinhard Koselleck é justamente uma proposição que, em seu
movimento, opera uma epistemologia histórica. A tradução de seu livro Le Futur passé é publicada em
1990.14 Finalmente, vindo de um vizinho próximo, La Raisonnement sociologique de Jean-Claude Passeron
oferece, em 1991, um espaço comum de reflexão e de trabalho para a sociologia, a antropologia e a
história, marcando claramente a convergência epistemológica das três disciplinas. Pouco depois, a revista

9 O livro de Roger Chartier, Au bord de la falaise. L’histoire entre certitudes et inquiétude, Paris, Albin Michel, 1998, que reúne
textos publicados entre 1983 e 1995, é testemunha desses anos e propõe análises e pistas. [N.T.: À Beira da Falésia,
traduzido para o português pela editora da UFRGS]
10 Annales, 2, 1988, 6, 1989, p. 1322. Les Formes de l’expérience (sob a direção de Bernard Lepetit, Paris, Albin Michel, 1995) e

Jeux d’échelles. La micro-analyse à l’expérience (sob a direção de Jacques Revel, Paris, Hautes Études, Gallimard e Éd. du Seuil,
1996) prolongaram a reflexão. [N.T.: este último, Jogos de Escala, foi traduzido pela editora da FGV]
11 Marcel Gauchet, em Le Débat, no. 50, 1988, p. 166 e no. 103, 1999, p. 135.
12 Michel de Certeau, L’Écriture de l’histoire, Paris, Gallimard, 1975. [N.T.: A Escrita da História, traduzido para o

português pela editora Forense Universitária]


13 Paul Ricoeur, Temps et Récit, Paris, Éd. du Seuil, 1983-1985. [N.T.: Tempo e Narrativa, traduzido para o português pela

Martins Fontes]
14 [N.T.: Futuro Passado, traduzido para o português em parceria das editoras Contraponto e PUC-Rio]
Enquête, com sua exigência de epistemologia, mas de campo, entende colocar à prova e prolongar essas
proposições.15

Isso que chamei de postura reflexiva, mistura de epistemologia e historiografia, é um fenômeno


de larga escala, no sentido de que não se limita nem a um tipo de história, nem somente à história.16 Pode-
se lhe datar: o fim dos anos de 1980 viu sua emergência em plena luz do dia, o que quer dizer que já segue
ao longo dos dez anos anteriores. Se ela não é separável dos movimentos mais amplos da conjuntura,
não há dúvida de que foi inicialmente uma resposta – quase uma reação – ao abandono dos grandes
paradigmas dos anos de 1960, quando se anunciava, com muita ou pouca confusão, o retorno disso ou
daquilo. Mas, rapidamente, as problemáticas, com suas exigências próprias de questionamento e de
trabalho, foram postas em prática (a maneira pela qual a história social deu lugar aos pontos de vista dos
atores recorrendo à sociologia das convenções, por exemplo; da mesma maneira, se desenvolveu essa
forma de história “de segundo grau”, cujos Lieux de mémoire [lugares de memória]17 são o grande símbolo).
Com suas dificuldades também: como responder, por exemplo, ao desafio narrativista (não há nada além
da narrativa) sem renunciar à dimensão da escrita da história?
Mais profundamente, essa postura ou esse momento reflexivo remete e responde a uma mudança
de nossa relação com o tempo: a crise do regime moderno de historicidade ocidental (um porvir fechado,
um futuro imprevisível, um presente onipresente, um passado incessantemente, compulsivamente
visitado e revisitado). Com a consequência de que a história deixou de poder ser escrita a partir do ponto
de vista do futuro ou em seu nome. Essa reflexividade foi então (somente) uma proposição ou uma
epistemologia para tempos de incerteza? Ela pode se estabilizar? Ao preço de quais reformulações? A
que nós assistimos?

15 Enquête. Anthropologie, histoire, sociologie, no. 1, 1995.


16 François Dosse, L’Empire du sens. L’humanisation des sciences humaines, Paris, La Découverte, 1995.
17 [N.T.: referência ao livro com esse nome, escrito por Pierre Nora]

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