Você está na página 1de 4

Linearidade do tempo e cientificidade da história

Krzysztof Pomian1

Durante todo o século XIX, os filósofos da história e os historiadores profissionais


conceberam o tempo apenas de maneira linear. As exceções eram raras e não tinham
grande peso. O tempo linear, cumulativo e irreversível foi a tal ponto identificado com
a própria história que os povos nos quais não pudesse ser detectado eram simplesmente
chamados de povos sem história, os Naturvölker. A identificação do tempo da história
com o tempo linear, cumulativo e irreversível justificava assim o eurocentrismo. Por
vezes, no interior mesmo da história europeia, essa identificação justificava a divisão
entre “povos históricos” e aqueles que não o eram. Justificava também o sentimento de
superioridade que se experimentava ao se comparar o passado com o presente. E, por
fim, justificava uma confiança no futuro. As controvérsias acerca desses últimos três
pontos estiveram certamente presentes na vida ideológica da época; elas iriam se tornar
mais intensas com a aproximação do fim do século. Delas participavam, em geral,
filósofos, artistas e escritores.

Os historiadores profissionais, porém, não se sentiram muito tocados por elas. O


tempo linear lhes parecia evidente, manifesto, e conferia uma nova importância a
cronologia, cujo caráter linear o transformava em um quadro onde bastava os
acontecimentos serem situados para que se evidenciasse a lógica interna do devir
histórico. Esse tempo permitia que se estabelecesse uma hierarquia entre os
acontecimentos, privilegiando-se aqueles que teriam produzido mudanças irreversíveis.
Ele guiava a triagem entre os candidatos ao papel de atores da história: esta não era
engendrada senão pelos agentes do progresso. Não surpreende que para os
historiadores o domínio privilegiado de investigação fosse o da política. Era aí que os
acontecimentos se passavam. Era aí que agiam os indivíduos; bem como nações e
classes, esses indivíduos coletivos. Era aí que se produziam as transformações
irreversíveis cujo paradigma era a Revolução Francesa. Essa história dos historiadores

1
Extraído de K. Pomian, L’ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984, p. 71-74. Traduzido do francês por José
Otávio Nogueira Guimarães.
profissionais pretendia ser objetiva. O historiador, até mesmo quando falava em nome
da Europa, da França, de tal ou qual grupo, não pensava ter traído seu dever de
objetividade, pois a Europa ou a França, ou ainda a burguesia ou o proletariado,
conforme o caso, eram para ele a encarnação do universal. Eis Michelet prefaciando sua
Introduction à l’histoire universelle:

Esse pequeno livro poderia também ser intitulado Introduction à


l’Histoire de France; é na França que ele se encerra. E o patriotismo nada
tem a ver com isso. Em sua profunda solidão, longe de toda influência
de escola, de seita ou de partido, o autor chegaria, pela lógica e pela
história, a uma mesma conclusão: a de que sua gloriosa pátria é
doravante o comandante do navio da humanidade.2

Note-se a insistência na solidão, condição necessária da objetividade, que se


atinge ao se libertar do pertencimento a comunidades particulares e deixar-se guiar
unicamente pela razão. Note-se ainda o par lógica e história encarregado de atestar que
a conclusão procede tanto da dedução por princípios evidentes quanto dos próprios
fatos. Sublinhemos também o “doravante”, prova de que, no passado, o papel de
comandante foi exercido por outros e que esse papel pode mudar de titularidade no
futuro, bem como sublinhemos a remissão a uma filosofia da história que apresenta a
história como uma sucessão de diferentes povos com vocação universal-histórica.

Declarações análogas foram feitas por historiadores alemães e italianos, ingleses


e poloneses, que, se, por um lado, contestavam o título de “comandante do navio da
humanidade” à pátria de Michelet, reservavam, por outro lado, o mesmo título à sua
própria pátria. Eram historiadores que se eximiam do privilégio de representar a
humanidade, mas estavam de acordo em ver nela o universal e em poder com ela se
identificar.

Ora, o historiador estimava-se capaz de apreender o devir desse ponto de vista


porque a noção de progresso permitia-lhe saber quem representava a humanidade em
tal ou qual momento, quem lhe abria novos caminhos. Chegava a isso exercendo seu
espírito de análise ou se utilizando da imaginação, faculdade sintética por excelência.
Mas, fosse positivista ou romântico, ou situado em algum ponto entre os dois, que

2
J. Michelet, Introduction à l’histoire universelle. Paris: Hachette, 1931, in Œuvres complètes, Paris:
Flammarion, s/d, p. 401.

2
pensasse praticar uma ciência ou uma arte, o historiador não duvidava de sua
objetividade, alicerçada no próprio lugar que ocupava no tempo histórico e no espaço
social. Era o caráter linear, cumulativo e irreversível do tempo que justificava o privilégio
epistemológico que o historiador se arrogava e que ocultava o papel desempenhado em
sua prática pelas escolhas, adesão a pressupostos ideológicos e parcialidade.

A crise do final do século XIX havia colocado em questão numerosas certezas,


notadamente as relativas à ideia de progresso e de objetividade do historiador. Foi
igualmente no decurso desses anos que se extraiu da identificação do tempo da história
com o tempo linear, cumulativo e irreversível consequências desconcertantes,
sobretudo para aqueles, inumeráveis, que consideravam a história uma ciência. De fato,
se o tempo era rigorosamente linear, toda repetição era dele banida. E, se toda
repetição era dele banida, lidaríamos apenas com acontecimentos ou fenômenos
únicos, individualizados por sua posição no espaço (se simultâneos) ou na sequência
temporal. Decorreu disso que a história seria incapaz, por razões de princípio, de
formular enunciados de caráter geral, leis. Ela seria, como se dizia à época, não uma
disciplina nomotética mas sim ideográfica.

Um tal modo de definir a história tinha, evidentemente, seus defensores. Para


começar, todos que acreditavam ser Clio uma Musa, bem como todos que buscavam
demonstrar que um conhecimento científico de fatos individuais era possível, desde que
fossem elaborados métodos hermenêuticos apropriados. Atacada pelos apoiadores do
ideografismo, a velha teoria da história o era igualmente por todos os partidários de
uma história nomotética que exigiam o abandono da relevância conferida aos fatos ou
acontecimentos únicos. Nesse debate, o problema não era somente o modo como se
praticava a história, mas também o status dessa disciplina, seu lugar no universo dos
conhecimentos, suas relações com as ciências sociais em formação e sua inserção no
ensino universitário. Ora, as ciências sociais, já que estudavam fatos repetitivos, não
teriam nada em comum com uma história que se definia como ideográfica. Na virada do
século, os exemplos da sociologia e sobretudo da economia mostravam bem isso.

A controvérsia que havia dividido os historiadores em todos os países da Europa


e nos Estados Unidos não atingira imediatamente a noção de tempo linear. Inicialmente,
a linha divisória havia oposto os apoiadores da história ideográfica àqueles que

3
gostariam que ela fosse nomotética e se juntasse às ciências sociais. A identificação do
tempo da história com o tempo linear, cumulativo e irreversível teria sido
primeiramente contestada fora do meio dos historiadores profissionais. Nos últimos
anos do século XIX e primeiros do século XX, proliferaram, com efeito, cronosofias que
trouxeram de volta o tempo cíclico. A revolta das massas que se preparava
inelutavelmente no seio da civilização ocidental haveria de conseguir, mais cedo ou mais
tarde, destruir essa civilização. A humanidade (que a civilização ocidental sempre
supusera representar) recairia assim em um estado de selvageria. O processo que fizera
nascer todas as civilizações, incluindo a ocidental, retomaria então seu movimento: as
massas produziriam necessariamente novas elites e seriam submetidas ao poder destas;
essas elites, explorando as massas, criariam uma civilização condenada por sua vez a
sucumbir. Toda uma corrente ideológica, politicamente bem ambígua, veicularia
roteiros desse gênero, materializados sob forma de livros com pretensões acadêmicas,
mas também de apelo à ação que teria permitido adiar a data fatídica, e de obras
literárias, notadamente de utopias negativas.

Você também pode gostar