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A história

entre a
narrativa e o
conhecimento
Roger Chartier
Roger Chartier
É professor da École des Hautes Études en
Sciences Sociales - EHESS e dedica seus estudos
aos campos da história cultural, voltando-se
especificamente para a história da leitura e as
práticas de leitura na França.

Considerado um herdeiro dos Annales, é um dos


precursores da difusão da história cultural pelo
mundo ocidental, sobretudo pelo Brasil, tendo
diversas participações em eventos acadêmicos
no país, em instituições em Goiás e em
Pernambuco, por exemplo.
Estaria a história “à beira
da falésia”?

Em um texto, intitulado Microtécnicas e discurso


panóptico: um quiprocó, Michel de Certeau analisaria a
obra de Michel Foucault como um pensamento cuja ousadia
o colocaria constantemente “à beira da falésia”.

A expressão, a princípio, não possuía nenhum caráter


pejorativo, se referindo muito mais a como a ousadia de
Foucault na lida com a linguagem possibilitaria caminhos
nem sempre seguros para o conhecimento, mas que o
ampliavam e estabeleciam novas bases.

No entanto, por sua vez, Roger Chartier toma a expressão


de Certeau para problematizar os caminhos que a
historiografia estaria ganhando naquele momento -
sobretudo após a emergência da “virada linguística”.
Estaria a história “à beira da falésia”?
“‘Hoje em dia, parece chegado o tempo das incertezas. A
redistribuição das disciplinas transforma a paisagem científica,
questiona primados estabelecidos, atinge as vias tradicionais pelas
quais circulava a inovação. Os paradigmas dominantes, que se iam
buscar nos marxismos ou nos estruturalismos, bem como nos usos
confiantes da quantificação, perdem suas capacidades
estruturantes [...] A história, que estabelecera uma boa parte de
seu dinamismo sobre uma ambição federalista, não é poupada por
essa crise geral das ciências sociais.”

Editorial da revista Annales de março e abril de 1988,


Estaria a história “à beira da falésia”?
Segundo Chartier, os diagnósticos apresentados no
editorial da revista designam esta mutação maior que é o
apagamento dos modelos de compreensão, dos
princípios de inteligibilidade que tinham sido aceitos de
comum acordo pelos historiadores (ou, pelo menos, pela
maioria deles) a partir dos anos 1960.

A história, àquela altura, sob influência de intelectuais


como Michel Foucault, se libertava de sua ideia “magra”
do que seria o real, uma vez que passou a considerar que
os sistemas de relações que compõem o mundo social
(cultura, costumes, subjetividades) são tais reais quanto
as coisas materiais.
As certezas
abaladas
Nos dez primeiros anos, foram essas certezas, por muito
tempo amplamente compartilhadas, que vacilaram.
Inicialmente sensíveis a novas abordagens antropológicas
ou sociológicas, os historiadores quiseram restaurar o
papel dos indivíduos na construção dos laços sociais.

A micro-história italiana, e depois a espanhola,


contribuíram para modificar os modelos tradicionais de
escrita da história, tanto por inverter a escala de análise -
do micro para o macro - quanto por deslocar a atenção da
história das estruturas para os indivíduos.
Desafios invertidos
Contribuíram para isso também as reflexões pioneiras de
Michel de Certeau, que consideraria a história uma
“ficção controlada”, quanto a obra Tempo e narrativa, em
três volumes, de Paul Ricoeur e as contribuições de
Jacques Rancière, que observaria na história não a sua
dimensão científica, mas a poética de seu saber.

Mas o desafio que teria abalado mais profundamente as


certezas da história seria a emergência da chamada
“virada linguística” (linguistic turn) estadunidense, que,
nas palavras de Chartier, reduziria a história a uma
dimensão meramente linguística, como se fosse um
sistema fechado de signos.
Desafios invertidos
Para Chartier, a virada linguística iria impor um
desafio à história, que a colocaria, justamente, “à
beira da falésia”: uma possível constatação de que
toda história, seja qual for, é sempre uma narrativa
organizada a partir de figuras e de fórmulas que
mobilizam também as narrações imaginárias

Segundo ele, essa perspectiva levaria ao “perigo”


de que historiariadores tais como Hayden White
levariam a uma percepção da história meramente
como uma fiction-making operation (operação de
fazer ficção, em tradução literal), ou seja, de que
não produziria um “real” mais verdadeiros do que
o romance.
Lutas de representações
e violência simbólica
Se, por um lado, não se deveria retornar à história
tradicional e, por outro, seria “perigoso” submeter a
história à “violência simbólica” de vê-la como uma
ação meramente ficcional, excetuada toda a sua
dimensão científica, Chartier propõe um “caminho do
meio” para a sua construção narrativa.

Amparado na sociologia de Émile Durkheim e


Norbert Elias, assim como Max Weber, Marcel Mauss
e Maurice Halbwachs, ele gesta o conceito de
representação, segundo o qual toda história seria uma
produção discursiva, porém amparada no mundo
social.
“Contra uma tal abordagem, ou um tal shift,
deve-se lembrar que a meta de conhecimento
é constitutiva da própria intencionalidade
histórica. Ela funda as operações específicas
Ficção e da disciplina: construção e tratamento dos

falsificação dados, produção de hipóteses, crítica e


verificação dos resultados, validação das
adequações entre o discurso de saber e seus
objeto. Mesmo que escreva em uma forma
‘literária’, o historiador não faz literatura, e
isso, devido à sua dupla dependência.”
“Todavia, não é, ou não é mais, possível pensar o saber histórico, instalado na ordem do
verdadeiro, nas categorias do ‘paradigma galileano’, matemático e dedutivo. O caminho é
então forçosamente estreito para quem pretende recusar, ao mesmo tempo, a redução da
história a uma atividade literária de simples curiosidade, livre e aleatória, e a definição de sua
cientificidade a partir apenas do modelo de conhecimento do mundo físico. Em um texto ao
qual se deve sempre retornar, Michel de Certeau formulara essa tensão fundamental da
história. Ela é uma prática ‘científica’, produtora de conhecimentos, mas uma prática cujas
modalidades dependem das variações de seus procedimentos técnicos, das restrições que lhe
impõem o lugar social e a instituição de saber onde é exercida, ou ainda, das regras que
necessariamente comandam sua escritura. O que pode igualmente ser enunciado ao inverso: a
história é um discurso que coloca em ação construções, composições, figuras que são aquelas
de toda escritura narrativa, logo, também da fábula, mas que, ao mesmo tempo, produz um
corpo de enunciados ‘científicos’, se entendermos por isso ‘a possibilidade de estabelecer um
conjunto de regras que permitem ‘controlar’ operações proporcionais à produção de objetos
determinados’.”
Como podemos analisar a crítica de
Chartier?
A crítica e as preocupações de Chartier a respeito
da aproximação entre a história e a ficção são
filhas de seu tempo - portanto, marcadas pelas
questões de uma historiografia que buscava se
auto-afirmar no contexto final de anos 1980.

É importante, entretanto, ao retomá-las, perceber


que a “beira da falésia” já foi e é enfrentada
diariamente pelos historiadores, que enfrentam
os discursos e a dimensão literária e que, mesmo
assim, a história segue sendo um saber vivo e
ativo.

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